me mantive
pela fome.
Ela me revigorava,
nela achava a minha força
e a minha distinção.
Agora,
sacio-me
no remorso:
que abundância,
que fastio,
este sabor a terra,
a larva,
a decomposição.
Somente,
faço da indiferença
o meu vomitório.
Também fucei nas suas grandes corolas, cativo da virulência do seu néctar. E quanto mais fundo fuçava, quanto mais fundo escavava, mais o seu segredo se ocultava por trás da seiva cada vez mais abundante, cada vez mais espessa, que o seu âmago inviolado segregava — inundando-me o rosto, escorrendo-me pelo queixo, entorpecendo-me os lábios e dispondo-me a procurar no crime a pacificação. As suas pétalas não têm viço, nenhum sol as enrubesceu. A elas, imolou a beleza todas as suas virtudes, e todas as fogueiras só aspiram à sua carne incombustível. Não têm espinhos, mas se as tentas colher, enredam-se umas nas outras, misturam os seus sabores e revelam-se os segredos que te recusaram, enquanto tu, excluído de tão angustiante liturgia, privado de tão aflitivo repasto, paralisado diante de tão impenetrável floresta, seguras com as forças que te restam a gadanha impotente, que viras contra ti.
Judas, invejo a tua figueira e o teu mau nome. Invejo os vitupérios que te lançam e te enchem de uma saliva tão quente e tão humana, dessa humanidade que já nem cuidamos desprezar. Invejo o bafo das feras que te cobiçam a carne e cuja fome também conheci e nunca soube saciar. Invejo os escarros que te untam o cabelo para gáudio das varejeiras que ali se vêm acoitar. E invejo sobretudo o teu pecúlio: as tuas trinta moedas. Trinta moedas de ouro, de prata, de cobre ou de latão, qualquer metal corruptível que me sobrevivesse. Com elas, compraria o seu último beijo. E mais ninguém depois de mim o beijaria.
Ódio à Poesia ou o
Silêncio de Rimbaud
Nota à margem de uma
tradução
A minha vida mude-a Deus ou finde-a…
Fernando Pessoa
Dezanove anos é tempo mais do que
suficiente para mudar a vida. Talvez seja até demasiado tempo. Para tanto, tanto
seria escusado. E se então se acorda dentro da mesma, supérflua vida, com a
mesma, supérflua vida por viver toda uma longa, indecorosa vida — que fazer? Já
se atravessou o Inferno, já se avistou um ou outro cometa, já se exercitou este
e aquele poder sobrenatural, já se profetizou esta e aquela ocorrida desgraça, até
já se fez a experiência do divino (afinal, uma pequena decepção). Dezanove anos
e tudo feito, tudo visto, tudo vivido dentro da mesma, insípida vida. Dezanove
demorados anos. É quanto basta. E então — que fazer?
Palmilhe-se o mundo, o sempre
mesmo mundo. Vá-se a pé de um lugar para o outro, suba-se as montanhas nevosas
com o farrapo das roupas e o puído cachimbo da infância, pernoite-se ao luar, sob
a cálida emanação dos pólos, sugue-se a avara sopa dos mosteiros, libe-se a
peçonha das amoras regurgitada pelos corvos no derradeiro estertor da sua opulenta
envergadura, coza-se a cicuta dos caminhos em águas morbosas extraídas de poços
secos. Aliste-se então num exército com vista à grande honra da deserção,
embarque-se nos grandes navios do século, conheça-se o mar já antes adivinhado (e,
afinal, outra pequena decepção — na infância é que tudo é imenso), solte-se
imprecações ao luzeiro de um fogo de santelmo e desemboque-se, por fim, no Corno
de África. Somália, Etiópia, o deserto. Qualquer lugar é bom para se guardar o
nosso grande, o nosso rude, o nosso fero silêncio. Sim. Dezanove anos é tempo
mais do que suficiente para mudar a vida. Quem o não consiga, que se cale para
sempre. Ou fale e se cubra de ridículo. Felizes os que sabem capitular antes de
se tornarem eloquentes.
Rimbaud esperou dezanove longos
anos. O amor por reinventar, a revolta por eclodir. Tinha dezanove anos. Disse
quem era, ao que tinha vindo e como falhara. Descreveu o Inferno e deu-lhe o
seu verdadeiro nome: esperança. E depois calou-se.
