Letras na Escandinávia #2
Tendo só carregado dois livros na mala, cedo chegou a altura de fazer outras aquisições. Infelizmente, esquecemo-nos de um pormenor importante: não sabemos ler em norueguês. Assim, ficamos condicionados à oferta em inglês. Isso, numa pequena localidade que é conhecida como a Bokbye (a cidade dos livros) norueguesa, acabou por ser um convite à exploração de corredores e corredores de prateleiras cheias de supresas (e mofo). "The time machine", do cientista e escritor H.G.Wells, foi um bom par de horas bem passadas, mergulhadas naquelas ficções futuristas de final do século XIX que agora nos parecem tão ingénuas como assustadoras. Seguiu-se "I was curious", que é basicamente o registo em forma de diário da preparação de um filme, escrito por um realizador, pupilo de Bergman. Finalmente, e ainda em fase final de leitura, o delicioso e altamente recomendável falso romance "Ready to catch him should he fall", que conta a história de The Boy, que conhece The Older, no The Bar, um sítio onde todos vão e que é propriedade de Madame ou Mother. Um primor de pormenores, afectivos, intelectuais e eróticos, sobre uma love story entre duas personagens que não são homens, mas toda uma espécie de homens.
Letras na Escandinávia #1
Leitura. Um dos maiores e às vezes tão inacessíveis prazeres. Nas férias coincidiram duas obras que tinham como tema principal a vida de escritores. O primeiro, "O Crepúsculo do Amor", um livro híbrido do australiano Robert Dessaix, de quem já lera "Corfu" e "Cartas de Veneza". Como esses, a escrita varia entre o registo pessoal e auto-biográfico, a literatura de viagens e a interpretação literária. Simpático e arejado. Deu para relembrar Paris e ficar curioso com o personagem versado, o russo Turguéniev. Seguiu-se um Colm Tóibin, autor bastante estimado cá em casa. Desta vez, uma ficção biográfica em torno do escritor Henry James, "O Mestre". Contém imagens poderosas e é uma maravilhosa dissertação sobre a beleza e sobre o amor na sua condição mais contemplativa e destruidora.
O Reino Interdito
Lido muuuito lentamente (ao ritmo de quem tem como prioridades actuais ensaios, estudos e artigos científicos), lá conseguir terminar por fim "O Reino Interdito", um interessante romance de Rose Tremain. O reino interdito do título (na sua versão traduzida), a avaliar pela melancolia geral das histórias que se entrelaçam, é o da felicidade dos personagens. Mas há uma beleza nobre na forma como cada uma persegue o seu sonho, e não conseguimos deixar de nos enternecer pela sua luta, com um destaque especial para a história de Martin, que nasceu Mary. Fica um excerto de uma das conversas entre ele e o terapeuta a quem recorre para iniciar a transição.
"-É uma coisa que já observei na maior parte das pessoas que ajudei. Quase sempre em homens que querem tornar-se mulheres, mas também num caso como o seu. Tem a ver com o facto de permanecer sempre um pouco exterior ao mundo. Quando se vive fora de qualquer coisa, é mais fácil julgá-la com sabedoria.
- Mas eu não quero viver «fora do mundo». Foi isso o que senti toda a minha vida.
- Só por sentir-se dividida, separada de si própria, se quisermos pôr a questão nesses termos. Em breve os seus dois «eus» irão integrar-se melhor, mas o seu estatuto no mundo continuará a ser especial porque já viu o mundo sob duas perspectivas diferentes. Não preciso de lhe lembrar que isso não é possível para a maioria das pessoas."
Casa da Leitura
Na minha ronda diária pela net, fui dar a este site, mais um projecto da Fundação Gulbenkian. O que gostei verdadeiramente foi desta animação, nada mais nada menos que o menú principal do site. Achei fantástico! É tão fofinho...
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Publicado por Venus as a boy - segunda-feira, fevereiro 12, 2007 à(s) 21:33 1 comentários
O horror! O horror!
