O homem de barbas brancas
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O homem de barbas brancas - João Pedro Roriz
PARTE UM
Conhecimento é virtude. Ignorância é vício
1
— Papa! Papa, onde está você? — a voz inquieta da minha filha ressoava pelo quintal. — Papa!
Ela me pegou desprevenido, sentado numa pedra de nosso bosque particular.
— Está frio. Não sabe que essa hora o senhor não pode sair de casa? — brigou a moça.
Minha filha ajudou-me a levantar e, com cara de estranhamento, indagou:
— Falando sozinho de novo, papa?
Levantei-me e, ao olhar para trás, ainda pude ver o rosto de meu mestre embrulhado na barba branca.
2
Marcamos a vida das pessoas, e, depois de nossa morte, todos se esquecem do nosso nome.
Minha filha não gosta de falar sobre a morte. Está sempre buscando uma desculpa para não abordar o assunto com a dignidade exigida por um homem da minha idade.
— Prefiro não falar sobre o assunto — resmungou a jovem.
— Segundo um sábio que conheci na juventude, é mais cômodo para o homem não pensar naquilo que desconhece — argumentei.
— Venha jantar, papa. Vai gostar do que preparei pra você.
Sopa de novo... Nessas horas, lembro-me de que morremos um pouquinho todos os dias.
3
Há muito tempo, um homem resolveu medir forças com o destino. Seu nome era Sócrates. Seu rosto ainda está emoldurado na minha memória, e seus pensamentos, que jamais foram escritos, ainda estão perpetuados nos horizontes de minha longa vida.
— É chegada a hora — anunciou o carcereiro responsável por torturar o homem de barbas brancas em sua primeira estada na cadeia.
— Posso ganhar as ruas? — indagou Sócrates.
— O que faz não é mais problema meu — respondeu o algoz.
Sócrates amava seus inimigos. Quando o velho de barbas brancas se viu livre das algemas, ajoelhou-se diante do carcereiro e beijou-lhe as mãos.
— Por que me beija? — indagou o carcereiro.
— Porque a mesma mão que me surrou foi a mão que me libertou — respondeu o ex-prisioneiro. — Mais do que isso: tive ódio de você. Eu não sabia o que era o ódio até você me bater. Não é todo o dia que descobrimos o motivo pelo qual sofremos.
— Você é louco! — exclamou o algoz.
Sócrates sorriu:
— Proponho uma reflexão. Existe vida após a morte?
— Não sei — respondeu o homem.
— És um sábio — elogiou Sócrates. — Tudo que sei é que provavelmente existe vida após a vida. Ei-la!
Diante de ambos, uma janela. E através da janela havia cores distintas: um céu pintado de azul, com nuvens passageiras que viajavam indiferentes ao voo das aves de rapina.
4
Deixe-me contar algo sobre Sócrates. Pouca gente compreende a força de seu espírito. Antes de descobrir-se professor de almas, era o Senhor da Guerra.
Anos antes, todos os atenienses com idade entre 15 e 45 anos foram obrigados a lutar na Guerra do Peloponeso. E Sócrates, que possuía liderança sobre as pessoas, comandara uma grande legião formada por jovens soldados.
Sócrates possuía a alma de um guerreiro e a estirpe de um magistrado, fosse no campo de batalha, fosse na vida. Ele sempre rompeu fronteiras e avançou sobre os páramos da ignorância. Para ele, mais importante do que chegar a um local era o caminho percorrido. Nada era tão importante quanto a busca pela verdade. Sua maior descoberta se resumiu à compreensão de seus medos, imperfeições, fraquezas, inabilidades e seu total estado de ignorância.
Quanto a mim?
Eu era um adolescente quando ouvi o nome de Sócrates pela primeira vez. O homem de barbas brancas já era um mito naquela época e caminhava arrastando multidões no encalço de suas sandálias.
Eu era um jovem medroso que vivia por mendigar atenções de meu pai, Ânito, um comerciante, general do exército e político influente de nossa cidade. Meu pai, assim como muitos homens ricos de Atenas, odiava Sócrates, não só por causa de suas ideias, mas também por causa de sua influência.
5
Sempre às voltas com a política, Ânito costumava criticar a proposta de democratização das cidades-estado da Grécia. E traumatizado, como vários ex-combatentes da Guerra do Peloponeso, às vezes remoía momentos difíceis que vivera no campo de batalha:
— Sócrates é um covarde! É clara a lei que impede um general de deixar corpos de soldados insepultos no campo de batalha. Mas quando Sócrates era general, abandonou a linha de frente e bateu em retirada com os soldados que lhe restavam. Conseguimos colocá-lo na cadeia por causa dessa traição, mas agora o homem está novamente livre. Esse homem é insuportável. Levado a julgamento, defendeu-se das acusações fazendo perguntas.
— Perguntas? — indaguei. — Como assim?
— Perguntas, perguntas! — respondeu, irritado, meu pai. — Perguntas estúpidas como as suas. Se eu lhe digo: meu filho, você está errado
, o que me responde?
— Desculpe, senhor meu pai
.
— Sim, pois não. Agora imagina um homem que, quando escuta que errou, responde com uma indagação. Isso é uma afronta às autoridades! E autoridade não foi feita para ser questionada, e sim obedecida.
Meu pai havia perdido muito dinheiro com a guerra. Dono de uma fábrica de couro, quase se viu falido quando os governantes se apropriaram de toda a sua produção para vestir os soldados atenienses.
Enquanto a grande maioria dos comerciantes da cidade exigia ressarcimento dos valores extorquidos pelo Governo, meu pai, general do exército e, acima de tudo, leal ao nosso Estado, preferiu calar-se e trabalhar para reconquistar a fortuna de nossa família.
—