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quinta-feira, junho 30, 2011

Uma mulher de palavra

Era uma mulher de palavra. As palavras nasciam-lhe nos braços e derramavam-se pelas mãos abertas. Fugiam-lhe entre os dedos. Era uma mulher de palavra, e ficava sem palavras. A voz perdia-se nos labririntos dos argumentos e emudecia nos becos sem luz das trocas azedas de palavras; palavras gastas à bruta e à pressa, mal nascidas, cuspidas, vomitadas, violadas; a ela, uma mulher de palavra, a voz atraiçoada. Quando cantava abria o peito aos pássaros e esquecia as palavras; esquecidas, as palavras antes esfaqueadas ganhavam força e melodia e voavam aladas nas alturas, mergulhavam na água das nuvens, mexiam o corpo e dançavam; caíam, exaustas, e escorriam languidamente pelo pescoço de Deus, volúpia interdita e apetecida, interrompida por meias palavras, murmúrios, rios silenciosos de asas nocturnas, risadas cristalinas, água espelhada no charco de um olhar minucioso, íntimo, um olhar preciso, atento, irrequieto, pronto a morder. As palavras iam e vinham, nasciam, morriam-lhe na boca, a ela, uma mulher de palavra. Uma mulher sem palavra. Uma mulher nua. Uma mulher vestida apenas com a pele do corpo, e as palavras que já não lhe cabem na boca. Uma mulher sem boca. Louca. Alucinada.

(este texto foi um dos vencedores do Desafio de Escrita - Micronarrativas, promovido pela ecO - Associação Cultural de Leiria, e foi publicado hoje, 1 de Julho, no Região de Leiria.)

Transpiração

A água ferve.
A cabeça voa.
O pensamento corre, da faixa azul de azulejos em cima do fogão para a parede branca, e desta para o brilho metálico dos talheres lavados.
A água a ferver.
A cabeça a latejar.
O pensamento a correr pelo chão de mosaicos, a deter-se na linha de luz junto à porta, um bocado de sol a rasgar o chão. O chão líquido no olhar alucinado.
A tua voz já não mora aqui. Há muito que o desejo da tua voz lhe ocupou o lugar, na mesa da cozinha, no sofá da sala, no lado direito da cama.
O desejo da tua voz é o mais parecido que há com uma dor de ouvidos.
A água ferve. O vapor espalha-se no ar tépido.
Levanto-me e apago o lume. Tiro uma caneca da prateleira e um pacote de chá da caixa preta, com letras brancas, onde a palavra chá é, de súbito, uma obscenidade.
Num relance, vejo-te o corpo nu, a escorrer água, saído do duche. A toalha turca numa intimidade que me arrepia os cabelos da nuca. A tua boca húmida, ligeiramente aberta, a deixar entrever o branco dos dentes.
E uma palavra, puta, a escorrer-te dos lábios.
O vapor bate-me no rosto, enquanto despejo a água na caneca. O pacote de chá perverte momentaneamente a lei da gravidade, sangrando, o mar em ebulição à sua volta. E é então que vejo o meu coração em ruínas.

Temperatura

Encontrava-se a um canto da cama, o corpo enrolado, como morto. As costas deixavam de lhe pertencer. Era um caracol, protegido pela concha dura. Nas costas ardia-lhe qualquer coisa húmida. Não sabia o que era. A sensação era semelhante à da mão da mãe, e, ao mesmo tempo, substancialmente diferente. Este toque acordava-lhe qualquer coisa debaixo da pele, como se formigas incandescentes se passeassem pelos seus braços e pernas, detendo-se em turbilhão na barriga, ameaçando explodir. Era por isso que se encolhia e enrolava sobre si mesma: para abafar aquela vertigem no centro do corpo. Paralizava os músculos, tornava-os de pedra, para que nada sentissem. Erguia muro atrás de muro até as costas estarem longe, muito longe de si. Dentro das muralhas ficava quieta, muda, adormecida, igual a uma estátua; e com tanta força cerrava os olhos e os sentidos que chegava a acreditar que não estava ali, que estava trancada dentro da fortaleza de pedra que era o seu corpo e que nada a podia tocar. A coisa, todavia, era persistente, e a pele das costas arrepiava-se, contorcia-se em silêncio, gritava num desespero mudo, enquanto dentro de si a temperatura, lenta, fria, deslizava, e subia, subia, subia.