O barulho da respiração torna-se imenso. Tudo em redor parece mover-se em câmara lenta.
Começam as comichões novamente...
Cerram-se os punhos. Os músculos convulsionam cada vez com mais força.
Abrem-se os poros que libertam pequenas gotículas de suor que insiste em não escorrer. Cola-se a roupa ao corpo.
À medida que olho em redor, os dedos passam pelo cabelo num gesto involuntário. Um despentear constante.
Passa a mão pelo pescoço...
Os espaços estão cada vez mais pequenos.
As tentativas falhadas de acender o cigarro pendurado nos lábios só pioram o estado de desassossego que insiste permanecer no peito. A pedra gasta do isqueiro solta faíscas minúsculas que se reflectem num olhar cada vez mais perdido no escuro.
Num caos de vidros partidos, de luzes intermitentes e gritos, sobrepõe-se um zumbido constante na cabeça. Sem alternâncias de tom. Mexem-se as bocas mas nada se ouve. Nem os passos corridos que sobem os degraus e pisam os estilhaços espalhados pelo chão.
Temo a historia a repetir-se…uma historia que está tão bem adormecida... rangem os ossos no fervilhar do sangue nas veias.
Começa a baixar um pano de estrelas sobre a visão novamente…
[Respira…]
Viro-me na busca dos teus olhos. Anseio encontra-los virados para os meus.
Os dedos que escorregam pelo braço e se acomodam na palma da minha mão suada conseguem acalmar a insanidade voraz que faz questão de não ser esquecida.
Encurtam os dias e as noites prolongam-se pelas vielas. O assobio dos ventos dobra as esquinas e bate nas janelas. Abraça-se a ventania aos casacos que abanam as caudas no álgido rasto da passagem. Passam nos rostos cabisbaixos de lábios estalados, monólogos perdidos nas fímbrias da trivialidade. Contam-se histórias nos cabelos molhados que brilham na escuridão que veste as ruas. Mudam as estações… As janelas gastas pelo tempo separam os ecos vagabundos que se perdem nas sombras passageiras das nuvens. Despem-se as árvores dos jardins vermelhos enquanto se vestem as estrelas num imenso véu de prata, avivando o reflexo dos charcos que cobrem os passeios.
Tudo se vê desta torre de betão. Vêem-se as danças dos guarda-chuvas, os espasmos das poças no caminho. Os movimentos banais das figuras absortas nas suas próprias vidas. Notam-se os arrepios na pele causados pelo rugido longínquo do relâmpago arrastado pela brisa gelada. Mudam as estações… Cá dentro, acendem-se as velas que troçam as investidas dos loucos lá fora. Guarda-se incólume a própria demência… Escorrem as gotas que se agarram aos vidros e invejam a manifestação da verve e paixão que se dá no aninhar dos corpos. Embrulham-se os corpos em mantas de pelo. Amornam os pés húmidos contra a pele. Acende-se a lareira no olhar. Aquece o beijo nos lábios. Mudam as estações…
Acabo de por a mesa. Repleta de cores e doces à vista. Os raios de sol passeiam-se pela sala iluminando a mesa como um altar. Sem pratos nem copos e poucas garrafas, alguns doces e no centro o bolo de aniversário. A porta está trancada pois não há convidados a chegarem. Para quê convidar alguém quando ninguém se lembra? Desnecessário... Incendeio mais um cigarro e bebo um copo de licor. Olho em redor e sinto o silêncio pairar pela sala. A solidão já não se abate aqui. Só a saudade se mantém. O relógio de parede bate as horas e o pêndulo aponta para a garrafa de champagne que está bem ao meio da mesa. Acendo a única vela do bolo, fosforescente, daquelas que fazem barulho e parecem fogo-de-artifício. E canto alto e bom som:
Parabéns a você Nesta data querida! E basta.
Já o álcool me subiu à razão. Os movimentos são lentos e desajeitados, a vista está turva e as ideias embriagadas. Pego na única prenda que lhe comprei; um ramo de flores… que cliché… odeio clichés! Tendo disfarçar o cambalear até ao carro, abro a porta e sento-me. Dou o último gole no copo de licor e pouso a garrafa de champagne ao lado do bouquet no banco do passageiro. Nem cinto de segurança ponho. Para que? Na pior das hipóteses vão-me multar… e então? Ponho-me em marcha. A luz encandeia-me e o tracejado do asfalto parece fugir do meu caminho. Mantenho o carro na estrada o melhor que consigo. O trajecto é curto. Viagem terminada, estaciono o carro atravessado em frente ao portão. Pego no bouquet e na garrafa, cambaleio disfarçadamente de sorriso nos lábios e sento-me na pedra.
O estrondo da rolha a saltar assusta os pássaros que levantam voo parecendo uma frota de aviões numa prova de perícia aérea. Escorre a espuma pelas mãos e levo a garrafa à boca bebendo de golada o tão doce champagne. Estendo o braço como que a perguntar se era servido mas sem resposta. Bebi meia garrafa e pousei-a na campa fria diante da foto gasta do tempo. E a sorrir embriagado penso em voz alta:
No ensejo articulam palavras sem som Abstractos movimentos gesticulados num átrio vazio.
… Gritos mudos abafados pela rouquidão do silêncio…
Caras pintadas em disléxicas manifestações vestidas de um qualquer vernáculo aliegena Que se perdem nos improfícuos labirintos de um dialecto que nunca viveu.
Palavras …que não passam de filmes mudos para uma plateia cega…
Disclaimer: All images, unless otherwise noted, were taken from the Internet and are assumed to be in the public domain.In the event that there is still a problem or error with copyrighted material, the break of the copyright is unintentional and noncommercial and the material will be removed immediately upon presented proof.
descalço-me de sombras para chegar a ti
as linhas do meu rosto são clarissimas
nelas não vês o velho, a criança, o adulto
vês apenas o traço comum
que é onde eu procuro a tua mão
na transparência da minha palavra inteira.