O diabólico Duque de Essex
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Sobre este e-book
De sua parte, Yurik Asworth, um aspirante à arte da fotografia, não estava disposto a se apaixonar. O que dirá deparar-se como uma jovem totalmente doidivanas que comprometerá cada minuto de seu dia naquelas paragens. Determinado a deixar que isso não aconteça, ele aceitará o desafio de não permitir que Gwen entre em sua vida. Contudo, o mistério que envolve a presença de Yurik na corte, e sua amizade com D. Pedro II, fará com que esse laço tênue entre o casal se torne uma paixão avassaladora, capaz de comprometer as relações, já permeadas de entrelinhas, entre as coroas de Brasil e Inglaterra.
Intrigas, sedução, espionagem fazem parte desse segundo volume da Trilogia "As Irmãs Reims", conduzindo você por uma história que fará seu coração palpitar de emoção a cada linha.
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O diabólico Duque de Essex - Roxany Norris
históricos.
O PHAROUX
Gwen admirava o mar, que batia contra o cais de Pharoux. Haviam chegado há dois dias, e tudo era maravilhosamente diferente de Londres. Ainda que o hotel fosse extremamente confortável, a comida maravilhosa e muitos hóspedes estrangeiros, o Pharoux era o que havia de mais moderno em termos de hotel na cidade, e o mais luxuoso também. O clima ainda era quente, e Gwen tinha certeza de que não tinha roupas apropriadas para o outono da cidade.
Lady Charlotte se refugiara no quarto, preferindo que as refeições fossem servidas lá. Seu luto havia lhe arrebatado a alma de tal forma, que Gwen jamais pensara ser possível. Não se lembrava da Duquesa ser tão apaixonada pelo Duque, mas de fato, a verdade se provava o contrário, ou não teriam empreendido aquela viagem para tão longe. Lady Charlotte manifestara seu desejo de se afastar da sociedade por algum tempo, e na sua terceira temporada, a última coisa que Gwen desejava enfrentar eram os cavalheiros que gostariam de possuir uma estreita relação com seu cunhado, o Conde de Rothesay. Passara outras duas dispensando-os, ainda que em meio a sorrisos e olhares enviesados. Possuía um bom dote, era bonita e inteligente — e sabia disso, mesmo que essa não fosse a sua melhor qualidade, ou a que de fato importava —, mas ficara claro, desde que Thomas assumira seu lugar no parlamento, que muitos de seus pretendentes tencionavam estar próximos ao homem que reformulava o lugar.
Gwen soltou um longo suspiro ao fitar o horizonte e vislumbrar o sol sobre as águas da baía, refletidos nos barcos que iam e vinham do cais. O entorno do hotel era agitado, havia sempre vendedoras de pamonhas – uma iguaria brasileira derivada do milho verde muito comum no nordeste –, pipocas e gergelim a caminho do mercado na Rua do Peixe; assim como damas e cavalheiros de todas as classes indo ao mercado ou à Rua do Ouvidor. Ali sempre passavam muitos homens e mulheres acompanhadas de suas damas e escravos. Os negros usavam andrajos e olhavam sempre para o chão, o que provocava-lhe uma sensação sufocante e de natureza tão intensa, que fez com que ela se afastasse do local, mesmo que desacompanhada, e buscasse as ruas próximas, alcançando a Rua Direita, para o lado oposto ao do mercado, onde passamos por um beco intitulado Beco dos Barbeiros
, com seus lajedos de cantaria no pavimento. Após o escondido beco, tínhamos um edificado de sobrados que abrigava uma sequência de confeitarias, a Carceller, a Francionni e por fim, o Hotel e Café Globo. De fato, bolos, doces, café e chás, apesar da variedade nas vitrines e balcões, não lhe enchiam os olhos, a terrasse — de poucas mesas — do Hotel estavam cheias. Gwen optou pela Carceller e a seção de gelados, que talvez contemporizasse o calor e os males que este impunha à sua alma.
O balconista serviu-lhe um gelado de caju, nome de uma fruta tropical e suculenta, e surpreendentemente, o gosto levemente cítrico desceu refrescante por sua garganta. Gwen decidiu sentar um pouco e observar os transeuntes que desciam a rua na direção do mercado, ou subiam para o Hotel Globo. Já quase terminara seu gelado quando um homem, num traje muito bem cortado de linho azul claro passou na calçada, abaixando levemente o chapéu sobre os olhos. Os cabelos apareciam sobre os ombros levemente acobreados e indisciplinados, e o pouco do rosto que vira, apresentava uma pele bronzeada, como se tudo em sua figura quisesse demonstrar um descaso calculado. Porém, depois de duas temporadas frequentando os melhores salões de Londres em que Lady Charlotte pudesse inseri-la, Gwen sabia reconhecer um cavalheiro pelos detalhes. Detalhes como aquele: quando suas mãos, que se movimentavam ao longo do corpo esguio, em quase um metro e noventa de altura, sustentavam sua postura com desenvoltura ímpar.