Rimbaud não foi precoce, nós é
que somos tardios. E eloquentes. Muito para lá do nosso tempo. É por isso que
não somos Rimbaud.
João Moita
Os ingénuosOs tacões lutavam com os longos vestidos,De maneira que, conforme o terreno e o vento,Luziam por vezes uns tornozelos, logoInterceptados! – Mas que adorável tormento.Outras, o ferrão de algum insecto invejosoPicava o pescoço das belas sob os ramos,E era então súbitos clarões de nucas brancas,Um regalo pròs nossos olhos delirantes.Declinava uma equívoca noite de Outono:Sonhadoras, apoiadas nos nossos braços,Sussurravam-nos coisas tão especiosasQue ainda hoje as nossas almas se incendeiam.
Les ingénusLes hauts talons luttaient avec les longues jupes,En sorte que, selon le terrain et le vent,Parfois luisaient des bas de jambe, trop souventInterceptés ! – et nous aimions ce jeu de dupes.Parfois aussi le dard d’un insecte jalouxInquiétait le col des belles sous les branches,Et c’était des éclairs soudains de nuques blanchesEt ce régal comblait nos jeunes yeux de fous.Le soir tombait, un soir équivoque d’automne :Les belles, se pendant rêveuses à nos bras,Dirent alors des mots si spécieux, tout bas,Que notre âme depuis ce temps tremble et s’étonne.
Paul Verlaine, Fêtes galantes, 1869 [Festas Galantes, ilust. George Barbier, trad. João Moita, Guerra & Paz Editores, 2022]
(Comunicação
lida no âmbito da mesa-redonda de poetas inserida no VI Colóquio Internacional
A Literatura Clássica ou Os Clássicos na Literatura, org. Centro de Estudos Clássicos da
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Janeiro de 2022.)
À
Isabel Santiago
Sei precisar com
exactidão o ano do meu primeiro contacto com a literatura da Antiguidade
Clássica. Sei-o não porque tenha uma memória prodigiosa — os deuses não me
bafejaram com essa graça —, mas porque guardo desde então um documento datado
que mo atesta. Decorria o ano de 2002, eu era um adolescente de 17 anos a
arrastar a carcaça lânguida pelas salas frias da escola secundária da minha
terra, e uma professora digna desse nome — uma autêntica raridade —,
apercebendo-se de que o meu mau comportamento, a minha displicência e o meu
desinteresse generalizado não impediam o florescimento de uma paixão incomum
pela literatura, decidiu iniciar-me em leituras que ela esperava — e com razão
— que me pudessem ajudar naquela fase tão crítica da minha vida.
Recordo que um
dia me emprestou o seu exemplar de O Estrangeiro, de Albert Camus, e que
o impacto da estranheza dessa leitura foi tal que não pude descansar enquanto
não lesse O Mito de Sísifo, que eu esperava que me esclarecesse aquela
inquietante jornada daquela tão desconcertante personagem. Assim, tê-lo-ei
pedido à minha professora. Estaríamos em finais do segundo período, ela
ter-se-á esquecido de mo trazer, conjecturo agora, e ter-me-á dito que mo
traria no início das férias, para que eu o fosse levantar já não me lembro
onde. No dia combinado, dirigi-me ao local e perguntei à funcionária da escola se
a professora Isabel Santiago tinha deixado alguma coisa para mim. Em vez de O
Mito de Sísifo, tinha à minha espera uma tradução de Rei Édipo e um
bilhete que dizia o seguinte:
«João,
repensando o Camus, troquei-o por uma tragédia, Édipo. Camus fica para depois.
Aposto que é mais importante nesta fase, no meio de tanto senso comum tão pouco
esclarecido, que o João se confronte com gestos humanos de dignidade
inultrapassável. Para não se sentir a arrefecer num mundo desumano e
indiferente.»
Como podem
imaginar, aquela mensagem abalou-me. Era como se a minha professora tivesse
decifrado o meu coração. No meio do marasmo das vidas comezinhas e nunca
questionadas, havia, afinal, «gestos humanos de dignidade inultrapassável», e
eu podia encontrá-los — talvez só pudesse encontrá-los — nas tragédias gregas
escritas há mais de 2500 anos. E o gelo que crescia a toda a volta talvez
tivesse ali um antídoto infernal.
