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Do Pinheiro torto ao vasto mundo
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E-book357 páginas4 horas

Do Pinheiro torto ao vasto mundo

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Sobre este e-book

No tempo das sesmarias, em uma fazenda no interior do Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, próxima à cidade de Passo Fundo, havia um enorme pinheiro torto, que deu nome à região e a uma propriedade que pertencia a seus antepassados. Paulo Ernani Rezende de Rezende de lá partiu jovem, aos 19 anos, em 1960, para Moscou para cursar Medicina. Paulo Rezende – como o chamavam na Universidade da Amizade dos Povos Patrice Lumumba (UAPPL) – viveu na Rússia em tempos de Guerra Fria, corrida espacial e grandes tensões, sempre atuante, dentro e fora da universidade. Naqueles momentos de efervescência política internacional, especializou-se, na França, como médico anestesista reanimador (UTI) e retornou a um Brasil diferente, no ano de 1967, no qual reinava o arbítrio de uma ditadura militar. Chegou a ser preso em Porto Alegre e em São Paulo, mas optou pelo autoexílio, tendo, inclusive, obtido a cidadania francesa. Filiou-se ao PS (Partido Socialista), foi membro da Comissão de Saúde Nacional e participou ativamente da construção do sistema francês de saúde. Dentre suas missões, coordenou a implantação do Samu192 no Brasil, numa parceria com a França, e atuou em outros países da América Latina. Na África foi um dos líderes do programa Esther para atender as pessoas vivendo com o VIH/SIDA. Paulo Ernani Rezende de Rezende sempre teve um amor instintivo pelas viagens, tendo conhecido todos os continentes, exceto Antártica e Oceania. Nesta autobiografia registra sua trajetória e, aos 80 anos, revendo suas memórias, pôde comprovar que foi persistente na busca de unidade entre ação e pensamento, desde quando saiu do Pinheiro Torto para enfrentar e conhecer este vasto mundo.
IdiomaPortuguês
EditoraLibretos
Data de lançamento30 de set. de 2020
ISBN9786586264197
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    Do Pinheiro torto ao vasto mundo - Paulo Ernani Rezende de Rezende

    Dedico estas memórias

    À minha esposa Annelise,

    que gentilmente trabalhou na versão em francês

    À Nina Kolarek,

    que ajudou na versão em português

    Às minhas filhas Belka e Jenny

    À minha sobrinha Monika

    Em memória de meus companheiros de militância,

    em especial Thomas Meireles Neto, assassinados no Brasil durante a ditadura militar na luta pela liberdade,

    sempre presentes na minha lembrança.

    Strasbourg, 2020   

    O melro

    O melro, eu conheci-o:

    Era negro, vibrante, luzidio,

    Madrugador, jovial;

    Logo de manhã cedo

    Começava a soltar, dentre o arvoredo,

    Verdadeiras risadas de cristal.

    E assim que o padre-cura abria a porta

    Que dá para o passal,

    Repicando umas finas ironias,

    O melro, dentre a horta,

    Dizia-lhe: Bons dias!

    E o velho padre-cura

    Não gostava daquelas cortesias.

    O cura era um velhote conservado,

    Malicioso, alegre, prazenteiro;

    Não tinha pombas brancas no telhado,

    Nem rosas no canteiro:

    Andava às lebres pelo monte, a pé,

    livre de reumatismos,

    Graças a Deus, e graças a Noé.

    O melro desprezava os exorcismos

    Que o padre lhe dizia:

    cantava, assobiava alegremente;

    Até que ultimamente

    O velho disse um dia:

    "Nada, já não tem jeito! este ladrão

    Dá cabo dos trigais!

    Qual seria a razão

    Por que Deus fez os melros e os pardais?!"

    (...)

    Guerra Junqueiro

    O mapa

    Olho o mapa da cidade

    Como quem examinasse

    A anatomia de um corpo...

