Estado Falido Enquanto Discurso Colonial

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Revista de Relagdes Internacionais da UFGD SSN 268 D5, MONCOES “ESTADOS FALIDOS” ENQUANTO DISCURSO COLONIAL" AUREO TOLEDO Doutor em Ciéncia Politica pela Universidade de S40 Paulo (2012) e professor de Relacdes Internacionais no Instituto de Economia ¢ Relagdes Internacionais da Universidade Federal de Uberlandia, E-mail para contato: [email protected] RESUMO: © artigo analisa @ categoria “estado falido" conforme apresentada nos documentos de politica externa dos EUA durante 0 governo George W. Bush (2001-2009) com o objetivo de compreender como tal situago foi concebida como um evento de natureza essencialmente doméstica. A hipdtese que orienta o trabalho ¢ que mediante premissas do Institucionalismo da Escolna Racional, o dito fracasso estatal pode ser compreendido como decorrente de problemas ‘eminentemente institucionais, sendo julgado a luz do desenvolvimento politico @ econémico ocidental. Como resultado, temos uma narrativa semelhante a ideia de Discurso Colonial, tal como desenvolvida por Edward Said e Homi Bhabha, que constréi o colonizado como populagdo degenerada cujos problemas se originam de questdes raciais e que justificam a conquista e 0 estabelecimento de sistemas administrativos para controle. PALAVRAS-CHAVE: estados falidos, politica externa dos EUA, discurso colonial. ‘FAILED STATES’ AS COLONIAL DISCOURSE ABSTRACT: The article analyses the category of “failed states’ as presented in U.S foreign policy documents produced during George W. Bush's administration (2001-2008) with the purpose of understanding how it was possible to conceive this situation as an event of domestic nature. The hypothesis is that through assumptions based upon rational choice institutionalism, the so-called state failure can be understood as resulting mainly from institutional problems, being judged in light of a Western model of economic and political development. It is an account similar to the idea of Colonial Discourse, as developed by Edward Said and Homi Bhabha, which describes the colonized as a degenerated population whose problems emerge from racial issues that justify conquest and the establishment of administrative systems of control. KEYWORDS failed states; U.S foreign policy; colonial discourse 1 Agradego aos pareceristas de Mongbes pelos generosos comentarios e importantes apontamentos, 0s quais contribuiram para o aprimoramento do texto. Como de praxe, eventuals imprecis6es e/ou equivocos sa0 de minha exclusiva responsabilidade 165 Mongées: Revista de Relacées Internacionais da UFGD, Dourados, v.8. n.15, janJjun. Disponivel em: http:J/ojs.ufgd.edu.brlindex.php/moncoes AUREO TOLEDO 7 9 1. Introdugao Visto retrospectivamente, so inequivocos os impactos que a discussao e pratica politica relativa ao que se convencionou chamar fracasso estatal provocaram nas Relagdes Internacionais®. Decerto que a questéo nao provocou alteragées substanciais no sistema intemacional, tampouco na distribuigéo de capacidades entre os atores internacionais. Todavia, apés os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, a constatacao de que paises outrora relegados poderiam causar danos consideraveis as poténcias intemacionais provocaram inflexdes em diretrizes de politicas extemas de paises e redirecionamentos nas agendas de organismos internacionais. A existéncia de guerras civis e de paises cujos problemas domésticos afetam © sistema internacional nao € novidade alguma na area de Relagdes Internacionais®, Entretanto, se durante a Guerra Fria (1947-1989) tais temas foram ora eclipsados pelos embates estratégico-militares entre EUA e a entéo URSS, ora compreendidos em boa medida como derivages das disputas entre as superpoténcias, apenas apés 0 término da bipolaridade é que tais discussdes encontraram maior espago para discussdo na agenda internacional. Nessa