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Deus no redemoinho
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E-book342 páginas7 horas

Deus no redemoinho

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Sobre este e-book

Neste importante livro, David Wells começa o processo de relacionar à prática sua influente crítica da cultura moderna e da igreja. Aqui nós temos uma 'teologia prática' para conduzir a vida da igreja com base na realidade de um Deus de 'Santo-amor'. Essa maneira de entender e pregar a doutrina de Deus, Wells acredita, protege a igreja de ser cooptada pela cultura ou de tornar-se uma subcultura de gueto. Décadas de ensino de teologia são transformadas aqui em capítulos acessíveis, práticos.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento21 de jun. de 2016
ISBN9788576226161
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    Este livro é simplesmente excepcional no seu desenvolvimento ...leitura que vale a pena !!!

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Deus no redemoinho - David F. Wells

E.).

CAPÍTULO 1

Deus, nossa visão, cultura, nosso contexto

Sê minha visão, ó Senhor do meu coração,

Que não haja nada para mim, além de ti;

És meu melhor pensamento, de dia ou de noite,

Acordado ou dormindo, a tua presença é a minha luz.

ELEANOR H. HULL

Neste livro, estamos em uma viagem. Nosso destino é um lugar bem conhecido: o caráter de Deus. Faremos uma viagem ao coração do Pai, como diria A. W. Tozer. É ali que encontramos nossa casa, nosso lugar de descanso, nossa alegria, nossa esperança e nossa força.

O objetivo da redenção de Cristo era, afinal, que pudéssemos conhecer a Deus, amá-lo, servi-lo, desfrutar dele, e glorificá-lo para sempre. Esse é, de fato, nosso fim principal. Foi para esse fim que Cristo veio, encarnou, morreu em nosso lugar, e ressuscitou para nossa justificação. Foi para que pudéssemos conhecer a Deus. Uma vez, fizemos parte daquele mundo que não conhece a Deus (1Co 1.21). Mas agora conhecemos a Deus (Gl 4.9), conhecemos aquele que existe desde o princípio (1Jo 2.13), pois conhecemos o amor de Cristo, cuja redenção tem como objetivo que sejamos tomados de toda a plenitude de Deus (Ef 3.19). E esse conhecimento de Deus, essa experiência da sua bondade, é que tem sido diminuído por vezes pela nossa maneira de viver, que, por isso, deve ser constantemente renovada.

Este é o nosso objetivo na vida: centrar em Deus nossos pensamentos e temê-lo em nossos corações, como diria J. I. Packer. Devemos honrar a Deus em tudo o que fazemos. E como isso acontecerá se nunca considerarmos – ou considerarmos apenas superficialmente ou de forma irregular – o destino de nossa viagem e aquele que também segue conosco pela vida a caminho desse mesmo destino?

Os maiores no reino de Deus, ao longo dos séculos, sempre encontraram aqui um lugar para habitar. Aqui eles têm encontrado o seu sustento, sua alegria e seu consolo. Quão amáveis são os teus tabernáculos, SENHOR dos Exércitos! (Sl 84.1), exclamou o salmista. [...] de banha e de gordura farta-se a minha alma [...] no meu leito, quando de ti me recordo (Sl 63.5-6). Conhecer a Deus foi em si o que intensificou a sede de Davi para conhecê-lo ainda mais. E sempre foi assim.

Conhecer a Deus nos enche de uma fome de mais daquilo que já sabemos. Como suspira a corça pelas correntes das águas, assim, por ti, ó Deus, suspira a minha alma (Sl 42.1). Davi já conhecia a Deus naquele momento, mas o seu anseio por Deus o trouxe de volta para o grande e glorioso centro de toda a realidade, para ainda mais longe. Este é, e sempre foi, o desejo de quem conhece bem a Deus. E conectado a essa sede de Deus está um profundo prazer nele. É um prazer que vemos em muitos dos salmos, um prazer robusto e viril, como disse C. S. Lewis, e algo que nós hoje, por vezes, temos de encarar com uma inveja inocente. Então, como podemos saber o que os salmistas sabiam? Como podemos, também, aprender a nos deliciar em Deus?

