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quarta-feira, 20 de março de 2019

REFRIGERANTES ZERO!



Será que você sabe o que é hemoglobina glicada (ou glicosilada)? Existe a possibilidade de seu médico já ter solicitado este exame, mas pode ter se esquecido de te explicar o que é.
O diabetes é uma doença bandida! Ela pode entrar em nossa vida de uma forma insidiosa, escondida, silenciosamente e, de repente somos surpreendidos. Aqui no Vale do Capão (na zona rural de Palmeiras-BA), onde resido, havia um senhor que jamais ia no posto de saúde. Ele tinha uma saúde de ferro, como dizia. Um dia passou mal e quando o examinei encontrei a glicemia (índice de glucose – um açúcar – no sangue) elevadíssimo. Estava a ponto de entrar em coma. O quadro era tão sério que fui obrigado a manda-lo ao hospital. Foi assim que ele conheceu o diabetes.

Mas muita gente vai no posto para verificar a glicemia e fica satisfeita porque o exame dá entre 95 e 105 mg/dL. Considera-se normal até 99. Até 129 é pré diabético, ou seja, ainda não está com a doença. No entanto, quando qualquer pessoa sabe que irá fazer o exame, inconscientemente tende a reduzir o consumo de açúcar no período anterior e assim “enganar” o médico e, mais ainda, a si mesmo. Esse engano não é intencional, mas pode ser problemático.
É por isso que costumamos solicitar a hemoglobina glicada. Ocorre que o excedente de açúcar no sangue se combina com a hemoglobina, uma molécula presente em certas células do sangue, as hemácias ou glóbulos vermelhos – ou seja, glicosila a hemoglobina. A hemoglobina tem o papel essencial de levar oxigênio para todas as células do corpo. Mas quando ocorre isso, a molécula perde a função. Aí você fica sem oxigênio em suas células. Por sorte isso não acontece com toda a hemoglobina, se isso acontecesse ia ser horrível. Ocorre que além disso este exame não depende do que você comeu nos últimos dias e sim pode lhe dar o valor aproximado médio da glicemia nos últimos 3 meses – não dá pra enganar, hehehe!

Considera-se que quem apresenta um índice de hemoglobina glicada acima de 7% é diabético e carece de cuidados imediatos. Entre 5 e 7% há que cuidar-se.
Alguém pode pensar que trata-se de um percentual baixo. Porém fique ligado, pois não é só 7% da hemoglobina que está glicosilada, mas também o mesmo percentual das proteínas presentes no cérebro, nos nervos periféricos, nos rins e assim estas estruturas começam a falir. Pode ver entre aqueles que padecem de diabetes como se queixam de dores nas pernas (por causa da glicosilação das proteínas dos nervos), e aumenta a possibilidade de ter problemas renais. Isso sem falar que pessoas diabéticas têm 50% mais possibilidade de desenvolver doença de Alzheimer. Percebem o perigo?
E sabe o que é pior? A maior parte das pessoas com diabetes apresentam o tipo II, que está intimamente relacionado à alimentação. Isso é algo terrível, pois nós não dos damos conta de que o diabetes, via de regra, não é uma condenação divina, mas isso sim, é resultado de nossos hábitos.

A Organização Mundial de Saúde divulgou há 2 anos que a maior causa de diabetes II no mundo são os refrigerantes. Isso me assusta. Hoje os pais compram refrigerantes a rodo. Vejo os carrinhos de supermercado até aqui mesmo no Vale do Capão, em que pesem as campanhas que fazemos no posto. Em outros povoados que visito a situação é muito mais grave. Mas o que fazer?
Não é muito... basta parar de tomar refrigerantes e preferir comer frutas. Ocorre que a fibra presente nas frutas (e nos cereais integrais – como o arroz vermelho que encontramos nas feiras aqui da Chapada – e nas hortaliças, feijões) impede que o açúcar nelas presente “invada” bruscamente o sangue, apresentando índice glicêmico elevado.

Hoje temos achocolatados (que tem mais açúcar do que cacau), refrigerantes, bolachas, biscoites, bolos industrializados repletos de açúcar a preços baixos. Mas depois fica caro a perda da saúde, e os custos sociais e econômicos da doença.

Então, meu amigo ou amiga, ponha atenção na sua glicemia, mas o melhor mesmo é basear sua alimentação em frutas, hortaliças (legumes e verduras), cereais integras, leguminosas (feijões), deixando de lado, ou comendo o mínimo possível, arroz branco, pão branco, quindins, doces, balas, achocolatados etc. Não compre refrigerante para seus filhos (e também pra você, claro!).
Sonho com uma campanha a se chamar: REFRIGERANTES ZERO! Mas quem vai pagar? A indústria? Não, pois cabe a nós, leitor e leitora, tomar a saúde em nossas mãos.

Recebam o meu abraço,
Aureo Augusto
Médico da USF de Caeté-Açu
Cidadão benemérito de Palmeiras-BA
Comendador da Ordem do Mérito Médico Nacional


sábado, 16 de julho de 2016

ESTÁGIOS NA UNIDADE DE SAÚDE DO VALE DO CAPÃO

Nesse momento contamos com três estagiários da Faculdade Medicina da Universidade Federal da Bahia e mais uma aluna de medicina da Faculté de Médicine de Purpan da Université Paul-Sabatier (Toulouse-França).
Desde há 2 anos e meio, temos recebido regularmente estudantes da UFBA, mas logo depois do primeiro grupo de estagiários (1 a 4 de cada vez) começaram a surgir solicitações de outros estados do Brasil, principalmente de Pernambuco (Recife e Petrolina), mas também de Sergipe, Rio Grande do Sul e Paraíba. Alguns desses estagiários são estudantes, outros são médicos fazendo mestrado em Saúde da Família.

Os estágios são um mergulho na vida da unidade e mesmo uma inserção vivencial no dia-a-dia de uma comunidade bem interessante como é o povoado do Vale do Capão, local em que está situada a sede da USF de Caeté-Açu. Trata-se de uma comunidade rural, no passado dedicada ao garimpo de diamante e à produção de café e banana para comercialização. Também havia pêssego, marmelo, nêspera (que o povo chama de ameixa), jaca, manga, aipim, abacate etc. vendidos em Palmeiras (sede do município) ou em Lençóis (cidade próxima). Porém recentemente suas belezas naturais atraíram a atenção de pessoas de todo o mundo o que implicou em um ressurgimento econômico, já que, com a queda da produção diamantífera e a erradicação dos cafezais (promovida pelo governo federal no século passado), a economia decaiu substancialmente. Hoje os nativos que emigraram estão voltando e muitas pessoas de diversas nacionalidades imigram para viver aqui, resultando em uma sociedade peculiar, rica e diversificada, que é um desafio e uma alegria para a equipe da USF.