Ainda que não houvesse visto nenhum cavalheiro usando um tecido tão leve, que marcasse seus músculos da perna com tanta precisão, estava disposta a apostar sua vida que aquele homem era um lorde, e estava longe de objetar suas roupas quando ela mesma estava disposta a adquirir vestidos muito mais leves. Gwen precisou piscar algumas vezes os olhos para ter certeza de que não se enganava. Havia algo nele muito interessante... Algo essencialmente londrino. Contudo, do que se lembrava, não havia muitos hóspedes no Pharoux que eram de sua terra pátria, talvez houvesse no Globo. Olhou novamente para o cavalheiro, que já se adiantara um bom espaço da calçada em distância, e observou como manuseava, singularmente, a bengala entre seus dedos. Não era coxo, nem nada, mas sim, era apenas um atributo que o diferenciava dos demais.
Gwen decidiu terminar o gelado e seguir o intrigante cavalheiro. Afinal, em todas as suas pesquisas sobre o destino de sua viagem, não soubera de muitos nobres londrinos que cogitavam uma agradável estadia na antiga colônia portuguesa das Américas como uma mudança de ares adotada com frequência. Muito pelo contrário, não menos que em três ocasiões distintas; uma num chá, outra num recital, e por último, numa festa, a Duquesa fora advertida dos inúmeros riscos de visitar tal parada. E, assim mesmo, Lady Charlotte enfrentou os riscos e o mar, e ali estavam, ela e Gwen. Embora não achasse que essa audácia encontrasse morada na conservadora sociedade inglesa. Apesar de estar achando tudo muito diferente e mais exótico do que Londres ou mesmo a França, onde estivera no ano anterior, gostava do lugar, e sua curiosidade sobre o cavalheiro residia justamente nesse ponto. Posto que fosse um nobre – como quase tinha certeza de que o era — o que fazia ali? Causava-lhe estranheza que o mesmo mal que se abatera sobre a Duquesa o tivesse acometido... Mas exprimia-lhe a alma, a curiosidade, e consequentemente, a inconsequência de seus atos.
Deu pouca importância em desfilar sozinha pela rua, já que ninguém a conhecia, tomando o mesmo caminho do cavalheiro, na direção do mercado, que estava apenas alguns passos à sua frente, e suas veias se agitavam pela euforia da sua investigação particular. Gwen já estivera no mercado com Lady Charlotte, onde se encontrava de tudo, até mesmo animais como jacarés. Ela estava levemente familiarizada com a agitação do lugar, os ruídos e as ofertas em alto e bom tom. Continuou seguindo-o, até que ele dobrou algumas esquinas, na direção da Rua do Ouvidor, e tornou a entrar numa travessa, que estranhamente possuía o mesmo nome da rua anterior, e fez com que – por alguns segundos – os olhos de Gwen fossem do cavalheiro para cada vitrine das livrarias ali alinhadas, assim como algumas editoras, uma ao lado da outra. Uma delas chamava-se Travessa, Gwen por algum motivo não achou o nome tão original, mas sua vitrine sim, e a consumiu com avidez, quase suspirando contra o vidro. Amava mais os livros do que batentes de bordados.
Enamorou-se tanto dos exemplares em brochura e couro, que se esqueceu por completo do que a levara ali, o cavalheiro. Este, contudo, não parecia sob efeito de nada na travessa, estava mais do que decidido em chegar ao seu destino. E, após uma longa olhada no prédio ao final da rua, adentrou-o com firmeza. Com um leve arrepio subindo-lhe pela nuca, Gwen se empertigou e seguiu na mesma direção, onde estranhamente apenas homens pareciam se reunir. Fingiu ignorar os olhares que lhe lançaram e observou a fachada do prédio, onde se lia Tribuna Liberal
¹, voltou-se para os homens à sua volta, e notou que liam as notícias, fixadas num painel à entrada. E, da mesma forma que o cavalheiro fizera, ela entrou na pequena construção. Subiu por uma escada estreita e estava alisando a saia quando percebeu que era o centro das atenções. Se havia alguma conversa estabelecida naquela saleta, sua chegada a silenciara. Gwen tentava recuperar o bom senso emerso na surpresa de que só havia homens ali, e todos a fitavam com uma peculiar curiosidade.