    (E nem que fosse o meu corpo!)

    Sinto uma dor infinita

    Das ruas de Porto Alegre

    Onde jamais passarei...

    Há tanta esquina esquisita,

    Tanta nuança de paredes,

    Há tanta moça bonita

    Nas ruas que não andei

    (E há uma rua encantada

    Que nem em sonhos sonhei...)

    Quando eu for, um dia desses,

    Poeira ou folha levada

    No vento da madrugada,

    Serei um pouco do nada

    Invisível, delicioso

    Que faz com que o teu ar

    Pareça mais um olhar,

    Suave mistério amoroso,

    Cidade de meu andar

    (Deste já tão longo andar!)

    E talvez de meu repouso...

    Mario Quintana

    Apresentação

    Em agosto de 1960, aos dezenove anos de idade, Paulo Rezende – como o chamávamos na Universidade da Amizade dos Povos Patrice Lumumba (UAPPL) – chegou a Moscou para cursar Medicina. A UAPPL havia sido criada pelo premier soviético Nikita Khrushchev em fevereiro daquele mesmo ano e iniciava uma tarefa grandiosa de formar estudantes de mais de 80 países em desenvolvimento da América Latina, Ásia, África e das mais diferentes repúblicas da URSS. Em sua autobiografia, Paulo relata de forma viva e atraente toda a sua experiência de vida como estudante, profissional da área de medicina e ativista político.

    Em tempos de Guerra Fria e da corrida espacial, de grandes tensões, de efervescência política internacional e de contradições geopolíticas entre as potências ocidentais (sob a liderança dos EUA) e a União Soviética (e seus aliados do bloco de países socialistas), Paulo conviveu durante anos com jovens estudantes de diferentes nacionalidades e nunca se omitiu. Foi um dos primeiros presidentes da nossa Associação de Estudantes Brasileiros na UAPPL e esteve sempre presente em todas as atividades políticas e estudantis, seja dentro da universidade, nos atos e protestos relacionados com a crise dos mísseis entre os EUA e a URSS, seja nas manifestações contra as guerras da Argélia e do Vietnã, na participação no Fórum Internacional da Juventude realizado naquele período em Moscou.

    Ao terminar seu curso de Medicina Geral em Moscou especializou-se na França como médico anestesista reanimador. Retornou a um Brasil diferente no ano de 1967, no qual reinava o arbítrio de uma ditadura militar. Em determinado momento sentiu a pressão aumentar em torno de si: chegou a ser preso no Dops de Porto Alegre e depois no Doi-Codi em São Paulo. Antes que a situação piorasse, optou pelo exílio na França, onde durante toda a sua vida desenvolveu uma carreira brilhante, tendo, inclusive, obtido a cidadania francesa, filiou-se ao PS (Partido Socialista) e foi membro da Comissão Nacional de Saúde do PS. Participou ativamente da construção da informatização dos hospitais franceses com o projeto PMSI (Programa de Medicalização dos Sistemas de Informação) e coordenou o processo de criação do CdAM (Catálogo dos Atos Médicos). Foi conselheiro de vários ministros que passaram pela pasta da Saúde da França.

    Nos atentados terroristas de novembro de 2015 em Paris, perpetrados pelo Estado Islâmico, que causaram centenas de mortos e feridos em Paris, The Lancet publicou um artigo em suas edições em inglês e francês sobre a participação de médicos do Samu de Paris, que se mobilizaram de forma competente e com alto profissionalismo para socorrer e tratar os feridos naqueles atentados.

    Paulo esteve presente nos embates e polêmicas que ocorreram durante a busca de soluções para os sérios problemas dentro do país, frente às contradições surgidas com as investidas neoliberais dos adeptos da noção do hospital-empresa na tentativa de asfixiar a saúde pública como forma de auferir maiores lucros às custas do erário, dentre outros problemas.

