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O Resgate
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E-book347 páginas4 horas

O Resgate

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Sobre este e-book

"O Resgate" é o quarto volume de uma tetralogia, com três romances já publicados, "A Boneca Platinada", "O Comando Negro" e "As Joias da Coroa". Contam-se neles as aventuras do investigador Medeiros, lotado num distrito policial de um dos bairros mais violentos da cidade de São Paulo. Íntegro e incorruptível, dono de muita determinação, utiliza métodos de investigação pouco ortodoxos, através dos quais procura deslindar complexos casos criminais.
No presente livro, ele é procurado por um antigo colega do curso de Direito, que quer contratá-lo para seguir a esposa, cujo comportamento vem-se mostrando muito estranho. Afastado da corporação para tratar da saúde e necessitando de dinheiro, Medeiros, ainda que relutantemente, aceita a missão. Contudo, logo que se põe no encalço da mulher, vê-se enredado numa complicada trama, em que há sequestro, chantagem e tráfico de drogas.
Contando tão só com sua tenacidade e coragem e com o auxílio do seu amigo e colega de corporação, o investigador Bellochio, parte para uma investigação que o leva a enfrentar traficantes e bandidos de máfias internacionais, no Brasil e no exterior.
Com ação eletrizante, a narrativa, conduzida pela voz irônica de Medeiros, tem todos os elementos essenciais de uma boa ficção policial, envolvendo o leitor com o que é fundamental no gênero: a ação contínua, o mistério, o suspense.

IdiomaPortuguês
Data de lançamento20 de set. de 2020
ISBN9781393603832
O Resgate

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    O Resgate - Álvaro Cardoso Gomes

    1

    Chegando na H. Stern, dei com a Ingrid ocupada com uma cliente. Ao me ver, sorriu e fez um aceno, apontando um banquinho no fundo da loja. Obediente, abanei a cauda, feito um pequinês, e fui me sentar. A dona que a Ingrid atendia, parecida com a manicure de Nefertite, tinha a cara cheia de botox e o cabelo ralo pintado de acaju. Usava tantos brincos, pulseiras, relógio, anéis, colares que lembrava uma árvore de Natal. Só faltavam a neve artificial, as luzinhas piscando e uma estrela no cocuruto. Era exigente e ríspida, mas a Ingrid não deixava de sorrir. Com a paciência de uma freira carmelita, descrevia a qualidade, o formato, a procedência das joias:

    – A senhora veja este colar de rubis. São muito bonitos. As pedras vêm da Índia, a armação foi feita por ourives holandeses...

    Como a mulher balançava a cabeça, mostrando insatisfação, Ingrid levantou para pegar mais algumas joias na vitrine. Voltou a sentar, com um mostruário na mão.

    – Não, não, mocinha. Você ainda não entendeu que isso não orna comigo? Estava pensando em outra coisa mais fina – reclamou a dona com uma voz rascante como uma lixa.

    O que devia ornar com ela seria com certeza uma melancia dependurada do pescoço. Ingrid levantou de novo, atendendo a um dedão impertinente, que apontava para uma peça na vitrine. Nisto, era agradecido à madame, porque então podia contemplar a bundinha que tanto me encantava.

    Ingrid voltou a sentar diante da coroa para lhe mostrar as joias. Nesse momento, apareceram na entrada da loja dois homens de terno, gravata, óculos escuros e maletas. Um deles, um albino bem magro, trazia o cabelo comprido preso num coque. O outro, mais forte, a cara bexiguenta, era careca. Desconfiei deles no ato. Meu sexto sentido – e ele não costuma errar – me dizia que estavam em vias de cometer um assalto. Levei a mão à coronha do Colt, escondido na cintura, sob a camisa fora da calça. Estava afastado de minhas funções, mas o hábito fazia que sempre saísse armado. E não errei em minha intuição. O albino tirou uma submetralhadora 9 mm da maleta e gritou:

    – Todo mundo no chão!

