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Geometria I / Geometria

Lic. Matemática / Lic. Matemática Aplicada

Susana Duarte Santos

DM - FCUL

2022/2023

Susana Duarte Santos Geometria I / Geometria


Conteúdo

Generalidades sobre o funcionamento da U.C.

Introdução

Capítulo 1. Sistemas Axiomáticos

Susana Duarte Santos Geometria I / Geometria


Generalidades sobre o funcionamento da U.C.

Moodle Horário de atendimento


Docentes e Contactos Segundas-feiras, 15:30 - 17:00
Programa e Bibliografia (Prof.a Susana Santos)
Slides e Exercícios Terças-feiras, 15:30 - 17:00
Horário de Atendimento (Prof.a Isabel Ferreirim)
Modo de Avaliação, etc. Quintas-feiras, 10:00 - 11:30
(Prof.a Susana Santos)

Avaliação
O aluno tem à sua escolha dois modos de avaliação: testes (dois) e
exame final. Qualquer avaliação é realizada sem consulta.
O 1.o teste será realizado durante o período de aulas e o 2.o teste em
conjunto com o exame da 1.a época. A avaliação por testes será feita de
acordo com as ponderações: 1.o teste - 40%; 2.o teste - 60%, sendo
condição necessária para a avaliação por testes atingir, em cada um, o
valor mínimo de 35% (por exemplo, 7,0 em 20).
Data do 1.o Teste: 15 de abril de 2023.
Susana Duarte Santos Geometria I / Geometria
Introdução

A palavra Geometria vem do grego Geometrein:

Geo (Terra) + metrein (medir)

Há uma única geometria? Não, há muitas.


E há diferentes abordagens para uma mesma geometria.

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Introdução

Programa

Sistemas Axiomáticos: os Elementos de Euclides - uma breve referência;


sistemas axiomáticos e modelos; a axiomática de Hilbert; geometria neutra e
os postulados de paralelismo; geometria euclidiana e geometria hiperbólica.
Geometria Euclidiana - uma abordagem analítica: Rn como espaço afim e
noções gerais de geometria afim; Rn como espaço afim euclidiano; distâncias
e ângulos no espaço afim euclidiano Rn ; isometrias, congruências e simetrias;
classificação das isometrias de R2 ; aplicação dos números complexos ao
estudo das isometrias de R2 ; classificação das isometrias de R3 ; aplicação dos
quaterniões ao estudo das isometrias de R3 .
O Programa de Erlangen de Klein: grupos de transformações e geometrias;
figuras congruentes; invariantes; subgeometrias de uma geometria.

Legenda:  - se houver tempo;  - se houver ainda mais tempo.

Susana Duarte Santos Geometria I / Geometria


Sistemas Axiomáticos

Neste capítulo:
Recuamos até ao século III a.C., com o impulsionador da teoria dos
sistemas axiomáticos: Euclides!
Saltamos para o século XIX, dando destaque à descoberta da geometria
hiperbólica, pelas mãos de Lobachevsky, Bolyai, Gauss e Beltrami.
Permanecendo ainda no século XIX, destaque agora para David Hilbert,
que propôs um grupo de axiomas para a geometria euclidiana que elimina
as lacunas existentes na teoria de Euclides.
No decorrer desta viagem no tempo, a teoria moderna dos sistemas
axiomáticos, inspirada na obra Elementos de Euclides, será apresentada.

Susana Duarte Santos Geometria I / Geometria


Sistemas Axiomáticos
Os Elementos de Euclides: uma breve referência

Euclides (fonte: wikipédia)

Euclides, matemático grego nascido no século III a.C., escreveu a monumental


obra Elementos, composta por 13 volumes. Os livros I-IV, VI e XI-XIII são
dedicados à geometria, onde surge compilado o conhecimento da geometria
até à data, organizado de uma forma lógica e sistemática. Euclides começa
por estipular as “regras do jogo”, uma lista de definições, noções comuns e
postulados e, em seguida, apresenta as proposições, resultados deduzidos
através das “regras do jogo”, de resultados já entretanto estabelecidos e de
regras de lógica.
Susana Duarte Santos Geometria I / Geometria
Os Elementos de Euclides: uma breve referência

Acredita-se que muitos dos resultados apresentados nos Elementos já eram


conhecidos, mas a forma como Euclides organizou todo o conhecimento
geométrico é que foi verdadeiramente inovadora, conseguindo organizá-lo num
único sistema lógico e coerente.
Nos Elementos podemos, desde logo, encontrar no livro I: 23 Definições, 5
Noções comuns e 5 Postulados.

Susana Duarte Santos Geometria I / Geometria


Os Elementos de Euclides: uma breve referência

Definições
Definições descritivas Definições de termos geométricos utilizados, tais como:
(1) Um ponto é o que não tem partes;
(2) Uma linha é um comprimento sem largura;
(3) As extremidades de uma linha são pontos;
(4) Uma linha reta é uma linha que assenta igualmente sobre todos os
seus pontos;
(5) Uma superfície é o que só tem comprimento e largura;
(7) Uma superfície plana é uma superfície que assenta igualmente sobre
todas as linhas retas;
(8) Um ângulo plano é a inclinação mútua entre duas linhas num plano
que se encontram e que não estão numa mesma linha reta;
(9) E quando as linhas contendo o ângulo são linhas retas, o ângulo é
chamado retilíneo.
Nota: o termo linha reta é o que chamamos hoje segmento de reta.
Estas definições, no entanto, recorrem a outros termos ainda não definidos;
tentando defininir esses termos, vamos obter outros que exigem definição.
Susana Duarte Santos Geometria I / Geometria
Os Elementos de Euclides: uma breve referência

Nesta tentativa de definir tudo, entramos numa regressão sem fim ou num
círculo vicioso. De qualquer modo, Euclides nunca utiliza as definições
descritivas para justificar quaisquer passos.
Como vamos ver, a forma de evitar este problema é permitir que existam
termos que não estão definidos, hoje chamados termos não definidos ou
primitivos. Neste caso, por exemplo, seria conveniente considerar, entre
outros, ponto e reta como termos não definidos. Uma vez que não vão ter
significado preestabelecido, podem adquirir diversas interpretações.

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Os Elementos de Euclides: uma breve referência

Definições lógicas Estas definições descrevem condições específicas para


objetos, de forma a obtermos o que hoje chamamos termos definidos. Como
exemplos, temos:
(10) Quando uma linha reta cai sobre outra linha reta de tal modo que os
ângulos adjacentes são iguais, cada um destes ângulos é reto, e a linha
reta que cai sobre a outra diz-se perpendicular a essa outra;
(15) Um círculo é uma figura plana contida por uma linha tal que todas
as linhas retas que nela caem tiradas de um ponto de entre os situados
dentro da figura são iguais umas às outras;
(16) E o ponto é chamado o centro do círculo;
(23) Linhas retas paralelas são linhas retas que estão num mesmo plano e
quando prolongadas indefinidamente em ambos os sentidos não se
encontram.
Embora estas definições não sejam essenciais, são importantes de modo a
evitar estar constantemente a descrever as condições subjacentes. Economia
de espaço e tempo!
Susana Duarte Santos Geometria I / Geometria
Os Elementos de Euclides: uma breve referência

Definição 10

É na Definição 10 que Euclides usa pela primeira vez a palavra “iguais” para
relacionar objetos da mesma natureza. Por exemplo, entre ângulos ou entre
linhas retas, percebe-se, pelo contexto dos Elementos, que “igualdade” é no
sentido de terem o “mesmo tamanho”. Mas sem recorrer a números! E
porquê? Porque para os gregos antigos, número significava número natural ou,
quando muito, quociente de números naturais, e os seguidores de Pitágoras
descobriram que a relação entre os comprimentos de uma diagonal e um lado
de um quadrado não pode ser dada através √ do quociente de números naturais;
em linguagem moderna, descobriram que 2 é um número irracional.
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Os Elementos de Euclides: uma breve referência

Com o objetivo de estabelecer o conhecimento geométrico existente até à data


num único sistema lógico, Euclides apercebeu-se de que tinha de ter uma base
como ponto de partida, existindo então a necessidade de ter axiomas (i.e.,
afirmações que aceitamos como verdadeiras, sem justificações adicionais).