Os estagiários experimentam as seguintes atividades:
·         Reuniões de equipe que acontecem todas as sextas a partir das 8 horas, quando planejamos as atividades, são dadas as notícias e comunicações, as agentes comunitárias de saúde relatam as necessidades específicas de suas áreas para que haja o planejamento de ações focadas, definição das atividades a serem realizadas e planejamento das mesmas com distribuição de tarefas (das quais os estagiários participam), entre outras.
·         Participação em todas as atividades do posto, tais como, pré-consultas, recepção, atividades burocráticas, em sistema de rodízio.
·         Participação em consultas médicas ambulatoriais, bem como nas visitas domiciliares efetuadas pelo médico.
·         Participação em consultas de enfermagem, bem como nas visitas domiciliares realizadas pela enfermeira.
·         Acompanhamento das agentes comunitárias de saúde nas visitas domiciliares.
·         Atividades educativas na modalidade Sala de Espera ou nas escolas pública e comunitárias locais.
·         Participação nos grupos realizados no posto (Grupo de Ginástica para Idosas com Roda de Conversa, Grupo de Pessoas em sofrimento psíquico, grupo Se Liga no Peso...)
·         Participação em atividades pontuais, quando as mesmas acontecem no período do estágio, tais como Dia do Homem (com palestras, teatro, campeonato de sinuca e dominó etc.), Dia do Mulher, entre outras.
·         Podem ser convidados a falar no programa da USF na rádio comunitária local.
·         Curso de Introdução às Práticas Integrativas e Complementares, com ênfase no neohipocratismo (naturopatia), proferido pelo médico do posto.

Caso você tenha interesse em participar, consulte seus professores e contate com Natália Souza, enfermeira e coordenadora do posto, [email protected] ou no telefone (75)33441030 (e fale com Wanessa Kelen, técnica administrativa. Até o presente temos recebido estagiários de técnicos em enfermagem e medicina, mas nos agradaria partilhar também com outras áreas.


Estamos lhe aguardando felizes para partilhar experiências e conhecimento.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

A FAMÍLIA "PAM" a DEMÊNCIA e a VIDA NO CAMPO

O British Medical Journal comenta que as pessoas de mais idade que usam os Benzodiazepínicos (Diazepam, Clonazepam e outros “pam”) acima de 3 meses têm 51% mais chance de desenvolver demência do que aquelas que não usam. Isso me deixou bem preocupado.

Ocorre que estas substâncias estão se tornando parte normal da vida das pessoas. Mesmo na zona rural. Antigamente o interior (como nos referimos ao campo) estava associado a uma vida simples e tranquila de um lugar em que as pessoas viviam uma vida mais harmônica e dormiam bem. Hoje a realidade é bem diferente.

Há alguns anos estudos vêm mostrando que o consumo de medicações para dormir e para tranquilizar vem aumentando nas áreas distantes dos grandes centros. Constato isso na minha vida aqui no Vale do Capão, aonde atendo aos vizinhos há 31 anos. Com alguma frequência recebo pedidos para renovar receitas de Clonazepam, pois as pessoas facilmente se viciam nesta medicação e não conseguem mais se livrar. Tento demovê-las do uso sem sucesso. Até o presente só consegui com aqueles que começaram a usar há pouco tempo.

O ritmo de vida que caracterizava as metrópoles em grande medida vem sendo imitado no mundo camponês. As pessoas hoje têm maior quantidade e variedade de compromissos. A comunicação via televisão ou internet estão aproximando as pessoas de forma acentuada de modo que a sistemática de vida das daqueles que vivem em diferentes ambientes acabam se confundindo em um modelo se não único, pelo menos semelhante. O ritmo circadiano que marcava o dia-a-dia camponês está sendo agredido cada vez mais uma vez que subordinamos nossas vidas à batuta dos horários televisivos e das atividades do mundo virtual. Não importando onde, ontem deixou de ser um lugar a ser repetido já que hoje indica um amanhã afastado da biologia que será incorporada sabe-se lá como à virtualidade tecnológica.

Então se intranquilizam as almas e insoniam-se as pálpebras. À mente negamos o repouso enquanto corpos tensos movem-se nos leitos tão desordenados quanto as emoções, sensações, desejos, pensamentos e sentimentos tantas vezes açoitados pelas tempestuosas vidas.
Clonazepam e primos são muletas para estas paralisantes mobilidades. Longe de mim demonizar as medicações. Reconheço situações onde têm elas o condão de ajudar, porém noto que na intranquilizante vida a que nos submetemos os próprios profissionais de saúde desordenam-se nos atendimentos tornados rápidos por obrigatórias correrias implicadas em um sistema que obriga à pressa para consecução das metas bancárias ou estatísticas. Então a queixa de insônia deixa de ser uma questão na vida de um ser e dentro de um contexto. A pressa impõe uma solução sem profundidade e uma medicação rápida e eficaz, ainda que a efetividade no tempo seja questionável. A solução se mede em milímetros da corrida dos números no écran do relógio digital e não na medida da vida vivida vividamente.

Superficializamos a vida por pura pressa e descolamos do profundo em nós. Vai daí que a família PAM torna-se uma essencialidade, assim como suas corolárias sequelas.


Recebam um beijo sonolento de Aureo Augusto.

terça-feira, 4 de março de 2014

SUS

Tenho um jovem e grande amigo chamado Kian, que com seus familiares passou o carnaval aqui em minha casa. O rapaz se interessa pelo mundo com aquele olhar aprendiz que caracterizava os filósofos gregos dos séculos VI e V a.C. Aquela coisa de querer saber para além da mera formalidade das autoridades. Gosto disso. Quando nos despedimos ele me pediu que escrevesse algo sobre o SUS, pois me ouviu defende-lo. Por isso, estas linhas:
Há mais de 20 anos atrás uma senhora aqui no Vale do Capão, onde resido, apresentou-se à consulta. Logo que a examinei suspeitei de mola que é uma degeneração da placenta. Fiquei bastante preocupado, pois sabia a conduta médica, mas não sabia como conseguir realiza-la, pois a senhora não dispunha de recursos para exames e procedimentos necessários. Vai daí que telefonei para meus pais e pedi-lhes que a recebessem como hóspede em sua casa, o que acederam de imediato. Então contatei o Dr. Sérgio Uderman, que foi meu colega na escola, que topou fazer a ultrassonografia sem ônus. Viajei para Salvador com ela, levei-a a fazer o exame que confirmou minha suspeita. Depois procurei médicos amigos meus que tiveram a bondade de interna-la no Hospital Roberto Santos e os procedimentos foram realizados com êxito. A senhora ficou convalescendo em casa de meus pais, voltei ao Vale para minhas atividades e retornei para busca-la. Até hoje goza de boa saúde.

Mas esta boa saúde dependeu de várias boas vontades. Nem sempre é fácil (e nem sempre por má vontade) conseguir exames, cirurgia ou o que mais, quando se tem necessidade premente. Porém, hoje, graças ao SUS, se tenho suspeita de mola, basta preencher uma solicitação de exame e a pessoa se dirige à secretaria de saúde onde será marcada a data, e de posse do resultado faço nova solicitação para a cirurgia. A mulher será levada de ambulância e será devolvida a sua residência do mesmo jeito.
Pode parecer pieguice, mas quando estou atendendo a uma gestante no posto de saúde onde trabalho com uma equipe maravilhosa de pessoas que gostam e querem trabalhar, sempre fico tocado quando solicito uma bateria de exames no princípio da gestação e depois no 3º trimestre. Aquela mulher grávida terá garantia de que seus exames se realizarão. Isso é maravilhoso!

