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Mundo Sem Fim
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E-book575 páginas8 horas

Mundo Sem Fim

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Sobre este e-book

Depois do que ficou conhecido como o Longo Inverno, uma nova civilização se reergueu das cinzas do Mundo Antigo. Novos lugares, novas raças, novos costumes. E as "pessoas antigas", como são chamados aqueles que não sofreram nenhuma mutação, sobrevivem em meio a um ambiente cada vez mais hostil.

Zoe Torres é uma dessas pessoas. Uma humana que teve sua colônia atacada por canibais, e só sobreviveu graças a um estranho com olhos cor de ametista e habilidades especiais. Ela nunca mais o viu desde o dia em que a salvou, mas ele lhe deu um presente, uma faca branca capaz de cortar qualquer coisa. Um presente perdido pela necessidade, transformado em pagamento por comida e abrigo.

A busca de Zoe por recuperar seu tesouro lhe apresenta Joy Mackenzie, filha de Legisladores de uma nação longínqua e herdeira de uma figura mística do passado, conhecida como A Juíza. Mackenzie foi eleita a próxima governante de seu povo, mas a propagação de ideias extremistas e a rápida ascenção de um líder político totalitário colocam a nação sob ameaça de uma guerra civil.

Contratada por Mackenzie para auxiliá-la em seu retorno para casa, Zoe embarca em uma viagem através de desertos gelados e cidades arrasadas. Aprendendo sobre o povo de Mackenzie, sua cultura e sua história, Zoe pode acabar não só reencontrando o estranho com olhos de ametista, mas também descobrindo que seu passado e seu futuro estão, de alguma forma, ligados à figura mística da Juíza e ao destino daquele povo.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento6 de jul. de 2023
ISBN9788595941397
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    Mundo Sem Fim - Arthus Sousa

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    Para minha mãe, que é bela e forte como uma tempestade.

    ***

    Para minha família e todos os outros clãs sem nome.

    fragmento

    O tempo chorou quando ela se foi.

    Eu me lembro, sempre vou me lembrar; dos olhares opacos dos adultos, das almas que pareciam ter sido viradas do avesso, despedaçadas fora do corpo. A fé no futuro se foi junto com ela, e as Marés do Tempo se contorceram e gritaram em agonia: ela está morta.

    O mundo era mais escuro e perigoso do que jamais foi. Lembro-me de que o bando viajou quarenta dias para chegar ao local dos cortejos. Não havia corpo. Todos voltam ao pó. Mas àqueles como ela, isso acontece no exato instante em que deixam a vida. A Juíza era nossa única esperança, ela era nosso sol, lua e estrelas em um mundo em que nenhuma dessas coisas podia ser vista.

    E ela estava morta.

    Fomos os últimos a chegar. Os Doze Clãs de Olhos de Prata já estavam lá. Em silêncio, aproximamo-nos com nossas quatro pedras enfiadas nos bolsos e apenas uma na mão. Eles se afastaram, abrindo caminho até o mar revolto. Chamavam-nos de os Homens Sem Nome, o décimo terceiro clã, que não seria contado entre os Olhos de Prata. Sem passado e sem futuro.

    Lançamos nossas pedras ao mar e fizemos nossas preces. Oramos para que as cinco Linhas do Tempo se tornassem uma só. Para que a história fosse reescrita. Para que viessem tempos de refrigério…, mas nada disso aconteceu.

    No dia em que ela morreu, as Marés do Tempo adormeceram. O Criador ficou em silêncio. Os céus se fecharam e nenhuma oração foi ouvida.

    Por muito, muito tempo.

    A FACA BRANCA QUE CORTAVA TUDO

    Os dedos mal se moviam, endurecidos pelo frio, agarrados às botas velhas. Pernas encolhidas, cabeça apoiada nos joelhos, olhos sem vida. Ela já havia desistido de limpar a sujeira debaixo das unhas e de lavar os cabelos. A cada ano que passava, eles se tornavam mais longos e difíceis de esconder com o lenço. Também já havia desistido de achar um propósito para continuar viva, exceto, talvez, recuperar aquela faca. A faca branca que cortava tudo. A faca com a qual fora salva. Na primeira vez, de um grupo de mercenários, na segunda, da morte por inanição, ao trocar o objeto por comida.

    Usar a faca para cortar o cabelo foi a coisa certa a fazer. Tinha onze anos na época, uma garotinha bem-cuidada por bons pais, e, mais do que isso, boas pessoas, uma coisa cada vez mais rara após a catástrofe.

    A colônia a qual pertencia ficava nos subterrâneos do lugar chamado Mão-Com-a-Tocha, seu povo usava radiação ultravioleta para cultivar alimentos e fogo para purificar a água. Viviam bem para as condições daquele mundo. Até que um dos coletores cometeu o erro mortal de não apagar seus rastros após roubar armamento e cobertores de um acampamento de caça dos canibais. Os pais foram mortos durante o ataque que essa ideia infeliz desencadeou. E a menina ficou vagando, fugindo, escondendo-se em um bunker que ficava nos arredores. Uma criança sozinha naquele mundo desolado. Não demorou muito para que caísse nas mãos dos mercenários.

    Talvez não fizesse muita diferença estar dormindo ou não, o pesadelo continuava ali. Mas quando estava acordada, ela concentrava seus pensamentos na faca. A faca branca que cortava tudo. A faca branca que cortou as gargantas dos mercenários, que os impediu de machucá-la. A faca branca que Olhos de Ametista dera a ela. Ele era capaz de matar mercenários tão rápido quanto um raio, talvez isso significasse que era uma aberração pior do que eles.

    Ou não.