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Os Elementos de Euclides: uma breve referência

Postulados Os postulados nos Elementos surgem como axiomas de caráter


geométrico. A geometria de Euclides tem por base cinco postulados.
(1) (É possível) traçar uma (e uma só) linha reta de qualquer ponto a
qualquer ponto.
(2) (É possível) prolongar continuamente uma linha reta numa linha reta.
(3) (É possível) construir um círculo com quaisquer centro e raio.
Este postulado é para ser interpretado no seguinte sentido: dados dois
pontos A e B, é possível construir um círculo com centro A e raio
definido pela linha reta de extremos A e B.
Estes 3 postulados afirmam, em linguagem moderna, que podemos construir
um segmento de reta unindo quaisquer dois pontos, prolongar qualquer
segmento de reta (até onde quisermos) e construir uma circunferência (e
círculo) com o centro que quisermos e passando por um ponto arbitrário.
Afirmam, de um modo abstrato, que temos uma régua não graduada e um
compasso “colapsante” (fecha-se assim que uma ponta é levantada do plano).
Atenção que, pelo menos por enquanto, não podemos transportar distâncias!
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Os Elementos de Euclides: uma breve referência

Os dois últimos postulados afirmam que se determinadas configurações


existirem, então certas relações são verificadas.
(4) Todos os ângulos retos são iguais.
(5) (Num plano) se uma linha reta caindo sobre duas linhas retas faz os
ângulos internos do mesmo lado menores que dois ângulos retos, então as
duas linhas retas, se prolongadas indefinidamente, encontram-se nesse
lado onde estão os dois ângulos menores que dois ângulos retos.

Postulado 5

Dado que um ângulo reto é definido através de uma certa configuração, o


postulado 4 expressa o facto de dois ângulos retos terem “o mesmo
tamanho”, independentemente do sítio onde se encontrem, permitindo, em
particular, fazer comparações de ângulos em termos do ângulo reto.
Susana Duarte Santos Geometria I / Geometria
Os Elementos de Euclides: uma breve referência

Noções Comuns As noções comuns nos Elementos são igualmente axiomas,


mas neste caso axiomas de caráter geral:
(1) Coisas que são iguais a uma mesma coisa, são iguais entre si;
(2) Se iguais são somados a iguais, os totais são iguais;
(3) Se iguais são subtraídos de iguais, os restos são iguais;
(4) Coisas que coincidem uma com a outra, são iguais uma à outra;
(5) O todo é maior que a parte.

Estas noções comuns vão ser utilizadas por Euclides em objetos da mesma
natureza, que possam ser comparados, somados ou subtraídos.
A noção comum 5 é colocada em causa no final do século XIX se se pensar
em cardinalidades de conjuntos infinitos, embora não exista problema algum
no contexto de Euclides.

Susana Duarte Santos Geometria I / Geometria


Os Elementos de Euclides: uma breve referência

Relativamente ao Postulado 5, há tanto para dizer. Apenas alguns pontos:


O postulado 5 foi bastante controverso até ao século XIX, não parecia
tão natural como os restantes;
O facto de o próprio Euclides utilizar o quinto postulado somente a partir
da proposição I.29, embora o seu uso simplificasse algumas das provas
anteriores, parecia indicar que algo diferente se passava com este
postulado;
Durante mais de dois mil anos, muitos matemáticos acreditavam que o
postulado 5 era consequência lógica dos restantes, tentando, assim,
prová-lo; muitas dessas tentativas de prova continham uma suposição não
justificada que, mais tarde, se concluia ser equivalente ao postulado 5.

Susana Duarte Santos Geometria I / Geometria


Os Elementos de Euclides: uma breve referência

Outros matemáticos tentaram, pelo menos, substituir o quinto postulado


por algum outro equivalente que parecesse mais natural e mais simples de
trabalhar. Por exemplo,
Postulado de Playfair: Num plano, dada uma reta e dado um ponto P
não pertencente a r , existe no máximo uma reta paralela a r a passar por
P. (no contexto que se espera!)

Postulado de Playfair

Recorrendo somente aos primeiros 4 postulados, um dos resultados de


Euclides garante a existência de, pelo menos, uma reta paralela a r a
passar por P, e logo este postulado é equivalente a afirmar que existe
uma única reta paralela nessas condições.
Susana Duarte Santos Geometria I / Geometria
Os Elementos de Euclides: uma breve referência

Toda esta incerteza provocou, ao longo do tempo, um desenvolvimento


enorme da geometria (e da matemática, em geral), chegando-se à conclusão,
no início do século XIX, que o postulado 5 não pode ser, de facto, provado a
partir dos restantes. Foi apresentada uma estrutura obedecendo aos primeiros
4 postulados e não verificando o quinto. Pelas mãos de Lobachevsky, Bolyai,
Gauss e Beltrami (de forma independente), surge a, agora chamada, geometria
hiperbólica, ficando patente que a geometria de Euclides não é a única
possibilidade de geometria. E mais geometrias foram depois descobertas!

Susana Duarte Santos Geometria I / Geometria


Os Elementos de Euclides: uma breve referência

Proposições E agora, com as “regras do jogo” estabelecidas, o “jogo”


começa!
Os resultados, devidamente provados, são apresentados. Euclides designa
qualquer um dos resultados por “proposição” (nos tempos que correm, é
comum também utilizar as designações teorema, corolário e lema).
Tal como nos postulados, algumas das proposições descrevem construções de
certas configurações geométricas e outras descrevem relações que se obtêm de
certas configurações. Apresentaremos em seguida algumas proposições (já
familiares!), optando por utilizar as designações mais próximas dos nossos
tempos.
Há falhas nos argumentos, já que, por vezes, para justificar um passo Euclides
recorre à “intuição” ou a algo evidente através de uma figura. Algumas dessas
falhas vão sendo indicadas. É de salientar que a genialidade de Euclides não é,
de forma alguma, colocada em causa por falhas apontadas!

Susana Duarte Santos Geometria I / Geometria


Os Elementos de Euclides: uma breve referência

Proposição I.1 Sobre um segmento de reta dado, (é possível) construir um


triângulo equilátero.

Proposição I.1.

Demonstração de Euclides: Dado um segmento de reta de extremos A e B,


que denotaremos por AB, os passos e justificações são os seguintes:
1 Traçar uma circunferência de centro A e raio AB (Postulado 3);

2 Traçar uma circunferência de centro B e raio AB (Postulado 3);

3 Considerar um ponto C pertencente a ambas as circunferências (as

circunferências intersetam-se em algum ponto? Nada nos diz que sim,


necessitamos de mais algum postulado);
4 Traçar os segmentos de reta AC e BC (Postulado 1);

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Os Elementos de Euclides: uma breve referência

5 AC e AB são geometricamente iguais porque são raios de uma mesma


circunferência, assim como BC e AB (Definição 15);
6 Os comprimentos de AC e BC são então também iguais (N. Comum 1);
7 O triângulo obtido de lados AB, AC e BC é então um triângulo
equilátero ( também não sabemos, por exemplo, se a figura obtida está
contida num plano).

