Não sei lidar com a finitude .
Não valem a pena os discursos de “ está num sítio melhor “; “ teve uma vida longa”.
A minha Mãe-Avó morreu e esqueceu -se de me ensinar a viver sem ela . Nunca senti nada assim . Este ar que não consigo respirar quando me distraio e começo a sentir uma vertigem , e a sensação que falta alguma coisa no Mundo ,” o que se passa comigo “ pergunto -me. Depois, caio em mim e percebo que aquela que mais me amou a vida inteira, que me embalou a mim e aos meus filhos , que me protegeu e viveu por e para mim partiu, e jamais a voltarei a ver . E é esse “NUNCA “que me mata . Há cerca de uma semana , falava-me do Natal , que tinha que ser lá em casa , afinal onde havia de ser . E relembrou -me que lhe tinha que comprar uma prenda.
Ri-me com a sua postura tão própria . Ela não estava a brincar . Ela , que toda a vida me fez comer sopa, brócolos e peixe cozido era fã de hambúrgueres no pão, pizza e doces . E uma ginja ou um licor se possível . Não esquecer a coca cola que segundo ela lhe fazia bem aos intestinos . Quando eu era pequena e o avô trabalhava em a Lisboa , eram muitas as vezes que dormia com ela na cama . Enquanto ela fumava o seu cigarro SG GIGANTE e lia Mário Zambujal porque segundo a mesma o tabaco lhe fazia bem à garganta , eu ia adormecendo entre o intoxicada e a doce sensação de estar no sítio mais seguro do Mundo . Adormecia como ela , de terço na mão para que “Nossa Senhora me protegesse”.
A minha avó era a pessoa mais teimosa , obstinada, casmurra, manipuladorazinha ( ou era como ela queria ou não era ) safada ( sabia que eu só comia carne de peru então todos os domingos tornava coelho, borrego etc em Peru , mas nunca me convenceu e ficava danada e jurava a pés juntos que era peru ).
A minha avó fazia pão de ló aos domingos . Um pão de ló a que o meu filho mais velho batizou de “ capinha “ por ficar sempre com uma crosta crocanre no topo .
A minha avó gostava de café moído, daquele que tem um cheiro mesmo forte , adorava bolos , especialmente as bolas de Berlim e adorava que durante 47 anos todos os aniversários , meus , do marido e filhos tal como os dela e do avô tenham sido celebrados na sua casa onde havia sempre uma chatice porque queria ser ela a fazer os bolos . Bolos esses que eram “ capinhas “ forradas a ícing sugar que enfeitava com adornos próprios para bolos e exibia como se fossem obras de arte . O meu avô já sabia , ou lhe elogiava as “ proezas” ou bem que a podia ouvir durante duas semanas . Coitadinho não se podia calar enquanto mastigava “ ai Mimi… está muito bom que maravilha não está , Ana? “. Aqui a Ana nem tocava no bolo tantas e tantas vezes porque já não havia espaço no estômago depois do tanto que me obrigava a almoçar .
Ninguém lhe podia dizer que não. Ela é que estava certa , sempre .Mesmo que não estivesse .
Hoje caminho pelas “ ruas “ do hipermercado e sem pensar vou às fraldas, aos resguardos , procuro o seu leite favorito, bolachas , iogurtes , e depois lembro … já não é preciso …
E volta a falta de ar. O desespero . A sensação de mutilação. Cortaram -me o braço? A perna ?
Levaram -me a alma e deixaram cá um cérebro confuso a quem esqueceram de ensinar a viver com a sua ausência .
Começam a doer-me as pernas . Dores que nem as minhas febres reumáticas me fizeram conhecer . Os braços , a cabeça . Tudo acusa a sua ausência , como se tudo tivesse ligado a ela , e fosse ela , e sem ela como será ?
Vejo que os meus problemas afinal têm todos solução . Ou solucionados estão. Que nada tem a importância que lhe dei. Que nada é comparável a isto . Esta dor que me consome e não larga , este apego que transcende tudo .
E eu sei que ela foi em paz. Que está em paz .
Que me levou no coração . A menina que ela criou como dizia a toda a gente com orgulho como se eu fosse digna de tamanho orgulho, eu rebelde, filha do vento , com mais lágrimas que sorrisos .
Mas agora, que não tenho a avó nem o avô a quem dedicar os meus dias , que os meus filhos cresceram , posso apenas honrar a avó sendo feliz . Fazendo valer a minha vontade na minha vida . Chega de viver para agradar aos outros . Viverei para a Paz, para os meus filhos mas sacrifícios ? Fiz por quem tinha que fazer . Por aqueles que nunca me abandonaram .
Vou renascer aos 47 anos . Deixar o útero bolorento que não me serve mais , deixar as regras e preocupações com que pensam ou deixam de pensar . Vou viver para mim e para os meus filhos . Não volto a ser barata para ser esmagada , mosca para ser morta, não me encolho mais para caber no Mundo de ninguém . E não se chama maldade, frivolidade ou vingança . Chama - se instinto de sobrevivência . Preciso sobreviver dignamente do ponto de vista mental para que possa depois VIVER , os anos que me restam que nesta fase são sempre menos que aqueles que já vivi .
A casa está em silêncio . Ouvem-se amiúde umas patinhas a andar pelo chão que vão e voltam provavelmente à espera que me levante para as alimentar .