Dois caminhos
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Dois caminhos - Daniel Tonetto
Sumário
Capítulo I
A morte
Capítulo II
Os primeiros passos
Capítulo III
Vida que segue
Capítulo IV
Seguindo o caminho trilhado
Capítulo V
Mais um marco em suas vidas
Capítulo VI
Enfim, a vida adulta
Capítulo VII
O processo
Capítulo VIII
O julgamento
Capítulo IX
Dois caminhos
Com duas décadas atuando na advocacia criminal, presenciei os mais diferentes sofrimentos, dos mais diversos tipos humanos. Independente de serem ricos ou pobres, estudados ou analfabetos, observei que, em momentos de dor, a fé é fundamental para aliviar a alma dos que sofrem. Por isso, dedico este livro a todos os movimentos e religiões que, pregando a paz e a fraternidade, despertam a verdadeira fé, o maior apoio nos momentos difíceis.
Os atos de uma pessoa tornam-se a sua vida, tornam-se o seu destino
Leon Tolstói
AGRADECIMENTOS
Este livro não teria sido publicado sem a ajuda inestimável dos meus ilustres irmãos Armandinho Ribas Neto e Felipe Tonetto Londero.
À minha esposa Isadora Raddatz Tonetto, que sempre me apoiou a evoluir em todos os sentidos.
À minha mãe Vera Tonetto, a quem devo a carreira de escritor, pois ela me incentivou o hábito da leitura.
Aos meus padrinhos literários Gaspar Miotto e Ceura Fernandes.
Ao estimado professor Rodrigo Gurgel que, com suas aulas memoráveis, me fez enxergar a escrita como uma forma de vida.
Aos distintos amigos Joel Oliveira Dutra pelo prefácio e pela escolha do nome do livro, e Daniel Guzinski, pela sinopse e dicas que, sem dúvida alguma, engrandeceram a obra.
Agradeço também aos amigos Andrea Pfluger Pacheco, Eduardo Machado, Harold Hoppe e Lenira Brisch, que leram o livro antes de ser publicado e me deram conselhos incríveis.
Por fim, aos inestimáveis amigos Almir Humberto Velasco Cargnelutti, Cleberson Braida Bastianello e Ruy César Abella Ferreira que, pela maneira leve e ao mesmo tempo honrosa com que levam a vida, inspiraram personagens deste livro.
PREFÁCIO
A MORTE!
Assim começa a história trazida pelo Daniel, parece que subvertendo a ordem natural das coisas, que de ordinário começam com o nascimento...
Porém, tratando-se de alguém que traz para sua vida o desafio de encarar a morte buscando de algum modo aliviar a dor dos que com ela têm de conviver, defendendo ou acusando (quem mata carrega consigo a sombra da vida ceifada, quem perde alguém fica chorando a falta da vida arrancada), iniciar uma história aparentemente do avesso não é de se estranhar.
Daniel Tonetto é advogado criminalista antes mesmo de ser oficialmente reconhecido como tal. Já no início dos anos 2000, enquanto jovem estudante de Direito participava de debates em plenário de júri ao lado de grandes tribunos, certamente atraído pelo pulsar da vida que teimava em gritar suas paixões, suas dores e seus medos pelas vozes dos personagens da história, contada pela acusação e pela defesa. De lá para cá vão-se longos anos, mais de vinte, e a estrada transformou o menino atrevido em homem maduro, e lidando com vida e morte acabou conhecendo a alma humana naquilo que tem de melhor e de pior.
Então, a vida real se transforma em romance pelas mãos de Daniel. À tona surgem personagens seguindo direções que os levarão à glória ou à desgraça, ao sucesso ou ao fracasso, arrastando para as sombras ou conduzindo à luz a todos que cruzam seus caminhos. Há um pouco do que somos nos personagens que são construídos pela mente do autor, ora nos lembrando o quão grande somos, ora mostrando até onde é possível cair no precipício da destruição, a depender da estrada escolhida.
Juliette, com toda a certeza, sabia o que a vida lhe reservava. Jeferson, a seu passo, julgava-se inatingível. Everton escolheu sua estrada, enquanto Matheus não desperdiçou as chances de se dar bem na vida. Heitor e Clóvis ocupavam-se com a vida dos outros, conquanto antítese um do outro. Alguns muito humanos, outros de moral duvidosa, a presença do bem no coração de poucos. Leon Tolstói tem razão quando diz que os atos de uma pessoa tornam-se a sua vida, tornam-se o seu destino.
Então, caro leitor, cabe a ti explorar o enredo destas vidas, e dar asas à imaginação, construindo imagens e semelhanças dos personagens com os atores da vida real. E ao longo da história contada, torcer para que a justiça se faça!
