Luar de Sangue
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Luar de Sangue - Dione Mara Souto da Rosa
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Capítulo I
Curitiba, Brasil
Recontando minha história
Preciso contar sobre minha vida e refazer meus caminhos. Talvez ela seja muito conturbada e controvertida, mas preciso dizer tudo o que vivi, ou melhor, como sobrevivi a perseguições implacáveis no tempo por seres misteriosos e cruéis. Meus leitores precisam entender que tive grandes responsabilidades na encarnação passada, porém nessa sou apenas o resultado de uma vulnerabilidade sem igual até encontrar minha verdadeira face. As dificuldades que surgiram no meu caminho deverão se encarregar de me fazer evoluir, só que não sei se estarei pronta para isso.
Sou Anne Rozeblit, talvez ainda um fantasma que precisa encontrar um corpo, todavia, antes de tudo, alguém que precisa encontrar o seu verdadeiro caminho.
O vento batia num intenso torvelim na janela da minha sacada no apartamento de meu pai, em Curitiba. Já passava da meia-noite quando me debrucei, completamente tonta, no parapeito, esmagando os multicoloridos amores-perfeitos. Coloquei as mãos sobre as têmporas, debatendo-me nas profundezas da desventura. Tudo girava em volta, enquanto o sangue escorria do meu pulso e eu ria de mim mesma. Sem poder continuar em pé, perdi o equilíbrio e caí sobre o piso de mármore. Chegou a hora final do sofrimento, e estava feliz comigo mesma pela coragem. Finalmente, estava livre e a morte prestes a chegar. Por um único momento, tudo estaria na mais absoluta paz.
Na manhã daquele mesmo dia, ao olhar pela janela do quarto, senti um imenso vazio na alma. A solidão consumia meu espírito e estava esquecida de toda a piedade dos céus. Um tímido sol espremia-se pela vidraça e outonais ventos insinuavam-se nas janelas, despertando tristes lembranças. Ansiava morrer naquela estação, esquecida de tudo e de todos. Desejava esquecer-me do amor perdido para sempre, do desprezo dos amigos, da perda de minha mãe, que nunca conhecera, e da indiferença de meu pai.
Minha mãe morrera quando nasci. Meu pai ainda vivia, mas estava sempre preocupado com o trabalho e com o dinheiro. Ele me ofertava tudo, exceto sua companhia. Se não fosse Elena, uma senhora que cuidava de mim e me fazia companhia, teria tentado o suicídio há muito tempo.
Olhei no espelho e percebi que estava horrível. Meus olhos destilavam a depressão que consumia, dia a dia, minha existência. Olhei meus cabelos falhados por causa da estranha mania de arrancá-los em minhas crises emocionais. Olhei para meus pulsos e eles estavam roxos. Esmurrava a parede e superfícies duras. Demorei a entender o que ocorria comigo, se é que agora entendi. Estava morrendo lentamente e, à medida que as crises chegavam, passei a provocar dor em mim mesma, aliviando meus desgostos. Produzi inúmeras lesões nos braços, antebraços e coxas. Não gosto de lembrar-me da dor que sentia quando batia a cabeça na parede e do choro devastador que tomava conta de mim, mas não parei só nessas agressões. Fazia coisas cada vez piores, todavia, isso ainda vou contar.
A dor pode ser drenada – falava uma voz dentro da minha mente. Nem podia imaginar que essa voz era a pior parte de mim, a que me queria morta. A dor emocional precisava ganhar espaço para fora do meu corpo. Estaria enlouquecendo? Sim, eu era uma completa louca e precisava de tratamento especial, mas não queria me submeter a nada que causasse mais dor, mais do que já sentia.
Acho que durante muito tempo me comportei como uma colegial. Quando conheci Dimitri, o homem mais atraente em que já havia posto os olhos, achei que poderia ter encontrado a felicidade, longe dos outros namorados que haviam passado pela minha vida com interesse naquilo que meu pai possuía. Meus castelos, porém, caíram por terra no mesmo dia da cerimônia de casamento. Nem imaginam o que ele fez comigo.
Organizei pessoalmente meu casamento. Naquela época, estava melhor da depressão, e o casamento parecia ter vindo para me salvar daquela doença. A emoção que antecedeu a cerimônia me deu grande vigor. Tive o melhor vestido de noiva que se pode imaginar! Vestido branco de seda, renda, grinalda, véu e um buquê de rosas escarlates. Meu cabelo estava impecável e me senti uma princesa. Nunca me senti muito bela, mas naquele dia estava satisfeita com o resultado da maquiagem, com os cabelos presos e a grinalda estonteante, o vestido que valorizava minhas formas. Desfrutei da sensação de parecer uma deusa.
