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William Shakespeare - Teatro Completo - Volume III
William Shakespeare - Teatro Completo - Volume III
William Shakespeare - Teatro Completo - Volume III
E-book2.296 páginas31 horas

William Shakespeare - Teatro Completo - Volume III

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Sobre este e-book

O Teatro Completo, de William Shakespeare, reúne 38 peças traduzidas por Barbara Heliodora, uma das maiores especialistas no autor, e distribuídas em três volumes:
- Volume 1: Tragédias e comédias sombrias
- Volume 2: Comédias e Romances
- Volume 3: Tragédias históricas

A obra de William Shakespeare é um espelho, um palco que nos ilumina. Suas peças, uma profunda e fascinante meditação sobre a sociedade e a vulnerabilidade do ser humano.

Os personagens de Shakespeare espelham sentimentos e comportamentos, paixões e potencialidades, enfim, tudo o que nos move, para o bem ou para o mal: o poder destrutivo do ciúme, da inveja, do medo e da ambição; a dinâmica do amor, da lealdade e traição; os fundamentos da justiça, a vingança e o perdão; a relação entre aparência e realidade; os compromissos de honra, lealdade e dever; a dinâmica dos privilégios e as responsabilidades da liderança; nossa relação com o poder; a força e o fascínio que a morte exerce sobre nós; nossos deuses, anjos, bruxos e vilões – nossa condição. Quando pensamos sobre o humano, pensamos Shakespeare.

A tradutora Barbara Heliodora pensou Shakespeare por quase toda a sua vida. Assistiu às mais importantes montagens no exterior e, também, no Brasil. Assistiu no teatro e privou de conversas com John Gielgud, Laurence Olivier, Ralph Richardson, para lembrar apenas três dos maiores atores shakespearianos do século XX. Estava presente, em 1970, na estreia mundial de uma obra-prima do cinema, o Rei Lear, de Grigori Kosintsev, e conversou longamente com o diretor. Tinha uma intimidade com a obra e o universo do Bardo que não era menor do que a dos maiores especialistas em todo o mundo. Era reconhecida e respeitada internacionalmente em uma época em que as conferências internacionais eram reduto reservado aos eruditos. Ninguém, portanto, mais qualificado para traduzir a obra, retendo as imagens, a gramática, o tom e até os silêncios das peças. Sem mencionar a grande vantagem que é poder ler uma obra dramática completa da pena de um mesmo e excepcional tradutor. Os dois primeiros volumes foram totalmente revistos, com a inclusão de novas notas. O terceiro volume será publicado agora pela primeira vez, incluindo traduções inéditas.

A propósito, este volume apresenta uma peça inédita, Eduardo III, a última tradução feita por Barbara Heliodora, pouco antes de falecer. Como o prestígio cultural de Shakespeare é indubitavelmente enorme, de tempos em tempos, surgem peças que são atribuídas a ele. Inicialmente, Barbara não se convenceu de que essa tragédia histórica tivesse sido escrita por Shakespeare, apesar de ter entrado oficialmente no cânone shakespeareano no final da década de 1990.

Depois de muita leitura e pesquisa, Barbara se convenceu de que havia muito da mão do Bardo, ainda jovem, mas já revelando a promessa de grande escritor que viria a se tornar. A inclusão da inédita peça Eduardo III enriquece enormemente esta edição. Com novo projeto gráfico, com o miolo impresso em papel bíblia e com os três volumes embalados em uma caixa requintada e exclusiva, o TEATRO COMPLETO constitui um verdadeiro presente para todos aqueles que se interessam por cultura e pela reflexão ou investigação das paixões, dos mistérios, das contradições da alma humana desde sempre. Suas peças, personagens e linguagem permeiam o modo de pensar o mundo e, sobretudo, de compreender o próprio indivíduo, impactando pensadores, escritores e leitores do século XVII até hoje.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento29 de nov. de 2022
ISBN9786589645214
William Shakespeare - Teatro Completo - Volume III
Autor

William Shakespeare

William Shakespeare is the world's greatest ever playwright. Born in 1564, he split his time between Stratford-upon-Avon and London, where he worked as a playwright, poet and actor. In 1582 he married Anne Hathaway. Shakespeare died in 1616 at the age of fifty-two, leaving three children—Susanna, Hamnet and Judith. The rest is silence.

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    Pré-visualização do livro

    William Shakespeare - Teatro Completo - Volume III - William Shakespeare

    Sumário

    Capa

    Sumário

    Nota introdutória – Liana de Camargo Leão

    Cronologia conjectural das peças de Shakespeare – Liana de Camargo Leão

    Genealogia dos monarcas ingleses

    PEÇAS HISTÓRICAS

    Rei João

    Introdução – Barbara Heliodora

    Lista de personagens

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    Henrique IV – Parte 1

    Introdução – Barbara Heliodora

    Lista de personagens

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    Henrique IV – Parte 2

    Introdução – Barbara Heliodora

    Lista de personagens

    PRÓLOGO

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    Henrique V

    Introdução – Barbara Heliodora

    Lista de personagens

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    EPÍLOGO

    Introdução às três partes de Henrique VI – Barbara Heliodora

    Henrique VI – Parte 1

    Introdução – Barbara Heliodora

    Lista de personagens

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    Henrique VI – Parte 2

    Introdução – Barbara Heliodora

    Lista de personagens

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    Henrique VI – Parte 3

    Introdução – Barbara Heliodora

    Lista de personagens

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    Henrique VIII

    Introdução – Barbara Heliodora

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    Introdução – Barbara Heliodora

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    Ricardo III

    Introdução – Barbara Heliodora

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    Eduardo III

    Introdução – Liana Leão

    Lista de personagens

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    Cena 1

    William Shakespeare

    Teatro completo

    volume 3

    Peças históricas

    Tradução

    Barbara Heliodora

    ***

    1a edição digital

    São Paulo

    2022

    logo da Editora Nova Aguilar

    Biblioteca

    Universal

    WILLIAM SHAKESPEARE

    Teatro completo em três volumes

    volume 1

    Tragédias e Comédias sombrias

    volume 2

    Comédias e Romances

    volume 3

    Peças históricas

    Sumário

    Nota introdutória

    Liana de Camargo Leão

    Cronologia conjectural das peças de Shakespeare

    Liana de Camargo Leão

    Genealogia dos monarcas ingleses

    Peças históricas

    Rei João

    Henrique IV – Parte 1

    Henrique IV – Parte 2

    Henrique V

    Henrique VI – Parte 1

    Henrique VI – Parte 2

    Henrique VI – Parte 3

    Henrique VIII

    Ricardo II

    Ricardo III

    Eduardo III

    Primeira página do First Folio de Comedies, Histories & Tragedies, publicado de acordo com True Originall Copies, 1623.

    Nota introdutória

    Liana de Camargo Leão

    Em suas aulas, conferências e escritos sobre William Shakespeare, Barbara Heliodora costumava dizer que o dramaturgo tivera um longo caso de amor com a humanidade; o mesmo pode ser dito da tradutora, que manteve com o poeta um caso de amor de mais de setenta anos.

    O gosto por Shakespeare herdou da mãe, a poetisa e também tradutora Anna Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça. Barbara gostava de lembrar que a belíssima tradução de Hamlet, de Anna Amélia, havia sido feita, em 1960, em resposta a um pedido seu, para que fosse utilizada em um curso no Conservatório Nacional de Teatro. Na ocasião, ela necessitava de uma tradução adequada ao palco e que trouxesse para o português o tom, o ritmo e a música do original, sem hermetismos ou exagerada erudição.

    Alguns anos mais tarde, novamente atendendo a outro pedido da filha, Anna Amélia traduziu Ricardo III, contido neste volume. As demais traduções aqui incluídas e que compõem o terceiro e último volume do Teatro Completo de William Shakespeare são de autoria da própria Barbara.

    Das onze peças aqui apresentadas, sete são traduções inéditas, quais sejam, Ricardo II, as três partes de Henrique VI, Rei João, Henrique VIII e Eduardo III, esta última traduzida cerca de um ano antes do falecimento da tradutora. Era um projeto longamente acalentado por Barbara ver reunidas todas as suas traduções de Shakespeare, o que em parte conseguiu, com a publicação, em 2006, dos volumes I e II das Obras Completas de William Shakespeare.