Outra mulher procurou o posto porque foi internada devido a problemas cardíacos e depois recebeu uma correspondência do SUS perguntando como foi o atendimento. Quando lhe expliquei do que se tratava ela ficou visivelmente feliz e me pediu que a ajudasse a responder. Ela foi internada por um problema que em outros tempos não seria sequer diagnosticado, pois jamais teria recursos para pagar. Morreria não fosse o SUS.

Por isso me aborreço quando vejo críticas destrutivas ao Sistema Único de Saúde. Suspeito que há um interesse em acabar com o sistema. Talvez eu esteja equivocado, por isso vou fingir que as críticas são sempre de pessoas bem intencionadas. Estas cometem um erro comum. Querem que as coisas aconteçam do dia para a noite. O SUS ainda está em processo. Acontecem problemas e mais problemas, os recursos a ele destinados são poucos, investe-se excessivamente em ambulatórios e pouco em modificação de hábitos nocivos. Há uma leniência para com os fatores que geram ou agravam doenças, como aqueles decorrentes do consumo de alimentos excessivamente salgados, carregados de substâncias prejudiciais destinadas a edulcorar, conservar, embelezar... Mas está sendo oferecida uma saída para aqueles que não podem pagar médicos caros ou planos de saúde, digamos, maquiavélicos.

Acompanho o dia a dia de meus vizinhos e vejo a satisfação deles com o fato de que hoje dispõem de certos confortos associados à saúde tais como o direito a atendimento digno. Sei que em muitos lugares as filas são enormes, o acesso aos exames é demorado, o atendimento nem sempre é respeitoso... Mas o SUS não é apenas uma lei, mas uma ação. Todos nós que trabalhamos na saúde somos o SUS. Quando tratamos mal a uma pessoa que nos procura, esta poderá acusar o SUS, mas somos nós os responsáveis. Se o salário não é suficiente, ou se falta material, a culpa não é da pessoa que nos busca solicitando orientação. Ele pode até ser papel quando votou em pessoas não confiáveis, mas este papel é mais remoto do que o de algum burocrata inoperante, negligente ou desonesto, que impede que as coisas aconteçam como recomenda a lei. Ou quando o enfermeiro, médico, auxiliar, motorista enfim, o funcionário, descumpre o seu dever de servidor público e de ser humano. A pessoa doente não deve ser penalizada por nossas insatisfações, incompreensões, incompetências ou desonestidade. Cabe a nós enquanto funcionários e enquanto cidadãos vigilar, comentar, protestar, propor e mudar.
O SUS não é para ser desativado e sim para ser completado, para o bem de todos.

Recebam um susabraço de Aureo Augusto.


segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

MÉDICOS CUBANOS - primeiras impressões

De início fiquei preocupado com a importação de médicos do exterior patrocinada pelo governo federal. No entanto, lembrei-me da briga de foice que é ter um médico contratado por aqui. Palmeiras tem uma fama antiga de não tratar de forma adequada seus funcionários, e a área da saúde não foge à regra, pelo contrário, reforça-a com vigor. Portanto vários médicos têm sido tratados de forma inadequada por aqui no passado. Mas considerar que apenas o poder público municipal é responsável pela desassistência é deixar de ver o outro lado da moeda.

Muitos dos médicos que por aqui aportam impõem grande quantidade de condições, não respeitam os horários e desconhecem radicalmente o significado de trabalhar em equipe. O posto de saúde da família de Palmeiras (na sede do município) tem sofrido muito com isso. Vários médicos impuseram seus horários e às vezes faltavam avisando na última hora. Um deles só atendia um número excessivamente restrito de pessoas e, apesar de chegar tarde, saía muito mais cedo, deixando o serviço descoberto. Outro se recusou a atender pré-natal ou puericultura. Houve quem abandonasse o serviço de uma hora para outra porque recebem proposta melhor de outro município – e o fez sem aviso prévio. Nenhum aceitou participar de uma reunião com a equipe; participar de qualquer atividade educativa? Aí seria demais! E isso não ocorre apenas em Palmeiras. Várias cidades da Chapada têm estas queixas.
Por isso pensei comigo que, em que pesem os erros cometidos pela forma como a coisa foi feita, a vinda de médicos de outros países poderia contribuir para corrigir estas distorções. Os médicos cubanos me encheram de esperança. Não creio que vão resolver tudo, que não sou tão besta assim, porém têm farta experiência na promoção da saúde e nas diversas formas de prevenção dos agravos. Isso me agradou.

Conheci e já tive algumas reuniões com os quatro que aportaram em Palmeiras. Gostei do que encontrei. Estão bem atentos ao fato de que cada consulta é um processo educativo, têm forte noção de dever e isso inclui a questão dos horários de trabalho. Sei que vou aprender muito com eles, e espero – e para isso a prefeitura terá que fazer sua parte, principalmente provendo condições adequadas de trabalho – que a saúde por aqui possa realmente entrar por um novo caminho.


Abraços saudáveis a todos de Aureo Augusto

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

VIAJANDO PELO PLANETA PALMEIRAS

Estávamos, eu e Natália (enfermeira do posto – minha chefa) indo para Conceição dos Gatos, com um motorista contratado pela prefeitura quando notamos que saía fumaça do capô. O motorista saltou para ver. Falei: é a ventoinha. Natália me perguntou o que era isso. Disse-lhe que não sabia, mas que sempre que carro sai fumaça por aqui é essa tal de ventoinha. Rimos os dois com a minha sapiência ignorante. Aí o motorista voltou e confirmou: É a ventoinha.

Aliás, este carro já me veio buscar 4 vezes e em todas quebrou. O motorista labuta bastante no processo de manutenção do sujeito, mas parece que os resultados não condizem com o esforço. E quando está bom, dentro da cabine tem um fedor de descarga de automóvel que me faz sentir dentro do túnel Américo Simas em Salvador. Talvez seja para eu não ficar excessivamente viciado no ar puro daqui.
Às terças ausento-me do Vale do Capão para atender os povoados de Rio Grande, Conceição dos Gatos e Lavrinha. Regra geral, vamos eu, a enfermeira e a agente comunitária de saúde que acompanha estas localidades. É um trabalho bastante agradável com um povo bom e feliz por ter a oportunidade de atendimento. Sempre tem alegrias, risos, às vezes aborrecimentos, muito pó e raramente lama. O tipo da coisa que estimula o ser humano a viver.