    Paulo participou ativamente de várias missões internacionais representando o Ministério da Saúde. Uma de suas atividades de destaque foi a implantação no Brasil do Samu192 – numa parceria entre o Brasil e a França –, bem como do programa EuroSocial, com financiamento da União Europeia e a participação de todos os países da América Latina. Na África foi um dos líderes do programa Esther para atender as pessoas vivendo com o VIH/SIDA, financiado pelo Ministério da Saúde francês.

    As viagens turísticas ou em missões realizadas por conta do ministério francês feitas por ele ao redor do mundo e relatadas nesta sua autobiografia proporcionam um panorama histórico-político que permite ao leitor elevar-se culturalmente. Percebe-se neste relato uma virtude consubstanciada no fato de que Paulo conseguiu em toda a sua trajetória de vida atingir uma unidade entre pensamento e ação que representa um instrumento e um compromisso na luta em prol de uma saúde pública dirigida para o bem-estar dos cidadãos.

    Boa leitura.

    Emerson Leal¹

    11. Formou-se em Física Teórica na Universidade da Amizade dos Povos Patrice Lumumba de Moscou; docente e pesquisador nas universidades de Brasília (UnB) e Federal de S. Carlos (UFSCar); doutor em Física Atômica e Molecular pela USP de S. Carlos; chefe do Departamento de Física da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), membro do Conselho Interdepartamental das Faculdades de Ciências Exatas, do Conselho de Ensino e Pesquisa e do Conselho Universitário da UFSCar; vereador pelo PMDB e vice-prefeito por dois mandatos na cidade de São Carlos/SP, nas décadas de 1990, e de 2004 a 2012, respectivamente.

    I

    Introdução

    O sítio de meu avô se chamava Pinheiro Torto, pois nos tempos bem antigos havia um enorme pinheiro torto que deu o nome à região. Meu tataravô Cândido Joaquim de Rezende tinha uma grande sesmaria doada pelos governantes da época, começo do século XlX, a fim de povoar o Rio Grande e defender as fronteiras contra os castelhanos, que nos invadiam todo tempo. Quando meu bisavô João Gabriel morreu a fazenda foi dividida entre seus filhos Vicente, Manuel e Antônio, que compraram as partes de seus irmãos Francisco, Sebastião e irmã Arlinda.

    Durante muitos anos fiquei em dúvida se deveria ou não escrever um dia as minhas memórias e em que língua. Em português ou em francês? Sempre gostei muito de biografias e autobiografias, mas nunca tive interesse em escrever a minha. Na verdade, foi minha filha Belka (Isabel-Maria Rezende de Rezende) que sempre insistiu muito. A outra pessoa que me incentivou para que eu a escrevesse foi a minha querida esposa Annelise de Rezende-Klein.

    Grande apoio veio também de minha sobrinha Monika de Rezende Grond, filha de minha irmã Esir de Rezende Grond, e das amigas de luta Maristela Pimentel e Alves, morando em Berlim, e Nina Kolarek, em Colmar, perto de Strasbourg.

    Como as minhas memórias interessariam mais aos brasileiros, resolvi escrever em português e em seguida traduzirei para o francês com a ajuda de Annelise, professora do idioma.

    É impossível prever o momento de meu fim, pois na minha idade os dias à disposição são dias de graça. Em 11 de novembro de 2020 eu comemoro 80 anos. A saúde vai de razoável a boa e sempre lembro de meu pai, que faleceu aos 92 anos, dormindo.

    Quando comecei a escrever as memórias de infância, adolescência e idade adulta fiquei impressionado com a associação de segmentos hiperprecisos gravados em minha mente. Isso é chamado de memória retrógrada: esquecemos o que aconteceu ontem – onde pus o meu celular? –, mas lembramos os eventos de anos atrás. Qualquer autobiografia é necessariamente uma representação do passado, uma elaboração entre o que existia na realidade associada a outras fontes de memória, todas sintetizadas para fazer uma lembrança. A partir do momento em que uma história pessoal é socializada ela se torna um mito, e uma história mítica não é uma mentira. Conta um mundo visto através de uma lupa que amplia o segmento daquela realidade.