    Um revólver nada podia contra uma submetralhadora. Obedeci no ato, e o mesmo fez uma velhota a meu lado. Uma mocinha, que experimentava umas alianças, desmaiou, caindo sobre minhas pernas. Mas a madame permaneceu sentada, olhando fixo para os vagabundos. Era por soberba ou se cagando de medo? Por menos que isso, aquela gente atirava. O bexiguento lhe meteu uma cacetada na cabeça com a coronha de um Magnum .357. A dona deu um grito agudo e desabou. O albino veio até perto de mim, apontando a submetralhadora. O bexiguento jogou uma maleta sobre o balcão. Agarrou a Ingrid pelos cabelos e encostou o revólver na cabeça dela. E, dando uma sacudida na garota, rosnou feito um cão danado:

    – Vai passando as joias!

    A Ingrid soltou um gemido. Senti o sangue ferver, mas não podia fazer nada com a submetralhadora apontada para mim. Suicídio pensar em reagir. Soluçando e forçada pelo vagabundo, Ingrid foi esvaziando as prateleiras e enfiando as joias na maleta.

    – O cofre! – o bandido ordenou.

    De tão apavorada, Ingrid hesitou antes de responder. Foi o motivo para o filho da puta lhe dar um puxão mais forte nos cabelos. Ela gritou e disse, entre soluços:

    – Ai! Ai! Você está me machucando.

    – É pra machucar, sua vagabunda! O cofre!

    – Só o gerente que pode abrir.

    – Cadê o gerente?

    – Foi almoçar – gemeu.

    O bexiguento largou do cabelo da Ingrid.

    – Foda-se o gerente! Se ele não tá aí, você é que vai abrir essa porra, senão te apago! – berrou.

    Com o canto do olho, dei uma espiada no bandido que me vigiava. O albino tinha se virado para trás, observando a cena. Estava dando bandeira. Devagar e sem gestos bruscos, agarrei a coronha do Colt. Precisava ter muita calma e só agir na hora certa. Ainda mais porque o bexiguento continuava com o Magnum apontado para a cabeça da Ingrid.

    – Sei onde tá o cofre – insistiu o bandido.

    – Mas a chave... – gemeu a Ingrid.

    – O cofre tá aí embaixo do balcão, sua vagabunda! Abre logo! – ameaçou, arreganhando os dentes de cachorro doido.

    Conhecia bandidos desse tipo. Se a Ingrid não abrisse o cofre, coisa que não ia poder fazer por não ter a chave, ele atirava sem dó nem piedade. A situação tinha, pois, chegado ao limite.

    Apavorada, a Ingrid não se moveu, o vagabundo avançou o braço e a empurrou com força contra as prateleiras. Mas, com esse movimento, abaixou o Magnum. Não perdi a oportunidade. Saquei o Colt e disparei duas vezes. Acertei o bexiguento na cabeça e o albino na barriga. Foi uma gritaria só na loja. No meio da zoeira, o coração batendo a mil, me levantei. A primeira coisa que fiz foi chegar junto do albino. Deitado de costas, gemia, as duas mãos sobre o ferimento. O cara já era. Catei a submetralhadora, fui até o outro vagabundo e vi que ele tinha caído sobre a madame, que continuava desmaiada. Com o pé, arredei o elemento de cima dela. Enfiei o Colt na cintura, peguei também o Magnum e pulei o balcão. Deixei as armas num canto e fui até a Ingrid. Ajoelhada, encostada a um armário, sacudida pelos soluços, estava em estado de choque. Abracei-a e, enquanto lhe acariciava os cabelos, disse:

    – Calma, minha querida, calma, já passou...

    Sem deixar de chorar, ela se agarrou em mim e enfiou a cara no meu peito. Nesse instante, a loja foi invadida por um bando de homens de preto. Se fossem os comparsas dos vagabundos, estava fodido. Mas não, eram apenas os seguranças do shopping. Olharam espantados para o bexiguento morto e o albino agonizante. Um deles, que parecia ser o chefe, me olhou interrogativamente. Enfiei a mão no bolso, peguei a carteira funcional e mostrei.

