A Morte Vem Da Lua
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A Morte Vem Da Lua - José Antonio Rodrigues Dos Santos
José Antonio Rodrigues dos Santos
A morte vem da Lua
1ª edição
F:\Histórias\A morte vem da Lua\Ebook\978-65-00-43146-9.jpegEsta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com nomes,
pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
Todos os direitos reservados e protegidos
pela Lei 9.610 de 19/02/1998.
Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito
do autor, poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais
forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros.
Capa/Arte:
José Antonio R. dos Santos
F:\Histórias\A morte vem da Lua\Ebook\Ficha Catalográfica - Livro digital - A morte vem da lua.jpgTodos nós temos alguma coisa escondida na memória que nem sempre sabemos o que é de verdade. Não sabemos de onde veio e nem por qual motivo convivemos com isso. Só sabemos que essa coisa existe e está o tempo todo com a gente, às vezes brincando com nossos sentimentos, outras vezes nos fazendo tomar escolhas das quais não tomaríamos.
F:\Histórias\A morte vem da Lua\fotos\lua.jpg Prólogo
Ela entrou quase acanhada na pequena sala da casa. Vestia uma blusa branca de alças estampada com vários ramos de flores rosa. Usava short jeans e sandálias rasteirinhas. Seus cabelos eram de um loiro claro quase branco e ela tinha olhos azuis serenes e desconfiados. Sorriu timidamente para as pessoas, talvez decepcionada com a surpresa. O bolo era minúsculo e estava dentro de uma panela de alumínio surrado em cima de uma mesinha branca. Ela não sabia se estava comemorando seu aniversário ou seu casamento. Dúvidas pairavam sobre seus olhos desconfiados indo do bolo às pessoas a sua volta. Havia algo de errado ou aquilo era uma brincadeira? Ela estava levemente confusa e sorria sem graça para as pessoas. Sentou-se em volta da mesa e ficou olhando para o pequeno bolo pardo a sua frente dentro daquela panela ridícula. Enquanto dentro de casa tal impasse ocorria, lá fora uma discussão acontecia. Dois homens discutiam por uma razão desconhecida. Algumas pessoas tentavam apaziguar a discussão, mas sem muito êxito. Então os dois homens saíram no braço provocando um alvoroço intenso no terreiro da casa. O barulho dos socos e pontapés ecoavam chocos no ar, bem como o estalido de coisas se quebrando em volta deles. De repente uma quantidade significativa de pessoas estava brigando. Eles caíam, se levantavam e caíam novamente. No meio da confusão havia um pai segurando uma garotinha loira. Ele estava bravo, falando alto e de punho armado pronto para bater. E fez isso quando alguém partiu para cima dele. Ele batia e se defendia com um braço enquanto o outro protegia a garotinha que no meio da confusão se mantinha serena e grudada ao corpo dele. Foi então que o outro homem surgiu com uma faca de cabo branco e o golpeou no pescoço. O tumulto cessou instantaneamente e as pessoas olhavam quase incrédulas para aquela cena. O homem deslizou pela velha parede de madeira da casa com a garota no braço até ela alcançar o chão.
A menina saiu correndo na minha direção, mas foi para os braços da moça loira de short jeans. A pequena garota se aninhou no colo da moça, que correu apavorada ao encontro do homem que agonizava no chão. Ele mantinha a mão sobre o corte no pescoço tentando em vão estancar o sangue que descia colorindo de vermelho vivo sua camisa branca. Seus olhos esbugalhados fitavam a moça e a criança a sua frente enquanto sua boca tremulava tentando dizer alguma coisa. Mas a única coisa que saía era um gruído rouco e cada vez mais fraco. Então não demorou muito seus olhos perderam o brilho, seus lábios pararam de tremer, seu corpo perdeu a cor e sua mão escorregou do pescoço ao colo. A mulher e a garotinha olhavam estáticas aquela cena sem poder fazer absolutamente nada...
1
Acordei banhado de suor e com a língua seca colada no céu da boca. Meu coração batia acelerado e minha respiração estava cansada como se eu tivesse corrido um quilômetro inteiro. Abri os olhos bem devagar olhando o quarto levemente claro a minha volta. O barulho distante da cachoeira e dos pássaros no bambuzal chegou aos meus ouvidos. Respirei fundo ainda com o corpo inerte sobre a cama. Fiz um esforço para descolar a língua do céu da boca e engoli em seco. Continuei imóvel até meu coração e minha respiração se acalmarem. Afastei lentamente a coberta e o ar do quarto veio ao meu encontro esfriando o suor do meu corpo. Por um instante tive a sensação de estar mijado. Respirei fundo e me ergui sentando na cama. Olhei distante para a parede na minha frente como se pudesse atravessá-la e chegar àquele sonho terrível. Fiquei naquele estado por alguns minutos até ouvir meus pais discutindo em algum lugar da casa. Eles sempre discutiam por coisas supérfluas, como deixar a porta do armário aberta, um tapete enrolado no chão ou uma panela de comida destapada. E na maioria das vezes a discussão partia da minha mãe que parecia ter um dom especial de se irritar facilmente. Na verdade eu às vezes a achava muito implicante com meu pai. Naquele dia eles discutiam por que meu pai havia quebrado por acidente o copo que estava tomando café. Ela o chamou de destrambelhado, ele a chamou de chata e aí começou...