O que depois
descobri, para meu grande espanto, era um pouco mais complexo do que isso. É
que, a juntar aos «gestos de dignidade inultrapassável», ou não bem a juntar-se-lhes,
mas possibilitando-os, propiciando-os até, convivendo com eles numa relação de
continuidade, de dependência quase simbiótica, estavam actos monstruosos,
absolutamente terríficos e imperdoáveis segundo os nossos padrões morais. O
mais digno dos seres humanos era, ao mesmo tempo, o mais infame. Com isso,
naturalmente, eu era capaz de me identificar.
O crime mais
hediondo, a transgressão mais inconcebível eram cometidos com a naturalidade de
tudo o que acontece por não poder deixar de acontecer. O monstro era humano, e
o humano era monstruoso. Não podia conceber mais bela iniciação à simples e
irredutível verdade da vida: tão cega é a justiça como a injustiça. Tão injusta
é a fortuna como o seu revés. Tudo o que em consciência possamos louvar é, ao
mesmo tempo, merecedor do nosso mais altivo repúdio. Todo o bem tem um lastro
de maldade.
Curiosamente,
foi o livro na altura preterido que me ajudou a esclarecer todas estas intuições
que indefinidamente me espicaçavam ao ler as tragédias de Sófocles, Ésquilo e
Eurípides: Sísifo elevado por Camus a epítome do herói trágico. Havia que
imaginar Sísifo feliz, dizia o campeão do absurdo. Sísifo, espoliado do
atributo mais humano dos atributos, a esperança, devia ser feliz. Esta «felicidade
sem esperança», que vim a encontrar mais tarde em alguns dos autores que mais
me marcaram, como Antonio Gamoneda, Saint-John Perse ou Vergílio Ferreira,
passou a ser para mim não só a manifestação mais imediata do sentimento trágico
da vida, mas também, e sobretudo, o efeito estético por excelência e o meu
desígnio enquanto poeta.
No entanto,
ainda tinha de esclarecer de onde vinha esta felicidade de uma qualidade tão
especial que era capaz não só de sobreviver, como de prosperar num mundo isento
de esperança. Ou, pior ainda, que nele a vinha render. A chave parece estar no
que Camus diz sobre os motivos que levaram à punição de Sísifo. Argumenta ele
que foram o seu desprezo pelos deuses, o seu ódio à morte e a sua paixão pela
vida que o condenaram a arrastar eternamente a pedra do seu calvário,
acrescentando ainda esta frase enigmática: «não há destino que não se
transcenda pelo desespero». Tudo o que caía fora do domínio do humano, os
deuses e a morte, era rejeitado, votado a um desprezo inoperante, mas nem por
isso menos visceral. Sísifo terá, então, reivindicado aos deuses a autonomia do
humano, assumindo o seu suplício como condenação à medida do seu desespero. Nada
mais podendo esperar, era feliz. Tudo estava consumado. «Toda a alegria
silenciosa de Sísifo aqui reside», assegura Camus, «o seu destino
pertence-lhe.» (p. 126)
Essa é, para
mim, a grande lição da visão trágica grega, que se opõe diametralmente à visão
trágica cristã, com a sua assunção da culpa e a sua sede de redenção. O nosso
destino pertence-nos, não aos deuses: Édipo cega-se de livre vontade, Édipo
deseja o seu suplício, não para através dele se purificar, não para recuperar
as boas graças dos deuses, mas para que ele seja a marca indelével de um
destino que só a ele lhe pertence, que lhe é consubstancial. Reconhecendo-se
monstruoso, Édipo reivindica a sua monstruosidade, isto é, a sua humanidade, na
forma do desespero. Assume-o e não aceita uma vida em que este lhe seja
sonegado a título de recompensa. Édipo sente-se recompensado no seu desespero.