    Um canhão soou distante. O som percorreu lentamente os subterrâneos da Floresta de Pedra. Ela se mexeu, os dedos frios soltaram as botas. Mais uma hora havia se passado.

    Olhos de Ametista a trouxera à Floresta de Pedra havia sete anos. Desde então ela estava lutando para manter a sanidade. Sete anos vivendo disfarçada de homem nos subterrâneos. Sete anos trabalhando para recuperar a faca com a qual fora salva. Era tudo o que tinha. Tudo a que podia se apegar. Por isso, ela se arriscava descendo aos níveis mais baixos dos túneis, e pelo mesmo motivo estava se levantando mais uma vez e se encaminhando para lá. Para coletar lixo tecnológico do Velho Mundo, trocar uma parte por alimento — apenas o necessário para sobreviver —, guardar parte para trocar com o ruivo que estava com sua faca.

    Todos os dias a mesma coisa.

    Aqueles que vagavam pelos túneis, não importava a qual raça pertenciam, pareciam tão mortos por dentro quanto ela. Olhos fundos, semblante duro, esculpido pelas mazelas daquela vida sem significado.

    Nos primeiros níveis subterrâneos, viviam os escavadores, pobres e refugiados. Ali, os túneis eram mais largos, havia velhos trilhos pelos quais corriam carrinhos ainda mais velhos, levando a terra que os escavadores recolhiam. Nos andares mais profundos, onde vivam as mutações, tudo parecia sempre úmido e claustrofóbico, alguns daqueles túneis eram tão estreitos e inclinados, que até a passagem de alguém pequeno como ela se tornava difícil. Acima da terra, viviam os Ruivos, outro grupo de pessoas antigas. Ao longo de dois séculos, aquele povo conseguiu expandir seu domínio além das nuvens tóxicas, onde era possível receber a luz do sol. Uma nação rica entre miseráveis.

    Ae, moleque! De novo aqui?

    Ela girou nos calcanhares agitando o lampião à procura da origem do som, mal havia chegado aos níveis inferiores.

    Ow! Vira esse negócio pra lá! — o fantasma gritou fechando os olhos vermelhos, no momento em que o fogo iluminou as orelhas pontudas e a pele pálida.

    — Ah! É você, Ghost. — Ela suspirou, desanimada, e voltou a caminhar.

    A maioria dos fantasmas era hostil, uma das várias mutações que surgiram depois do Grande Inverno. Não eram como as aparições espectrais do Velho Mundo, mas filhos de humanos que se adaptaram à vida sob a terra. Aquele fantasma, no entanto, não só se mostrava amigável, como a seguia para todo canto desde que começara a coletar lixo tecnológico.

    Ela o achava incômodo com sua conversa fiada sobre o Velho Mundo, mas de qualquer forma, parecia bom ter um fantasma por perto quando se andava pelos níveis mais baixos. Fantasmas enxergavam no escuro, distinguiam os sons a vários quilômetros de distância e conheciam os subterrâneos melhor do que ninguém.

    — Ainda não conseguiu o suficiente? — ele perguntou.

    A resposta dela foi apenas um aceno negativo com a cabeça.

    — O que vai fazer depois que tiver sua faca? Sair caçando os canibais que destruíram sua colônia?

    — Ninguém caça os canibais — respondeu ela, sem ânimo. — São eles que nos caçam.

    Ele se moveu no escuro, como se estivesse coçando o queixo.

    — Ouvi outra história essa semana…

    A garota soltou um muxoxo, Ghost estava sempre ouvindo histórias. O problema era que a maioria delas não passava de mentiras das mais esdrúxulas.

    — Parece que tem alguém caçando os canibais.

    — Gigantes do Norte? — sugeriu ela. Era a resposta mais óbvia, apesar de saber que os gigantes tinham uma relação quase pacífica com os canibais. Também sabia que naquele mundo nenhuma relação era pacífica de fato.

    — Não — Ghost falou. — Os Olhos de Prata. Gente do Extremo Oeste, parece que os canibais roubaram uma coisa deles, uma tal de joia… O que é uma joia, moleque?

    — Coisa do Velho Mundo, não serve pra nada hoje em dia — respondeu. — E não tem nada nem ninguém no Extremo Oeste. Os Olhos de Prata são só uma história do Velho Mundo. O que me faz pensar que, quem quer que tenha te contado isso, estava tirando com a sua cara. Nenhuma novidade.

    — Você é tão chato! — Ghost reclamou encostando-se a uma parede. — Pensa bem, é possível que os Olhos de Prata existam, assim como uma centena de outras raças que nasceram após o Grande Inverno e das quais nós não tomamos conhecimento.

    "Das quais não tomamos conhecimento…" ela zombou enquanto abria caminho com as mãos em meio a uma pilha de sucata. Ghost era um aficionado pela língua, pelos costumes, pelas histórias, e tudo relacionado ao período anterior ao Longo Inverno. Ela conhecia o bastante, havia aprendido com os pais e com a experiência recolhendo os restos daquela civilização. Mas no fim, a história era simples: Primeiro a guerra, depois os mortos reanimados pela bactéria FURIA. Depois, o Inverno, e por consequência a fome e as mutações. Mas, o que quer que tenha sido o mundo antes daquilo, lembrar só traria mais sofrimento. O sentimento de impotência, de coisas que poderiam ter sido e não foram.

    O trabalho de coletar era menos árduo do que escavar para fornecer terra às plantações dos Ruivos, mas também rendia pouco. Às vezes, um dia inteiro chafurdando naquela sucata não era nem o suficiente para trocar por alguns nabos mofados. Tudo dependia do que se encontrava. Mas os dias em que ela mal tinha o que comer eram muitos se comparados àqueles em que acreditava que poderia recuperar sua faca.

