1 de dez. de 2012

Opressivo e cinzento? Não, crescer no comunismo foi a época mais feliz de minha vida



A autora do artigo, Zsuzsanna Clark, como estudante de Ensino Primário na Hungria socialista
Hungria - Diário Liberdade - [Zsuzsanna Clark, tradução do Diário Liberdade] Quando as pessoas me perguntam como era crescer atrás da Cortina de Ferro, na Hungria nos anos setenta e oitenta, a maioria espera escutar contos sobre polícia secreta, as filas nas padarias e outras declarações desagradáveis sobre a vida em um Estado de partido único.

Eles ficam sempre desapontados quando explico que a realidade era muito diferente, e a Hungria comunista, longe de ser o inferno na terra, era, na verdade, um ótimo local para viver. Os comunistas proporcionavam a todos com trabalho garantido, boa educação e atendimento médico gratuito.

Mas talvez o melhor de tudo fosse a sensação primordial da camaradagem, o espírito que falta em minha adotada Grã-Bretanha e, de igual forma, a cada vez que volto à Hungria atual.

Eu nasci em uma família de classe trabalhadora em Esztergom, uma cidade no norte da Hungria, em 1968. Minha mãe, Juliana, veio do este do país, a parte mais pobre. Nascida em 1939, teve uma infância dura. Deixou a escola aos 11 anos e foi diretamente trabalhar nos campos. Ela recorda ter tido que se levantar às 4 da manhã para caminhar cinco quilômetros e comprar um pão. De menina, ela tinha tanta fome que com frequência esperavam junto à galinha até que pusesse um ovo. Então abria-o e engoliam, crua, a gema e a clara.

Foi o descontentamento com aquelas condições dos primeiros anos do comunismo, que conduziu à revolta húngara de 1956.

Os distúrbios fizeram com que as lideranças comunistas compreendessem que só poderiam consolidar suas posições tornando as nossas vidas mais toleráveis. O estalinismo acabou e o 'comunismo goulash' -um tipo original de comunismo liberal- chegou.

Janos Kadar, o novo líder do país, transformou a Hungria na barraca mais feliz do Leste da Europa. Tínhamos provavelmente mais liberdades que em qualquer outro país comunista.

Uma das melhores coisas foi a maneira como as oportunidades de lazer e férias se abriram a todos. Antes da Segunda Guerra Mundial, as férias estavam reservadas para as classes altas e médias. Nos imediatos anos da pós-guerra também, a maioria dos húngaros estava trabalhando muito duro para reconstruir o país, as férias ficavam fora de questão.

Porém, nos anos sessenta, como em muitos outros aspectos da vida, as coisas mudaram para melhor. No final da década, quase todo mundo podia se dar ao luxo de viajar, graças à rede de subsídios a sindicatos, empresas e cooperativas de centros de férias.

Meus pais trabalhavam em Dorog, uma cidade próxima, por Hungaroton, uma companhia discográfica de propriedade estatal, de modo que ficamos no acampamento de férias da fábrica no lago Balaton, 'o mar húngaro'. O acampamento era similar à espécie de colônias de férias na moda na Grã-Bretanha da época, a única diferença era que os hóspedes tinham que fazer seu próprio entretenimento às noites. Nom havia campos de férias tipo Butlins Redcoats.

Algumas das minhas primeiras lembranças da vida no lar são os animais que meus pais mantinham no quintal. A cria de animais era algo que a maioria da gente fazia, bem como o cultivo de hortaliças. Fora de Budapeste e as grandes cidades, nós éramos uma nação de "Tom e Barbara Goods". (nota: referência à série da BBC dos anos 70 'The Good Life', protagonizada por uma família auto-suficiente)

Meus pais tinham por volta de 50 frangos, porcos, coelhos, patos, pombos e gansos. Mantivemos os animais não só para alimentar a nossa família, como também para vender a carne a nossos amigos. Utilizaram-se as penas de ganso para travesseiros e edredões.

O governo entendeu o valor da educação e da cultura. Antes da chegada do comunismo, as oportunidades para os filhos dos camponeses e da classe operária urbana, como eu, para ascender na escala educativa eram limitadas. Tudo isso mudou após a guerra.

O sistema educativo na Huntria era similar ao existente no Reino Unido na época. A Educação Secundária era dividida por níveis: Elementar, Secundário Especializado e Formação Profissional. As principais diferenças eram que estávamos no Ensino Básico até os 14 anos e nom até os 11.

Havia também ensino noturno, para crianças e para pessoas adultas. Os meus pais, que tinham abandonado a escola de novos, iam a aulas de Matemática, História e Literatura Húngara e Gramática.

Eu adorava os ir à escola e principalmente fazer parte dos Pioneiros - um movimento comum a todos os países comunistas.

Muitos em Ocidente achavam que era uma burda tentativa de doutrinar a juventude com a ideologia comunista, mas sendo pioneiros ensinaram-nos habilidades valiosas para a vida, tais como a cultura da amizade e a importância de trabalharmos para o benefício da comunidade. "Juntos um para o outro" era nosso lema, e assim foi como se nos encorajava a pensar.

Como pioneiro, se obtinha bons resultados em teus estudos, no trabalho comunal ou em competições escolarres, podia ser premiado com uma viagem a um acampamento de verão. Eu ia todos os anos, porque participava em quase todas as atividades da escola: competições, ginástica, atletismo, coro, fotografia, literatura e biblioteca.

Em nossa última noite no acampamento de Pioneiros, cantávamos canções ao redor da fogueira, como o Hino Pioneiro: 'Mint a mokus fenn a fan, az uttoro oly vidam' ("Somos tão felizes como um esquilo em uma árvore"), e outras canções tradicionais. Nossos sentimentos sempre foram misturados: tristeza ante a perspetiva de irmos embora, mas contentes ante a ideia de vermos nossas famílias.

Hoje em dia, inclusive os que não se consideram comunistas olham para atrás com saudade para seus dias de pioneiros.

As escolas húngaras não seguiam as chamadas ideias "progressistas" sobre a educação dominantes na altura em Ocidente. Os padrões acadêmicos eram extremamente altos e a disciplina era estrita.

Minha professora favorita ensinou-nos que sem o domínio da gramática húngara iriamos carecer de confiança para articular os nossos pensamentos e sentimentos. Só podíamos dar um erro se queríamos atingir a nota mais alta.

Diferentemente do Reino Unido, tínhamos exames orais em todas as matérias. Em Literatura, por exemplo, tínhamos que memorizar e recitar diferentes textos e depois a/o estudante teria que responder perguntas colocadas oralmente pola professora.

Sempre que tínhamos uma celebração nacional, eu era das que pediam para recitar um poema ou verso em frente de toda a escola. A Cultura era considerada extremamente importante pelo governo. Os comunistas não queriam restringir as coisas boas da vida para as classes altas e médias - o melhor da música, a literatura e a dança eram para o desfrute de todos.

Isto significava subsídios generosos para as instituições, incluindo orquestras, óperas, teatros e cinemas. Os preços dos ingressos eram subsidiados pelo Estado, daí que as visitas à ópera e ao teatro fossem acessíveis.

Abriram-se "Casas da Cultura" em cada vila e cidade, também provinciais, para que a classe trabalhadora, como meus pais, pudessem ter fácil acesso às artes cênicas, bem como aos melhores intérpretes.
Com 14 anos, a Zsuzsanna (à direita) com uma amiga ainda antes da volta da Hungria ao capitalismo.

A programação na televisão húngara refletia a prioridade do regime para levar a cultura às massas, sem estupidização.

Quando eu era adolescente, a noite do sábado em prime time pelo geral significava ver uma aventura de Jules Verne, um recital de poesia, um espetáculo de variedades, uma obra de teatro ao vivo, ou um simples filme de Bud Spencer.

Grande parte da televisão húngara era feita com produção própria, mas alguns programas de qualidade eram importados, não unicamente do Bloco do Leste, mas também do Oeste.

Os húngaros de inícios dos anos 70 acompanharam as aventuras e tribulações de Soames Forsyte em The Forsyte Saga, tal como o público britânico tinha feito poucos anos antes. The Onedin Line foi uma outra das séries populares da BBC que eu desfrutei, assim como os documentários de David Attenborough.

No entanto, o governo estava atento ao perigo de nos tornarmos uma nação de televidentes imbecilizados.

