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PHARMACIA
No adormecer do dia, naquele momento em que as sombras se alongam pressurosas, as enormes, estranhas e sobre-dimensionadas, letras verdes moviam-se garrafais incongruentes, através do letreiro luminoso gritando 'PHARMACIA'.
Se dúvidas houvesse, nem era preciso chegar perto e cheirar o ar para saber que ali naquela porta, transpondo-a, abaixo do reclame, existia um estabelecimento de comércio de drogas e similares.
Apressada, aos tropeções em cima dos saltos finos e exagerados que desestabilizavam o andar na velha calçada irregular, arfando e bufando como um animal, esfolando as biqueiras que em tempos tinham sido vermelho-rubro, com a mala de plástico dourada e alça preta a condizer, comprada na feira de São Domingos de Rana, dirigiu-se para a porta que se abriu automática com um suave zunido.
Da maquineta à entrada, após pressionar o botão, extraiu a senha que indicava a sua vez: B - 000 - 742.835 ± 1.
Só então, após um fortemente expirado suspiro, relaxou, avançou e observou o interior intensamente iluminado do moderno estabelecimento.
Estavam apenas três pessoas, naturalmente clientes para atendimento.
Próximo ao balcão, um jovem louro com ar de surfista, de t-shirt amarela e calças bege, olhava curioso o expositor de cremes para o acne, coisa que ele não tinha. Parecia enervado pois batia ritmicamente com a ponta do chanato no chão como se acompanhasse uma música que só ele ouvia.
Viu também, sentada numa cadeira estofada com pele de canguru alentejano, uma velhota alquebrada, vestida de escuro e completamente careca, apoiada numa bengala com castão de terracota, que rolava entre os dedos duma mão um preservativo colorido como se brincasse com um berlinde.
Viu ainda um senhor de meia idade, bem vestido, de blazer verde alface, quadriculado, camisa azul com bolas roxas, gravata e calções riscados, chinelas havaianas, ao balcão a ser atendido. Ao que lhe parecia pelo que podia divisar do ponto onde se encontrava, este senhor tinha levado uma receita de dois pratos de "Dobrada com Feijão Branco", que o técnico ajudante lhe colocara à frente, fumegantes, e se preparava para acondicionar num pequeno saco com o logotipo da farmácia.
Além dos três clientes estavam ainda os vinte e quatro farmacêuticos, técnicos e ajudantes de farmácia, de ambos os sexos, nas suas impecáveis batas brancas, distribuídos ao longo do balcão, impávidos e serenos, como múmias egípcias.
Aguardou com um misto de horror e nervosismo que os números de chamada mudassem. O acaso é determinante da vida. Nisto de displays nem tudo o que parece é... nem tudo o que brilha é algarismo... Nem tudo o que luz reflecte a essência cósmica do ser...
Passadas cerca de duas horas o senhor de meia idade acabou de ser atendido e pegando no saquinho com as duas Dobradas, deu as boas noites e saiu.
As outras duas pessoas, o jovem surfista de amarelo e a velhota do preservativo foram de seguida atendidos. Pelo mesmo farmacêutico e à vez. Os outros farmacêuticos, parecia, estavam ali só para vista. Eram uma espécie de guarda de honra hierática.
O jovem surfista limitou-se a pedir duas molas de roupa para pendurar os calções de banho, e o atendimento foi rápido, pouco mais de uma hora. Foi o tempo de ir ao quintal nas traseiras cortar um pinheiro, tirar o pedaço de madeira necessário, talhar as peças, colocar-lhes as molinhas metálicas e pronto.
O rapaz pegou no saco após pagar e desapareceu rapidamente.
A idosa é que demorou um pouco mais, pois não tinha com ela os óculos de mergulho nem as barbatanas, e o microscópio electrónico estava avariado, pelo que foi preciso chamar os engenheiros químicos, que demoraram uma boa meia hora a enviar um carro patrulha, para levarem a velha senhora à praia onde ela poderia ir apanhar berbigões e amêijoas na maré baixa.
Ela continuou à espera da sua vez.
Finalmente os algarismos, romanos, no painel luminoso mostraram o número da sua senha. Não mostraram os zeros, pois os romanos não o tinham. Mas subentendiam-se sob o nevoeiro denso, esverdeado e húmido. Era a sua vez.
Dirigiu-se ao balcão e apresentou a senha e a receita, ao mesmo tempo que cumprimentava o farmacêutico:
— BOA TARDE, SEU SACRISTA BARDAMECA!
