quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Sentinellas perdidas

Foram crescendo a par;
São irmãos, e do píncaro do monte,
Dominam, todo em circulo, o horisonte
Da Costa brava, e do sanhudo mar!


Sentinelas ou Guardas avançadas, Caparica, Falcão Trigoso, 1935.

Nas grandes invernias,
Sentinellas perdidas, dam signal —
Sempre alerta, n'aquellas serranias —
Ao remoto casal.
Nos silvos das frondeadas ramarias.
Que se approxima o furacão austral!


Junho, 96.


(1) Bulhão Pato, Livro do Monte, 1896

sexta-feira, 24 de julho de 2020

We missed Caparica

Em 1947, no pós-Segunda Guerra Mundial, quando se começou a assistir a um enorme desenvolvimento da prática turística, a editora londrina Phoenix House lançou uma colecção ilustrada com o título “The Young Traveller Series” [...]

Costa da Caparica, Um trecho da praia, ed.Passaporte, 44.
Delcampe

Bem recebidos por pais e professores, passaram a integrar as listas das leituras aprovadas e recomendadas por muitas instituições, nomeadamente a Library Association, a School Library Association e a National Book League. 

O objectivo era descrever a vida de vários países, expondo os jovens leitores à diversidade do mundo e à diferença linguística e cultural [...]

Costa da Caparica, Vista parcial da Praia do Sol, ed. Passaporte, 43.
Delcampe

É possível que descrições longas pudessem ser consideradas cansativas para o público-alvo, pois a narradora diz, a certa altura, que os próprios filhos, às tantas, já estavam “sick of looking at things”.

Um exemplo flagrante de concisão diz respeito a Sintra, lugar venerado por forasteiros de origem britânica desde há muito e transformado em local de peregrinação romântica, o qual era normalmente objecto de arrebatadas descrições por parte dos viajantes estrangeiros. 

Costa da Caparica, Vista parcial da Praia, ed. Passaporte, 15.
Delcampe

Neste caso são-lhe apenas dedicadas breves linhas, sem as habituais citações de Childe Harold’s Pilgrimage, de Lord Byron [v. artigo relacionado: Ilustrações de Finden à vida e obra de Byron] – nas palavras de Karen R. Lawrence, um exemplo eloquente do modo como “fictional travel impinges on actual travel” –, por a descrição ser feita pelo jovem William, a quem escapa a magia do lugar e que afirma prosaicamente não terem subido até ao Palácio da Pena por... estar muito calor.

A Costa da Caparica, outro local considerado imperdível, foi também propositadamente evitado, por ser demasiado frequentado: “All the guide books we had ever read told us that no visitor to Portugal should miss Caparica (...)

Costa da Caparica, Vista parcial da Praia, ed. Passaporte, 19.
Delcampe

As G.H. said, it was all enough to make us avoid the place like the plague. (...) We told one another that not seeing Caparica lent a certain distinction to our travels.”

E houve até quem sugerisse à autora, à custa disso, um título para o livro que estava a preparar: “We Missed Caparica”.

Costa da Caparica, Um aspecto da Praia, Passaporte, 21.
Delcampe - Bosspostcard

Sublinhe-se esta vontade deliberada em percorrer um itinerário alternativo aos consagrados pelos guias turísticos que o próprio título da obra, The Young Traveller in Portugal (e também o da colecção em que está integrada, “The Young Traveller Series”), espelha, quando se opta pelo termo traveller e não tourist (o qual ia ganhando conotações negativas). (1)


(1) Maria Zulmira Castanheira,The Young Traveller in Portugal... Revista de estudos anglo-portugueses 26, 2017

terça-feira, 14 de julho de 2020

Ercília Costa, Antigamente

O Fado tem em Ercília Gosta uma das suas mais legitimas e fieis intérpretes. "Sereia peregrina do Fado", no dizer de alguns críticos, "Santa do Fado", no dizer de outros, Ercília Gosta é indubitavelmente uma grande cantadeira. 

Ercilia Costa (1902-1985).
Museu do Fado

Filha de gente do mar, teve por berço essa linda praia da Costa de Caparica, e foi de certo ali, embalada pelo murmúrio do Oceano, que a sua linda voz, que nos recorda a da saudosa Maria Vitória, aprendeu a cantar o Fado.

Ercília canta admiravelmente todos os fados, repassando-os dum profundo sentimento, escolhendo para cantar os versos mais simples da poesia popular — dessa poesia que ela sabe sentir e reflecte como um espelho a alma do povo.

Começando desde muito nova a cantar o Fado, não tardou a impôr-se pela sua voz de fadista primorosa. Portugal inteiro a conhece e admira, e ainda recentemente, no Brasil, Ercília teve ensejo de ver quanto é querida e apreciada não só pelos seus patrícios como pelo povo brasileiro.


Tem cantado em quasi todos os teatros do pais, em algumas casas fidalgas e, que nos lembre, gravou os seguintes discos: "Fado dois tons", "O meu filho", "Rosas", "Fado sem pernas", "Fado Ercília", "Fado Aida", "Fado Tango", "Saudades", "Fado Lisboa", "Divina Graça", "A minha vida", "Desilusão", "Um desgosto", "Amor de Mãi", "Fado Corrido", "Negros Traços", "A desgarrada", com o dr. Antonio Menano e Joaquim Campos, e "Fado da Mouraria", também com Joaquim Campos.

Quando há anos se realizou em Lisboa um desafio de football Portugal Espanha, reuniram-se numa ceia de confraternização, no restaurante Boina, diversos jornalistas desportivos, portugueses e estrangeiros, tendo sido Ercília Costa e o seu colega Filipe Pinto convidados a assistir a essa festa.


Ambos cantaram de tal modo, engrinaldando de sentimento os seus versos, que alguns dèsses estrangeiros que não conheciam o Fado, se declararam maravilhados, aplaudindo delirantemente a gentil portuguezinha e o seu colega. 

Decorrido bastante tempo, Ercília Costa ainda era assediada por alguns dêsses jornalistas estrangeiros, que lhe escreviam recordando essa noite memorável e pedindo lhe autógrafos e discos das suas criações.


Em sua homenagem, depois do seu recente regresso das Terras de Santa Cruz, foram-lhe oferecidas duas festas: no salão de Chá, do Café Chave de Ouro e no Retiro da Severa, em que Ercília Costa, pela selecta assistência que a elas acudiu, mais uma vez teve ensejo de ver quanto o público a estima.

Do seu reportório que Ercília escolhe escrupulosamente as seguintes quadras do poeta popular João da Mata:

ANTIGAMENTE

Antigamente era uso 
Jantar-se fora de portas,
E cantar-se o fado luso
Na sombra amena das hortas.

Preparavam se os farnéis, 
Combinado de antemão: 
Uns tratavam dos pasteis, 
Outros do vinho e do pão... 

Uma carroça enfeitada 
De palmeiras verdejantes, 
Levava a rapaziada 
Para o sitio dos descantes. 

Animação, algazarra, 
No banquete improvisado...
Até que a voz da guitarra
Vinha anunciar o Fado!

Toda a gente se calava,
E a garganta fresca e bela
Dum cantador modulava
Uma cantiga singela. (1)


(1) A Victor Machado, Ídolos do fado, Lisboa, Tip. Gonçalves, 1937

Artigos relacionados:
Ercília Costa (1902-1985)
Rosa Costa, A minha paixão
Caparicanas

Outras referências:
Ercília Costa no Museu do Fado
Livro "Ercília Costa - Sereia Peregrina do Fado" no facebook
Ercília Costa no YouTube
Ercília Costa em Discogs

segunda-feira, 29 de junho de 2020

Sarah Affonso, postais da Costa a Manuel Mendes (1930-1931)

Ainda na década de 1930, a Costa era um fervedouro de conversas e encontros entre os escritores Manuel Mendes e José Rodrigues Miguéis (amigos desde a juventude e companheiros da Seara Nova), e respectivas mulheres, Berta e Pola, os desenhadores e retratistas Sarah Affonso, José Tagarro e Alice Rey Colaço, o maestro e compositor Fernando Lopes-Graça, e o escultor Barata Feyo. 

Autorretrato (1927) e retrato de Manuel Mendes (1930), Sarah Affonso.
MNAC

As temporadas que Rodrigues Miguéis passou na vivenda Engrácia (Quinta de Santo António), alugada por Manuel Mendes, inspiraram algumas passagens da sua obra, como esta de O Milagre Segundo Salomé, em que a "criadinha pacóvia e sem lábia", Dores dos Santos, vai com o senhor Tesouras à Costa da Caparica: "Ela nunca tinha ido a uma praia de verdade, co 'mar' para ela era o Tejo, aquilo que se avistava de Algés e Dafundo..." (1)

3 de agosto de 1930

Receia que o assunto, que lhe interessa, não esteja resolvido. Regressa a Lisboa...

Costa da Caparica, Partida para a pesca, ed. Acção Bíblica (Aliança Bíblica), c. 1930.
Casa Comum

14 de agosto de 1931

Envia cumprimentos, esperando a sua visita...