    Não chegava a ser otimismo, mas naquele momento, talvez ela tenha sentido que algo poderia melhorar. E tudo por causa de um amontoado de papel, encontrado lá pela quinta hora de trabalho. Ela tentou usar a vantagem de ter mãos pequenas para puxá-lo de entre a terra misturada a ferro e escombros, mas no fim, Ghost acabou sendo a pessoa que tirou o livro de lá.

    Sim, um livro. Um livro do Velho Mundo.

    O fantasma se agarrou à relíquia como se sua vida dependesse disso.

    — Devolve! — ela gritou. Era só o que podia fazer, se aquilo se tornasse uma briga, ele, com toda certeza, levaria a melhor.

    Ghost ergueu o livro acima de sua cabeça, folheando-o.

    — Eu nunca tinha visto um tão bem preservado.

    Ela tentou pular para alcançar o livro, mas Ghost era muito alto e ela, muito baixa.

    — Se você não me der isso agora, vai descobrir que eu não preciso de uma faca pra ser perigoso! Me dá!

    — Você é um carinha realmente estranho… Mas vou propor um acordo: É ainda a quinta hora, temos pelo menos mais nove horas para fazer a troca com um ruivo, então, até lá você me deixa ler isso e quando der a hora, vamos lá trocar o livro pela sua faca. Fechado?

    — Fechado — ela concordou a contragosto.

    Ghost sentou-se escorado em meio às pilhas de sucata. Ela fez o mesmo, aproximando o lampião de onde estava, tentando ler o título do livro.

    A língua usada pelas pessoas antigas para escrever seus livros era parecida com aquela usada pelos moradores dos túneis, embora a maioria dos escavadores pouco conhecesse a respeito dos sistemas de escrita do Velho Mundo, ela e Ghost eram exceções à regra. Talvez esse fosse o motivo que os unira desde o começo.

    — A Terra Habita? Que tipo de livro tem um título desses? — Zoe zombou.

    — Acho que a tradução correta seria Só a Terra Permanece até que faz sentido, afinal sempre fica terra no chão, não importa o que aconteça com o mundo… Espera! ― Os olhos de Ghost quase saltaram das órbitas.

    — Mundo. Os antigos chamavam o MUNDO de TERRA… — Concluiu ela num sussurro. — Li sobre isso em uma folha de um livro com desenhos de umas bolas suspensas no céu. Planetas.

    Ghost assentiu com a cabeça e começou a ler. Ela ficou ali, espichando os olhos em direção ao papel. Conhecia Ghost quase há tanto tempo quanto estava na Floresta de Pedra. Mas sequer sabia seu verdadeiro nome, e ele não sabia o dela. Isso não importava muito para o povo dos subterrâneos. Era possível passar a vida inteira ali sem saber o nome de ninguém. E as pessoas de fato passavam, geração após geração, cavando túneis. Nunca chegando a lugar nenhum, porque já não existia mais lugar algum aonde chegar.

    O tempo se arrastou enquanto Ghost lia. Dias, meses, anos se estenderam preguiçosos sobre aquelas nove horas, e ela quase pegou no sono algumas vezes. Mas não podia fazer isso. Pela primeira vez em muito tempo, ela passou um dia sem fazer absolutamente nada e sem se preocupar se teria o que comer quando retornasse ao buraco que se acostumou a chamar de lar.

    Ao fim das horas de trabalho, o som do canhão se propagou mais uma vez pelos túneis, o fantasma mal estava na metade do livro. Em silêncio, os dois se levantaram e começaram a longa subida até a morada dos Ruivos.

    ****

    Das estruturas de prédios arrasadas, os Ruivos fizeram sua cidade. Imensos tubos que se estendiam acima das nuvens, abarrotados de colmeias onde residiam as famílias. Havia um andar inteiro de lojas de penhores, logo acima da terra.

    Naquela época, Zoe — sim, esse era o dela, Zoe, embora soasse como uma palavra estrangeira em sua boca, devido à falta de uso — dizia não acreditar que pudesse existir uma vida fora daquelas catacumbas. Ao menos, não uma que fosse minimamente digna. Mas se ela fosse honesta consigo mesma, coisa que quase nunca se dava ao trabalho de ser, admitiria que a faca pouco importava. Seu ideal mais profundo não era recuperá-la, mas, sim, rever a pessoa que havia lhe dado aquele presente. Talvez assim pudesse provar a si mesma que estava errada, que em algum lugar existia uma vida melhor.

    Àquele horário, os coletores faziam suas trocas. Havia barulho de vozes falando em diferentes idiomas. Pessoas indo e vindo, escavadores com olhares cansados, coletores maldizendo os donos das casas de penhores, ladrõezinhos procurando ocasião para furtar qualquer coisa que pudesse ser trocada por um pouco de comida.

    Zoe estava agarrada ao livro escondido embaixo do casaco, Ghost ia caminhando ao seu lado, um pouco desconfortável. Fantasmas não gostavam de subir aos níveis acima da terra. Não que fosse claro ali, era apenas mais claro do que o breu ao qual ele estava acostumado.

    — Então, é aqui que está sua faca? — ele perguntou quando pararam em frente a uma das maiores casas de penhores da Floresta de Pedra.

    Zoe aquiesceu. O fantasma assobiou.

    — MacManus? Sério que você faz negócio com esse cara? Ele é o maior trapaceiro!

    Ela quase riu. Era irônico. Os Fantasmas eram conhecidos por serem os maiores trapaceiros, mas se um fantasma dizia que alguém era trapaceiro, das duas uma: ou estava tentando amenizar as próprias trapaças, ou a pessoa em questão superava todos os limites da desonestidade. Tratando-se de Erwin MacManus, ela sabia que era a segunda opção.