    – Foi o senhor que fez isso? – perguntou, como se não acreditasse no que estava vendo.

    – Fui – disse, curto e grosso.

    Sempre abraçado à Ingrid e, com um grande esforço, me levantei. Cansado, como se tivesse dado duro o dia inteiro, suando por todos os poros, sentia as palpitações de um homem bem velho. Será que alguma coisa havia arrebentado dentro de mim? A verdade é que não tinha mais coração para ações desse tipo. Não fosse a ameaça à integridade da Ingrid, talvez não tivesse tomado uma atitude tão drástica. Ficava quietinho no meu canto, só esperando a tempestade passar. Por que arriscar a minha vida e a dos outros por causa da merda de umas joias? Mas o bexiguento estava pronto para atirar na Ingrid. Bastava ela não abrir o cofre. Vagabundos matam pessoas como matam moscas. E, por nada deste mundo, eu queria que Ingrid fosse a mosca da vez.

    2

    A Ingrid tinha telefonado, dizendo que precisava falar comigo sobre uma coisa muito especial. Marcamos então o encontro na H. Stern do Shopping Iguatemi. De lá, a gente ia sair para almoçar. Desconfiava do que ela queria me falar. E isso já me deixava alvoroçado. Mas era ridículo esse meu comportamento de adolescente correndo atrás da primeira transa. Caindo em mim, tentava me conter. É que vivia me perguntando se a Ingrid era mesmo para o meu bico. Afinal, ela não tinha nada a ver com as mulheres com que costumava me envolver. Algumas queriam me domesticar feito sagui de circo. Eram o modelo de mulher para minha mãe. De vez em quando, lá vinha a velha com a ideia maluca de me arrumar uma dona desse tipo, umas coisinhas feiosas, boas de forno e fogão e doidinhas para casar. Eu queria distância delas que nem o diabo da cruz. O outro tipo de mulher com que costumava me envolver eram as garotas que pegava na noite. Um papo, uma transa e bye, bye. Eram para mim o mesmo que a azeitona de um Martini.

    Ingrid não pertencia a nenhuma dessas categorias. Tinha lá seus rolos com um noivo que eu nem queria saber quem era. Talvez por isso, vinha resistindo às minhas investidas. Por outro lado, nem de perto lembrava as biscates que eu pegava pela noite. Tinha classe. Era esguia, loira, de olhos azuis, elegante. Apesar de todas as minhas cantadas, resistia. Ainda assim, não deixava de ser o meu sonho de consumo. Bastava ouvir sua voz, que lá ia eu atrás dela, abanando o rabinho que nem cadelinha de madame. Só que a Ingrid não atava e nem desatava. Quando muito, aceitava um ou outro convite para tomar um café ou almoçar. Mas sempre dentro do shopping, a alguns poucos metros da loja da H. Stern. Nunca via a garota fora dali, como se ela, entre aquelas paredes, se sentisse protegida contra mim.

    E, em nossos papos, só desconversava, sobretudo quando eu tentava levar a conversa para o lado que me interessava. E o que me interessava era ficar com ela, custasse o que custasse.

    – A coisa não é tão simples como você pensa, Medeiros – dizia, resistindo a mais uma de minhas investidas.

    – Afinal, você gosta ou não gosta de mim? – teimava, tentando encostar a garota contra a parede com esta pergunta ridícula.

    Abaixava a cabeça e ficava pensativa. Quando levantava o rosto, impossível resistir a seu encanto. Eu parecia um pateta, mais perdido que cego em tiroteio.

    – Gosto. Como amigo.