Costa da Caparica, A Praia do Sol, A faina, ed. Acção Bíblica Casa da Bíblia, c. 1930.
Casa Comum

12 de outubro de 1931

Informa-o sobre a partida para Lisboa...

A Praia do Sol, Costa Caparica, ed. Acção Bíblica Casa da Bíblia, c. 1930.
Casa Comum


(1) Costa da Caparica: de Pina Manique a Mário Domingues, revista Sabado 22 de agosto de 2019

Mais informação:
Museu Nacional de Arte Contemporânea
Museu Calouste Gulbenkien, Sarah Affonso
Almanaque Silva, Mariazinha africanista
Casa Comum, Sarah Affonso

sábado, 20 de junho de 2020

Os noivos (último canto de Bulhão Pato)

«Se passares pelo adro,
No dia do meu enterro,
Pede á terra que não gaste
As tranças do meu cabello.»
Canção Popular.

I

A aldea é de pescadores.
Por essas costas do mar,
Quando as tormentas começam,
Aquillo é que é labutar!

Desenho da Costa antiga, autor António Lopes Martins, Col. Particular.
Rui Manuel Mesquita Mendes (fb)


Ás vezes um mez a fio,
O vento sem acalmar,
E os vagalhões dia e noite
Nas rochas a rebentar!

Algum remedio, e bem pouco,
Que tanto custa a juntar,
Pois basta um mez de invernia,
Nem tanto, para o levar!

Que vida a da pobre gente,
Quando começa a lutar
O vento bravó co'as ondas,
Por essas costas do mar!

II

Ha quatro casas e a ermida
De pedra e cal, o demais
Choças de colmo que ás vezes
Destroem os vendavaes.

Mas quando chega o bom tempo,
E a pesca não escaceia,
Respira toda alegria,
Apesar de pobre, a aldea.

Daniel é moço e forte; 
Ninguém com elle compete, 
Já no saber, já no arrojo 
Com que a todo o mar se mette!

Vê-se uma negra de peixe —
Ás vezes mal se tem visto: 
Lá vae co'a sua companha 
Por esses mares de Christo. 

Tem fé co'a Virgem do Amparo, 
E alguém diz qne a devoção 
É por ser Amparo o nome 
De certa rosa em botão. 

D'entre as demais raparigas 
Só ella não é trigueira, 
Também não se expõe ao tempo, 
Trabalha como rendeira. 

Lidar de noite e de dia, 
Com tanto affinco, é bem raro!
Esteio da mãe velhinha, 
Bem posto o nome de Amparo!

Daniel, n'aquella aldeia 
Onde o viver é tão parco,
Já tem um barco, e tem redes, 
Quo valem mais do que o barco.

III

A mutua affeição dos dois,
Que era na infância amisade,
Tomou-se em amor, depois
Que entraram em certa idade.

Elle quiz-se declarar,
E com voz entrecortada,
A custo poude fallar:
Ella é que não disse nada!

Sentindo agitado o seio,
Não raro diz a innocencia,
Com a mudez do receio,
Bem mais que a voz da eloquência!

Que importa o que os lábios calam,
Quando as palavras se prendem?
Também as flores não fallam,
E pelo aroma se entendem!

É que esse aroma, imagino
Que será, talvez, na flor
O mesmo effluvio divino
A que chamamos amor !

IV 

Amparo tínha no rosto
Uma expressão de ternura,
Que lhe dava mais encantos
Do que a própria formosura!

Os olhos azues purissimos,
E de transparência tal,
Que deixavam ler no fundo
Da sua alma virginal!

O cabello loiro-escuro,
Tão basto, tão annelado,
Que era um primor, posto em tranças,
É mn enlevo, desatado!

No tempo em que era creança,
E de génio folgasão,
Com as outras raparigas,
Pelas tardes de verão;

Andava a brincar na praia,
E a espreitar de quando em quando:
Os hombros nús, mais que os hombros...
Emfim, co'as ondas folgando.

N'isto vinham os rapazes
Mas o cabello era tanto.
Que sacudia a cabeça,
E servia-lhe de manto!

Ao amado da sua alma
Deu ella um dia, em secreto.
Um annel d'esses cabellos.
Penhor de sagrado affecto!

E elle, cheio de alvoroço,
Sem hesitar um momento,
Para pagar-lhe a fineza,
Foi pedil-a em casamento.

Fundíam-se aquellas almas
Em celestiaes alegrias:
Ha dias do ceu na terra!
Eu creio que ha d'esses dias!

V

Uma tarde, era nas vésperas
De se fazerem as bodas,
Os pescadores na costa
Largavam as redes todas.

O ceu estava sereno;
Era propicia a estação:
Logo em entradas de outono,
Dias como de verão.

Porém o vento levanta-se!
E quando menos se espera.
Seja verão, seja outono,
Seja inverno ou primavera.

Daniel, deixando os outros,
Com a companha a seu cargo,
Fez-se ao mar, largando as artes
A duas léguas de largo.

O peixe dava em cardumes;
Lidando não attentaram
No aspecto de certas nuvens
Que no ceu se agglomeraram. 

Dentro de pouco os relâmpagos
Nos ares a fuzilar,
E o vento a picar as ondas,
E as ondas a rebentar!

Podiam correr á popa,
Mas não sem todo o cuidado,
Que á popa, em caindo tempo,
É navegar arriscado.

A vela posta nos rizes
— O vendaval carregava —
Como um falcão corta os ares,
O barco as. ondas cortava!

Amparo, sobre um penhasco.
De mãos. postas a resar:
A morte no arfar do seio,
Ancias de morte no olhar

Elles já perto da costa,
E o povo junto a dizer:
«Se o barco vem aos cachopos
Só Deus lhes pode valer!»

Tentaram fazer-se ao largo,
Luctando co'a morte a braços;
Mas deram sobre os rochedos,
E o barco fez-se em pedaços!

Salvou-se toda a companha.
Daniel inda se ouviu 
Bradar: — «Ó Virgem do Amparo!»
E nisto não mais se viu...

A noiva soltara um grito;
Mas quem lhe fôra acudir,
Vira-lhe o rosto sereno,
E até a bocca a sorrir!

Aquelle grito estalara-Ihe
As fibras do coração
E a infeliz, nesse momento,
Tinha perdido a razão!

VI 

Passados dias, Amparo
Puiha-se á beira do mar,
A olhar — como quem espera
Por alguém que hade voltar!

E os que passavam ouviam-lhe,
Sem que ella desse por tal,
Repetir estas palavras
D'uma tristeasa mortal:

«Devem cumprir-se os pedidos
D'aquelles que vão morrer;
Uma só coisa te peço,
— Mas que tu me has de fazer:

«Se passares pelo adro.
No dia do meu enterro,
Pede á terra que não gaste
As tranças do meu cabello.»

E depois, soltando as tranças
A larga brisa do mar,
Repetia inda estes versos,
E desatava a chorar!

Janeiro, 1871 (1)


(1) Bulhão Pato, Cantos e satyras, Lisboa, Rolland & Semiond, 1873

terça-feira, 16 de junho de 2020

Bulhão Pato pelo visconde de Benalcanfôr


N'um esboço tocado de traços fugitivos não cabe de certo a minucia demorada, mas indispensavel no retrato para a semelhança perfeita das feições e das physionomias. Por mais sobrio de divagações que seja o escriptor, torna-se-lhe muito difficil, senão impossivel, contrahir na tela acanhada de um capitulo as magestosas ondulações de uma corrente de poesia que ha vinte e quatro annos* despraia pelas margens da nossa litteratura depon do n'ellas o nateiro abundante e riquissimo de suas creações poeticas.

Bulhão Pato (1828-1912)
(insp. Andy Warhol, Ten Lizes, 1963)

* Data de 1850 a apparição das primeiras poesias de Bulhão Pato. Seguem-se-lhe em 1857: Amor virgem n'uma peccadora, comedia-drama em um acto, prosa e verso 1862 ; Versos , 1 vol .  1864 : Digressões e novellas , 1 vol . , e Graziella , versão de Lamartine 1866 : Paquita ( poema ) , 1867 ; Canções da tarde , 1 vol . - 1869 ; Flôres agrestes , 1 vol .  1871 ; Paisagens ( prosa ) , 1 vol , 1873 ; Cantos e satyras , 1 volume. Editores , Rolland e Semiond , 1873, Lisboa ; Renan e os sabios da academia ( satyra ) , O cemiterio de Pisa , e a Vendetta , versões de Emilio Castellar , e de Balzac.