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Os Elementos de Euclides: uma breve referência

Consideremos agora as seguintes duas proposições:


Proposição I.2. Dados um segmento de reta e um ponto, (é possível)
construir um segmento de reta cujo ponto seja uma das extremidades e que
seja geometricamente igual ao segmento de reta dado.
Atenção que, por aqui, não temos controlo na localização do segmento
construído.
Proposição I.3. Dados dois segmentos de reta que não sejam
geometricamente iguais, (é possível) construir no maior segmento um
segmento de reta geometricamente igual ao menor.
As demonstrações destas duas proposições têm falhas, nomeadamente quando
é afirmado que uma circunferência de centro num ponto A e um segmento
AB, ou um seu prolongamento, intersetam-se.

Eventuais interseções
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Os Elementos de Euclides: uma breve referência

Note-se que já podemos transportar distâncias, transportando segmentos! No


início, só era permitido usar compassos colapsantes, mas, a partir de agora,
podemos retirar os nossos compassos das gavetas! É de uma extrema
elegância, Euclides ter colocado o Postulado 3 na forma “compasso
colapsante”, provando posteriormente que, de facto, algo mais forte se tem:
podemos construir uma circunferência com um centro qualquer e com um raio
fornecido pelo comprimento de um qualquer segmento de reta.

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Os Elementos de Euclides: uma breve referência

O conhecido critério de “igualdade” de triângulos LAL é estabelecido na


Proposição I.4, embora a demonstração de Euclides faça uso do “princípio de
sobreposição”, assumindo que pode mover uma figura geométrica sem que as
suas propriedades geométricas, tais como medidas de ângulos e segmentos de
reta, sofram alterações. Mas nada é dito nesse sentido. Na axiomática de
Hilbert, o critério LAL surge praticamente como um axioma.

Proposição I.4

E já agora: assumindo o critério LLL de “igualdade” de triângulos (Prop. I.8)


e o que já temos, podemos agora transportar ângulos (Prop. I.23). Como?
E as proposições continuam, são 48 só no volume I (ver, por exemplo, Book
I). São 465 no total!

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Sistemas Axiomáticos

A geometria axiomática (ou sintética) tem assim início com Euclides, uma
geometria desenvolvida a partir de um sistema axiomático. E o que é um
sistema axiomático?
Um sistema axiomático é um sistema composto por:
1 Termos não definidos ou primitivos São termos técnicos que não têm
definição. As suas propriedades essenciais vão ser depois descritas nos
axiomas. Em geral, um termo não definido é um objeto, uma relação ou
uma função. Por exemplo, ponto (objeto), estar entre (relação) e
distância (função).
2 Termos definidos São termos técnicos perfeitamente definidos através
dos termos não definidos e dos termos definidos já estabelecidos. Os
termos definidos não são estritamente necessários, mas tornam a
exposição da teoria mais eficiente. Por exemplo, na geometria euclidiana
plana, o termo “(duas) retas paralelas” é um termo definido, que
substitui “(duas) retas que não se intersetam”.

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Sistemas Axiomáticos

3 Axiomas (também chamados Postulados) São afirmações sobre termos


não definidos e definidos que assumimos verdadeiras. Tal como temos de
aceitar termos sem definição, também temos de aceitar certas afirmações
como verdadeiras sem demonstração.
4 Teoremas São afirmações sobre termos não definidos e definidos
devidamente demonstradas, com base nos axiomas, teoremas
previamente provados e regras de lógica. Por vezes, um teorema poderá
surgir com a designação proposição, corolário ou lema.

Um sistema axiomático vai surgir como uma estrutura que permite descrever
um determinado conhecimento (não necessariamente no campo da geometria)
de uma forma organizada, sistemática e lógica. Já viram alguma teoria
organizada desta forma? Sim, por exemplo, em Álgebra Linear!

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Sistemas Axiomáticos

Dado um sistema axiomático S, note-se que cada teorema de S vai então ser
válido em qualquer interpretação (uma atribuição de significado) dada aos
termos primitivos que verifique os axiomas, já que os teoremas são
consequências lógicas dos axiomas e essa interpretação satisfaz os axiomas.
Definição
Um modelo de um sistema axiomático é uma interpretação dada aos termos
primitivos que satisfaz os axiomas.

Os modelos vão ser magníficos laboratórios de experiências!

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Sistemas Axiomáticos

Exemplo Geometria dos quatro pontos


Consideremos a chamada geometria dos quatro pontos, definida através do
seguinte sistema axiomático:
Termos não definidos: ponto, reta, incidência
Axioma 1: Existem exatamente quatro pontos (distintos)
Axioma 2: Dados dois pontos (distintos), existe uma única reta incidente
com ambos
Axioma 3: Cada reta incide com exatamente dois pontos (distintos).
Observe-se que nenhum axioma isoladamente garante a existência de retas,
mas, de facto, conseguimos provar essa existência (é o nosso primeiro
teorema!). Como?

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Sistemas Axiomáticos

Exemplo Um modelo da geometria dos quatro pontos


Consideremos agora a seguinte interpretação para os termos não definidos:
pontos: os números 1, 2, 3 e 4 (o importante é termos exatamente 4 objetos,
a natureza dos objetos é irrelevante)
retas: os conjuntos {1, 2}, {1, 3}, {1, 4}, {2, 3}, {2, 4} e {3, 4}
incidência: o “ponto” pertence à “reta” ou a “reta” contém o “ponto”.
É um modelo da geometria dos quatro pontos? Sim, já que estamos a
considerar exatamente quatro números para “pontos”, dados “pontos”
distintos P e Q, estes pertencem simultaneamente a uma e uma só “reta”,
nomeadamente à “reta” {P, Q}, e cada “reta” contém exatamente dois dos
números 1, 2, 3 e 4. Denotemos por M este modelo.

Exemplos de representações de M
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Sistemas Axiomáticos

Exemplo Um outro teorema da geometria dos quatro pontos


Já sabemos que existe pelo menos uma reta. Será que conseguimos dizer algo
mais sobre o número de retas? Sim!
Teorema (geom. dos quatro pontos) Existem exatamente seis retas.
Demonstração. Pelo Axioma 1, existem exatamente 4 pontos, digamos P1 ,
P2 , P3 e P4 . Tendo em conta o Axioma 2, consideremos, para cada par de
pontos Pi e Pj , com i < j, a única reta incidente com ambos, que
designaremos por rij . Estas retas são distintas duas a duas, pois, caso
contrário, existiria uma reta incidente com pelo menos três pontos, o que
contraria o Axioma 3. Temos então pelo menos 6 retas. Dada uma reta r
arbitrária, pelo Axioma 3, temos que r incide com dois pontos Pi e Pj , com
i < j. Mas então, pelo Axioma 2 (parte da unicidade), r = rij . Portanto,
existem exatamente seis retas. 
Será que a afirmação “Cada ponto incide com exatamente três retas.” é um
teorema da geometria dos quatro pontos? Sim! (TPC)

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Sistemas Axiomáticos

Definição
Um sistema axiomático diz-se consistente se não existirem no sistema dois
axiomas, um axioma e um teorema, ou dois teoremas que se contradigam.