Meu pai fez cara de surpresa:
– Meu Deus, Anne, como está linda!
Foi um conto de fadas que durou algumas horas. Dimitri era o noivo dos sonhos: cabelos claríssimos curtos, olhos azuis estonteantes, lindo e absolutamente deslumbrante naquele smoking preto. O cenário escolhido foi a chácara de meu pai, em uma esplanada de árvores verdejantes na qual foram colocados um altar, cadeiras e vários enfeites com rosas. Havia inúmeros convidados, e eu queria uma grande festa de celebração. Achei que não chegaria até o altar improvisado, pois foram tantas as sensações inusitadas: frio, calor, tremor além do medo. Dimitri estava lá, no altar, sorrindo para mim no calor escaldante daquele crepúsculo. Apenas quem caminha por uma nave nupcial conhece a emoção desse momento. Só pensava no que tinha feito para merecer um homem tão encantador.
Casamo-nos em um sábado, e Dimitri preferia a luz de velas à luz direta. Uma mania estranha, muito estranha, mas eu não o questionava. O altar foi iluminado por candelabros, deixando tudo mais aconchegante e sensual. Após o sim
, Dimitri beijou minha testa. Esperava que fosse um longo beijo de amor, mas não foi. Não tive nenhuma intimidade com ele antes do casamento. Após a cerimônia, não demorou muito para que desaparecesse de minha vista. Falava com os convidados, muito constrangida, enquanto ele sumira diante de meus olhos. Dimitri era esquisito. Pedi licença e fui procurá-lo.
A chácara de meu pai era fantástica. Um espaço destinado à natureza, com árvores e cavalos. Não muito longe dali, nasceram as mais verdes e agulheadas árvores que formavam o bosque. O sol não ousava penetrar naquele espaço. Só a luz da lua ficava ainda mais deslumbrante entre elas, e apenas um poste iluminava a entrada daquele local.
Ao me desvencilhar dos convidados, fui atrás de Dimitri. Onde estaria? Caminhei até a piscina e não o encontrei. Comecei a ficar assustada e acho que estava me desesperando quando olhei na direção do bosque. Ufa! Encontrei-o. Será que quer brincar comigo?
Fui até ele. Dimitri parecia distante, encostado em uma árvore. Era o retrato de uma estátua de marfim: pálido e imóvel. Os olhos azuis pareciam águas-marinhas brilhando naquele crepúsculo. Sorri, brincando, mas ele parecia não estar disposto a brincadeiras. Havia um brilho especial em seus olhos. Engoli em seco quando me puxou para perto dele. Repentinamente, beijou-me com ardor. Fiquei surpresa com tanta intensidade. Por um momento, nem parecia Dimitri, e um perfume extasiante destilava de sua pele. Nunca havia sentido aquele cheiro nele. Parecia outro Dimitri. Fiquei inebriada com a sensação, e por um instante cheguei a pensar que fosse outra pessoa. Seria possível? Não, claro que não.
Depois de desfrutar da mágica sensação do toque dos seus lábios, senti-o estreitar o olhar dentro do meu. Transparecia amor intenso. Será que só agora ele demonstrará paixão intensa por mim? Sorri feliz.
– Você é muito linda! Lembre-se de que eu sempre a amarei. – Deu um sorriso maravilhoso. – Não se esqueça disso.
– Você está tão romântico! É sempre tão contido comigo...
Com o dedo indicador, tocou em meus lábios:
– Shhhh... não é hora para questionar nada. Quero mais um beijo.
Durante aquele exíguo tempo em que ficamos no bosque, desfrutei de uma emoção ímpar. Gostaria de que aquele beijo durasse toda a eternidade. Pena que não se pode segurar o tempo nas mãos.
Em seguida, regressei à festa de mãos dadas com Dimitri. Descemos a escadaria que terminava no espaço ao ar livre, com mesas cercando a piscina. Soltei sua mão para cumprimentar os convidados. Ao voltar-me para ele, tinha sumido da minha vista novamente. Aquilo me causou um desconforto sem proporções. De repente, tudo girou à minha volta. Os convidados fizeram-me sentar. Tomei água e respirei fundo e não demorou até que o visse novamente. Suspirei de alívio e pareceu-me que a alma tinha voltado ao meu corpo. Sorri feliz, mas ele parecia um tanto irritado.