Joel Oliveira Dutra
Capítulo I
A morte
A noite de inverno estava começando a dar seus primeiros sinais, mas parecia que ninguém notava as poucas estrelas que começavam a surgir no céu. Era 17 de julho do ano de 1994, a seleção brasileira de futebol tinha se tornado tetracampeã do mundo, e quando Roberto Baggio errou o pênalti o país parou. Agora já posso morrer em paz
, disse um moribundo que assistia à partida na televisão da rodoviária e já não esperava mais nada de alegre desse mundo. Foi o momento mais feliz na vida de milhões de brasileiros, desde jovens que nunca haviam vivenciado tamanha emoção a anciãos que almejavam ver o time mais uma vez vitorioso antes de serem alcançados pela morte.
Juliette Torrani estava com 46 anos, porém quem a observava tinha a impressão de que ela ultrapassara os 60. Sua vida desregrada e o consumo de bebidas alcoólicas, além de dois maços de cigarro por dia, que foram os responsáveis por amarelar seus dentes como se fossem pequenos caramelos, davam-lhe uma aparência bizarra. Após o jogo, tomou quase uma garrafa de cachaça na comemoração e foi parar no quarto de um frentista que tinha idade para ser seu filho. Transaram por alguns minutos, e quando a exaltação da cocaína lhe devolveu a consciência, teve vontade de vomitar e dispensou Juliette; primeiro educadamente, depois aos gritos, chamando-a de bruxa nariguda. Acostumada a ouvir desaforos e, sem opção, ela voltou para casa.
Ao chegar, a rotineira solidão lhe permitiu ouvir o barulho dos foguetes por todos os lados. Mesmo assim, instantes depois, dormiu por quase uma hora. Foi acordada por uma infinidade de carros que buzinavam freneticamente, com pessoas nos veículos ovacionando todo o tempo o craque Romário. Com o barulho ensurdecedor, levantou-se da cama e foi até a cozinha tomar um copo de água. Enquanto abriu a torneira, ouviu um estrondo, era como se uma porta estivesse sendo arrombada. Confusa pela ressaca, olhou ao seu redor e não viu nada. O som se repetiu, só que agora mais perto. Juliette moveu o pescoço e deparou-se com um homem encapuzado.
– Pode levar o que quiser, só não me machuque! – pediu, dominada pelo medo.
– Por acaso, está me chamando de ladrão? – respondeu a voz abafada pelo capuz. Apesar disso, Juliette o reconheceu.
– Me deixa em paz, sai daqui...
O encapuzado desferiu um soco em seu rosto, fazendo-a cambalear, mas não a derrubou. Em seguida, chutou-lhe as pernas e ela desabou.
– O que você quer de mim?
– Cala a boca, vagabunda!
Mesmo apanhando, não perdeu o ímpeto da provocação.
– Não vê que acabei de transar com um garoto, então não me atrapalha!
– Sua vadia! – disse, dando-lhe pontapés em sua barriga.
Em meio ao vacilo do agressor, que acreditava ter a situação sob controle, Juliette pegou uma frigideira no balcão abaixo da pia e, erguendo o corpo, conseguiu desferir um golpe no rosto do homem. Imediatamente saltou sobre ele, cravou-lhe as unhas em seu pescoço, arrancando-lhe a pele. Enfurecida, passou a agredi-lo com socos, mas quando imaginou que era capaz de vencê-lo, sentiu uma lâmina lhe queimar a barriga.
– E agora, quem é que vai transar com um garoto, sua megera!? – disse olhando em seus olhos. – Sinta isso – falou em seu ouvido, torcendo a faca, fazendo-a soltar um uivo de dor e medo.
Não satisfeito, arrancou a lâmina de seu corpo e desferiu mais duas facadas no tórax.
– Está vendo as luzes se apagarem? Não são luzes, e sim sua vida medíocre que está indo embora.
Juliette tentou gritar, mas suas forças se evaporavam, parecia mesmo que estava se despedindo da vida.
Deitada no chão, sangrando com os braços estendidos ao longo do corpo, Juliette era só amargura e aflição. Olhou a porta da entrada de sua casa, sonhando que pudesse chegar socorro, mas a esperança se diluía a cada segundo. Contudo, ouviu uma sirene distante, cada vez mais perto. Não sabia se era a polícia ou uma ambulância. O certo é que não faria a mínima diferença. Juliette acabara de morrer.
Alertados pelos vizinhos, os policiais entraram na casa e viram um homem com as mãos ensanguentas ao lado do corpo e uma faca a menos de um metro.
– Parado, fique longe da arma! – gritou um dos policias apontando-lhe o revólver.
– Que é isso! Não fui eu quem a matou!
– O senhor está preso. Tudo o que falar pode ser usado em seu julgamento.
– Mas...
– Cala a boca – disse o outro policial, algemando-o.