nova conjuntura, o desengajamento das poténcias intemacionais era parte necessaria, mas nao condicdo suficiente, para ‘a compreensio das causas dos principais problemas pelos quais passavam os paises do Terceiro Mundo, o que, portanto, levou analistas conhecidos (JACKSON, 1990; KAPLAN, 1994) a apontar a necessidade de investigarmos as origens domésticas das guerras civis e da fragilidade dos estados. E dentro desse contexto que temos a aparic¢do da categoria analitica Estado Falido e correlatos*. Comumente, sua origem é atribuida a ideia de Quase-Estado (Quasi-State), de Jackson e Rosberg (1982), posteriormente desenvolvido e aprofundado no livro de Jackson (1990) e que procura compreender um aparente paradoxo sobre os estados pds-coloniais, especialmente os africanos: a despeito ? Quando grafado com iniciais maiusculas, Relagées Internacionais faz referéncia a0 campo do conhecimento; quando em minusculas, relagdes internacionais exprime seu objeto de estudo. ° A guisa de ilustragdo, desde a obra de Gurr (1970) até o estudo de Kalyvas (2006) tivemos um debate importante sobre a natureza das guerras civis, avaliando, sobretudo, o que levaria um individuo a se engajar no combate. Trata-se de uma literatura riqulssima, mas que por motivos de espaco e de recarie do objeto no sera aqui abordada: * No decorrer do artigo utilizarei de forma intercambiavel as expressées fracasso estalal e faléncia estatal, Estado Falido e Estado fracassado pois, em boa medida, a literatura sobre o tema os trata de forma similar. Para revisdes sobre esta literatura, sugiro Monteiro (2008). 166 Mongoes: Revista de Relagdes Internacionais da UFGD, Dourados, v8. n.15, janJjun. Disponivel em: http:J/ojs.ufad.edu. briindex.php/moncoes D3 AUREO TOLEDO . das guerras civis e da pouca projecao de poder sobre seus territérios, condiges que outrora teriam levado & dissolugao da autoridade politica, nenhum pais do continente foi dividido ou deixou de existir. Em suma, que condigdes estariam garantindo a existéncia de tais paises? A resposta: direitos do que 0 autor chamou de soberania negativa, especialmente a nao intervengdo de terceiros em assuntos domésticos, mas carecem de soberania positiva, isto 6, 0s atributos materiais (recursos econémicos e coercitivos) & ideoldgicos proprios para proverem bens publicos para seus cidadaos. Assim, as causas para o problema em questo poderiam ser encontradas na interseccao entre normas internacionais que garantem a nao intervengao de terceiros, e a trajetéria histérica dos paises africans pés-descolonizacao, 0 que resultaria em pouca ou nenhuma organicidade entre Estado e sociedade. Todavia, a primeira encarnagao propria da categoria “estado falido” na literatura de Relagées Internacionais deve-se ao artigo de Helman e Ratner (1993). No trabalho em tela, “estado falido’ surge enquanto categoria com o fito de descrever a situagado dos paises que passam por conflitos civis, privagées econémicas e colapsos governamentais e que nao teriam mais condigdes de se sustentarem enquanto entidades soberanas. Com base na situagdo de paises tao ratam-se de Quase-Estados, isto é, entidades que gozam dos distintos quanto Haiti, a ex-lugoslavia, Somalia, entre outros, os autores destacaram © impacto negativo, sobretudo aquele derivado de seu aspecto humanitario, que tal situagéo acarretaria. pata o sistema intemacional e a necessidade de desenvolvimento de mecanismos institucionais especificos, como novas formas de tutela, para evitar que problemas geograficamente localizados se espalhassem®. Apés relativo hiato, a segunda encarnagao do conceito emergiria devido ao impacto dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. Se até entéo os termos do debate destacavam o impacto regional e a dimensao humanitaria do dito 5 Na esteira do artigo de Helman e Ratner, outros trabalhos procuravam destacar a capacidade analitica da categoria em