D'Os Pescadores, de Raul Brandão:
SESIMBRA
(…)
A vila em
baixo fica aconchegada no regaço dos montes que a amparam e desce-lhes até aos
pés – até ao grande areal exposto ao sul, que a ponte do forte Cavalo limita à
direita, e o morro do Aguincho, acabando em focinho desmedido e brutal, limita
à esquerda. A esta hora, seis da tarde, está reduzido a sombra espessa, e o
outro escorre ainda o vermelho do último sol. Um grande forte de Lippe, raso
com o mar, ao meio da praia cheia de barcos encalhados e de reboliço humano.
Casas pobres, casas lacustres, armazéns, redes a secar nos varais. Anoitece,
mas a vida não cessa. O peixe das caçadas é arrematado à noite, quando os
barcos regressam da pesca. Pelo areal fora, em quatro ou cinco fiadas
paralelas, cada caçada expõe o seu peixe, que reluz ao luar com um tom de prata
antiga – gorazes a um lado, e pescada, chernes a outro, todos em quatro, cinco
filas alinhadas, e o grupo de regatões à roda a disputá-los ao clarão dos
archotes.
(…)
O pescador
de Sesimbra, que vai às vezes muito longe, não conhece a agulha de marcar.
Regula-se pelas estrelas e pela malha encarnada da serra. Lá fora, quando vêem
o cabo ao nível de água, dizem que estão no mar do cabo raso, e, quando o farol
desaparece, estão no mar do cabo feito. Conhecem a costa a palmo: o mar novo,
que dá o peixe-espada, o mar da regueira, que dá a pescada, o mar da cornaça,
que dá o goraz e o cachucho, e o do rapapoitas, que dá os grandes pargos,
conhecidos por pargos de morro.
(…)
Seis horas
da manhã. Noite de luar claro e frio. Descço a rua ainda tonto de sono. Ao
longe o moço chama: - Ó tio Julião, vamos embora… pra-a loja!... – Muitos
homens dormem na barraca onde se guardam os apetrechos das artes. Entro. Uma
luzinha fumega. Redes, remos, cabos, pedaços de velas, e sombras, tudo
misturado. Remexem vultos no escuro. Sobre a tarimba mal distingo farrapos de
homens deitados.
- Vá lá! vá lá!... – diz o arrais.
Erguem-se,
juntam-se e o grande barco começa a deslizar nos panais. Salto dentro e
encolho-me ao pé do moço, na caverna. É noite, noite de lua redonda e gelada.
Os homens remam em cadência e o panorama vai saindo do escuro à medida que o
barco se afasta, todo em sombras empastadas e enormes, cortadas a pique, que se
destacam pouco e pouco umas das outras em fantasmas de penedos, em morros
salientes com buracos metidos lá dentro… Ao cimo da água, dum azul quase negro,
escorre o luar em tremulina. São mil fios de luz que estremecem ao mesmo tempo…
Raul Brandão, Os Pescadores, Lisboa, Editorial Comunicação,
1986, pp. 140-144.
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