Neste livro não serei capaz de considerar todos os atributos de Deus. Em uma geração passada, Stephen Charnock fez isso em seu clássico The Existence and Attributes of God, mas precisou de mais de 1.100 páginas! Aqui, devo me limitar e, portanto, vamos pensar apenas no caráter de Deus. A esse caráter, tratarei como seu santo-amor, conforme explicarei adiante. Esse é o nosso principal destino. À medida que pensamos nesse lugar, vamos também pensar nas consequências de tudo isso para se viver no século 21.

No começo, no entanto, quero destacar dois desafios que encontraremos. Retornarei ao primeiro deles em vários capítulos deste livro. O segundo mencionarei agora, e, então, daqui em diante, teremos de simplesmente estar cientes dele. Temos de pensar nesses desafios, porque já os encontramos em nossas vidas mais vezes do que podemos contar. Estamos tão acostumados a eles, que podemos não entender completamente quanto são importantes.

O primeiro desafio pode soar estranho para você. É o desafio cultural mais importante que encontraremos conforme tentamos nos aprofundar no conhecimento de Deus. Mas por que dizer isso logo no início? Não estamos começando de forma errada? Não concordamos que, se qui-sermos conhecer o caráter de Deus, tudo que precisamos fazer é abrir nossas Bíblias? Afinal de contas, a verdade bíblica é o fundamento de nosso con-hecimento de Deus. As Escrituras foram inspiradas por Deus, e, portanto, são a fonte de nosso conhecimento dele. Elas não são mais do que suficientes, então, para nos ensinar tudo o que precisamos saber sobre Deus e seu caráter?

A resposta, claro, é que as Escrituras são realmente suficientes. Existe, porém, uma ressalva: as Escrituras serão suficientes se formos capazes de receber delas tudo o que Deus deixou nelas. Isso não é tão simples quanto parece. A razão está no que Paulo disse em Romanos 12.2, a saber, que devemos ser transformados pela renovação da nossa mente – o que é, com certeza, o que acontece quando abraçamos a verdade que Deus nos deu em sua Palavra –, mas, também, para não nos conformarmos com este mundo. Nossa vida deve ser moldada pelas Escrituras, e não pela cultura. Devemos ser movidos interiormente pela verdade, e não pelos horizontes e hábitos mundanos. É sempre Sola Scriptura e nunca deve ser Sola cultura, como disse Guiness. É uma prática de dois lados: sim para a verdade bíblica e não para normas culturais que danificam nossa caminhada com Deus e nos roubam do que ele tem para nós. Ser transformado também significa ser inconformado.

Por que isso? A resposta é que nossa cultura pode ter afetado o modo como vemos as coisas. Dada a nossa intensa exposição ao mundo modernizado, precisamos estar alertas para a forma como isso pode moldar nossas perspectivas e entendimentos. Voltaremos a esse tema, mas quero explicar rapidamente o que acredito ser o seu desafio central.

O segundo desafio que vou mencionar, você já deve ter experimentado mesmo nesse breve momento em que abriu este livro! É o bombardeio extraordinário em nossas mentes que vem diariamente de diversas fontes que nos distraem, com nossas mentes indo simultaneamente em diferentes direções. Como, então, poderemos receber das Escrituras a verdade que Deus tem para nós se não conseguimos focar tempo suficiente, gastar tempo suficiente, para receber essa verdade? Cada era tem seus próprios desafios. Este é um dos nossos: a aflição da distração.

O centro da realidade

O primeiro desafio tem a ver com a nossa cultura. Como pode a nossa cultura atrapalhar nosso conhecimento de Deus da forma que ele tem se revelado?

Deixe-me começar com uma verdade básica das Escrituras: Deus está diante de nós. Ele nos chama a sair de nós mesmos e conhecê-lo. Essa é a verdade mais profunda que podemos encontrar – ou, devo dizer, a verdade mais profunda na qual somos achados? – e é a chave para muitas outras verdades. E mesmo assim, nossa cultura nos empurra exatamente para o padrão contrário. Nossa cultura diz que devemos entrar em nós mesmos para conhecer a Deus. Essa é a questão cultural que devemos começar a entender; caso contrário, ela irá modelar a forma como lemos as Escrituras, como vemos Deus, como nos aproximamos dele, e o que dele queremos. Então, aqui vai!

