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Encontros de neve e sol
Encontros de neve e sol
Encontros de neve e sol
E-book192 páginas2 horas

Encontros de neve e sol

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Sobre este e-book

Encontros de neve e sol é a saga de uma mulher-coragem. Em busca do amor, da felicidade e do esquecimento de amarguras vividas, a personagem deste romance embarca numa aventura em um país desconhecido e muito diferente do seu, no clima, na língua, nos costumes. Esta ficção é deliciosa, não só pela construção dessa mulher pela autora, mas também pelas descrições das alegrias e pânicos que ela vive. Você vai se reconhecer em muitas das situações criadas com sensibilidade e humor por Ilana Eleá.
IdiomaPortuguês
Editorae-galáxia
Data de lançamento17 de abr. de 2018
ISBN9788584742134
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    Encontros de neve e sol - Ilana Eleá

    [ 1 ] Ett

    Ett

    Estou há poucos meses na Suécia: todo o restante tem sido impreciso e fugidio. Deixei a minha cidade natal, o Rio de Janeiro, com mínimas despedidas ou explicações e especulações divergem sobre o real motivo da minha entrada no avião rumo a Estocolmo em pleno verão e período carnavalesco, além de data incerta para o retorno.

    Coloquei o pouco que tinha na mala, mais uma vez deixando para trás qualquer excesso ou aferrado apego. Um sobretudo e bota emprestados, três pares de jeans, uma camisa social, dois vestidinhos verdes de algodão – que servem como blusas compridas e tapam o traseiro –, uns pares de calcinha e sutiã. A cirurgia não tinha completado ainda três semanas quando decidi embarcar. Os últimos dois volumes do livro O conde de Monte Cristo, algumas cópias de textos em inglês que serviram de base para a escrita da minha tese de doutorado, oitenta euros no bolso e nada mais. Entre viajar nua e a minha condição, não se pode dizer que haja um suntuoso vale. Do ponto de vista material, linguístico e, da cultura local, falta tanto ainda; vazio sustentado pela imponderável e fulminante sensação de amor.

    A travessia oceânica e amorosa não conseguiu conter a paralisia da minha capacidade de criar. Em um país de língua difícil e gutural, com contorções vocálicas aterrorizantes, arranhar inglês tem sido insuficiente para manter o equilíbrio psíquico. Por mais precioso que seja o amor por esse homem sueco, que hoje me contorna como bolha quase infinita e tranquila, fui sentindo, em paralelo, o silêncio crescer numa agonia pelo rigor do frio, pela improdutividade acadêmica e a projeção de trabalho; por não conseguir escrever solto, enfatizando esses ingredientes como martelos desgovernados. Faltava sol e o excesso de casacos e vento gelando as orelhas me empurravam para lagos e lagos de inércia. Os movimentos mais pareciam de sobrevivência e adaptação, invisíveis a olhos que não fossem de planta, flor ou árvore. Essas entendem o que é respirar por caminhada sem passos. É o vento que as move ligeiro ou lentamente, deitando o caule se gotas de chuva ou bolas de neve aparecem.

    Posso dizer que adormeci meus 32 anos até o sol da primavera chegar. Foi no feriado de Páscoa, no distrito Södermalm, mais precisamente no jardim da igreja Katarina Kyrka, que despertei à tardinha no gramado claro do cemitério, deitada em manta cor de tijolo. Katarina é uma das maiores igrejas do centro de Estocolmo, reconstruída após três incêndios arrasadores entre 1723 e 1990. Como parece ser normal por aqui, e ainda estranho aos meus olhos, há um cemitério em seu jardim. Suecos fazem piqueniques, ouvem música, se espraiam e conversam entre lápides (eu até adormeci, não sem a inicial resistência: seríamos ali todos rudes?), flores e memórias pelos corpos cremados. Cemitério e igreja dividem o mesmo jardim e pelo o que entendi, onde há grama e calma, onde há flores e raio de sol, há corpos vivos à procura de sossego.

