26 poetas hoje
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Sobre este e-book
Vários dos poetas que despontavam com vigor durante a década de 1970 foram lançados aqui. Hoje são nomes consagrados da literatura brasileira moderna.
De lá pra cá, o Brasil mudou, mas não muito. E os artistas que se arriscavam ontem continuam nos ajudando a pensar este novo-velho país.
26 poetas hoje percorreu o caminho de livro visionário a livro mítico, sem perder sua energia contestadora, presente tanto na forma quanto no conteúdo dos poemas.
Com organização de Heloisa Buarque de Hollanda, inclui poemas de Ana Cristina Cesar, Francisco Alvim, Carlos Saldanha (Zuca Sardan), Antonio Carlos de Brito (Cacaso), Roberto Piva, Torquato Neto, José Carlos Capinan, Roberto Schwarz, Zulmira Ribeiro Tavares, Afonso Henriques Neto, Vera Pedrosa, Antonio Carlos Secchin, Flávio Aguiar, Geraldo Eduardo Carneiro, João Carlos Pádua, Luiz Olavo Fontes, Eudoro Augusto, Waly Sailormoon (Waly Salomão), Ricardo G. Ramos, Leomar Fróes, Isabel Câmara, Chacal, Charles Ronald de Carvalho (Charles), Bernardo Vilhena, Leila Miccolis e Adauto de Souza Santos.
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Pré-visualização do livro
26 poetas hoje - Ana Cristina Cesar
1975
Francisco Alvim
Muito obrigado
Ao entrar na sala
cumprimentei-o com três palavras
boa tarde senhor
Sentei-me defronte dele
(como me pediu que fizesse)
Bonita vista
pena que nunca a aviste
Colhendo meu sangue:
a agulha enfiada na ponta do dedo
vai procurar a veia quase no sovaco
Discutir o assunto
fume do meu cigarro
deixa experimentar o seu
(Quanto ganhará este sujeito)
Blazer, roseta, o país voltando-lhe
no hábito do anel profissional
Afinal, meu velho, são trinta anos
hoje como ontem ao meio-dia
Uma cópia deste documento
que lhe confio em amizade
Sua experiência nos pode ser muito útil
não é incômodo algum
volte quando quiser
* * * *
O riso amarelo do medo
Brandindo um espadim
do melhor aço de Toledo
ele irrompeu pela Academia
Cabeças rolam por toda parte
é preciso defender o pão de nossos filhos
respeitar a autoridade
O atualíssimo evangelho dos discursos
diz que um deus nos fez desiguais
* * * *
Greta
Estou vivendo meus grandes dias
O Império terá sido mesmo
uma fazenda modesta e ordenada mas sem povo
Aqui, penteando este caroço de manga
sobre o mármore da pia da cozinha,
me lembro daquela mangueira ao lado do curral
e de suas mangas-rosa
Para chegar até lá
a gente atravessava antes um pátio de pedras –
entre o curral e a casa
em cujas gretas um dia
alguém viu desaparecer uma urutu cruzeiro
* * * *
Postulando
A primeira providência
é ver se há um cargo
Se tiver, ele há de querer entrevistá-lo
Ao meio-dia o candidato estará aqui
o senhor querendo
ficarei também para recebê-lo
O telegrama dizia porque meu nome não fora aprovado
razões de segurança, denúncia de um amigo
que virou meu inimigo
Foram corretos comigo
deixaram-me ver o telegrama
Não entendi
Dois meses antes me haviam chamado de volta
para responder a inquérito
Saí limpo
Ainda comentaram
passou no exame, meu velho
É bom que você saiba
que tenho de fazer a consulta
Um dia desses por que não saímos?
* * * *
Revolução
Antes da revolução eu era professor
Com ela veio a demissão da Universidade
Passei a cobrar posições, de mim e dos outros (meus pais eram marxistas)
Melhorei nisso –
hoje já não me maltrato nem a ninguém
* * * *
Almoço
Sim senhor doutor, o que vai ser?
Um filé-mignon, um filezinho, com salada de batatas
Não: salada de tomates
E o que vai beber o meu patrão?
Uma Caxambu
* * * *
Quem fala
Está de malas prontas?
Aproveite bastante
Leia jornais; não ouça rádio de jeito nenhum
Tudo de bom
Não volte nunca
* * * *
Aquela tarde
Disseram-me que ele morrera na véspera.
Fora preso, torturado. Morreu no Hospital do Exército.
O enterro seria naquela tarde.
(Um padre escolheu um lugar de tribuno.
Parecia que ia falar. Não falou.
A mãe e a irmã choravam.)
* * * *
Eu toco pratos
À minha esquerda
violas ondulam um areal imenso
À minha direita
ossos de baleia cavucam as cáries do ar
Maestro e pianista desfecham o último ofício:
vai terminar o expediente
Na platéia um fole arqueja
* * * *
Ordenha
Os dedos flácidos
acompanham trôpegos
o embate da testa
Ordenham esta idéia
e mais aquela outra
espremem bem a teta
Longe o telefone
acorda um latido –
o bastante afinal
para que a córnea escorra
sobre a fronha
* * * *
Leopoldo
Minha namorada cocainômana
me procura nas madrugadas
para dizer que me ama
Fico olhando as olheiras dela
(tão escuras quanto a noite lá fora)
onde escondo minha paixão
Quando nos amamos
peço que me bata me maltrate fundo
pois amo demais meu amor
e as manhãs empalidecem rápido
* * * *
Uma cidade
Com gula autofágica devoro a tarde
em que gestos antigos me modelaram
Há muito, extinto o olhar por descaso da retina,
vejo-me no que sou:
Arquitetura desolada –
restos de estômago e maxilar
com que devoro o tempo
e me devoro
* * * *
Com ansiedade
Os dias passam ao lado
o sol passa ao lado
de quem desceu as escadas
Nas varandas tremula
o azul de um céu redondo, distante
Quem tem janelas
que fique a espiar o mundo
* * * *
Pássaros que são pedras
O outono cobre de folhas
a relva úmida e as poças no diminuto anfiteatro
Na lembrança descobre
revoada de pássaros numa tarde estival
a meio caminho de Assisi
Asas discêntricas abrindo o ar
como pedras um lago
* * * *
Luz
Em cima da cômoda
uma lata, dois jarros, alguns objetos
entre eles três antigas estampas
Na mesa duas toalhas dobradas
uma verde, outra azul
um lençol também dobrado livros chaveiro
Sob o braço esquerdo
um caderno de capa preta
Em frente uma cama
cuja cabeceira, abriu-se numa grande fenda
Na parede alguns quadros
Um relógio, um copo.