Todas as segundas-feiras, tínhamos 'noite familiar'. Aí a televisão estatal ficava fora do ar e isso encorajava as famílias a fazerem outras coisas juntas. Também era chamada "noite dos planos familiares" e eu tenho certeza que um estudo do número de crianças concebidas durante as segundas-feiras familiares seria uma boa leitura.

Ainda que vivêssemos no 'comunismo goulash' e tivéssemos sempre comida suficiente para comer, não eramos bombardeados com publicidade de produtos que não precisávamos.

Durante a minha juventude, vesti roupas em segunda mão, como a maior parte das pessoas novas. A minha mochila escolar era da fábrica onde meus pais trabalhavam. Que diferença com a Hungria de hoje, onde as crianças são intimidadas, tal como no Reino Unido, por usarem uns ténis da "pior" marca.

Como a maioria da gente na era comunista, meu pai não tinha obsessão com o dinheiro. Como mecânico, ele cobrava às pessoas com justiça. Uma vez vi um carro avariado com o capô aberto - um espetáculo que sempre o fazia reagir. Pertencia a um turista da Alemanha Ocidental. Meu pai arranjou o carro, mas negou-se a cobrar-lhe, nem que fosse com uma garrafa de cerveja. Para ele era natural que a ninguém pudesse aceitar dinheiro por ajudar a alguém com problemas.

Quando o comunismo na Hungria terminou em 1989, não só fui surpreendida, também estava entristecida, tal como muitos outros. Sim, tinha gente se manifestando contra o governo, mas a maioria das pessoas comuns - eu e minha família incluída - não participou nos protestos.

Nossa voz - a voz daqueles cujas vidas foram melhoradas pelo comunismo - rara vez se escuta quando se trata de discussões sobre como era a vida por trás da Cortina de Ferro. Em troca, os relatos que se escutam no Occidente são quase sempre da perspetiva de emigrantes ricos ou dos dissidentes anticomunistas com um interesse pessoal.

O comunismo na Hungria teve seu lado negativo. Enquanto as viagens a outros países socialistas não tinham nenhuma restrição, viajar para o oeste era problemático e só era permitido a cada dois anos. Poucos húngaros (eu incluída) desfrutaram das aulas de russo obrigatórias.

Tinha restrições menores e desnecessários setores burocráticos, e a liberdade para criticar o governo estava limitada. No entanto, apesar disto, acho que, em seu conjunto, as caraterísticas positivas ultrapassam as negativas.

Vinte anos depois, a maior parte destes benefícios foram destruídos.

As pessoas já não têm estabilidade no emprego. A pobreza e a delinquência vão em aumento. Pessoas da classe trabalhadora já não podem se dar ao luxo de ir à ópera ou ao teatro. Tal como na Grã-Bretanha, a televisão atonta em um grau preocupante - ironicamente, nunca tivemos Big Brother durante o comunismo, mas hoje temos. E o mais triste de tudo, o espírito de camaradagem que uma vez se desfrutou quase desapareceu.

Nas últimas duas décadas é possível que tenhamos aumentado o número de shoppings, a "democracia" multipartidarista, os celulares e a internet. Mas perdemos muito mais.



Original em inglês no Dailymail.



Fonte: Diário Liberdade

29 de nov. de 2012

Não há mais espaço para ilusões reformistas

Intervenção do PCB no XIV Encontro Mundial dos Partidos Comunistas e Operários

por Ivan Pinheiro [*]

O Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB) saúda os partidos comunistas presentes, homenageando o anfitrião, o Partido Comunista Libanês, referência para todos os revolucionários e trabalhadores do mundo, com seu exemplo de luta sem tréguas contra o capital.

O aprofundamento da crise sistêmica do capitalismo coloca para o movimento comunista internacional um conjunto de complexos desafios.

Estamos diante de um estado de guerra permanente contra os trabalhadores, uma espécie de “guerra mundial”, na qual o grande capital busca sair da crise colocando o ônus na conta dos trabalhadores. Esta é uma guerra diferente das anteriores, que tinham como centro disputas interimperialistas.

Apesar de persistirem contradições interburguesas e interimperialistas na atual conjuntura, as grandes potências (sobretudo os Estados Unidos e os países hegemônicos da União Européia) promovem hoje uma guerra de rapina contra todos os países periféricos, sobretudo aqueles que dispõem de riquezas naturais não renováveis e contra todos os trabalhadores do mundo.

A guerra é o principal recurso do capitalismo para tentar sair da crise: ativa a indústria bélica e ramos conexos, permite o saque das riquezas nacionais e a queima de capitais; os capitalistas ganham também com a reconstrução dos países destruídos.

Os métodos são sempre os mesmos: satanização, manipulação, estímulo ao sectarismo e a divisões entre nacionalidades e religiões, cooptações, criação ou supervalorização midiática de manifestações e rebeldias, atentados de falsa bandeira.

Nesta guerra permanente, pelo menos nesta fase, têm sido poupados os chamados países emergentes, sócios minoritários do imperialismo, que legitimam a política das grandes potências, compondo, como atores coadjuvantes, o chamado Grupo dos 20.

Estes países (os chamados BRICS) se têm beneficiado da crise, na medida em que ajudam a superá-la; em seguida, poderão ser as próximas vítimas tanto da crise como de agressões militares.

Em nosso país, nunca os banqueiros, as empreiteiras, o agronegócio e os monopólios tiveram tanto lucro. A política econômica e a política externa do estado burguês brasileiro estão a serviço do projeto de fazer do Brasil uma grande potência capitalista internacional, nos marcos do imperialismo. As empresas multinacionais de origem brasileira, alavancadas por financiamentos públicos, já dominam alguns mercados em outros países, notadamente na América Latina.

Hoje, o governo brasileiro é o organizador da transferência da maior parte da renda e da riqueza produzida pelo país para as classes dominantes (através do superávit primário, da política de juros altos e do sistema tributário altamente regressivo). Cerca de 50% do orçamento se destina a pagar os juros e a amortização da dívida (externa e interna), para satisfação dos banqueiros internacionais e nacionais, assim como dos nossos rentistas (que não chegam a 1% da população).

Para atender aos interesses dos grandes empresários, das empreiteiras e do agronegócio, o governo promove a destruição do meio ambiente, desde o desmatamento da floresta amazônica à demolição da legislação ambiental. O novo Código Florestal brasileiro, um total desrespeito ao meio-ambiente, contou com o apoio de partidos que se dizem de esquerda, mas se caracterizam por um esvaziamento ideológico, pela adesão às medidas neoliberais e por se curvarem aos ditames do imperialismo. Em períodos eleitorais, rebaixam ainda mais o discurso e abandonam os símbolos que vagamente os ligam ao ideário socialista.

Em meio a esta grave crise, e sem a consolidação ainda de um importante pólo de resistência proletária, o capital realiza uma violenta ofensiva para retirar dos trabalhadores os poucos direitos que lhes restam. Para fazê-lo, tentam cada vez mais fascistizar as sociedades e criminalizar os movimentos políticos e sociais antagônicos à ordem. A correlação de forças ainda nos é desfavorável. Ainda sofremos o impacto da contra-revolução na União Soviética e da degeneração de muitos partidos ditos de esquerda e de setores do movimento sindical.

Por outro lado, estamos muito preocupados com o verdadeiro cerco militar que o imperialismo promove na América Latina. Realmente, a reativação da IV Frota norte-americana, com um poderio bélico maior do que a soma de todas as forças armadas dos países latino-americanos, traz ameaças à soberania e à paz na região. O estabelecimento de dezenas de bases militares dos EUA na América Latina inquieta os latinoamericanos. A considerar ainda a construção de um aeroporto militar ianque na cidade de Mariscal Estigarribia, no Paraguai, que possibilita o controle da região da tríplice fronteira (Brasil, Argentina e Bolívia) e onde se assenta a maior reserva mundial de água doce, o Aquífero Guarani.

Mas não é só o imperialismo estadunidense que cerca a Nossa América. A OTAN construiu, em 1986, na Ilha Soledad do Arquipélago das Malvinas, a grande base militar de Mount Pleasant, que dispõe de aeroporto e porto naval, de águas profundas, onde atracam submarinos atômicos e foram construídos silos para armazenar armas nucleares e instalações para aquartelar milhares de efetivos militares. Essa fortaleza das Malvinas contraria, expressamente, o contido na Resolução 41 da ONU, que considera o Atlântico Sul zona de paz e cooperação, isenta de armamentos e engenhos nucleares.

