Com artigos de Pedro Ambra, Nelson da Silva Jr., Miriam Debieux, Diego Penha, Léa Silveira, Fábio Franco e Paulo Endo. * Existirmos: a que será que se destina? A pergunta que estrutura a tão bela Cajuína de Caetano Veloso tem como...
moreCom artigos de Pedro Ambra, Nelson da Silva Jr., Miriam Debieux, Diego Penha, Léa Silveira, Fábio Franco e Paulo Endo.
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Existirmos: a que será que se destina? A pergunta que estrutura a tão bela Cajuína de Caetano Veloso tem como inspiração o impacto causado pelo suicídio de Torquato Neto e a doçura resignada na tristeza de seu pai. A vida, como um copo de cajuína, é apenas matéria fina e a tal lágrima nordestina parece não se turvar pois reconhece que, afinal, nosso destino é sempre a morte.
Há exatos 100 anos Freud deparou-se com semelhante constatação, reunida em seu magistral Além do princípio do prazer (1920). O texto em questão não é propriamente mais uma contribuição teórica e clínica ao então já consolidado edifício psicanalítico: talvez ele possa ser mais fielmente metaforizado como a implosão de alguns dos mais profundos pilares da psicanálise e a instauração de uma racionalidade inédita, condensada na ideia da pulsão de morte. Mas é preciso retroceder um tanto para compreender a extensão dessa verdadeira revolução do pensamento freudiano e seus impactos na compreensão psicanalítica do sujeito.
É conhecida a radicalidade com que Freud defendeu, desde o início de seu projeto intelectual, a sexualidade como centro de toda análise possível do humano. Somos seres que buscam, incansavelmente, satisfação. Mesmo junto àquelas manifestações aparentemente mais alheias ao prazer (sonhos, atos falhos, sintomas neuróticos, masoquismos), Freud habilmente encontrava como horizonte do desejo inconsciente um núcleo recalcado de verdade sexual. O conflito entre tal princípio do prazer e o princípio de realidade, que governa nossa vida em sociedade, pautaria assim a tensão constitutiva não apenas de nosso aparelho psíquico, mas das possibilidades de relação com o outro. O sujeito freudiano — esteja ele francamente adoecido ou sustentando a ilusão de uma normalidade equilibrada que, no fundo, não existe — é fraturado, uma bricolagem possível entre sua sede de prazer e as impossibilidades representadas pela realidade e as internalizações que dela fazemos.
É precisamente esta hipótese, que sustentava toda a teoria psicanalítica até então, que será revirada com a publicação de Além do princípio do prazer. Ao questionar seu maior dogma, a primazia do sexual, o texto, abertamente especulativo e ensaístico, parece nos convidar a enxergar a psicanálise como um saber a beira de sua própria dissolução. A pergunta que começa a se esboçar a partir daí é: e se a verdadeira pulsão não apenas do ser humano, mas de todo e qualquer organismo fosse a morte? Não é esse o único traço comum de nosso necessário e inexorável destino? A pulsão de morte é aquilo que, a despeito de todos os nossos esforços, nos conduz rumo à destruição em seu sentido mais radical. Por que repetimos sempre os mesmos erros? O que conduz as pessoas a sofrimentos que poderiam ser evitados? Para além da sexualidade e da satisfação, Freud propõe haver um impulso ainda mais primordial que nos faz matar algo em nós mesmos no próprio decurso da vida que, por contraste, serve apenas e tão somente para atrapalhar a morte. E se o silêncio, o retorno ao inanimado e o gosto pela destruição formassem o princípio mais fundamental ao qual, quotidianamente, respondemos?
Antecipada em 1912 por Sabina Spielrein, a ideia de uma destruição como origem do devir é saudada por Freud como rica em conteúdos, ainda que ele próprio reconhecesse sua incapacidade em compreende-la totalmente. Foi necessário que um evento político e social de grandes proporções viesse a produzir novas formas de sofrimento para que o princípio do prazer viesse finalmente a entrar em xeque. As neuroses produzidas pela Primeira Guerra Mundial e seus sonhos traumáticos correlatos mostraram a Freud que havia algo no interior do psiquismo que tendia a repetir o desprazer indefinidamente. O novo dualismo pulsional oporia agora vida e morte, construção e destruição, diferença e igualdade como duas forças antagônicas agindo não apenas na subjetividade, mas igualmente nos processos sociais que a condicionam.
A civilização, por seu turno, não seria assim o conjunto positivo de todas as conquistas humanas, tendo como seu futuro progressos infinitos e a diminuição paulatina de todas as mazelas sociais. A guerra destruíra o sonho dourado da Belle Époque não por ser um desvio pontual da conduta humana, mas justamente por mostrar sua outra face: a tendência conservadora e de retorno a estados anteriores que caracterizam a pulsão de morte, em oposição ao caráter progressista da pulsão de vida. Notemos como os termos da descrição freudiana dessa polaridade não são extraídos propriamente de uma teoria psicológica, nem mesmo biológica, mas de duas tendências que marcam a vida política da modernidade.
Por esta razão, além de comemorar o centenário da publicação de Além do princípio do prazer, o presente dossiê presta-se a uma outra tarefa. Trata-se aqui de resgatar uma atualidade inquietante da proposta de Freud também em sua espessura social. Afinal, o que explicaria que após algumas décadas de relativo progresso — em termos de diminuição da miséria, expansão de pautas feministas, reconhecimento de alguns direitos da população LGBTQI, por exemplo — as mais obscuras e retrógradas tendências conservadoras voltassem a aparecer com força não apenas no Brasil mas em diversos lugares ao redor do globo? Neonazismos, negacionismo climático, aumento no número de suicídios, processos de intensa precarização do trabalho, pedidos de intervenção militar, ataques ao Estado de bem-estar social e epidemias de sofrimentos mentais em escalas inéditas: seriam essas meras situações passageiras ou efeitos incontornáveis do tipo de vida e de progresso social sustentado até hoje?
Convidamos as intactas retinas de autoras e autores a se debruçarem sobre a questão e o resultado são múltiplos olhares sobre a complexa dança entre cristalinas cajuínas da vida e as infelizes sinas da morte.
Pedro Ambra