Saí do banheiro, me arrumei, peguei a mochila e saí sem tomar o café da manhã. Eles mal ouviram minha despedida. Eu estava cinco minutos atrasado e não queria chegar depois do sinal logo no primeiro dia de aula. Parei no pé de goiaba do terreiro e colhi cinco goiabas maduras. Elas estavam geladas devido o sereno da noite. Dei a primeira mordida e comecei a subida na colina. Fazia frio àquela hora da manhã e eu me divertia soltando fumaça pela boca. As rodas dos patins em atrito com o asfalto faziam um barulho choco quebrando o silêncio a minha volta. Uma névoa fina de sereno cobria as pastagens que ladeavam o caminho, bem como os animais que ali pastavam. Logo cheguei ao topo da colina. A respiração estava elevada e o coração acelerado. Sentia aquele frio na barriga que todo ano me dava no primeiro dia de aula. Patinei mais uns quinhentos metros e de longe pude ver as duas garotas sentadas no meio-fio em meio a fumaça branca que as cobria. Elas abriram um sorriso assim que me viram...
—Bom dia meninas!
—Bom dia!
—Bom dia!
Elas responderam juntas. Ambas me abraçaram e eu retribuí como se não nos víssemos há um bom tempo.
—Ansioso? —Perguntou Kráisla.
—Só um frio na barriga. —Respondi piscando o olho.
—É só o primeiro dia de aula gente! Vamos ter tempo suficiente para enjoar até o fim do ano! —Sorriu Kráila tentando não dar muita importância.
Elas estavam em pé na minha frente e eu as olhei impressionado. Na verdade, desde o primeiro dia que as conheci sempre me perguntei como aquilo era possível.
—O que foi? —Perguntou Kráila.
Sorri com o canto da boca olhando de uma para a outra. Elas perceberam, claro.
—Às vezes vocês me assustam!
Elas me olharam sorrindo e bateram simultaneamente no meu braço.
—Vamos embora Krá. Ele está nos chamando de feia, gorda e sem sal.
—Sério Krá? Nem percebi.
—Ele disse em código morse.
—E desde quando você entende disso?
—Desde agora. Vamos embora. —Disse Kráila se curvando para frente dentro dos seus patins azuis.
Seguimos ela estrada abaixo.
—Desde quando vocês são sem sal? Eu acho vocês temperadas até demais!
Kráisla me olhou e sorriu. Sua irmã viu e a advertiu:
—Não ri garota. Não vê que ele está querendo te jantar.
—Credo Krá! Você falando assim me faz parecer um pernil de galinha.
Kráila balançou a cabeça de forma negativa e apressou os passos. Seguimos o ritmo dela. Agora o barulho dos três pares de pernas dentro dos patins era maior. Kráisla e Kráila não facilitavam as coisas nem na hora de se falarem. Isso confundia bastante as pessoas. Até mesmo eu que ainda estava aprendendo a distinguir uma da outra. Dobramos os joelhos e aproveitamos a adrenalina da descida até pararmos ao lado de Meleca, Tartaruga e Raícha. Meleca estava de visual novo e foi alvejada de elogios. Para o início das aulas ela havia pintado o cabelo de castanho jambo com mechas azuis.
—Queria eu ter a sua coragem. —Ressaltou Kráisla.
—Eu também. —Concordou Kráila.
—Não tem segredo meus amores. É só ir no salão e pimba!
—Você tá parecendo uma arara com esse topete azul. —Riu Tartaruga.
Meleca franziu o nariz e rosnou.
—Sua bunda tá mais azul do que o meu cabelo.
—Vamos gente. Não quero chegar atrasada no meu primeiro dia de aula. —Disse Raícha montando na sua bicicleta rosa de cesto.
Meleca prendeu o chiclete nos dentes e esticou olhando de soslaio para Raícha. Em seguida montou na garupa do Tartaruga, seu irmão. Ninguém disse nada. Apenas seguimos em frente rumo ao colégio.
No pátio da escola já havia um aglomerado significativo de alunos. Reencontramos nossos colegas de sala do ano anterior e faltou tempo para colocarmos a conversa em dia. Foi uma chuva de abraços e risos sem fim. Éramos a turma mais bagunceira e unida daquela escola. E para nossa alegria a diretora informou no microfone que nossa turma permaneceria a mesma do ano anterior. Era o nosso último ano naquela escola e por algum motivo não quiseram nos separar. A empolgação era tanta que já falávamos da festa de despedida do final de ano. Animados e de sala nova, com uns cinco ou seis colegas diferentes, passamos aquela manhã quase toda nos apresentando. Os professores eram praticamente os mesmos. Claro que a atração principal ficava por conta da professora de biologia que tinha um par de seios que evidentemente não cabia numa única mão, por maior que fosse ela. Já a segunda atração ficava por conta da professora de inglês, uma morena que tinha a maior bunda do colégio. Ela tinha os quadris largos e um físico de encher os olhos de qualquer marmanjo. Aqueles atributos quase deixaram alguns reprovados no ano anterior. E pelo visto as coisas não iam ser muito diferentes naquele último ano. Tartaruga sorriu e piscou para mim quando a professora de inglês entrou na sala com uma calça apertada nos cumprimentando na outra língua. Ele também não deixou passar despercebido uma das alunas novas. Olhei para o lado e vi a garota anotando algo no caderno sobre a mesa. Como se tivesse me detectado ela olhou na minha direção e desviei os olhos rapidamente para a professora. Tartaruga riu. Ele era o sujeito mais cara de pau que eu já havia conhecido. Meleca comprimiu os lábios e estreitou os olhos na nossa direção e abanou a cabeça.