    Havia todo tipo de quinquilharia do Velho Mundo na casa de penhores de MacManus. Coletores, como Zoe, não frequentavam o lugar a menos que tivessem algo muito valioso para trocar. A maior parte da freguesia do ruivo era composta por outros ruivos e por viajantes ricos. Havia pederneiras, facas, tinta, papel, vestidos, perfumes… Zoe sempre ficava deslumbrada ao entrar ali. "Todas aquelas coisas bonitas…" — Era o mais perto que a coletora chegaria de qualquer uma delas.

    Ela parou em frente a um aquário, um peixe horrendo que parecia ser feito de pedra a encarou. Zoe se aproximou, quase colando o nariz ao vidro coberto de limo. "Você é muito…"

    — Feio!

    Um brilho violeta reluziu através do aquário. A coletora gritou e a pessoa do outro lado fez o mesmo. Ghost se colocou em posição de ataque e o velho MacManus saiu praguejando dos fundos da loja.

    — Esses dois estão incomodando, Milady? — perguntou o ruivo, olhando para trás do aquário.

    Ghost e Zoe só puderam ter uma visão melhor da moça quando ela se ergueu, passando as mãos no vestido para desfazer as dobras. Era um vestido muito bonito, diferente de qualquer outro que eles alguma vez tivessem visto, assim como a moça que o vestia era — sem dúvida — a criatura mais bela que já havia pisado a face da Terra. A pele delicada como porcelana, os lábios rosados, quase vermelhos, os cabelos negros e compridos, e os olhos… "Olhos de ametista." — Zoe parou incrédula enquanto a moça sorria para ela e Ghost.

    — Não, de forma alguma — falou se voltando para o dono da loja. — Providenciou tudo o que solicitei?

    — Pólvora, pederneiras e mechas para arcabuz. — MacManus balançou a cabeça e olhou para Zoe e Ghost. — Se vocês dois não têm mais o que fazer, parem de importunar a mim e a senhorita Mackenzie. Vão embora!

    Mackenzie se voltou para uma das prateleiras onde repousava um arcabuz e começou a inspecionar o funcionamento da arma.

    — Eles não estão me importunando, senhor MacManus. Agora, por gentileza, coloque minhas coisas em uma embalagem bem forte. Minha viagem de volta será longa… — A moça pareceu lembrar-se de algo. — Ah, sim! E coloque também aquela faca que me mostrou!

    Um alarme soou na mente de Zoe. "Faca… Faca? Faca!"

    — MacManus, seu filho da puta!

    Zoe avançou contra o homem, Ghost tentou segurá-la, mas o máximo que conseguiu foi agarrar seu casaco. Ela correu com os punhos fechados em direção ao ruivo que tinha o dobro de seu tamanho, mas um raio violeta a envolveu e a levou de volta ao ponto de onde havia partido.

    — Mas… mas…

    Mackenzie segurava o riso, cobrindo a boca com os dedos envoltos em delicadas luvas.

    — Sua… sua… Bruxa! — Zoe gritou.

    — Não. Não. Não, garotinho. — Mackenzie balançava o dedo indicador como se falasse com uma criança. — Você não pode chamar Joy Mackenzie de bruxa, você deve chamar Joy Mackenzie pelo que ela é, e Joy Mackenzie é… Eu!

    Os olhos dela emitiam um brilho estranho. Zoe ficou hipnotizada por alguns segundos por aquela luz.

    — Por favor, seus baderneiros, se não têm nada mais para me oferecer além da sua incômoda companhia, saiam! — MacManus resmungou.

    — O cacete! Você vai vender minha faca pra ela, seu pedaço de merda!

    Mesmo mantendo a discussão com MacManus, a coletora não conseguia tirar os olhos de Joy. "Aquele brilho. Aquele mesmo brilho ametista…" — Zoe continuava gritando, enfurecida, MacManus se fazia de surdo. Ghost bocejava. Joy, ora ria, ora contorcia o rosto em uma expressão de choque diante do linguajar chulo que aquele menininho usava.

    Nada de novo. Era só mais um dia comum na Floresta de Pedra.

    Mas todos os dias extraordinários começam extraordinariamente comuns. Talvez fosse algo no ar, o ar estava diferente. Ou então, aquele livro, encontrar aquele livro devia ter sido algum tipo de sinal do Universo de que as coisas estavam mudando. Mas a verdade é que nem Ghost, nem Zoe perceberam isso até ser tarde demais para voltar.

    Quando o homem de roupas elegantes e máscara de gás entrou na casa de penhores, MacManus o tomou por mais um cliente rico. O ruivo achou que estava em um bom dia, um ótimo dia para os negócios! Mas enquanto o dono da loja avançava para atender ao recém-chegado, Zoe ainda observava Joy. O brilho púrpura em seus olhos havia desaparecido e dado lugar a uma expressão que só poderia ser traduzida por pânico genuíno.

    Devagar, a moça começava a recuar para os fundos da loja. Ao mesmo tempo, outros homens de máscara de gás adentravam o local. Estavam vestidos em roupas mais simples que o primeiro, mas nas mesmas cores e com o mesmo símbolo de um corvo negro bordado sobre um fundo roxo.

    O ruivo parou, tomando consciência do que estava acontecendo ali. Ghost puxou Zoe para trás pela gola do casaco, Joy começou a se aproximar da prateleira onde havia deixado a arma.

    O homem em roupas finas, que parecia ser o líder dos demais, tirou a máscara de gás e sorriu olhando em direção a Joy.

    — Eu não faria isso se fosse você, senhorita Mackenzie.

    Os olhos do homem brilharam, as pupilas completamente suprimidas pela pura luz, pareciam duas belas gotas de mercúrio.

    Olhos de Prata.