São as últimas palavras numa narrativa de viagens, “O Coração das Trevas”, de Joseph Conrad, que acabei de ler. É um texto do início do século passado, mais tarde reabilitado pela adaptação (bastante livre e re-situada na guerra contra o Vietname) de Francis Ford Coppola no épico “Apocalipse Now”. É impossível, portanto, não imaginar a figura portentosa e decadente de Marlon Brando no seu último papel digno, o sinistro e misterioso coronel Kurtz. Trata-se de uma história sobre as trevas obscuras da perfídia e ambição humana, que conquistaram o seu aspecto mais hediondo no sonho totalitário do colonialismo (em todas as suas formas). O narrador é o homem a quem encomendam o resgate de um posto colonial, e é com ele que iniciamos a primeira das duas viagens: pelo grande rio acima, de um mundo para o outro. A segunda das viagens é interior, e acontece ao mesmo tempo, com a aproximação ao destino. Kurtz está no fim da linha. Vive no coração da selva, longe da civilização que o mandatou. Embriagado pelo poder, enlouquece, acabando por morrer como se um cancro o consumisse, esse mesmo horror com que se confronta antes do último estertor. Ao ler o livro, imaginei estas últimas palavras libertadas num grito lancinante, como um aviso à humanidade. Coppola e Brando optaram por um sussurro. O horror... o horror... Como se vencidos pelo medo que esta revelação abrisse uma nova caixa de Pandora, ou simplesmente porque num mundo ruidoso e bélico, o silêncio se tornou ensurdecedor.
Naturalmente perverso
Olhar a realidade humana com o mesmo olhar com que se analisa a realidade animal ou biológica é um caminho tentador, mas sempre perigoso. Num dos meus filmes preferidos - "O meu tio da América", Alain Resnais ilustrava de forma eloquente as possibilidades dessa ponte, no melhor de todos os tratados sobre a etologia social. Edward T.Hall, num ensaio famoso - "A Dimensão Oculta", também propunha uma grelha de leitura das relações sociais de acordo com as implicações do relacionamento entre indivíduos num determinado espaço, utilizando conceitos como a distância de fuga, herdeiros da concepção territorial no estudo dos predadores e das espécies em geral no reino animal. De acordo com esta leitura, as 'anomias' vividas nas grandes cidades poderiam ser explicadas pela transgressão das distâncias necessárias entre indivíduos, constrangidos a habitar no mesmo espaço limitado. Os perigos de uma observação que parta deste pressuposto são muitos (na obra referida, e bem ao estilo desta corrente, Hall faz interpretações rebuscadas e abusivas de factos sociais avulsos de forma a corroborar a sua teoria), sobretudo porque esta analogia faz parte de um discurso de senso comum que frequentemente procura legitimar hierarquias e estabelecer estados 'normais' e 'naturais', contra formas 'patológicas' ou 'desvios' (hetero versus homo é sempre um bom exemplo). A proxémia, contudo, pode ser uma interessante alavanca de reflexão, porque alerta para o facto de que espaço, tal como a linguagem ou o poder, deve fazer parte da equação (no Ártico existem dinâmicas que necessariamente não acontecem em Marrocos). Importa é que não fiquemos indiferentes à complexidade das interacções que compõem mesmo os mais 'pequenos' fenómenos do quotidiano, como uma conversa com um desconhecido ou a forma como nos dispomos em torno da mesa para jantar.