De feito , a indole primordial e as evoluções subsequentes do talento de um escriptor ou de um poeta qualquer , teem mais do que affinidade remota com as nascenças de um rio. Como este , o talento tambem brota modesto de suas origens , e engrossa depois a sua corrente , já derivando se reno , já correndo agitado , ora apertando-se em voltas caprichosas , ora alargando seu alveo e rolando magestoso até se metter no oceano ordinariamente tempestuoso da fama litteraria . Porque é que , aos 19 annos , apaixonado e ter no como um trovador , com a bocca ainda humida do ultimo beijo , a mente escandecida por visões encantadas e por sonhos voluptuosos que — sómente a aurora desfaz arroxeando o horisonte , para voltarem na noite immediata , — canta os amores juvenis , com seus enleios e suas malicias tam bem ?

Porque scisma dôcemente Bulhão Pato vendo os lirios e as boninas em que pousa o orvalho das manhãs de abril ? Porque aspira com embriaguez o aroma dos campos ? Porque escuta os mil rumores mysteriosos do bosque ? Porque se fica esquecido a contemplar as nuvemsinhas do poente e as sombras melancolicas do crepusculo da tarde ? E porque é tambem , que passados vinte annos , vêmos o mesmo poeta , outr ' ora rescendente das essencias mais fragrantes do lyrismo , despedir-se , pelo menos momentaneamente , das canções amorosas , arrancar as cordas do seu alaúde romantico para pulsar a lyra fremente da indignação vingadora de Juvenal , de Augusto Barbier e de Victor Hugo ?

É facil conciliar esta contradicção apparente , pois não é senão uma phase natural de sua indole poetica , lembrando-nos de que Bulhão Pato é um poeta essencialmente espontaneo ; que a sua poesia é o reflexo fiel da sua alma . Suas canções risonhas como uma alvorada de maio quando as illuminava o sol da primeira mocidade , assumiram nas satyras já a gravidade das paisagens severas , já o aspecto tragico das cataratas que se despenham no inverno com medonho estrepito , ou o das noites de procella cuja escuridão é apenas alumiada pelo fulgor livido dos relampagos.

É que a doçura das illusões juvenis cortou-lh'a o travo das decepções ; é que aos idyllios descuidosos da manhã da vida seguiu-se , no poeta , o drama viril da existencia com o seu cortejo de lutas , e de paixões acerbas.

Foi este pendor natural por onde o poeta foi levado das regiões tranquillas da poesia individual e lyrica aos espaços tempestuosos da poesia social e da satyra politica , aonde as coleras , os resentimentos e até as proprias aspirações do poeta , ou antes do partidario , é inevitavel que tumultuem com o fragor e a espuma das ondas irritadas. Se a Nemesis politica pode ser , como é sempre nas satyras de Bulbão Pato , elevada , decorosa e elo quente , nem por isso está isenta , em outros poe tas contemporaneos , das allucinações do furor , e dos rebates rancorosos.

Poeta de verdade , fiel ás vozes interiores da consciencia que o chamam a combater por uma causa em que vê o triumpho da justiça , ou a fulminar os que se lhe afiguram vicios e hypocrisias sociaes com os seus terriveis alexandrinos , verda deiros raios despedidos pela mão de Juvenal , Bulhão Pato é tão espontaneo e sincero hoje na explosão das paixões , que o abrazam , como o era d'antes nas effusões do seu adoravel lyrismo.

A sua musa , agora como sempre , não se envolve em roupagens theatraes , nem carece de lentejoulas para nos seduzir com os seus encantos . É essencialmente singela , desaffectada , natural . O seu culto é o do bello , idealisado pela arte . Se algumas superstições alimentar , como todos os cultos , serão as da sinceridade dos sentimentos , da espontaneidade das impressões.

Será esta a ultima e definitiva phase do seu talento poetico , affirmado por tantos monumentos , em que a sua phantasia ao mesmo tempo vigorosa e delicada gravou as suas creações como os esculptores mais afamados gravaram com o cinzel as suas no marmore antigo mais puro ?

Não o acreditamos . A natureza com as suas vozes mysteriosas ; o coração humano com os seus enleios , esperanças e amarguras ; os mil dramas commoventes da existencia ; as subtilezas e os arcanos psychologicos da alma ; as tragedias moraes da paixão , em que gemem e succumbem , duramente suppliciados , os affectos mais intimos ; eis a tela larga e permanente em que hão-de voltar a embeber-se as côres da palheta opulenta e admiravel do nosso eminente poeta . Ainda bem , que as apostrophes e as coleras partidarias são apenas na vida social , e na littera ria tambem , um ephemero accidente.

Especie de relampagos que atravessam a atmosphera , sua claridade é momentanea , como momentaneo é tambem o ribombo do trovão que os acompanha.

Afastados os negrumes da procella , o céo recobra a antiga transparencia etherea , semelhante á superficie azul de um lago immenso que nenhuma aragem encrespa.

Quaes são as feições salientes do genio poetico de Bulhão Pato ? a imaginação , a sensibilidade , a perfeição inimitavel da fórma , e o gosto sem igual.

Em todo o poeta , que o é deveras , ha forçosamente a coexistencia da imaginação , que cria as ficções , as scenas , os personagens , com a sensibilidade que o domina , antes de nos commover , e com a melodia do rythmo cujas cadencia , sonoridade ou valentia formam a linguagem sublime da linguagem da poesia . A todo este conjuncto feliz de qualidades devem presidir as leis soberanas do gosto que lhe dão relevo , vigor , graça e harmonia.

Quando o poeta melodioso da "Harpa do crente" e da "Voz do propheta" [Alexandre Herculano] escreveu no prologo da Paquita que "Bulhão Pato é sobre tudo um homem de gosto e que o homem de gosto é sobre tudo singelo" , resumiu n 'um traço a physionomia inteira do author dos Cantos e satyras.

Alexandre Herculano (1810-1877).
Retrato por Francisca de Almeida Furtado, 1852.
 MNAA, Obras em reserva, O museu que não se vê.

Adivinha-se n'elle a sua predilecção pela singeleza de Garrett , desespero de tantos que inutilmente a teem procurado na poesia e na prosa . Nas "Digressões e novellas" , bem como nas "Paisagens" , digamos , ha contos e episodios narrados e descriptos com tal suavidade de linguagem e tal frescura de tintas , o colorido é ao mesmo tempo tão sobrio e acertado , a trama da prosa tão finamente tecida , o dizer tão caloroso e casto , que acabando de lêr aquellas paginas , nos sentimos consolados , não só com a certeza de não haver desapparecido com o visconde d'Almeida Garrett o estylo elegante , singelo e sobrio das Viagens na minha terra , mas até de o vêrmos luzir na simplicidade das suas roupagens , tão animado como d'antes , flexivel , eloquente.

Voltando á sua poesia , podemos dizer que Bulhão Pato canta suavemente , ternamente , quer o enlevem as scenas da natureza , quer o commovam as dôres profundas ou as miserias dilacerantes dos supremos infortunios . Nas cordas da sua lyra resốam-lhe espontaneos os canticos , como o vento na harpa eolia , desferindo por si mesma as notas e as estrophes . A melodia , a tristeza e o amor divagam pelas cordas do seu alaúde como o luar de uma noite de outono pelas campinas , avel ludando - as com sua doce e pallida claridade.

O seu ideal poetico nem é o naturalismo exagerado de Goethe  nem a ironia desesperada de Byron. 

Respira-se nos seus poemas o perfume do lyrismo de Garrett e de Lamartine , interrompido a espaços pela toada doudejante de Musset , mas illuminado e aquecido pelas chammas do sol da peninsula que lhe dourou o berço.

Almeida Garrett (1799-1854)
Retrato por Manuel Araujo Porto-Alegre, 1833.
Instituto Camões

Abundam na harpa do poeta as notas sentidas da elegia , e alguns dos seus poemetos , entre elles a "Rosa do monte" e "Os Noivos" , são deliciosos pelo interesse dramatico que os anima , pela paixão intensa que respiram e pela perfeição dos moldes poeticos.

Em ambas estas composições, admiraveis de fórma , o poeta elevou-se á mais alta sensibilidade, orvalhando-as de lagrimas e commovendo-nos. Que sobriedade de traços na pintura da aldea, nos Noivos, e que sympathia contagiosa pela vida aspera dos pobres pescadores !

A aldea é de pescadores .
Por essas costas do mar ,
Quando as tormentas começam ,
Aquillo é que é labutar !

Ás vezes um mez a fio ,
O vento sem acalmar ,
E os vagalhões dia e noite
Nas rochas a rebentar !

Algum remedio , e bem pouco ,
Que tanto custa a juntar ,
Pois basta um mez de invernia ,
Nem tanto , para o levar !

Que vida a da pobre gente ,
Quando começa a lutar
O vento bravó co ' as ondas ,
Por essas costas do mar !

Ha quatro casas e a ermida
De pedra e cal , o demais
Choças de colmo que ás vezes
Destroem os vendavaes.

Mas quando chega o bom tempo ,
E a pesca não escaceia ,
Respira toda alegria ,
Apesar de pobre , a aldea.