    Ficou faltando, entretanto, um terceiro volume que contemplaria as peças históricas, talvez as mais caras à tradutora. Indica-o seu doutoramento pela Universidade de São Paulo, em 1977, em que abordou justamente o gênero histórico, tendo o trabalho sido posteriormente publicado com o título A expressão dramática do homem político em Shakespeare. Qualificado como sólido e brilhante por Antonio Candido, sobre ele o professor escreveu: Não é frequente na crítica brasileira um livro que valha ao mesmo tempo, como este, pela segurança da erudição e o brilho da imaginação crítica, isto é, a capacidade de levantar hipóteses ao mesmo tempo pertinentes e engenhosas, mostrando que o trabalho de investigação sobre o texto permite renovar as leituras correntes. (prefácio, p. 13). Era um projeto de Barbara traduzir a tese para o inglês, como lhe haviam solicitado, ao longo dos anos, diversos pesquisadores estrangeiros.

    Infelizmente, Barbara não viveu para realizar esse intento; felizmente, entretanto, sua outra ambição, a de ver publicadas todas as peças históricas, ela teve conhecimento pouco antes de ser realizada. Em meados de 2014, quando aceitei o convite para auxiliá-la na revisão e na preparação da presente edição, acreditava que minha função seria tão somente a de leitora informada. Em abril de 2015, quando cortada essa fonte de inesgotável vigor e fecundidade intelectual, coube-me a missão de concluir a tarefa, o que me trouxe, nos meses seguintes, o estranho conforto de com Barbara manter um diálogo permanente.

    Sobre sua mesa de trabalho, encontrava-se a peça The Two Noble Kinsmen (Os dois nobres primos), que então relia com a intenção, quem sabe, de traduzir.

    Ficam registradas aqui a nossa profunda admiração e nossa eterna saudade de quem tão profundamente amou o teatro e seu maior poeta.

    *****

    Para a revisão das peças, necessitei, em diferentes ocasiões, do auxílio inestimável do professor Caetano Galindo. Consultei, em outros momentos, a Dra. Ligia Negri e a Dra. Marlene Soares dos Santos. Aos três, os meus sinceros agradecimentos.

    Cronologia conjectural das peças de Shakespeare

    Liana de Camargo Leão

    Estabelecer a ordem e as datas em que foram escritas as peças de Shakespeare tem sido uma preocupação constante desde os primeiros editores de William Shakespeare até hoje. Em 1778, o importante editor Edmond Malone, em seu ensaio pioneiro An Attempt to Ascertain the Order in which the Plays attributed to Shakespeare were written (Uma tentativa de estabelecer a ordem na qual as peças atribuídas a Shakespeare foram escritas), propõe uma primeira cronologia para as peças, à qual todas as posteriores são devedoras. Um século e meio depois, em 1930, E.K. Chambers publica The Problem of Chronology (O problema da cronologia) em seu estudo seminal William Shakespeare: A Study of Facts and Problems (William Shakespeare: um estudo de fatos e problemas), retomando e avançando as pesquisas de Malone: das 36 peças listadas no Fólio, Chambers concorda com a data estabelecida por Malone para 14 peças.

    Para datar as peças, os editores recorrem, se existentes, às primeiras publicações in quarto bem como ao livro Palladis Tamia (1598), de Francis Meres, que indica Shakespeare como o autor de doze peças — Os dois cavalheiros de Verona, A comédia dos erros, Trabalhos de amor perdidos, Sonho de uma noite de verão, O mercador de Veneza, Ricardo II, Ricardo III, Henrique IV – Parte 1, Rei João, Titus Andronicus, Romeu e Julieta e uma peça perdida, Trabalhos de amor recompensados —, todas, portanto, escritas antes de 1598.

    Os editores recorrem, também, a referências a eventos históricos mencionados nas peças; a documentos tais como cartas e diários, em especial os diários do empresário teatral Philip Henslowe, que cobrem o período de 1592 a 1609, os diários do suíço Thomas Platter, que visitou Londres em 1599, e os do advogado John Manningham, que cobrem o período de 1602 a 1603; a registros de publicação de edições in quarto bem como a registros de montagens, todas estas constituindo-se como referências externas aos textos. Além disso, os próprios textos oferecem elementos para auxiliar na tarefa de datar as peças: as análises de estilística, de léxico, de percentual de prosa e verso e de versos brancos e rimados, padrões rítmicos e de pausas, percentual de coloquialismos, entre outros. Estes estudos baseiam-se em estatísticas de modo que, recentemente, graças ao uso de programas de computador, muito têm avançado. Entretanto, qualquer cronologia para as peças permanece, ainda, conjectural.

    Além da ordem em que as peças foram escritas, é sempre de interesse apresentar também as datas em que foram pela primeira vez publicadas. Dezessete das peças foram publicadas apenas no Primeiro Fólio (1623), o que nos dá a dimensão da importância do trabalho de organização dos textos feito por John Heminges e Henry Condell, atores e amigos de Shakespeare, sem o qual estes textos estariam para sempre perdidos.

    A cronologia conjectural e as datas da primeira publicação são as que encontramos nas introduções a cada uma das peças e nos diversos artigos, livros e conferências proferidas por Barbara Heliodora, cabendo-nos apenas completar as informações faltantes; preferimos adotar, nestes casos, um espectro de tempo mais amplo. Cremos, assim, oferecer ao leitor uma visão geral da trajetória de Shakespeare como dramaturgo.

    Coube-nos preparar os textos de sete traduções inéditas de Barbara Heliodora: Henrique VI – Parte 1, Henrique VI – Parte 2, Henrique VI – Parte 3, Ricardo II, Henrique VIII, Rei João e Eduardo III, esta a última peça traduzida por ela.

    Genealogia dos monarcas ingleses

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    Rei João

    Introdução

    Barbara Heliodora

    Uma das duas únicas peças de William Shakespeare na qual não aparece uma única linha de prosa — a outra sendo a belíssima e lírica Ricardo II — esta Vida e morte do rei João cria problemas desde seu aparecimento, em função da publicação, em 1591, de uma peça intitulada O perturbado reino de João, rei da Inglaterra, atribuída a Shakespeare, que cobre o mesmo período alcançado pela que aparece no famoso Primeiro Fólio de 1623, e foi incontestavelmente escrita por ele. A teoria mais antiga e consagrada afirma que Shakespeare usou O perturbado reino como sua inspiração, o que situaria o texto entre 1594 e 1597; mais recentemente, no entanto, os competentes E. A. J. Honigmann e J. Dover Wilson sugerem que a peça tenha sido escrita em 1590-1591, já que aparece no texto um verso muito próximo de outro, escrito por Thomas Kyd em sua Tragédia espanhola, de 1589, enquanto aparecem no texto possíveis alusões da anônima Solimon e Perseda, também de 1589. Os defensores da data anterior alegam ser O perturbado reino um mau quarto, ou seja, uma imitação não autorizada do Rei João, e não o contrário, como afirma a teoria mais conhecida e aceita.

    Muito embora ambas as peças cubram todo o reino de João, a anônima é uma obra violentamente anticatólica, e a de Shakespeare atenua bastante esse aspecto, cortando episódios, como um grande monólogo de um monge, em Swinstead, no qual ele manifesta sua intenção de matar o rei, como vingança por haver ele saqueado vários mosteiros, ou a em que outro monge, oficial provador da comida do rei, bebe ele mesmo parte do vinho envenenado que mata João, a fim de dar a impressão de que a morte seria uma missão religiosa a ser cumprida. Um episódio como esse, é claro, poderia sugerir ao público inglês as atividades do jesuíta Henry Garnet, que supostamente voltara de Roma em 1598 com a garantia do Papa de indulgência plenária a quem assassinasse a protestante Elizabeth I.

    A ação da peça dá grande ênfase à falsidade e hipocrisia de João, sendo que é fácil seguir a transição entre o início, no qual suas alianças e manipulações para ficar com o trono que por direito caberia a seu sobrinho Artur, filho de seu irmão mais velho Geoffrey, que seria o herdeiro, uma vez morto sem filhos o rei Ricardo Coração de Leão. A sordidez do trato entre João e Felipe, rei da França, que supostamente apoiava o menino, é motivo de uma das duas mais famosas falas da peça. Acertado abertamente como um negócio o casamento de Blanche, a sobrinha do rei inglês, com o filho do rei francês, o comentário é precioso:

    Oh lucro, que és a distorção do mundo,

    Do mundo que, de si, foi bem pesado

    E feito pra rolar em terra plana,

    Até que o ganho, essa tara vil,

    Esse dono da estrada, o grande lucro,

    O fez perder o senso da isenção,

    Da direção, do curso, do objetivo.