Habitualmente me mandam carro e motorista da própria prefeitura. Porém às vezes todos estão ocupados (época de vacinação, por exemplo) e vem alguém contratado. Cada motorista tem seu jeito – de dirigir, de se relacionar etc. – mas todos são loucos por direção. Parece algo como um brinquedo para uma criança. Como eu mesmo não curto dirigir, fico admirado. Tem uns que além da direção são apaixonados também pela parte mecânica, outros me decepcionam quando o carro quebra porque não sabem nada. Tinha um que fedia tanto que Natália ria de mim, pois eu ficava com a cabeça pra fora da janela. Outro, o carro atolou (porque caiu na vala em minha casa) e não sabia o que fazer. Tirei a roupa, peguei a enxada, cavei abaixo da roda, pus um macaco, levantei o carro e fui jogando pedras embaixo até que deu pra tira-lo dali. O homem ficava se admirando de minha experiência no assunto. Mas também tantos anos de Capão! Fiquei admirado que ele, sendo motorista, fosse tão inexperiente na coisa. Há um sumamente simpático, João, que fala o tempo inteiro de tecnologia de antenas parabólicas. Zé Alfredo era muito legal, mas ele se mudou para Barreiras. Uma pena, eu gostava demais quando ele vinha, pois sendo ele pastor evangélico conversávamos horas sobre as mensagens bíblicas. E ele é daqueles que seguem o pregam – começa que não é rico – e ademais é muito tolerante com outras religiões, coisa nem sempre comum. Além de falar de Deus, Zé Alfredo gostava muito e gastava bastante do seu tempo pescando. E quando nos encontrávamos se alegrava em contar as aventuras. Deduzo que, em oposição à regra dos pescadores, não mentia, já que é pastor.

Algumas vezes é cansativo viajar pelos ermos destas estradas esburacadas e empoeiradas, mas o mais do tempo é gostoso. Palmeiras é um planeta bem especial, tem áreas altas como o Capão, semiárido, zonas de gado, outras de garimpo, enfim, um lugar rico e belo. Vejo, aprendo, saboreio.

Recebam um abraço palmeirense de Aureo Augusto.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

TERNURA DE CRIANÇA


As crianças são uma coisa deliciosa! Quero só contar uma coisa:
Ontem estava assistindo a uma maravilhosa apresentação de música em Lothlorien, aqui no Vale do Capão, o maestro Stéfano conduzia um grupo realmente impressionante. Fiquei extasiado com o que escutava.

Mas, apesar de ser domingo, as pessoas continuam adoecendo ou se acidentando. Em dado momento, meu filho me procurou para dizer que uma criança se havia acidentado e me esperavam no posto. Fui correndo e tive a tristeza de ver os pais e amigos consternados com uma criança de apenas 3 anos chorando por causa de um corte na testa de mais de 4 cm. Marilza, como sempre, presta, já havia limpado a ferida e cortava os cabelos do infante para que eu pudesse atuar tranquilamente. Anestesiei e comecei a sutura. Embora não sentisse a dor, a situação era suficiente assustadora para que o menino gritasse muito. O pai segurava a cabeça para facilitar o meu trabalho, com firmeza e carinho enquanto a mãe, muito doce, lhe continha o corpo. Não foi fácil conte-lo, mas o trabalho pôde ser feito a contento.
No meio do processo a mãe, tentando em vão tranquilizar a criança, pediu que ela respirasse e tentasse relaxar. No momento em que eu dava um nós no fio ela parou de chorar e disse pra mãe: “Eu não estou conseguindo relaxar”. Olhei para Marilza e ambos ficamos com os corações completamente tomados pela emoção. Naquela comoção com a dor da criança, foi um momento de ternura infinita.

Recebam um abraço terno de Aureo Augusto.

domingo, 28 de abril de 2013

VISÕES DE MUNDO E DE CURA


Muitas vezes enveredamos por caminhos lógicos e claros para nós no interesse de resolver problemas do mundo. Assim a medicina. Para a maior parte dos pesquisadores o caminho está traçado. Precisamos descobrir medicações cada vez mais capazes para, por exemplo, curar o diabetes, ou a hipertensão, ou AIDS. Os raciocínios estão centrados naturalmente nas causas destas e de outras doenças. Esta semana tive contato com um médico alemão que me descreveu algo bastante interessante que aponta para outra direção. Isso não significa que devamos abandonar o que já está sendo feito. Mas sugere ampliar o horizonte de busca.

Ele me mostrou vários pequenos vídeos num site da ARHF (Amma Response Healling Foundation) que faz um intenso trabalho na África com diversas enfermidades, incluindo AIDS. Os resultados são muito impressionantes, conforme podemos ver nos vídeos. O médico alemão, Michael Hartmann (49 anos), me disse que após ficar impressionado com o vídeo quis verificar sua veracidade. Afinal ele, conquanto trabalhe também com homeopatia, vem de uma formação acadêmica igual à de todos os médicos, com sua natural (e necessária) dose de descrença. Registro que Michael além de médico fez psiquiatria tendo se especializado em psiquiatria infantil. Pois bem, ele foi à África averiguar. E me disse que viu os mesmos personagens dos vídeos e conheceu outros que se tratam contra AIDS, diabetes etc. com resultados surpreendentes com medicações chamadas PC1, da inicial do seu autor, um homeopata que foi para aquele continente para ajudar as pessoas e que desenvolveu uma medicação que não é bem homeopática, mas cujos resultados impressionam também.

Quero que nossos pesquisadores se abram para estas possibilidades. Não acredito na negação das pesquisas científicas. Penso que precisamos apenas considerar outras opções, outras hipóteses, outras maneiras de encarar o existir. Acho uma pena que tenhamos fechado os olhos para outras dimensões do existir que não passam pela observação direta mensurável.
Veja o site, assista aos vídeos e pense em como podemos ampliar nossa abrangência.

Recebam um abraço abrangente de Aureo Augusto.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

NOVOS (E ENGRAÇADOS) APRENDIZADOS

Estou em Salvador, passando pela maravilhosa experiência de aprender mais. Uma das coisas mais agradáveis da vida é saber que estamos diante de uma quantidade de coisas a aprender muito maior do que de coisas já aprendidas. Agora estou tomando um curso de ultrassonografia.

Ocorre que a equipe da Unidade de Saúde lá do Vale do Capão (Caeté-Açú) onde trabalho percebeu que necessitamos muito deste equipamento. Primeiro pensei em eu mesmo ter um e facilitar a vida do povo fazendo ultrassom (USG) no Vale para que o povo não precise se deslocar para Seabra, por uma estrada (pelo menos sua 1ª parte) terrível, enfrentando depois uma longa espera. Além de ter que pagar, com frequência, e valores mais caros dos que aqueles praticados em Salvador. Depois pensamos que talvez pudéssemos conseguir um aparelho para o posto e nisso estamos. Antevemos algumas possibilidades, e torcemos para que dê certo, se você, leitor souber de alguma coisa, conta pra nós. Lembre que o posto não dispõe de recursos.
Mas se chega o aparelho, alguém tem que saber o usa-lo e aqui estou eu, aprendendo feliz!