– Onde você estava? – ele perguntou-me.
– Como assim? – Fiquei desolada com sua indiferença.
Dimitri deu um meio sorriso e me deixou sem entender nada. Não voltou ao assunto. Durante o resto da noite, ele permaneceu distante e frio em relação a mim. Minha cabeça começou a rodar sem parar. O que estará acontecendo?
Papai fizera questão de que eu me casasse com um homem de posses e, para ele, Dimitri era o melhor pretendente. Somente mais tarde soube que ele não tinha condições, apenas pose. Bóris, meu pai, tinha engendrado meu casamento com ele havia muito tempo, desde que Andrew, o pai dele, viera da Romênia morar no Brasil. Andrew era um comerciante romeno que montara uma grande loja de objetos de arte no Brasil. Para meu pai, a união de forças com Andrew significava um avanço em suas importações, e os dois fizeram uma aliança que pareceu, por anos, indestrutível.
Na noite do casamento, eu e Dimitri viajamos em lua de mel. Tomamos um avião para São Paulo e, em seguida, deveríamos embarcar para Paris. Entretanto, não fazia parte de seus planos ir para Paris; não comigo. Alguém armou, inescrupulosamente, uma armadilha para livrar-se de mim. Após uma injeção letal, fui deixada à beira da morte na periferia de São Paulo. Fui abandonada na noite escura, num matagal, para morrer lentamente. Eu não conseguia falar nem gritar por socorro.
Por quê? Eu era muito ingênua. Com dezenove anos, não sabia nada da vida e muito menos que alguém pudesse querer acabar comigo de modo tão cruel. Dimitri me deixou naquele veículo e alguém aproveitou-se disso para dar cabo à minha vida. Abandonar-me naquele local desabitado, frio e cheio de insetos só podia ser coisa de monstro.
O pai dele e o meu queriam unir as forças em uma empreitada financeira. Não sei até que ponto seu pai foi cúmplice, mas o certo é que fui terrivelmente lesada, tanto emocional, como física e financeiramente. Só depois que soube o que fizeram com minha conta corrente é que tive certeza de que fora Dimitri a engendrar tamanha monstruosidade.
Ele descobriu as senhas das contas de minha herança e fez uma transferência para contas de terceiros, usando meu próprio computador. A ideia dele era aparentar que eu fizera aquilo antes de viajar. Instalou programas em meu computador e fez ajustes para que todos pensassem que eu teria cometido aquela atrocidade contra meu patrimônio. O pior é que ele roubou mais que dinheiro e confiança, roubou-me o amor-próprio.
Dimitri não só arrasou minha vida e meu coração, como, de modo vil, aproveitou-se de um passeio de lua de mel para mandar alguém me matar. Ele imaginava que nunca seria pego. O dinheiro foi para contas de terceiros indicados por ele, em uma transação de inúmeros beneficiários. Ele foi muito esperto ao não colocar nenhum centavo em sua conta.
Em seguida, soube que havia uma mulher pela qual ele era apaixonado e isso me destruiu por completo, explicando toda a sua frieza enquanto éramos namorados.
Quando chegamos ao lugar em que tentaram me matar mais tarde, tive um mau pressentimento. Dimitri abriu a porta do carro e me fez entrar a pretexto de ir buscar algo esquecido no porta-malas. Depois, uma pessoa encapuzada se sentou ao meu lado e violentamente aproximou-se, colocando um pano com clorofórmio sobre a minha boca, e desmaiei. Debati-me muito, sem poder respirar. Fui arremessada para fora do carro após a injeção, sem piedade, e abandonada à própria sorte. Senti dores terríveis por conta de minhas costelas quebradas, traumatismo craniano e lesões em diversas partes do corpo.
Quando tudo parecia perdido, eis que alguém apareceu naquele matagal. Não sei o que aconteceu depois de tudo aquilo, mas houve uma denúncia na polícia informando que eu estava entre a vida e a morte. Acordei em um hospital e, milagrosamente, me salvei da morte. Aquela pessoa me salvou.