    Pois essa mesma tara de ganância,

    Palavra cafetina que corrompe,

    Lançada ao caprichoso rei francês,

    O fez negar o auxílio prometido

    A uma guerra honrosa e acertada,

    Por uma paz selada em sordidez…

    Quem fala é Felipe, o Bastardo, filho ilegítimo de Ricardo Coração de Leão, que é tido por muitos como uma espécie de herói alternativo da obra, símbolo do idealismo e do patriotismo inglês. Uma leitura mais atenciosa, no entanto, nos apresenta o Bastardo como um observador irônico, que acaba sua bela fala citada acima com a admissão de que só fala mal do ganho porque este ainda não o tentou. Nada disso tira a importância da figura do Bastardo, a mais viva em toda a ação. E por certo a figura de João é igualmente diminuída pela dignidade da Constance, a mãe de Artur, assim como pelas comoventes cenas que acabam resultando na morte do jovem príncipe.

    Rei João é, sem dúvida, de todas as peças históricas a mais desiludida e, de certo modo, a mais moderna, exatamente por seu objetivo reconhecimento da vida como ela é, e não como deveria ser, mesmo que ao preço de não chegar a conquistar o público, que por certo não sente qualquer vontade de se identificar com o corrupto quadro que lhe é apresentado.

    Para o público moderno é possível que o aspecto mais surpreendente de Rei João, em uma peça que é uma varredura de todo o seu reinado, é a total ausência de qualquer mínima referência à assinatura da Magna Carta, o documento arrancado pela nobreza a esse rei que lhes parecia tão corrupto em seu fisiologismo político. Não há dúvida de que o famosíssimo documento fica longe de ser, como creem alguns, a constituição inglesa; mas não há dúvida de que alguns dos pensamentos nele incluídos são a semente do processo democrático da Grã­-Bretanha.

    Como a maioria dos ingleses que viveram no reinado de Elizabeth I, William Shakespeare tinha grande orgulho de seu país, já que o viu subir para o nível de nação de primeira linha pelas mãos de sua rainha. Esse patriotismo, expressando o repúdio à vergonhosa corrupção de João, é que provoca, e que leva o Bastardo, no final da peça, a expressar sua alegria pela recuperação dos nobres ingleses que, em função dos crimes do rei, se haviam aliado a Luís, o delfim de França, que tenta, por meio de uma invasão, conquistar para si a coroa inglesa:

    Nunca foi a Inglaterra e nem será

    Pisada por um pé conquistador,

    Senão com alguma ajuda dela mesma.

    Agora que esses príncipes voltaram,

    Volta os três cantos do mundo em armas,

    Os enfrentamos! Nada nos traz mal,

    Sendo a Inglaterra a si mesma leal!

    Rei João pode não ter tantos atrativos poéticos quanto algumas das outras peças históricas, mas seu amadurecimento de visão é incontestável.

    Lista de personagens

    Rei João

    Príncipe Henrique, filho do rei

    Artur, duque da Bretanha, sobrinho do rei

    Conde de Salisbury

    Conde de Pembroke

    Conde de Essex

    Lord Bigot

    Robert Faulconbridge, filho de Sir Robert Faulconbridge

    Felipe, o Bastardo, seu meio­-irmão

    Hubert, um cidadão de Angiers

    James Gurney, servo de Lady Faulconbridge

    Peter de Pomfret, um profeta

    Felipe, rei da França

    Luís, o Delfim

    Limoges, duque da Áustria

    Melun, um nobre francês

    Chatillon, embaixador da França junto ao Rei João

    Cardeal Pandulfo, legado do Papa

    Rainha Eleanor, mãe do Rei João

    Constance, mãe de Artur

    Blanche, de Espanha, sobrinha do Rei João

    Lady Faulconbridge, viúva de Sir Robert

    Lordes, xerife, arautos, oficiais, soldados, mensageiros e outros servidores

    A ação: parte na Inglaterra e parte na França.

    Ato 1

    Cena 1

    A corte da Inglaterra, uma sala no castelo do Rei João.

    (Entram o Rei João, a Rainha Eleanor, Pembroke, Essex, Salisbury, e servidores, com Chatillon da França.)

    Rei João

    Que quer conosco a França, Chatillon?

    Chatillon

    Após saudá­-lo, o rei da França diz,

    Nesta minha pessoa, à majestade,

    Majestade emprestada, da Inglaterra.

    Eleanor

    5Começa mal, majestade emprestada!

    Rei João

    Silêncio, boa mãe; ouça a embaixada.

    Chatillon

    Felipe da França, procurador

    Do filho de seu finado irmão Geoffrey,

    Artur Plantageneta, pela lei

    10Reclama pr’ele a Ilha e os territórios

    De Irlanda, Poictier, Anjou, Touraine, Maine,

    Desejando que deponha a espada

    Com que usurpou esses títulos todos,

    E às mãos do jovem Artur os devolva,

    15Que é seu sobrinho e real soberano.

    Rei João

    E o que acontece, se não concordamos?

    Chatillon

    O orgulhoso terror de sangue e guerra,

    Pra resgatar seus direitos tomados.

    Rei João

    Guerra por guerra, sangue por sangue,

    20Controle por controle, respondemos.

    Chatillon

    Por minha boca o desafia o rei,

    Pois tal medida tem minha embaixada.

    Rei João

    A ele leve a minha, e parta em paz.

    Chegue qual raio até os olhos de França,

    25Pois, antes que o informe, estarei lá:

    Hão de ouvir o trovão de meus canhões.

    Vá­-se! Seja a trompa da nossa ira

    E o triste presságio de sua queda.

    Que ele receba honroso passe livre:

    30Dê as ordens, Pembroke; e adeus, Chatillon.

    (Saem Chatillon e Pembroke.)

    Eleanor

    Como é, meu filho! Eu não lhe disse sempre

    Que a ambiciosa Constance não descansa

    Enquanto não puser em fogo a França,

    E mais o mundo, apoiando o seu filho?

    35Tudo isso se evitava e acertava

    Com termos de amorosa cortesia,

    Que agora o poder desses dois reinos

    Vão arbitrar com argumentos sangrentos.

    Rei João

    Direito e possessões lutam por nós.

    Eleanor

    40A fortes possessões mais que o direito,

    Ou tudo sairá mal pra nós dois:

    Minha consciência sopra em seu ouvido

    O que só Deus e o senhor hão de ouvir.

    (Entra um Xerife¹.)

    Essex

    Senhor, a mais estranha das controvérsias,

    45Vinda do campo pra seu julgamento,

    Eu acabo de ouvir: devo admiti­-los?

    Rei João

    Que se aproximem.

    Nossas abadias e priorados

    Pagam a expedição.

    (Entram Robert Faulconbridge e Felipe, seu irmão Bastardo.)

    Quem são, senhores?

    Bastardo

    50Eu sou seu fiel súdito, fidalgo, nascido

    Em Northamptonshire, filho mais velho,

    Eu suponho, de Robert Faulconbridge.

    Soldado que, pela mão generosa

    De Coeur­-de­-lion, foi feito cavaleiro no campo.

    Rei João

    55E o senhor?

    Robert

    O filho e herdeiro do dito Faulconbridge.

    Rei João

    Ele o mais velho e o senhor o herdeiro?

    Não tiveram, então, a mesma mãe?

    Bastardo

    Por certo a mesma mãe, meu grande Rei;

    60Isso é sabido e, pensava, um só pai:

    Mas, quanto à certeza dessa verdade,

    Eu o refiro ao céu e à minha mãe;

    Todo filho de homem tem tal dúvida.

    Eleanor

    Que é isso, grosseiro que envergonha a mãe

    65E assim lhe fere a honra, em tom jocoso.

    Bastardo

    Eu, senhora? Não há razões pra isso;

    A causa é do meu irmão, não minha;

    E se ele o provar, inda me priva

    De ao menos quinhentas libras ao ano;

    70Que Deus lhe salve a honra e as minhas terras!

    Rei João

    Um rapaz franco e bom. Sendo o mais moço,

    Quer ele reclamar a sua herança?

    Bastardo

    Não sei — talvez só pra ficar com as terras —

    Já antes me acusou de bastardia!

    75Porém, se fui gerado bem ou mal,

    Só a cabeça da minha mãe sabe;

    Mas que eu fui bem gerado, meu senhor,

    Eu abençoo os ossos que o fizeram!

    Julgue o senhor, comparando nós dois.

    80Se o velho Sir Robert gerou ambos.

    Foi nosso pai, e esse filho o assemelha,

    Meu velho pai, Sir Robert; de joelhos

    Dou graças por não parecer consigo!

