Dois por engano
De Ian Uviedo
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Dois por engano - Ian Uviedo
dois por engano
romance
Ian Uviedo
logotipo editora DiadorimSumário
Dois por engano
I. INVERNO
Aos olhos de Melissa
Camurça
Memória insuficiente
Bicicletas destroçadas
Pausa para o verão
Variações em dourado
II. INVERNO OUTRA VEZ
Desaparecendo aos poucos
Ikebana
Demarcação de fronteiras
The Brown Sisters
A história dos cigarros
Rebeca
Corina
Fotografias
III. AGORA É O FIM
Melissa Zoratte
Alberto Flores
Epílogo
Sobre o autor
Copyright © Ian Uviedo, 2023
Editores
María Elena Morán
Flávio Ilha
Jeferson Tenório
João Nunes Junior
Capa: Cintia Belloc
Foto de capa: Rafael Trindade
Projeto e editoração eletrônica: Studio I
Revisão: Press Revisão
Dados Internacionais de Catalogação
Dois por engano / Ian Uviedo. - Porto Alegre : Diadorim Editora, 2023.
ISBN: 978-65-85136-09-9
1. Literatura brasileira. 2. Romance. I. Título.
2023-1411
CDD 869.8992301
CDU 821.134.3(81)-34
Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410
Índice para catálogo sistemático:
1. Literatura brasileira : Romance 869.8992301
2. Literatura brasileira : Romance 821.134.3(81)-34
Todos os direitos desta edição reservados à
Diadorim Editora
Rua Antônio Sereno Moretto, 55/1201 B
90870-012 - Porto Alegre - RS
Eles são dois por engano. A noite corrige.
Eduardo Galeano
I. INVERNO
Aos olhos de Melissa
Eles dois estão cansados de andar. Começaram há mais de duas horas e já é difícil contar quantas vezes ela enroscou o braço no sobretudo dele, quantas vezes ele parou e se espreguiçou para depois acender um Marlboro e retomar a marcha, quantos gatos ela fez questão de agachar e acariciar. Às três da manhã, ele vê o rosto dela — talvez ainda mais branco, tamanha a escuridão — iluminado pelo néon de um letreiro: hotel.
O palacete de esquina se parece mais com um motel ou uma pensão. Quando os dois entram no hall, percebem um par de senhoras que assistem televisão no fundo do cômodo; a tela mostra bailarinas de show anunciando alguma premiação e a música, que se pretendia animada, chega até eles parecendo chiado de rádio. As duas idosas estão imóveis, como se estivessem ali desde sempre ou como se já nem estivessem ali há muito tempo.
É ele quem fala com a recepcionista, uma mulher negra com o semblante a um só tempo severo e irônico, que os olha como se fossem fugitivos, personagens saídos de algum road movie. Estão cansados demais para ensaiar qualquer justificativa e enquanto ele preenche a rubrica com o número de seu documento e assina um papel, ela já pegou a chave e está subindo para o quarto pela escada.
O nome dele é Alberto Flores. Mede um e setenta e oito, pesa setenta e cinco quilos e tem os ombros tensos feito uma gárgula. O sobrenome Flores — que é como os poucos amigos que tem o chamam — vem da família do pai, cujos avós chegaram na América quando a Argentina ainda era vice-reinado da Espanha. É um homem discreto e calado porque não quer ser julgado. Sente que muitos dos seus passos são em falso e que seus atos correspondem a um pecado numa cartilha desconhecida. A sensação de estar sendo observado o empresta um charme que consiste em mexer muito nos cabelos castanhos que fedem a cigarro e manter uma mão sempre suspensa no ar, à altura do botão central de seu sobretudo preto, como se estivesse com o braço engessado. Nasceu em Buenos Aires e com seis anos já estava no Brasil. Passados tantos anos desde que desceu as escadas do aeroporto de mãos dadas com a mãe, porém, rejeita a naturalização, reivindicando sua condição de estrangeiro. Ele e ela ocupavam um quarto na casa que possuía uma amiga de sua avó. Cresceu cercado de mulheres. O pai era uma presença inconstante. A tal amiga da avó, quando ele era mais velho, lá com seus doze anos, gostava de castigá-lo quando sua mãe não estava, batendo em suas coxas com a mangueira do quintal. Nada disso durou muito. Ao completar dezoito e ver-se dispensado do serviço militar, tratou de encontrar um emprego, casar e mudar de casa. É um homem que gosta de bebidas geladas, sal e precisa dormir muito — o que, é claro, não consegue.