O técnico farmacêutico olhou-a, esticando-se sobre o balcão para, atrevido, lhe espreitar as pujantes e grandes mamas, e correspondeu com um sorriso lascivo ao cumprimento:
— BOAS TARDES, DONA FLAUSINA! EM QUE POSSO AJUDÁ-LA? VIVA O XÔ ZÉ!
— VIVA MAS É OS TOMATES...! AVIE-ME LÁ ESTA GAITA!
— DESCULPE, MAS GAITAS JÁ NÃO TEMOS, ESGOTARAM. DEIXE ENTÃO VER O QUE TEMOS AQUI.
O farmacêutico agarrou os dois papéis que ela lhe estendia, colocou a receita sobre o balcão e mostrou a senha ao colega do lado para confirmar se o número estava mesmo certo com o do painel, no topo da ondeante colina.
— ESTÁ. — Disse o outro, que era licenciado em Filologia Românica e Mestre em Gestão de Campos de Golfe.
Pegou novamente na receita, leu-a atento franzindo a testa, olhou a cliente e cravou-lhe o olhar intensamente nos olhos, o que a fez tremer da cabeça aos pés como varas verdes, olhou de novo a receita e dirigiu-se ao interior da farmácia, no que foi acompanhado por todos os seus colegas, que o seguiram em fila indiana balouçando para a esquerda e para a direita como pinguins da Adélia, acompanhando a suave ondulação do mar.
Voltaram passada uma hora. O técnico dirigiu-se a ela:
— PARECE QUE TEMOS AQUI UM PROBLEMAZINHO... — Resmungou entre dentes.
— ORA ESSA! PROBLEMA PORQUÊ?! — Questionou ela, estremecendo, assustada e preocupada.
— PROBLEMA PORQUE O SEU CARTÃO DE CLIENTE DO EL CORTE INGLÉS ESTÁ NO SISTEMA INFORMÁTICO REFERENCIADO COMO PERTENCENDO A UMA TERRORISTA DO GANG AFONSINO — Esclareceu ele com toda a calma, sem pestanejar.
Ela olhou-o incrédula sem saber o que dizer e balbuciou uma desculpa:
— TE TE TE TERR TERRORI TERRORISTA! EU?! AI MEU DEUS! VOCÊS MATAM-ME DO CORAÇÃO! — Disse aterrada.
— SIM, SENHORA. E A BRIGADA JÁ VEM A CAMINHO PARA A MATAR! — Esclareceu, com voz grave e sinistra, o farmacêutico.
— FÓNIX!! VOCÊS SÃO MESMO BERAS! TUDO ISTO SÓ POR CAUSA DUMA RECEITAZINHA DE MEIA DOSE DE MÃO DE VACA COM GRÃO! — Gritou ao técnico farmacêutico, já histérica e a tremer, de cabeça completamente perdida.
— SÃO ORDENS SUPERIORES, MADAME, E SERVIÇO É SERVIÇO E CONHAQUE É CONHAQUE! — Respondeu-lhe o técnico farmacêutico, começando a desabotoar a bata.
— O QUE É QUE O SENHOR ESTÁ A FAZER? — Perguntou ela, ao vê-lo começar a desapertar o cinto das calças e a braguilha.
— NADA DE MAIS, DONA, APENAS ESTOU A DESNUDAR-ME E ACONSELHO-A A FAZER O MESMO, PARA APRECIARMOS O QUE AÍ VEM, EM TODA A SUA NUDEZ! CRUA, PURA E DURA! —Disse ele, um pouco irritado.
— DISPO-ME MAS É O CARAÇAS! O TANAS! PENSAS QUE SOU A TUA MÃE?! — Gritou-lhe ela, histérica.
Os outros farmacêuticos e farmacêuticas tinham seguido o exemplo do colega e tinham-se também desnudado. As batas, impecavelmente brancas, e as roupas, espalhavam-se pelo chão atrás do balcão. Alguns e algumas estavam já completamente nus.
Ela seguiu a sugestão. Se não os podes vencer, junta-te a eles... e, após um encolher de ombros, desnudou-se em toda a sua paupérrima beleza esquelética suburbana.
De súbito ouviram-se sirenes uivarem sinistras na noite negra. A noite dos cães. Os vidros das montras estremeceram.
Um chiar de pneus no exterior anunciou a chegada das autoridades.
No interior, todos os presentes ficaram imobilizados, na expectativa.
Uma boa meia dúzia de polícias fortemente armados com shotguns, acompanhados de caniches brancos de pêlo bem aparado, entraram de rompante no estabelecimento, vociferando ordens, e desordens, em todas as direcções.