Ontem cheguei de viagem e no caminho me lembrei que havia deixado o livro de anatomia em casa. Por sorte o meu laptop recusou-se a funcionar e por isso, na hora que cheguei não consegui ler o e-mail de Marcelo, amigo em cuja casa estou hospedado. Como era pouco mais de meio-dia, fui ao restaurante Brisa comer. Lá chegando havia uma liquidação de livros excelentes, a preços ridículos. Assim comprei 3 livros de anatomia excelentes e um deles já vai para a nascente biblioteca científica do posto (aliás, doe livros bons – nada de coisa ultrapassada que você quer se livrar – para nossa biblioteca). Então revi que às vezes uma situação de impedimento – como o problema no laptop – pode ser uma oportunidade legal de compensar uma falha – o esquecimento do livro de anatomia.

Agora, no intervalo para o almoço do curso – partilhei a mesa com um colega extremamente simpático que, com os demais, contavam suas experiências nos postos de emergência de Salvador. Devo dizer que trabalhar no interior é maravilhoso, diante do que escutei. Este colega contou uma experiência que mostrou não apenas um exemplo dos riscos por que passam os médicos, como sua competência no jogo de cintura que lhe salvou a vida.
Uma senhora chegou morta ao pronto socorro. Os familiares estavam revoltados e, sem perceber que a mulher já falecera, ameaçavam os funcionários com revólveres em punho, afinal tratava-se de uma família, por assim dizer, “da pesada”. Quando o corpo deu entrada no serviço, o médico percebeu o risco que todos os funcionários corriam e a enfermeira de pronto lhe informou que a mulher estava morta. Diante da reação de revolta armada dos familiares, num momento de súbita inspiração o médico olhou para a enfermeira e disse que quem definia se a pessoa estava viva ou morta era ele. O que parecia ser uma conduta de arrogância, uma espécie de “cala a boca, ponha-se no seu lugar”, revelou-se a salvação de todos. Então tocou no pescoço e disse: Está viva e ato contínuo começou os procedimentos de ressuscitação, inclusive entubando o cadáver. A família assistia à distância os esforços inauditos da equipe na tentativa de salvar à suposta doente, já morta. Depois de algum tempo de esforços, o médico disse em voz baixa a uma colega que continuasse fingindo e que depois fosse anunciar a perda. Então foi explicar à família os procedimentos que estavam sendo realizados. A família sensibilizou-se com o esforço e quando a médica, por fim, veio com a triste notícia, todos já estavam “amaciados” e aceitaram com mais tranquilidade a morte da matriarca.

O médico conseguiu transformar uma situação vexatória em vitoriosa para a equipe que agora (havia na mesa dois colegas que presenciaram o fato) ri de uns momentos nos quais, com certeza na hora da confusão foram extremamente tensos. Como bem disse o referido médico: “Temos que ter jogo de cintura e levar a vida com graça”. E está coberto de razão.

Recebam um abraço grato de Aureo Augusto.

sexta-feira, 29 de março de 2013

SIMPLES, RÁPIDO E ERRADO

Teve alguém muito inteligente que disse que há sempre uma forma simples e errada de resolver uma situação complexa. Nada mais certo. Por outro lado, há sempre uma forma de complexificar qualquer situação simples.

            Uma coisa que aprendi na Faculdade de Medicina foi que devemos partir do simples para o complexo, do mais provável e corriqueiro para o mais raro e incomum. O saudoso Dr. Zilton Andrade, em palestra para os estudantes no auditório do Hospital Professor Edgard Santos, nos contava que havia um paciente internado naquele mesmo hospital e os estudantes no afã de entender-lhe a patologia solicitaram cerca de trinta exames, alguns deles caros e, no entanto, o pobre homem apresentava apenas um quadro sério de verminose. Um mero parasitológico de fezes lhe ajudaria mais do que tanto custo e trabalho. De quando em vez os Conselhos de Medicina, alertam-nos para os cuidados com os exames. Lembram-nos que nada substitui uma boa consulta, onde as perguntas são abundantes e as respostas esclarecedoras. Onde o exame do corpo do doente tem seu lugar.
Facilmente esquecemos que há um número razoável de pessoas doentes da cura, ou, o que é pior, doentes da tentativa de descobrir qual é a doença. Estas condições são chamadas de doenças iatrogênicas. Exames de fezes ou de urina não geram nenhuma agressão física na pessoa exceto naqueles que, por serem muito ansiosos, ficam angustiados quanto aos resultados. No entanto existem exames que submetem o organismo a situações de perigo e, portanto, não devem ser realizados à toa. É importante ressaltar que na sua formação o médico é informado quanto aos riscos de determinados exames, mas infelizmente hoje em dia há uma poderosa pressão dos próprios pacientes no sentido de que lhes sejam indicados este ou aquele procedimento diagnóstico. E nem sempre o médico resiste. Mas deveria, pelo menos, esclarecer. Outras vezes a consulta é tão rápida que só resta ao médico pedir uma batelada de exames para poder ver o que não se viu (por falta de tempo), situação bem triste.

Aqui, no Vale do Capão, noto uma mudança radical nas pessoas. Antigamente morriam por desinteresse com a própria saúde e por excesso de aceitação da situação dolorosa vivenciada. A pessoa doente suportava estoicamente o desconforto até a morte. Ainda temos alguns assim, mas agora há uma agonia por descobrir o diagnóstico e a cura (quando possível) de preferência fácil e rápida. Uma mulher foi a Seabra e fez uma consulta. No dia seguinte me procurou no posto porque ainda se sentia com o problema. Ela só havia tomado uma dose da medicação receitada! Outra, desta feita em uma consulta particular, estava confortável porque sua mãe havia morrido, mas o médico tinha lhe dito o diagnóstico. Ela me disse que fora muito bom isso. Claro que é bom saber do que a mãe morreu, mas tem algo errado quando a informação substitui o sentimento. Não que ela não tenha sofrido com a morte da mãe, mas havia um prazer e uma segurança no fato (abstrato) do nome da doença.
E preocupa-me também esta pressa em resolver a dor. É uma porta aberta para cair nas amarras da medicalização da vida. Fica mais fácil quando cada dor, sentimento triste, agrura, pode ser “curada” por um remédio. Somos química, não há dúvida, mas também somos consciência, pensamentos, ciência, sensações e sentimentos. A química é fácil, a vida pode não sê-lo, mas a vida é inapelável e volta; a dor pode ser como estes rios da Chapada Diamantina que “engrunam”, ou seja, desaparecem entre as rochas, mas surgem mais adiante.
Não nos enganemos: O gozo de viver é fruto da dor de nascer.

Recebam um abraço gozoso de Aureo Augusto.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

FRIA DE SAL e MEDICALIZAÇÃO

O texto que se segue, escrevi-o há muito (em 2008), em um novembro quente e incendiário, relendo-o gostei da ideia de partilha-lo. Aí vai:

Hoje o sol não se mostrou como nos dias passados de calor como nunca! Insinuou-se na madrugada uma mentira de frio, mas logo a manhã não economizou forno. Crestada a vegetação olha pra cima e se arrasta no chão. Mesmo a gente está cansada da borra quente que sopra à passagem dos carros na estrada, das motos enlouquecidas, dos cavalos e pedestres.
            Nunca vi calor como o que tem rolado no Vale estes dias!
            O povo assevera que isso é sinal de que o que falam dessas coisas de calotas polares que se vão e buraco na camada de ozônio que cresce (ou crescia) “né mintira não”. E o resultado, são os incêndios se espalhando, horríveis e belos, marcando a noite com sua linha luminosa. Uma coisa assim como um colar de gemas rubras ou amarelas cercando uma área negra estrelada. A beleza pode ser cruel. A beleza não tem moral, mas o coração sofre às vezes apesar da beleza. Alguém já deve ter dito isso.

