Mas eu podia pensar em alguma coisa para dizer. Só por dizer, que fosse. Mas minha garganta travou, língua paralisada. E eu a ouvir Chico e Caetano Juntos. Ela me olhou com um olhar de ódio jamais visto por mim. Ela sabia sentir aquilo. Seus olhos eram ferrão. Eu, mel escorrendo. Mas a abelha rainha não se dava por satisfeita, queria me dissecar com seu ódio. Coisa imunda, pensei. Odiar assim. Mas essa era ela, a mulher que havia algum tempo compartilhava horas de amor comigo. Imaginei como a vida é incerta. Como somos tolhidos ou levados à frente. Como percebemos que ainda não sabemos o que somos, o que queremos. E, apenas quando alguém nos olha com essa intensidade azeda e arredia, nos confundimos e já não sabemos se é hora. Se é hora de dizer adeus, de tentar reconciliar, de simplesmente desaparecer. Gosto muito dessa palavra em inglês, disappear. É isso que sinto afinal nesse momento em que ela insiste em me olhar, reprovadora. Porém, vou dizer uma coisa: não falarei nada. Língua presa, garganta seca. Que ela se vá e não eu, que sou todo amor e discrição. Que ela pegue a mala mal feita e se retire enfim. Já não há o que dizer há algum tempo. A gente é que prorroga tudo. Enquanto a vejo sair pela porta da frente, Chico e Caetano cantam algo assim que "quando chego em casa, nada me consola". Sim, ela também estava sempre aflita, mas sem lágrimas nos olhos de cortar cebola. Ela não era dada a afazeres culinários. Agora que a porta se fecha num impulso brutal, percebo que o ar está menos denso, tudo de repente torna-se leveza e fico ouvindo a música e pensando na ironia que ela traz para mim nesse instante. Nunca entenderei como se odeia ou porquê. A mim bastam poucas coisas, como uvas, mel e casa arrumada.