Cala a boca e me beija
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Sobre este e-book
Agora, prestes a completar 10 anos de crônicas semanais, Alcione — que nos últimos anos tem se dedicado ao posto de romancista — reúne em Cala a boca e me beija alguns dos melhores textos publicados no jornal mineiro. As 70 crônicas pinçadas aqui — dentre as cerca de 500 — são o resultado de uma seleção criteriosa feita pela professora da PUC–MG Glória Gomide, e têm em comum o apurado senso de observação de Alcione. O próprio título surgiu de uma discussão de uma garota com o namorado surfista no calçadão do Leblon, que chamou a atenção do escritor. Cansada do bate-boca, ela proclamou a frase, encerrando a briga.
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Cala a boca e me beija - Alcione Araújo
ressurreição
O que é uma crônica,
o que é a crônica de Alcione Araújo?
Uma crônica é um texto que relata acontecimentos que tenham chamado a atenção do autor, e não apresenta limites precisos.
Classificada como expressão literária híbrida ou múltipla, ela pode assumir várias formas — diálogos, monólogos, entrevistas —, apresentar personagens reais ou imaginárias, servir de confessionário ou apelo e assim por diante.
O certo é que ela implica a visão pessoal do criador — uma análise subjetiva frente a um fato cotidiano. Pode, portanto, ser o estímulo à sua poesia inerente ou ratificar as suas características de contador de casos e histórias.
A crônica, pois, é o reflexo do autor. É o seu poder de recriação da realidade, a tradução da sua subjetividade e a transcriação de sua sensibilidade relatada em um espaço delimitado. Já disseram que a vida é curta; talvez por isso caiba numa crônica.
Neta do folhetim, ela está sujeita a transitoriedade e pode ser fugaz como o jornal de ontem. Mas tudo depende do cronista — lembrem-se dos escritos folhetinescos de Machado de Assis. Ela sobreviverá quando seu criador agarrar seu leitor pelo coração, ou colarinho, e, no dia seguinte à sua publicação, o jornal velho tiver uma folha a menos.
O livro que você tem em mãos é uma seleção de setenta crônicas, dentre mais de duzentas, de Alcione Araújo publicadas no jornal Estado de Minas, para que os jornais (mesmo velhos) não precisem mais ser recortados.
Cala a boca e me beija
é um título sugestivo — apesar de ser uma ordem, nunca um pedido, que, se cabe na boca de qualquer um, se afirma é na exigência da juventude, a qual tem a característica da urgência.
Como um anticronos, o autor parece a cada dia rejuvenescer nos seus temas e perfaz um percurso do outonal ao adolescente, buscando no futuro os fractais da infância.
Bom ressaltar que em uma época de contaminações midiáticas os gêneros se misturam e muitas vezes uma modalidade literária, como a crônica, pode ser vista — ou melhor, lida — como um ensaio ou uma peça teatral de um só ato. Isso é notado em, por exemplo, Mistérios insondáveis
(o ensaio) e em "Arrivederci, Papai Noel" (o único ato).
Erudito na simplicidade, como em Marginália
, o autor deixa-se cair no escracho de O crachá
, na qual trafega da etimologia da palavra ao incômodo causado pelo objeto em si.
Em Meus mortos jazem em mim
, com a sensibilidade à flor da pele, vemos o amor incondicional que reserva à memória dos que fizeram sua história e já não estão — pura homenagem à construção da vida.
Provação
é uma das suas mais belas crônicas. O temor a Deus e o absurdo da situação bíblica mostram que o escritor é um homem apaixonado pela paternidade — e pela vida, o que o leva a escrever sobre o que poderia não ter escrito, levando-se em conta que religião não se discute
.
Não se engane, caro leitor, cara leitora: com certeza você se verá sob vários títulos. Caso adolescente, ou um pouco mais velho, isto é, apenas jovem, rirá com A crise de Wall Street
, Papo cabeça
, tomará seu amor nos braços e dirá: Cala a boca e me beija. E se achará nos medos dos adultos que já foram tão crianças quanto você como em Poderes invisíveis
, por exemplo.