Rapidamente imobilizaram toda a gente, encostando todos contra as prateleiras, armários e paredes, de braços levantados e pernas afastadas.
O que parecia comandar a força de intervenção, pois trazia uma pena de pavão na mão e outra de peru no cu, saltou para cima do balcão, num pulo atlético, e gritou:
— SILÊNCIO!
Todos emudeceram no silêncio em que já se encontravam, pois estavam de tal modo aterrorizados que não eram capazes de dizer uma palavra que fosse.
O presumido chefe mandou avançar a suspeita de terrorismo:
— CHEGA À FRENTE, TU AÍ, CADELA! —Gritou com caucasiana arrogância trovejante.
Ela acercou-se do balcão tremendo. O ambiente era pesado, denso, de cortar à faca.
— COMO TE CHAMAS? — Vociferou, do alto do balcão, peanha improvisada.
— MA MA MARIA ALICE — Respondeu a medo.
— MARIA ALICE QUÊ?! — Vociferou, mostrando os caninos afiados.
— GODOFREDO. MARIA ALICE GODOFREDO — Respondeu, prestimosa e temente.
— AH! GODOFREDO. A QUE TEM UM CU QUE METE MEDO! — Estrondeou a voz do chefe com um grande sorriso nas beiçolas lúbricas.
Neste entretanto e de súbito as luzes apagaram-se e fez-se escuridão absoluta. Todos fizeram silêncio.
Alguém gemeu baixinho.
Na escuridão, percebia-se a respiração rápida e ofegante dos presentes.
Ouviu-se o som de muitos passos apressados que pareciam ir na direcção da porta.
A escuridão tornava-se opressiva. Doía.
Uns três ou quatro minutos depois a luz voltou. As lâmpadas tremeluziram tímidas e acenderam-se. A farmácia estaria vazia, completamente vazia, não fosse a presença dela, sozinha de pé no meio do estabelecimento.
Lentamente olhou em torno de si. Nas mãos apertava contra o peito nu a mala dourada que entretanto, no escuro, conseguira apanhar do chão.
Apesar de se sentir paralisada pelo medo, ganhou forças para andar e dirigiu-se ao fundo do estabelecimento.
Cautelosamente espreitou para a dependência das traseiras. Também ela estava vazia, não estava lá ninguém.
Fez meia volta e dirigiu-se para trás do balcão, onde constatou que aí não existia vivalma. Apenas viu as roupas espalhadas pelo chão.
No resto do estabelecimento, onde ela tinha estado, viam-se espalhadas as roupas, couraças, escudos, cintos, botas e armas dos agentes.
Pé ante pé foi até à porta de entrada, a qual se abriu automaticamente assim que dela se acercou.
Espreitou para o exterior. Continuava noite, mas os candeeiros públicos davam luz suficiente para perceber que não havia pessoa alguma na rua.
Também não havia qualquer sinal das viaturas da polícia, ou outras viaturas quaisquer.
Parecia que toda a gente se tinha eclipsado.
Viu apenas um gato famélico cinzento a correr através da rua em direcção a um contentor de lixo. Certamente fugira do Gatil do Jardim Municipal.
Rapidamente voltou para o interior pois a noite estava fresca, húmida, e ela não tinha nada vestido.
Procurou as suas roupas e vestiu-se apressada. Tal foi a precipitação que vestiu as cuecas do avesso, mas não se incomodou. Queria era sair dali rapidamente.
Sem olhar para trás, saiu da farmácia e dirigiu-se à paragem da camioneta, onde se sentou no banco. Ainda ia ter que esperar um bom bocado. Eram duas da madrugada e a camioneta só viria às sete e meia.
Afinal, não teve que esperar tanto. Pouco depois aparecia a camioneta.
Estranhamente esta era branca, quase não tinha janelas e o motorista usava uma bata branca.
Calmamente, entrou e sentou-se num lugar vago, junto de outros passageiros.
Pouco antes de entrar na camioneta ainda teve tempo para olhar de soslaio na direcção do estabelecimento. As letras verdes, garrafais, continuavam a correr o painel luminoso, dizendo o mesmo de sempre:
— PHARMACIA...
A notícia saiu nos principais jornais diários e televisões no dia seguinte.
Um grande grupo de doidos varridos tinha conseguido evadir-se dum manicómio, os doentes andaram nus pelas ruas, assaltaram uma farmácia, roubaram um carro da polícia, alguns tinham-se mascarado de polícias, e um deles tinha mesmo conseguido fazer-se eleger Presidente da Câmara. Com os votos dos outros malucos todos, é claro!
Oeiras 14 Outubro 2008
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