A considerar, ainda, a ilha de Ascensão, outra base militar da OTAN que fica a meio caminho da costa brasileira e da costa africana.

A OTAN criou uma zona de exclusão pesqueira de mais de um milhão de quilômetros quadrados em torno das ilhas Georgia e Sandwich do Sul, destinando essa zona exclusivamente às suas forças bélicas.

A ocupação militar imperialista no Atlântico Sul permite o controle das rotas marítimas que unem a América do Sul à África e sua conexão com o continente da Antártica e com os países do Pacífico, através do Estreito de Magalhães. Ademais, permite o controle dos inúmeros recursos naturais da plataforma continental da América do Sul. É assim que a América Latina está cercada por terra e por mar pelas forças militares imperialistas, com a omissão da grande maioria dos governos locais.

Analisando este quadro, o PCB tem feito algumas reflexões.

Nos marcos da ordem burguesa, o futuro é sombrio. Mais do que nunca o regime do capital virá acompanhado de crescente instabilidade econômica, absoluta irracionalidade no uso e na distribuição da riqueza, escandalosa desigualdade social, escalada da prepotência imperialista e inexorável perigo para as conquistas populares e dos trabalhadores.

A nosso juízo, não há mais espaço para ilusões reformistas. Aliás, os reformistas, mais do que nunca, são grandes inimigos da revolução socialista, pois iludem os trabalhadores e os desmobilizam, facilitando o trabalho do capital. Em cada país, as classes dominantes forjam um bipartidarismo – em verdade um monopartidarismo bicéfalo – em que as divergências, cada vez menores, se dão no campo da administração do capital.

Cada vez mais também faz menos sentido a “escolha” de aliados no campo imperialista e mesmo entre seus coadjuvantes emergentes, como se houvesse imperialismo do “bem” e do “mal”. A diferença é apenas na forma, não no conteúdo. Isto não significa subestimar as contradições que vicejam entre eles.

Não podemos conciliar com ilusões de transição ao socialismo por vias fundamentalmente institucionais, através de maiorias parlamentares e de ocupação de espaços governamentais e estatais. A luta de massas, em todas as suas formas, adaptada às diferentes realidades locais, é e continuará sendo a única arma de que dispõe o proletariado.

Temos avaliado também que o atual modelo de encontros de partidos comunistas e operários, que vêm cumprindo importante papel de resistência, precisa se adaptar às complexas necessidades da conjuntura mundial, com suas perspectivas sombrias no curto prazo e suas possibilidades de acirramento da luta de classes, com a emergência das lutas operárias.

Pensamos que é preciso romper com o “encontrismo” em que, ao final dos eventos, nossos partidos formulam um documento genérico e decidem a sede do próximo encontro e se despedem até o ano seguinte, inclusive aqueles dos países da mesma região.

Para potencializar o protagonismo dos partidos comunistas e do proletariado no âmbito mundial, é necessária e urgente a constituição de uma coordenação política que, sem funcionar como uma nova internacional, tenha a tarefa de organizar campanhas mundiais e regionais de solidariedade, contribuir para o debate de ideias, socializar informações sobre as lutas dos povos.

Mas, para além da indispensável articulação dos comunistas, parece-nos importante a formação de uma frente mundial mais ampla, de caráter antiimperialista, onde cabem forças políticas e individualidades progressistas, que se identifiquem com as lutas em defesa da autodeterminação dos povos, da paz entre eles, da preservação do meio ambiente, das riquezas nacionais, dos direitos trabalhistas, sociais e políticos; contra as guerras imperialistas e a fascistização das sociedades. Em resumo, as lutas em defesa da humanidade.

Deixamos claro que o nosso Partido valoriza qualquer forma de luta. Não podemos cair no oportunismo de fazer vistas grossas ao direito dos povos à rebelião e à resistência armada. Em muitos casos, esta é a única forma de fazer frente à violência do capital e de superá-lo. Os povos só podem contar com sua própria força.

Saudamos os povos que hoje enfrentam as mais duras batalhas. Saudamos os trabalhadores gregos, portugueses, espanhóis, que já se levantam em greves nacionais e grandes jornadas e os demais trabalhadores da Europa, que enfrentam terríveis planos do capital para tentar superar a crise, hoje mais acentuada no continente europeu mas que poderá agravar-se e espalhar-se para outros países e regiões.

Saudamos o povo palestino, em sua saga duradoura e dolorosa no enfrentamento ao sionismo que o sufoca e reprime, ocupa seu território, derruba suas casas, prende seus melhores filhos e impede seu direito a um Estado soberano.

Valorizamos o cessar-fogo celebrado recentemente no Egito, como uma vitória importante mas parcial da resistência palestina em Gaza. O sionismo - cuja intenção era claramente mais uma vez invadir Gaza com tropas e tanques - surpreendeu-se com a atual capacidade de reação militar palestina neste pequeno, isolado e sofrido territorio, de fato sob ocupação israelense: uma reação à altura das necesidades de autodefesa e da ampliação dos direitos do povo palestino.

Mas não podemos, de maneira alguma, subestimar a agressividade do imperialismo e do sionismo, que não desistirão de seu intento de dobrar a combatividade e destruir a identidade do povo palestino, ocupando todo seu territorio, como parte do plano expansionista que chamam de “Novo Oriente Médio”.

No entanto, a considerar a justa e proporcional reação do povo de Gaza e a extraordinária solidariedade internacional à luta dos palestinos, melhoram as condições de resistência aos planos sionistas.

E aqui pedimos a manifestação deste encontro em solidariedade à realização na próxima semana, no Brasil, do Forum Social Mundial Palestina Livre, que vem sofrendo ameaças da comunidade sionista em nosso país, inclusive, em desrespeito à soberanía brasileira, por parte da representação diplomática israelense.

Da mesma forma, saudamos os também sofridos povos do Iraque, do Afeganistão, da Líbia. Saudamos os povos do Egito, do Iêmen e de vários países árabes, em sua luta contra a tirania e a opressão.

Saudamos sírios e iranianos, contra os quais batem os tambores de guerra do imperialismo. Nosso Partido está incondicionalmente solidário à grande maioria do povo sírio e a seu direito à autodeterminação. Como na Líbia, trata-se na Síria do plano imperialista de fomentar guerras civis sectárias, valendo-se de mercenários e equipamentos militares estrangeiros, para dividir e ocupar o país. No caso da Síria, procura o imperialismo criar condições para uma posterior agressão militar ao Irã.

Solidarizamo-nos com os comunistas, os trabalhadores e as forças antiimperialistas libanesas diante da movimentação de setores da burguesía nacional aliados ao imperialismo, que procuram fomentar uma nova guerra civil, no contexto da divisão dos países do Oriente Médio por criterios sectários e religiosos, para facilitar a recolonização da região.

Chegando até nossa América Latina, saudamos nossa querida Cuba Socialista em sua luta contra o cruel bloqueio ianque. Saudamos nossos Cinco Heróis. Saudamos os processos de mudanças na América do Sul (Venezuela, Bolívia e Equador), neste momento decisivo, uma encruzilhada entre o avanço dos processos ou sua derrota.

Saudamos nossos irmãos colombianos que, nas cidades e nas montanhas, resistem, através de variadas formas de luta, contra o estado terrorista de seu país, a grande base militar norte-americana na América Latina. Saudamos os revolucionários colombianos, na expressão de seu partido comunista e guerrilhas.

Não há solução militar para o conflito colombiano. Por isso, saudamos os diálogos que têm como objetivo buscar uma solução política. Este diálogo só foi possível pelo surgimento e desenvolvimento da Marcha Patriótica, um combativo e amplo movimento de massas, e pela constatação da impossibilidade de vitória militar do estado contra a guerrilha.

Sabemos que não será simples este diálogo, pois as classes dominantes colombianas e o imperialismo querem a paz dos cemitérios. Assim sendo, propomos que este Encontro assuma a organização de uma campanha mundial de solidariedade ao povo colombiano por uma verdadeira paz democrática com justiça social e econômica

Finalmente, reiteramos nossa proposta de criação de coordenações políticas internacionais e regionais dos Partidos Comunistas, tendo como princípio fundamental o internacionalismo proletário.