As horas passaram tão rápido naquele primeiro dia de aula que quando nos demos conta já havia terminado. Os estudantes que vinham do interior desciam às pressas para pegarem seus respectivos ônibus. Já quem morava na cidade, alguns não tinham a mínima pressa. Como nós, por exemplo. Às vezes inventávamos de bater um racha quando as coisas pareciam meio sem graça. Tartaruga cortava giro na sua motocicleta e disparava na frente com sua irmã na garupa até no pé da colina. Ficávamos para trás disputando caminho pela via ciclística da lateral da pista. Eu sempre chegava primeiro e a briga pelo segundo lugar ficava entre as irmãs gêmeas. Raícha sempre chegava por último, sem presa e sem espírito competitivo. Naquele dia Kráisla chegou em segundo lugar. Paramos embaixo da árvore para recuperarmos o fôlego e tomar os sorvetes que Meleca havia comprado. Ela abriu a sacola e cada um pegou o seu sorvete preferido.
—Muito bem. Mas não se acostumem não, por que a próxima rodada vai ser por conta do Bilê.
—Eu nada. A malada aqui é você e seu irmão.
—Deixa de ser mão de vaca Bilê. Você tem um sítio, não pode pagar seis sorvetes? —Disse Meleca fungando.
—Eu tenho um sítio, mas sou pobre cabeça de jambo. Agora você, você sim é dona de metade da cidade. Queria eu ganhar a mesada gorda que você ganha todo mês, espertinha.
—Nem é tanto assim. Depois, eu não sou dona da metade da cidade. Meu pai só tem uma lojinha de carros, só isso.
Raícha esticou os lábios, mas contraiu o riso.
—Você é muito engraçada Meleca! Mas tudo bem, pra sua felicidade eu pago a próxima rodada. —Falei sentindo o sorvete descer gelado goela abaixo. —Vou encomendar um especial de jiló pra você!
Meleca mostrou-me a língua vermelha do sorvete de morango que tomava. O dia estava quente e o sol brilhava radiante naquele infinito céu azul. Os carros passavam no asfalto jogando vento em nossos rostos e espalhando as folhas secas caídas no chão. O ônibus escolar amarelo ocre desbotado passou atrasado por nós e houve um exagerado cumprimento entre a gente. Um calango desceu o barranco e passou feito um corisco aos pés das gêmeas que gritaram feito loucas.
—Vocês quiseram assustar o bicho ou matar ele do coração? —Falou Tartaruga amassando o pote de sorvete vazio na mão e jogando dentro da caixa seca na encosta do barranco.
—Esse filho de uma puta foi que quase nos matou de susto agora! —Disse Kráisla depois de quase ter ido ao chão junto com sua irmã.
—Volta aqui seu mini dinossauro da peste! —Gritou Kráila.
—Tartaruga? —Interrompeu Raícha com o olhar atravessado.
Ele, assim como nós, voltou a atenção para Raícha.
—O que foi Raícha?
—Você jogou o pote de sorvete na vala.
—E daí?
—O lixo está a cinco metros de você, garoto.
Tartaruga franziu o nariz e deu de ombros pouco importando com o argumento da colega.
—Quando chover a água leva embora.
—Daí entope os bueiros e você vai lá desentupir.
—Ela tem razão meu amigo Tortuga. —Disse Kráisla.
—Ih, vocês estão muito nojentas hoje. Isso é conspiração ou TPM mesmo?
Raícha mostrou língua.
—Eu daria uma mordida nessa sua língua, mas você não faz o meu tipo.
—Eu conheço muito bem o seu tipo, engraçadinho.
Tartaruga franziu o cenho com certa provocação. Raícha terminou seu sorvete, pegou o copinho amassado dentro da caixa seca e caminhou até a lixeira mais próxima. Entreolhamo-nos em silêncio e a copiamos assim que terminamos nossos sorvetes. Não havia como discutir, ela estava certa. Mas era quase engraçado vê-la confrontando Tartaruga. Eles sem dúvida tinham personalidades muito diferentes. Às vezes eu tinha vontade de rir quando os dois entravam em conflito. Sim, por que Raícha era bem reservada e falava pouco e quase sempre tinha razão no que dizia. Ela era uma espécie de mentora do grupo e quando falava