Ao regressar do hospital, passei a não comer, chorava muito e dormia mais que o normal, pois tomava remédios que me deixavam dopada o tempo todo. Ninguém identificou o nome da pessoa que me salvou daquele atentado. Sinceramente, seria melhor ter morrido a suportar o resto de minha existência inútil e sem graça. Não me recuperei psicologicamente do que aconteceu. Fiquei internada, passei por terapias, e nada me trazia alegria.
Após tantas agruras, comecei com a automutilação. Julgava-me covarde por não escolher o suicídio como a melhor alternativa. Mas não demorou muito para optar por algo decisivo. Não havia razão alguma para seguir vivendo. No meu último dia – pelo menos achava que era –, não comi nada do que Elena deixou preparado, com antecedência, antes de sair de casa. Eu só queria ouvir minhas músicas favoritas. Tomei uma dose de antidepressivos e sedativos, a fim de não sentir dor e, com tristeza, olhei o crepúsculo se aproximar, com a Lua assumindo posição entre as estrelas. Fechei-me no espaçoso banheiro azulejado da minha suíte, composta de delicadas e intercaladas rosas de diminutos tamanhos, e imergi na banheira de hidromassagem. Coloquei sais e óleos perfumados. Lembrei-me do semblante de Dimitri e comecei a chorar...
Despi-me e vesti um roupão, para, em seguida, deixá-lo sobre o piso frio. Entrei na água quente e fechei os olhos. Envolveu-me uma sensação de paz e tranquilidade, e descansei por alguns instantes. Meus ferimentos ardiam sob a água. O aroma embriagante dos óleos de banho mantinha-me em contato com o mundo externo, mas minha mente vagava na desesperança. Estava sonolenta. Acho que dormi por algum tempo na banheira e só despertei em meio a uma concentração de vapor causada pela água quente, que me deixou desnorteada. Levantei-me da banheira meio tonta e, ao me enxugar, olhando o espelho, senti um súbito impulso para fazer o que desejava.
Busquei o roupão de seda estampado com motivos orientais. Não o encontrei. Caminhei pelo banheiro e percebi que estava sob meus pés. Vesti-o e voltei ao quarto. Sentei-me na cama e olhei na direção da sacada. Meus pensamentos eram confusos e alternavam com a respiração descompassada. Bruscamente, abri a gaveta do meu criado-mudo buscando um pequeno punhal guardado para a ocasião. Levantei-me e dei alguns golpes no ar. Olhei no reflexo do espelho do quarto e tive uma crise de choro. Deixei o punhal cair por um instante, mas tomei-o novamente e, olhando firmemente para a peça cortante, sentei-me na cama. Respirei fundo. O abuso de remédios deixou-me totalmente anestesiada e impotente para reverter qualquer decisão anteriormente tomada. Peguei o punhal na mão direita e, sem pensar, desferi um golpe em meu pulso esquerdo, rasgando toda a carne e nervos até sentir o sangue escorrer em abundância.
Quero morrer – pensei em desespero. – Por favor, morte, chegue logo.
Abruptamente, pus-me de pé, mas o quarto parecia rodopiar, eu estava tonta. Cambaleei para perto da mesa, na qual havia um vaso enfeitado com rosas brancas. Ao me apoiar, bati nas flores, encharcando-as com meu sangue até derrubá-las. Segui caminhando e apertei o pulso ferido, numa tentativa inconsciente de evitar mais sangramento e, na sacada, senti que o colapso final chegaria rápido. O sangue manchou o piso e fiquei mais fraca, acabando por perder o equilíbrio. Desfaleci perto da janela, batendo violentamente a cabeça no piso. Não senti mais nada, nem me restaram mais forças, e o sofrimento, então, parecia distante e irreal.
O vento açoitava as cortinas de seda da janela da sacada. Elas esbarravam no lustre do quarto, e ondas frias invadiam o ambiente, que se tingiu de sangue e silêncio. A morte veio com a mesma força do vento e galopava para me levar daquela agonia.
Todavia, na entrada do apartamento, pela porta principal, alguém interrompeu a chegada da minha morte. Alguém subiu as escadas velozmente e talvez nem subisse, voasse, pois em segundos chegou ao meu quarto. Eu restava de bruços, inconsciente.
Um homem parou na minha frente. Um perfume familiar invadiu minhas narinas, mas não consegui distinguir quem era. Ele se vestia de negro e um brilho avermelhado tomava conta de suas órbitas. Olhou o punhal ao lado do meu corpo inerte e, ao me ver desfalecida e sangrando, tomou-me em seus braços, desesperadamente, exclamando:
– Anne, não morra! – disse atormentado e enlouquecido ao me ver agonizar. – Novamente à beira da morte...