    Fragmento II

    A senhora Hostmann ficou parada à beira-mar por um longo tempo. O cabelo crespo dela fora completamente castanho um dia, e ainda mantinha a cor preservada em parte dos fios, resistindo ao tempo assim como ela. Assim como eles.

    Ela tocou levemente o ombro do Velho. Ele nem se moveu, não deu qualquer sinal de que ainda havia uma pessoa habitando aquela casca. Então, ela deu as costas ao mar e veio caminhando em minha direção. Era uma mulher preta, de olhar afiado, um rosto bonito, carregado de linhas de expressão. Sorrisos e preocupações que deixaram marcas.

    Fiz uma mesura respeitosa como havia visto minha mãe e minha avó fazerem a ela.

    Você se parece com ela… — Ela acariciou meus cabelos. Eu sorri com o elogio.

    A Juíza também era muito bonita, mesmo já em idade avançada e eu fiquei feliz que alguém dissesse que eu me parecia com ela.

    A mulher voltou-se para trás mais uma vez, olhando em direção ao Velho.

    Se ele insistir em ficar ali, por favor, chame a sua mãe e a sua avó. Se o infeliz morrer de frio, a Juíza é capaz de voltar do além só para brigar com vocês por não terem cuidado direito dele. — Ela sorriu, mas os olhos se encheram de lágrimas. — Quando ele estiver melhor, eu vou voltar para conversarmos. Mas sem ela aqui, não faz sentido continuar retornando a este lugar. Então acho que é um adeus…

    Ela passou a mão nos meus cabelos mais uma vez e seguiu em frente.

    Aquela senhora partiu para o Oriente outra vez, como sempre fazia.

    A Juíza via aqueles a quem amava partirem, e sua alegria talvez fosse saber que podia aguardar seu retorno, ou no caso da senhora Hostmann, que poderia visitá-la em Zilvermminenn sempre que a distância fosse pesada demais.

    Na visita anual, quando os Sem Nome retornavam, ao longe, eu via a figura miúda da Juíza, no alto da muralha como uma sentinela. Esperando, sempre esperando. Quando chegamos, quase acreditei que poderia vê-la ao longe, como nos anos anteriores, mas não estava mais lá.

    Quanto ao Velho, mesmo depois que todos se foram, ele ainda permaneceu ali. Os dedos enrugados se recusavam a soltar a pedra. Era a pessoa mais velha que eu já tinha visto.

    Sentei-me à beira-mar também e fiquei olhando para ele. Eu queria pedir que me contasse uma história do mundo antes da catástrofe, como a Juíza fazia. Ela tecia as palavras com a mesma destreza que trançava seus longos cabelos. Era uma mulher pequena, de sorriso triste e olhos cor de ametista. Como os meus. Como os da minha mãe. Como os da minha avó. Minha bisavó, a Juíza, falava alto, cantava músicas do Velho Mundo e guiava os Doze Clãs para um futuro além da escuridão e do frio. Ela merecia um mundo melhor do que teve.

    Merecia… — o velho disse, ainda segurando a pedra.

    Às vezes ele fazia isso, conseguia dizer o que estávamos pensando antes mesmo que colocássemos em palavras.

    Eu quis tanto dar isso a ela…

    Curvei a cabeça para o lado tentando ouvir. Ao contrário da Juíza, ele falava baixo, falava pouco e sempre que o fazia era para ensinar alguma coisa. Mas naquele dia, eu o vi chorar e isso quebrou alguma coisa dentro de mim.

    A Juíza era a luz de todos os astros para nós, só que aquele mundo nos provava que podíamos viver sem isso. Mas para ele, ela era o ar que respirava, era o motivo pelo qual levantava todos os dias e continuava lutando, continuava acreditando.

    Eu ainda me lembro da primeira vez que ela disse que me amava. Foi antes do final da última Grande Guerra… Não consigo me lembrar de onde deixei meus óculos, mas ainda me lembro disso… A memória realmente sabe priorizar as coisas…

    Ele estava olhando para o mar, não para mim. Pela primeira vez o cientista que falava várias línguas do Velho Mundo, que montava e desmontava armas, que conhecia as doenças e a cura, não estava ensinando nada. Estava apenas falando.

    "Ela disse que me amava, que queria ficar comigo, que queria que tivéssemos filhos e eles crescessem em um mundo melhor do que este. Ela tinha jeito com as palavras quando queria ter, já eu, sempre as perdia nos momentos em que mais precisava. Eu tinha vinte e sete, o mundo estava indo para o buraco, ela era a pessoa com a tarefa infeliz de tentar consertar as coisas e eu a amava. E a amaria de novo, não importa quantas vezes a história fosse reescrita. Mas naquele dia eu não soube colocar isso em palavras, então apenas disse a ela ‘que o povo dela seria o meu povo, e o Deus dela o meu Deus, e onde quer que ela fosse, eu iria com ela, e onde ela morresse, ali eu também seria enterrado.’¹ Citei o Livro Sagrado, pareceu o certo a fazer, já não existiam mais casamentos…"

    Ele olhou para mim, mantive seu olhar. Parecia uma coisa importante, e eu fingi ter mais idade do que de fato tinha. Fingi que compreendia o quanto ele a amava… porque queria compreender, porque queria me lembrar.

    Não vou pedir isso à Alison, nem à Narel… Elas estão ocupadas liderando os Doze Clãs e os Sem Nome, mas quando a hora chegar, por favor, diga a elas que quero que minhas cinzas fiquem aqui… Eu… — A voz dele vacilou, a pedra escorregou de suas mãos. — Eu prometi a ela, mas não sei quanto tempo vai demorar e tenho medo de esquecer… Como esqueço os óculos, como esqueço seu nome e de seus irmãos…

    Segurei a mão dele, a pele fina, pálida, parecia papel amassado.