Beirute (Líbano), 22 de novembro de 2012

PCB – Partido Comunista Brasileiro

26 de nov. de 2012

Quando Gaza é trucidada outra vez é vital entender o papel histórico da BBC

por John Pilger
Em The War Game, notável filme da BBC dirigido por Peter Watkins que previa as consequências de um ataque a Londres com uma bomba nuclear de uma megatonelada, o narrador diz: "Sobre quase todo o assuntos das armas termo-nucleares, agora há praticamente silêncio total na imprensa, nas publicações oficiais e na TV. Pode haver esperança neste silêncio?

A verdade desta declaração equivalia à sua ironia. Em 24 de Novembro de 1965, a BBC proibiu The War Game por ser "demasiado horripilante para um media de difusão ampla". Isto era falso. A razão real foi explicada pelo presidente do Conselho de Governadores da BBC, Lord Normanbrook, numa carta secreta ao secretário do Gabinete, sir Burke Trend.

"[The War Game] não é concebido como propaganda", escreveu ele. "Pretende ser uma declaração puramente factual e é baseado em investigação cuidadosa de material oficial... Mas mostrar o filme na televisão pode ter um efeito significativo sobre atitudes do público em relação à política da dissuasão nuclear". A seguir a um visionamento a que compareceram responsáveis sénior do Whitehall [Parlamento], o filme foi proibido porque contava uma verdade intolerável. Dezasseis anos depois, o então director-geral da BBC, sir Ian Trethowan, renovou a proibição, dizendo que temia o efeito do filme sobre pessoas de "inteligência mental limitada". O brilhante trabalho de Watkins foi finalmente mostrado em 1985 a uma audiência minoritária numa hora tardia da noite. Ele foi apresentado por Ludovic Kennedy, o qual repetiu a mentira oficial.

O que aconteceu a The War Game faz parte das funções da emissora estatal como pedra angular da elite dominante da Grã-Bretanha. Com os seus notáveis valores de produção, muitas vezes bons dramas populares, história natural e cobertura desportiva, a BBC desfruta de audiência vasta e, segundo seus administradores e beneficiários, de "confiança". Esta "confiança" pode bem ser aplicada ao [programa] Springwatch e [aos documentários de] sir David Attenborough, mas não há base demonstrável para ela em grande parte das notícias do chamados assuntos correntes que pretendem dar sentido ao mundo, especialmente quanto às maquinações da potência desenfreada. Há honrosas excepções individuais, mas observe-se como estas são amansadas quanto mais tempo permanecerem na instituição: uma "defenestração", como descreve um jornalista sénior da BBC.

Isto é notavelmente verdadeiro no Médio Oriente, onde o estado israelense obrigou com êxito a BBC a apresentar o roubo da terra palestina e o enjaulamento, tortura e matança do seu povo como uma "conflito" intratável entre iguais. De é no meio do entulho de um ataque israelense, um jornalista da BBC foi em frente e falou da "forte cultura do martírio de Gaza". Tão grande é esta distorção que jovens que assistiram à BBC New disseram a investigadores da Universidade de Glascow que ficaram com a impressão de que os palestinos são os colonizadores ilegais do seu próprio país. A actual "cobertura" da BBC da miséria genocida de Gaza reforça isto.

Os "valores reithianos" [NT] da BBC, de imparcialidade e independência, são quase escrituras na sua mitologia. Logo depois de a empresa ser fundada na década de 1920 por lord John Reith, a Grã-Bretanha foi abalada pela Greve Geral. "Reith emergiu como uma espécie de herói", escreveu o historiador Patrick Renshaw, "que havia actuado responsavelmente e ainda assim preservado a preciosa independência da BBC. Mas embora este misto tenha persistido ele tem pouca base na realidade... o preço daquela independência foi de facto fazer o que o governo queria que fosse feito. [O primeiro-ministro Stanley] Baldwin... viu que se preservassem a independência da BBC seria muito mais fácil para eles abrirem caminho em questões importantes e utilizá-la para emitir propaganda do governo".

Pouco conhecido do público, o facto é que Reith foi o redactor de discursos do primeiro-ministro. Com a ambição de se tornar vice-rei da Índia, ele garantiu que a BBC se tornasse um evangelizador do poder imperial, com a "imparcialidade" devidamente suspensa sempre que o poder estivesse ameaçado. Este "princípio" a BBC tem aplicado à cobertura de toda guerra colonial da era moderna: desde o encobrimento do genocídio na Indonésia até à supressão de filmes que testemunhavam o bombardeamento do Vietname do Norte e ao apoio à invasão ilegal de Blair/Bush do Iraque em 2003 e o eco agora familiar da propaganda israelense sempre que aquele estado fora da lei abuso do seu cativo, a Palestina. Isto atingiu um nadir em 2009 quando, aterrada com a reacção israelense, a BBC recusou-se a emitir um apelo conjunto de instituições de caridade em favor do povo de Gaza, metade do qual são crianças, a maior parte delas desnutrida e traumatizada pelos ataques israelenses. O relator das Nações Unidas, Richard Falk, ligou o bloqueio de Israel a Gaza ao Gueto de Varsóvia sitiado pelos nazis. Mas, para a BBC, Gaza – tal como a frota de ajuda humanitária atacada mortiferamente por comandos israelenses – em grande medida apresenta um problema de relações públicas para Israel e seu patrocinador estado-unidense.

Mark Regev, propagandista chefe de Israel, aparentemente tem um lugar reservado no topo dos boletins de notícias da BBC. Em 2010, quando apontei isto a Fran Unsworth, agora promovida a director do noticiário, ela objectou com veemência à descrição de Regev como um propagandista, acrescentando: "Não é nossa tarefa sair à procura do porta-voz palestino".

Com lógica semelhante, a antecessora de Unsworth, Helen Boaden, descreveu a cobertura da carnificina criminosa no Iraque como baseada no "facto de que Bush tentou exportar democracia e direitos humanos para o Iraque". Para provar a sua tese, Boaden apetrechou-se com seis páginas A4 de mentiras verificáveis de Bush e Tony Blair. Para não ocorrer a nenhuma das duas mulheres que ventriloquismo não é jornalismo.

O que mudou na BBC é a chegada do culto do administrador corporativo. George Entwistle, o recém nomeado director geral que disse nada saber acerca das falsas acusações da Newsnight de abuso infantil contra o aristocrata Tory, está para receber 450 mil libras de dinheiro público por concordar em renunciar antes de ser despedido: o modo corporativo. Isto e o escândalo anterior de Jimmy Savile podia ter sido redigido para o Daily Mail e a imprensa de Murdoch cuja abominação em causa própria por parte da BBC durante muito tempo proporcionou à corporação a sua fachada "de combate" como uma eminente guardiã das "emissões de serviço público". Entender a BBC como uma eminente propagandista do estado e censora por omissão – muito frequentemente afinada com os seus inimigos de direita – está na agenda pública e é onde deve estar.

22/Novembro/2012 [NT] Reithian values: Do nome de John Reith , primeiro administrador da BBC.

Ver também:

Israel Working to Silence the International Press in Gaza


  • When Propaganda Masquarades as News

    O original encontra-se em johnpilger.com/...

    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/
  •  
  • 23 de nov. de 2012

    O que se esconde por trás do “Pilar de Nuvem”


    “A ideia é pôr os palestinos em dieta, mas sem matá-los de fome”.

    Rami Zurayk e Anne Gough - original “Behind the pillars of cloud” Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu no redecastorphoto

    Desde a criação do estado, em 1948, Israel sempre usou a comida e a nutrição (ou a falta de comida e a desnutrição) como meio para implantar-se militarmente e realizar a ocupação territorial da Palestina. Enquanto todos os olhos voltam-se hoje para a matança de crianças e a erradicação de famílias inteiras [1], em Gaza na operação “Pilar de Nuvem”, Israel continua em seu plano de longo prazo para dizimar os meios de produção de comida, de criação de animais e as capacidades dos habitantes de Gaza para tomar decisões econômicas e políticas sobre o que plantar e o que comer.

    Gaza e toda a Palestina Ocupada está sendo “re-estruturada” como entidade na qual a desnutrição seja endêmica, o acesso à comida negado e as pessoas forçadas a viver sob o medo constante de não ter comida suficiente para si e para a família.

    Nos últimos oito anos, o setor de alimentos e criação de animais em Gaza foi severamente agredido, o que fez piorar as condições do setor agrícola, já gravemente abaladas por seis anos de sítio e bloqueio impostos por Israel, além das campanhas militares e décadas de ocupação.