questo. Jean-Germain Gros (1996), por exemplo, a despeito de apontar as eventuais qualidades do artigo supracitado, questionava 0 argumento dos autores, alegando que nao seria possivel colocar lado a lado paises to distintos como Bésnia, Libéria e Somalia pelo simples fato de terem tido suas estruturas governameniais destruidas e se as mesmas seriam passiveis de ‘comparaeao. Contudo, o autor ndo desconsiderou o termo como irrelevante, pelo contrério, ampliou a conceituagao a partir do acréscimo de novas categorias, como Estado Fantasma, Estado Anémico e Estado Abortado. Por outro lado, a coleténea organizada por Zartman (1995) foi produzida com 0 intuito de prover maior rigor cientifico a discussdo e mediante estudos de caso de paises africanos procurava apontar as principais causas do problema e possiveis caminho para a solugao. 167 Mongoes: Revista de Relagdes Internacionais da UFGD, Dourados, v8. n.15, janJjun. Disponivel em: http:J/ojs.ufad.edu. briindex.php/moncoes D3 AUREO TOLEDO . fracasso estatal, agora teriamos uma comprovacdo empirica de que ameacas significativas partiriam do interior dos estados, teriam capacidade para ultrapassar suas respectivas regides e eventualmente afetar as grandes poténcias, conduzindo a discussao e pratica politica internacional para o campo da seguranga. Segundo Fukuyama (2005, p. 124): Os ataques de 11 de setembro chamaram a atencdo para um tipo diferente de problema. 0 falido estado do Afeganistdo estava tao fraco que foi sequestrado por um participante nao estatal, a organizacdo terrorista Al Qaida, e serve de base para operagées terroristas globais. Os ataques mostraram as maneiras pelas quais a violéncia havia se democratizado: a possibilidade de combinar o islamismo radical com armas de destruigao em massa (ADM) de repente passou a implicar que eventos ocorrendo em partes do mundo distantes e cadticas podiam ser intensamente importantes para os Estados Unidos e outros paises ricos e poderosos. As formas tradicionais de intimidagdo ou contengao nao funcionam contra esse tipo de agente nao estatal, e assim as quest6es de seguranga exigem buscas dentro de estados e mudangas em seus regimes para evitar o surgimento de futuras ameacas. Decorrente deste enfoque securitério, uma parte significativa dos estudos sobre “estados falidos” procurou definir, sistematizar e mensurar o fracasso estatal para que ele pudesse ser revertido e antecipado. Os resultados foram na sua maioria caracterizagdes de cunho institucionalista, que, no caso em questdo, procuravam apontar como determinadas varidveis domésticas, ou mesmo a auséncia delas, eram decisivas para a eclosao do problema Partindo da premissa que existiria uma série de fungdes especificas que todo estado idealmente deveria cumprir, as pesquisas se tornaram uma seara impar para a recepgdo de aportes da politica comparada e econometria, 0 que abriu espago para formalizagdo e utilizagéo de metodologias quantitativas para andlise, especialmente a construgdo de indices de fracasso estatal®. Logo, a partir de uma amostra grande paises, o objetivo seria encontrar a conjungao de varidveis que melhor explicaria o fenémeno em tela, habilitando, em tese, os analistas a antecipa- lo e eventualmente até reverté-lo. ® Para maiores detalhes sobre a construgao econométrica do Failed States Index, 0 mais conhecido dos indices sobre “estados falidos”, sugiro Mata e Ziaja (2009). 