Assim é este livro, a face e alma do autor que tem por intermédio de seus escritos o contato direto com seus leitores, os quais, por e-mails, elogiam, reclamam, mandam-lhe regalos e pedem conselhos. Alcione é um homem on-line, e, também por isso, contemporâneo. Vive e escreve no estado constante de amor ao que e a quem o cerca. Ama, portanto, o amor.
Misterioso, engraçado, macambúzio, sorumbático, alegre, intelectual, filósofo (além de engenheiro), conta casos do Rio, do seu mineiro Leblon e do mundo com a agudez de um poeta olheiro nem um pouco míope, o que ele ironicamente tende a ressaltar. Mas nenhuma observação ou palavra é escolhida ao acaso, o que faz com que seu leitor sempre se veja dentro de sua crônica.
Nada é por acaso, nem seu próprio nome. Alcione é um nome peculiar para homens — aliás, o Araújo é o único espécime masculino que conheço. Ele já disse que na verdade se chamaria Alcíone e por erro de cartório perdeu o acento. Mas mesmo sem o agudo ele é o típico representante da palavra que o nomina. Alcíone — ou Alcione para nós — é, em termos de dicionário, uma ave de canto plangente, considerada pelos gregos de bom augúrio, porque passava para fazer seu ninho no mar, quando calmo — leia em Dona Alcione
. É, também, a estrela central da constelação de Plêiades, em torno da qual gira o sistema solar. O nome acarreta-lhe uma enorme responsabilidade, e talvez seja por isso que ele nunca deixa cair a peteca, ao escrever com a leveza de um pássaro e sempre escolhendo, naturalmente, temas que giram em torno do nosso universo cotidiano.
A cada semana o leitor, antes de chegar o jornal de onde foram tiradas essas crônicas, pergunta: O que ele escreverá? Falará sobre filosofia, cultura, sobre o mundo, sobre o amor, sobre crianças, avós, adolescentes? Ou contará sobre o amigo, as caminhadas, sobre as histórias ouvidas nos restaurantes ou no calçadão? Falará sobre nada?
Ah, não se assuste, já se falou que escrever crônicas é escrever sobre nada, e o nada de Alcione é muito. Ele revela em cada escrito que por trás de um ato aparentemente banal, sobre o nada, se esconde um universo de possibilidades prazerosas que é vital aproveitar em sua plenitude.
E agora, com você, descolado da página de jornal, Alcione Araújo, recomendado a adultos, jovens e adolescentes. Lê-lo faz bem a todos.
Glória Gomide
Doutora em Literaturas de Língua Portuguesa
Publicitária e professora da Faculdade de
Comunicação e Artes da PUC Minas
Desquitada
Crianças, era mínima a possibilidade de entendermos o mundo dos adultos. Não apenas pela rigorosa interdição de certos assuntos como também pela complicação criada pelos próprios adultos — que não sabiam conviver com a realidade nem, muito menos, traduzi-la para nós. Hoje, o mundo é mais aberto e os fatos, mais acessíveis, embora tenha perdido em encanto e humor.
Correu pelo bairro, em sussurros sob lençóis, atrás de portas, persianas e cortinas, em portões e salões, em costureiras, barbeiros e dentistas, que uma vizinha era desquitada — se já era ou se tornara, não sabíamos. A notícia varreu como ventania antes de temporal — restaram veladas suspeitas pairando no ar.
E nós, crianças, que quase não tínhamos passado, tínhamos mais o que fazer com o presente do que dedicá-lo à vida alheia — e o futuro... ora, o futuro não existia. Não sabíamos dizer se a desquitada tivera ou não algum marido antes — afinal, isso nada tinha a ver com o fato de ser desquitada! Filhos, não tinha.
O fato, insofismável e irremissível, pela autoridade hierárquica dos que acusavam, é que tínhamos uma vizinha desquitada — cruel condenação que, murmurada entre as grossas paredes de lares tidos como sacrossantos, tinha peso de maldição — terrível como lepra bíblica. Olhos se arregalavam, bocas se abriam, cabelos ficavam em pé de estupefação e perplexidade ao ouvirem o estigma pronunciado com todas as letras: des-qui-ta-da!