A pintura da noiva de Daniel, o arrojado pescador , é um modelo de poesia, e de naturalidade, em que se reproduzem as altas faculdades do poeta, a imaginação viva, a singeleza graciosa, a ternura tocante e o atticismo da fórma :

Amparo tinha no rosto
Uma expressão de ternura ,
Que lhe daya mais encantos
Do que a propria formosura !

Os olhos azues purissimos , 
E de transparencia tal , 
Que deixavam lêr no fundo 
Da sua alma virginal ! 

O cabello louro - escuro , 
Tão basto , tảo annelado , 
Que era um primor , posto em tranças , 
E um enlevo , desatado !

No tempo em que era criança 
E de genio folgazão , 
Com as outras raparigas , 
Pelas tardes de verão , 

Andava a brincar na praia , 
E a espreitar de quando em quando 
Os hombros nús , mais que os hombros . . . 
Em fim co ' as ondas folgando.

N ' isto vinham os rapazes — 
Mas o cabello era tanto , 
Que sacudia a cabeça , 
E servia - lhe de manto !

E que vêa dramatica lateja na rapida scena do temporal que de repente se levanta !

O céo estava sereno ; 
Era propicia a estação : 
Logo em entradas de outono , 
Dias como de verão. 

Porém o vento levanta - se 
E quando menos se espera , 
Seja verão , seja outono , 
Seja inverno ou primavera.

Daniel , deixando os outros , 
Com a companha a seu cargo , 
Fez - se ao mar , largando as artes 
A duas leguas de largo. 

O peixe dava em cardumes ; 
Lidando não attentaram 
No aspecto de certas nuvens 
Que no céo se agglomeraram. 

Dentro de pouco os relampagos 
Nos ares a fuzilar , 
E o vento a picar as ondas , 
E as ondas a rebentar !

Podiam correr á pôpa 
Mas não sem todo o cuidado 
Que á pôpa , em cahindo tempo , 
E ' navegar arriscado. 

A véla posta nos rizes — 
O vendaval carregava — 
Como um falcão corta os ares , 
O barco as ondas cortava ! 

Amparo , sobre um penhasco , 
De mãos postas a rezar : 
A morte no arfar do seio , 
Ancias de morte no olhar.

Elles já perto da costa , 
E o povo junto a dizer : 
« Se o barco vem aos cachopos 
Só Deus lhes póde valer ! » 

Tentaram fazer - se ao largo , 
Lutando co ’ a morte a braços ; 
Mas deram sobre os rochedos , 
E o barco fez - se em pedaços !

Com que saudade nos apartamos dos vergeis amenos , das solidões melancolicas ou das campinas risonbas por onde divagam alternadamente os folgares e as tristezas do seu lyrismo , lagrima crystallina em que por instante brinca um raio de sol !

Com que pena dizemos adeus aos lagos transparentes em que o vêmos espanejar suas azas brancas de cysne , para seguirmos embora por poucos instantes o poeta ás regiões tempestuosas da satyra , onde os jambos de Archilocho fuzilam como raios por entre as nuvens negras de procella e os alexandrinos esplendidos do nosso poeta ullulam , encapellando - se , como vagas enfurecidas , e possessas do demonio da tormenta !

Ouçam esse brado , em que renascem as mofas e o desprezo de Juvenal :

Lá vai correndo as ruas da cidade , 
A quatro , um titular da grande sociedade . 
Que apparatoso trem , que fardas d ’ espavento ! 
Pasma o futil vulgacho em face do portento ! 
Quem é ? sabem quem é : conhece - o todo o mundo : 
Um nobre , um par do reino , um sapo nauseabundo , 
Que á plena luz do sol , viscoso e repellente , 
Ou na praça ou na rua enoja a toda a gente ! 

Este illustre varão , poço de iniquidades , 
Tem — faculta - lhe a lei — varias immunidades : 
Póde até legislar ! ó povo desgraçado , 
Decide - te da sorte o voto d ’ um forçado , 
Que , se houvesse moral , já não seria estranho 
Vêl - o com a braga ao pé a trabalhar no banho !

A satyra que tem por titulo "Dalila" reune , a meu vêr , quantos predicados se exigem da satyra , para que ella nem na grandeza , nem na magestade , nem na eloquencia , nem na indignação , nem na ironia , desça das alturas em que deve pairar , sob pena de deixar de ser à musa terrivel do sarcasmo e transformar - se na collareja desbragada e plebêa dos mercados.

Este é o perigo supremo , a catastrophe séria que ameaça a maior parte das imprecações poeticas da actualidade . A satyra ha - de ser mais do que um aggregado de epithetos deprimentes e de injurias villăs , embora ligados n ' um feixe poetico pelo laço prestigioso de um rythmo sonoro e opulento.

É preciso sobre tudo que a satyra não perca nunca a elevação da idéa , a finura subtil da analyse , o cambiante feliz e inesperado nos traços incisivos e rapidos das suas ironias e que a colera , que a domina , não a afunde no charco das obscenidades grosseiras nem a rebaixe ás indecencias avinhadas de uma bacchante meio despida.

Eis um trecho da satyra a que nos referimos :

Que singular mulher ! 
que estranha formosura ! 
Tem tudo — o andar , o gesto , a graça da figura ! 
No purissimo azul dos olhos crystallinos 
A luz que nos transporta aos extasis divinos . 
Casando - lhe a altivez co ’ a timida innocencia , 
Deu - lhe ao rosto o ideal a mão da Providencia. 
O devoto dirá , vendo - a rezar no templo : 
« Não pode ser do mundo aquella que eu contemplo ; 
Se és anjo implora a Deus o bem da humanidade ! » 
Tal assombro produz a magica beldade !

Pois bem , esta mulher — mulher unicamente — 
Enreda , calumnia , infama a toda a gente.
No livro de orações á margem tem marcado 
O dia da entrevista , o ponto combinado. 
Uma vez escondeu , por ser o caso instante , 
No berço d ' uma filha as cartas d ’ um amante. 
Profanando , sem alma , o coração do lar , 
Profana tudo mais : a prol ' , o templo , o altar ; 
Mas como entra no mundo apparatosa e rica , 
Co ' as virtudes da santa o mundo se edifica !

Esta magnifica satyra , recheada , como vêem , de contrastes felizes , de antitheses de hypocrisia e de devassidão , de perfidia e de cynismo , prosegue sempre variada nos tons , acertada nos cambiantes e nas gradações . Na ultima parte d'ella , o poeta figura uma infeliz trahida nos seus amores pelo homem de quem teve uma filha . A sociedade mostra - se indifferente a tão grande infortunio.

Perante este egoismo revoltante do corpo social o poeta exclama :

O mundo que applaudiu as galas deslumbrantes 
Da perfida ao marido e perfida aos amantes 
Co ' a implacavel moral que inflamma a gente séria 
Desampara a infeliz prostrada na miseria.

Bemdito seja Deus ! — os que mais fazem d ' isto 
Andam sempre a invocar teu santo nome , ó Christo. 

A moralidade que respira esta composição , o caracter impessoal com que fecham estes versos esplendidos , irreprehensiveis , aonde , além do ar tista que inventa , ha o lapidario paciente que pule os prismas do diamante , o Benvenuto Cellini que lavra com um buril privilegiado e unico os pri mores da phantasia , tornam admiravel a satyra de Dalila ; e provam a elevação artistica a que póde attingir , nas mãos de um poeta eminente e sabedor da arte , um genero aliás tão perigoso e cercado de precipicios.

As suas satyras , até hoje publicadas , respiram pela maior parte a punição das apostasias e a au dacia generosa das aspirações da liberdade , sem os doestos e as represalias sanguinolentas que ge ralmente , seja qual fôr o paiz e o talento do es criptor , salpicam a satyra , e por vezes a fazem rojar pelos tremedaes , desgrenhada , odienta , plebêa.

Quando nos lembra que Barbier , o notavel e fogoso poeta , que em plena monarchia de julho fez lampejar em todo o seu fulgor os raios da satyra antiga , descrevia a liberdade como uma mulher robusta ,

Qui ne prends ses amants que dans la populace 
Qui ne prête ses larges flancs 
Qu ' a des gens forts comme elle , et qui veut qu ' on l ' embrasse 
Avec des mains rouges de sang , 

e se extasiava com o fanatismo servil de um li berto de Claudio diante das escorias sociaes , ani . madas de odios profundos ás quaes elle chama

La grande populace et la sainte canaille 

é facil prever a quantas aberrações , a quantos desregramentos póde arrastar , quando manejada por mãos imprudentes ou inhabeis , esta arma litteraria em que , se por um lado , respiram as paixões nobres e viris , por outro fermentam , não raro , os sentimentos baixos , as vinganças biliosas , e a licença deshonesta das maximas torpezas.

Ainda bem que a satyra de Bulbảo Pato é sempre elevada . Que outros não a prostituam aos convicios das encruzilhadas e não a manchem com o lodo das infamias partidarias , é o nosso voto mais sincero.

Oxalá que não se vulgarize um genero litterario que , pela sua mesma natureza , não pode ser na arte senão uma manifestação excepcional , tendo - se em conta a exaltação febril e as paixões acerbas , necessarias para a sua gestação , e de que ella vive infelizmente como da sua vida natural e permanente.