A fé verdadeira, a fé bíblica, sempre possuiu um lado subjetivo, mas essa não é a questão. Quando ouvimos o evangelho, somos nós que devemos responder. Nós que devemos nos arrepender e crer. E é o Espírito Santo quem trabalha sobrenaturalmente para nos regenerar, dar vida nova onde só havia morte, dar novos apetites de Deus e sua verdade onde antes não existia nada, unindo-nos na morte de Cristo para que pudéssemos ter o status de filhos. E não somente o status, mas também a experiência de sermos filhos de Deus. Recebemos, como Paulo declara, o espírito de adoção, baseados no qual clamamos: ‘Aba, Pai’. O próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus (Rm 8.15-16). Tudo isso, claro, é interno. Acontece no profundo de nossa alma e engloba tudo o que somos. E de forma alguma essas verdades estão sendo contestadas quando digo que Deus está diante de nós e nos chama para sairmos de nós mesmos e o conhecermos. Mas o que significa dizer que Deus está diante de nós, senão que ele é, nesse sentido, o nosso objetivo.

Deixe-me começar a partir de certa distância da fé cristã, e vagarosamente trabalhar em direção ao centro onde queremos estar. No caminho, vamos pensando sobre como nossas experiências nessa cultura globalizada, cheia de pressão, emergente, moldam o nosso entendimento de quem Deus é e o que esperamos dele. Deus está por aí, em algum lugar.

Pode parecer um argumento corriqueiro dizer que Deus está diante de nós. Quando algumas pessoas ouvem essas palavras, só podem pensar que Deus existe e que ele está em nosso mundo. No Ocidente, o número daqueles que acreditam na existência de Deus sempre esteve em torno de 90-97%.

Em 2013, porém, somente 80% dos norte-americanos se colocaram nessa categoria em um novo estudo da Pew. Mesmo assim, quando aqueles que aderem ao novo ateísmo zombam da crença da existência de Deus - uma ilusão, como Richard Dawkins chama; um anacronismo, como Steven Pinker declarou; ou somente um conjunto de fantasias, como disse Sam Harris –, eles se encontram fora do fluxo de toda a nossa cultura ocidental.Especialmente porque cerca de 80% das pessoas no Ocidente também se consideram espirituais. Isso é verdade mesmo na Europa, onde, incrivelmente, os processos de secularização estão enraizados há tanto tempo.

Mas a pergunta real que deve ser feita sobre a crença na existência de Deus é esta: qual o peso dessa crença? O congresso norte-americano imprimiu as palavras In God we trust [Em Deus confiamos] em seu papel-moeda em 1956. No entanto, essa afirmação, para muitos, é magra e periférica pela maneira como eles realmente vivem. Eles creem na existência de Deus, mas é uma crença sem muito valor. Dizer que Deus está diante deles, portanto, seria de certa forma insignificante. Não necessariamente pesa o suficiente para definir como eles pensam na vida e como vivem. Realmente, uma das marcas definitivas de nossos tempos, pelo menos aqui no Ocidente, é o ateísmo prático, real na vida de muitas pessoas. Elas dizem que Deus existe, mas vivem como se ele não existisse.

O modo como uma pessoa pensa sobre Deus, conforme Paul Froese e Christopher Bader mostram em seu livro America’s four gods: what we say about God – and what that says about us, é modelado por suas respostas a outras duas perguntas. Primeira: Deus já interveio na vida? Segunda: Deus alguma vez faz algum julgamento moral sobre o que dizemos e fazemos?