Naturalmente que queremos sistemas axiomáticos consistentes (i.e., livres de


contradições); num sistema não consistente qualquer afirmação é um
teorema! Agora, como verificar se um sistema é consistente? Se conseguirmos
deduzir uma contradição, temos a garantia que o sistema não é consistente.
Mas provar diretamente a consistência não parece ser uma boa ideia...
Se conseguirmos encontrar um modelo do sistema axiomático em causa, então
temos garantida a consistência do sistema. Rigorosamente, o que obtemos é
uma consistência relativa, no sentido em que provamos que o sistema é
consistente se o “ambiente” no qual o modelo foi construído for consistente.
Exemplo Geometria dos quatro pontos
Considerando o modelo M, temos garantida a consistência (relativa).

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Sistemas Axiomáticos

Definição
Um axioma de um sistema axiomático diz-se independente se não puder ser
provado a partir dos restantes axiomas. Se todos os axiomas de um sistema
axiomático forem independentes, então diz-se que o sistema axiomático é
independente.

Ainda dizemos que um sistema axiomático é dependente se não for


independente.
Um sistema axiomático independente é naturalmente mais elegante, resume-se
ao indispensável!
Como é que podemos provar que um certo axioma A de um sistema
axiomático S é independente? Tal como na questão de consistência, uma
condição suficiente para a independência de A é garantir a existência de um
modelo do sistema axiomático obtido de S substituindo somente o axioma A
por ¬A.
E agora podemos dizer: no século XIX provou-se a independência do quinto
postulado de Euclides.
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Sistemas Axiomáticos

Exemplo Geometria dos quatro pontos


Os três axiomas são independentes.

Dicas para a independência dos 3 axiomas da geometria dos 4 pontos (há várias
possibilidades)

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Sistemas Axiomáticos

E agora, como não poderia deixar de ser, surge a formalização da ideia de dois
modelos serem “cópias fiéis” um do outro.
Definição
Dados modelos M1 e M2 de um certo sistema axiomático, M1 e M2
dizem-se isomorfos se para cada tipo de objeto primitivo, existir uma
correspondência bijetiva entre os objetos desse tipo de M1 e os objetos desse
tipo de M2 de tal forma que as relações e funções primitivas são preservadas.
Um sistema axiomático S diz-se categórico se quaisquer dois modelos de S
forem isomorfos.

Exemplo Geometria dos quatro pontos


Neste caso, “ponto” e “reta” são os objetos primitivos, e “incidência” é a
relação primitiva. Assim, modelos M1 e M2 são isomorfos se existir uma
aplicação bijetiva φ do conjunto dos pontos de M1 para o conjunto dos
pontos de M2 e uma aplicação bijetiva ψ do conjunto das retas de M1 para
o conjunto das retas de M2 tais que, para quaisquer P ponto e r reta de M1 ,
P incide com r se, e só se, φ(P) incide com ψ(r ).
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Sistemas Axiomáticos

Exemplo Geometria dos quatro pontos


Será que quaisquer dois modelos da geometria dos quatro pontos são
isomorfos? Sim!

Exemplo
Consideremos o seguinte sistema axiomático:
Termos não definidos: Aa, Ee, incidência
Axioma 1: Existem exatamente três Aas distintos
Axioma 2: Dados dois Aas distintos, existe um único Ee incidente com ambos
Axioma 3: Dados dois Ees distintos, existe pelo menos um Aa incidente com
ambos.
Verifiquemos a consistência (relativa) deste sistema axiomático.
Pensando em linhas e estações de metro de Lisboa, tentemos construir
um modelo deste sistema axiomático.
Os modelos já apresentados são isomorfos?
Este sistema axiomático é categórico?
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A Axiomática de Hilbert

Com a chegada de geometrias distintas da geometria de Euclides, David


Hilbert (matemático alemão, 1862-1943) examinou cuidadosamente a
construção axiomática de Euclides, apresentando um sistema axiomático que
elimina por completo as “pontas soltas” da geometria de Euclides, ficando
perfeitamente estabelecida a Geometria Euclidiana. Existem outros sistemas
axiomáticos que descrevem igualmente a geometria euclidiana, embora o
sistema axiomático de D. Hilbert seja o que se encontra mais próximo da
visão de Euclides.

David Hilbert (fonte: wikipédia)

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A Axiomática de Hilbert

Na sua publicação Fundamentos da Geometria (1899), Hilbert propõe um


sistema axiomático com cerca de 20 axiomas que descrevem propriedades
entre os termos não definidos: ponto, reta, plano, incidência (relação entre
um ponto e uma reta e entre um ponto e um plano), estar entre (relação
entre 3 pontos incidentes com uma mesma reta) e congruência (relação entre
ângulos e entre segmentos de reta).

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A Axiomática de Hilbert

Os axiomas de Hilbert estão agrupados do seguinte modo:

Axiomas de incidência Descrevem propriedades entre os termos não


definidos ponto, reta e plano, por meio da relação de incidência.
Axiomas de ordem Descrevem propriedades entre pontos incidentes
com uma mesma reta, por meio da relação estar entre.
Axiomas de congruência Descrevem propriedades entre segmentos e
propriedades entre ângulos, por meio da relação congruência.
Axiomas de continuidade Estes axiomas vão assegurar que numa reta
não há “saltos”, que uma reta não tem “falhas”, não tem “buracos”.
Axioma de paralelismo Afirma que, em cada plano, dada uma reta r e
dado um ponto P não incidente com a reta, existe no máximo uma reta
paralela a r que incide com P (coincide com o Postulado de Playfair).

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A Axiomática de Hilbert

Com os primeiros 4 grupos, temos a chamada geometria neutra (ou absoluta),


onde não é contemplado qualquer axioma de paralelismo. Se acrescentarmos o
Axioma de Paralelismo de Hilbert, obtemos a Geometria Euclidiana, e se
acrescentarmos o axioma que afirma que, em cada plano, dada uma reta r e
dado um ponto P não incidente com a reta, existem pelo menos duas retas
paralelas a r que incidem com P, obtemos a Geometria Hiperbólica.

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A Axiomática de Hilbert

Grupo I - Axiomas de incidência


Os três primeiros axiomas de incidência descrevem a interação entre os termos
não definidos ponto e reta, através da relação não definida incidência.
Termos não definidos: ponto, reta, incidência
Axioma I1: Dados dois pontos distintos, existe uma única reta incidente com
ambos.
Axioma I2: Qualquer reta incide com pelo menos dois pontos distintos.
Axioma I3: Existem pelo menos três pontos distintos que não incidem com
uma mesma reta.
Nota: considerando previamente o termo definido colinearidade de pontos
como sendo pontos que incidem com uma mesma reta, o Axioma I3 pode ser
reescrito na forma
“Existem pelo menos três pontos distintos não colineares”.
Estes 3 axiomas são chamados Axiomas Planos de Incidência (ou Axiomas de
Incidência do Plano), e este sistema axiomático define a chamada geometria
de incidência plana.
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A Axiomática de Hilbert

X Será que o modelo M da geometria dos quatro pontos é um modelo da


geometria de incidência plana? Sim. E logo, em particular, temos provada a
consistência (relativa) deste sistema axiomático.
X Também temos a independência do sistema axiomático (TPC).
Diga se alguma das afirmações seguintes é um teorema da geometria de
incidência plana:
Afirmação 1: Existem pelo menos três retas (distintas).
É um teorema. Provemos, então!
Afirmação 2: Dada uma reta r , existem pelo menos dois pontos
(distintos) não incidentes com r .
Não é um teorema, já que no modelo da geometria de incidência plana a
seguir apresentado (verificar que é um modelo), a Afirmação 2 é falsa:
pontos: os números 1, 2 e 3
retas: os conjuntos {1, 2}, {1, 3} e {2, 3}
incidência: o “ponto” pertence à “reta” ou a “reta” contém o “ponto”.
Susana Duarte Santos Geometria I / Geometria
A Axiomática de Hilbert

Apresentaremos, em seguida, exemplos de modelos infinitos (i.e., com um


número infinito de pontos) da geometria de incidência plana, mas antes
consideremos, nesta geometria, o termo definido paralelismo de duas retas
(distintas) como sendo duas retas que não incidem com um mesmo ponto.