Sente - se porém admiração espontanea , irresistivel , bemdiz - se até o jambo de Archilocho e o latego de Juvenal , quando n ' elles trôa a eloquencia vingadora de "Victor Hugo no Calvario" , e da "Velhice do Seculo" . É que então a arte reveste - se , deslumbrando - nos , de todos os esplendores das auroras boreaes.

Quando a musa sobe tão alto na indignação e na eloquencia , e dos seus pincaros de luz e de chammas , ao mesmo tempo magestosa e terrivel , dardeja raios ardentes , que alumiam e abrazam quanto tocam , a grandeza solemne da scena asso berba o espectador , e subjuga - lhe por tal forma as faculdades da analyse e da critica , que estas co mo que se paralysam , para só viverem as do en thusiasmo e as da admiração.

Ouçamos o poeta [cf. Victor Hugo no Calvario ( Cantos e Satyras ) , pag . 160]:

Já um dia em Paris a honrada burguezia 
Fraternizou tambem co ' a santa clerezia , 
Protegeu a matança , e depois d ' esso horror 
Assentou sobre o throno um certo imperador. 
Veio à paz , engordou - - embora amordaçada , 
— O clero a dominar a plebe fascinada ; 
Nos campos a nudez , nas côrtes a opulencia ; 
Os excessos do luxo a darem na demencia ; 
Censura ao pensador , licença ao imbecil , 
Ao zombeteiro estulto , ao escriptor mais vil . 
Que succedeu depois ? - o tronco derrancado 
O fructo que produz é fructo desgraçado.

O direito era a força , e julgando - a tamanha 
Claudio ousou provocar os brios da Allemanha . 
O clero abençoava o protector de Roma : 
Rugia o seu leão e sacudia a coma . 
De repente a panthera atira - se ao leão , 
Mas encontra na garra um Cesar charlatão.

Não podem apagar - se versos como estes . Fundidos em bronze , teem a solidez e hão - de ter a duração e o relevo das moedas e das estatuas d ' aquelle metal . A posteridade ha - de sentir para estas composições a mesma admiração que sente para as satyras de Persio e de Juvenal , de Barthelemy e de Augusto Barbier ; porque nas satyras de Bulhão Pato fundem - se com primor igual a grandeza e a elevação da invectiva na pureza inexcedivel , perfeitissima do rythmo , — nos mais sonoros e va lentes alexandrinos , em que pode esculpir - se a linguagem de um poeta portuguez.

Troveje elle muito embora na satyra e folgue , por momentos , de sé nos revelar por entre os fulgores do raio e o graniso de fogo dos coriscos dos seus alexandrinos ; mas , por Deus lh ' o pedimos , não se despeça das regiões do seu lyrismo encantador. 

Não diga para sempre adeus á musa travessa e de vaneadora da Paquita , — d ' esse poema que lhe con quistou os fóros de eminente poeta , — d ' esse poema , que é um monumento indestructivel como já é também o tormento dos seus detractores ; por que bem sabe elle que a corôa da gloria litteraria é desgraçadamente cravada , por dentro , dos espinhos da inveja , que , por baixo das folhas de lou ro estão de continuo ensanguentando a fronte dos infelizes que a cingem!

Em resumo : eloquente , magestoso , por vezés terrivel , vibrando o sarcasmo , manejando a iro nia , nunca descahindo nas vulgaridades grosseiras , nem se atolando nos paúes da injuria torpe ( escolho dos talentos pouco delicados que confundem o vo zear das feiras com as imprecações nobres ) , Bulbão Pato sabe dar ás suas satyras as mais altas condições de decoro , de pudor , e de grandeza , de que é susceptivel esta fórma de poesia.

As suas invectivas teem a magestade classica . Assumem proporções epicas , os sacrificios , as he catombes , em que supplicía as suas victimas . Inspiram - no porém , sem nunca o desamparar , senti mentos nobres , propositos generosos , amor arden te da justiça , da liberdade , do progresso humano e social.

É por isso que , percebendo as intenções puras do poeta , sem desconhecermos as exagerações a que aliás póde levar tal genero de poesia , o applaudimos por esta brilhantissima manifestação do seu talento , onde alcançou victoria não menos assignalada e decisiva do que nos canticos da poesia lyrica , nos carmes da elegia , e principalmente nas ficções graciosas da Paquita , em que com felicidade summa seguiu entre nós as pisadas do Ariosto e de Casti , affirmando sempre a sua individualidade.

D'essa Paquita , de quem o snr. Alexandre Heculano escreveu "que a amou desde o berço porque representa na litteratura actual uma res tauração , e nega um progresso: restauração santa e progresso mentido", esperamos com avidez que não se demore a contar-nos o seguimento das aventuras que correu com o seu Pepe.

Está a pular-nos na memoria a lembrança d'aquella ermida, em que ao repontar do sol nos outeiros, Angelita se encontra com Pepe, enleados de se verem aquella hora da manhã. E o pasmo de Pepe quando em sitiaes ouve que Angelita pretende casal-o ? E a ingleza que n'esse momento se aproxima dos dous ? E as questões acaloradas entre o marido de Herminia e o da consuleza ? E o desafio dos dous apaziguado pelo mofino do Pepe, cujos amores esvoaçam sobre as tres adoraveis creaturas que o cercam, como borboletas sobre flôres ? E aquella walsa do baile, cuja descripção tem a vi vacidade calorosa da do Amaury ? E a viagem da despeitada Herminia para Athenas ? a febre mortal de Pepe quando se vê abandonado por ella ? a solicitude de Angelita correndo de noite a visitar o joven andaluz moribundo ? e o encontro d'ella com a formosa Adelina, a ingleza dos olhos azues, junto do leito do enfermo ?

Quando nos ha-de elle desenvencilhar toda esta meada intrincadissima ?

Ricardo Augusto Pereira Guimarães (1830-1889), Visconde de Benalcanfôr.

Os lances enredam-se alli n'um tal labyrintho vertiginoso de aventuras, de malicias, d'enganos, de paixões, que só poderemos alcançar o fio de Ariadna na continuação do poema, de que o author (esperamol-o ) não abrirá mão, sem primeiro satisfazer a nossa curiosidade, rematando ao mesmo tempo o monumento da sua gloria de poeta, monumento que ha-de avultar para o futuro entre os mais bellos e originaes da nossa poosia contemporanea. (1)


(1) Ricardo Augusto Pereira Guimarães, Phantasias e escriptores contemporaneos, 1874

Leitura relacionada:
Versos
Se coras, não conto
Paquita

Cantos e Satyras

Tema:
Bulhão Pato (em Mar de Caparica) 
Bulhão Pato (em Almada Virtual Museum)

sábado, 30 de maio de 2020

Bulhão Pato por José Maria de Andrade Ferreira

[VERSOS]

Classificações arbitrarias da critica . — Alfredo de Vigny e a poesia loura . - Macias e Bernardim Ribeiro e o verdadeiro sentimento poetico da peninsula preludiado pelos arabes e trovadores provençaes . — Bulhão Pato representante d ' esta familia , como Thomaz Ribeiro e João de Lemos . Analogias nas suas composições . - A convalecenle no nulono , Helena , Visão do baile . - O espirito inquieto da época influindo no talento do poeta . - A Lelia . - Retorno ás primitivas e nativas inspirações .

Bulhão Pato (1828-1912)
(insp. Andy Warhol, Ten Lizes, 1963)

A critica tambem tem as suas aberrações e as suas sympathias , e em o numero d ' aquellas deve de certo entrar a facilidade , com que ella appellidou a poesia de Bulhão Pato poesia loura . Se , á maneira do que Sainte - Beuve escreveu , tratando de Alfredo de Vigny , desejam exprimir na phrase poesia lnura a poesia pura , enthusiasta , candida , a poesia ingenua e de expansivos e singelos affectos , talvez que o epitheto não seja de todo descabido no poetar do sincero e apaixonado cantor ; mas agora , se poesia loura querem que seja a poesia de indole buliçosa , doudejante , infantil , tra vessa , embora de simples e descuidosos devaneios , n ' esse caso a qualificação não é de todo verdadeira , porque o au etor da Convalescente no oulomno , da Helena , da Visão do baile ; e de outros tantos poemetos inspirados pelo amor e pela saudade , é um poeta intimo , affectuoso , melancholico , elegiaco até , e cuja candura de alma desaffoga em ardentes e suaves estrophes de sentimento lyrico .

Nem tão pouco me parece completa , e ainda menos aproximada a similhança dos instinctos poeticos de Bulhão Pato com o genero de talento de Alfredo de Musset; ha evidente differença nas inspirações que mais habitualmente inflammam o estro dos dois cantores, e de certo maior differença nos caminhos que seguem, nos aspectos naturaes com que sym- pathisam, e nos affectos que lhes accendem o coração e a phantasia.