            Mas o legal foi o que uma senhora me disse outro dia. Estava eu preocupado com a pressão arterial dela, muito alta. Ela disse que podia ser o calor, mas me disse também que quando morava em São Paulo (o povo nativo ia muito morar em São Paulo e agora está voltando todo mundo) sempre a pressão estava alta. Mesmo no frio! Mas me assegurou que sua alimentação era o contrário da serra ardente, era “fria de sal”. Acreditei nela, pois quem não confiaria naquele rosto amarrotado pelos anos. No entanto, procurei ver como estava sua alimentação e comecei a investigar os temperos. Acabei aprendendo que ela usava caldo de galinha ou de carne, cujo conteúdo em sal não é desprezível, acrescentava tempero pronto industrializado cujo teor de sal é impressionante e muitas vezes com glutamato monossódico que é 4 vezes mais hipertensor que o sal. Como se não bastasse ela botava um pouquinho de sal puro para “batizar”. Eu já estava horrorizado, mas aí ela ainda me informou que todos os dias saboreava uma gostosa carne de sol... Horrorizada ficou ela quando eu fui lhe mostrando um a um o teor de sal da sua frieza de sal. Brinquei que no calor que fazia, a comida dela estava mais pra água do mar do que pra rio da Chapada. Ela me olhava entre crédula e rebelde. Penso que ela sabe que tenho razão, mas não quer. E é direito dela não querer, que arque com as conseqüências então. Isso é sério e belo. Somos responsáveis pelas decisões que tomamos. O que levaria uma terna senhora a não seguir as recomendações, conquanto muito bem explicadas, justificadas? Apegos, descrença, outras crenças. Ela vem de São Paulo onde o médico do posto onde era atendida, nunca lhe falou assertivamente da necessidade de alterar a alimentação. Para ela as medicações tudo podem. Resolvem. Resolvida, para que sacrifício? Este é um dos erros desta medicalização tão freqüente em nossas vidas: Sub-repticiamente, quando não ostensivamente, informa-se que é possível não se responsabilizar.

A medicação cura o diabetes, ou a hipertensão, ou a bronquite... O tratamento afigura-se como um jogo entre o arsenal terapêutico e a entidade mórbida. Tais termos informam quanto às crenças que nos movem. Cuidar da saúde pode ser uma guerra contra um fantasma peçonhento. Seremos salvos pelo exército medicamentoso! Mas, e se não for uma guerra? E se a doença for um diálogo entre o que fazemos conosco e o que somos capazes de suportar?

            Cada qual tem o seu direito de atuar como bem lhe apraz ou crê. Porém vivemos em um mundo que nos traz respostas. Respostas virão. Portanto que nos responsabilizemos pelos nossos atos para não sermos apanhados na queixa de que fomos vítimas indefesas. Nem tudo depende de nós. Mas muito sim.

            Podemos especular em que a história da mulher "fria de sal" tem a ver com esta seca tremenda e com os incêndios. Não sei, mas durante a escrita vi que tinha a ver. O pintor não pinta a pessoa, mas a pessoa como é para o pintor. Matisse corrobora esta afirmação. Aliás, o célebre surrealista Salvador Dalí dizia que todos os quadros dele tinham um significado, embora nem sempre ele soubesse. Este texto tem alguma coisa que eu mesmo não sei o que é.
Em 13/11/08

terça-feira, 10 de julho de 2012

O MORIBUNDO, o MÉDICO, o PASTOR, e MONTAIGNE

Quase todos os dias, antes ou no final do expediente, tenho ido visitar um homem jovem (35 anos) que está morrendo aos poucos com um câncer devastador que lhe causa grandes incômodos. Já está desenganado. O médico em Salvador foi muito claro ao lhe revelar que não há mais possibilidades de recuperar-se do grave trânsito pelo qual está passando. Hoje quando estava conversando com ele chegaram alguns representantes de uma corrente cristã evangélica. Dois homens, um pastor e um cantor, e uma mulher, vieram dar-lhe conforto espiritual.

O pastor falou muito insistindo que ele pode se salvar na dependência de sua fé. Algumas vezes disse que estava também nas mãos de Deus e que este, no final decidiria. Em dado momento exaltou-se e olhou para a esposa do moribundo e apontando-lhe com o indicador disse que ela tinha em sua família um “espírito hereditário de doença”. Naquele momento dentro do quarto se instalou um clima bem estranho, havia uma exaltação de emoções, uma energia, uma vibração bem forte, porém francamente (a meu ver) associada ao estado do próprio pastor, que repercutia na chorosa esposa. Por fim ele foi bem claro ao dizer que dentro de mais alguns dias não mais haveria um doente naquela casa. O oráculo foi claro. Também acho que dentro de mais alguns dias não haverá mais um doente naquela casa. Ou Deus vai agir e o cara vai estar curado, ou Deus vai agir e o cara já não estará entre nós.

A questão é que percebo um clima no qual Deus vai salvar o sujeito. Fico me perguntando o que é salvar. Será que salvar é alcançar um estado (que já vi em outras pessoas em estado terminal) onde haja uma paz redentora no confronto final com a morte? Ou será que salvar é apenas e unicamente a recuperação total do corpo físico? Lembrei-me de um dos ensaios de Montaigne no qual ele lamenta que muitas pessoas só acreditam em Deus na medida em que este age de acordo com o desejo de quem diz crer. A pessoa afirma com todas as letras: Deus é grande, pois eu lhe pedi tal coisa e ele me concedeu. Montaigne pergunta: E se ele não tivesse concedido, deixaria de ser grande? Fiquei pensando na certeza do pastor, que contou diversos milagres que testemunhou e que ocorreram graças ao poder de Deus, que por sua vez interveio por obra das suas orações. Não sou dado à descrença, conquanto não seja uma pessoa de fé. Porém olhei a cena com certa estranheza.

O quarto, o homem pálido, macilento, esquálido e triste, os filhos pequenos atônitos, o irmão alheio, a esposa contrita e sofrida (será viúva pela segunda vez – a menos que a intervenção tenha como resultado o seu desejo), os religiosos tomados por uma fé, diria, medieval, e eu, olhando e ao mesmo tempo participando com o coração contrito. Eu estava contrito, pois procurei encontrar aquele Mistério que nos une a todos no sofrimento, ou seja, no ato (como diria Ralph Blum) de estar submetido às contingências da Terra, deste mundo. Saíram todos e por fim eu e a esposa do rapaz enfermo.