Caso a resposta de ambas as perguntas seja sim, então dizer que Deus está diante de nós significará algo completamente diferente do que caso a resposta a essas questões seja não. Se pensamos que Deus não intervém na vida, o modo como podemos pensar em sua presença será um; se pensamos que ele tem uma aproximação interventiva, será algo muito diferente. Devemos pensar nele, então, como um senhorio que mantém o prédio em reforma, mas não intervém na vida daqueles que vivem ali? Devemos pensar nele mais como uma líder de torcida que grita palavras de encorajamento do lado do campo, mas na verdade não está no jogo? Ou como um terapeuta que sempre mantém um relacionamento próximo com o paciente, para que a análise não seja distorcida, mas que sabe que, no fim, é o paciente que deve endireitar o seu próprio navio? Devemos pensar em Deus como sendo imparcial, alguém que guarda para si seus pensamentos morais? Essa é a direção para onde nos empurra a nossa cultura: Deus não interfere. Ele é um Deus de amor e não julga.

O outro ângulo aqui é quanto Deus liga para nossas fraquezas e fracassos. De verdade, quanto ele sabe? E como ele pesa diferentes fracassos? Em nossos dias, a informação sobre o mundo – sobre suas guerras, tragédias, sofrimentos e ódio – é instantânea e simultânea. Estamos nos tornando conhecedores, através da TV e na internet, de tudo o que acontece de importante – e do que é inteiramente insignificante também! Isso faz surgir em nossas mentes questões interessantes. Dadas as crueldades terríveis que acontecem no mundo, Deus realmente se importa com os nossos pecadilhos comparativamente pequenos e privados? Será que ele perde a compostura por causa de uma pequena mentira aqui ou ali quando estamos simplesmente tentando evitar o constrangimento? É algo tão terrível mentir se não houver malícia? E que tal a fraqueza sexual à qual não podemos resistir? Ou uma pequena autopromoção que foge um pouco dos fatos? Ele fica obcecado com essas pequenas falhas? Ele realmente se importa? Ou ele é grande e generoso e releva aquilo que não temos poder para mudar? Ele não está mais interessado em torcer por nós, em vez de nos condenar? Isso, também, é algo que nossa cultura quer nos fazer crer.

Ouvimos essa forma cultural de pensar ecoando mesmo na igreja. Joel Osteen, pastor da maior igreja dos Estados Unidos da América – sem contar com seus 200 milhões de seguidores no mundo todo –, nos leva nesse caminho toda semana. Em sua (doce) visão, Deus é o nosso maior torcedor, que, infelizmente, está frustrado por não poder nos banhar com mais saúde, riqueza, felicidade e autorrealização. A razão é simplesmente que nós não estendemos as nossas mãos para receber essas coisas. Deus quer, muito, que as recebamos. Se não as tivermos, bem, a culpa é nossa.

Na realidade, a mensagem de Osteen não é muito diferente da forma que muitos adolescentes norte-americanos pensam em Deus hoje em dia. Em seu Soul Searching, Christian Smith nos deu o fruto de um grande estudo que ele conduziu com nossos adolescentes, publicado em 2005.

O que é realmente surpreendente nesse estudo são as descobertas de Smith sobre a visão de Deus que domina a maioria desses adolescentes, ao que ele chama de deísmo terapêutico moralista. A visão dominante, mesmo entre adolescentes evangélicos, é que Deus fez tudo e estabeleceu uma ordem moral, mas ele não intervém. Na verdade, para a maioria, ele não é nem trinitário, e a encarnação e a ressurreição de Cristo pouco importam no pensamento do adolescente – mesmo no pensamento do adolescente evangélico.

Eles veem Deus não exigindo tanto porque Deus está muito envolvido em resolver os problemas deles e fazer com que eles se sintam bem. O propósito da religião é experimentar a felicidade, o contentamento, Deus resolvendo os seus problemas e provendo coisas como casas, internet, iPods, iPads e iPhones.

Essa é uma visão abundante de Deus na cultura moderna, não somente entre adolescentes, mas entre muitos adultos também. É a visão mais comum de Deus nos contextos ocidentais. São contextos de tecnologia brilhante e espetacular, a abundância gerada pelo capitalismo, a enorme gama de oportunidades que temos, as escolhas sem fim desde cremes dentais até viagens, e o fato de que temos conhecimentos a respeito do mundo inteiro ao qual estamos conectados. Todos esses fatores são interligados em nossa experiência e interferem de forma estranha sobre o que pensamos. Mais importante, eles obviamente interferiram de forma estranha sobre o que pensamos a respeito de Deus.