    Nos primeiros cinco dias do assalto, o Ministério da Agricultura de Gaza que as perdas nos setores de agricultura e pesca sejam superiores a US $50 milhões. Segundo nosso colega Mohammad El Bakri, que trabalha com o Sindicato das Comissões de Trabalho Agrícola [2] e outros especialistas em Gaza, os agricultores estão hoje no meio do período crucial de colheita de azeitonas e produção de azeite; e a destruição dos pomares é golpe terrível contra a segurança alimentar e econômica de Gaza.

    A crise da água

    Os ataques aéreos dos israelenses contra os túneis [3] limitaram o fluxo de entrada de alimentos e combustível em Gaza. Poucas lojas permanecem abertas e a ONU já alertou para o risco de crise de água. Há notícias de bombardeios que visam diretamente aos poços de irrigação. O Ministério de Saúde de Gaza já está sem estoque de 40% dos remédios essenciais [4] e com estoque muito baixo de seringas e bandagens.

    A terrível situação em que Gaza sobrevive hoje começou em 1948, quando milícias sionistas armadas expulsaram mais de 700 mil palestinos das áreas em que viviam, 200 mil dos quais fugiram para Gaza, onde a população triplicou nesses mais de 60 anos.

    Historicamente, Gaza sempre foi conhecida pelo oásis de água fresca de Wadi Gaza [5] , importante ponto de parada nas rotas comerciais entre o Egito e a Síria. Já não é um oásis, as terras arrasadas e absolutamente esterilizadas pelas escavadeiras e niveladoras de Israel ao longo de toda a fronteira leste de Gaza (29% da terra arável [6]) é terra inacessível. Barcos israelenses atiram com canhões de água contra pescadores palestinos, impedindo-os de trabalhar além da distância de três milhas náuticas da praia.

    Esgotos poluídos estão vazando dentro do aquífero do litoral, das redes de água e esgoto e dos prédios bombardeados no ataque israelense de 2009-9 contra Gaza, na Operação Chumbo Derretido. [7]

    Israel também impediu a entrada em Gaza do equipamento necessário para reparar a infraestrutura danificada. Sem acesso a água para beber, muita gente em Gaza sobrevive hoje com 20 litros/dia/pessoa [8], quando, em Israel, o consumo médio de água é de 300 litros/dia/pessoa. [9]

    Todas as 10 mil pequenas propriedades e granjas de Gaza foram danificadas no massacre de 2008-9 [10], meio milhão de árvores foram arrancadas, mais de um milhão de frangos e galinhas foram mortos [11], além de ovelhas, bois, vacas e cabras. Os israelenses destruíram 60% da indústria agrícola em Gaza, provocando perdas da ordem de US$ 268m.

    A proporção da população de Gaza que vive sob condições de insegurança alimentar aumentou 75% depois do massacre de 2008-9, e muitas casas já são classificadas hoje como em situação de insegurança alimentar crônica, em Gaza. Dois anos depois dos ataques de 2008-9, a taxa de desemprego em Gaza era de 45,2%. [12]

    Campos isolados

    Na Cisjordânia a situação também é desesperadora. Os Acordos de Oslo de 1995 dividiram a Cisjordânia em uma Área A, sob controle da Autoridade Palestina, representando 3% da Cisjordânia; uma Área B, sob controle conjunto, equivalente a 25%; e uma Área C, equivalente a 72% da área, sob total controle de Israel, inclusive os campos agricultáveis do vale do rio Jordão.

    De fato, o exército de Israel pode invadir qualquer área a qualquer tempo. A bifurcação da terra palestina e a construção de muros e cercas separaram os agricultores de seus campos plantados e dos mercados; [13] garantiram impunidade aos colonos israelenses fanáticos e violentos; e desfiguraram completamente a paisagem.

    O objetivo de longo prazo de Israel em Gaza não é só o sítio e o bloqueio, mas, também, implantar naquela região condições e práticas de des-desenvolvimento que forcem os palestinos a depender completamente, ou da potência israelense ocupante, ou da ajuda internacional.

    Em 2007, os militares israelenses produziram um cálculo do número mínimo de calorias/dia autorizadas para os habitantes de Gaza. [14] O mecanismo de controle da ingestão calórica caracteriza punição coletiva e eterno sofrimento, mas não leva à morte por fome. Não pode haver qualquer dúvida de que essa política de des-alimentação criada por Israel e implantada contra os palestinos é do conhecimento e conta com o apoio do governo dos EUA.

    As consequências do mais recente assalto israelense contra Gaza, em 2012, só se tornarão plenamente visíveis depois que a poeira assentar. Mas não se afastarão muito do objetivo já declarado de Dov Weisglass em 2006: “A ideia é pôr os palestinos em dieta, mas sem matá-los de fome”.

    Notas de rodapé

    [1] 18/11/2012, The Guardian, UK, Harriet Sherwood (de Jerusalém) em: “Gaza: four children killed in single Israeli air strike
    [2] Ver em: “Union of Agricultural Work Committees
    [3] 18/11/2012, ONU, em: “Gaza situation report, 18 November
    [4] 18/11/2012, The Independent, UK, Jeremy Laurance em: “Overwhelmed Palestinian doctors run out of life-saving medicines
    [5] 6/4/2007, NYTimes, Mark Zeitoun em: “A Gaza Tragedy: Complicity when the dam breaks
    [6] Ver “Agricultura na Cisjordânia Ocupada” (em inglês)
    [7] 27/10/2009, Anistia Internacional, em: “Israel rations Palestinians to trickle of water
    [8] Idem item [7]
    [9] Idem item [7] e [8]
    [10] 23/1/2009, Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO) em: “The humanitarian situation in Gaza and FAO’s response
    [11] 12/2006 – 1/2009, United Nations Environment Programme em: “Environmental Assessment of the Gaza Strip
    [12] UNRWA – United Nations Agency for Palestine Refugees, em: “Labour Market Briefing /Gaza Strip – 2nd Half 2010
    [13] 13/11/2012, UNRWA – United Nations Agency for Palestine Refugees, em: “Farmer's income stuck on the ‘other’ side of the Barrier
    [14] Idem nota [13]

    22 de nov. de 2012

    Democracia e fetiche: de homens e fantasmas


    Por Mauro Iasi.

    “A essência da democracia só pode ser compreendida tendo-se em mente a antítese ideologia e realidade”
    Hans Kelsen

    Uma relação entre seres humanos assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Foi Marx quem disse isso em sua brilhante síntese sobre o efeito que se apresenta quando os produtos do trabalho humano assumem a forma mercadoria.

    Cada produtor privado de diferentes mercadorias se relaciona com outros muitos, não diretamente, mas por meio dos produtos de seu trabalho. Na relação de troca entre duas mercadorias, mas precisamente, na proporção em que se torna possível a troca, é que se revela o valor. Para isso, toda particularidade concreta das mercadorias e do trabalho que as gerou tem que desaparecer, para que possam se equivaler como coisas de valor têm que se expressar como trabalho abstrato. Não se pode comparar o trabalho do pedreiro que faz casas com o do agricultor que planta alimentos, mas como trabalho humano abstrato, ambos são dispêndio de força de trabalho, cérebro, nervos e músculos, que em certa quantidade se igualam.

    Assim o valor de troca, nos diz Marx, é apenas a expressão, isto é, a forma como se expressa um conteúdo que é o valor: uma quantidade de trabalho humano abstrato socialmente necessário. Forma e conteúdo, aparência e essência, não são vistos pelo autor como uma dualidade mecânica na qual a forma é falsidade e a verdade está na substância. A forma é a maneira necessária, uma vez desvendadas suas determinações, de expressão de certa substância. No caso o valor se expressa na relação do valor de troca e nisso não há nenhuma casualidade ou fortuidade, como pode aparecer à primeira vista.

    O mesmo se observa quando falamos de outras esferas da ação humana. Quando tratamos da democracia costuma-se, como vemos na epígrafe de Kelsen que abre o presente texto, colocar de um lado a democracia como valor ou princípio e de outra sua forma de realização. Recuamos, assim, aos termos da política platônica segundo os quais as únicas formas virtuosas de governo são aquelas imaginadas pelos filósofos e degeneradas todas aquelas que os seres humanos imperfeitos ousam concretizar.

    O valor democrático é pleno de virtudes, mas infelizmente suas formas concretas com as quais nos deparamos no real são cheias de imperfeições o que leva à famosa assertiva: a democracia é o pior de todas as formas de governo excetuando todas as outras. Ora, então estaríamos diante de uma contradição entre a democracia como forma de expressão concreta e o valor que constitui em sua substância?

