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As linhas tortas dos imprestáveis
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As linhas tortas dos imprestáveis
E-book144 páginas1 hora

As linhas tortas dos imprestáveis

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Sobre este e-book

Os surpreendentes contos de Amim Stepple revelam a força narrativa poderosa que foi a marca registrada do jornalista e roteirista de cinema. O texto cortante e a descrição dos personagens conduzem o leitor a navegar por águas que prenunciam profundas turbulências, em direção à paisagens insuspeitadas que se formam em estreita simbiose entre linguagem e imagem.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento9 de mar. de 2023
ISBN9786554391054
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    As linhas tortas dos imprestáveis - Amin Stepple

    Prefácio

    Paulo Cunha

    Vale a confissão. Na última vez que conversei por telefone com o jornalista e cineasta Geneton Moraes Neto, pouco tempo antes que a morte — essa coisa estúpida — nos separasse, ele me disse: Amin sempre funcionou como nossa bússola moral, ideológica, estética... Toda vez que a ingenuidade nos ameaçava, toda vez que estávamos à beira de uma tolice, era ele quem vinha nos socorrer, nos salvar do erro. É claro que Geneton tinha razão. Assim como muitos de nós, ele conheceu e passou a conviver com Amin Stepple Hiluey desde os já distantes anos 1970, o que, aliás, serve para demonstrar como é longa e sem falhas essa trajetória de cuidados: indicações precisas de livros e de filmes, ponderações sobre a política, as cartas extensas e plenas de vida. Nos perguntávamos, eventualmente, como aquele palestino-paraibano de Campina Grande, magérrimo e cabeludo, já tinha lido tanto, e visto tantas imagens, quando ainda éramos tão jovens.

    Essas características de Amin Stepple se tatuaram para sempre nas nossas memórias, como traços de uma amizade exigente, pautada ao mesmo tempo pelo carinho e pelo rigor. Mas há um elemento que nos ficou ainda mais evidente: Amin era capaz de produzir textos surpreendentes. Em parte, o escrito reproduzia sua fala cortante, como se cada frase saísse como uma sentença conclusiva e mordaz. Mas, para além da voz, o texto é ainda mais poderoso, com o aspecto de uma lâmina afiada: força narrativa, personagens incríveis, descrições que nos levam a paisagens nunca suspeitadas. Vem de longe: foi assim nos scripts do telejornalismo, nos roteiros de curtas e longas que escreveu, nas peças publicitárias. E pode parecer lugar-comum, e portanto suspeito, mas não importa: Amin Stepple está inteiro naquilo que escreve. Você pode nunca ter cruzado e muito menos trocado duas palavras com ele, mas ler seus textos basta: estão ali a alma e o corpo.

    Estão também os mundos aos quais somos transportados, com suas figuras de nomes inusitados. São como territórios que nos tornam íntimos do escritor mas sem biografismos. Tenho usado o termo texto para me referir ao que está reunido neste belo livro — As linhas tortas dos imprestáveis — porque desde que o li pela primeira vez fiquei meditando sobre a melhor forma de classificá-lo. São contos, é claro. Mas apenas? A leitura se abre para enredos de filmes possíveis, que não cessam de retornar às relações entre linguagem e imagem — esse diálogo sempre tenso —, para uma espécie de romance cujos capítulos são compartimentos autônomos, e até para um ensaio que nos apresentasse uma visão complexa e poderosa da vida que nos coube viver.

    Amin Stepple me disse outro dia, quando eu passava por um momento de sufoco: Viver é difícil, mas não temos alternativa a não ser viver. Creio que é sobre isso que ele escreve.

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    A prima da amante

    de Simón

    Ninguém levava mais a sério a condenação bíblica do que Demo Liacre. A conquista do pão, a mais básica das mercadorias, fermentada com o suor das axilas, o encaminhou para os mais variados ofícios. Aos 14 anos, talvez antes ― o personagem se sente mais a gosto com as datas imprecisas ―, pisou, com sandália japonesa, no chão de uma fábrica de manequins de plástico. Demo Liacre ainda hoje tem o sono perturbado por bundas de cor pastel e seios que imitam romãs maduras, sonhos que se desmancham na intimidade da matéria frígida exposta nas vitrines. Desde esse dia exerceu todo tipo de ocupação, algumas já arrastadas pela ventania binária. Parei de contar no número 19, 21, não me lembro.

    Ainda muito jovem, uma crise de devoção religiosa o tornou sacristão de um padre-operário francês num arruado em que nem o diabo dava as caras. O capeta? Ele sabe com quem mexe e eu o exorcizo no canivete. O personagem nega que sofreu uma provação mística ―: esse é o moído de escritor oportunista que tenta mimetizar Tolstói. Sou materialista angelical, apenas isso.

    Demo Liacre se entusiasmou com as novas anunciações da Igreja. Chegou a escrever algumas cartas para o padre colombiano Camilo Torres, meses antes de ele entrar para a guerrilha. Guardou segredo, mas talvez nunca tenha recebido resposta. Quando soube que o sacerdote fora fuzilado em combate, também guardou as lágrimas. Um santo que gostava das putas.