Susana Duarte Santos Geometria I / Geometria


A Axiomática de Hilbert

Exemplo Plano afim real


pontos: os pares ordenados (x , y ) de números reais, i.e., os elementos de R2
retas: os conjuntos dados por {(x , y ) ∈ R2 : ax + by + c = 0}, com a, b, c ∈ R
e a e b não simultaneamente nulos
incidência: o “ponto” pertence à “reta” ou a “reta” contém o “ponto”.
Confirmar que é um modelo da geometria de incidência plana.

Neste modelo, será que dada uma reta r e dado um ponto P não incidente
com r , existem retas incidentes com P que sejam paralelas a r ? Sim. Além da
existência, conseguimos mesmo provar a unicidade. Esta interpretação é um
modelo da chamada geometria afim plana, que consiste na geometria de
incidência plana em conjunção com o chamado postulado euclidiano de
paralelismo: dada uma reta r e dado um ponto P não incidente com r , existe
uma e uma só reta incidente com P e paralela a r .

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A Axiomática de Hilbert

Exemplo Disco de Beltrami-Klein


pontos: os pares ordenados (x , y ) ∈ R2 tais que x 2 + y 2 < 1, i.e., os pontos
interiores ao círculo C = {(x , y ) : x 2 + y 2 ≤ 1}
retas: as cordas abertas de C
incidência: o “ponto” pertence à “reta” ou a “reta” contém o “ponto”.
Confirmar que é um modelo da geometria de incidência plana.

Disco de Beltrami-Klein

Neste modelo, conseguimos garantir que se verifica o Postulado hiperbólico de


paralelismo: dada uma reta r e dado um ponto P não incidente com r ,
existem pelo menos duas retas incidentes com P e paralelas a r .
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A Axiomática de Hilbert

Exemplo Plano projetivo real


pontos: os subespaços vetoriais de R3 com dimensão 1
retas: os subespaços vetoriais de R3 com dimensão 2
incidência: o “ponto” está contido na “reta” ou a “reta” contém o “ponto”.
Confirmemos que é um modelo da geometria de incidência plana.

Pontos e retas projetivas / A visão através de um olho

Susana Duarte Santos Geometria I / Geometria


A Axiomática de Hilbert

Exemplo Plano projetivo real


Neste modelo, será que dada uma reta r e dado um ponto P não incidente
com r , existem retas incidentes com P que sejam paralelas a r ? Não.
Conseguimos mesmo garantir que se verifica o Postulado elíptico de
paralelismo: dada uma reta r e dado um ponto P não incidente com r , não
existem retas incidentes com P que sejam paralelas a r . Não há retas
paralelas!

Carris paralelos (fonte: internet)

Será que destes três últimos modelos, há dois que sejam isomorfos? Não.
Porquê?
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A Axiomática de Hilbert

Até este momento, trabalhámos somente na geometria de incidência plana.


Além do já contemplado, consideremos ainda:
1 O termo não definido plano;
2 A relação não definida incidência também no contexto entre um ponto e
um plano;
3 A seguinte definição de incidência entre uma reta e um plano: uma reta r
e um plano α incidem se todo o ponto que incide com r incide também
com α;
4 E mais cinco axiomas de incidência.

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A Axiomática de Hilbert

Os cinco axiomas de incidência que faltam são:


Axioma I4: Dados três pontos não colineares, existe pelo menos um plano
incidente com os três. Qualquer plano incide com pelo menos um ponto.
Axioma I5: Dados três pontos não colineares, existe no máximo um plano
incidente com os três.
Axioma I6: Se dois pontos incidentes com uma reta incidem com um plano,
então a reta incide com o plano.
Axioma I7: Se dois planos incidem com um ponto, então incidem com pelo
menos um outro ponto.
Axioma I8: Existem pelo menos quatro pontos que não incidem com um
mesmo plano.
Nota: intuitivamente, o Axioma I7 garante que o nosso “espaço” tem no
máximo “dimensão” 3 e o Axioma I8 garante que a “dimensão” é pelo menos
3.
Chamaremos geometria de incidência espacial à geometria definida por este
sistema axiomático.
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A Axiomática de Hilbert

De forma a estar sempre presente que ponto, reta e plano são termos não
definidos, é de mencionar o que Hilbert uma vez disse: temos sempre de ser
capazes de substituir “pontos, retas e planos” por “mesas, cadeiras e canecas
de cerveja”!

Exemplo Um modelo finito da geometria de incidência espacial


pontos: os números 1, 2, 3 e 4
retas: os conjuntos {1, 2}, {1, 3}, {1, 4}, {2, 3}, {2, 4} e {3, 4}
planos: {1, 2, 3}, {1, 2, 4}, {1, 3, 4} e {2, 3, 4}
incidência: o “ponto” pertence à “reta” (respetivamente, ao “plano”) ou a
"reta"(respetivamente, o “plano”) contém o “ponto”.

Na geometria de incidência espacial, considere o termo definido paralelismo


de duas retas (distintas) como sendo duas retas que incidem com um mesmo
plano, mas que não incidem com um mesmo ponto.
Será que existem retas paralelas neste modelo? Não!
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A Axiomática de Hilbert

Exemplo Um modelo infinito da geometria de incidência espacial


Espaço afim real
pontos: os ternos ordenados (x , y , z) de n.os reais, i.e., os elementos de R3
retas: os conjuntos dados por

{(x , y , z) ∈ R3 : ax + by + cz + d = 0 ∧ a0 x + b 0 y + c 0 z + d 0 = 0},

com a, b, c, d, a0 , b 0 , c 0 , d 0 ∈ R e (a, b, c) e (a0 , b 0 , c 0 ) linearmente independentes


em R3
planos: os conjuntos dados por {(x , y , z) ∈ R3 : ax + by + cz + d = 0}, com
a, b, c, d ∈ R e a, b e c não simultaneamente nulos (i.e., (a, b, c) 6= (0, 0, 0))
incidência: o “ponto” pertence à “reta” (respetivamente, ao “plano”) ou a
"reta"(respetivamente, o “plano”) contém o “ponto”.