    Rei João

    O céu nos deixa aqui à solta um louco!

    Eleanor

    85Tem traços de Coração de Leão;

    Tem também o seu modo de falar.

    Não vê algumas marcas de meu filho

    No aspecto geral desse rapaz?

    Rei João

    Eu já o olhei bem de alto a baixo,

    90E é igual a Ricardo. Fale, jovem,

    Por que reclama essas terras do irmão?

    Bastardo

    Por ter a meia cara² igual ao pai!

    Por um perfil já quer a terra toda;

    Esse perfil leva as quinhentas libras!

    Robert

    95Meu bom senhor, em vida de meu pai,

    Seu irmão muita vez o empregou…

    Bastardo

    Só isso não lhe dá as minhas terras:

    Conte como empregou a minha mãe.

    Robert

    E certa vez mandou­-o em embaixada

    100A Alemanha, p’ra com o imperador,

    Tratar de altas questões daquele tempo.

    O rei tomou a vantagem da ausência

    Para ficar na casa de meu pai,

    Onde, coro em dizê­-lo, ele se impôs.

    105Mas verdade é verdade: muitas léguas

    Havia entre o meu pai e a minha mãe,

    Segundo ouvi meu próprio pai dizer,

    Ao ser gerado esse robusto jovem.

    E em seu leito de morte, em testamento,

    110Deixou pra mim as terras e jurou

    Não ser dele o filho de minha mãe;

    Pois se fosse, teria vindo ao mundo

    Catorze semanas antes do tempo.

    Meu bom senhor, dê­-me o que é meu, a terra

    115De meu pai, como era o desejo dele.

    Rei João

    Meu rapaz, o seu irmão é legítimo,

    Sua mãe o gerou quando casada,

    E, se ela lhe foi falsa, a culpa é dela;

    É um risco a que se expõe todo marido

    120Que toma esposa. Diga: se o meu mano

    Que, como diz, lutou pra ter tal filho,

    Por que seu pai diria o filho dele?

    Seu pai podia ocultar, e para sempre,

    Do mundo esse bezerro de sua vaca,

    125É verdade; fosse ele do meu mano,

    Meu mano não podia reclamá­-lo,

    Nem seu pai, recusá­-lo; conclusão:

    Sua mãe gerou o herdeiro de seu pai;

    E esse herdeiro terá de ter suas terras.

    Robert

    130Não tem força o desejo de meu pai,

    De deserdar quem não era seu filho?

    Bastardo

    Nem mais força pra me deserdar, homem,

    Do que foi seu desejo me gerar.

    Eleanor

    Preferes antes ser um Faulconbridge,

    135Qual teu irmão, e gozar de tua terra,

    Ou só suposto filho de Ricardo,

    Senhor de tua presença, mas sem terra?

    Bastardo

    Tivesse o mano o meu aspecto, lady,

    Eu, o dele, como tinha Sir Robert;

    140Como rebenques fossem as minhas pernas,

    De enguia, os braços, e o rosto tão magro

    Que eu não pudesse usar rosa³ na orelha

    Sem que ouvisse "Lá vai três farthings falsos!";

    Se, com o aspecto, viesse a sua terra,

    145Por nada eu mudaria o meu lugar

    E dava tudo pra ter esse rosto:

    De modo algum queria ser Sir Knob.

    Eleanor

    Gosto de ti: rejeitas tua fortuna,

    Dás a ele tua terra e me segues?

    150Sou soldado, de partida pra França.

    Bastardo

    Irmão, fica com a terra, que eu me arrisco.

    Teu rosto conseguiu quinhentas libras,

    Mas cinco pence é demais pra vendê­-lo.

    Senhora, hei de segui­-la até a morte.

    Eleanor

    155Não, vou mandar­-te antes de mim pra lá.

    Bastardo

    Camponês deixa passar seus melhores.

    Rei João

    Como é o seu nome?

    Bastardo

    Felipe, senhor; é o nome que me deram,

    Filho mais velho da mulher de Robert.

    Rei João

    160Teu nome agora é de quem te deu forma:

    De joelhos, Felipe e, maior, levanta;

    De pé Sir Richard, e Plantageneta.

    Bastardo

    Aperta aqui a mão, irmão materno.

    Eu tenho a honra, tu o chão paterno.

    165E abençoada a hora, noite ou dia,

    Em que — longe Sir Robert — eu nascia!

    Eleanor

    Esse é o espírito Plantageneta!

    Richard, sou tua avó. Trata­-me assim.

    Bastardo

    Por acaso e não direito; e daí?

    170Um passo errado, longe do direito,

    Entra pela janela, sai de susto;

    Quem não ousa de dia, pula à noite,

    Feito é feito; mal feito não importa.

    Perto ou longe, o alvo foi bem mirado;

    175Eu sou eu, não importa como gerado.

    Rei João

    Vai, Faulconbridge; já tens o que querias;

    E este sem terras tuas terras te há dado.

    Vamos, senhora e Richard; temos pressa

    Pra França, que a necessidade é essa.

    Bastardo

    180Adeus, irmão: vai com felicidade!

    Gerado foste com honestidade!

    (Saem todos menos o Bastardo.)

    Um pé na honra a mais do que já tinha,

    Mas menos um monte de pés de terra.

    Posso fazer qualquer Joana lady.

    185"Bom dia, Sir Richard!"⁶, Com Deus, rapaz!

    E se o seu nome é George, chamo de Peter;

    Honras de nome novo esquecem nomes:

    É muito respeitoso e sociável

    Pra novas conversões. Se um viajante

    190Usar palito junto a mim, à mesa,

    Com minha pança fidalga já farta,

    Chupando os dentes, provoco a conversa

    Do campônio palitado: Senhor!

    E, pousando o cotovelo, começo:

    195Peço­-lhe — falou aí a Pergunta⁷;

    E a Resposta vem, como a­-b­-c:

    Senhor, diz a Resposta, "Às suas ordens;

    Ao seu dispor, senhor, ao seu serviço."

    Não, senhor, diz Pergunta; Eu ao seu:

    200E assim, antes que a Resposta saiba

    Que quer a Pergunta, fora saudá­-la,

    E conversa de Alpes e Apeninos,

    Dos Pirineus e até do rio Pó,

    Com isso chega ao fim nossa ceia.

    205Isso é pra sociedade consagrada,

    Que serve pra ascendentes como eu;

    Pois é filho bastardo de seu tempo

    Que ainda não tem jeito de elegância;

    Que é só o que eu sou, queira ou não queira.

    210E não é só na roupa e no brasão,

    Na forma exterior, ou atributos,

    Mas por tendência interna pra emitir

    Esse doce veneno tão em moda.

    Que eu não, aprenderei para enganar,

    215Mas, sim, para evitar ser enganado;

    Pois vai cobrir meu caminho para o alto.

    Quem chega assim, em trajes de montar?

    Mulher­-correio? Não terá marido

    Pra tocar o clarim pr’anunciá­-la?

    (Entram Lady Faulconbridge e James Gurney.)

    220É minha mãe. — Que há, minha senhora?

    Por que, com tanta pressa, vem à corte?

    Lady F.

    Onde está o moleque teu irmão

    Que fere a minha honra lá e cá?

    Bastardo

    Meu irmão Robert? Filho de Sir Robert?

    225O poderoso gigante Colbrand?¹⁰

    É o filho de Sir Robert a quem busca?

    Lady F.

    O filho de Sir Robert! Irreverente!

    Está fazendo pouco de Sir Robert?

    É filho de Sir Robert, como tu.

    Bastardo

    230James Gurney, pode dar­-nos sua licença?

    Gurney

    Com prazer, Philip.

    Bastardo

    É nome de pardal!¹¹

    Brincam com nomes! Depois conto mais.

    (Sai Gurney.)

    Senhora, não sou filho de Sir Robert:

    Se ele comesse a parte dele em mim

    235Na Sexta­-feira Santa, não pecava:

    Poderia Sir Robert — bem, confesse —

    Gerar… a mim? Sir Robert não podia.

    Sua obra é conhecida; e então, mãe,

    A quem sou devedor destes meus membros?

    240Sir Robert nunca fez pernas assim.

    Lady F.

    Andaste conspirando com teu mano,

    Mesmo lucrando se me defendesse?

    Mas de onde vem tal deboche, calhorda?

    Bastardo

    Cavaleiro, mamãe; um Basilisco:¹²

    245Calma! Fui tocado! Neste ombro aqui.

    Ora, mãe, não sou filho de Sir Robert:

    Abri mão de Sir Robert e da terra;

    Foram­-se nome e legitimidade.