    Voltemos à Marx e seu conceito de fetiche. Logo depois da síntese apresentada na qual o autor define que o fetiche do mundo das mercadorias pode ser definido como uma relação entre seres humanos que assume a forma espectral de uma relação entre coisas nos é apresentada uma frase inquietante. Como os trabalhos privados atuam como partes do trabalho social, é somente através das trocas das mercadorias que acabam se estabelecendo as relações entre os produtores privados. Disso Marx conclui que as relações se apresentam “de acordo com que realmente são, como relações materiais entre pessoas e relações sociais entre coisas, e não como relações sociais diretas entre indivíduos em seus trabalhos” (Marx, O Capital, livro I, volume I, capítulo 1, item 4).

    Vejam que a forma fantasmagórica apresenta uma inversão, mas não é o cérebro dos homens que produzem esta inversão. Em outro trabalho (Marx, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Boitempo: 2005, p. 145), quando fala do Estado e a religião afirma que estes expressam uma consciência invertida do mundo por que são a consciência de um mundo invertido. Desta maneira, quando vemos na forma fetichizada das mercadorias expressa uma inversão, apenas nos deparamos com um elemento do real invertido.

    No caso das mercadorias o fato é que os seres humanos ao produzirem as coisas que satisfarão suas necessidades na forma de mercadorias, necessariamente acabarão por se relacionar com os outros por meio destas coisas, daí o fetichismo, nos termos de Marx, ser “grudado” aos produtos do trabalho e inseparável da forma mercadoria.

    E no caso da democracia? Primeiro precisamos lembrar que o fetichismo das mercadorias e seu complemento inevitável, a reificação ou coisificação dos seres humanos, não se prende apenas à esfera restritamente entendida como econômica. É destino dos seres humanos submetidos à forma mercadoria verem os produtos de sua mão distanciarem-se e voltar contra eles como uma potência estranha que os controla ao invés de controlarem. Sabemos que os seres humanos ao produzirem as condições de sua existência produzem, de igual maneira, as relações em que vivem. Também produzem as relações dentro quais edificam as formas sociais de tomada de decisão que podem ou não evoluir para formas de poder, as normatizações que podem ou não evoluir para estruturas jurídicas e assumir a forma do Direito e mesmo as ideias, valores por meio dos quais buscam compreender a si mesmos, os outros e o mundo e que assumem a forma de concepções de mundo, religiões, filosofias, ciência, manifestações artísticas constituindo certa consciência social.

    Acontece que aquilo que se manifesta na produção direta da vida através do trabalho, pode também se expressar nas objetivações secundárias de maneira que os seres humanos produzem relações sociais que se voltam contra eles como uma força estranha e acaba por dominá-los. O direito se aliena na lei positivada. Nossos medos e angústias em deuses furiosos os benevolentes. Nossa subjetividade se materializa em formas estéticas que muitas vezes navegam para longe das almas de onde partiram.

    Para nós não é um espanto o fato de que as relações políticas, isto é, a própria associação dos seres sociais em sociedade e as formas de governo que daí deriva, se estranhar em algo acima e contra os seres humanos como na espectral visão hobbesiana de Estado e daí derivarem uma miríade de contradições e problemas que passam a ser os grades temas da teoria Política Moderna: a relação entre a vontade particular dos indivíduos e o interesse geral, a fonte da soberania e da autoridade, a relação entre o Estado e a Sociedade Civil Burguesa.

    Assim como os produtores privados de distintas mercadorias, executores de trabalhos concretos distintos, só encontram sua equivalência na abstração do valor, no fenômeno político, próprio da ordem das mercadorias, acaba por se produzir uma contradição entre o burguês como membro da sociedade civil e o cidadão como membro do Estado. Na sociedade civil burguesa, é um indivíduo, livre, com potencialidades e talentos singulares que o levarão a uma posição de sucesso ou fracasso na concorrência com outros indivíduos, portanto, profunda e visceralmente desiguais. Só no bojo das relações políticas e jurídicas, diante do Estado, é que se tornam iguais na condição de cidadãos e, nesta, necessariamente abstratos, isto é, uma igualdade jurídica de seres em si mesmos diferentes.

    As contradições da democracia não derivam, portanto, da contradição entre valor e forma. A forma revela as contradições presentes no valor pelo simples fato de que ambas, forma e substância, são expressões da materialidade das relações em que são produzidas. O paradoxo insuperável consiste no fato de que o desafio da democracia como forma de governo é encontrar a forma política adequada a seres formalmente iguais em direitos que são de fato desiguais diante da propriedade e, consequentemente, das riquezas e posição social que daí deriva.

    Hegel procura resolver logicamente este paradoxo afirmando que o fim do Estado é o interesse universal como tal, mas que a substância deste interesse universal deve ser a conservação dos interesses particulares, ou se preferirem, como síntese de múltiplas particularidades. Kelsen é forçado a concluir que um olhar realista que penetre “a nuvem das aparências ideológicas” demonstra que os Estados que realmente existem acabam por defender, antes de mais nada, o “interesse do grupo dominante” (Kelsen, H. A democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 40). Bom, Marx já sabia disso e daí conclui que todo Estado é sempre o Estado de uma classe social, não de qualquer uma, mas da classe economicamente dominante em cada período.

    O neo-positivista Kelsen, em uma direção distinta, acredito que representando um elemento importante da consciência de nosso tempo, se vê obrigado a concluir que:

    “Dada a oposição de interesses, que é da experiência e que aqui é inevitável, a vontade geral, se não deve exprimir exclusivamente o interesse de um único grupo, só pode ser a resultante, a conciliação entre opostos. A formação do povo em partidos políticos na realidade é uma organização necessária a fim de que esses acordos possam ser realizados, a fim de que a vontade geral possa mover-se ao longo da linha média” (idem, p. 41).

    Vejam, dada que a oposição (diríamos nós – o antagonismo) de interesses é inevitável e não é desejável que o Estado defenda o interesse apenas de um grupo (normalmente o da classe dominante), então o interesse geral deve ser a expressão da conciliação dos interesses, movendo-se na “linha média”. Ora, dado o fato de que o Estado exprime o interesse de um dos grupos (não por acaso o dominante), não passa pela cabeça do eminente jurista nascido em Praga e falecido em Harvard (em muitos sentidos físicos e simbólicos) que a solução seja criar as condições para que o Estado expresse os interesses do outro grupo (os explorados), mas a conciliação de interesses de explorados e exploradores.

    É assim que as coisas são e assim se expressam como realmente são. No entanto, dada esta sociabilidade, nossas relações políticas só podem ser de seres abstratos, pois só no âmbito da abstração dos interesses gerais é que os seres reais que compõem as classes podem encontrar a linha média. A relação real entre as classes é de luta, mas mediadas pelos partidos que supostamente representam esta classe, pode-se encontrar a linha média dos interesses no quadro na vontade geral, evidentemente pressupondo a exclusão de todo interesse e manifestação concreta, substituindo-as pela abstração do compromisso, do pacto, do consenso.

    Na política como na economia são os próprios seres humanos que produzem as relações que os aprisionam no estranhamento e na alienação. Livremente escolhem, a cada quatro anos, entre os membros da classe dominante aqueles que os representaram e massacrarão no parlamento, já disse Marx e reforçou Lênin. O aperfeiçoamento da democracia fetiche se dá na medida em que agora os trabalhadores podem livremente, a cada quatro anos, escolher até mesmo entre os membros de sua classe aqueles que o representaram e massacrarão no exercício do poder político do Estado burguês.

    Contra o fetiche e a reificação, lembremos Silvio Rodriguez: “onde há homens, não há fantasmas”!

    ***

    Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, presidente da ADUFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
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    13 de nov. de 2012

    Outubro ou nada


    Por Mauro Iasi.

    Uma família de nobres voltava a São Petersburgo com seus inúmeros filhos e malas volumosas. Havia se retirado em fevereiro para fugir dos acontecimentos trágicos que haviam derrubado o Czar e não havia acompanhado o desenvolvimento político que levara os trabalhadores ao poder em outubro. Pateticamente parada na plataforma e acostumada com um servilhismo milenar, esperava que algum carregador implorasse para levar as bagagens da família em troca de alguns míseros copeques.

    Depois de esperar em vão por um bom tempo, um criado (nobres não se dignavam a falar com pobres) vai buscar informações e ouve a seguinte resposta: “agora somos livres, se quiser carregue suas malas”!