— Ora, ora... — Um homem moreno se aproximou dela fixando-a de forma indecorosa, e acentuando seu sorriso conforme delineava seu corpo sobre o vestido. — Certamente não é da cidade. — Olhou por sobre o ombro de Gwen. — E veio sozinha. Francesa?
Gwen não entendeu o que ele lhe dizia, não sabia falar português, mas notou que os outros homens do recinto soltaram uma leve gargalhada. Então, fosse o que fosse, não era bom.
— Inglesa? — indagou agora em sua língua, e Gwen o avaliou por segundos, que deram espaço para que ele se aproximasse dela e coçasse o queixo, encarando-a. A porta atrás dele se abriu, e o homem que seguira saiu por ela, arrebatando-lhe momentaneamente a respiração. Ele era mais alto do que imaginara, tinha olhos escuros e o cabelo contrastava com o azul claro da roupa, levemente comprido e anelado, o rosto era quadrado e severo, o nariz aquilino e uma barba por fazer. Apesar de ainda ser jovem, parecia um tanto taciturno. Ele a encarou por momentos breves e o homem que a abordava, voltou-se para ele: — Yurik, acredito que conheça a jovem. Ela parece ter vindo da Inglaterra e está perdida — o homem falava num inglês arranhado, mas compreensível e Gwen esperou a resposta do cavalheiro. Guiada por sua intuição, achava que era melhor que ele respondesse por ela. E Yurik decididamente a avaliava, ou avaliava a encrenca em que estava se metendo, porque suas sobrancelhas se enviesaram ao responder: — Certamente não está no mesmo hotel que eu. — E bateu na borda do chapéu, dispensando Gwen e a conversa, mas o homem que falava, impediu-o de prosseguir até a porta: — Eu devo insistir... — Continuou baixo, certificando-se de que ela não os ouviria. — Não seria bom que ela fosse vista sozinha. — E lançou um olhar aos outros homens no recinto. — É inglesa, acredite, pois não me respondeu. Assim como você, na primeira vez que travamos contato.
Yurik olhava agora o homem à sua frente com certa impaciência. Era certo que o Barão de Lorena, Henrique de Castro, era um grande aliado seu junto a D. Pedro II, e por duas vezes haviam conseguido evitar que a França conseguisse ter mais influência junto ao Imperador do que a Inglaterra. William Dougal Christie, o cônsul inglês no Brasil, tinha um modo peculiar de fazer política, na opinião de Yurik, e nessas duas vezes, sua majestade havia requisitado sua presença na ex-colônia portuguesa. Aquela era a terceira vez que ia ao Brasil, num curto prazo de sete anos, e acreditava — por tudo que sabia sobre William —, que ele também estava envolvido nos assuntos de sua majestade. Novamente observou a moça, de fato, parecia inglesa, e entendia a impaciência de Henrique. Aquele não era um lugar para uma moça, principalmente em meio a uma reunião de abolicionistas enfurecidos, que tentavam usar sua influência junto ao jornal monárquico.
— O que vai fazer? — ditou Henrique, fixando os olhos em Gwen.
— Não falem de mim como se eu não estivesse aqui — protestou, fazendo Yurik prestar atenção nela.
— Se não estivesse aqui, não precisaríamos falar de você — replicou Yurik.
O insulto atingiu Gwen em cheio, e ela voltou-se para a escada.
— Há essa hora, a Ouvidor já está lotada de pessoas... — lembrou Henrique, contendo um sorriso. A moça parecia ter o mesmo ímpeto de Yurik, e estava interessante vê-lo agir como o nobre que era, em terra tão distante de seus costumes habituais.
— Tenho certeza de que ninguém me conhece por aqui — sentenciou, descendo as escadas. — Agradeço a preocupação com a minha pessoa, mas sei voltar ao hotel.
— Então não se equivocou ao vir aqui? — interpelou-a Yurik.
Gwen parou sobre o terceiro degrau e olhou para ele.
— Óbvio que vim ao lugar certo.
— E que tipo de situação a trouxe ao jornal? — Foi a vez de Henrique dirigir-se a ela.
— Parece que, ainda que tenham tentado decidir meu futuro entre os dois, não fomos apresentados. — Empertigou-se a jovem. — Não seria próprio revelar nada sobre mim, nessas circunstâncias.
O homem moreno sorriu, e lhe fez uma reverência. Era pouco mais baixo que Yurik, tinha cabelos escuros e lisos, cortados bem rente e curtos, olhos de um azul profundo e a pele pálida. Era magro, porém musculoso. Contudo, se vestia de forma despojada. Não usava casaco, apenas um colete sobre a blusa branca, e calças de tweed marrom.
— Sou Henrique de Castro, o 2º Barão de Lorena, e seu humilde criado... — e voltando-se para o cavalheiro, completou: — Este é Yurik...