    Diga­-me, boa mãe, quem foi meu pai?

    250Um bom sujeito, espero; quem foi ele?

    Lady F.

    Tu te negaste a ser um Faulconbridge?

    Bastardo

    Com a mesma força que nego o diabo.

    Lady F.

    Foi Ricardo Coração de Leão;

    Fui seduzida longa e fortemente,

    255Pra aceitá­-lo no leito conjugal.

    Céus! Não leves a mal a minha culpa

    Tu, que nasceste dessa cara ofensa,

    Que tão forte quebrou minha defesa!

    Bastardo

    Por essa luz, gerado eu de novo,

    260Senhora, eu não pedia um pai melhor.

    Certos pecados gozam privilégios,

    Como esse seu; a falta não foi tola.

    Era dever ceder seu coração,

    Um tributo de súdito ao amor,

    265Contra cujo poderio sem par,

    Nem o feroz leão ousou lutar,

    Nem preservar o próprio coração.¹³

    Quem rouba de um leão seu coração,

    Rouba o de uma mulher. Ai, minha mãe,

    270De coração lhe agradeço meu pai!

    E quem ousar dizer que agiu mal

    Ao ter­-me, eu mando para o inferno o tal!

    Venha a minha família conhecer;

    Quando gerou­-me Ricardo, dirão,

    275Não foi pecado ele assim proceder;

    Se alguém disser que sim, eu direi não!

    (Saem.)

    Ato 2

    Cena 1

    França. Diante de Angiers.

    (Entram, por um lado, o Arquiduque da Áustria e suas forças; pelo outro Felipe, rei de França, Luís, Constance, Artur, e séquito.)

    Luís

    Bem­-vindo, nobre Áustria, frente a Angiers.

    Rei Felipe

    Artur, o criador de sua linhagem,

    Que roubou do leão seu coração,

    E em Palestina lutou guerras santas,

    5Deve a esse Duque sua precoce tumba:¹⁴

    E, pra exculpar­-se ante a posteridade,

    A nosso pedido junta­-se a nós,

    A abanar a bandeira em sua causa

    E para condenar a usurpação

    10De seu tio anormal, o João inglês:

    Abrace­-o, ame­-o, dê­-lhe as boas vindas.

    Artur

    Deus lhe perdoe a morte de Ricardo

    Coração de leão, se ajuda o filho,

    Sombreando as asas de guerra dos outros:

    15De mãos vazias dou­-lhe as boas vindas,

    Mas com o amor no coração:

    Bem­-vindo, Duque, ante as portas de Angiers.

    Luís

    Nobre jovem, quem não vê os seus direitos?

    Áustria

    Pouso em seu rosto este beijo sincero,

    20Que sela, por amor, um compromisso:

    Jamais retornarei eu a meu lar

    Até que Angiers e seu direito em França,

    Junto com aquela costa branca e pálida,²⁵

    Que repele, com o pé, marés raivosas,

    25E protege de estranhos seus ilhéus;

    Até que a Inglaterra, que o mar cerca,

    Com muralhas de água, protegida

    E segura contra ataques estrangeiros;

    Até que o ponto extremo do ocidente

    30O chame de seu rei; até tal dia

    Eu não penso no lar, mas sim em armas.

    Constance

    Tem gratidão da mãe e da viúva

    Até que sua forte mão dê forças

    Pra que Artur recompense o seu amor!

    Áustria

    35Têm paz do céu os que tomam da espada

    Para guerra tão justa e caridosa.

    Rei Felipe

    Às armas; nossos canhões voltam­-se

    Contra a dura cidade resistente.

    Chamem os generais mais competentes,

    40Pra que indiquem os postos vantajosos:

    Aqui deixamos nossos reais ossos,

    Ou vadeamos em sangue francês

    Até ‘star submetida a esse menino.

    Constance

    Espere até a resposta da embaixada,

    45Pra não sangrar à toa a sua espada:

    Chatillon pode trazer da Inglaterra,

    Em paz, o direito que causa a guerra,

    Fazendo­-nos pagar por cada gota

    Que a pressa fez jorrar em seu engano.

    (Entra Chatillon.)

    Rei Felipe

    50Veja, senhora, que por seu desejo

    Vem nosso mensageiro, Chatillon!

    Revele em breve o que diz a Inglaterra.

    Em pausa fria ouçamos Chatillon.

    Chatillon

    Deixem de lado cerco tão mesquinho,

    55E usem as forças pra maior tarefa.

    Impaciente com sua justa causa,

    Se arma a Inglaterra; ventos contrários,

    Que me retardaram, deram­-lhe tempo

    Para aportar comigo as suas tropas.

    60Marcham com pressa para esta cidade.

    Com grandes forças, homens confiantes.

    Vem com ele Ate,¹⁶ a rainha­-mãe,

    Que o estimula a uma luta sangrenta;

    Vem também Blanche de Espanha, sua sobrinha;

    65Mais um bastardo do finado rei,¹⁷

    E todos os inquietos do país;

    Voluntários fogosos, que não pensam,

    Com rosto de moça e fogo de dragão,

    Que venderem fortunas e suas casas,

    70Pra carregar nas costas o que tinham

    E arriscar aqui novas fortunas;

    Em resumo, melhor grupo de bravos

    Que naus inglesas para aqui trouxeram,

    Jamais boiou sobre as inchadas ondas

    75Pr’ofender e ferir a cristandade.

    (Ouve­-se o rufar de tambores.)

    O rufar de seus míseros tambores

    Poda o argumento. Eles ‘stão aí,

    Para conversa ou luta; ‘stejam prontos.

    Rei Felipe

    Como é inesperada essa incursão!

    Áustria

    80E tanto quanto é inesperada,

    Devemos despertar nossas defesas.

    Em condições assim cresce a coragem:

    Pois que sejam bem­-vindos; ‘stamos prontos.

    (Entram o Rei João, Eleanor, Blanche, o Bastardo, nobres e tropas.)

    Rei João

    Paz à França, se a França a paz permite

    85A nossa justa entrada em nossas terras;

    Se não, que sangre a França e suba ao céu

    A paz, e nós, como agentes de Deus,

    Puniremos o que baniu a Sua paz.

    Rei Felipe

    Paz à Inglaterra, se voltar sem guerra

    90Da França pra Inglaterra, e viva em paz.

    Amamos a Inglaterra e, pr’ o bem dela,

    Suamos sob o peso de armaduras.

    É pra ser labor teu a nossa luta;

    Porém, como não tens amor à pátria,

    95Vieste solapar seu rei legal,

    Cortando a linha da posteridade,

    Intimidando a infância e violando

    A pura virgindade da coroa.

    Este é o rosto de teu mano Geoffrey;

    100Geofffrey moldou esses olhos e cenho;

    Em resumo, ele tem a dimensão

    Que em Geoffrey morreu; e a mão do tempo

    Há de expandi­-lo em volume esplêndido.

    Esse Geoffrey foi teu irmão mais velho;

    105Este, seu filho; a Inglaterra é direito

    De Geoffrey, e do filho que ele teve.

    Por Deus, como ousas tu dizer­-te rei,

    Se sangue vivo pulsa nessas têmporas,

    E a ele dá a coroa que tomaste?

    Rei João

    110E quem à França concede a embaixada

    De exigir que eu responda tais artigos?

    Rei Felipe

    O juiz supremo que faz bem pensar

    Até a fera com muito poder

    Sobre as marcas e as manchas do direito.

    115Ele me fez guardião do menino:

    Por ordem sua é que embargo o teu erro,

    E com sua ajuda espero punir­-te¹⁸

    Rei João

    Sinto, mas usurpas autoridade.

    Rei Felipe

    Com perdão se eu derrubo usurpação.

    Eleanor

    120França, a quem chamas de usurpador?

    Constance

    Respondo eu: teu filho usurpador.

    Eleanor

    Insolente! Queres rei teu bastardo

    Pra, rainha, mandares neste mundo!

    Constance

    Meu leito foi tão fiel a teu filho

    125Quanto o teu a teu marido. O menino

    Mais se parece a seu pai Geoffrey

    Quanto tu e João; são tão iguais

    Quanto água e chuva, o demo e sua mãe.

    O meu filho bastardo! Pois duvido

    130Que seu pai fosse assim tão bem gerado:

    Não é possível, se tu foste a mãe.

    Eleanor

    Boa mãe essa, que mancha o teu pai.

    Constance

    Boa avó, filho, essa que o quer roubar.

    Áustria

    Paz!

    Bastardo

    Olha quem grita!