Realmente, Ross Douthat, em seu livro Bad Religion, cita isso como uma heresia perversa que varreu os Estados Unidos da América. Ele está correto, apesar de que muitas pessoas não pensariam em heresia dessa forma. Porém, o que muitos norte-americanos pensam de Deus é uma distorção da verdade. E a distorção é uma substituta da realidade – portanto, é herética.Então por que as pessoas estão pensando assim? Dê-me uma chance de responder a essa questão, que é, sem dúvida, muito complexa.

Um paradoxo

Esse contexto e essa palavra altamente modernizada produziram o que David Myers chama de um paradoxo norte-americano. Na verdade, esse paradoxo não é somente norte-americano. Ele se manifesta em todo o Ocidente, e fora deste tem se manifestado cada vez mais. Em áreas prósperas da Ásia, por exemplo, a mesma coisa tem se tornado evidente. E esse paradoxo leva naturalmente a uma visão predominante a respeito de Deus. Então, qual é o paradoxo?

É o de que nunca tivemos tanto e, ao mesmo tempo, tão pouco. Nunca tivemos tantas escolhas, fácil acesso à educação, mais liberdades, mais riquezas, aparelhos mais sofisticados, carros melhores, casas melhores, mais conforto ou melhor plano de saúde. Esse é um lado do paradoxo.

O outro lado, porém, é que de todas as maneiras, a depressão nunca foi tão prevalente, a ansiedade tão alta, ou a confusão tão largamente presente. Não mantemos mais os nossos casamentos, as nossas crianças nunca estiveram tão desmoralizadas, os nossos adolescentes estão se suicidando como jamais vimos, cada vez mais e mais pessoas estão sendo presas, e o casamento não oficializado nunca foi tão difundido. De fato, em 2012, nos Estados Unidos da América, 53% das crianças nasceram fora do casamento. Essa nova norma é um indicador de pobreza certa para muitas destas crianças.

Esse paradoxo não é inteiramente novo. Quando o francês Alexis de Tocqueville visitou os Estados Unidos da América em 1839, ele notou que apesar de muitas pessoas conseguirem enriquecer, existia entre elas uma estranha melancolia. Elas alcançaram a igualdade entre si de uma forma política. Socialmente, porém, quase todas conheciam alguém que possuía mais coisas que elas. A igualdade política não produzira os mesmos resultados em termos de riquezas e posses.

Foi assim, ao menos, como Tocqueville explicou a melancolia que viu. Seja essa constatação real ou não, não importa. O que importa é que a abundância não é necessariamente uma bênção ilibada, desqualificada – o que já deveríamos saber, pois Jesus disse isso há muito tempo! Hoje, esse paradoxo cultural está extremamente agravado, e estamos em uma posição bem diferente dos Estados Unidos da América, que Tocqueville viu há quase dois séculos.

Diversos terapeutas estão descobrindo que esse paradoxo se estabeleceu na vida de seus pacientes, dentre os quais existem muitos jovens. Estes geralmente dizem que, embora tenham crescido em boas famílias e recebido tudo o que queriam, cursado faculdade e conquistado bons empregos, eles estavam desnorteados pelo vazio que sentiam. Tinham uma alta autoestima, porém se sentiam vazios. Cresceram ouvindo que podiam ser tudo o que quisessem, mas não sabem o que querem ser. Estão infelizes, mas não existe uma causa aparente para sua infelicidade. Estão conectados com mais pessoas através da internet, e mesmo assim se sentem alienados. Nunca tiveram tanto; nunca tiveram tão pouco. Esse é o nosso paradoxo.