    Amigo, a puta que pariu! – gritava, me levantando e derrubando a cadeira. Ante o olhar espantado da Ingrid, virava as costas e a deixava ali plantada. Bom, isso era o que eu pensava em fazer porque, na verdade, ficava diante dela, muito manso, mendigando sua atenção. Puxa vida! Há quanto tempo não tinha esse tipo de sentimento. Pelo que me lembre, isso só chegou a acontecer com a Irene, uns anos atrás. Irene, ao contrário de Ingrid, era um animalzinho selvagem, que, movida pela paixão, sem muita conversa, se entregou a mim. Vivemos um amor intenso, arrasador. Mas Irene era uma página virada na minha vida, porque Irene tinha morrido, deixando um vazio. E, depois dela, vieram as garotas do cardápio de sempre. As com tesão de altar e as com tesão profissional. Nada que entusiasmasse.

    Havia conhecido a Ingrid durante uma investigação policial. Uma senhora inglesa, dona Elizabeth, tia de meu amigo Luís Carlos, me contratou para cuidar do furto de um broche de safira. Como nada entendia de joias, passei na loja da H. Stern, com a ideia de aprender alguma coisa sobre o assunto. Foi então que vi a loirinha pela primeira vez. E, logo de cara, ela me fascinou. Parecia um modelo, uma artista de cinema. O tipo de mulher em que qualquer homem ficaria vidrado. Não perdi tempo. Cheguei nela e, com a maior cara de pau, inventei uma história. Disse que ia casar e queria comprar uma joia para minha noiva. Abrindo um lindo sorriso, cheia de entusiasmo, começou a me falar sobre os diferentes tipos de pedras preciosas, suas cores, formato, origem, etc. Me mostrou anéis, pulseiras e colares do mostruário. E eu só de olho na boquinha vermelha, nos olhos azuis, nos cabelos cor de palha, no corpo esguio. No fim da conversa, achei que já chegava de tanto papo furado. Disse que não era noivo coisa nenhuma e que o motivo por estar ali era outro.

    – Então, o senhor não vai casar? O que o senhor está querendo...? – perguntou, fechando a cara.

    Me apressei em tranquilizá-la:

    – Sou da polícia. Como estou fazendo a investigação de furto de um broche de safira, precisava conhecer alguma coisa sobre o assunto.

    – Ah, o senhor é da polícia... – disse, como se não acreditasse no que eu lhe dizia.

    Olhou meu documento, tornou a olhar para mim e murmurou:

    – Investigador Douglas de Medeiros... – e acrescentou: – Então, o senhor está fazendo uma investigação?

    Era mesmo uma graça o jeito com que dizia aquilo. Não resisti e lhe passei uma cantada:

    – Que tal se a gente saísse um dia desses pra tomar um drinque?

    Ficou vermelha, o que a tornava ainda mais encantadora. Cobriu a mão direita, em que havia uma aliança de ouro, com a esquerda, e disse num fio de voz:

    – Não sei se seria conveniente...

    – Só pra gente poder conversar sossegado. Quem sabe você podia ajudar em minha investigação.

    Não disse que sim, nem que não. Marcamos um vago encontro, que terminou não acontecendo, porque o caso de dona Elizabeth teve outros desdobramentos. Depois que recuperei o broche de safira, a velha senhora foi sequestrada. Os vagabundos passaram a exigir como resgate um diamante muito precioso que ela possuía, conhecido por Espoir. Quase me fodi todo para arrancá-la das garras dos sequestradores. Como ela pertencia a uma família das mais ricas e influentes de São Paulo, o caso teve grande repercussão. E a Ingrid, para minha surpresa, depois que tudo terminou, acabou me ligando. Tinha sabido da notícia do sequestro pelos jornais. Curiosa, queria mais informações sobre o caso e sobre a joia. Conversa vai, conversa vem, disse que gostaria de ver o diamante, que conhecia de fama. Segundo ela, era um dos mais perfeitos do mundo, só equiparado a outras gemas de fama internacional, como o Cullinan, o Koinoor, o Orloff. Estava para mim. Podia tentá-la com o diamante.

    – Talvez eu conseguisse que você desse uma olhada nele...

    – Você jura?! – exclamou, entusiasmada. – Gostaria tanto de ver o Espoir! E, depois, também queria saber como é que você fez pra resolver o caso...

