Para mim, é nosso maior intelectual vivo. Ninguém tem obra tão vasta, original, variada, erudita, crítica, brilhante e divertida como a dele, atualmente. Ninguém escreve e desenha com a mesma qualidade dele; ninguém cria textos e traduz com a excelência dele. Como é humorista, muitos, erradamente, não o levam a sério nem lhe prestam a devida atenção. E, como tem publicado grande parte de seus escritos e desenhos “aos pedaços”, isto é, em revistas, muitos perderam a noção da importância do conjunto da sua produção.
Millôr Fernandes é uma espécie de consciência crítica da nação. Ao longo de décadas, seus escritos, charges, livros, caricaturas, desenhos têm a marca inconfundível do seu olhar informado, experiente, irônico e muitas vezes cínico, que nos ensina: “Não é como você pensa, não: é assim que se passa isto; aquilo vai dar naquele beco sem saída; este líder é um bestalhão; aquele se esqueceu de que já morreu.” Millôr sempre foi uma voz independente, jamais se deixou atrelar a partidos, grupos, líderes. Livre pensar é só pensar: um de seus motes. Quando, numa atitude bem brasileira, nós nos mostramos doidos para sermos enganados — tipo me engana que eu gosto —, lá vem uma charge, uma frase, uma aquarela do Millôr para nos alertar, cruamente: “Você não pode se enganar, meu bem: por baixo deste manto, existe a podridão.” Ele nos põe todos, e ao país, a nu. Millôr Fernandes nos faz rir de nós mesmos, seu humor corrosivo destruindo qualquer farsa. E, de lambuja, ainda nos dá uma compreensão mais completa, mais funda, da existência.
Além da produção jornalística, Millôr escreveu diversas peças de teatro, poemas e livros, e fez também primorosas traduções, Shakespeare inclusive. Para conhecer um pouco da sua obra, clique no título deste post, que o transportará ao site dele (é verdade que, se você não for assinante do Uol, só vai ver um poquinho). Somente a título de magro aperitivo, eis algumas de suas pérolas, colhidas ao acaso em A Bíblia do Caos (L&PM, 2002):
“Deus fez o sol. O Demônio inventou o dinheiro, que brilha muito mais.”
“O problema de ficar na fossa é que lá só tem chato”.
“Só a imaginação destrói para a eternidade”.
“Até hoje, no Brasil, só houve uma reforma agrária ampla, verdadeira e eficiente — a das capitanias hereditárias. Para sempre hereditária.”
“Quem não sabe, acredita.”
“Todo cego moral se julga um guia de povos.”
“Meu ideal é que até a hiena pare para pensar um pouco antes de rir de mim.”
A biografia de Millôr Fernandes desafia teorias psicanalíticas e sociológicas. Nascido em 1923 no subúrbio do Méier, com um ano ficou órfão de pai, e com dez, de mãe. Ele e os três irmãos (entre eles, o jornalista Hélio Fernandes), foram separados e encaminhados para casas de parentes, sofrendo dificuldades emocionais e financeiras. Aos 17 anos, descobriu que seu nome não é Milton, como pensava, mas Millôr, devido a um erro do funcionário do cartório. E Millôr ficou para sempre, iniciando o que seria uma de suas marcas registradas: reverter a má sorte a seu favor.
Aos 14 anos, ingressou numa redação de jornal, onde passaria grande parte da vida, fazendo de tudo. Entrou para a revista O Cruzeiro, que logo se tornou a mais lida no Brasil. Aí, Millôr — com o pseudônimo “Vão Gogo” — criou O Pif-Paf, onde desenhava e escrevia já com o traço e o humor incomparáveis. Foi um dos fundadores de O Pasquim, o jornal de humor que reinventou o jornalismo brasileiro e, sob todo tipo de censura, nos ajudou a respirar e suportar os anos da ditadura. Millôr raramente dá entrevistas. E não é modesto: sabe do seu valor. Abaixo, um trecho da sua Autobiografia de mim mesmo à procura de mim próprio:
A biografia de Millôr Fernandes desafia teorias psicanalíticas e sociológicas. Nascido em 1923 no subúrbio do Méier, com um ano ficou órfão de pai, e com dez, de mãe. Ele e os três irmãos (entre eles, o jornalista Hélio Fernandes), foram separados e encaminhados para casas de parentes, sofrendo dificuldades emocionais e financeiras. Aos 17 anos, descobriu que seu nome não é Milton, como pensava, mas Millôr, devido a um erro do funcionário do cartório. E Millôr ficou para sempre, iniciando o que seria uma de suas marcas registradas: reverter a má sorte a seu favor.
Aos 14 anos, ingressou numa redação de jornal, onde passaria grande parte da vida, fazendo de tudo. Entrou para a revista O Cruzeiro, que logo se tornou a mais lida no Brasil. Aí, Millôr — com o pseudônimo “Vão Gogo” — criou O Pif-Paf, onde desenhava e escrevia já com o traço e o humor incomparáveis. Foi um dos fundadores de O Pasquim, o jornal de humor que reinventou o jornalismo brasileiro e, sob todo tipo de censura, nos ajudou a respirar e suportar os anos da ditadura. Millôr raramente dá entrevistas. E não é modesto: sabe do seu valor. Abaixo, um trecho da sua Autobiografia de mim mesmo à procura de mim próprio:
"E lá vou eu de novo, sem freio nem pára-quedas. Saiam da frente, ou debaixo que, se não estou radioativo, muito menos estou radiopassivo. Quando me sentei para escrever vinha tão cheio de idéias que só me saíam gêmeas, as palavras — reco-reco, tatibitate, ronronar, coré-coré, tom-tom, rema-rema, tintim-por-tintim. Fui obrigado a tomar uma pílula anticoncepcional. Agora estou bem, já não dói nada. Quem é que sou eu? Ah, que posso dizer? Como me espanta! Já não fazem Millôres como antigamente! Nasci pequeno e cresci aos poucos. Primeiro me fizeram os meios e, depois, as pontas. Só muito tarde cheguei aos extremos. Cabeça, tronco e membros, eis tudo. E não me revolto. Fiz três revoluções, todas perdidas. A primeira contra Deus, e ele me venceu com um sórdido milagre. A segunda com o destino, e ele me bateu, deixando-me só com seu pior enredo. A terceira contra mim mesmo, e a mim me consumi, e vim parar aqui.”
* Charges de Millôr deste site