Nota: as “versões tridimensionais” do disco de Beltrami-Klein e do plano


projetivo real são também modelos (infinitos) da geometria de incidência
espacial.
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A Axiomática de Hilbert

Grupo II - Axiomas de ordem


Na geometria de incidência não temos ferramentas para introduzir (de forma
satisfatória) conceitos tais como segmento e ângulo. A relação ternária
primitiva “estar entre” cujas propriedades vão agora ser descritas vai resolver
esta situação. Incorporando na geometria de incidência (plana ou espacial)
esta relação primitiva e os quatro axiomas a seguir indicados, obtemos a
geometria de ordem (plana ou espacial).
Com o termo não definido estar entre, e escrevendo A ∗ B ∗ C para designar
“o ponto B está entre o ponto A e o ponto C ”, os quatro axiomas de ordem
são os seguintes:
Axioma II1: Se A ∗ B ∗ C , então A, B e C são três pontos colineares e
C ∗ B ∗ A.
Axioma II2: Dados dois pontos A e B, existe, pelo menos, um ponto C tal
que A ∗ B ∗ C .
Axioma II3: Dados três pontos colineares, não mais do que um ponto está
entre os outros dois.
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A Axiomática de Hilbert

Antes do quarto axioma, consideremos o termo definido segmento, com a


seguinte definição:
Definição: Dados dois pontos A e B, defina-se segmento AB como sendo o
conjunto constituído pelos pontos A, B (chamados extremos de AB) e por
todos os pontos que estão entre A e B.
Axioma II4: (Axioma de Pasch) Num plano, dados três pontos não colineares
A, B e C e dada uma reta r que não incide com nenhum dos três pontos, se r
incide com algum ponto de AB, então r incide com um ponto de AC ou com
um ponto de BC .

Nota: eliminar “Num plano” se a base for a geometria de incidência plana.


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A Axiomática de Hilbert

O Axioma de Pasch pode ser reescrito (como?) recorrendo à noção de


triângulo (mais um termo definido):
Definição: Dados três pontos A, B e C não colineares, defina-se triângulo
4ABC como sendo o conjunto AB ∪ BC ∪ AC . Os pontos A, B e C são os
vértices e os segmentos AB, BC e AC são os lados do triângulo 4ABC .

Observação: estando na geometria de ordem espacial, é claro que existe um


único plano α tal que qualquer ponto de 4ABC incide com α?

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A Axiomática de Hilbert

Alguns teoremas da geometria de ordem (geometria definida pelos


grupos I e II):
1 Dados dois pontos A e B, existe pelo menos um ponto C tal que
A ∗ C ∗ B.
2 Dados três pontos colineares, um e um só desses pontos está entre os
outros dois. (II3 garante somente a unicidade)
3 Num plano, dados três pontos não colineares A, B e C e dada uma reta r
que não incide com nenhum dos três pontos, se r incide com algum
ponto de AB, então r incide com um ponto de AC ou com um ponto de
BC , mas não com ambos. (II4 garante somente a existência)
4 Se A ∗ B ∗ C , então B ∗ C ∗ D é equivalente a A ∗ C ∗ D.
5 Qualquer segmento contém uma infinidade de pontos. (ideia de prova:
dado um segmento AB, conseguimos garantir a existência de uma
sucessão de pontos (Pn )n∈N verificando A ∗ Pn ∗ B e Pn ∗ Pn+1 ∗ B.)
Uma consequência importante: os modelos da geometria de ordem são
modelos com um número infinito de pontos. A partir de agora, já não há
modelos finitos!
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A Axiomática de Hilbert

De forma a definir o conceito de ângulo, introduziremos em seguida a teoria


de separação de uma reta por um ponto (que dá origem à noção de
semirreta). A teoria de separação de um plano por uma reta será também
dada, já que necessitaremos mais tarde da noção de semiplano.
1 Separação de uma reta por um ponto. Conceito de semirreta
Dada uma reta r e dado um ponto O incidente com r , consideremos a
relação binária definida no conjunto dos pontos incidentes com r e
diferentes de O:
A ∼ B se A = B ou O ∈ / AB.
É possível provar que ∼ é uma relação de equivalência, com exatamente
duas classes de equivalência. Os pontos pertencentes a uma mesma
classe de equivalência (resp., a classes de equivalência distintas) dizem-se
situados do mesmo lado (resp., em lados opostos) de r relativamente a O.

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A Axiomática de Hilbert

Temos que:
Cada classe de equivalência é designada por semirreta aberta de origem
O e suporte r ;

a classe de equivalência de um ponto A será denotada por OA e
designada por semirreta aberta de origem O que contém A;
• ◦
o conjunto OA := {O} ∪ OA será designado por semirreta de origem O
que contém A, tendo-se

OA = OA ∪ {P ponto : O ∗ A ∗ P}.
• •
Se A 6∼ B, então OB diz-se a semirreta oposta a OA.

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A Axiomática de Hilbert

Analogamente ao caso da separação de uma reta por um ponto, vamos ter


(com as devidas simplificações no caso da geometria de ordem plana):
2 Separação de um plano por uma reta. Conceito de semiplano
Dado um plano α e dada uma reta r incidente com α, a relação de
equivalência a ter em conta no conjunto dos pontos incidentes com α,
mas não com r é dada por:
A ∼ B se A = B ou AB não admite nenhum ponto incidente com r .
Existem exatamente duas classes de equivalência. Os pontos
pertencentes a uma mesma classe de equivalência (resp., a classes de
equivalência distintas) dizem-se situados do mesmo lado (resp., em lados
opostos) de α relativamente a r . Cada classe de equivalência é designada
por semiplano aberto de aresta r e suporte α; a classe de equivalência de

um ponto A será denotada por rA e designada por semiplano aberto de

aresta r que contém A. A união de rA com o conjunto dos pontos
incidentes com r será designada por semiplano de aresta r que contém A

e denotada por rA.
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A Axiomática de Hilbert

Observação: poder-se-ia ainda desenvolver , no caso da geometria de ordem


espacial, a teoria de separação do “espaço” por um plano, obtendo-se o
conceito de semi-espaço.

E para finalizar o grupo II, definiremos a noção de ângulo (mais um termo


definido).
Definição: Um ângulo é definido como sendo a união de duas semirretas com
a mesma origem, mas com suportes distintos. A origem das duas semirretas é
designada por vértice e as semirretas por lados do ângulo. Se os lados de um
• •
ângulo forem dados por OA e OB, denotamos esse ângulo por ∠AOB ou
• •
∠(OA, OB).
Nota: Tal como no caso da definição de triângulo, não estamos a incorporar
na definição de ângulo a “parte interna”.

Notação: Dado um triângulo 4ABC , os ângulos ∠BAC ∠ABC e ∠ACB,


chamados ângulos (internos) de 4ABC (em A, B e C , respetivamente), serão
frequentemente denotados, respetivamente, por ∠A, ∠B e ∠C .
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A Axiomática de Hilbert

Grupo III - Axiomas de congruência


Na geometria de ordem, vamos agora introduzir o último termo não definido
da axiomática de Hilbert: “congruência”, podendo designar uma relação
binária entre segmentos ou uma relação binária entre ângulos. Esta relação
corresponde à relação “igualdade” entre segmentos ou ângulos nos Elementos
de Euclides.
Com o termo não definido congruência, e escrevendo AB ≡ A0 B 0 para
designar “o segmento AB é congruente com o segmento A0 B 0 ” e
∠BAC ≡ ∠B 0 A0 C 0 para designar “o ângulo ∠BAC é congruente com o ângulo
∠B 0 A0 C 0 ”, os axiomas de congruência (por vezes também chamados axiomas
de movimento) são os seguintes:
Axioma III1: Dados um segmento AB e uma semirreta h com origem num
ponto C , existe um único ponto D em h tal que AB ≡ CD.