Nada mais difficil do que fazer classificações, e todavia, a critica abalança-se muitas vezes a este arbitrio, separando, analysando e qualificando o talento de qualquer escriptor por especies e familias, como o podera fazer qualquer botanico, tratando-se de familias de plantas. Disto segue-se mais de um Linneu ter naufragado no empenho de similhantes divisões scientificas, por que realmente ha grande distancia entre por uma etiqueta sobre este arbusto e aquella flor, ou collocal-a sobre um poeta ou um prosador.

Que, no nosso caso, a analyse e a divisão estão feitas. O talento de Alfredo de Musset apresenta um mixto de Byron e Sterne, em quanto que Bulhão Pato pertence á sentimental e melancholica estirpe de almas apaixonadas, que em França tem por irmãos mad. de Valmore e mad. Tastu, e que entre nós se apresenta como a expressão da verdadeira indole da poesia peninsular.

E se não fosse a anciã, que sempre houve entre nós, e muito mais nestes nossos tempos de faceis e desejadas aclimações estrangeiras, de ir procurar fora aproximações d"estas, como se este baptismo estranho se tornasse indispensavel á consagração dos nos sos engenhos, se não fosse esta ancia, repetimos, facil seria encontrar, mesmo no parnaso portuguez, os congenitos e os illustres ascendentes da linhagem poetica de Bulhão Pato. 

Analysando-lhe e seguindo com a vista a veia poetica, que ora se derrama em tranquillos e crystalinos meandros, por entre balseiras perfumadas, que, attrahidas pelo suavissimo sussurro do gracioso arroio, vem remirar-se na corrente e beijar-lhe as aguas; ora correndo mais apressada e espumosa se esconde em grutas, onde o amor depositára seus mysterios; ora volvendo atraz e enredando-se na selva, de para com uma gentil serrana, e ahi se demora em limpidos rodeios, como se tão seductor aspecto lhe immobilisara o nativo impulso; analysando e seguindo com os olhos todos estes caprichosos gyros, quem não comprehende que a alma do poeta se anima de todos os sentimentos que o contacto da formosura inflamma , e os diversos aspectos da natureza idealisam , e que daqui sảe aquelle composto de lyrismo suave e affectuoso , que umas vezes toma as formas bucolicas , outras arde nos impelos eroticos , outras emfim pro cura os tons meigos e penetrantes da elegia , composto sym pathico e mavioso de que o nosso desditoso Macias é já o precursor , ainda que mal definido , e Bernardim Ribeiro a nossa mais perfeita e gloriosa personificação ? !

Quem não comprehende esta indole e este parentesco ? !

E do poeta das Saudades que descende em linha recta o auctor da Helena . Até ha incontestaveis pontos de analogia entre muitos dos sentimentos , inspirações e até entre a pro pria concepção poetica dos dois trovadores . E trovador chamarei a Bulbão Pato , porque elle , como João de Lemos , e como Thomaz Ribeiro , e talvez mais do que o primeiro , e tanto como o segundo , significa um dos naturalissimos filhos d ' esta familia peninsular . 

Na sua estréa o mostrou elle logo , na Revista Universal . Foi justamente a ingenuidade , o gracioso desalinho d ' aquella musa que , para se mostrar , nem procurava as pompas das metaphoras de Victor Hugo , nem os embevecimentos contemplativos de Lamartine , attrahiu a attenção e sympathia de todos . 

Quando a maior parte dos nossos mancebos corriam azafamados , a jurar bandeiras nas hostes gloriosas dos grandes mestres francezes , Bulhão Palo parecia só querer evocar do primeiro e mais nativo periodo da nossa poesia aquella singeleza , aquella candura de affectos , aquella profunda e dolorida saudade , que os cantores provençaes nos trouxeram , e que os poetas arabes nos deixaram e que ficou sendo a manifestação da nossa in dole poetica . 

É este o caracter da poesia peninsular , e ninguem , como Bulhão Pato , a não ser o auctor do D . Jayme , a sente e revela melhor . Nos mesmos versos em que parece affastar - se um pouco da natureza dos assumptos mais predilectos do alaude antigo , n ' esses mesmos respira a simplicidade , os affectos tranquillos , o tom da suave e intima tristeza , que são o seu caracteristico . Na Folha desbotada diz , por exemplo o poeta :

... É esta na existencia 
A tua estrella de amor ! 
De amor puro , intenso , ardente , 
Mas que , occulto eternamente , 
No meu peito ficará ! 
Que, no infortunio nascido, 
Só conimigo tem vivido, 
E commigo morrerá.

Não será esta a ingenuidade, o affeclo tocante e singelo, a mesma ausencia de artificios de estylo dos trovadores?!. Até as repetições do mesmo pensamento no trocadilho final, uma das suas formulas mais usadas e caracteristicas.

E n'esta estrophe da poesia que o auctor intitula voltas, não encontraremos nós da mesma sorte a propria maneira bucolica de Bernardim Ribeiro, a ponto de nos parecer estar lendo (á parte a differença do progresso litterario das duas edades) algumas das eglogas do auctor da Menina e Moça?

Agora entre as outras flores 
Correm uns certos rumores ... 
Quaes são, não sei; mas ouvi 
Que as mais bellas da campina 
(Por quem és tão invejada), 
Quando hoje chamam por ti, 
Dizem — rosa namorada, 
E não — rosa purpurina.

N'estes versos ha a graça do idyllio junto ao perfume suave da egloga: è Rodrigues Lobo e Bernardes ao mesmo tempo.

Mas quem me vir tão escrupuloso a inquirir assim a origem e progenie poetica de Bulhão Pato, talvez presuma que elle faz consistir seus titulos de fidalguia litteraria em ser perfilhado n'esta ou n'aquella eschola, e que eu por lison jear a vaidade do poeta, a mais feminil e meticolosa de to das as vaidades, me dei a esta tarefa de investigação de linhagens, desentranhando do cadoz dos pergaminhos da ar- cheologia litteraria os seus attestados de filiação. Pois se cuidam isto, cuidam mal. 

Bulhão Pato nunca pensou em escholas poeticas, e é justamente d'esta isenção de pensamentos que lhe resulta a liberdade que desde os primeiros annos inculcara a individualidade do seu engenho. Bulhão Pato canta como o rouxinol trina, como a rola geme, como a andorinha pipilla, sem outra mira. nem intuito senão o desa bafo dos impetos que lhe agitam a alma, sem outro auxilio mais do que a nota espontanea e natural. 

É um poeta intuitivo, affectuoso e expansivo, e tão facil em derramar la grimas e mover-se a todos os transportes, tão debatida e envergado pelos ventos da paixão , tão inspirado pelos abalos intimos , tão estranho a escholas e artificios da arte , que lendo - o , e , ainda mais , ouvindo - o recitar os seus proprios versos com a vehemencia e admiravel naturalidade com que elle os recita , torna - se impossivel não considerar a poesia como independente de todo o fim convencional , e deixar de ver n ' ella o simples dom do poeta chorar , compadecer ou exaltar as suas angustias , envolvendo na melodia o seu soffrimento .

E é por isto que pertence , não intencionalmente , mas pela organisação do seu ser poetico , á mesma familia de cantores naturaes e espontaneos que , em combinações rhythmicas de extrema singeleza , acolhiam por unicas inspi rações a natureza , a gloria e o amor .

Não confundam , todavia , a naturalidade d ' este talento com a ligeireza que possa resultar de uma imaginação facil , por que Bulhão Pato é d ' aquellas organisações em que seria até impossivel separar o talento da sensibilidade , e que , por um admiravel accordo moral , e grande fundo de pathetico , nunca se apresenta deveras poeta , senão quando é amante ou vivamente impressionado . A sua faculdade poetica liga - se à paixão , como o echo á vaga , e como a vaga ao lago solitario .

Ma pauvre lyre , c ' est mon âme !

Póde dizer o poeta , e n ' este verso resumirá a essencia da sua inspiração profunda e melancholica , mas ao mesmo tempo espontanea e desartificiosa . E isto explica - se . Foi no embate das contrariedades da vida , em lucta . com as paixões , embora juvenis , porém sempre ardentes e acerbas , que o coração do mancebo modelou os seus soluços , sem outro mes tre senão a voz secreta da sua dôr . 

A lyra de Bulhão Pato nasceu uma lyra harmoniosa , mas uma lyra afinada pelos insinuantes accordes da angustia . E quem foi que no primeiro dedilhar lhe arrancou logo accentos tão penetrantes e doloridos ? Que ingratidão ou que infortunio lhe misturou com innocentes amores os ais carpidos da saudade que se lastima , ainda no limiar da vida , como Millevoye ou Soares de Passos ? Talvez nos seguintes versos achemos parte d ' este segredo .

Esvaeceu - se então completamente 
A meus olhos o anjo da candura , 
Das commoções divinas , da virtúde , 
E achei - me só , perdido , face a face 
Ante o demonio das paixões terrestres ! 
Dei - lhe a mão , e senti n ' um paroxismo
De desejo e de amor , fugir a vida .