    O sol começava a ser esvaziado pelas sombras, mas meu rosto, avermelhado, atentava para a mudança que o calor maravilhosamente introduziu. Estávamos nós e a cidade ouriçados com a temperatura agradável. Celebraríamos o degelo das ruas, o disforme da neve, o adeus ao sopro quente da boca fazendo fumaça, a retirada das echarpes de lã e jaquetas pesadas. A caipirinha veio depois, para fechar um feriado. Feriado longo que nos despediu do enjoo, das pílulas de vitamina D, da falta de sol.

    Dois meses depois, posso dizer que tomei uma decisão: continuar em casa tentando ser produtiva, mas estava falhando. Vim para a suntuosa Biblioteca Pública de Estocolmo – a mesma na qual chorei ao entrar pela primeira vez, essa morada-útero, com livros pelas paredes do chão ao teto – e estou aqui sentada na bancada coletiva, próxima à seção Kommunikationsteori, com o computador ligado, alguns livros, estojo, bloco de receitas, caderno de capa dura para assuntos na Suécia, o celular em modo silencioso e uma garrafa de água. Bom ter tomada para o laptop e wi-fi gratuito. A minha luminária não foi acesa, mas a do músico sentado à minha frente escrevendo em folhas pautadas possíveis criações sinfônicas, sim. Acho que ele pensa em algum instrumento de corda, porque de vez em quando posiciona as mãos no ar como se empunhasse um violão. Seria ele um maestro? Calculadora, celular, canetas marca texto fluorescentes em verde, rosa e azul, lapiseira e corretivo compõem seu pedacinho de bancada. Parece estar criando enquanto passa o dedo indicador nota por nota em cima da folha. Que música tocará? Os três conjuntos de mesas de madeira dessa área são confortáveis, duas tiras únicas e compridas com cinco lugares cada uma, dispostas umas de frente para as outras. A carteirinha da Bibliotek de Estocolmo é feita de plástico transparente vermelho, gosto do destaque das letras em branco para acordar. Vim para cá com a esperança de encontrar um caminho perdido, de retomar o fio, o gosto, a procura.

    Uma inesperada constatação surpreendeu o meu trajeto, simplesmente apareceu e vem se realizando a cada manhã, noite e intermezzos. Amo profundamente e sem medo, amo com segurança e admiração, amo com respeito e brilho esse homem. Johan tem, além de tudo, um olho de cada cor, amuleto preferido e misterioso. Para não esquecer a pronúncia do seu nome, registrei Johan como: You one.

    Fico me perguntando se o reconheço de algum tempo ou lugar para que a altura e gravidade do salto que eu dei ganhem explícitos sentidos. Queria uma explicação para a entrega e beleza do nosso encontro, mas ao mesmo tempo, evito perguntas por receio de afastar as boas respostas. Viver parte por parte o que se apresenta me parece menos metódico. Vim para a biblioteca nesse dia de primavera, findo o feriado de Páscoa, para tentar escrever. A revisão da tese, novas receitas, um livro, um plano para os próximos dois anos, frases a serem aprendidas em sueco e inglês, letras de música, atualizações acadêmicas e quem sabe descobertas geográficas e complementações de cultura geral que gritam em mim tamanha falta. É muito desejo para pouca bancada, autoexigência e perdição.

    Hoje li que príncipes costumam tirar anos sabáticos para fazerem trabalhos voluntários na América Latina e conhecer cidades diferentes do mundo. Tenho relutado às mesmas chances e preciso meditar se o faço por pressão do senso comum ou por preservação da minha integridade moral. Aceitar privilégios pesa, sinto torto – um mundo de gente esfolando as costas para sobreviver e eu aqui com dúvidas de realeza. Enquanto penso nesse conjunto de coisas, repito para mim mesma que a pausa para almoço na lanchonete fast-food não deverá ser repetida e gasta como cotidiano.