    – Ainda está de pé aquele meu convite pra gente tomar um drinque. Se aceitar, saímos pra conversar. E podemos fazer uma visita pra dona Elizabeth. Sou grande amigo dela e tenho certeza que receberá você e lhe mostrará o Espoir.

    Bastou um telefonema, para dona Elisabeth aceitar que eu levasse a Ingrid para ver o diamante.

    – Será um prazer recebê-los, doutor Medeiros. Mostrarei o Espoir para sua amiga com muito gosto. Afinal, os seus amigos podem ser considerados meus amigos.

    Dona Elizabeth nos aguardava, sentada na velha poltrona de sempre. Usava um vestido longo de seda, uma leve maquilagem e algumas de suas joias: uma tiara, pulseiras, colares, anéis. Tudo devia custar o olho da cara. Quando entramos, o cachorro dela, o Charles, veio ao nosso encontro abanando o rabo. No passado, costumava rosnar para mim, tentando me morder...

    – Queria lhe apresentar a minha amiga.

    As duas se beijaram.

    – Muito prazer, Ingrid Ekerot.

    – A senhorita é sueca?

    – Não, apenas descendente. Nasci no Brasil.

    Dona Elizabeth, segurando as mãos de Ingrid, fitou-a com atenção. Ela estava mesmo linda. Tinha prendido os cabelos numa grossa trança, usava um vestido bordô, com os sapatos e a bolsa combinando. No decote em , entre o começo dos seios, brilhava um pequeno rubi. Dona Elizabeth olhou para mim, tornou a olhar para Ingrid e disse, sorrindo:

    – Sua amiga, doutor Medeiros, é adorável. E muito bonita! Parece até artista de cinema...

    Ingrid enrubesceu. Notando seu embaraço, dona Elizabeth disse:

    – Bom, pelo visto, vieram para ver o diamante, não? – e apontando para uma cristaleira, num canto da sala, pediu: – Por favor, doutor Medeiros, o senhor me alcance aquela caixa de laca vermelha.

    Abri as portas e me deparei com cristais finíssimos, com porcelanas delicadas e quase transparentes e a caixa cor de vinho. Será que ela estava guardando o diamante, que valia uma fortuna, numa simples caixa dentro de uma cristaleira? A mulher era mesmo maluca! Não tinha ainda aprendido a lição. Mas o que fazer? Cada doido com sua mania.

    Entreguei-lhe a caixa, ela abriu. Os olhos de safira da Ingrid faiscaram quando viu o diamante Espoir, pendente da armação de ouro.

    – Mas..., mas é belíssimo! – exclamou, atônita. – É a joia mais linda que vi na minha vida! E olhe que, em meu trabalho, tenho visto muitas joias bonitas...

    Examinou o colar mais de perto, depois um pouco a distância sobre a mão espalmada. Devolveu-o à dona Elisabeth que disse:

    – Quer experimentar?

    – Oh, não sei se devia... – Ingrid recuou.

    Dona Elizabeth pegou o colar e entregou para mim:

    – Claro que deve! Por favor, doutor Medeiros, ponha o colar em sua amiga. Ficará muito bem no colo dela. Beleza atrai beleza.

    Ingrid quis de novo protestar, mas fui por detrás dela e tirei a correntinha com o rubi. E lhe prendi o colar no pescoço. Dona Elizabeth tinha mesmo razão: o colar ficava muitíssimo bem em Ingrid. As pedras menores, o diamante, o ouro da armação irradiavam um brilho intenso, descansando entre os seios da garota. Fiquei excitado, imaginando a Ingrid nua, apenas com o colar no pescoço. Mas dona Elizabeth me tirou do enleio, convidando a gente para sentar.

    – A senhora está de parabéns! É uma joia maravilhosa. Fantástica mesmo! – exclamou a Ingrid, lhe entregando o colar.

    Dona Elizabeth balançou a cabeça e disse com tristeza:

    – Tem razão, é mesmo uma joia maravilhosa... Pena que atiçasse a cobiça de tanta gente mal-intencionada... O doutor Medeiros lhe deve ter contado todo o caso.