    Sydney, vovô. Como um lugar do Velho Mundo, como o lugar onde você nasceu. Meu nome é Sydney Mackenzie. E eu não vou me esquecer, por você.

    Sydney — repetiu devagar. E eu nunca me esqueci daquele dia, nem daquela promessa.

    A pedra afundou e desapareceu no fundo do mar. Assim como o nome dele. Assim como a cidade cujo nome eu carregava.

    MUNDO SEM FIM

    ²

    Quando Zoe encontrou Olhos de Ametista, ela não era mais do que uma garotinha. Magra e fraca, fugindo e se escondendo no deserto frio que separava A-Mão-Com-a-Tocha da Floresta de Pedra. Naquela época, ele parecia tão forte e inatingível, que Zoe nunca parou para pensar nas palavras do velho Fearnot, o dono de casa de penhores que os acolheu quando chegaram ali.

    Mas ela se lembrava. Lembrava sim, do colchão de palha nos fundos da loja e de, tarde da noite, ter ouvido o velho conversando com Olhos de Ametista.

    O que você pensa que vai fazer com essa criança? Vai levá-la para morrer no limite das Terras Vigiadas? Você não é mais que um garoto, e um garoto rico ainda por cima! Devia estar na sua cidade, aproveitando sua boa vida.

    Olhos de Ametista parecia inquieto, Zoe podia ouvi-lo andando de um lado para o outro. Eu preciso saber a verdade, preciso saber se eles realmente existem.

    O velho soltou um muxoxo impaciente. Do que adianta a verdade a um homem morto.

    Isso tudo foi antes de Zoe passar a viver no subterrâneo. Antes de precisar trocar sua preciosa faca. A faca que Olhos de Ametista lhe dera antes de partir. Ele prometeu que voltaria, mas Zoe nunca soube se ele sobreviveu à sua viagem ao Sul, se algum dia realmente voltou para buscá-la. Isso fazia parte de um passado cada vez mais distante.

    Fearnot morreu menos de dois meses depois de conhecer Zoe. E ela passou a se vestir de homem e catar lixo nos subterrâneos para sobreviver, mas havia herdado de Fearnot algo precioso:

    As histórias.

    Ele certa vez contou que sua colônia, mais ao sul, fora atacada também. Não por canibais, não por fantasmas, nem mesmo por gigantes. Mas por homens com armaduras brilhantes e desenhos de animais costurados nas túnicas. Homens com armas de fogo e máquinas voadoras. Homens com lâminas que cortavam montanhas inteiras. Os Cinzentos. Era como os chamavam. Zoe nunca associou aquele bando de salteadores com os valorosos Olhos de Prata das lendas.

    Mas ali estava um deles. Bem diante dela.

    — A preciosa Joia Ametista do Criador… finalmente encontrei você, minha cara. — O homem tentou sorrir para Joy. Um arremedo assustador e arreganhar de dentes que, por mais perfeitos que fossem, não produziram nem de longe um sorriso de verdade.

    — Então isso que é uma joia? — Ghost sussurrou para Zoe.

    — Não sei por que chamam ela assim, mas com certeza não é uma joia — Zoe falou entredentes.

    De onde estava, conseguia ver a faca reluzindo na prateleira, logo atrás do balcão. Perto. Muito perto, mais do que jamais esteve. Ela podia se aproveitar da confusão, pegar a faca e ainda por cima não dar uma mercadoria sequer a MacManus.

    Quando os homens vestidos de corvo avançaram contra Joy, ela usou sua bruxaria mais uma vez. Uma velocidade inacreditável. Ela conseguiu pegar a arma, carregar e acender a mecha sem que ninguém tivesse qualquer reação.

    Zoe não esperaria para ver quem venceria aquela disputa. Não era problema seu, independentemente das dúvidas relacionadas à cor dos olhos de Joy, ela precisava seguir seu plano e recuperar a faca.

    A primeira parte foi simples, Zoe se esgueirou para trás do balcão e tirou a faca da prateleira. Então veio o disparo de arcabuz. A coletora se assustou, bateu a cabeça no módulo de madeira, derrubando alguns frascos com líquidos borbulhantes, junto, deixou cair sua faca. Zoe se abaixou, recolheu a arma e começou a rastejar para longe. Com sorte, estariam todos tão atordoados com o som do disparo que sequer teriam ouvido o barulho dos frascos se quebrando e a lâmina retinindo.

    De fato, estavam todos atordoados. Mas não pelo barulho do tiro ou da faca caindo no chão de taco, ou mesmo dos frascos de produtos químicos quebrando e derretendo o balcão e as prateleiras. O cinzento havia segurado a bala, e mostrava, convencido, a pequena esfera de chumbo entre os dedos enluvados.

    — Doce Joy, me levou a uma caçada revigorante pelos mares do Norte e depois pelos desertos gelados, até me trazer de volta a — Olhos de Prata abriu os braços — Civilização.

    O homem deu uma risada que mais parecia um grasnado.

    Zoe e Joy sentiram um arrepio ao mesmo tempo, embora separadas por quase três metros de taco e poeira. Enquanto a mulher de olhar púrpura se afastava em direção à única parede com uma janela, Zoe se esgueirava por trás do balcão até bater em algo branco e fino. Não gritar exigiu muito de suas capacidades de camuflagem.

    — Droga, Ghost! — ela sussurrou batendo no braço do fantasma.

    Ele estava escondido, imóvel, atrás do balcão. Era o que os moradores do subterrâneo costumavam fazer em situações de perigo. Se esconder, ficar em silêncio absoluto, esperar o perigo passar. Mas Zoe sabia que aquilo não era uma boa tática na superfície. Ali, estavam expostos, desprotegidos. Longe da escuridão segura das catacumbas, a melhor estratégia era fugir, fugir para o mais longe possível.