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A Axiomática de Hilbert

Axioma III2: Se CD ≡ AB e EF ≡ AB, então CD ≡ EF . (corresponde à


primeira noção comum de Euclides no âmbito dos segmentos)

Axioma III3: Se A ∗ B ∗ C , A0 ∗ B 0 ∗ C 0 , AB ≡ A0 B 0 e BC ≡ B 0 C 0 , então


AC ≡ A0 C 0 . (corresponde à segunda noção comum de Euclides no âmbito dos
segmentos)

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A Axiomática de Hilbert


Axioma III4: Dados um ângulo ∠BAC , uma semirreta A0 B 0 e um semiplano
• •
cuja aresta é o suporte de A0 B 0 , existe uma única semirreta A0 C 0 contida nesse
semiplano tal que ∠BAC ≡ ∠B 0 A0 C 0 . Todo o ângulo é congruente consigo
mesmo.

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A Axiomática de Hilbert

Axioma III5: Dados triângulos 4ABC e 4A0 B 0 C 0 , se AB ≡ A0 B 0 , AC ≡ A0 C 0


e ∠A ≡ ∠A0 , então ∠B ≡ ∠B 0 . (e logo também ∠C ≡ ∠C 0 )

A geometria definida através dos grupos I, II e III chama-se geometria de


congruência.

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A Axiomática de Hilbert

A partir do termo não definido “congruência” de segmentos e de ângulos,


podemos agora definir, por exemplo, a noção de congruência de triângulos:

Definição: Dados triângulos 4ABC e 4DEF , dizemos que o triângulo


4ABC é congruente com o triângulo 4DEF , e escrevemos 4ABC ≡ 4DEF ,
se existir uma bijeção de {A, B, C } para {D, E , F } de tal forma que os lados
de 4ABC são congruentes com os respetivos lados de 4DEF e os ângulos de
4ABC são congruentes com os respetivos ângulos de 4DEF .

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A Axiomática de Hilbert

Observações:
1 Os primeiros 2 axiomas implicam que a congruência de segmentos é uma
relação de equivalência. A congruência de ângulos também vai ser uma
relação de equivalência, embora esse facto não seja imediato neste
momento;
2 Deste modo, concluímos que a congruência de triângulos também vai ser
uma relação de equivalência;
3 O Axioma III5 é quase o (já conhecido) critério LAL de congruência de
triângulos; nas condições do axioma, vamos conseguir provar a
congruência de lados em falta. É preferível que nos axiomas apareçam
somente as propriedades indispensáveis!

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A Axiomática de Hilbert

Estamos agora em condições de provar alguns resultados bastante conhecidos.

Teorema (do triângulo isósceles)


Seja 4ABC um triângulo tal que AC ≡ BC . Então ∠A ≡ ∠B (e ∠B ≡ ∠A).

Demonstração.
Considerando o triângulo 4A0 B 0 C 0 , com A0 = B, B 0 = A e C 0 = C , temos que
os triângulos 4ABC e 4A0 B 0 C 0 satisfazem CA ≡ C 0 A0 (porque AC ≡ BC ),
CB ≡ C 0 B 0 (porque BC ≡ AC ) e ∠C ≡ ∠C 0 (porque são iguais e qualquer
ângulo é congruente consigo mesmo). Recorrendo ao Axioma III5, temos
∠A ≡ ∠A0 (e ∠B ≡ ∠B 0 ), i.e., ∠A ≡ ∠B (e ∠B ≡ ∠A). 

Nota: Um triângulo diz-se isósceles se tiver (pelo menos) dois lados


congruentes.

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A Axiomática de Hilbert

Teorema (Critério LAL de congruência de triângulos)


Sejam 4ABC e 4A0 B 0 C 0 triângulos tais que AB ≡ A0 B 0 , ∠A ≡ ∠A0 e
AC ≡ A0 C 0 . Então 4ABC ≡ 4A0 B 0 C 0 .

Demonstração.
Tendo em conta o Axioma III5, sabemos que ∠B ≡ ∠B 0 e ∠C ≡ ∠C 0 .
Resta-nos provar que BC ≡ B 0 C 0 . Pelo Axioma III1, existe um único ponto,

digamos C 00 , em B 0 C 0 tal que BC ≡ B 0 C 00 . Considerando os triângulos 4ABC
e 4A0 B 0 C 00 , temos AB ≡ A0 B 0 , BC ≡ B 0 C 00 e ∠B ≡ ∠B 0 , pelo que
∠BAC ≡ ∠B 0 A0 C 00 (Axioma III5). (continua)

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A Axiomática de Hilbert

Demonstração (cont.).
Mas também temos ∠BAC ≡ ∠B 0 A0 C 0 (por hipótese). Por outro lado,

∠B 0 A0 C 0 e ∠B 0 A0 C 00 partilham o lado A0 B 0 , e C 0 e C 00 são pontos incidentes
com o plano determinado por A0 , B 0 e C 0 que estão do mesmo lado
• •
relativamente à reta A0 B 0 a (Porquê?), o que implica que A0 C 0 e A0 C 00 estão
ambas contidas no semiplano de aresta A0 B 0 que contém C 0 (Porquê?).
• •
Recorrendo ao Axioma III4 (unicidade), sai que A0 C 0 = A0 C 00 . Logo,

C 00 ∈ A0 C 0 . Temos então que as retas distintas A0 C 0 e B 0 C 0 incidem com os
pontos C 0 e C 00 , pelo que C 0 = C 00 (Axioma I1). Portanto, BC ≡ B 0 C 0 . 
a
Dados pontos distintos P e Q, denotemos por PQ a única reta incidente
com P e Q (ter em conta o Axioma I1).

Nota: no caso da geometria de congruência plana, eliminar a menção ao plano


incidente com A0 , B 0 e C 0 .

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A Axiomática de Hilbert

Observações finais:
1 Os restantes critérios de congruência também podem ser estabelecidos,
assim como o recíproco do Teorema do triângulo isósceles.
2 Dois ângulos dizem-se suplementares se tiverem um lado em comum e os
outros dois lados são opostos. Cada ângulo tem, portanto, dois ângulos
suplementares, que se prova serem congruentes.
3 Um ângulo diz-se reto se for congruente com um seu suplementar.
Prova-se que um ângulo congruente com um ângulo reto é reto e que
quaisquer dois ângulos retos são congruentes (Euclides considera este
último resultado como axioma).
4 Duas retas r e s incidentes com um ponto O dizem-se perpendiculares se
o ângulo formado por duas semirretas com origem O, uma de suporte r e
outra de suporte s, for reto.

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A Axiomática de Hilbert

5 Prova-se que dada uma reta r e dado um ponto P não incidente com r ,
existe uma única reta incidente com P e perpendicular a r .
6 Prova-se que dada uma reta r e dado um ponto P incidente com r , para
cada plano α incidente com r , existe uma única reta incidente com α que
é incidente com P e perpendicular a r .
7 E assim, obtemos o importante resultado: dada uma reta r e dado um
ponto P não incidente com r , existe pelo menos uma reta paralela a r a
incidir com P. Justificação?

Uma consequência importante: os modelos da geometria de congruência


têm de ter retas paralelas!
E muito, muito mais haveria para dizer e provar...
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A Axiomática de Hilbert

Grupo IV - Axiomas de continuidade


Este grupo pode ser constituído por dois axiomas ou por um único.
Optaremos pela segunda possibilidade. O axioma em causa é, de certa forma,
o recíproco da propriedade de separação de uma reta por um ponto:
Axioma de continuidade de Dedekind: Se o conjunto dos pontos
incidentes com uma reta r é a união disjunta de dois conjuntos não vazios Σ1
e Σ2 tal que nenhum ponto de um conjunto está entre dois pontos do outro,
então existe um único ponto O incidente com r tal que

P ∗ O ∗ Q se, e só se, P 6= O, Q 6= O, e P ou Q pertence a Σ1 e o outro a Σ2

A geometria descrita através dos grupos I, II, III e IV chama-se geometria


neutra (ou absoluta), onde não é contemplado qualquer axioma de
paralelismo.