— Um aspirante a fotógrafo — completou o inglês.
— Ah... — ela disse surpresa. Fotógrafo? Ele parecia ser tão... Cavalheiresco. Ela notou que esperavam que lhes revelasse algo, e concluiu: — Gwen Reims... Romancista.
— Romancista? — Henrique ergueu a sobrancelha surpreso. — A senhorita escreve?
— Um pouco, por isso vim ao jornal... — ela ponderou sua desculpa calculadamente. — Pensei que pudesse falar com o editor e...
Ela parou ao ver Yurik encará-la com uma expressão conturbada. Tinha certeza de que já ouvira aquele sobrenome, Reims, só não conseguia se lembrar de onde. Droga, e se William estivesse usando donzelas em suas artimanhas? E se ela não fosse propriamente uma donzela? Olhou-a com mais intensidade e pouca preocupação. De fato, a jovem tinha muitos atributos que atrairiam um homem, não poderia negar e que obviamente contribuíam para a animação de Henrique. Cabelos de um louro claríssimo, feições delicadas, olhos azuis, cílios espessos, lábios delicados e em forma de coração, e a pele parecia muito cremosa sob a fileira de babados do decote, que era um dos mais recatados que já vira pela cidade. Deveria estar com calor, ou... Talvez fosse essa a intenção, negar qualquer mau comportamento que sua presença ali pudesse suscitar, mas ele era um homem de sua majestade. O homem a quem ela recorria para aquele tipo de problema, e não seria desafiado por um estratagema tão antigo. William certamente o subestimava.
— Isso é definitivamente interessante, não acha Yurik? — indagou o Barão voltando a falar: — É uma pena que meus pares sejam tão conservadores e... Já pensou em assinar com um pseudônimo?
— Como? — Gwen e Yurik indagaram ao mesmo tempo a um barão animado com sua própria ideia. Os olhos escuros de Yurik brilharam.
— Usando um nome de homem — explicou-se melhor o Barão.
— Bem... — Ela de fato só tinha poesias em seu poder. E nunca havia pensado em publicá-las, fora até ali por Yurik, por achar que um cavalheiro se esgueirando pela cidade era intrigante, mas ele era fotógrafo e haveria uma grande exposição no Pharoux em poucos dias, então tudo se explicava... Menos, é claro, ela ali. — É uma grande ideia.
— É uma péssima ideia. — Cortou-a Yurik, descendo a escada e unindo-se a ela no degrau. — Não deveria incentivar essas tolices, certamente seu marido ficará perplexo com sua audácia.
— Não sou casada — rebateu Gwen, achando a postura de Yurik inoportuna. — E não tenho certeza de que não goste de ser audaciosa.
— Tenho certeza de que gosta... — Yurik ofereceu-lhe o braço.
— O que disse? — Ela o encarou em dúvida.
— Que é uma sorte que não seja casada, e que eu possa devolvê-la em segurança à sua família. — Sorriu-lhe.
— Aceite, srta. Gwen — incentivou Henrique, que os observava do alto da escada. — Apesar da carranca, Yurik é um cavalheiro, e não lhe fará mal algum.
Ainda com certo receio, Gwen enlaçou seu braço ao dele e desceram as escadas.
— Pensarei também na sugestão do nome, milorde — ela respondeu antes que a porta do jornal fechasse atrás deles.
Henrique lembrou-se de sua noiva, Diva, de uma formosura sem igual, e por quem, apesar da conveniência que viria quando suas famílias se unissem, se apaixonara. Era engraçado — pensando bem agora —, que durante os seis anos que conhecia Yurik, ele nunca falara sobre qualquer mulher ou pretendente. Será que não havia nenhuma Lady Ashworth esperando-o em Essex?
Ele deu de ombros levemente, voltando-se para os homens que discutiam entre si à porta do editor do Tribuna. Em breve saberia, no momento, entretanto, tinha que contemporizar.
— Senhores...
Andaram poucos metros, saindo da Travessa do Ouvidor e entraram na Rua do mesmo nome, onde de fato, como Henrique sugerira, as damas e os cavalheiros já passeavam. Ali se concentravam muitas lojas de modas, joalherias, cafés, e um ponto habitual de passeio para a sociedade. Entretanto, ainda não entendia o motivo de Yurik conduzi-la para tal entretenimento, quando poderia facilmente refazer seus passos até o Hotel Globo.
— Então a senhorita é romancista? — Ele voltou habilmente ao tema que, aparentemente, a levara a Tribuna.
—Ainda estou ensaiando o esboço de meu primeiro romance, mas de fato, me aventuro pelas letras tanto quanto posso, com poemas — ela