Num piscar de olhos, subiu no parapeito da janela, abriu a enorme capa negra e quebrou a vidraça do meu quarto. Mergulhamos na escuridão da noite. O estampido seco do vidro quebrado cedeu lugar ao silêncio de alguns instantes atrás. Só quando os cães ladraram no vizinho, é que houve grande comoção no prédio, e os moradores ficaram olhando para o andar do apartamento em que morava, mas eu estava longe, muito longe, nos braços de um homem estranho, sem saber quem era e o que pretendia comigo.
/
Capítulo II
Um estranho desaparecimento
Elena, a senhora que cuidava de mim, voltava apressada para casa com várias sacolas, pois já passava das dez horas da noite. Tocou o interfone fora do prédio para o porteiro abrir e aguardou um pouco, mas ninguém veio abrir a porta; desse modo, introduziu a chave na fechadura e entrou rapidamente. Chamou, ansiosa, o elevador e, ao colocar a chave na porta de entrada do apartamento, viu que estava aberta. Ficou assustada, percebendo que a sala estava imersa na escuridão. Subiu com cautela a escada, iluminada apenas por uma arandela no canto direito. Chamou-me pelo nome diversas vezes, mas não respondi.
Percebendo o silêncio, Elena seguiu alarmada pelo corredor até encontrar a porta do meu quarto semiaberta.
– Anne... está tudo bem com você? – murmurou num tom muito baixo.
Tudo continuava silencioso e Elena entrou no quarto. A porta rangeu e ela acendeu a luz, percorrendo a entrada do quarto até deparar com o vaso de rosas brancas virado no chão. Viu sinais de sangue no piso e observou um punhal no chão.
Deu um grito e vociferou:
– O que aconteceu aqui!? Anne, onde você está?
Circulou por todo o quarto. A cama estava desarrumada, os armários com as gavetas reviradas e o televisor ligado. Escutou a aproximação de sirenes e viu que a janela estava quebrada.
Elena colocou as mãos sobre a cabeça, pois estava atônita com o cenário de horror. Nem havia se recuperado do torpor, quando um ensurdecedor ruído a fez olhar para fora. A janela, ao ser quebrada, derrubou estilhaços na lateral do prédio, chamando a atenção dos vizinhos. Assaltada de pavor, começou a andar pelo quarto de um lado a outro, sem saber o que fazer.
– Meu Deus... o que está havendo aqui? Onde está Anne? Por que há tanto sangue por aqui?
Desesperada, Elena desceu alucinadamente as escadas e correu para telefonar à polícia, tendo em vista que meu pai não estava na cidade. Dentro de algum tempo, a polícia chegou e cercou o prédio, não permitindo nenhuma entrada ou saída. Fez-se uma grande multidão defronte ao edifício, com curiosos por todos os lados.
A polícia efetuou criterioso levantamento de todos os elementos relativos ao meu desaparecimento, pois pairava no ar a suspeita de um sequestro, embora não houvesse nenhum vestígio que elucidasse, com precisão, a entrada de alguém no apartamento antes de Elena. O quebra-cabeça estava sendo montado e faltavam muitas peças a serem juntadas. A polícia militar chegou antes, graças à denúncia dos moradores, e fez inspeção para tomar as providências necessárias, como requisitar a Polícia Técnica e peritos para colherem impressões digitais, materiais e pistas do ocorrido.
Elena tentou se comunicar com meu pai, que viajara a São Paulo, mas tudo o que conseguiu foi constatar que o telefone estava fora de área de cobertura. O sétimo andar foi interditado e lacrado até os peritos concluírem a vistoria. O delegado responsável pelo caso, o Dr. Nogueira, veio na sequência, enquanto os peritos estavam iniciando o trabalho. Ao conversar com Elena, o delegado percebeu o extremo nervosismo dela e, ao ser questionada, disse apenas ter dado uma rápida saída. Comentou, por fim, que ao voltar, todo aquele trágico cenário de horror estava montado.
Durante o tempo em que o delegado permaneceu no apartamento, ninguém ligou pedindo dinheiro pelo suposto sequestro. Talvez não tenha sido sequestro, o delegado pensou preocupado.
Após muitas tentativas de contato, meu pai ligou para casa e voltou para Curitiba no dia seguinte. Estava enlouquecido de desgosto e tristeza por meu desaparecimento.