* * * *
Hora
Ar azul
ave em vôo
árvore verde do tempo.
No açude
onde mergulham sombras
dois rostos (do pai, da filha)
tremulam
* * * *
Encostei meu ombro naquele céu curvo e terno
No lago as estrelas molhavam-se
Sussurravam que meu abraço
contivera a terra inteira e os ares
* * * *
Minha voz escuta tua voz
dentro de meu corpo teu corpo
árvores
molhando meu sangue
me abre
* * * *
Um homem
De regresso ao mundo e a meu corpo
As estradas já não anoitecem à sombra de meus gestos
nem meu rastro lhes imprime qualquer destino
Sou a água em cuja pele os astros se detêm
A pedra que conforma o bojo das montanhas
O vôo dos ares
* * * *
Carlos Saldanha
Coessarte tradicional!...
Mas qual...
* * * *
O poeta pras cadeiras
O poeta cumprimenta o seu público,
As cadeiras que não podem
sequer dar-lhe uma salva de palmas:
que têm braços, têm pés,
mas não têm mãos a medir
Na admiração contumaz
Pra dar ânimo, enfim
Que ânimo infusa, ninguém
por certo João Limão
se está querendo ser;
Mas afinal algum interesse
Mínimo que se desperte
* * * *
XIII
Pesquisa utilitária
De cem favoritos reais
noventa e seis foram guilhotinados.
É preciso conversar atentamente
com os quatro que sobraram...
* * * *
Paisagem com movimentação
Um pato deslizando
em lago oval e roxo
Ao crepúsculo
onde meninas
dançam Chopin
Ou era só um carimbo?
* * * *
De binóculo
Abaixando o copázio
Empunhando o espadim
Levantando o corpanzil
Indiferente ao poviléu
O homenzarrão abriu a bocarra
fitando admirado
a naviarra do capitorra
* * * *
Sonatina italiana
A donzela órfã
Seduzida e abandonada
Soluça na neve.
O velho sabujo
De cartola de veludo
Olha de longe...
E gargalha.
Foi ele que a desgraçou.
Mas bêbado e cético
Pouco se importa.
E gargalha: Ah Ah Ah...
* * * *
Sapiencial Saturno
O Supercilioso Valete de Copas
achou refrutável
o solipsismo de Saturno
"Pois se só houvesse o vosso eu
Como ireis comer
os de vossos filhos?"
O sapiencial velho
coçando-se as barbas
fazendo nogangas
obliterar procurava
o obnóxio sorriso:
Justamente... Justamente...
* * * *
Os filósofos
Ante o empolgamento
que foi galvanizando
sucessivamente
os frades copistas,
os geômetras,
os astrônomos,
os pálidos almirantes core suas lunetas,
os monarcas augustos com suas esferas armilares,
e os tabeliões
Ante as maravilhas da Ciência
e do Progresso Tecnológico,
Aconteceu que
os filósofos, pouco a pouco,
com suas idéias vagas,
suas caraminholas na cabeça,
um após outro,
entre chacotas mal disfarçadas,
foram sendo jogados ao mar,
tichipum, tichipum,
por cima do parapeito do convés
do Barco do Conhecimento
que navega por mares ignotos,
levando à proa
a orgulhosa máscara
de Francis Bacon...
Cuidado, Capitão,
Cuidado...
* * * *
Invocação
Prestai-me vossas oiças,
Oh Grandes Monarcas,
Presidentes da República,
e outros Chefes Supremos
Que ditais os destinos da Humanidade
da magnificência de vossos palácios
e de vossos austeros gabinetes...
Napoleão, quando tinha
que saldar diferenças,
algum tira-teima mais brabo,
alguma pinimba com o Rei da Prússia,
ou com o Tsar das Rússias, por exemplo,
Napoleão
vestia o chapéu de três bicos
montava no cavalinho branco
E lá ia ele
pacacá, pacacá,
À frente da turma,
pra dentro da fumaceira,
pra dentro do rolo,
do fura-bucho,
do arranca-toco,
e do pega-pra-capar...
* * * *
O Soberano e o Astrólogo
O Soberano deve suspeitar de tudo.
E nem só o Soberano.
De um Astrólogo não se pode fazer nada.
De um Soberano tampouco.
Em todo o caso,
ao de coroa sempre se oferece
a botija de azeitonas.
O Soberano pode bancar a vítima.
O Astrólogo deve bancar o louco.
* * * *
Zum e Metafísica
Porque ó Venerável, existe o mal?
Indaga o ressentido Bacamarte.
Eu é que sei?
, brada Malaquias,
"Porque não é o mundo
em forma de livro,
com ilustrações sem sépia,
ou hachurado grosso,
ou escrito em papel de arroz?
Enfim, vamos parar
com perguntas tolas
e vá me buscar uma cerveja".
* * * *
O milionário e o Zum
Eu vim buscar a verdade do Zum
Fala o