Dos nossos postos de vigia, víamos que ela andava altiva, mas sem arrogância; pisava firme, mas sem soberba; cabisbaixa, mas sem tristeza; tranquila, não desatenta; discreta, mas sem inibição; sedutora, sem vulgaridade; elegante, não artificial. Queríamos saber mais: quem ousaria falar com a desquitada?
Quando, ao pé do poste da esquina, sentados em algum muro, ou num terreno baldio, entrou em discussão a contagiosa condição da vizinha desquitada, a primeira ideia foi de que se tratava de alguma doença. Foi rejeitada: a nossa desquitada era mais que saudável, esbanjava saúde. Depois alguém disse que desquitada é mulher que não quitou as dívidas. Ouviu um silêncio de desprezo — havia famílias endividadas que não eram amaldiçoadas. Alguém disse que devia ser mulher que tinge o cabelo. Embora a nossa desquitada tingisse, a definição foi recusada porque havia mães tingidas que, no entanto, não eram desquitadas. Outro afirmou que as solteiras são desquitadas dos homens. Foi ridicularizado: solteira é solta, ainda não arranjou um homem para namorar, mas não significa que não goste. O mais silencioso de nós disse no tom grave de quem sabe o que diz: desquitada é mulher casada que tem outros namorados. Teve o impacto de uma bomba, mas fez-se silêncio constrangido: havia irmãs com mais de um namorado, embora não fossem casadas. Até que o mais pirralho de nós revelou, num sussurro envolto em mistério, que desquitada é a mulher que faz sexo. Foi desconsiderado porque era muito profundo para a sua idade. E, como ninguém se arriscava mais, nos demos conta de que definitivamente não sabíamos o que era uma desquitada.
Estávamos acabrunhados pelo impasse quando Leca chegou. Figura polêmica — pelas costas era chamada de Leca-Meleca — por ser a única menina entre nós. Era amada e odiada pelas razões mais bizarras, ou mesmo sem razão alguma, mas, em geral, por ser mais sabida e esperta do que todos nós, como acontece com as meninas. Deus meu, como a Leca sabia as coisas da vida! Aprendemos muito com os conhecimentos práticos de Leca sobre os segredos e mistérios que cercam a existência.
Para não envaidecê-la nem nos humilhar, a pergunta foi feita em tom casual, ao jeito de quem não quer nada. Leca não vacilou, e ainda tripudiou da nossa ignorância: Desquitada, seus burros, é mulher inteligente que tem muitos namorados. Todo mundo tem inveja, mas ninguém tem coragem de ser como ela. Quando eu crescer vou ser desquitada.
Leca sabia mais da vida do que os vizinhos que futricavam atrás de portas e janelas. Era pura inveja chamá-la de Leca-Meleca.
Fogueira no coração
Dona Abigail sabe que é pecado, que desobedece a ordens expressas de frei Mamede, e crê que, continuando assim, quando morrer vai torrar nas chamas do inferno. Mas não consegue conter a curiosidade. Já foi castigada, ameaçada e até tenta se controlar. Inútil. Para ela, é coisa do demônio: basta ver o monte de pedidos dos fiéis é tomada por avassaladora vontade de bisbilhotar — a curiosidade é maior que o medo do fogo eterno. Atira-se à leitura voraz dos bilhetes. Pedem namorados, noivos, maridos, companheiros. Após escarafunchar o sonho íntimo das devotas, apavorada e de alma arrependida, prostra-se de joelhos e roga clemência a Santo Antônio. O pecadilho é o único deleite de uma vida sem casamentos, prazeres nem encantos, dedicada à paróquia, da sacristia ao adro, na esperança de ser poupada das tórridas labaredas do inferno.
No último dia 14, o seguinte ao dos festejos de Santo Antônio, dona Abigail vê-se diante de um recorde de pedidos — os nomes aqui são fictícios, mas os fatos são reais. Salivando de prazer, atira-se à leitura. Passa horas fruindo a delícia de devassar os desejos confiados ao prodigioso poder do santo casamenteiro. Eis que um pedido arranca dona Abigail do seu deleite. Atônita, não acredita no que lê. Ajeita os óculos, busca mais luz, respira fundo e relê a caligrafia feminina: Meu querido e glorioso Santo Antônio, peço de todo o coração que este ano eu fique viúva.