    Áustria

    Quem és tu, demo?

    Bastardo

    135É quem fará diabruras consigo,

    E arranca­-lhe a pele,¹⁹ se o vê sozinho.

    O senhor é a lebre do provérbio,

    Cuja bravura insulta leões mortos.

    Arranco­-lhe a pele, se o pego de jeito;

    140Cuidado, moleque, eu juro, eu juro.

    Blanche

    Como cai bem a pele do leão

    Em quem despiu o leão de tal traje!

    Bastardo

    Ela fica tão bem nos ombros dele

    Quanto os sapatos de Alcides²⁰ num asno:

    145Mas eu lhe tiro essa carga das costas,

    Ou ponho outra que lhe parte os ombros.

    Áustria

    Que fanfarrão nos deixa agora surdos

    Com fartura de fôlego supérfluo?

    Rei Felipe

    Luís, resolva o que se faz agora.

    Luís

    150Fêmeas e tolos, chega de falar.

    Rei Felipe

    Rei João, eis a questão: Inglaterra,

    Irlanda, Anjou, Touraine e Maine, de si

    Reclamo aqui por direito de Artur.

    Deles abdica e depõe as armas?

    Rei João

    155Antes a vida. O desafio, França.

    Artur da Bretanha, toma­-me a mão;

    E por meu grande amor tu terás mais

    Que promete a covarde mão de França:

    Submete­-te, menino.

    Eleanor

    Vem com a avó.

    Constance

    160Vai, menino, vai com a tua avó;

    Dá à avó o reino, que a vovó

    Dá uma ameixa, uma cereja e um figo:

    Avó boa é isso.

    Artur

    Paz, minha mãe!

    Queria estar deitado em minha tumba:

    165Não valho o nó que só por mim ataram.

    Eleanor

    É de vergonha da mãe que ele chora.

    Constance

    Vergonha é tua, chore ele ou não.

    Erros da avó, não vergonhas da mãe,

    Molham seus olhos com celestes pérolas

    170Que os céus receberão quais penitências;

    Co’essas contas de cristal ele os paga

    Pra ter Justiça e pra ser vingado.

    Eleanor

    Difamadora vil de céu e terra!

    Constance

    Ofensora maior de céu e terra!

    175Não fales de calúnia; tu e os teus

    Usurpam domínios, rendas, direitos

    Do menino oprimido; primogênito

    Do teu mais velho, infeliz só em ti:

    Teus recados perseguem a criança;

    180O cânone da lei cai sobre ele,

    Por ser só a segunda geração

    Após teu útero pecaminoso.

    Rei João

    Chega bruxa.

    Constance

    Eu só afirmo que além

    De ele pagar pelo pecado dela,

    185Foi Deus quem a fez pecar, e a sua praga

    Salta o filho, e o neto paga por ela

    Com a praga dela; seu pecado o fere;

    Sua praga, punidora do pecado,

    Pune tudo na imagem do menino

    190Por causa dela; que a praga a leve!²¹

    Eleanor

    Desaforada sonsa, eu tenho a prova:

    Testamento que te deserda o filho.

    Constance

    E quem duvida? É testamento vil;

    Testamento de mulher; de avó podre!

    Rei Felipe

    195Calma, senhora! Mostre mais controle:

    Calha mal nesta hora ameaçar

    Com tais repetições desafinadas.

    Que um corneteiro conclame às muralhas

    Os cidadãos de Angiers; que eles nos digam

    200Se é Artur ou João que reconhecem.

    (Clarinada. Ao alto, na muralha, entra Hubert.)

    Hubert

    Quem é que nos alerta pr’as muralhas?

    Rei Felipe

    França, pela Inglaterra.

    Rei João

    A Inglaterra.

    Homens de Angiers, queridos súditos.

    Rei Felipe

    Caros súditos de Artur, em Angiers

    205Foram chamados pra conversa amável…

    Rei João

    Pra nosso ganho, ouçam­-nos primeiro.

    As bandeiras de França que aqui voam

    Ante os olhos e mentes da cidade,

    Só marcharam pra pô­-los em perigo.

    210Os canhões, transbordantes de ira,

    Estão já montados para cuspir

    Contra os seus muros balas de ferro.

    Todo o preparo pra sangrento cerco

    E ações implacáveis dos franceses

    215Confortam²² seus portões, olhos que piscam.

    E não fora nós chegarmos a essas pedras

    Adormecidas que envolvem sua cintura,

    Pela força de sua artilharia

    A esta altura, de suas bases fixas,

    220Já as teriam arrasado e imposto o caos,

    Com sangue penetrando a sua paz.

    Porém ao ver que nós, seu rei legítimo,

    Com grande esforço e com marchas forçadas,

    Trouxemos contrapeso às suas portas,

    225Para não ser arranhada a cidade,

    Os franceses já querem conversar.

    E ora em lugar de balas flamejantes,

    Mandadas pr’abalar suas muralhas,

    Acenam só palavras de fumaça,

    230Para que ouvissem apenas erros falsos.

    Aceitem­-nos quais são, bons cidadãos,

    E recebam­-nos seu rei, cuja coragem

    Nesta emergência agiu com rapidez

    E pede abrigo dentro da cidade.

    Rei Felipe

    235E depois que eu falar, responda a ambos.

    Olhe esta destra, cuja proteção

    Fez jura divina pelo direito

    De quem o tem, este Plantageneta,

    Filho do irmão mais velho desse homem,

    240Rei dele e de tudo que hoje goza.

    Por este injustiçado é que, guerreiros,

    Marchamos sobre os campos da cidade,

    Porém sem sermos mais seus inimigos

    Do que nos força um benéfico zelo

    245Só pelo alívio da infância oprimida

    Que a religião ordena. Paguem, então,

    O que em verdade o dever lhe pede,

    A quem manda o direito, o jovem príncipe:

    Nossas armas, ursos com focinheiras,

    250A não ser pelo aspecto, não ofendem;

    Nossos canhões atiram sem malícia

    Apenas contra o céu invulnerável;

    E em retirada ilesa e abençoada,

    Com espadas limpas e elmos sem marcas,

    255Levaremos pra. casa o mesmo sangue

    Trazido pra manchar sua cidade,

    Deixando em paz seus filhos e mulheres.

    Mas se, tolos, recusam esta oferta,

    Não são paredes rotundas e velhas

    260Que hão de impedir a mensagem guerreira,

    Mesmo que esses ingleses e suas tropas

    Guardassem toda essa circunferência.

    Diga: a cidade nos chama senhor

    Em nome de quem a desafiamos?

    265Ou devemos expressar nossa raiva,

    Tomar posse caminhando em sangue?

    Hubert

    Nós somos súditos do rei inglês:

    Em seu nome guardamos a cidade.

    Rei João

    Reconheça­-me rei, deixe­-me entrar.

    Hubert

    270Não posso; mas ao que provar que é rei

    Nós seremos leais: até então

    Nós trancamos as portas contra o mundo.

    Rei João

    Não mostra o rei a coroa da Inglaterra?

    E, se não, hei de trazer testemunhas,

    275Trinta mil corações em tudo ingleses…

    Bastardo

    Bastardos e tudo…

    Rei João

    Que provam com suas vidas nosso título.

    Rei Felipe

    E outros tantos de sangue igual ao deles…

    Bastardo

    Alguns bastardos também.

    Rei Felipe

    280Que, frente a frente, negam seu reclamo.

    Hebert

    Até que saibam quem tem mais direito,

    Pelo direito, renegamos ambos.

    Rei João

    Que Deus perdoe os pecados das almas

    Dos que, para sua morada eterna,

    285Antes da noite cair, correrão

    Pra luta horrenda do rei deste reino!

    Rei Felipe

    Amém! Montem, cavaleiros! Às armas!

    Bastardo

    São Jorge, que trucidou o dragão,

    E desde então cavalga nas tavernas,²³

    290Faça­-nos lutar bem. (Para Áustria.) ‘Stivesse em casa,

    Na sua toca, e com a sua leoa,²⁴

    Punha cabeça de boi na sua pele,

    E o fazia um monstro.

    Áustria

    Agora, chega!

    Bastardo

    Trema: o que ouve é o leão rugindo!²⁵

    Rei João

    295Subamos à planície; e lá armemos

    Da melhor forma os nossos regimentos.

    Bastardo

    Rápido, então, pra ter o melhor campo.

    Rei Felipe

    Assim será; e na outra colina

    Tomemos posição. Deus e o direito!