168 Mongoes: Revista de Relagdes Internacionais da UFGD, Dourados, v8. n.15, janJjun. Disponivel em: http:J/ojs.ufad.edu. briindex.php/moncoes Dd AUREO TOLEDO Dessa leva de estudos, 0 diagnéstico mais comum é que estados fracassam porque ndo conseguem prover bens piiblicos para sua populagdo e nao o fazem ou porque suas liderangas so relutantes em prové-los, ou porque ndo possuem as instituigdes adequadas para tanto (CARMENT, 2003; FOREIGN POLICY, 2005; ROTBERG, 2004). Assim, no caso da primeira alternativa, a solugao seria presso internacional e, em ultima instancia, mudanga de regime, isto é, intervengao externa para a substituigdo da lideranga que se nega a atender as demandas da populagao. No segundo caso, quando o problema 6 funcionamento institucional inadequado, a resposta deveria ser pautada pela ajuda externa para recuperar, ou mesmo criar, instituigdes consideradas essenciais. Esta forma de abordagem acaba por tratar os estados como /ike-units, entidades com sistemas politicos relativamente uniformes e que buscam padrées de desenvolvimento comum. Decorre que, ao menos implicitamente, esta embutida na discussao um viés comparativo - e eurocéntrico - com o que seria considerado o tipo ideal de estado e quais as condigées domésticas para se alcangar 0 sucesso. Como diria Hill (2005), ao invés de procurar compreender detidamente os problemas sociopoliticos de um estado, em ultima instancia categorias como “estado falido” apenas salientam que estados africanos, por exemplo, sao diferentes daqueles do dito Primeiro Mundo. Por conseguinte, estados sao identificados como falidos nao pelo que sao, e sim pelo que eles nao sdo e deveriam ser. Vemos assim que 0 modelo de comparagao acaba sendo sempre o estado liberal-democratico, supostamente encontrado no mundo anglo-saxao e que acaba por pautar a criago de indices de fragilidade estatal. Sobre isso em especial, ha de se destacar o problema apontada por Rocha de Siqueira (2014), quando afirma que a categorizagao da fragilidade estatal mediante indicadores 6 em si mesma uma construgao politica sobre como compreender uma dita realidade objetiva, e nao um exercicio imparcial de coleta de dados e formalizacao de modelos Academicamente, a discuss80 provocou debates _consideraveis, especialmente entre analistas e policymakers que defendem uma relagdo de causalidade entre “estados falidos" e os principais problemas de seguranga internacional contemporanea, sobretudo o terrorismo, e aqueles que questionam tal nexo (HEHIR, 2007; PIAZZA, 2006). No ambito da formulagao de politicas, esta dita relaco de causelidade informou a agao de paises e organismos intemacionais, que 169 Mongoes: Revista de Relagdes Internacionais da UFGD, Dourados, v8. n.15, janJjun. Disponivel em: http:J/ojs.ufad.edu. briindex.php/moncoes Dd AUREO TOLEDO passaram a despender cada vez mais ajuda internacional, ou mesmo justificar intervengées militares, com base em alegagées de que determinadas contextos poderiam resultar em fracasso estatal. A guisa de exemplificagao, a ONU, em relatorios como aquele intitulado A More Secure World (2004), e agéncias do governo estadunidense e britanico, como a USAID e o DFID, passaram a enfatizar cada vez mais a importancia de instituigdes liberais como catalisadores para a paz e a importancia do reforgo institucional como solugao para situagdes de dita fragilidade estatal. Com isso, 0 propésito deste artigo é contribuir para a discussdo sobre “estados falidos” analisando as consequéncias de uma abordagem exclusivamente institucionalista para o tratamento do tema. Com este propésito, cremos ser possivel alcangar dois objetivos principais. Primeiramente, ao interrogar os fundamentos da caracterizagao dada aos “estados falidos’, é possivel tensionar as praticas politicas direcionadas a tais paises, sobretudo politicas como reconstrucdo de estados. Em segundo lugar, e de forma mais ampla, o desenvolvimento da hipdtese questiona nao sé a aplicagao do Institucionalismo da Escolha Racional como orientagao para a produgao do conhecimento sobre “estados falidos’, como também a propria utilidade analitica deste ultimo. A hipétese que orienta o trabalho é que o fracasso estatal é visto como fendmeno de natureza eminentemente doméstica na medida em que a orientagao epistemologica que norteia a produgéo do conhecimento sobre o assunto é 0 Institucionalismo da Escolha Racional. Contudo, no tratamento