Olhamos o céu do entardecer e alertei-a para o dourado que a luz assinalava em casa coisa, realçado pelo céu plúmbeo agourando chuva. Ela sorriu triste e me falou de esperança e de redenção. Saí caminhando pela vila e logo a palpitante vida me fez notar que o mundo está estranhamente girando apesar de que naquela casa, o Universo parou à espera de um milagre – mas não podemos nós os seres humanos determinar egocêntricamente que milagre é este que acontecerá. Esperemos.

 Recebam um abraço pensativo de Aureo Augusto.

sábado, 2 de junho de 2012

VISITANDO ENFERMOS - VIDA

Ontem, sexta-feira, como de hábito foi dia de visita domiciliar, quando vou à casa das pessoas que não têm condições físicas ou psíquicas de frequentar o posto. Faz parte das atribuições de uma Unidade de Saúde da Família, atribuição que muito me agrada. Na minha área de trabalho o sofrimento é uma coisa frequente, a dor e a tristeza participam de minha vida diuturnamente, mas também há momentos de grande alegria, quando, por exemplo, (e isso aconteceu nesta semana) um homem que até recentemente nunca vinha ao posto (porque achava que seu problema – hipertensão – era pra ser tratado em médico particular), após anos com a pressão elevada, depois de dois meses sendo cuidado pela equipe (sim, porque a forma como foi recebido por Wanessa, na recepção, por Marilza, na pré-consulta, cuidado por Rozeli, a agente comunitária, que, preocupada com sua pressão sempre alta insistiu para que viesse ao posto), os níveis tensionais normalizaram. Aprendeu que não basta a medicação, há que caminhar todos os dias, parar de comer temperos artificiais, adotando o alho, a cebola, o manjericão, a salsinha etc. que além do sabor, nos beneficiam com vitaminas e minerais, fatores anticancerígenos e melhoram a circulação ou reduzem a pressão. Vibro e vibrei com isso, vibramos juntos felizes. Alegrias e tristezas no dia-a-dia. Ontem privei com as famílias que visitei de momentos completamente díspares entre si. Estive com duas pessoas em grave estado de saúde, situação terminal. Em um dos casos, particularmente doloroso pelo fato de que se trata de jovem de 35 anos, naturalmente passando por momentos de intensa revolta, tristeza, saudade, angústia, desalento, raiva, choro convulsivo, lembranças agradáveis, dor e dor mais uma vez, como me disse: “não é bem uma dor, é um vazio aqui” e apontava para o tórax à esquerda. Também estive com uma mulher que acaba de sofrer curetagem por abortamento espontâneo; situação onde fica um gosto amargo de coisa que não se completou, que não se começou. Outro vazio. E a mulher já madura, olhando para o vazio e pele murcha, úmida e fria, balbuciando silêncios, enquanto a família na sala aguarda o momento de uma despedida sem lenços acenando ou promessas de retorno; logo mais, um vazio sobre o leito simples. Ao mesmo tempo, poucos metros depois, ali próximo, a vida celebrando outra instância. Na paisagem do tempo, neste novelo que é o tempo, onde as coisas se alcançam de alguma maneira, crianças sorriem ao Universo encarnado. Outras famílias tomadas pela alegria, completamente submetidas à graça representada por coisinhas ressonando silêncios ternos. Bichinhos aninhados em peitos fartos e doces. Olhares presos a frágeis talos de vida alçando-se da superfície daquele vazio onde o sentido perde-se de si. Estive com jovens casais iluminados pelo rosto de suas criancinhas ronronantes. Segue a vida em muita medida alimentando-se da autofagia do tempo. Recebam um abraço grato de Aureo Augusto em 2 de junho de 2012.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

MÉDICO NÃO PRESTA?

Trata-se de uma senhora muito agradável. Queridíssima por todos no Vale do Capão. Comerciante daquelas que sempre dizem que a situação está difícil (mesmo que todos saibam que está vendendo bem), sabe lucrar com um sorriso feliz e sincero. Gosto muito dela e sempre conversamos bastante. Eu a chamo de menina. Em resposta me trata por menino moleque. Ela é boa para os chás e sempre foi uma pessoa saudável. Nunca precisou de médico e, não consegue entender bem porque outras pessoas dele necessitam. Como desconhece a doença, não a reconhece no outro.

Vai daí que, por não ter papas na língua, quando alguém fica doente, diz na tampa que aquela pessoa não deveria ter ido internar-se, pois os médicos não passam de charlatães que fingem cuidar, mas estão tão somente se locupletando com o dinheiro dos clientes. Ela não é agressiva nesta mensagem, em parte verdadeira, reconheçamos, mas é insistente. O interessante é que tem grande consideração por mim, embora faça parte da classe que ela abomina. Tinha um filho que vivia em São Paulo e passou por grave problema de saúde. Ela o fez vir de lá para que comigo se consultasse. Não o pude ajudar, pois estava com um quadro muito grave, derivado do tipo de trabalho que exercia e carecia mesmo de internamento. Faleceu, para nossa tristeza. Foi um desses casos em que a empresa (aliada ao médico da mesma) mascarou muito bem o que ocorreu e a vítima foi a vítima e pronto! Tal fato só serviu para reforçar o desprezo que já sentia pelos médicos e pela medicina. Por isso nunca se interessa em vir ao posto, nunca faz exames. Raramente verifica a pressão que sempre está normal.

Ontem, domingo, estava na igreja (é evangélica) e começou a passar mal. O quadro piorou rapidamente e em dado momento todos acreditaram que estava morrendo. Renilde, funcionária do posto que também é evangélica, estava presente e me telefonou pedindo ajuda. Disse que a levasse ao posto e segui incontinenti para lá. Para resumir a história, teve uma crise hipertensiva espantosa. Tratei-a e aos poucos foi recompondo-se. Em cerca de três horas e meia já havia voltado ao seu estado normal. Depois tive que convencê-la a ir para o hospital onde seria submetida a exames. Acabou por ceder.
Ela já conta com 88 anos. Sua neta lhe afagava, preocupada, os belíssimos cabelos completamente brancos. Enquanto observava-lhe as rugas desenhadas dignamente no rosto, pensei que sempre temos algo a aprender desimportando a idade. Agora, já idosa, ela, que tem excelente autoestima, que é autônoma, inteligente, dona de si etc. que é um poço de sabedoria onde os vizinhos veem servir-se diuturnamente, está agora sendo desafiada a abrir mão do preconceito contra a medicina. Afinal, no transe em que se meteu, lancei mão de medicações que lhe tiraram da crise. Não importa o que faça depois. Pode optar por um tratamento natural, e sua saúde estará preservada, mas naquele momento crítico, as medicações foram de grande valia.

Para alguns que por aqui vivem, apenas o que vem de Deus tem valor, enquanto aquilo que provém da inteligência humana não merece crédito. Como se havendo um Deus que a tudo criou, deste tudo não participasse a inteligência humana. Interessante como costumamos excluir para nos sentirmos donos de nós mesmos, como nos opomos como forma de nos identificarmos a nós mesmos. Tal conduta centra-se sobre falsas bases. Ao ser humano cabe ser inteiro e esta inteireza tão patente nesta senhora, solicita dela agora um acrescento, para que paradoxalmente a inteireza seja mais inteira. É assim que crescemos e para crescer não importa a idade.