    Ela tocou um sininho ao lado da poltrona e, quando a empregada veio, se voltou para mim:

    – Doutor Medeiros, para o senhor, o uísque de costume, não é?

    Ingrid saiu encantada da visita. Com dona Elizabeth, com a as histórias sobre a família dela, sobre a origem do Espoir, com as demais joias que teve oportunidade de examinar. Como especialista no assunto, disse depois que nunca na vida tinha visto uma coleção tão especial. Mas se eu pensava que, com essa gentileza de minha parte, a garota ia se entregar a mim, estava enganado. Como de costume, continuava encantadora ao telefone. Mas, nas poucas vezes em que me concedia a graça de um encontro – sempre nos cafés do shopping –, parecia mais escorregadia que peixe ensaboado. Se tentava ir um pouco mais longe, falava do noivo, do seu compromisso, do futuro casamento. Papo broxante. Mas acontece que também sou duro na queda. Por isso, insistia, mesmo sabendo que a batalha seria dura.

    Infelizmente, eu andava numa maré de azar. Nesse meio tempo que tentava chegar na Ingrid, duas coisas péssimas aconteceram. Para começar, dona Elizabeth faleceu. Teve uma forte pneumonia e, para minha tristeza, acabou morrendo. E eu, de quebra, sofri um infarto. Não bastasse a grande tristeza pela morte de minha amiga, ainda tive que implantar umas tantas pontes safenas. Como fiquei de molho no hospital durante quase uma semana, fui obrigado a me distanciar da Ingrid por uns tempos.

    Depois que deixei o hospital, pensei em ligar para a Ingrid. Mas como ainda não me sentisse nada bem, desisti da ideia. Não queria me apresentar a ela naquele estado de depressão. Aconselhado pelo Bellochio, o meu parceiro de sempre, resolvi descer para o litoral.

    – Você fica no meu apê, descansa um pouco – ele disse, para depois completar, olhando de modo depreciativo para as paredes encardidas do meu apartamento: – O que não pode é ficar neste tugúrio, curtindo fossa.

    Segui o conselho do Bellochio. Voltando para São Paulo, a minha empregada, a Bete me disse:

    – Uma moça ligou aí. Umas treis veis.

    – Uma moça? Não disse quem era?

    – Não lembro o nome. Se esqueci...

    – Você não disse que eu estava doente, não é? – perguntei, preocupado.

    – Não disse não. O senhor pediu pra não falar isso pra ninguém, né? Só disse que o senhor não tava.

    Meu coração bateu apressado. Devia ser a Ingrid. Liguei para ela. Isso, na ilusão de que, afinal, a garota se dignasse a sair comigo.

    – Medeiros! – exclamou, surpresa. – Você sumiu. Por onde tem andado? Liguei pra você várias vezes e você nunca estava em casa...

    Se ela se interessava assim por minhas andanças e tinha tentado falar comigo, era um bom sinal.

    – Andei viajando. A trabalho – inventei. Se ela soubesse que eu quase tinha viajado para o outro mundo...

    Marcamos um encontro, no qual evitei falar de minha operação. Não tem coisa pior do que chegar numa garota com esse tipo de papo. Piedade não provoca amor. Só provoca piedade, nada mais que isso. Mas ela não deixou de reparar que eu estava mais magro:

    – Puxa vida, como você emagreceu... O que aconteceu?

    – Perdi alguns quilos por conta do excesso de trabalho.

    E para não ficar explicando o que não queria explicar, tentei reatar a velha conversa de sempre. Perguntei, na lata, quando é que a gente ia sair.

    – Mas já estamos saindo... – ela disse.

    – Quero dizer, fora do shopping. Tomar um drinque num lugar aconchegante – insistia.

    – Medeiros – disse, bem séria –, você sabe que estou compromissada...

    – Desmancha o compromisso, uai.