Imagem: 'Chris'(1979), de David Armstrong
Literatura aos molhos
O aniversário de uma ex-namorada que se tornou amiga é sempre um bom pretexto para um reencontro anual. Aproveitei a proximidade do Corte Inglês e lá fui espreitar a secção dos livros. Nos escaparates, a habitual panóplia colorida de best sellers e lançamentos de Outono para rápida digestão. Pelo meio, alguns poucos clássicos. Retirei um Jorge de Sena e uma voz ao meu lado disse "prefere os clássicos? Já leu o último dele? Aliás o único romance, Sinais do Fogo? É um excelente retrato da época do fascismo". Anui com um sorriso amarelo, ao perceber que se tratava do funcionário da secção, vestido como um funcionário bancário à caça de clientes. "Mas esteja à vontade". Dei a volta ao escaparate e desta vez retirei um da Agustina, cujo título não conhecia. "Ah, o último da Agustina! Normalmente ela tem um estilo rebuscado, há quem não goste. Desta vez ela procurou fazer algo diferente, interessante". Incomodado, voltei a pousar o livro. Não queria acreditar que me estavam a tentar impingir livros, como quem vende um crédito imobiliário ou um colchão ortopédico. A medo, e um pouco precipitadamente, escolhemos o último do Luis Sepúlveda e fomos pagar. Ainda receei, por instantes, que ele acrescentasse algum comentário, do estilo: "É um escritor que alia o domínio da tradição do conto com a consciência social, um belíssimo representante da expressão escrita latino-americana. Uma excelente escolha!". Mas o homem de gel e gravata, como uma caneta na mão, apenas comentou, com um ar pouco entusiasmado e num tom desanimado: "Perderam foi a sessão de autógrafos". Duvidei seriamente que tivesse alguma vez lido qualquer dos livros.
Luiz e a comunidade
A propósito de um documentário reposto pela RTP sobre o Luiz Pacheco, relembrei-me do deslumbre arejado que foi ler textos como os "Exercícios de Estilo" ou "A Comunidade" na minha adolescência tardia. Pensei que era uma pena que o Luiz estivesse confinado a um lar há vários anos (o MC não lhe financiaria uma transfusãosinha de sangue, de preferência de uma lolita de colégio ou de um magala rural perdido na cidade?). Ele teria certamente uma opinião prosaica a propósito desta questão do Rivoli, qualquer coisa onde adiantasse que se andam a f##r a cultura, esta está bem na altura de mandar a autarquia à merda (uma tirada que recolocaria o neo-abjeccionismo na berlinda). Provavelmente acrescentaria qualquer coisa acerca das várias putices que outros supostos arautos da cultura andam a engendrar, em alegre e lucrativa prumiscuidade com o mercado (como daquela vez em que denunciou que o Fernando Namora tinha plagiado um texto ao Virgílio Ferreira). Quem não tem papas na língua que avance, por favor. Estamos fartos de chafurdar.
Ilustração de Alice Geirinhas.
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Publicado por Major Tom - sexta-feira, outubro 20, 2006 à(s) 14:08 1 comentáriosRefresso a Ítaca
Há projectos adiados que simplesmente nos apercebemos que não vão acontecer. Como ler a Odisseia em verso. Acabei por me ficar por uma versão juvenil, adaptação do João de Barros em prosa do poema de Homero sobre as aventuras de Ulisses, "herói e navegador da Grécia Antiga". Não me ocorre nada mais do que o óbvio para descrever as impressões da leitura da segunda história mais conhecida de sempre (segundo consta). Fico à espera que a minha vida se adeque silenciosamente às metáforas do épico...
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Publicado por Major Tom - quinta-feira, setembro 07, 2006 à(s) 09:10 1 comentáriosComo ela se afogou
Edward Hopper. Summer Interior, 1909
E pronto. Noutra sessão de insónia, a madrugada encarregou-se de dar conta do que faltava do último livro (traduzido) de Jim Grimsley, autor caro cá em casa por "Um rapaz de sonho", "Consolo e alegria" ou "Boulevard". Desta vez, em "Como me afoguei", regressa ao universo da memória, que para ele parece ser sempre uma espécie de manifestação fantasmagórica que assombra os personagens, como um ectoplasma onde eles respiram com dificuldade. Não há nada de agradável nesta narrativa (demasiado prolongada, na minha opinião bastava um conto ou uma canção gótica para arrumar o assunto de forma mais económica), onde se fala da miséria e a ignorância da ruralidade americana dos anos quarenta, com todas as suas manifestações, descritas de forma eloquente, num estilo sonâmbulo, na primeira pessoa do feminino: a fome, a violência doméstica, a promiscuidade, a pedofilia, a exploração do trabalho infantil, ou a implacável ausência de luz num mundo sujo e visitado por monstros. Ou foi tudo impressão causada pela visita de Ellen, a pequena protagonista, ao limbo do meu próprio sono?
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Publicado por Major Tom - quarta-feira, agosto 23, 2006 à(s) 10:10 0 comentários