dispensado aos “estados falidos”, uma abordagem como esta acaba por, no minimo implicitamente, julgar 0 desempenho de paises ditos falidos a partir da experiéncia de desenvolvimento politico e econémico ocidental. O resultado em boa medida assemelha-se ao que Said e Bhabha chamam de Discurso Colonial, isto é, aquele que constrdi o colonizado como populacao degenerada cujos problemas se originam de questées raciais e que justificam a conquista e 0 estabelecimento de sistemas administrativos para controle. Com o intuito de delimitar o objeto para andlise, duas consideragdes pesaram. Primeiro, a discussdo sobre “estados falidos” intersecta tanto a academia quanto o mundo politico. Segundo, esta discussdo teve grande peso no debate politico estadunidense apés os atentados de 11 de setembro. Logo, optei por analisar a 170 Mongoes: Revista de Relagdes Internacionais da UFGD, Dourados, v8. n.15, janJjun. Disponivel em: http:J/ojs.ufad.edu. briindex.php/moncoes Dd AUREO TOLEDO . ‘concepeao de fracasso estatal conforme apresentada nos documentos de politica extema estadunidense durante 0 governo George W. Bush (2001-2008), especialmente aquela oriunda do relatério da USAID (2005) sobre a questo, assim como o trabalho de Goldstone et al (2004), base tedrico-metodolégica para os documentos do governo. Assim sendo, divido 0 trabalho em trés momentos, excetuando-se esta longa (mas necesséria) introdugao. Na seg&o seguinte apresentamos as especificidades do debate sobre “estados falidos” nos EUA e como ele foi apresentado nos documentos que informaram a ago politica do pais. Posteriormente, aponto como a abordagem institucional seria uma versdo atualizada do Discurso Colonial para entdo tecer as consideragées finais. 2. A Politica Externa dos EUA para “estados falidos” Se ha uma ameaca que “estados falidos” apresentaram para a defesa da integridade territorial estadunidense, esta ¢ oriunda do potencial nexo entre fracasso estatal e a operagao de grupos terroristas que poderiam atacar os EUA. Conforme afirmagdes do ex-presidente George W. Bush logo apés os atentados (BUSH, 2002, p. 13): A ameaga mais grave liberdade jaz na encruzilhada entre o radicalismo e a tecnologia. Quando o desenvolvimento de armas quimicas, biolégicas e nucleares se encontra com a tecnologia para construgéo de misseis balisticos até mesmo estados fracos e Pequenos grupos podem conseguir uma enorme capacidade para atacar grandes nagdes’. Uma das principais caracteristicas que o trecho acima nos traz é relativa a natureza das ameagas as quais os EUA tém pela frente. Nota-se que nao apenas grandes poténcias podem infligir perigos substanciais ao pais, mas a utilizagao equivocada de desenvolvimentos tecnolégicos pode redundar em problemas de seguranga internacional significativos para todo o sistema internacional. Depreende- se novamente a légica comparativa com casos ditos de sucesso: ha atores que 7 Todas as traducdes do inglés para 0 porlugués so de minha inteira responsabilidade e para uso exclusivo neste artigo. 171 Mongoes: Revista de Relagdes Internacionais da UFGD, Dourados, v8. n.15, janJjun. Disponivel em: http:J/ojs.ufad.edu. briindex.php/moncoes Dd AUREO TOLEDO fazem uso adequado de tais armamentos, enquanto outros os utilizam de forma inapropriada, com o propésito de atacar. Quem sao os estados nesse momento designados fracos e por que eles so uma ameaga? A partir das Estratégias de Seguranga Nacional dos EUA (BUSH, 2002; 2006) 6 possivel encontrarmos duas designagdes. De um lado, teriamos aqueles conhecidos como “estados parias” (rogue states), cujo comportamento pouco amistoso vis-a-vis os EUA desde meados da década de 1980 ja era sinal de preocupacdo para o pais. Conforme caracterizacao atribuida, tais paises: Brutalizam sua propria populagdo e desperdigam seus recursos naturais para usufruto proprio de suas liderancas; Demonstram nenhuma consideragao para com o