Na frente da residência, poucas pessoas se interessaram ao ver o homem preso. Esperavam há 24 anos pelo título da seleção brasileira e tinham mais a comemorar do que presenciar uma pessoa detida. No outro dia, nem mesmo o jornal da cidade publicou uma linha sobre o homicídio. Todas as capas dos periódicos país afora estampavam a foto do meio campista Dunga levantando a taça do tetra.
Capítulo II
Os primeiros passos
As lembranças daquela madrugada fria do ano de 1974 permaneceram para sempre nas memórias de Matheus Britto. Os primeiros dias de inverno surgiram como uma névoa calada que parecia tomar conta de quase tudo.
Enquanto, do lado de fora, um vento silencioso fazia a sensação térmica ser uma temperatura abaixo de zero, em seu quarto, a recente perda da única irmã o acometia de uma tristeza que parecia ser ainda mais gelada e sombria. Semanas antes, com cinco anos de idade, portanto um ano mais jovem do que ele, despediu-se da vida, vítima de uma doença que os médicos não souberam precisar. Por dois meses seu minguado corpo foi definhando até morrer. A derradeira imagem da irmã tocando em suas mãos era como um deserto de desespero.
Nas primeiras noites, Matheus, ao se deitar, escondia a cabeça sob o travesseiro para que os pais não escutassem seu choro, mas o que ele não sabia era que os dois ficavam atrás da porta, atentos ao sofrimento do filho. Eles se abraçavam, petrificados, no escuro, procurando palavras para consolá-lo, sem nunca as encontrar, questionando a Deus por ter levado a doce Isabel.
Em uma dessas madrugadas, ouviram um barulho estarrecedor, precedido por gritos de socorro. Matheus Britto levantou, abriu a porta e se deparou com os pais enrolados em um cobertor, já sem lágrimas para derramar.
– O que vocês estão fazendo aqui? – perguntou.
– A gente se assustou com o barulho – tentou disfarçar sua mãe.
Sem pensar muito, Adão Britto colocou o primeiro casaco que viu.
– Pai, eu vou junto com o senhor.
– Nem pensar, eu não sei o que aconteceu e pode ser perigoso.
– Mas, pai, tenho certeza de que se a mana estivesse aqui e ela pedisse, o senhor a levaria.
O casal, mais uma vez, não encontrou palavras para falar, e Adão acabou concordando que o filho o acompanhasse.
Os pais de Matheus eram pessoas singelas, de hábitos simples, desprovidas de maldade. Foram criados como católicos e passaram a vida ouvindo histórias sobre pecados e suas consequências. Ele, um homem com 35 anos , calvo, magro, nariz arredondado, trabalhava há mais de dez anos como auxiliar de estoque em um supermercado. Zulmira, com 32, exercia a função de serviços gerais em um hotel, e aparentava ser um pouco mais velha, talvez pela perda prematura da filha ou pela árdua rotina de trabalho, somada aos cuidados da casa.
Do lado de fora, os gritos por socorro pareciam aumentar, e Zulmira pediu para que os dois se apressassem. À medida em que se distanciavam de casa e aceleravam os passos, mais altos ficavam os pedidos de ajuda. Matheus percebeu que eram sotaques diferentes, pois até então nunca havia visto uma pessoa que falasse um idioma que não fosse o português.
Perto do local em que residiam, passava uma estrada, utilizada por turistas uruguaios que visitavam a serra gaúcha, cujo inverno permitia que apreciassem a neve. Por azar, um ônibus lotado de castelhanos, ao tentar desviar de um cavalo que estava no meio da pista, acabou caindo em um barranco.
Ao se aproximarem, viram cerca de vinte pessoas, incluindo mulheres e crianças, agonizando com ferimentos graves; outras sete se dividiam entre amparar os feridos e retirar passageiros do ônibus. Atônitos, pai e filho não sabiam o que fazer, e por alguns segundos ficaram sem reação.
Enquanto ainda lutavam contra a perplexidade, viram Jeferson Torrani e seu filho Everton chegarem.
– Por favor, corram para retirar os feridos do ônibus, é questão de minutos para que o veículo exploda – afirmou Jeferson para os três uruguaios que acudiam os enfermos. – Vamos ajudar vocês por aqui.
Jeferson Torrani era vizinho da família Britto. A distância entre as casas se limitava a uma rua esburacada e alguns passos. Havia completado 45 anos dias atrás, porém tinha muito pouco para se orgulhar. Colecionava brigas e golpes, estava no terceiro casamento, pai de cinco filhos, mas o único com quem mantinha contato era Everton, fruto de seu atual relacionamento e da mesma idade de Matheus. Exercia a profissão de mecânico, consertando carros de terceira linha e revendendo peças sem procedência em uma pequena sucata nos fundos de sua casa. Esquisito, tinha um bigode avantajado e uma barriga maior ainda. Os cabelos escuros, crespos e sempre engraxados, denotavam ser um homem descuidado. Observando suas atitudes, era fácil constatar que não tinha nenhum princípio.