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A Axiomática de Hilbert

Começámos com a geometria de incidência, passámos pela geometria de


ordem e posteriormente pela geometria de congruência. E chegámos aqui, à
geometria neutra.
Com esta construção progressiva, conseguimos perceber onde cada teorema
pertence, a dependência que tem em relação aos termos primitivos e axiomas.
Trabalhando num modelo de uma certa geometria, sabemos, desde logo, que
os teoremas dessa geometria são automaticamente satisfeitos nesse modelo,
não necessitando de verificar “à mão” os resultados nesse modelo particular!

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A Axiomática de Hilbert

Na geometria neutra, com o Axioma de continuidade de Dedekind a


desempenhar um papel crucial, temos que:

1 Dada uma reta r , r não tem “buracos”, há uma certa “continuidade” em


r , no seguinte sentido: dado um ponto O incidente com r , para cada
x ∈ R+ , existe um único par de pontos P−x e Px incidentes com r de tal
forma que P−x ∗ O ∗ Px , P−x O ≡ OPx e ambos os segmentos têm
comprimento x (com respeito a uma certa unidade de comprimento
preestabelecida dada através de um segmento);

2 Os problemas relacionados com interseções que surgiam nos Elementos


de Euclides ficam resolvidos.

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A Axiomática de Hilbert

Consideremos agora os postulados:


Postulado elíptico de paralelismo: Dada uma reta r e dado um ponto P
não incidente com r , não existem retas incidentes com P que sejam paralelas
a r.
Postulado euclidiano de paralelismo: Dada uma reta r e dado um ponto P
não incidente com r , existe uma e uma só reta incidente com P e paralela a r .
Postulado hiperbólico de paralelismo: Dada uma reta r e dado um ponto
P não incidente com r , existem pelo menos duas retas incidentes com P e
paralelas a r .
Temos que:
1 Na geometria neutra, para quaisquer reta r e ponto P não incidente com

r , existe pelo menos uma reta paralela a r a incidir com P (é um


resultado da geometria de congruência);
2 Se acrescentarmos, então, à geometria neutra o postulado elíptico de

paralelismo, obtemos um sistema axiomático inconsistente! Nada de


bom, portanto!
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A Axiomática de Hilbert

Será que algum dos outros postulados é um teorema da geometria neutra?


Não! O disco de Beltrami-Klein e o plano afim R2 , interpretando os termos
primitivos que faltam de forma conveniente, são modelos da geometria neutra
plana, mas um verifica o postulado hiperbólico e o outro verifica o postulado
euclidiano. Raciocínio análogo para o caso espacial.

O que vamos ter é o seguinte:

Na geometria neutra, se existir uma reta e existir um ponto que


verifiquem a propriedade euclidiana (resp., hiperbólica), então o
postulado euclidiano (resp., hiperbólico) é verificado;

Acrescentando à geometria neutra o postulado euclidiano de paralelismo,


obtemos (como vamos ver) a geometria euclidiana;

Acrescentando à geometria neutra o postulado hiperbólico de


paralelismo, obtemos a geometria hiperbólica.
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A Axiomática de Hilbert

Grupo V - Axioma de paralelismo


E, por fim, consideremos o último axioma da Axiomática de Hilbert, o único
axioma do grupo V:

Axioma de Paralelismo de Hilbert: Em cada plano,1 dada uma reta r e


dado um ponto P não incidente com a reta, existe no máximo uma reta
paralela a r que incide com P.
A geometria euclidiana surge definida através dos grupos I, II, III, IV e V.
É de notar que o Axioma de paralelismo de Hilbert é mais fraco que o
postulado euclidiano de paralelismo, mas, na geometria neutra, tornam-se
equivalentes, sendo, portanto, preferível acrescentar somente o conteúdo do
primeiro.
A axiomática de Hilbert descreve a chamada geometria euclidiana espacial.
Com as alterações já referidas, ainda podemos definir a geometria euclidiana
plana.
1
Podemos omitir a referência “Em cada plano”.
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A Axiomática de Hilbert

Modelos da geometria euclidiana plana e da geometria euclidiana


espacial

Considere o plano afim real R2 e o espaço afim real R3 , com as interpretações


usuais dadas aos termos primitivos ponto, reta, plano (no caso R3 ) e
incidência. Estes modelos da geometria de incidência, com interpretações
convenientes dos termos primitivos ainda não contemplados, vão ser, de facto,
modelos da geometria euclidiana.

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A Axiomática de Hilbert

Com n ∈ {2, 3}, comecemos por considerar no espaço vetorial Rn :


1 o produto interno usual ·
n
X
(u1 , . . . , un ) · (v1 , . . . , vn ) = ui vi ,
i=1

para quaisquer vetores (u1 , . . . , un ), (v1 , . . . , vn ) ∈ Rn ;


2 a norma (usual) k k associada ao produto interno ·

kuk = u · u,

para qualquer vetor u ∈ Rn ;


3 o ângulo (usual) entre vetores não nulos u e v
 u·v 
](u, v ) = arccos .
kukkv k

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A Axiomática de Hilbert

Em Rn , plano afim ou espaço afim, considere ainda a função distância (usual)


d proveniente da norma k k
−→
d(A, B) = kABk = kB − Ak,
−→
para quaisquer pontos A e B. (recordar que AB = B − A)

No modelo R2 (resp., R3 ) da geometria de incidência plana (resp., espacial),


acrescentemos as seguintes interpretações dos termos não definidos “estar
entre” e “congruência” entre segmentos e entre ângulos:
A ∗ B ∗ C se d(A, B) + d(B, C ) = d(A, C );
AB ≡ A0 B 0 se d(A, B) = d(A0 , B 0 );
−→ −→ −−→ −−→
∠AOB ≡ ∠A0 O 0 B 0 se ](OA, OB) = ](O 0 A0 , O 0 B 0 ).
É possível provar que R2 , com as interpretações referidas, é um modelo da
geometria euclidiana plana, chamado plano afim euclidiano, e R3 , com as
interpretações referidas, é um modelo da geometria euclidiana espacial,
chamado espaço afim euclidiano.
Susana Duarte Santos Geometria I / Geometria
A Axiomática de Hilbert

E mais:
1 Na geometria euclidiana plana (ou espacial), é possível introduzir
sistemas de coordenadas cartesianas que permitem identificar os pontos
com os pares (ou ternos) ordenados de números reais, e desenvolver a
geometria euclidiana analiticamente, tal como foi descoberto por
Descartes e Fermat no século XVII.
2 A geometria euclidiana plana (resp., espacial) é categórica, qualquer
modelo é isomorfo a R2 (resp., R3 ), com as interpretações já referidas!
3 Vamos optar por continuar o estudo da geometria euclidiana plana (resp.,
espacial) através do estudo da geometria no modelo R2 (resp., R3 ),
estando disponíveis, em particular, as ferramentas que aprenderam em
Álgebra Linear.

Segue-se uma abordagem analítica da geometria euclidiana!

Susana Duarte Santos Geometria I / Geometria

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