Amargas desillusões enchem a vida do poeta , umas verdadeiras , outras agravadas pela ardencia da sua imaginação apaixonada . E n ' este primeiro poemeto da Lelia estão resumidos os mysterios da alma do affectuoso cantor . E nas . expansões delirantes de um affecto candido , que desabroxa este amor : « Es minha , diz o poeta :

« És minha : do céo proveio 
O poder que a ti me prende , 
Mas diverso fogo accende 
O teu e meu coracão : 
Tu no mundo és a innocencia ; 
Eu sou na terra a poesia ; 
Tu dás - me a tua alegria ; 
Eu dou - te a minha paixão !

Dou - te as sombras da tristeza , 
Que acertam sobre teu rosto . 
Como as sombras do sol posto 
Na rosa agreste do val . 
Recebes n ' um meigo abraço 
Meu profundo sentimento , 
E dás - me o contentamento 
Do teu seio virginal . »

Mas a aurora d ' este amor depressa se annuvia de nuvens de tristeza , porque logo depois o coração , ferido da ingra tidão , exclama :

Quando a razão voltou , como o murmurio 
Da fresca viração da primavera , 
O sopro perfumado de seus labios 
Vinha affagar - me docemente a fronte . 
Os anneis do cabello ondado e negro , 
Espargindo - se avaros procuravam 
Occultar - me da vista aquelle seio . 
Impaciente os affasto , devorando 
Num beijo , em mil , um mundo de delicias . 
Oh ! como então no peito me pulava 
O coração vaidoso e triumphante !

No languido quebranto que succede 
Ao febril desvario dos sentidos , 
Julia estava a meu lado : amortecida , 
Por entre a densa rama das pestanas , 
Partia a luz das languidas pupillas . 
Desmaiara de amor a rosa esplendida ; 
E voltava de novo aquella face 
A pallidez do lyrio das campinas .

Abatida e indolente, erguera a fronte ; 
Caminhámos os dois para a janeila : 
Os primeiros clarões da madrugada 
Vinham rompendo já no firmamento. 
Chegava, emlim, a hora; era forçoso 
Dizer adeus á seduetora imagem !

Que formosos versos! Como a paixão, pungida ligeira mente pelo espinho do remorso, desafoga n'estas ardentes estrophes, que um attractivo de melancolia torna mais insinuantes !

Não resisto á tentação de ainda trasladar para aqui mais uma parte d'esta composição. Agora o espirito diabolico, depois de haver apparecido ao poeta, e empenhado em per der Lelia, falla-lhe do seguinte modo :

— «Um sacerdote ancião, que além habita, 
N'aquella ermida que d'aqui se avista, 
Teima em não m'a deixar: tu só podias 
Ajudar-me a vencer n'esta batalha, 
lnda ha pouco menti, quando te disse 
Ser tarde já para salvar a pomba. 
É tempo ainda. Oh! vai! colhe as primicias 
D'aquelle coração que te idolatra: 
Tudo é luz, seducçao. amor, encanto, 
Na voz, no olhar, ha languida ternura 
Da rosa virginal que tu despresas. .
Anhelantes te esperam já seus labios; 
O seu peito infantil por ti saspira; 
No ouvido sente a voz dos teus protestos; 
O subito rubor lhe affronta as faces; 
Não a ves hesitar, tremer, fugir-te, 
Acercar-se outra vez, sorrir a furto, 
Escondendo nas mãos a fronte bella, 
De novo inda luetar, mas já sem forças, 
Cahir por flm num languido deliquio? 
Oh! corre a ser feliz em braços d'ella!» 
Um momento depois d'estas palavras, 
Em doce consonancia estranhas vozes, 
De improviso romperam n'este canto:

— «Seja a breve passagem da vida 
Uma serie de ardentes delirios ; 
Quem procura colher os martyrios , 
Quando existem as rosas em flor ?

Venturosos ergamos as taças, 
Onde brilha o licor purpurino, 
E soltemos as vozes n'um hymno 
Consagrado aos deleites do amor !

Vem, poeta: as tristezas do mundo 
Não comprimem jamais nossas almas ; 
Nós cercamos de floridas palmas 
A existencia votada ao prazer !

O que importa que a noite succeda 
Aos sorrisos do astro diurno? 
Para nós o astro nocturno 
Mil delicias nos torna a trazer!» 

Apossou-se de mim o immundo espirito. 
— « Sou teu, ó tentador, emflm lhe disse: 
Ao teu fatal poder entrego esta alma! 
Dize, dize, onde está essa que eu vejo, 
Mas que procuro em vão cingir nos braços !» 
— «Onde está ? vaes sabel-o ; e n'um momento 
A seus pés cairás ebrio de goso!»

Ao secreto aposento, onde jazia 
A virgem de meus sonhos, me dirige 
O torpe embaidpr. Entro em delirio, 
É ardendo em chammas de brutaes desejos, 
No casto ninho onde vivia a pomba. 
De repente uma luz serena e branda 
Veiu alegrar as trevas da minh'alma. 
Outra vez á rasão volto, e que vejo? 
Ante mim venerando sacerdote, 
Pondo-me ao peito a cruz que mais tarde 
A enganadora Julia me roubara. 
Lelia a seu lado, com as mãos erguidas, 
E os olhos postos no sagrado emblema, 
Estas doces palavras me dizia:

— « Deixou-te o negro espirito ! 
Feliz, de novo agora, 
Sorri tua alma em extasi 
Ao ver a pura aurora, 
Da qual somente é nuncia 
Na terra a humilde cruz ! 
Só ella, eterno simbolo 
De amor e de piedade, 
Brilha no mundo esplendida, 
E diz á humanidade : 
Surge das trevas lugubres, 
Ascende á etherea luz !

Mui de proposito transcrevi mais amplamente parte d'esta poesia, para evidenciar a modificação que pareceu operar-se no espirito do poeta. Sem perder de todo a singeleza primitiva, aquella graciosa singeleza de candidos affectos, que de certo fez appellidar a sua poesia de poesia loura, Bulhão Pato deixa entrever na Lelia, ainda atravez da antiga exaltação e do seu verdadeiro e sincero enthusiasmo, uns longes do sarcasmo de Affonso Karr e do azedume satyrico de Byron. 

Mas isto é uma concessão á época. O prurido da analyse, esta incuravel enfermidade de nossos dias, que tem ido embotando nos espiritos os mais nobres e generosos impulsos, e semeado o desalento e a desesperança por muito espirito , tentou talvez o poeta , mas não o venceu . 

Foi o Satanaz da saciedade pervertida , como elle mesmo o figura , que o levou até á beira do abysmo , onde , uma vez precipitado , o talento perde as azas candidas da sua innocencia primitiva , esquece de todo as imagens risonhas dos horisontes por onde espairecêra as illusões mais queridas do seu viver , e mal respira nas lobregas entranhas onde se passam as grandes miserias humanas . 

O poeta , n ’ este triste estado , deixa a penna dourada das nativas concepções , e trava do escalpelo que disseca uma por uma as fibras do coração ; já não é o cantor singelo dos santos e nobres affectos , é o analysta caustico e ameaçador das nossas fraquezas .

Porém , a boa tempera da indole poetica de Bulhão Pato salvou - o a tempo . Nada mais avesso aos seus instinctos , ás suas predilecções , ao jacto nalural , limpido e sereno da sua veia , do que as irrupções abruptas do estro d ' estes poetas moralistas , d ’ estes libellistas metrificadores , mistura inces tuosa de Rabelais e Jeremias , que apregoam bem alto os defeitos do mundo , que fingem até condoerem - se d ' elles , para mais facilmente esconderem os seus . 

E Bulhão Pato , um momento transviado das antigas predilecções , logo mostrou sua natural e directa propensão , compondo a inspirada dedicação a Helena , a sua ultima composição poetica [N'esta época , em 1862, data d'este artigo, esta poesia havia sido a ultima ], e que é um regresso felicissimo aos primeiros tempos do seu singelo e affectuoso poetar . 

Que pena não a poder trasladar para aqui por inteiro ! Mas já nas primeiras estrophes o lei tor conhece a verdade do que fica escripto .

Lembras - te , Helena , o dia em que deixamos 
O teu saudoso valle , é lentamente 
Pela elevada encosta caminhámos ? 
O sol do estio ardente 
Já não brilhava nos frondosos ramos 
Do arvoredo virente . 
Chegára o fim do outono : a natureza , 
Sem ter os mimos da estação festiva , 
Nem aquelle esplendor e gentileza 
Que tem na quadra estiva , 
Na languida tristeza , 
Na luz branda e serena 
D ' aquelle ameno dia , 
Que immensa poesia , 
E que saudade respirāva , Helena ! 
Subindo pelo monte , 
Chegámos ao casal , onde habitava 
A tua protegida , 
Aquella pobre anciã , que se agarrava 
Aos restos d ' esta vida ! 
Assim que te avistou , ergueu a fronte , 
Curvada ao peso de tão longa idade , 
Sorrindo nesse instante 
Com tal vida , que a luz da mocidade 
Parecia alegrar o seu semblante !
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 
Vinte annos tu contavas nesse dia : 
A fiel servidora 
Era a primeira vez que não podia 
Deixar a casa ao despontar da aurora , 
E , cheia de alegria , 
Caminhar para o valle como outr ' ora , 
Depôr uma lembrança em teu regaço , 
E unir - te ao coração n ' um meigo abraço !