    Vi no aplicativo do celular que é possível comer em um lugarzinho orgânico a apenas 120 metros de distância da biblioteca, dois minutos de caminhada. Mas eu e os mapas! O que quer dizer virar a sudeste? Por preguiça e cansaço, e pela falta de entendimento das coisas, desisti, mastigando calorias com culpa. Não quero engordar em Estocolmo. Definitivamente aqui não é o lugar para isso! As jovens mães de dois, três e quatro filhos empurrando carrinhos de bebês por todas as sortes de lojas, ladeiras e parques, essas loiras esguias de pernas finas e torneadas por esportes de inverno me assustam. Pensando em como não quero ficar, em celulites e papas no rosto, obcecada pela magreza, fui comendo batata por batata daquele pacote, sentindo o hambúrguer e o refrigerante inflando meu estômago.

    [ 2 ] Två

    Två

    Foi em um site de relacionamentos que a gente se conheceu. Escolhi um espaço on-line estrangeiro para editar e divulgar meu perfil, inserindo um punhado de fotos sóbrias e frases curtas em três línguas. Minhas amigas perguntavam se eu, como professora, não temia ser reconhecida na rua, afinal quem se divulga assim atesta caça pública à disposição de safaris. Longe disso. No ápice da pressão pela escrita final da tese e pelo fantasma da frouxa libido pelos homens cariocas, essa era a alternativa para experimentar, nos intervalos, brincar de destino.

    Os cliques privilegiados no sistema de busca apontavam para a Europa. Repetia assim a roleta: homem, sobrancelha e olhar claros, solteiro ou divorciado, pós-graduado, entre 30 e 45 anos, alto, no mínimo com 1,81m, não fumante, que goste de ler. Vertigem por páginas e páginas de resultados, pausa diária de uma hora, mais ou menos, para exploração das figurinhas desse álbum intercontinental. Quanto aprumo na descrição dos detalhes e expectativas daqueles homens longínquos!

    Um dos perfis afiou golpe, atravessando o fôlego. Que sueco! Olhos-leopardos, puxados em ângulo diabolicamente diagonal; dois longos traços no rosto, essas covas masculinas que servem de bússola; sorriso arredondado e nariz afastado do chão. Reparei na postura, ereta e sofisticada. Vi fotos dele cantando e ao piano, jogando bola com crianças em ruas de terra na Índia e pingue-pongue com amigos em New York, hábil nas pistas de ski e em lanchas, vestido ora para maratonas amadoras, ora com lenços coloridos no bolso de ternos charmosos para festas de casamento na Escandinávia. Mandei uma mensagem descompromissada para atestar o delicioso susto: Wow! Your eyes are incredible! sem supor que ele já tinha em mãos o bilhete aéreo para passar o réveillon na minha cidade dali a duas quinzenas e buscava companhia para assistir filmes independentes listados pelo BrasilCine - Festival de Cinema Brasileiro na Escandinávia, um batuque e uma roda de samba para os pés e alma e quem sabe uma combinação de cores para vestir como roupa de baixo no réveillon: que simbolizasse amor e fogo.

    Perguntou se eu o aconselhava a vir e teria sugestões locais? Claro, sem dúvida! E pela sintonia crescente fui me oferecendo por trechos cada vez mais arriscados ao longo das trocas de e-mails, conversas por chat e vídeo-encontros via Skype. De suposta guia a anfitriã!

    O apartamento que eu alugava por temporada no Rio de Janeiro, era miúdo, com apenas um cômodo, ficava no segundo andar, em cima de um restaurante, na rua mais movimentada e barulhenta do Baixo Leblon, bairro nobre e turístico na zona sul da cidade. Se caminhar até a orla não levava mais do que cinco minutos e se podia ter um rasgo de oceano ao longe, era aborrecido contar com três janelões incapazes de abafar o cheiro de carne na chapa que subia pela chaminé, além do ruído. Carros e ônibus passando dia e noite, clientes notívagos transitando em voz alta pelo círculo boêmio das pizzarias, banquinhos, bares e casas noturnas do entorno e todas as falações, gargalhadas bêbadas e carros de som para despedidas de solteiros que tal contexto implica. Ah, o catador de latinhas! Conhecido como Capixaba, escolhia religiosamente três da madrugada como horário para o labor: todas as latinhas de cerveja e refrigerante eram amassadas nesse horário, me deixando louca na tentativa de dormir. Quantas vezes não apareci na janela, descabelada e insone, mãos em prece ateia pedindo para que ele pelo menos evitasse descartar as latas jogando-as violentamente contra a calçada. Perturbador – vê-lo moribundo e velho, inchado e torto pela doença, dedicado à luta pelo pão diário, arrastando aqueles sacos enormes para reciclar nossa bebedeira, prazer e lixo.