Essa dupla experiência provavelmente seja a melhor explicação para o modo como muitas pessoas, tanto adolescentes como adultos, estão agora pensando sobre Deus e o que querem dele. Por um lado, a experiência de abundância, de opções aparentemente ilimitadas de oportunidades, de níveis de afluência cada vez mais altos quase inevitavelmente produz uma atitude de direito. Cada geração sucessiva, até recentemente, havia anunciado que faria melhor que a geração anterior. Cada uma começou de onde a anterior parou. E essa expectativa não é irreal. Era assim que as coisas funcionavam. Não é difícil ver como esse sentimento de direito acompanha nossas atitudes para com Deus e a forma como ele lida conosco. É o que nos leva a pensar nele como um líder de torcida que só quer o nosso sucesso. Ele seria um torcedor, um técnico inspirador, uma fonte de prosperidade sem fim para nós. Ele nunca interferiria em nossa busca de uma vida melhor (ou seja, uma busca pelas coisas boas da vida). Nós o vemos como uma fonte sem fim dessas bênçãos. Ele é o nosso concierge.

Os fornecedores da teologia da prosperidade, um evangelho que foi exportado do Ocidente para as partes menos desenvolvidas do mundo, parecem cegos para o fato de que sua versão da fé cristã está enraizada no tipo de experiência que acabamos de descrever. Se eles não desfrutassem do conhecimento da medicina e da prosperidade ocidentais, é duvidoso que defendessem que o cristianismo assegura saúde e riqueza. Na história longa e tortuosa da igreja, nunca ouvimos nada igual. O que parece acontecer é que os fornecedores desse evangelho assumiram certos objetivos na vida: alcançar a riqueza desejada e saúde para dela gozar. A fé então lhes dá o direito de receber de Deus essas coisas. E essa é a fé que tem sido anunciada nos lugares para onde esse tipo de cristianismo foi exportado – por exemplo, muitos países na África. Alguns anos atrás, ao sair do aeroporto em Joanesburgo, África do Sul, vi um outdoor com uma pergunta simples: Você quer ficar rico?. E logo abaixo da pergunta havia um número de telefone que, dis-seram-me, pertencia a um ministério da prosperidade.

Em muitas cidades africanas, de fato, existem centros de milagres onde os que sofrem pagam um preço e entram para conseguir o seu milagre – ao menos eles estão certos de que pode haver um milagre. Os cambistas do templo irritaram tanto Jesus que ele literalmente os jogou para fora do prédio; nós, entretanto, temos de lidar com uma descendência modernizada desses cambistas, nos movimentos de prosperidade. Eles se misturam em nossa sociedade de consumo e nossas expectativas de que Deus está ao nosso dispor. E simplesmente fazem parte do vasto e crescente império evangélico.

Embora nós, modernos, vivamos a experiência da abundância, esta vem acompanhada da experiência do vazio e da perda, o que é o outro lado do paradoxo. Carregamos internamente muitas deficiências: um senso da dificuldade da vida, frustrações no trabalho, relacionamentos rompidos e machucados, famílias destruídas, uma inabilidade de manter amizades duradouras, falta do sentimento de pertencer a este mundo e a sensação dele ser vago e hostil. Assim, olhamos para Deus em busca de um bálsamo interno, de algum alívio para essas feridas.

Nós nos tornamos inclinados a pensar em Deus como nosso terapeuta. É conforto, cura e inspiração o que mais queremos, então é isso que buscamos dele. É, também, o que mais queremos de nossa experiência na igreja. Queremos que seja confortadora, engrandecedora, inspiradora, e de fácil compreensão. Nós não queremos que o domingo (ou, talvez, o sábado à tarde) seja como mais um dia de trabalho, mais um fardo, algo que requer esforço e concentração. Já temos fardos e lutas suficientes, coisas de mais para focar durante a semana. No final de semana, queremos alívio.

Não é difícil ver, então, como essa dupla experiência, esse paradoxo, formou nosso entendimento sobre Deus. Isso nos deixa com um desejo por um Deus que se aproximará, e gentilmente virá para erguer, assegurar, confortar e guiar. Queremos que nosso Deus nos aceite sem nos julgar.

Tal entendimento nos deixa ainda com uma expectativa de que de alguma forma esse Deus da abundância dispensará sua generosidade em grandes medidas sobre nós. Talvez até mesmo nos fazendo ganhar na loteria. Esse é o tipo de Deus que queremos. Isso é o que esperamos que ele seja.