A ordem de Jeferson, tão convicta, produziu um pânico instantâneo, fazendo com que os uruguaios abandonassem os feridos, e se unissem aos que resgatavam os passageiros do ônibus.
– Vamos, Everton, seja rápido – ordenou, olhando para o filho com expressão amedrontadora. – Faça o que te ensinei!
No mesmo instante, Matheus e Adão começaram a socorrer os feridos e gritar por mais ajuda. Pegavam na mão dos mais ofegantes e tentavam acalmá-los. Adão pressentiu que uma das mulheres não aguentaria, sua barriga sangrava demais e começava a delirar. Desesperado, tentou estancar a hemorragia pressionando o ferimento com seu próprio casaco. Mas ambos ficaram ainda mais estarrecidos com outra cena: metros adiante, Jeferson e Everton vasculhavam os bolsos das vítimas, retirando tudo que poderia ter algum valor. Ao tentar pegar o relógio de uma senhora, Everton foi surpreendido com seus gritos, mas o pai a calou com ameaças de morte, arrancando do seu punho a pequena herança que recebera da avó. Somente pararam quando ouviram as sirenes, fugindo por um caminho dentro do matagal que margeava a estrada.
Anestesiados pelos horrores, Adão e Matheus permaneceram auxiliando por mais duas horas, até que a derradeira vítima fosse levada de ambulância. Cansados e entristecidos, viram o sol nascer no trajeto de volta para casa.
– Sei que você é muito pequeno para a conversa que vamos ter – introduziu Adão –, mas não posso deixar de te aconselhar depois de tudo que vimos.
– Verdade, pai. Vamos rezar com a mãe pela vida dessas pessoas – respondeu Matheus, não imaginando sobre o que falariam.
– Você sabe que não sou um homem estudado. Até que gostaria de ter prosseguido no colégio, mas teu avô era muito pobre e precisei trabalhar cedo. No entanto, ele me ensinou a ser digno e acredito que nenhuma faculdade seria capaz de me instruir melhor sobre isso.
Enquanto os primeiros raios de sol afastavam a madrugada fria e nebulosa, pensou um pouco nas palavras adequadas e continuou:
– O que vimos hoje ficará marcado em nossas lembranças. Quero que jamais esqueça de uma coisa...
– Acho que nunca vou esquecer daquelas pessoas gritando de dor e chamando por socorro...
– Mas tem uma coisa mais importante em tudo isso.
– Como assim, pai?
– Nossas vidas são reflexos das atitudes que tomamos. Sempre temos dois caminhos a escolher.
– Não entendi.
– Vou te explicar. Enquanto nós dois estávamos socorrendo os feridos, o Jeferson e o filho dele, aquele menino que é teu colega na escola, como é mesmo o nome dele?
– É o Everton.
– Então, eles, ao invés de prestar socorro, se aproveitaram da tragédia das pessoas.
Vendo a expressão de espanto do filho, percebeu que ele o olhava com orgulho; e para Adão Britto, esse era o melhor prêmio que poderia conseguir. Respirou fundo, conteve as lágrimas e prosseguiu:
– Esses uruguaios que tiveram carteiras e joias roubadas, em breve, e com a ajuda de Deus, recuperarão a saúde e até mesmo o prejuízo que tiveram. E como você acha que eles vão conseguir isso? Por meio do trabalho, o único caminho pelo qual se adquire tudo o que precisamos. Tenho certeza que o Everton logo perderá esses valores, por culpa do pai, que furta dele a própria dignidade, e isso o acompanhará por sua infeliz existência.
– Como assim, pai? Eu não vi ninguém roubando dele, pelo contrário, foi ele que roubou dos outros.
– Presta atenção no que vou te falar e nunca esqueça isso: ele jogou fora sua decência com esse ato covarde, e tenho convicção de que quem faz isso terá um futuro cheio de sofrimento e decepção. Sou religioso, e acredito que Deus viu tudo o que ele fez. Porém, algo me preocupa ainda mais.
– O que é?
– O teu colega, com apenas seis anos de idade, presenciou tudo e ainda seguiu as ordens do pai. Ele é apenas uma criança, que também é vítima desse malfeitor, por isso temo pelo futuro dele. Quero que me faça duas promessas hoje. Pode ser?
Matheus concordou com um gesto, sentindo pena do colega, ao mesmo tempo em que relembrou as brincadeiras que tinha com a irmã.
– Primeiro, nunca faça algo que violente tua dignidade. Segundo, que na medida do teu alcance ajude o Everton no futuro, pois certamente ele terá uma vida difícil com a criação que está recebendo.
Com a