    Agora, então, entrego a vocês estas memórias, certamente com imperfeições, erros e esquecimentos. Memórias escritas com o coração e a alma, com determinação de luta e de combate. Com certeza, minha vida e minha luta continuam. Sempre gostei da História com H maiúsculo e das estórias, que sempre dão um tom picante à História.

    Tive um amor instintivo pelas viagens à Rússia, à Ásia Central, ao Oriente Próximo, ao Cáucaso, ao Egito, à Grécia, ao México, às américas Central e do Sul, aos Estados Unidos e ao Canadá, à Europa, à Tunísia, ao Marrocos, à Africa Subsaariana, sem falar do Brasil, que verdadeiramente conheci durante a implantação do Samu192, entre os anos de 1995 e 2005. Visitei todos os continentes, exceto Antártica e Oceania.

    Em 2020 o Brasil vive um momento muito triste e complicado, com um presidente de extrema-direita sem nenhuma cultura, que se explicita de forma concreta no autoritarismo deste governo. Nunca antes na história do nosso país tivemos um presidente tão tosco. Também pudera, os que votaram nele pouco se importaram com o fato de que ele não tivesse apresentado enquanto candidato nenhum projeto ou programa de governo. A única informação que os eleitores tinham dele é que havia sido um parlamentar medíocre do baixo clero no Congresso Nacional.

    Quando eu estava no Ministério da Saúde francês tinha muito orgulho de ser também brasileiro. Os meus colegas diziam: O Paulo é um francês tremendamente brasileiro. Hoje, confesso, tenho vergonha por tudo que acontece em nosso país. No começo do mandato do atual presidente, todo mundo me perguntava: Paulo, o que acontece no Brasil?. Agora ninguém mais questiona, pois com tudo o que publica a mídia francesa, todos estão a par.

    Lendo estas minhas memórias todos poderão ver que eu sempre tive muita sorte na vida. Em várias ocasiões, em situações difíceis, complicadas ou felizes, consegui me sair bem. Será que nasci com uma boa estrela? Como se diz em francês: Naitre sous une bonne étoile...

    II

    De Passo Fundo a Moscou

    No começo foi a vontade de viajar, certamente herança de meus antepassados portugueses: Navegar é preciso. Já aos 10 anos de idade, abrindo o atlas de minha mãe, eu passava o dedo entre Moscou e Vladivostok e dizia para as minhas irmãs que um dia eu ainda faria essa viagem. Não sei se terei tempo.

    A oportunidade se apresentou quando, em maio de 1960, o Correio do Povo, tradicional jornal de Porto Alegre, publicou uma breve notícia. Tratava do anúncio de que a União Soviética estava oferecendo bolsas de estudo a jovens dos países do Terceiro Mundo na recém-fundada Universidade da Amizade dos Povos.

    Essa notícia logo me interessou. Eu estava, então, em Porto Alegre fazendo o cursinho para o vestibular na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Assim, escrevi uma carta de candidatura à Universidade da Amizade dos Povos em Moscou. Qual não foi a minha surpresa quando, uns 15 dias depois, recebi uma resposta na qual estava aceito na faculdade.

    Eu tinha então 19 anos; mas como chegar a Moscou? O Brasil não tinha relações diplomáticas com a URSS. Estávamos em um período interessante da democracia, com o governo de Juscelino Kubitschek e a fundação da nova capital Brasília. As eleições para presidente da República estavam programadas para dia 3 de outubro daquele ano. Os candidatos eram o general Teixeira Lott, por uma união de centro-esquerda entre o PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) e o PSD (Partido Social Democrático), e Jânio Quadros, pela direita, pela UDN (União Democrática Nacional), além de outros pequenos partidos de direita. Para a vice-presidência foi candidato o senador João Goulart. Naquela época a eleição era feita separadamente: um voto para presidente, outro para vice. O eleitor podia votar, por exemplo, no Jânio para presidente e no Jango para vice, e foi o que aconteceu.