direito internacional, ameacam vizinhos e violam tratados internacionais dos quais séo signatarios; Esto determinados em adquirir armas de destruigéo em massa, juntamente com outras tecnologias militares, para serem usadas como formas de ameaga ou ofensivamente para atingir propdsitos agressivos; Patrocinam terrorismo ao redor do planeta; Rejeitam os mais basicos valores humanos, assim como odeiam os EUA e tudo que ele representa (BUSH, 2002, p. 13). Temos assim uma caracterizagao comportamental como trago definidor dos “estados parias’, na medida em que apresentam uma conduta desviante no cendrio mundial e de forma deliberada apoiam grupos terroristas e buscam adquirir armas de destruigao em massa. Nao a toa, a principal forma de definigaio gramatical desses paises 6 a atribuicéo de verbos que salientam a capacidade de praticar agdes intencionais e sempre perigosas. A outra categoria de estado fraco seria 0 que aqui designo “estados falidos”. Os excertos abaixo ilustram a natureza desse perigo: Os eventos de 11 de setembro de 2001 nos ensinaram que estados fracos, como 0 Afeganistao, podem se tomar uma ameaga tao grande aos nossos interesses nacionais como as poténcias de outrora. Pobreza nao transforma os pobres em terroristas e assassinos. Contudo, pobreza, instituigdes fracas e corrupgao podem deixar estados fracos vulneraveis as redes terroristas e cartéis de drogas que operam dentro de suas fronteiras (BUSH, 2002, p. ii) Seja por ignorancia, incapacidade ou mesmo como objetivo explicito, paises ao redor do mundo ainda oferecem santurios — tanto fisico (por exemplo, esconderijos e campos de treinamento) quanto virtuais 172 Mongoes: Revista de Relagdes Internacionais da UFGD, Dourados, v8. n.15, janJjun. Disponivel em: http:J/ojs.ufad.edu. briindex.php/moncoes Dd AUREO TOLEDO (comunicagées confidveis, redes financeiras, entre outros) que os terroristas precisam para planejar, organizar, treinar e conduzir suas operagées. Uma vez inseridos em ambientes seguros para operagao, a organizacao comega a se solidificar e expandir-se (BUSH, 2003, p. 06). A partir dos trechos, é possivel afirmar que temos uma caracterizacao que se centra em tracos intrinsecos de tais paises: enquanto os “estados parias” sao caracterizados a partir de comportamentos desviantes e irracionais, os “estados falidos” so definidos mediante a auséncia de determinados atributos domesticos considerados essenciais. Grosso modo, a tentativa de associagao apresentada jaz no argumento de que determinadas condigdes subjacentes aos “estados falidos’, como mau funcionamento institucional, corrupgao, conflitos étnicos e/ou religiosos, dentre outras, impediriam que 0 governo atendesse as demandas da populagdo, criando, portanto, um contexto propicio para que organizagées _terroristas conseguissem arregimentar voluntarios e apoio logistico para suas operagées. Tais caracterizages sobre a natureza dos estados fracos nos levam a duas diregdes possiveis para resolugéo do problema. Se, de um lado, a causa das ameagas aos EUA é personificada na figura de um governo desviante ou lideranga quase que irracional, abre-se a possibilidade para 0 uso da forga como forma de solugdo para o problema dos parias, desde pressao diplomatica até, como ultima ratio, intervencées militares para mudanca de regime. De outro lado, se 0 problema é 0 mau funcionamento institucional, que, no minimo, n&o impée constrangimentos ao desenvolvimento de praticas como violagdes de direitos humanos, corrupgdo, entre tantas outras, abre-se a possibilidade de reversdo do processo a partir de politicas de capacity-building por meio nao de intervengées militares, mas sim de praticas de reconstrucdo de estados. Estas consistem em agées relacionadas ao fortalecimento do estado de direito, reforma do setor de seguranga, incentivo a instalagao e desenvolvimento de uma economia orientada ao mercado, dentre outros pontos. Trocando