    — Vamos, precisamos sair daqui, agora!

    — Mas… — O fantasma tentou argumentar.

    Ela balançou a cabeça, erguendo uma das mãos.

    A-go-ra!

    Eles se afastaram com cautela para trás do aquário do peixe de pedra. Depois, para dentro de uma arara com vestidos, passando sorrateiramente entre as prateleiras de armas, onde Ghost aproveitou para pegar um arco e uma aljava com flechas. Ambos tinham o andar leve de quem está acostumado a se mover no escuro sem ser notado, não foi tão difícil chegar à saída da loja.

    As passarelas que ligavam os tubos eram sempre movimentadas. Pessoas estranhas, na visão de Zoe, acostumada aos mutantes do subterrâneo. Mas ali, naquelas ruas de concreto fino onde alguma luz conseguia entrar, perambulavam as pessoas mais parecidas com seus equivalentes do Mundo Antigo. Pessoas antigas, como eram chamadas. Pessoas como Zoe.

    A coletora se permitiu uma última olhada para a fachada marrom da loja de penhores. A vitrine brilhou em branco, ofuscando a visão. Carreiras de fumaça serpentearam pelas portas, depois, outro clarão branco, seguido de um clarão arroxeado. Barulho de vidro e madeira quebrando.

    — Acho que ela precisa de ajuda — Ghost comentou, cobrindo um pouco a vista com a mão.

    — É? Certo. A gente acende uma vela pela alma dela no Tor depois que eu vender o livro.

    — Você é de uma escrotidão tão absurda que, às vezes, eu me pergunto por que eu ainda te ajudo. — Ghost estalou a língua.

    — Dane-se! — Zoe agarrou a mão livre do fantasma e saiu puxando-o pela rua. — Se tivermos sorte, pegamos a loja do Elmo MacKintosh aberta.

    O que impediu a dupla de seguir foi o corpanzil de MacManus se arrastando para fora da loja.

    Hey! — O ruivo olhou primeiro para a faca na mão de Zoe, depois para o arco e a aljava que estavam com Ghost. — O que pensam que estão fazendo, seus ladrõezinhos?

    O lojista se contorceu e avançou sobre Zoe. Ghost a puxou para trás e estava pronto para se engalfinhar em uma luta com o ruivo. Só não contava que a vitrine se romperia, trazendo o corpo de Joy em alta velocidade, acertando MacManus e o derrubando. Zoe ainda podia ver os dedos finos da mulher agarrando a beirada da passarela. Correu até o parapeito e se deparou com Joy pendurada.

    — Me ajud… — Ela mal conseguia falar.

    — Eu, não — respondeu Zoe. — Você vai ficar bem. Uma perna quebrada sara.

    — Não, se ela cair dessa altura… são uns dez pés. — Ghost argumentou — Vai ter mais ossos quebrados pra sarar.

    Enquanto a discussão na beirada da ponte se desenrolava, os soldados com cara de corvo saíam da loja destruída. Estavam em menor número agora, o que fez Zoe calcular que a mulher havia, no mínimo, colocado alguns para dormir. O líder deles foi andando com calma, pegou Joy pelo pulso e a ergueu, usando apenas uma mão, para depois jogá-la no meio da rua.

    "Forte." — A coletora pensou assustada, tentando se afastar do parapeito da ponte.

    Algumas dezenas de pedestres já estavam assistindo à cena. Confusões no comércio eram comuns, mas as luzes conseguiram prender a atenção dos curiosos.

    "O mais fraco deles tinha a força de dez homens, era o que o velho Fearnot dizia. — Zoe percebeu Ghost inquieto, mexendo a todo instante em seu embornal. — As histórias, Zoe, Lembre-se das histórias! Força de dez homens, confere. Feixes de luz saindo das mãos e dos olhos, confere, eu acho. Faltam só armas que cortam montanhas e máquinas voadoras."

    Joy se arrastava, tentando ficar o mais longe possível do líder dos homens-corvo.

    — Não temam, cidadãos da Floresta de Pedra! Eu sou Bahabas Ravenhall, Regente das Doze Ilhas de Prata, por eleição e conquista. Este é um assunto dos Doze Clãs. Podem voltar aos seus afazeres, não há nada para ver aqui. — O homem-corvo sorriu e abriu os braços para o grupo de curiosos, enquanto alguns policiais chegavam para averiguar a movimentação no comércio.

    — Merda! Eles existem mesmo — Zoe falou alto para se convencer definitivamente.

    Os agentes da polícia dos Ruivos se aproximaram. Os soldados-corvo perfilavam-se diante de seu líder, protegendo-o.

    — Fujam! Não enfrentem ele! — A voz de Joy saía fraca.

    — Ela tem razão! — Zoe se surpreendeu ao colocar-se diante dos policiais, tentando afastá-los. — É um nível completamente diferente.

    Um dos soldados ruivos, com seu manto xadrez e armadura de couro, portando uma enorme claymore, agarrou Zoe pelo rosto e a jogou no meio da rua.

    — Saia da frente, rato! Volte para o subterrâneo e deixe esse assunto para nós. E leve esse fantasma com você!

    Bahabas foi até onde Zoe estava caída, tomou-a pelo rosto e a ergueu até a altura de seus olhos. A coletora pôde ver de perto o brilho, as luzes dançando dentro da íris. Formas que lembravam pequenas cruzes cintilando, preenchendo o aro negro das pupilas, como se aqueles olhos tivessem sido desenhados no rosto do homem.