    Lembro de ter lido em um jornal que a Air France tinha inaugurado uma ligação aérea entre Paris e Moscou. Fui então até a agência da empresa em Porto Alegre, na Avenida Borges de Medeiros, e mostrei-lhes a resposta da universidade, propondo que enviassem um telex à entidade moscovita explicando que uma passagem Rio-Paris-Moscou deveria ser enviada para aquele escritório da Air France. O que foi feito. A passagem chegou dias depois. Foi tudo fácil e rápido: peguei um avião da Varig para o Rio de Janeiro e depois para Paris e Moscou.

    A minha ida a Moscou repercutiu muito em Passo Fundo-RS, minha cidade natal. Houve protestos, principalmente do cônego da catedral, que não compreendia como era possível que os meus pais, de tradicional família da cidade, deixassem o seu único filho ir cursar uma universidade na Rússia, um país comunista. Meus pais apoiaram minha escolha e meus amigos de Passo Fundo me ofereceram um churrasco de despedida. A sala estava cheia e o discurso foi feito por meu colega Miguel Kozma.

    Cheguei então ao Rio de Janeiro, e a primeira coisa que fiz foi ir à Praia do Flamengo, 132, sede da UNE (União Nacional de Estudantes), para visitar meu primo e amigo Paulo Totti, eleito vice-presidente da entidade em 1959.

    Assim foi que cheguei a Paris e hospedei-me no Grande Hotel Saint Michel, na Rue Cujas – hotel que tinha sido recomendado por Jorge Amado em seus livros, incluindo sua gerente, Madame Sauvage. O grande escritor brasileiro contava que escrever em Salvador da Bahia não era possível, pois ele era incomodado a todo tempo por seus admiradores. Então ia para Paris, podendo se dedicar ao trabalho. A mesma coisa fazia o colombiano Gabriel García Márquez, seu amigo, também cliente do Grande Hotel Saint Michel, que de grande não tinha nada. Era um modesto hotel do Quartier Latin, frequentado por intelectuais de pouco dinheiro.

    Meu pai tinha me dado 100 dólares para as despesas da viagem, o que na época era muito dinheiro e me permitiu visitar Paris, ficar hospedado e comer no restaurante da esquina entre a Rue Cujas e o Boulevard Saint Michel, o Boul’Mich dos estudantes da Sorbonne.

    Depois de visitar a Cidade Luz, o Louvre e Versailles, do dinheiro de meu pai ainda me sobraram 40 dólares. O que fiz desses 40 dólares contarei depois. Após 15 dias em Paris pensei que já era suficiente e me apresentei no consulado da URSS para a obtenção do meu visto. Cheguei então a Moscou, e representantes da Universidade da Amizade dos Povos me esperavam no aeroporto. Foi tudo extremamente fácil.

    Por que comecei estas memórias pela URSS? Toda a minha vida foi fruto dessa escolha, e até hoje, aos quase 80 anos, recordo do que esta viagem representou para mim. Eu sempre fui (e sou) extremamente agradecido a esse país, que me permitiu fazer Medicina gratuitamente, com bolsa de 90 rublos por mês – em torno de 100 dólares segundo o câmbio da época. A Universidade da Amizade dos Povos era (e é) uma instituição de ensino e pesquisa considerada como uma das três mais prestigiosas da Rússia, juntamente com a Universidade Estatal de Moscou e a Universidade de São Petersburgo.

    A UAP foi fundada em 5 de fevereiro de 1960, pelo então dirigente soviético Nikita Khrushchev, durante uma viagem oficial à Indonésia a fim de proporcionar uma educação de qualidade principalmente a jovens do Terceiro Mundo, de países da Ásia, África e América Latina. Naquela época 75% de seus 7 mil alunos eram estrangeiros.