    Era a grande revolução de Outubro que emergia lá de onde costuma vir as coisas dos explorados, da periferia, das sombras esquecidas sob a ofuscante aparência de riqueza das sociedades opulentas, dos cantos obscuros que o olhar hipócrita quer esquecer ou incorporar como normal. Em meio à tragédia da guerra, a barbárie em sua forma mais didática, a vida resistia e se levantava contra a fome e a morte.

    A Revolução Russa marcou de forma definitiva a história do século XX em muitas áreas (ver a coletânea organizada por Milton Pinheiro, Outubro e as experiências socialistas do século XX, Salvador, Quarteto, 2010), como acontecimento político, como experiência histórica de um Estado Proletário, como base de transformações econômicas fundadas na socialização dos meios de produção, nas práticas do planejamento, como influência política direta nos rumos do movimento comunista internacional e a formação de estratégias e táticas do movimento revolucionário mundial.

    Não podemos esquecer sua importância no desenvolvimento da cultura (é só pensar em Vladimir Maiakoviski na poesia e Sergei Eisenstein para o cinema), o ulterior desenvolvimento da música (Prokofiev, Straviski) e dança, das ciências (Luria, Vigotski, Bakthin, e tantos outros), o desenvolvimento técnico e científico (Sakharov, Andréi Kolmogórov etc.). No entanto, quisera me deter numa outra dimensão.

    Certos acontecimentos históricos despertam algo um pouco mais intangível que suas manifestações econômicas, políticas, culturais e técnico-científicas. A revolução russa se espalhou pelo mundo, sem internet e televisão, numa velocidade que precisa ser compreendida. Não apenas se expandiu enquanto processo revolucionário que em menos de seis meses havia saído da Europa oriental e chegado ao mar do Japão, se alastrado como fogo em palha pelo antigo império czarista, como atravessou o oceano e incendiou o coração e as esperanças dos trabalhadores das partes mais distantes do globo.

    Em uma foto de grevistas em um porto nos EUA na mesma época pode se ver ao fundo uma faixa na qual se lê: “façamos como nossos irmãos russos”. No Brasil as greves operárias se alastravam até a greve geral de 1917 e a Revolução Russa foi saudada pelo movimento anarco-sindicalista como expressão da revolução libertária enquanto emissários eram mandados para lá para colher informações e prestar solidariedade. Poucos anos depois, nos anos vinte, quando o caráter marxista da experiência soviética se torna evidente, distanciando-se, portanto, dos princípios anarquistas, forma-se um movimento comunista que não tem paralelo com nenhum outro por sua escala mundial, sua forma de organização e sua ação.

    Partidos Comunistas são formados em toda a América Latina, assim como em quase todos os mais distantes rincões do planeta, dos EUA até a China. Evidente que a formação da União Soviética e da III Internacional Comunista explicam a iniciativa e mais, a necessidade, de uma organização internacional, mas não sua aceitação e rápido desenvolvimento. Há elementos objetivos e subjetivos que precisam ser levados em conta.

    Os objetivos são por demais conhecidos e podem ser resumidos na própria internacionalização do modo de produção capitalista e sua transformação em imperialismo, mas não podemos compreender a dimensão desse fenômeno sem entender que a revolução soviética foi um evento catalisador de esperanças de todos os explorados.

    Como nos dizia Marx, para que se forje uma classe revolucionária é necessário que se manifeste uma classe que se apresente como um entrave de caráter universal, ao mesmo tempo em que outra consiga expressar através de sua particularidade os contornos de uma emancipação universal. Falando da Alemanha, Marx afirmava que faltava: “grandeza de alma, que, por um momento apenas, os identificaria com a alma popular, a genialidade que instiga a força material ao poder político, a audácia revolucionária que arremessa ao adversário a frase provocadora: Nada sou e serei tudo.” (Karl Marx, Crítica à filosofia do direito de Hegel, São Paulo, Boitempo, 2005, p.154).

    Não se trata de nenhum deslize idealista, mas de exata combinação de fatores que dada certas condições materiais, que sem dúvida a guerra mundial propiciava, cria uma equação na qual uma classe encontra as condições de sua fusão enquanto classe. Imersa na cotidianidade reificadora, submetida às condições da exploração, os trabalhadores vivem seu destino como uma condição inescapável. Ainda que submetidos às mesmas condições que seus companheiros, não vivem estas condições como base para uma consciência e ação comuns, mas como uma serialidade, nos termos de Sartre. A vida é assim e é impossível mudá-la.

    Em certas condições, no entanto, se produz uma situação na qual a realidade se impõe de tal forma que se torna impossível manter a impossibilidade de mudá-la, nas palavras de Sartre: “A transformação tem, pois, lugar quando a impossibilidade é ela mesma impossível, ou se preferirem, quando um acontecimento sintético revela a impossibilidade de mudar como impossibilidade de viver” (Jean-Paul Sartre, Crítica de la razón dialéctica, Buenos Aires, Losada, 1979, v. 2, p.14). O pensador francês tem em mente os acontecimentos da crise da monarquia absoluta que levou à eclosão da Revolução Francesa, mas vemos claramente esses elementos na crise do czarismo nas condições da guerra.

    Interessa-nos, no entanto, outra dimensão desse fenômeno. Da mesma forma que um acontecimento sintético pode levar à fusão da classe e a superação de sua situação de serialidade, encontrando na ação do grupo as condições para abrir a possibilidade de superar o campo prático inerte, devemos supor que uma ação particular da magnitude de um processo revolucionário como o russo, provoca um efeito sobre os trabalhadores, mesmo aqueles que não estavam envolvidos direta e presencialmente nos acontecimentos.

    Ernesto Che Guevara denominava isso de “consciência da possibilidade da vitória” e inclui entre as condições objetivas que torna possível uma revolução. Quando os trabalhadores vêem os revolucionários russos varrerem seus tiranos, quebra-se a impressão de naturalização e inevitabilidade com as quais revestiam suas condições de existência. É possível mudar, nada somos, mas podemos ser tudo.

    Em um belo poema soviético é descrita a cena na qual uma camponesa que agora tinha acesso aos museus e suas obras de arte se detêm diante de um quadro a admirá-lo. A autora do poema então conclui: “mal sabia que ali era uma obra de arte a admirar outra”. Operários assumem as fábricas, as terras são entregues aos comitês agrários para serem repartidas. Soldados, operários, camponeses, marinheiros, lotam os teatros antes privativos da nobreza russa, para ouvir Maiakóviski recitar os poemas que retira dos bolsos de seu enorme casaco e de seu coração ainda maior.

    Suspendamos por um instante as enormes dificuldades que viriam, a guerra civil, o isolamento, a burocratização e a degeneração que culminaria no desfecho histórico de 1989. Naquele momento de maravilhoso caos, a vida fluía não como processo que aprisiona os seres humanos nas cadeias do estranhamento, mas como livre fluir de uma práxis transformadora. Tudo pode ser mudado. Podemos criar as crianças de uma nova forma, e já vemos Makarenko e seu enorme coração abrigando os órfãos da guerra e reinventando a pedagogia, trabalhadores organizando as comissões de fábrica e Alexandra Kollontai olhando o mundo com os olhos de mulheres emancipadas.

    Enquanto o mundo capitalista preparava-se para esmagar a experiência revolucionária russa (a república dos trabalhadores seria atacada em 1918 por dez potências estrangeiras), o generoso coração da classe trabalhadora acolhe esta experiência como sua e a defende, sem conhecê-la profundamente, sem que a compreenda de todo, mas por que nela se reconhece.

    Paz, terra, pão e sonhos voavam pelo mundo que o capital havia tornado um só e mãos calejadas, duras como a terra que trabalham, os seguram e se alimentam da esperança dos que se levantaram contra seus opressores. Corpos exauridos pela chacina diária das fábricas caminham pelas ruas e olham em frente, levantam seus punhos e cantam a canção que os unia: se nada somos em tal mundo, sejamos tudo, ó produtores!

    Em tempos como os nossos, de hipocrisia deliberada, em tempos de humanidade desumanizada, de cotidianidade reificada, a consciência da possibilidade da vitória se reverte em seu contrário e se manifesta novamente como uma consciência da impossibilidade da mudança. Brecht nos alerta: nada deve parecer natural, porque nada deve parecer impossível de mudar e completa em outro poema: até quando o mundo será governado por tiranos? Até quando iremos suportá-los?