    (Saem, por pontos diferentes, o Rei João e Rei Felipe etc. Aqui, após as evoluções,

    entra o Arauto da França, com corneteiros, para os portões.).

    Arauto francês

    300Homens de Angiers, abram bem seus portões,

    E admitam Artur, duque da Bretanha,

    Que hoje, pela mão da França, abriu

    Caminho pra pranto de mães inglesas,

    Cujos filhos coalharão chão sangrento.

    305Maridos de viúva hão de jazer

    Friamente abraçando a terra pálida;

    E a vitória, com pouca perda, brinca

    Com as dançantes bandeiras francesas,

    Que aqui perto se mostram, em triunfo,

    310Para entrar em conquista, e proclamar

    Artur rei da Inglaterra e dos senhores.

    (Entra o Arauto inglês, com corneteiros.)

    Arauto inglês

    Cantem seus sinos, homens de Angiers,

    Eis aí João, seu rei e da Inglaterra,

    Que comanda este dia de malícia.

    315As armas que daqui foram em prata

    Voltam douradas com o sangue francês;

    Nenhuma pluma de brasão inglês

    Foi removida por lança francesa;

    Voltam nas mesmas mãos as nossas cores

    320Que as ostentavam quando nós marchamos;

    Qual grupo de felizes caçadores,

    Chegam, com rubras mãos, bravos ingleses

    Tingidos com a matança de inimigos:

    Abram suas portas para os vencedores.

    Hubert

    325Arautos, de nossas torres nós vimos,

    Do início ao fim, do avanço à retirada,

    Ambas as suas tropas; e a igualdade

    Nem por olhos de lince é distinguida:

    Sangue comprou mais sangue; golpe, golpe;

    330Igualaram­-se as forças e os poderes;

    Ambos iguais, e a ambos amamos.

    Um tem de ser maior, e enquanto pesam,

    Nós negamos a ambos a cidade.

    (Voltam, por um lado, o Rei João, Eleanor, Blanche, o Bastardo, lordes e tropas; pelo outro, o Rei Felipe, Luís, Áustria e tropas.)

    Rei João

    França, queres perder inda mais sangue?

    335Há de nosso direito inda correr,

    Cujo fluxo, irado com obstáculos,

    Transbordando do leito há de encharcar,

    Fora do curso, as bordas que o limitam,

    Se não deixares sua água de prata

    340Correr em paz até o oceano.

    Rei Felipe

    Não perdeste, Inglaterra, uma só gota

    De sangue menos do que nós na França;

    Até mais. E por esta mão que reina,

    Pelas terras deste clima, eu ora juro

    345Que antes de depormos justas armas,

    Derrotaremos quem com elas lutam,

    Ou teremos mais um morto real,

    Honrando a lista das perdas da guerra,

    Ligando a morte a nomes de reis.

    Bastardo

    350Majestade! Que alto vai tua glória

    Quando se inflamam os sangues de reis!

    E agora a morte forra de aço a goela;

    Usa espadas marciais quais dente e presa,

    Faz gato e rato com a carne dos homens,

    355Ignorando as diferenças dos reis.

    Por que se encaram com real espanto?

    Gritem Às armas! reis; voltem ao campo,

    Com potências iguais, bravura em chamas!

    Que a derrota de um então confirme

    360A paz do outro; até lá, sangue e morte!

    Rei João

    Que lado admitem ora os habitantes?

    Rei Felipe

    Pela Inglaterra: Quem é o seu rei?

    Hubert

    O da Inglaterra, sabendo qual é.

    Rei Felipe

    Nós, que defendemos o seu direito.

    Rei João

    365Nós, que representamos a nós mesmos,

    Aqui mostramos posse de nós mesmos,²⁶

    Senhor de nossa presença, e de Angiers.

    Hubert

    Poder mais alto do que nosso o nega;

    E até não haver dúvidas fechamos,

    370Com antigo escrúpulo, os portões travados:

    São reis de nosso medo, até que o medo

    Suma, deposto por quem é seu rei.

    Bastardo

    Pelo céu, reis, que a cambada de Angiers

    Dos dois debocha e, firme nas muralhas,

    375Olha e aponta, como em um teatro,

    Suas grandes cenas e atos de morte.

    Sejam guiadas por mim, majestades:

    Como fizeram os amotinados

    De Jerusalém, planejem, amigos,

    380O maior mal a fazer à cidade.

    De leste a oeste, França e Inglaterra

    Montem os seus canhões ferozes,

    Até que o seu clamor cale e destrua

    Até os ossos a cidade abusada.

    385Devem brincar, sem pausa, com a ralé,

    Até que, desolados, sem defesa,

    Fiquem tão nus quanto é o próprio ar.

    Isso feito, separem o que uniram,

    Separem novamente suas bandeiras;

    390Ponham­-se face a face, ponta a ponta;

    E, num instante a fortuna há de escolher

    Um dos dois lados como seu eleito,

    E a esse, feliz, dará o dia,

    E o beijará, com vitória gloriosa.

    395Não lhes agradam meus conselhos loucos?

    Não sentem neles sabor de política?²⁷

    Rei João

    Pois, pelo céu que nos cobre as cabeças,

    Gosto. Juntemos nossas forças, França,

    E arrasemos Angiers até o chão;

    400Pra, só depois, saber quem é rei dela.

    Bastardo

    E se tens mesmo o estofo de reis,

    E és ofendido por essa vilazinha,

    Abre a boca de tua artilharia,

    E nós,²⁸ as nossas, contra essas paredes;

    405E quando a tivermos arrasado,

    Desafiamos um ao outro e, em luta,

    Conquistamos pra nós céu ou inferno.

    Rei Felipe

    Que seja assim; por onde assaltarás?

    Rei João

    Nossa destruição virá do oeste

    410Pr’o seio da cidade.

    Áustria

    Eu, do norte.

    Rei Felipe

    Nosso trovão, do sul

    Trará chuva de balas à cidade.

    Bastardo

    (À parte.) Plano prudente! Entre norte e sul

    Áustria e França atiram­-se nas goelas:

    Estimulo a ideia. Avante! Vamos!

    Hubert

    415Escutem­-me, grandes reis, um momento,

    E eu lhes mostrarei paz e concórdia;

    Ganhem sem golpe ou sangue esta cidade;

    Deixem que os vivos morram em seus leitos,

    Em lugar de sacrificá­-los no campo:

    420Não partam! Ouçam­-me, reis poderosos!

    Rei João

    Pois fale; estamos prontos para ouvir.

    Hubert

    Essa filha da Espanha, Lady Blanche,

    É próxima à Inglaterra; veja a idade

    De Luís, o Delfim, e a da donzela:

    425Se o amor fogoso procura a beleza,

    Onde, senão em Blanche, a encontraria?

    Se o amor zeloso procura a virtude,

    Onde, senão em Blanche, a encontraria?

    Se, ambicioso, busca berço igual,

    430Não é em Blanche que corre um sangue tal?

    A virtude, a beleza e o berço dela

    Tem também, todas, o jovem Delfim.

    Se ele não é completo, nem é ela;

    E nada falta a ela, se há falta,

    435Senão a falta de ela não ser ele.

    Ele é metade de um abençoado,

    Que há de ser completado só por ela;

    E ela, bela excelência dividida,

    Cuja completa perfeição ‘stá nele.

    440Essas duas correntes de prata, se unidas,

    Glorificam as margens que as abraçam;

    E duas praias, da corrente unida,

    Hão de ser, reis, a controlar o fluxo

    Desses dois príncipes, se assim os casam.

    445Tal união fará bem mais que golpes

    A essas portas trancadas; pois tal jogo,

    Muito mais do que o ímpeto da pólvora,

    Há de abrir bem a boca da passagem

    Para dar­-lhes entrada. Sem o acerto,

    450O mar revolto não será mais surdo,

    O leão mais ousado, pedra e rocha

    Mais firmes, não, nem mesmo a própria morte,

    Terá metade da resolução

    Que nós, pra defender­-nos.

    Bastardo

    E um tropeço

    455Que faz se sacudir de sua mortalha

    A carcaça da morte! Boca assim

    Que cospe guerras, montanhas e mares,

    Trata leões ferozes com o carinho

    De meninotas com seus cachorrinhos!

    460Que artilheiro gerou sangue tão fértil?

    É canhão que queima, fumega e explode;

    Saem da sua língua chicotadas;

    Açoita nosso ouvido; e suas palavras

    São mais fortes que os murros da França.

    465Raios! Nunca fiquei tão sem palavras

    Des’que chamei de pai o do meu mano.

