segunda-feira, 3 de setembro de 2012


D'Os Pescadores, de Raul Brandão:
 
 
SESIMBRA

(…)
A vila em baixo fica aconchegada no regaço dos montes que a amparam e desce-lhes até aos pés – até ao grande areal exposto ao sul, que a ponte do forte Cavalo limita à direita, e o morro do Aguincho, acabando em focinho desmedido e brutal, limita à esquerda. A esta hora, seis da tarde, está reduzido a sombra espessa, e o outro escorre ainda o vermelho do último sol. Um grande forte de Lippe, raso com o mar, ao meio da praia cheia de barcos encalhados e de reboliço humano. Casas pobres, casas lacustres, armazéns, redes a secar nos varais. Anoitece, mas a vida não cessa. O peixe das caçadas é arrematado à noite, quando os barcos regressam da pesca. Pelo areal fora, em quatro ou cinco fiadas paralelas, cada caçada expõe o seu peixe, que reluz ao luar com um tom de prata antiga – gorazes a um lado, e pescada, chernes a outro, todos em quatro, cinco filas alinhadas, e o grupo de regatões à roda a disputá-los ao clarão dos archotes.






(…)
O pescador de Sesimbra, que vai às vezes muito longe, não conhece a agulha de marcar. Regula-se pelas estrelas e pela malha encarnada da serra. Lá fora, quando vêem o cabo ao nível de água, dizem que estão no mar do cabo raso, e, quando o farol desaparece, estão no mar do cabo feito. Conhecem a costa a palmo: o mar novo, que dá o peixe-espada, o mar da regueira, que dá a pescada, o mar da cornaça, que dá o goraz e o cachucho, e o do rapapoitas, que dá os grandes pargos, conhecidos por pargos de morro.



 

(…)
Seis horas da manhã. Noite de luar claro e frio. Descço a rua ainda tonto de sono. Ao longe o moço chama: - Ó tio Julião, vamos embora… pra-a loja!... – Muitos homens dormem na barraca onde se guardam os apetrechos das artes. Entro. Uma luzinha fumega. Redes, remos, cabos, pedaços de velas, e sombras, tudo misturado. Remexem vultos no escuro. Sobre a tarimba mal distingo farrapos de homens deitados.

- Vá lá! vá lá!... – diz o arrais.

Erguem-se, juntam-se e o grande barco começa a deslizar nos panais. Salto dentro e encolho-me ao pé do moço, na caverna. É noite, noite de lua redonda e gelada. Os homens remam em cadência e o panorama vai saindo do escuro à medida que o barco se afasta, todo em sombras empastadas e enormes, cortadas a pique, que se destacam pouco e pouco umas das outras em fantasmas de penedos, em morros salientes com buracos metidos lá dentro… Ao cimo da água, dum azul quase negro, escorre o luar em tremulina. São mil fios de luz que estremecem ao mesmo tempo…      

 

Raul Brandão, Os Pescadores, Lisboa, Editorial Comunicação, 1986, pp. 140-144.

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