Porque só ao
herói trágico é permitido desesperar. O herói cristão, ou o seu sucedâneo, o
herói marxista, por exemplo, não desesperam, sob pena de perderem o ideal no
qual fundamentam a sua heroicidade. O herói trágico não tem ideal que o redima,
redime-se todo no seu desespero. A tragédia de Cristo foi refutada pela
ressurreição de Cristo. E é só por isso, a meu ver, que a tragédia grega é
superior ao Novo Testamento. Ao contrário de Édipo, Cristo não soube viver o
seu destino até ao fim. Para tanto, bastar-lhe-ia recusar-se a regressar. Parafraseando
George Steiner no seu célebre ensaio The Death of Tragedy, a verdadeira
tragédia só pode ter lugar quando a alma atormentada admite para si mesma que
já não há tempo para o perdão de Deus. É então que se lhe torna evidente que é
preciso ir até ao fim. É preciso que a desgraça seja consumada. O herói trágico,
aristocrático por definição, aspira sempre ao máximo, mesmo que esse máximo
redunde em excesso. E o excesso é que é trágico.
Assim, se alguma
influência da mundividência grega reconheço no que escrevo, ela só pode ser a da
assunção do conhecimento trágico tal como foi definido pela filósofa espanhola
María Zambrano em O Homem e o Divino: «O conhecimento que a tragédia
trazia», diz ela, «era simplesmente o conhecimento do homem. A reabsorção de
qualquer destino e também de qualquer falta, por maior que seja, na condição
humana.» (p. 195) O que faço nos meus poemas, ou que gostaria de fazer, é
reclamar uma vivência mais trágica, mais grega, para o meu fundo
judaico-cristão, confrontando o deus do perdão com a recusa do perdão, e
ostentando, assim, perante a sua opacidade, a ignomínia do aviltamento com cuja
remissão ele pretende salvar-nos, salvando-se apenas a si e às suas
prerrogativas. É preciso, em nome do desespero, assumir tragicamente o fardo da
perdição. E, como Camus, é preciso imaginar Sísifo feliz, couraçado pelas
provações dos deuses, que já nada podem contra ele, enquanto passeia pela trela
a sua pedra, que já nada, nem ninguém, lhe podem tirar. Sísifo é feliz porque é
Sísifo e porque tem uma pedra para se lembrar de quem é.
Termino, se me é
permitido, com a leitura de um poema que publiquei no meu livro de 2019, Uma
Pedra sobre a Boca, e que penso poder exemplificar o que acabo de dizer.
Trata-se de uma reformulação trágica, no sentido que tenho dado ao termo, do
episódio do Génesis em que Deus põe Abraão à prova, mandando-o acompanhar o seu
filho Isaac até ao monte Moriá, onde devia sacrificá-lo para fazer prova da sua
fé. No meu poema, no auge da agonia, quando Deus detém a mão de Abraão,
inclinado sobre o filho, e lhe aponta o cordeiro que deve sacrificar no seu
lugar, Abraão dirige-se a Jeová nos seguintes termos:
«Na garganta de
Isaac, sinto já avermelhar-se a minha faca —
serás tu,
Senhor, o sustento da minha culpa.
Como a
suportaria se a minha fé não fosse
maior do que tu?»
Nesta fé maior
do que Deus, encontro a essência do trágico.
Fernando
Pessoa, escrevendo sobre Salazar, afirmou que este não tinha cultura literária
e isso o desumanizava, fazendo dele um cadáver emotivo. É para não sermos «cadáveres emotivos», que «Vamos Ler Poesia»?
Glosa
Devo começar por
lembrar, a propósito do nosso mote, que nem tudo o que um génio escreve é
necessariamente genial, afirmação que se reveste de particular pertinência no
caso de Fernando Pessoa, que não teve tempo ou vontade de depurar a sua
produção. Com efeito, esta passagem, segundo a leitura que dela faço, parece-me
sumamente infeliz, na medida em que diz o contrário daquilo que pretende dizer.
Um cadáver emotivo será, talvez, Lázaro, que, estando morto, se comoveu com o
poder encantatório da palavra de Jesus, não Salazar, que seria, quando muito,
um repolho insensível ou um dejecto ambulante. De alguma forma, e contra a sua
vontade, Fernando Pessoa parece estar a outorgar a Salazar uma espécie muito
especial de eternidade, à qual este, de resto, intimamente aspirava: refiro-me
à categoria supersticiosa do anjo, mais precisamente, do anjo da guarda, o
cadáver emotivo por excelência, o morto vigilante, esse omnipresente e
opressivo mediador.