    Como de costume, ela ficava pensando com a cabeça baixa, para, depois, erguer o rosto e dizer, dando um sorriso, iluminado pelos olhos azuis:

    – Desmanchar? Você acha que um compromisso não é uma coisa séria? – e desviava logo o assunto: – Mas me fala mais do acontece dentro de uma delegacia... Fala de sua viagem...

    – Nada de especial. A mais pura rotina.

    – Não acredito! Acho que você está me gozando, Medeiros. Se emagreceu tanto assim, não deve ter sido coisa de rotina. Conta pra mim, vai...

    Contei umas lorotas – tiroteios, perseguições pela noite, interrogatórios.

    – Então, você trabalha também com a polícia do Rio? – perguntava, curiosa.

    – Sim, de vez em quando, presto serviços pra polícia de lá.

    – Que tipo de serviço?

    Enrolava umas explicações sobre ações nas favelas do Rio, sobre as organizações criminosas. Antes que ela me perguntasse mais coisas, procurava voltar ao que me interessava:

    – O que acha da gente sair um dia desses? – e tentava fisgá-la com o assunto que parecia deixá-la excitada: – Posso contar mais sobre o funcionamento da polícia, da ação dos bandidos...

    Ficava intimidada. Ou fingia que ficava intimidada? Não sabia mais o que pensar de Ingrid. Puta merda! E eu que achava que conhecia tudo das mulheres! Ingrid me desnorteava, a ponto de sair daqueles encontros como se tivesse perdido o rumo. Ia para casa e ficava pensando nela. Pegava um livro, mas não conseguia ler além de uma página. E nem beber mais podia. Por proibição médica. Saía para passear com o Charles. O Charles era o cão felpudo que eu tinha herdado juntamente com uma grana de dona Elizabeth. Em gratidão por tudo aquilo que havia feito por ela. Nunca gostei de cães, mas do Charles fui obrigado a gostar e, mais adiante, comecei a gostar de fato. Era minha única companhia nos últimos tempos. Sobretudo quando fui forçado a entrar de licença, por causa do maldito infarto.

    Meu superior, o doutor Buari, mais conhecido por Cebolinha, me forçou a encarar uma junta médica:

    – Não se pode blincar com essas coisas. De lepente, tem outro infalto em selviço e aí...

    E se a junta médica me sugerisse somente a porra do trabalho interno? Fiquei me imaginando com a bunda numa cadeira, atrás de uma escrivaninha. Preferia estourar, em plena ação. Antes morto, que enterrado vivo na tumba de uma repartição.

    Mas, consultando a junta médica, o resultado foi pior do que imaginava. Forçado pelas circunstâncias, tive que aceitar o que não queria: um afastamento para tratar da saúde. Estava de licença e ficaria de licença até que os médicos da corporação me considerassem apto para o retorno. Nem preciso dizer que mergulhei na maior fossa. Lá me via que nem um velho, obrigado ao descanso obrigatório. Que droga as longas horas que teria que ficar sem fazer nada... Melhor se me recolhesse de vez a um asilo. E para que me recolher a um asilo, se já vivia num? Assim se parecia meu apartamento. Eta vida de bosta...

    Mas será que a minha vida na ativa tinha muito mais atrativo? A maior parte do tempo, passava investigando casinhos vagabundos, que exigiam pouco tutano ou força. Era prender um arruaceiro, levar um pequeno traficante em cana, por conta de uns pacaus de maconhas ou umas pedras de crack, botar em cana um ladrão de galinhas. Quando não tinha que resolver caso de marido batendo na mulher ou brigas de putas. E ainda por cima, precisava registrar essas merdas nuns relatórios que ninguém lia. Recebia a droga de um salário para arriscar a saúde e a vida. Morava numa espelunca. E para piorar as coisas, vivia sem perspectivas de mudança. Ainda mais um mala como eu, que não gosto de puxar o saco de ninguém e que nem sempre obedece a regulamentos. Nunca ia ser um delegado ou um polícia federal. Minha ficha não recomenda nem uma coisa nem outra. A não ser, afastamento por indisciplina e um pé na

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