Deus desapareceu

Como tenho argumentado, essa perspectiva provavelmente cresceu a partir de nossa experiência. Mas nossa experiência repousa em nada menos do que nas mudanças das placas tectônicas abaixo de nossa sociedade ocidental. É o produto final de pelo menos duas megamudanças muito relacionadas que estão acontecendo em nossa cultura desde a década de 1960. A primeira delas é que, em nossas mentes, saímos do antigo mundo moral em que Deus era transcendente e santo, e entramos em um novo mundo psicológico em que ele é somente um Deus presente e amoroso. Assim está emoldurada nossa compreensão de todas as coisas, e isso significa que as mudanças em nosso modo de vê-las, enraizadas em nossas experiências, serão agora confirmadas em nosso contexto cultural.

A segunda é que atualmente pensamos sobre nós mesmos em termos não de natureza humana, mas do eu. E o eu é simplesmente o núcleo interno das intuições. É o ponto em que nossa própria biografia, sexo, etnia e experiência de vida se juntam em um único centro de autoconsciência. E cada ser é único, pois ninguém possui exatamente os mesmos padrões de fatores emocionais. Não é surpresa que agora estejamos inclinados a ver a vida, entender o que é verdade, pensar em certo e errado de formas únicas e individuais. Cada um possui sua perspectiva da vida e em seu próprio significado, cada perspectiva é tão válida como qualquer outra, e nenhuma se enquadra em normas absolutamente morais. É assim que a grande maioria de norte-americanos vive.

Tentei descrever essas mudanças em meu livro Losing our virtue: why the church must recover its moral vision. Apesar da perda do mundo moral e do crescimento de um novo eu poderem ser descritos separadamente, na realidade eles aconteceram juntos e cada um incentivou o outro. Deixe-me explicar isso rapidamente.

Em 1960, quando essas mudanças culturais estavam acontecendo, elas pareciam bastante radicais. Isso estava no coração da insurgência da Nova Esquerda. Os livros influentes daquela época, como The making of a counter culture, de Theodore Roszak, e The greening of America, de Charles Reich, eram um ataque à racionalidade iluminista – como se, os iluministas supunham, nossa razão fosse inteiramente imparcial! Mas o outro lado dessa mensagem era uma preocupação incessante com o eu, com suas intuições e estados, e isso, é claro, encontrava-se em consonância com a forma como a cultura estava modelando as pessoas. O que começou na Nova Esquerda radical com o tempo se transformou nas suposições comuns de um mundo pós-moderno. Esse radicalismo se tornou convencional. E disso surgiu o que Philip Rieff chamou de homem psicológico, pessoa despojada de todos os pontos de referência além de si mesma. Não existe mundo moral, nenhum certo ou errado definitivos, e ninguém a quem dar satisfações. A própria realidade interior dessa pessoa é tudo o que importa, e é intocada por qualquer obrigação para com a comunidade, ou entendimento de passado, ou até mesmo às intrusões de Deus por aí. A base na qual as vidas estão sendo construídas é a de que não existe nada além do próprio eu que possa servir para tal construção. E esse eu só quer ser agradado. Não vê razão para ser salvo. Isso é deísmo terapêutico, em que as morais são autofocadas e autogeradas.

No fim dos anos de 1960, as palavras que entraram em voga para descrever tudo isso eram individualismo, narcisismo, geração eu, e Era de Aquário.

Foi a época da meditação transcendental e de Jesus Cristo Superstar, e que forneceria combustível para livros como o brilhante romance ácido A fogueira das vaidades, de Tom Wolfe. Esse romance retrata Nova Iorque nos anos de 1980 através da vida de quatro personagens de mau gosto, que não possuem bem maior do que seus próprios interesses, e realmente nada além daquilo que projetam em sua própria aparência. São vaidosos e vazios. Não são nada além de uma coleção de poses e autoprojeções. Mais tarde, tal romance seria equiparado ao filme Wall Street, de Oliver Stone, 1987. Esse filme acompanhou a vida de alguns empresários de Wall Street, que eram guiados apenas pela ganância e viviam em um mundo totalmente amoral.

Com o tempo, as novas preocupações terapêuticas da geração

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