    Eleanor

    Filho, ouve a proposta, acerta a boda;

    Dá à tua sobrinha um dote grande;

    Pois com tal união se amarra um nó

    470Que te assegura essa coroa incerta,

    E impede que esse broto amadureça

    O botão que promete fruta forte.

    Vejo que cedem os olhos de França;

    Vê como conversam: insiste agora,

    475Quando as almas são alvo da ambição,

    Para que o zelo, agora derretido,

    Com petições, piedades e remorsos,

    Não volte a congelar­-se no que era.

    Hubert

    Por que não dão resposta as majestades

    480Ao que propõe a cidade em perigo?

    Rei Felipe

    Que fale a Inglaterra; foi primeira

    A falar à cidade; o que diz ela?

    Rei João

    Se o Delfim teu filho, aqui presente,

    Pode, em tão belo livro, ler Eu amo,

    485O dote dela será de uma rainha:

    Pois Anjou, com Touraine, Maine, Poictiers,

    E tudo o mais deste lado do mar —

    Exceto esta cidade que cercamos —

    Que é de nossa coroa e dignidade,

    490Doura o leito nupcial e a enriquece

    Em títulos, honrarias, promoções,

    Quanto ela em dons, em beleza e em berço

    É par para as princesas deste mundo.

    Rei Felipe

    O que dizes, menino? Olha a dama.

    Luís

    495Que sim, senhor; e que em seus olhos vejo

    Maravilha, ou milagre inesperado,

    Minha sombra refletida em seu olhar;

    O que, apenas sombra de seu filho,

    Torna­-se sol e faz do filho sombra:

    500Confesso que jamais amara, eu mesmo,

    Até eu encontrar­-me assim fixado,

    Desenhado na tela de seus olhos.

    (Segreda ao ouvido de Blanche.)

    Bastardo

    (À parte.)

    Desenhado na tela de seus olhos!

    Pendendo de seu cenho bem franzido!

    505E num quartel do coração se vê

    Como traidor do amor: é uma pena

    Ver pendendo e quartelado²⁹ aparecer

    Em amor tal um vil canalha desses!

    Blanche

    (Para Luís.)

    A vontade de meu tio é a minha:

    510Se ele vê em si algo que gosta,

    O que ele fez, e que o faz gostar,

    Posso transpor para a minha vontade;

    Ou, se prefere, pra dizer mais claro,

    Mudo, com pouco esforço, em meu amor.

    515Não direi mais pra agradá­-lo, senhor,

    Que o que vejo merece ser amado,

    Ou seja, que em si eu nada vejo,

    Mesmo pensando com mesquinharia,

    Que eu julgasse merecer meu ódio.

    Rei João

    520Que dizem, jovens? O que diz, sobrinha?

    Blanche

    Que ela por dever tem de fazer

    O que, em seu saber, concederá.

    Rei João

    Que dizes, Delfim: hás de amar a dama?

    Luís

    Não; pergunte se eu posso não amá­-la?

    525Pois a amo sem fingimento algum.

    Rei João

    Concedo então Volquessen, Touraine, Maine,

    Poictiers e Anjou, e as cinco províncias

    Vão com ela para ti; e mais ainda,

    Trinta mil marcos em moeda inglesa.

    530Felipe de França, se isso o agrada,

    Mande darem­-se as mãos seu filho e filha.

    Rei felipe

    Agrada muito; juntem as mãos, meus jovens.

    Áustria

    E os lábios também, pois estou certo

    De que o fiz, quando fiz minha jura.

    Rei Felipe

    535Homens de Angiers, abram agora as portas,

    Admitindo os amigos que fizeram;

    Pois na capela de Santa Maria,

    Será em pouco tempo celebrado

    O casamento em seu solene rito.

    540Não ‘stá aqui, entre nós, Lady Constance?

    Eu sei que não, pois para a nova boda

    Sua presença seria grande obstáculo.

    Onde está, com seu filho?

    Que alguém diga.

    Luís

    Desesperada, na tenda real.

    Rei Felipe

    545E juro que, com o trato que fizemos,

    Não serve pra curar sua tristeza.

    Irmão inglês, como hei de contentar

    A viúva? Por seu direito vimos;

    E, sabe Deus, mudamos de atitude,

    550Com vantagem pra nós.

    Rei João

    Pra tudo há cura;

    Fazemos Artur, duque da Bretanha,

    Conde de Richmond e, ainda, senhor

    Desta cidade. Chame Lady Constance;

    Que um mensageiro lhe peça para vir

    555À nossa festa: eu confio que havemos

    De fazer­-lhe a vontade, não de todo,

    Mas a que, em parte ao menos, a satisfaça,

    Pra podermos calar os seus reclamos.

    Vamos então, com pressa e sem preparo,

    560Celebrar essa pompa inesperada.

    (Saem todos menos o Bastardo.)

    Bastardo

    Louco mundo, loucos reis, louco arranjo!

    João, para tirar tudo de Artur,

    Não se importa de abrir mão de uma parte.

    E França, a quem a consciência armou,

    565Que aqui trouxe zelo e caridade,

    Qual soldado de Deus, com um cochicho

    Daquele vira­-casaca, o diabo,

    O cafetão que todo dia quebra

    Palavra e jura, e todo dia ganha

    570De rei, pobre, velho, jovem, donzela,

    E estas, que não têm nada a perder

    Senão serem donzelas, as rouba disso,

    Esse homem de cara limpa, esse bom lucro,

    Oh lucro, que és a distorção do mundo,

    575Do mundo que, de si, foi bem pesado

    E feito pra rolar em terra plana,

    Até que o ganho, que essa tara vil,

    Esse dono da estrada, o grande lucro,

    O fez perder o senso da isenção,

    580Da direção, do curso, do objetivo.

    Pois essa mesma tara de ganância,

    Palavra cafetina que corrompe,

    Lançada ao caprichoso rei francês,

    O fez negar o auxílio prometido

    585A uma guerra honrosa e acertada,

    Por uma paz selada em sordidez.

    Por que insulto eu todo esse lucro?

    Só porque ele não me quis, ainda,

    E não por poder eu fechar a mão

    590Se os seus anjos³⁰ buscarem minha palma;

    Só porque minha mão, sem ser tentada,

    Como o mendigo insulta quem é rico.

    Pois enquanto mendigo eu bradarei

    Que o maior dos pecados é a riqueza;

    595E, quando rico, eu digo, virtuoso,

    Que não há vício igual à mendicância.

    Se um rei quebra a palavra pra lucrar,

    O ganho é o deus a quem eu hei de adorar.

    (Sai.)

    Cena 2

    (Entram Constance, Artur e Salisbury.)

    Constance

    Foi se casar! Foram jurar a paz!

    Amigos, falso sangue e falso sangue!

    Luís ganha Blanche, e Blanche, as províncias?

    Não pode ser; compreendeste mal;

    5Pensa bem, e conta tudo de novo.

    Não pode ser; só tu dizes assim.

    Confio que não possa confiar,

    Pois tua palavra é o sopro de um qualquer;

    Crê que não creio em ti, que és só homem;

    10Tenho a palavra de um rei que te contesta.

    Serás punido porque assim me assustas,

    Pois ‘stou doente, sujeita a temores,

    Oprimida por males, assustada,

    Viúva, sem marido, só com medos,

    15Sendo mulher, nascida pra ter medos;

    Mesmo que agora digas que brincavas,

    Meus sentimentos não admitem tratos,

    Pois este dia inteiro andei tremendo.

    Que dizes, sacudindo essa cabeça?

    20Por que olhas meu filho com tristeza?

    Que quer dizer tua mão sobre o teu peito?

    Por que teus olhos pingam triste goma,

    Qual rio que transborda suas margens?

    Esses sinais confirmam tuas palavras?

    25Fala de novo; não a história toda.

    Com uma palavra diz se era verdade.

    Salisbury

    Tão verdade quanto sei que as julgas falsas,

    E dão a ti motivo para crê­-las.

    Constance

    Se me levas a crer em tal tristeza,

    30Faz tal tristeza me levar à morte,

    E deixa crença e vida se enfrentarem

    Como a fúria de dois desesperados,

    Que caem, mortos, ao primeiro choque.

    Casar Luís com Blanche! E tu, menino?

    35França e Inglaterra amigas, que me resta?

    Homem, vai embora; eu nem posso ver­-te.

    Essa notícia o torna muito feio.

    Salisbury

    Que outro mal fiz eu, boa senhora,

    Além de dizer alto o que outros fazem?

    Constance

    40Um mal que é em si tão hediondo

    Que torna

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