– Elena... pedi que não deixasse Anne sozinha. Onde estava que não a vigiou como ordenei? – finalizou irritado.
– Eu estava na casa de minha filha, mas não demorei mais que duas horas. Quem sabe se ela foi a algum lugar e vai nos avisar depois?
Bóris ficou furioso.
– Como pode imaginar uma coisa assim? Você parece tão ingênua, mas é uma mulher vivida. Como pode desconsiderar o que está havendo aqui? Há vestígios de um crime. Anne desapareceu. O apartamento está lacrado para investigação policial. E meu telefone que não toca! – exclamou.
Elena baixou a cabeça e se sentou no sofá da sala completamente desnorteada.
Passados alguns dias sem nenhum sinal de mim ou telefonema, o Dr. Nogueira falou com um dos peritos que investigaram o local, identificando sinais bastante estranhos na janela da sacada. Encontraram pelos de animal e pegadas. Havia sinais semelhantes a pegadas de animal.
– Pegadas de animal? O quê? – vociferou Nogueira.
– As pegadas coadunam-se com as de um lobo – informou um dos peritos.
– Não é possível! – exclamou o delegado. – Como é possível lobos nesta capital? O que um lobo faria no sétimo andar? Você tem certeza de que as pegadas são realmente de lobo?
– Positivo, chefe – disse sem titubear. – Não há dúvidas de que são de lobo. Podemos até mesmo precisar o tamanho dele.
– Pegadas de lobo dentro e fora da janela do apartamento. Como entender uma coisa dessas? – resmungou Nogueira, enquanto coçava a cabeça calva. – Isso está me parecendo estranho demais.
O delegado desligou o telefone perdido em dúvidas. Ao voltar para a delegacia e olhar para sua mesa, ficou aborrecido com a fabulosa pilha de inquéritos que crescia.
O telefone de meu pai fora grampeado a fim de identificar um possível sequestrador, mas nenhum telefonema veio e, com seu regresso, mais um crime fora detectado. Ele denunciou o furto de dinheiro da conta corrente em nome de Anne Rozeblit – a conta em que ele guardava o dinheiro de minha herança estava totalmente depauperada. Quase enlouqueceu ao ver que todo o dinheiro havia sumido sem nenhum vestígio da transação. O pior é que o start fora dado do meu computador.
– Que razões ela teria para mandar o dinheiro para fora? Teria fugido com o dinheiro de sua própria herança? Não é possível que tenha sido ela, não faz sentido – indagou o delegado.
Meu pai foi à delegacia prestar esclarecimentos e investigar quem eram os beneficiários do montante transferido, pois era necessário que a polícia estabelecesse a correlação entre o meu desaparecimento e o sumiço do dinheiro das contas. O meu desparecimento, aliado ao furto da conta, estava enlouquecendo-o. Dirigiu-se à delegacia o mais rápido que pôde, pois Nogueira o esperava.
No departamento de polícia, meu pai conversou com o delegado.
– Boa-tarde, Sr. Bóris.
– Nogueira, a tarde não está nada boa. Vamos ao que interessa.
– Sr. Bóris, preciso da sua ajuda para identificar os próximos segmentos que estão chegando da polícia técnica. Estou à espera do laudo para a identificação das impressões digitais no punhal.
Nogueira convidou meu pai para um café, mas ele não queria nada, a não ser resolver o caso.
– Nenhum telefonema até o momento, nem em casa, nem no celular. O que posso pensar, delegado? Já se passaram cinco dias e nenhuma notícia que levasse a crer que foi sequestro. Nenhum telefonema suspeito, nenhum pedido para entrega de dinheiro em troca da libertação de minha filha.
– Minha tese é que não se trata de sequestro. – Nogueira foi enfático. – Um sequestrador pediria o dinheiro em seguida.
– Se não é sequestro, qual é o crime? – Papai estava perdendo a compostura. – O que está achando?
– O senhor precisa ficar calmo. – Meu pai tremia. – Em breve, teremos o nome de todos os envolvidos no furto da conta. Preciso falar com sua empregada, a...
– Elena. O que está pensando? Acha que ela não é de confiança?
– Não tinha dado ordens para que não deixasse Anne sozinha?
– Sim, dei. Elena está conosco desde que a mãe de Anne era viva; há quase vinte anos. Ela tem sido uma mãe para Anne. Ela tem pouco estudo