Recebam um abraço aprendiz de Aureo Augusto em 12/12/11 (assim que a luz volte, pois a tempestade de ontem à noite detonou a eletricidade posto esta mensagem).

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

MEDICINA OCULTA NO COTIDIANO 8

Caros amigos, hoje é dia de comentar um pouco de medicina. Mas antes quero avisar que estarei fora nos próximos 15 a 20 dias, por isso não vou alimentar o blog. Recebam um abração, até a próxima.
TÉCNICA E HUMANIDADE
Nos 3 últimos anos do curso de medicina e por mais algum tempo depois de formado estagiei em um hospital do governo em Salvador. Ali dava plantões regulares, aprendendo com os mais experientes aquilo que os livros insinuam, mas não dão: experiência. Naquela época havia um médico, já um senhor, muito respeitado (ainda o é, por merecimento) cujo nome não citarei apenas porque não lhe pedi permissão para contar esta passagem. Quando ele era meu chefe da equipe, o que acontecia uma a duas vezes por semana, nos momentos mais calmos me pedia que lhe contasse algo da história ou da mitologia, principalmente do povo grego. Desde muito jovem sou apaixonado por história e por mitos, assim que, aqueles momentos eram para mim deliciosos. O famoso médico me contou que havia vindo do interior e que em sua vida dedicara-se exclusivamente a sua formação técnica de modo que descurara do humanismo. Devo dizer que ele era e é uma pessoa muito humana. Desconhecer as tradições e a literatura dos antigos não lhe feriam o senso de valor da vida humana, tampouco lhe reduzia o tratamento carinhoso para com os pacientes. Mas, sentia falta. Dizia. Contava-me que sentia prazer em conversar e perguntar das aventuras, correrias e pensamentos das gentes do passado. Queria conhecer. Vejo-o até hoje como o protótipo do bom profissional.
As profissões em geral carecem de um permanente cuidado na formação. Hoje está se tornando lugar comum dizer formação continuada, mas, comum ou não, incomum é sua realização, porém esta realização é uma necessidade de toda profissão. O cuidado em aprender o que de novo traz o universo das pesquisas é essencial. Porém, com demasiada freqüência, tal formação importa-se apenas com a técnica crua do ofício. O que é uma pena, pois que, o profissional é gente, como tal carece de integridade. Sim, nós, seres humanos, queremos ser íntegros, ou seja, responder ao mundo, ou viver no mundo conforme a totalidade de nosso ser. Dentro do possível. O que nos dá o possível são as nossas capacidades de sentir, ver, refletir, degustar etc. Quando vivemos apenas a técnica do nosso ofício e deixamos de lado a vida social, afetiva, intelectual não profissional, do lazer, da arte entre outros aspectos, somos candidatos fáceis à infelicidade, mesmo surda e imperceptível, de não ser inteiro. Podemos não nos dar conta disso claramente, mas a vida começa a ser apenas repetição, enquanto ser humano implica uma variável dose de novidade. No âmbito profissional, a felicidade cultural (de quem está imerso na descoberta de si e do outro como seres sensíveis e pensantes, criadores e mantenedores de tradições, questionadores e vivenciadores de experiências variadas) gera humanismo no relacionamento. Na esfera pessoal esta felicidade pode contribuir sobremaneira para uma excelente qualidade de vida.
O conhecimento estrito da área do conhecimento que escolhemos como meio de ganhar a vida é útil e necessário, mas não basta. Essa era a mensagem que me trazia aquele excelente médico que muito me ensinou (e não só de técnica) no passado.
Dentro disso, vale refletir sobre o que vamos buscar “fora” da “nossa área”. Coloquei entre aspas a palavra fora porque sei que não há nada fora. Tudo o que aprendemos naquilo que as classificações naturalmente artificiais consideram fora da nossa área, estão, na verdade, dentro. Merecem e devem ser incluídas. Um médico (e encontro mais facilidade neste exemplo por ser essa a “minha área”) que conhece a história das religiões, particularmente do cristianismo no mundo sob esta influência religiosa, pode partilhar momentos especiais com aqueles que sofrem; gosto de descrever determinadas enfermidades com uma terminologia retirada da política ou da economia, às vezes da termodinâmica, outras da mitologia. A escolha depende do cliente e dos seus interesses. Às vezes o “sair do assunto” ajuda-nos a encontrar os trilhos da compreensão do assunto. Também coloquei entre aspas as palavras ‘nossa área’, porque não há esse negócio de uma área nossa exclusiva. O terreno humano é necessariamente não especializado e isso é um importante fator que nos distingue dos demais animais, grande parte deles tremendamente especializados. Pode até que haja necessidade de uma especialização profissional, em dado momento, em determinada situação, mas na vida (e vida inclui profissão), especialização é perda, restrição, anquilosamento, redução dos horizontes. Abusiva especialização lembra o mal de Alzheimer, onde a vida de relação se esvai em um desfiladeiro de restrições decorrentes das dificuldades neurológicas, cada vez maiores, cada vez mais amplas, até que nada mais existe a não ser um vazio de conexões. Tão amplas as restrições tão restritas as relações! Não ‘alzheimerizemos’ a vida.
Todas as pessoas do meu conhecimento que guardam em si a felicidade, ou pelo menos sua possibilidade, têm essa competência para aprender que as faz estar todo o tempo, consciente ou inconscientemente, submetendo seu modo de vida, ou suas crenças de como as coisas devem ser feitas ou são, a uma dúvida. Nem sempre têm consciência do que fazem, mas fazem. Uma reflexão é uma atividade consciente, mas ouso dizer que algumas pessoas refletem inconscientemente sobre suas vidas. Isso lhes aumenta a felicidade. Claro que existem aqueles que fazem esta reflexão em plena consciência. Mas isso não vem ao caso, o valor real para si e para os demais reside nessa postura de que o que fazemos ou acreditamos agora pode não ser absoluto. Isso não quer dizer que estas pessoas abandonem suas crenças mais básicas, ou que mudem com a moda. São como o nosso corpo, que só vive, e apenas vive, na medida em que perde para o mundo grande quantidade de elementos que o compõe, assim como permanentemente renova-se com novos elementos. Eliminamos grande quantidade de células da pele, das mucosas, substâncias químicas que eram parte de nós antes e que agora se vão pelo suor, pela urina etc. Adquirimos um mundo novo cada vez que nos alimentamos e, contudo, continuamos sendo as mesmas pessoas. Não fossem estas mudanças e estas permanências o que seria de nós?
Assim, quando me sento a lembrar do meu dia, ou de fatos do meu passado remoto, pergunto-me algumas coisas e constato outras. Aprendo no mero recordar, porque a recordação passa pelo crivo da reflexão. Escrever é um dos meios que uso para refletir. Fazer isso é garantia de felicidade? Sim e não. Agora neste momento sou pleno no meu escrever, amanhã ou mais tarde pode ser que não esteja assim, mas para o amanhã os seus cuidados como disse Jesus. Agora, nesse instante, escrevo e sou. Está bem.
Aureo Augusto.