Tu , na força da vida , 
Circumdada de luz e formosura , 
Foste levar a pobre desvalida 
Os dons do lar paterno ; 
Alegrar com teu riso de ternura 
Aquelle frio inverno !

Ao ver - te , com teus braços 
Nos seus braços senis entrelaçados , 
A ventura nos olhos encantados , 
A inspiração na fronte deslumbrante , 
Afigurou - me então o pensamento 
Ver um anjo descido dos espaços , 
D ' aspecto fulgurante , 
Enviado por Deus nesse momento , 
Para animar os derradeiros dias 
De quem , cançado do lidar constante , 
Abre o seio na morte ás alegrias !

As lagrymas de gosto 
Corriam cristalinas 
No rosto d ' ella e no teu bello rosto ! 
Como orvalhos do céo aquelles prantos , 
Um brilhava na hera das ruinas , 
Outro na flor de festivaes encantos , 
Na rosa das campinas , 

Quando voltaste a mim , illuminava 
O teu semblante uma alegria infinda ; 
Depois quizeste ainda Ir visitar a ermida que ficava 
No ápice do monte . 
Firmaste - te ao meu braço , e caminhamos . 
No esplendido horisonte J
á declinava o sol , quando chegamos . 
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 

É exactamente a mesma simplicidade de fórmas , a mesma pureza de affectos , o mesmo expansivo e natural desabafo do coração , sempre aberto ao amor e que o aspecto melan . cholico dos campos enche de saudade .

Onde se sente mais isto é na sentidissima elegia , levarla , como uma saudade sem esperança , á sepultura de Salvador Corrêa de Sá , amigo de infancia de Bulhão Pato . Parece que o anjo da dôr , depois de ter enchido a sua urna das lagrimas da amizade , as infiltrara todas no coração do poeta . Só um talento que tão de perto vive dos impulsos do co ração , poderia encontrar accentos de tão viva e penetrante agonia . 

Vejam se não ha nos versos que vão seguir - se alguma coisa do sentimento intimo e delicado , que unicamente pertence ao affecto maternal ! E a mesma exquisita sensibilidade , o mesmo conjuncto de sensações afflictivas desentranhadas dos seios de alma , e coloridas pela eloquencia das dôres sem consolação .

« Bem sei que era exilio a terra 
« Para ti . anio do céo ! 
« Porém , filha , abandonares - me , 
« Quando toda a minha vida 
« Era a luz d ' um olhar teu , 
« Ouvir essa voz infante , 
« Ver a impaciente alegria 
« De teu candido semblante ! 

« Deixar - me assim na existencia , 
« Triste , só , desamparado , 
« Aquella flor de innocencia ! 
« Que lhe fiz ? Tinha - a creado 
« De quanto amor n ' este mundo 
« Pela mão da Providencia 
« A peito de homem foi dado ! 
« Oh ! que affecto tão profundo ! 
« E tu podeste partir ? ! 
« Pois não tiveste piedade 
« Desta solemne amargura , 
« Desta infinita saudade ? ! 
« Vi - te inda olhar - me , e sorrir , 
« Ergụer os olhos aos céos , 

« No instante de proferir 
« O fatal e extremo adeus ! 
« . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 
« . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 
« Oh ! volve outra vez a mim , 
« Desce a terra , anjo do céo , 
« Vem dar - me a ventura emfim !
« . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 
« . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 
« Olha : O vivo sol de abril 
« Já nestes campos rompeu; 
« As rosas desabroxaram, 
« O rouxinol de prendeu 
« A voz em saudosos cantos; 
« Os sitios onde passaram 
« Os teus descuidados annos, 
« Não os ves cheios de encantos? 
« São estes! A mesma fonte 
« Ferve além; n'aquelle outeiro 
« O meu casal alveja; 
« As ramas do verde olmeiro 
« Dão sombra á modesta igre|a, 
« Onde tu vinhas resar, 
« Quando o som da Ave-Maria, 
« N'hora meiga do sol-posto, 
« De vaga melancolia 
« Toldava teu bello rosto. 
« Tudo o mesmo !... esta inscripção !.. 
« Este nome!... anjo do ceo, 
« Este nome, filha, é teu! 
« Oh! meu Deus, por compaixão, 
« Na mesma pedra singela, 
« Juntae o meu nome ao della!»
« . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 
« . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
E Deos ouviu a oração... 
O mesmo tumulo encerra 
Filha e pae. Na mesma lousa, 
Onde repousam na terra, 
Uma lagrima saudosa 
Vem hoje depor tambem 
A esposa, a viuva, a mãe !

Um dos mais subidos meritos de Bulhão Pato é a concisão admiravel do seu estylo, concisão que elle leva aos ver dadeiros resultados dos grandes mestres, principalmente quando bosqueja os paineis da natureza. 

Os aspectos diante dos quaes a sua musa parece embevecer-se, são sempre sim ples e tristes, como a indole do poeta. O por-do-sol, o cair das folhas do outomno, o adro de uma aldeia, o casal que alveja ao longe por entre as cristas da serrania, são, em geral, as scenas que a phantasia se compraz de lhe aproximar, de contornar, e que lhe torna como os horisontes per manentes da sua existencia poetica. 

Mas ha sempre um vivo sentimento de poesia n'estas pinturas; e é observando-as, e estudando-lhes os effeitos que a sua impressão nos produz, que se percebe bem que secretos dons de influencia moral exercem n'alma estas combinações, em que o poeta parece chegar a ser pintor, porque o pintor, para o ser ver dadeiramente, não pode deixar de ser poeta. 

Alguns exemplos, colhidos aqui e acolá, explicam isto melhor que todas as analyses. Vejam se com linhas mais singelas se pode esboçar quadro mais amplo e solemne.

Nas nossas almas existia um mundo 
De indefinito amor; 
Do pélago profundo, 
Onde ruge o furor 
Insano, concentrado, atroz, maldicto, 
D'esta cruenta guerra 
Das ambições da terra, 
Nem uma maldição, um som, um grito 
Nos vinha perturbar! 
Era a amplidão do céo, a solidão da serra, 
Ao longe... a voz do mar! 

Que magestade e simplicidade de linhasl Outro quadro não menos verdadeiro: 

Daquelle pobre casal.
O fumo que vae subindo, 
Em ondulante espiral, 
Não diz que em volta do lar 
Se reune a pobre gente, 
Que já de perte presente, 
O frio inverno chegar? 

Quita não saberia traçar melhor este painel campesino. 

Agora este outro que parece sair da palheta suave e melancholica de Gessner. Ha n'elle o sentimento dos magicos aHectos da natureza, que tão bem comprehende e exprime a musa allemã.

Era singelo, mas sublime o quadro ! 
Em roda o mato agreste; 
No meio a pobre ermida; ao lado d'ella 
Um secular cypreste ; 
E sobre a cruz do adro, 
Pendente, uma capella 
De algumas tristes, desbotadas flores, 
Talvez emblema de profundas dores !

Bulhão Pato tambem algumas vezes tem ensaiado o genero satyrico, e com felicidade, como se vê pela poesia o Brinde, que é um desfechar constante de epygrammas contra algumas das grutescas personificações da nossa comedia politica. 

Comtudo eu prefiro, declaro-o francamente, ver tão bello estro sem abater os voos a estes charcos. As suas tendencias são outras, e mui diversas. O talento que vive do coração, a mente que se inflamma com o fogo dos sentimen tos nobres e serenos, não pode prestar-se a acceitar em o numero de suas predilecções assumptos repugnantes , e cujo halito cresta sempre as azas candidas da inspiração . 

Que Bulhão Pato é o primeiro a repellir , com o seu desdem , estas lastimaveis individualidades , dignas só de attrahirem as iras do libellista ; e nas raras horas em que a sua musa lhe tem emprestado algumas expressões de zombaria con tra taes creaturas , ha sido sempre com a hombridade e de sabrimento de quem applica uma correcção por força de necessidade : é antes uma pirraça do genio insoffrido do mancebo , que um desafogo do poeta . Este não se rebaixaria a tanto .

Agosto — 1862 . (1)


(1) José Maria de Andrade Ferreira, Litteratura, musica e bellas-artes. v.1., LIsboa, Rolland & Semiond, 1871

Leitura relacionada:
Versos
Se coras, não conto
Paquita
Cantos e Satyras

Tema:
Bulhão Pato (em Mar de Caparica) 
Bulhão Pato (em Almada Virtual Museum)