Sem assinatura, nada identifica quem pede. Dona Abigail relê tantas vezes que teme que as letras desbotem pelo uso. Na confusão mental de escandalizada, acha que uma mulher pedir a morte do marido já é crime; e pedir ajuda a Santo Antônio, sacrilégio. Caso de dupla pena: dos homens e de Deus. Mas, para além do estupor de que está possuída, o que lhe aperta o coração é a dúvida: Conto ou não a frei Mamede?
Pois da punição do santo sabe que não escapará: Ele saberá que li os pedidos.
Aos pés da imagem, roga indulgência pelo pecado e luz para decidir.
A gargalhada de frei Mamede ecoa pela nave mal acaba de ler o pedido. Embora a risada alivie seu pavor da reprimenda, dona Abigail não acha graça: insiste em que ele chame a polícia. Porém, o sacerdote, na sua profunda compreensão humana, em vez de polícia cogita formas de chegar à autora e aliviar a angústia que supõe habitar sua alma. Porém, não há como identificá-la — a tradicional festa atrai devotos de todo canto —, e, se a encontrasse, ainda iria dever explicações sobre a quebra de sigilo postal: se é crime abrir correspondência destinada a terceiros, imagine o que será se o terceiro é um santo! Preferiu abordar a questão no sermão do domingo.
Do púlpito, comentou o absurdo de alguns pedidos a Santo Antônio e, de forma oblíqua, lembrou que se a tradição dá ao santo o poder de unir casais, não significa que resolva tudo o que acontece na tumultuada vida conjugal dos devotos. Muito menos a brigalhada: Querem a ajuda do santo em separação por motivo tão cabeludo que até o diabo duvida! Não contem com Santo Antônio para perdoar safadezas! Contem comigo!
E falou da necessidade de respeito e tolerância entre casais, mesmo num mundo perdido como este, onde existem quatro sexos. Foi tão convincente que, finda a missa, uma senhora de cabelos brancos o procurou na sacristia: era a autora do pedido.
No salão paroquial, a conversa afável e o café quente de dona Abigail abrem o coração de Eponina, 67 anos, que dispensa o dona
. Explica que pediu ajuda a Santo Antônio porque se casou aos 30 anos — tarde para quem tem uma fogueira no coração —, e isso depois de muita novena e missa, promessa e martírio, que não resolveram nada. Até que uma amiga lhe disse que o santo fora soldado e só agia se fosse maltratado. Decidida, arrancou o menino Jesus que dormia nos braços da imagem e afogou-o no pote. E ameaçou: Só devolvo quando aparecer um noivo.
Não demorou, ele surgiu. Nem bonito nem feio, nem rico nem pobre, nem inteligente nem burro. Casaram-se. Em 37 anos não me deu filhos, prazeres, alegrias, viagens, joias, sexo, nada.
E ela deu a sentença: Homem assim não pode viver. Mas nunca matei uma mosca, nem me vejo matando um homem.
E conclui: Santo Antônio, que me mandou o estrupício, tem que ajudar a me livrar dele.
Mesmo apreensivo, frei Mamede não imagina Santo Antônio antecipando morte a pedido, nem cúmplice de homicídio. Cogita outras soluções. Ela recusa: De separação, nem me fale! Separada, na minha idade, foi abandonada. Não tem chance, nem futuro. Uma viúva é livre. E tudo pode acontecer.
Depois de várias tentativas rejeitadas, e convencido de que Eponina não tem a índole nem o ímpeto das que cometem loucuras, frei Mamede desiste: Então não tem jeito.
Vendo que ela vai chorar, propõe: Mas o pedido não foi feito a mim. Agora, resta aguardar a resposta de Santo Antônio.
Ela aceita, com um sorriso de esperança.
A invisível
"Ai, esse vai parar! Ai, meu Deus, tomara que... Tá encostando... Precisa ligar esse farolzão na minha cara? Ihhh... Droga, carro pequenininho! Esse cara não tem grana pra sair comigo — outra furada, meu Deus! Tenho que ficar esperta. Mas não tô com essa bola toda pra ficar escolhendo muito não. Só de sair desse frio e ficar um tempo dentro dum carro quentinho já valia. A chuva embaça o vidro, não consigo ver lá dentro. E agora, que que eu faço? Fico quieta,