Ela se chama Melissa Zoratte, outra descendente de imigrantes espanhóis, que nesse caso aportaram no México entre 1870 e 1920. Todos a chamam de Lissa. Neta de mexicanos, pertence à segunda geração da família Zoratte a nascer no Brasil, e sob uma situação favorável: em sua infância havia uma grande casa e um quintal com pitangueiras, jabuticabeiras e salgueiros, os pais tinham trabalhos fixos e viveram juntos até a morte de seu pai. Mesmo assim, ao fazer dezesseis anos, foi atrás de suas origens no Distrito Federal mexicano. Depois de morar com a avó durante dois anos num complexo residencial na periferia, trabalhando como garçonete em meio período alternado com os estudos, conseguiu um estágio num estúdio de design e mudou-se para uma república no Centro, onde viviam mais seis jovens aficionados por música e poesia e arte que tinham arranjado aquele casarão por um preço quase nulo para cada. Os motivos disso eram claros. Muitas vezes, ao longo do mês a água quente parava de correr nos canos e a eletricidade era cortada. Infiltrações enormes se arrastavam pelo teto dos quartos. O chão de tacos e as brechas na calha do telhado deixavam todo o frio do inverno mexicano vir se deitar com eles na cama, e nas temporadas chuvosas nunca havia panelas e baldes suficientes para controlar as goteiras. Ela tem um e sessenta e sete de altura, pesa cinquenta e oito quilos e tem cabelos pesados e escuros, que às vezes ela trança ou amarra num coque, embora os prefira soltos. É uma mulher que abomina televisão, tem gosto por açúcares e publicou um livro de poesia do qual se envergonha um pouco.
Setenta e oito noites depois de terem se encontrado pela primeira vez, num bar na região central de São Paulo, onde Flores saía para caminhar sozinho, afastar os demônios do passado e distanciar-se de Corina, a mulher com quem dividia o quarto e, para todos os efeitos, a vida, e acabava aportando em algum balcão para tomar uma dose de conhaque ou uma cerveja e ficar observando o movimento do recinto, sentindo-se apenas mais um ponto na malha infinita da cidade, um ponto atravessado por tantos outros pontos o tempo inteiro numa velocidade impressionante, calhou que um dos pontos tinha a forma de uma garota de gestos tímidos e jaqueta de camurça escura que se encostou no balcão e encomendou um maço de Camel azul, contrariando todos os seus instintos e princípios mais básicos, ele puxou assunto com ela, descobriu que seu nome era Lissa, que parte do seu sangue era asteca e por isso ela tinha facilidade em pronunciar tês seguidos de eles e cês, e pôde contar um pouco da sua história, como aquela noite transparecia uma situação solitária, por mais que houvesse alguém esperando por ele no apartamento, e como ele não conseguia voltar, como a cada vez que saía para caminhar, mais aumentava sua vontade de desaparecer, e os dois bufaram aquele característico ‘é foda’ ao mesmo tempo, o que serviu para fazer mais um traço no desenho da cumplicidade que começava a se formar naquela noite, tão sortida de luzes, pessoas perdidas, desencontros, e, surpreendentemente, ele pensa, um único encontro.
Lissa senta na cama de casal, percebe como é dura e tira da bolsa um cantil de alumínio que sempre leva consigo. Dessa vez a garrafinha está cheia de conhaque. Após tomar um gole generoso, ela olha para ele e o vê tentando forçar ao máximo a janela para poder fumar sem ser importunado por eventuais alarmes de incêndio, e embora ela ache graça na força e na irritação que ele está empregando nisso, sente um pouco de pena e não pode deixar de pensar que foi ela quem fez sua vida desandar até quase parar. Considera por um instante levantar-se, abraçá-lo por trás e oferecer um gole da bebida. Não é como se ele estivesse num momento introspectivo, visto como luta contra o trinco da janela para que ela fique suspensa fora do quarto sem retornar, mas ainda assim aquele é um instante que pode pertencer só a ele e é fácil considerar que a indignação com que Flores está lutando contra a janela representa sua indignação geral: o absurdo da situação em que se encontram, seu sentimento de traição, a ideia de que tudo vem dando errado desde o primeiro passo que deu sobre a terra. Lissa não quer interferir nisso porque, como poeta que é, compreende que esse tipo de insignificância pode ser determinante para o caso entre eles — o caso, o romance, o lance, o affair, chame como preferir. Ao mesmo tempo, a pena é um sentimento instintivo que inspira o cuidado e talvez um abraço bem dado, um gole de conhaque, sejam o que é necessário para que toda a tensão relaxe ao menos por um segundo, um longo segundo, o tempo dele vir deitar-se com ela na cama depois de duas horas de caminhada num frio do demônio. Nesse momento, Lissa está no limbo entre deixar Flores na tentativa de estrangular seu próprio passado e trazê-lo para a ideia incerta de um futuro. Esse tipo de transigência não a anima muito; ela não saiu do Brasil para viver no México em condições, senão deploráveis, bastante desagradáveis para voltar ao Brasil e ficar quebrando a cabeça com o escândalo silencioso de um homem que a seduziu acidentalmente, sem se dar conta de seu charme e de seu sexo, que, no entanto, no segundo gole de conhaque, começam a parecer um pouco caros. Ela decide que não queria estar ali, mas isso não é necessariamente um problema. É tudo uma questão de se ela vai ou não abraçá-lo,