    Originalmente chamava-se simplesmente Universidade da Amizade dos Povos. Em 22 de fevereiro de 1961 seu nome passou para Universidade da Amizade dos Povos Patrice Lumumba, em memória do líder anticolonialista e depois primeiro-ministro do Congo (ex-Belga), deposto por um golpe militar articulado pela CIA e posteriormente assassinado por rebeldes separatistas de Katanga, rica região de inúmeros minerais que interessavam às potências ocidentais.

    Na época as autoridades universitárias tinham decidido fazer uma assembleia geral na qual os estudantes deveriam votar sobre a inclusão do nome de Patrice Lumumba no da universidade. Para nossa surpresa a proposta foi rejeitada por uma maioria dos estudantes. Como o voto era somente consultativo, o Soviete Supremo da URSS publicou uma semana depois um decreto mudando o nome da universidade, que foi alterado novamente em 5 de fevereiro 1992, passando a ser chamada Universidade Russa da Amizade dos Povos (URAP), vinculada à Federação da Rússia. Hoje os cursos não são mais gratuitos.

    Entre os 700 mil estrangeiros que estudaram na UAPPL de 1960 até hoje, mais de mil foram brasileiros. Eu fui da primeira turma, chegada em Moscou em agosto de 1960. Tudo era custeado pelo Estado soviético – estudos, passagens aéreas, livros, hospedagem. A universidade formava quadros técnicos – médicos, advogados internacionais, engenheiros, agrônomos, físicos, linguistas – sem viés político.

    O problema era o retorno ao Brasil. Voltei para o país em agosto de 1967 com minha esposa, Anneta Alexandrovskaia Rezende de Rezende, e nossa filha Isabel-Maria Rezende de Rezende (Belka para a família). Muitos de nós tivemos dificuldades para reconhecer nossos diplomas, pois havia durante a ditadura uma circular secreta do Ministério da Educação determinando o não reconhecimento dos cursos realizados em Moscou. Afinal, de 1964 até 1985 estivemos em plena ditadura militar. O golpe de 1° de abril de 1964 depôs o presidente João Goulart, o Jango. Voltar de Moscou com diploma soviético não era tão simples.

    III

    Do Grupo Escolar Protásio Alves

    ao Instituto Educacional de Passo Fundo

    Eu nasci no dia 11 de novembro de 1940 no Hospital de Caridade de Passo Fundo, cidade ao norte do Rio Grande do Sul, então com 25 mil habitantes, filho de Pedro Ribeiro de Rezende e Maria (Severo) Rezende de Rezende.

    Em março de 1947, com seis anos de idade, iniciei os estudos primários no Grupo Escolar Protásio Alves. Por que nesta escola e não diretamente no Instituto Educacional (IE) de Passo Fundo? Meus pais esperaram muito para me matricular e, quando o fizeram, não havia mais vagas no IE. Então fui alfabetizado no grupo escolar estadual. Na época, os colégios estaduais tinham reputação de qualidade. Entrei para o IE no ano letivo seguinte e lá permaneci até o terceiro científico. Minha mãe era professora no instituto de Português e História Geral.

    O IE era (e é) um colégio pertencente à Igreja Metodista. Ele começou a funcionar em 15 de março de 1920 como escola mista, ocupando um chalé de madeira feito para o uso provisório das aulas. O dinheiro para a construção de dois prédios, o principal e o internato, veio de estudantes metodistas da Universidade do Texas. Por essa razão a construção principal do colégio se chama Edifício Texas. Seu fundador foi o reverendo Jerônimo Daniel, com a participação dos missionários do sul dos Estados Unidos. Ele fazia parte das instituições metodistas do Rio Grande do Sul: o Instituto Porto Alegre (IPA), para meninos, e o Colégio Americano, para meninas, foram fundados em 1923; o Colégio Centenário de Santa Maria, para meninas, iniciou suas atividades em 1922 (ano dos 100 anos da independência), e o Colégio União de Uruguaiana, misto, foi fundado pelo francês Aleixo Vicente Vurlod em 1870. Os missionários metodistas assumiram a direção do Colégio União em 1908. Minha mãe, Maria (Severo) Rezende de Rezende, fez seus estudos no Colégio Centenário de Santa Maria de 1926 a 1928 para ser professora.