em mitidos, se os “estados périas” so um problema politico para 0s EUA, os “estados falidos” tornam-se um problema técnico, pois néio possuem os atributos que todo governo idealmente deveria ter. Logo, nao é nada trivial que principal documento sobre o tema produzido pelo governo estadunidense seja um relatério da USAID (2005), embasado em um trabalho cientifico realizado por um 173 Mongoes: Revista de Relagdes Internacionais da UFGD, Dourados, v8. n.15, janJjun. Disponivel em: http:J/ojs.ufad.edu. briindex.php/moncoes D3 AUREO TOLEDO . ‘grupo de analistas (GOLDSTONE et al, 2004). Como ponto de partida, o relatério da USAID (2005) reproduz em boa medida as premissas apresentadas anteriormente: Estados fracos tendem a serem os vetores de forgas desestabilizadoras, manifestando o lado sombrio da globalizacao e apresentando-se como um grande desafio para a seguranga nacional. © fenémeno dos estados fracos ou falidos ndo 6 novo, mas a necessidade de se resolver tal fraqueza é mais urgente do que nunca. (...) A estratégia [do governo dos EUA] reconhece que a raiz da ameaga a seguranga nacional dos EUA e da comunidade internacional como um todo é a falta de desenvolvimento, que nao pode ser resolvida apenas por meios militares e diplomaticos. Em paises que carecem de capacidade, ou mesmo vontade, para proporcionarem os servigos mais basicos e protegdo, no podemos optar por deixa-los de lado (USAID, 2005, p. v) Nesse documento é importante iniciarmos a andlise a partir de quais seriam os determinantes do fracasso, e por quais variaveis poderiamos representa-los. Assim temos a seguinte definigao: Pesquisas indicam que a instabilidade associada a estados frageis produto de governanca pouco efetiva e ilegitima. Efetividade refere-se & capacidade do governo em trabalhar com a sociedade e assegurar a provisdo de ordem e bens e servicos puiblicos. Legitimidade refere-se & percepgao por parte de importantes segmentos da sociedade de que 0 governo esta exercendo 0 poder estatal de maneira razoavelmente justa e em conformidade com os interesses da nacao como um todo. Quando efetividade e legitimidade sao fracas, conflito e fracasso estatal so os resultados mais provaveis (USAID, 2005, p. 03). = Convém aqui registrar dois pontos. Primeiramente, os documentos de politica externa estadunidense ndo sao as tnicas fontes para tentativa de defiigso da categoria “estado falido”. Por exemplo, existem 4 propostas que nao necessariamente ranqueiam paises, mas que ao menos definem do que se trata o fracasso estatal (Call, 2010; Rice e Patrick, 2008; Gravingholt et al, 2015; e ‘Stewart e Brown, 2009), e 5 indices cujas propostas miram explicitamente o ranqueamento de paises vis-d-vistracasso estatal (Carment e Samy, 2012; World Bank, 2011; Fund for Peace, 2019; Rice e Patrick, 2008; @ Marshal © Goldstone, 2007). Ha inclusive sobreposicdes entre estes quadros analiticos, com alguns definindo e ranqueando ao mesmo tempo. Disso decorre o segundo ponto. A. discussao sobre fracasso estatal nao foi apenas uma especificidade estadunidense. Ainda que o pais. tenha tido grande peso na delimitagéo da agenda, instituigdes internacionais como Banco Mundial (World Bank, 2011) e agéncias de outros paises como o DFID briténico (Stewart e Brown, 2009) envidaram esforcos para eriar seus indices. Ademais, entidades da sociedade civil como think tanks ‘como o Fund for Peace, que produz o atual Fragile States Index (anteriormente Failed States Index), também se engajaram no debate. Nota-se assim toda uma controvérsia envolvendo néo apenas: estados, mas também organismos internacionais @ alores da sociedade civil. Para uma discussao andlise das propostas supracitadas, ver Ferreira (2016). 174 Mongoes: Revista de Relagdes Internacionais da UFGD, Dourados, v8. n.15, janJjun. Disponivel em: http:J/ojs.ufad.edu. briindex.php/moncoes

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