    Sublinhei esses inconvenientes depois que o convite para hospedar o sueco tinha sido feito e aceito. Aproveitei para adverti-lo que, no conjugado, a minha cama era sofá de solteiro e a dele seria uma poltrona dobrável; que a cozinha era equipada com mini frigobar e fogão elétrico de duas bocas e que a cor escura nas persianas não evitava que a claridade da manhã o acordasse. Não pareceu intimidado, o que considerei bom.

    [ 3 ] Tre

    Tre

    Sábado, 31 de janeiro de 2010, Johan ligou do aeroporto às sete da manhã para dizer que o avião tinha aterrissado e que pegaria o primeiro táxi. Senti a brevidade assoprando em meu pescoço. Era o último dia do ano, o biquíni pendurado no curto varal do banheiro estreito tinha secado e o calor umedecia a saia de tecido leve, lilás. Escolhi uma camiseta de lycra no mesmo tom. A aderência do tecido proibia o vício de sutiã com bojo. Dispensar logo no primeiro encontro a conhecida armadura, esconde-esconde do que me apavorava em complexo, era a intenção de carnaval com reduzidas máscaras. Espremi um seio apertado contra o outro, tentando volume. Era também assim, de colo aberto e plano que queria me apresentar.

    O interfone tocou. Cerrando os dentes de nervoso e curiosidade, amedrontada, quase arrependida, desci o lance de escada desacreditando. Tentei ralentar o pulso pela respiração – a mandíbula me traía, até que pela grade verde do prédio número 88 da rua Aristides Espíndola o vi. Os olhos, um azul e outro verde, esperando eu passar a chave, sorriam. Só conseguia desacreditar, amolecida. Aproximada às fábulas sobre sortes que batem em portas, me senti aplaudida pelo encaixe harmonioso do palpite. Abracei o corpo forte, enxugando o verão na sua camisa branca de botão. "Really nice to meet you!" – repetiríamos sem ensaio.

    O conjugado ficava a um lance de escadas, mas oferecemos, eu e o seu João da portaria, gentilezas, o elevador. Não lembro o que temi e fiquei maravilhada ao abrir a porta de casa ao lado dele, nem quão longe e letárgico me pareceu esse percurso diminuto. O tempo dilatava as escolhas em um presente insistente e destemido, e eu girava a chave.

    O problema das consequências é que elas só chegam depois, diria Diana. Por mais que eu insistisse que não, que todas as possibilidades foram checadas, que eu tinha o nome completo, endereço, celular, telefone e referências do trabalho, lista imensa de amigos no Facebook, e se? Este sueco com olhos-leopardos também poderia temer o risco, despencado para o Rio de Janeiro, sozinho. E se ao fechar a porta alguma armadilha o esperasse? Mas essas incertezas ocupavam algum outro andar ou prédio, rondavam os que não têm a mesma fortuna ou precaução. Passavam em paralelo pela fechadura, sem fazer nuvem escura ou tempestade de chumbo. Tampouco alarde, confiávamos. Tínhamos experimentado por pouco mais de mês as telecomunicações como portos únicos, mas que pareciam suficientemente seguros. 

    Em voos digitais de ida e volta entre Rio de Janeiro a Estocolmo, migramos frases, sorrisos, fotos, pensamentos, perguntas e e-mails escritos em inglês. O dele, fluente após ter morado por

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