    O Instituto Educacional de Passo Fundo até 1942 era conhecido como Instituto Ginasial. Em dezembro de 1919 a Câmara Municipal da cidade ofereceu à Igreja Metodista a antiga Praça Boa Vista, situada no bairro do Boqueirão, a fim de se instalar ali um colégio modelo para a educação da juventude.

    Em 1920 o número de alunos excedeu às expectativas e foi necessário dividir o colégio em duas seções. A igreja adquiriu uma propriedade na Rua Paissandu nos fundos da Praça Boa Vista para transferir a ala dos meninos e o internato das meninas permaneceu no pavilhão da Igreja Metodista. Na administração do reverendo Daniel Betts (de 1921 a 1924), com ofertas dos alunos metodistas da Universidade de Texas, foram construídos os dois primeiros prédios: o Edifício Texas, com onze salas de aula, duas para administração e secretaria, uma biblioteca, um museu, um auditório; e o prédio Daniel Betts, para o internato masculino, situado na Rua Paissandu na esquina com a Rua Coronel Miranda, com capacidade para 50 alunos internos e ainda a residência do diretor do internato. No ano de 2020 o IE completou cem anos, em um momento de grandes comemorações.

    No meu tempo, o diretor do internato era o nosso professor de História do Brasil, Oscar Kneipp. Nas aulas, o seu Kneipp dizia todo tempo território brasileiro e nós alunos nos divertíamos em contar quantas vezes ele repetia.

    O lema da colégio escolhido pelos seus fundadores é Disciplina Praesidium Civitatis, que quer dizer: a disciplina é a garantia da civilização. E para o esporte, mens sana in corpore sano, que significa uma mente sã em um corpo são.

    A influência do IE na vida de seus alunos foi sempre evidente. No encontro de ex-estudantes realizado em abril de 1994 cerca de oitocentos estiveram presentes, dentre eles ilustres personalidades como prefeitos de seis municípios, incluindo o de Passo Fundo, políticos de renome municipal, estadual e federal, juízes e profissionais liberais das mais diversas áreas. Também compareceram os que dedicaram dons e talentos como diretores do IE, leigos e pastores. Dentre os reitores gostaria de destacar o professor William Richard Schisler e sua esposa dona Frances, que serviram ao IE de 1930 a 1957, ano de sua aposentadoria, com alguns intervalos para atender solicitações da Junta de Missões da Igreja Metodista dos Estados Unidos, que os enviara como missionários para servir no Brasil.

    Entre os docentes, gostaria de destacar dona Luísa Blanc Ferreira, originária da Suíça romanda, professora de Francês e também de Religião. Nas aulas de religião, que coloco entre aspas, a cada ano estudávamos a vida de uma pessoa que poderia servir de exemplo para nós, adolescentes. Assim é que aprendemos sobre a trajetória de sir Wilfred Greenfell, médico e missionário inglês na Terra Nova e Labrador, no Canadá. Para nós, jovens, foi extraordinário conhecer sua vida durante um ano, os frios extremos da península do Labrador e os esquimós. Depois, no ano seguinte, passamos do Labrador para a África Austral da segunda metade do século XIX. Da mesma forma estudamos a vida de David Livingstone, médico, missionário protestante e explorador escocês que contribuiu ao mesmo tempo para o desenvolvimento do império britânico, a luta contra a escravidão, o tráfico de escravos e a evangelização do sul do continente africano.

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