Deixemos, pois,
Salazar e viremo-nos para Lázaro ressuscitado pelas injunções poéticas de Jesus.
A pergunta do nosso mote inverter-se-á então. O que importa saber é se «É para
sermos “cadáveres emotivos” que lemos poesia». Concede-nos a poesia alguma
espécie de redenção que confira ao cadáver errante que quotidianamente somos a
capacidade de nos emocionarmos? Poderá a poesia expandir a nossa vida,
concedendo ao nosso «cadáver adiado» — formulação bem mais feliz do mesmo génio
— o atributo da emoção?
Estamos todos
familiarizados com as defesas empoladas da poesia, com o exacerbamento
egocêntrico e pretensioso dos poetas, partes mais do que interessadas na
difusão de tamanhas leviandades. Não gostaria de cair aqui no mesmo erro. Não
me parece, no entanto, que se possa refutar que a razão pela qual lemos poesia,
ou, para o efeito, ouvimos música ou contemplamos pinturas, tem que ver com a
nossa capacidade mais ou menos desenvolvida, consoante as circunstâncias da
nossa vida e o empenho da nossa militância, de nos emocionarmos com as obras de
arte, e que essa emoção assim induzida tem algo de revigorante, como Lázaro o
terá testemunhado. Esta indução da emoção não é, contudo, prerrogativa
exclusiva da poesia. Aliás, em arte trata-se sempre de emoção em segundo grau,
ou seja, por afinidade. Evoco aqui, por exemplo, o conceito cunhado por T. S.
Eliot de «correlativo objectivo», sobre o qual não me alongarei. Mas evoco também
a ideia de que a arte é sempre a consubstanciação de um «outro» com o qual o
«eu» se confronta, se mede e, às vezes, se confunde. O «outro» que é «texto» e
o «eu» que nunca pode ser «texto», a não ser quando a morte transforma a vida
em destino, para citar a célebre frase de Malraux. A arte apresenta-nos sempre
uma determinada vivência outra que alguém, outro, vive, e, portanto, dá-nos a
comoção de um outro viver, ou então, o que é mais próprio da poesia e da música,
põe-nos a viver uma outra vida. Significa isto, para responder à questão que
acima propunha, que a poesia não expande a nossa vida, mas faz a nossa vida
defrontar-se com o que é expandido. A poesia é, assim, exemplar, isto é, ela
oferece-nos exemplos do que é irredutivelmente outro, e é por isso que o acto
da escrita é o acto criativo por excelência, como, de resto, sabemos de grande
parte das cosmogonias, a começar pela do Evangelho de João: «No
princípio era o Verbo (…)», e ao fazer-se carne, tornou-se poema.
Mas será que
precisamos mesmo de ler poesia para nos tornarmos cadáveres emotivos? Dizia há
pouco que esta capacidade para induzir emoção não é prerrogativa exclusiva da
poesia. Entendo que a poesia é um dos modos, nem sempre eficaz, de aceder a um
domínio da vida que se caracteriza pela intensificação dos esquemas de
percepção do mundo e da nossa existência. A esse domínio, chamemos-lhe domínio
lírico, podemos aceder em momentos críticos da nossa vida, e todos a ele
acedemos nem que seja uma vez. Assim o entende, por exemplo, Emil Cioran,
quando, no seu livro Nos Cumes do Desespero, afirma que «alguns [de nós]
não se tornam líricos senão nos momentos decisivos da sua existência; para
outros, isso acontece apenas no momento da agonia, quando todo o passado se faz
presente e rebenta sobre eles como uma torrente. Mas, na maior parte dos casos,
a explosão lírica surge na sequência de experiências essenciais, quando a
agitação do fundo íntimo do ser atinge o paroxismo.»
A poesia será,
pois, apenas um facilitador da entrada nesse domínio. De resto, falível, e
tantas vezes inconsequente. Será pouco? Será muito? Lembremo-nos simplesmente, e
com isto termino, que sem poesia não há deuses, e sem deuses não há, para o bem
e para o mal, humanidade.
Poema 1100