    Presos à nova serialidade, fragmentados e divididos, submetidos às novas cadeias de impossibilidades, escolhendo a cada quatro anos quem irá comandar sua exploração, nossa classe nem se lembra que teve um outubro e que fizemos a terra tremer e que os poderosos perderam o sono diante da iminência de seu juízo final.

    Diante da realidade do capital internacional que ameaça a humanidade, diante da barbárie diária que ameaça minha classe, gestam-se novas impossibilidades de manter os limites do possível, crises didáticas transformam em pó certezas neo e pós liberais arcaicos/modernos e suas irracionalidades racionais. O pólo da negatividade humana se reapresenta arrogante e prepotente. Muitos são os que se levantam ainda sem rumo, não importa, que se levantem e gritem, resistam e lutem. Mas, em sua marcha olhando para o futuro, resistindo contra as mazelas do presente desumano do capital, olhem por um momento para trás, vejam como já marchavam à nossa frente nossos camaradas russos, vejam como iam decididos e corajosos abrindo caminho em direção ao amanhã.

    Marchemos para frente, tiremos nossa poesia do futuro, basta de anacronias e cópias do passado, mas não nos esqueçamos nunca que tivemos um Outubro, e foi nosso, e foi um grande Outubro vermelho e proletário, e foi tão grande que foi planetário, e foi tão generoso e fraterno que nele se irmanaram todos os trabalhadores do mundo e chegaram a acreditar que tudo podia mudar e, por um momento, mudaram tudo que podiam.

    Viva a revolução Soviética de 1917. Outubro… ou nada!

    ***

    Não deixe de conferir A revolução de outubro, de Leon Trotski e a coletânea Revoluções, organizada por Michael Löwy.


    ***

    Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, presidente da ADUFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

    12 de nov. de 2012

    A Revolução morreu? Viva a Revolução!

    Por Gilberto Maringon

    Muito já se escreveu sobre a Revolução Russa e a sociedade e o mundo que ela gerou. O balanço de seus erros e acertos está longe de se consolidar, 95 anos passados da tomada do Palácio de Inverno. Mas poucos contrariam uma certeira apreciação do historiador inglês Eric Hobsbawm (1917-2012).

    Segundo ele, "A Revolução de Outubro teve repercussões muito mais profundas e globais que a Revolução Francesa (1789) e produziu, de longe, o mais formidável movimento revolucionário organizado na história moderna".

    Nenhum processo histórico gerou tamanho saldo organizativo, tão volumosa teoria e muito menos colocou tantos milhões de homens e mulheres em ação, em inúmeros países, dispostos a dar a até a própria vida pela transformação social.

    A Revolução causou medo entre as classes dominantes, entre os ricos e os abastados de todo o planeta. O pânico gerou uma feroz reação. No plano material, desatou-se, durante décadas, uma ofensiva militar e repressiva contra tudo o que cheirasse a contestação à ordem estabelecida pelo regime do capital. Na esfera da disputa pelos corações e mentes, torrentes de mentiras fizeram brotar a indústria do anticomunismo em praticamente todos os países.

    Realizada num país atrasado, em meio a um conflito bélico de largas proporções - a I Guerra Mundial - e num momento de crise do sistema imperialista mundial, a Revolução de 1917 teve repercussões em inúmeras áreas do conhecimento humano.

    País agrário


    Nas condições objetivas da Rússia de cem anos atrás, um marxista vulgar descartaria a possibilidade da eclosão de uma ruptura socialista. Aquele era, nas últimas décadas do século XIX, um imenso país agrário, com 85% de sua população vivendo no meio rural, em situação de extrema pobreza. Apenas 20% da população era alfabetizada.

    A partir dos anos 1890, a indústria conheceu um razoável progresso, principalmente nas áreas de metalurgia, petróleo, tecelagem e carvão, graças a vultosos investimentos estrangeiros.

    A atração de camponeses empobrecidos para as cidades deu origem a uma massa crescente de trabalhadores que adquiriam ao mesmo tempo qualificação técnica e consciência política.

    Transformação Social

    Mesmo assim, a classe operária era largamente minoritária para nuclear um projeto de transformação social. O país que, em tese, reuniria melhores condições para uma ruptura social era a Alemanha. Majoritariamente urbana, dotada de uma indústria moderna e possuidora de uma classe operária numerosa e experiente, a Alemanha vivia também as contradições de ter uma burguesia extremamente reacionária. O quadro foi agravado no curso da I Guerra Mundial (1914-1918).

    No entanto, as crises do sistema imperialista, um regime despótico e corrupto e uma década de rebeliões populares acabaram por fazer do país dos czares o "elo débil" do capitalismo mundial.

    Mas apenas tais condições não bastariam para deflagrar a Revolução. Nesta situação, adquire relevância um dirigente marxista inovador e criativo, capaz de traçar uma tática original, rumo à transformação social. O dirigente chamava-se Vladimir Lênin (1870-1924). Se alguém pode ser chamado de gênio na era contemporânea, este alguém é Lênin. Nenhum outro intelectual do século XX teve suas idéias tão disseminadas e apropriadas por tanta gente, como aquele russo de estatura mediana e olhar penetrante.

    A originalidade de Lênin

    Qual a originalidade de suas formulações? Entre muitas, podemos apontar duas principais.

    A primeira foi divulgada em março de 1902, no livro "Que fazer?". Desenvolvendo as idéias de Marx e Engels, seu autor demonstra a necessidade da criação de uma teoria revolucionária e de um "partido de novo tipo" para organizar os trabalhadores. Disciplinado, baseado no centralismo democrático e composto por células horizontais e verticais, o partido funcionaria como um "intelectual coletivo" e um exército ágil e maleável para tempos de enfrentamento.

    A segunda grande contribuição de Lênin foi a resolução de um intrincado problema tático. Se a classe que formaria a vanguarda revolucionária era a operária, como ela, minoritária na Rússia, daria conta da titânica tarefa de mudar a sociedade?

    Apesar de minoritária, a ela caberia o papel de força motriz no processo. Para Lênin, ela teria de se unir a outros segmentos de oprimidos e explorados. O setor principal seriam as massas camponesas, saídas da servidão décadas antes. Lênin propõe, no livro "Duas táticas da social-democracia na revolução democrática" (1905), a aliança operário-camponesa. Seria uma união entre diferentes, para realizar uma tarefa comum: implodir o sistema que explorava a ambos.

    Há sentido atualmente?

    Qual o sentido de se debater a Revolução Russa hoje, além de se comemorar uma data redonda?
    Aos que julgam anacrônica uma transformação social que teria se esgotado com a queda do muro de Berlim, em 1989, vale fazer um paralelo histórico.

    Olhemos para outra Revolução, a Francesa, deflagrada mais de um século antes, em 1789. O impulso social por ela provocado colocou o Antigo Regime no chão e moldou a sociedade nos âmbitos da política, da economia e da cultura até os dias atuais.

    Golpe de Estado

    Se usássemos uma régua curta, poderíamos dizer que não foi bem assim. O regime construído a partir da queda da Bastilha chegou objetivamente ao fim dez anos depois, em 1799. Nesse ano, Napoleão Bonaparte deu o golpe de estado de 18 de brumário e instaurou uma férrea ditadura. Se nossa régua for mais elástica, veremos que em 1814, com a Restauração Monárquica, pouco restavam dos ideais revolucionários, além do sistema métrico decimal, adotado oficialmente em 1791.

    Apesar disso, as conquistas da Revolução Francesa, em termos de liberdade, direitos humanos, separação de poderes etc. estão aí. Dizer que os impulsos da Revolução Socialista esgotaram-se em 1989 equivale a reutilizar aquela régua curta.

    O capitalismo continua tão ou mais agressivo que há 95 anos. Seus rastros de destruição, insegurança, aumento da miséria, instabilidade e exploração seguem gerando conflitos sangrentos mundo afora. O imperialismo atual é muito mais danoso à humanidade do que jamais foi. Seu poder é muito maior.

    Outubro de 1917 continuará a fazer sentido enquanto a humanidade quiser buscar outro mundo possível. Fará sentido enquanto as palavras de Vladimir Maiakovsky ainda tocarem o coração das pessoas: "Nesta vida/ Morrer não é difícil/ O difícil/ É a vida e seu ofício".

    Gilberto Maringoni é jornalista e cartunista, doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de "A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez"
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