    Vestido com um paletó incongruente, Demo Liacre sentia o travo amargo da história no volante do antigo carro funerário de luxo da Casa Baptista. A caminho do cemitério, transportava cadáveres honoríficos, e achava um desrespeito parar quando o sinal fechava. Ele acelerava a marcha, e a vida e a morte seguiam juntas, em frente. Pensava que, ao contrário dos vivos, os mortos não têm pressa, mas, igual aos vivos, ficam agoniados no meio do trânsito. Defuntos gostam de aplausos? Nunca entendeu por que batem palmas para os cadáveres. Reverenciam qual sordidez? E há os que enrolam os finados com latinices ― requiescat in pace ―, como se o latim fosse o idioma oficial do inferno. Não existe outra maneira de os vivos não deixarem os mortos morrerem? Prefiro os que se curvam na passagem dos defuntos, como se estivessem chupando caju. Demo Liacre tampouco compreendia o arranjo de tantas coroas de flores. Para que incomodar o jardim e tirar o sossego da terra molhada? O formol é a lavanda dos homens públicos que carreguei para a cova.

    Demo Liacre estacionou o funerário de luxo na entrada do túnel, atravessou-o a pé, olho nas pupilas dos fiacres, e, ao sair do outro lado do buraco de minhoca, foi sugado por um clarão de dois canos que o levou a passar um tempo desacertado pelo mundo com um circo. Qual chão o apátrida deve beijar?

    Ele implicava com alguns vocábulos. Detestava adestrador. Simpatizava mais com as palavras inexatas. Gostava de amestrador, porque se encaixa melhor no meu idioleto. Exibia-se como amestrador de ursos. Sob o comando de suas mãos, os animais brincavam de bambolê, sentavam em tamboretes e tocavam corneta. Nem a gritaria das crianças no poleiro dissimulava antiga frustração. Demo Liacre tentou, mas jamais conseguiu que os ursos aprendessem a dançar valsa. É estranho, não gostavam de Chopin, e ficavam melancólicos quando ouviam Danúbio azul, de Strauss. Como desdenhar que também há sentimento no picadeiro?

    O personagem se irrita quando insinuam que ele se enquadra na tipologia junguiana do sentimental ―: também isso não é verdade. Sou uma estátua. As estátuas andam, são humilhadas pelos pássaros e vertem lágrimas.

    Demo Liacre agradeceu os últimos aplausos. Pegou os anões pelos braços e levantou-os para os céus. Eles lhe disseram: boa sorte, apátrida. Beijou a testa da trapezista. Ouviu com atenção o conselho dela: não confie em mãos úmidas. Demo Liacre escondeu o rosto, para que os ursos não o vissem chorando. Acenou um adeus. Vocês são grandes artistas, melhores que os elefantes ― e minhas recomendações à família.

    Em uma manhã do mês de dezembro, a luz do sol entontecia Demo Liacre. Ele caminha alguns passos à frente de um soldado, armado com um mosquetão que lhe cai sobre o ombro direito. Os dois andam, não na calçada, mas na rua, e sempre rente ao meio-fio, sem atropelo para a passagem dos pedestres ― ó tu, que vens de longe, ó tu, que vens cansada ―, indiferentes ao prisioneiro, ao soldado e ao sol que os envolve. O soldado escolta Demo Liacre ao Palácio da Justiça. Ele irá ouvir a sentença por um crime que só cometerá anos depois, quando o sal já havia ressecado a pele. Ninguém sabe qual crime Demo Liacre irá praticar. O futuro também não pertence à terceira pessoa.

    Bom vento e bom mar. Quero beber água salgada. Demo Liacre embarcou num navio cargueiro da Companhia de Navegação Lloyd Brasileiro. Ele cumpriu com desvelo a carta náutica: correu os mares, enfrentou tormentas, avistou baleias brancas gigantescas, ouviu os cantos das sereias e fez o sinal da cruz diante de monstros marinhos. E aprendeu a assoviar as sirenes e conheceu a labirintite dos navios.

    Todos os portos são iguais, só as putas são diferentes. Tâmara Sáenz, a Imperatriz, com os seus cabelos castanho-avermelhados, olhinho puxado preto, boca vermelha e blush, a mais bela das mais belas felinas sobre a Terra. Demo Liacre a conheceu no porto de Trieste. Não se esquece uma mulher dessas. Deusa de cujas coxas imantadas emanavam um vapor termal que atordoava para sempre navegantes cristãos, agnósticos e ateus. E até rufiões de óculos Ray-Ban. Logo senti uma lufada quente e fumegante a incandescer as minhas narinas. Os meus olhos ficaram cheios de ciscos. As palavras ficaram trancafiadas entre os dentes.

    Minutos depois de vê-la num lupanar do nordeste italiano, o Unità Brunetta, Demo Liacre passou a brincar de bambolê, a sentar em tamboretes, a tocar corneta, a não gostar de Chopin, a ficar profundamente melancólico quando ouvia Danúbio azul e até desaprendeu a dançar valsa. Estava amestrado pela Imperatriz e a exalação de seus vapores. Uma insensatez química no reino da inexatidão. Tornei-me prisioneiro do navio-flutuante das manhãs, tardes e noites dos olhos da Imperatriz. Com a venezuelana, que se dizia da

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