    — Pequena criança, vejo muita coragem e potencial aqui, mas é tudo inútil. Você não é nada. É menos que nada. Ninguém o protege, ninguém sentirá sua falta quando eu separar sua cabecinha do corpo. Você é o exemplo clássico de que o medíocre não tem serventia no mundo. O inútil, o descartável, uma hora ou outra acaba indo parar no lixo e é esquecido.

    — Bahabas, solte ele! — Joy rugiu, colocando-se em pé com dificuldade.

    Zoe estava a ponto de chorar, não pela dureza das palavras, a isso ela estava acostumada. Era raiva. Raiva pela impotência diante da situação.

    — Por quê? — Bahabas lançou um olhar duro para Joy. — Por que deveria? Não devemos nada a esses insetos. Estamos acima de tudo isso…

    — Senhor, pela última vez, solte o coletor e venha conosco! — O soldado ruivo engrossou a voz.

    — Que bela figura fará o Regente sendo visto agredindo crianças! — O rosto de Joy estava vermelho.

    Bahabas riu. Um riso curto e sem graça.

    — Acha mesmo que eu me importo com alguma aparência? Ou com algum desses ratos? Somos filhos da Grande Juíza, senhorita Mackenzie. O que é um rato diante de um homem? O Criador nos escolheu, é nosso direito sujeitar esta terra. E nos livrar de tipos como este, seria um bom começo. — Bahabas olhou para Zoe, depois, outra vez para Joy. — Não sei o que veio fazer aqui. Mas essa brincadeira acabou. Vou matar um por um desses ruivos e aberrações que eles acolhem se não voltar comigo às Terras Cinzentas. Muda, conformada e disposta a dobrar seus joelhos diante de mim!

    A flecha veio rápida, tanto quanto uma bala, mas mesmo assim, a mão que afagava os cabelos de Zoe conseguiu segurá-la, já a milímetros de seu olho.

    — Bela tentativa, fantasma. — Bahabas olhou para a flecha, admirado pela velocidade do tiro de Ghost.

    — Errei? Eu nunca erro. — Ghost segurava o arco. Os policiais ruivos estavam atônitos. Os soldados-corvo riam por debaixo das máscaras.

    Aproveitando a distração, Zoe lembrou-se da faca, e sem pensar duas vezes, cravou a arma na mão do cinzento. Bahabas gritou e atirou a menina sobre os escombros da loja de MacManus.

    O ferimento sangrava. O líder dos Corvos viu a peça reluzindo na mão da coletora e seus olhos quase saltaram das órbitas.

    — Seu rato! É metal divino!

    Ele cerrou os punhos e avançou. O policial mais próximo sacou sua espada e tentou impedir o ataque. Apenas os olhos especiais de Joy, dos outros cinzentos e dos ruivos conseguiram entender exatamente o que aconteceu.

    Com um soco, o corvo quebrou a espada, com outro acertou a barriga do oficial e destruiu seu diafragma. O xeque-mate veio com um potente cruzado, fazendo o pescoço do ruivo virar cento e sessenta graus, esmagando as vértebras.

    Zoe não conseguia ver os movimentos do cinzento, mas assim que ele avançou contra ela e os policiais ruivos se colocaram no caminho, os soldados-corvo também começaram a atacar.

    A coletora abriu caminho em meio à confusão, aproveitando-se de seu tamanho para se mover entre os policiais e os soldados. Precisava encontrar Ghost, precisava dar o fora dali antes que as coisas se complicassem ainda mais. Naquele ponto não sabia nem se ainda poderia ficar na Floresta de Pedra, ou se os Ruivos a expulsariam de lá para morrer no deserto frio. Não importava. Ela precisava sobreviver naquele exato momento, o depois cuidaria de si mesmo.

    Vários policiais ruivos se amontoaram sobre Bahabas, tentando pará-lo a qualquer custo. Zoe aproveitou a brecha. Viu Ghost ajudando Joy a se erguer e correu até ele.

    — Mas que droga, Ghost! Deixa essa garota aí e vamos dar no pé!

    A coletora olhou em volta. As colmeias, com suas janelas envidraçadas, escondendo o mundo externo da segurança de um lar aconchegante. As pessoas bem-vestidas da Floresta de Pedra correndo pelas ruas, sendo acossadas pelos homens-corvo. As lojas de penhores fechando as portas abruptamente. E, abaixo daquilo, as favelas, as colmeias menos abastadas, sem vidros para separar as famílias que as habitavam dos horrores. O subterrâneo, os túneis e bolsões de ar feitos dos escombros do Velho Mundo. Ali, ela tomou a decisão mais importante de sua vida desde que cortou os cabelos e passou a andar como um menino pelos lugares mais escuros da Terra. Ela decidiu ir embora. Seu tempo ali havia acabado, a chegada do cinzento deixou isso bem claro.

    — Vamos embora, Ghost! Vamos! Você vivia dizendo que queria ver como o mundo era lá fora, é a sua chance! — Zoe estendeu a mão. — Vem comigo! Vamos ver o mundo, parceiro!

    Ghost não se lembrava de um momento em que Zoe fora tão amigável com ele. Sentiu-se feliz e ofendido ao mesmo tempo, mas tomou a mão que lhe era estendida.

    — Certo. Foda-se essa merda! — O fantasma sorriu.

    — Isso! Foda-se essa merda!

    Era o certo a fazer. O ser humano é social. Por mais que evite, a vida o leva a entrar em contato com outros de sua espécie, a falar e querer ser ouvido, a existir e querer ser visto. Zoe e Ghost viveriam e morreriam invisíveis ali. Ela sabia disso. E ser invisível, uma hora ou outra, cansa.

    Mas um ingrediente tornaria essa fuga ainda mais especial. Um fator anormal, uma singularidade que só o implacável destino seria capaz de produzir. O momento de

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