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Adrielle Cristine Mendello Lopes e Pedro Franco de Sá
Números reais: aspectos históricos
NÚMEROS REAIS: ASPECTOS HISTÓRICOS
REAL NUMBERS: HISTORICAL ASPECTS
Adrielle Cristine Mendello Lopes1
Universidade do Estado do Pará - UEPA
Pedro Franco de Sá2
Universidade do Estado do Pará - UEPA
Resumo
Este artigo traz os resultados de uma pesquisa bibliográfica que teve por objetivo
apresentar uma trajetória histórica dos números reais. As fontes de pesquisa foram livros
de matemática e história da matemática bem como artigos científicos. O trabalho foi
dividido nas seguintes seções: a descoberta dos números irracionais na Grécia, os
infinitesimais, a aritmetização da análise e as teorias dos números reais. Os resultados
indicaram que a história dos números reais iniciou na Grécia, com a descoberta de
segmentos incomensuráveis pela escola de Pitágoras, fato que trouxe à tona os números
irracionais. Por um longo tempo, o trabalho com os números irracionais foi evitado e
somente 2500 anos depois foi possível estabelecer a construção axiomática dos números
reais. O surgimento da expressão “número real” se deu com René Descartes (1596-1650)
em 1637, quando este rejeitou as raízes de equações expressas por números imaginários
e tal expressão ainda é utilizada até hoje. Com o desenvolvimento dos infinitesimais no
fim do século XVII, muitas inconsistências nos fundamentos da matemática foram
constatadas, mas estas passaram quase despercebidas devido à grande aplicabilidade dos
métodos infinitesimais, fato muito explorado nos estudos matemáticos no século XVIII.
Somente no século XIX, percebeu-se a necessidade de rigorizar a Análise, o que originou
o movimento histórico conhecido como aritmetização da análise. Neste cenário, os
matemáticos estavam cientes que de o progresso dependia de uma extensão do conceito
de número. A própria ideia de função teve que ser esclarecida e noções como as de limite,
continuidade, diferenciabilidade e integrabilidade tiveram de ser cuidadosa e claramente
definidas. Ao final do século XIX, surgiram construções axiomáticas para os números
reais que até então não estavam claramente fundamentados. As teorias dos números reais
foram construídas pelo francês Charles Méray (1835-1911) e pelos alemães Karl
Weierstrass (1815-1897), Richard Dedekind (1831-1916) e George Cantor (1845-1918).
Palavras-chave: História da Matemática; Números irracionais; Números reais.
Abstract
This article presents the results of a bibliographical research that aimed to present a
historical trajectory of the real numbers. The sources of research were math and history
of mathematics books as well as scientific articles. The work was divided into the
1
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following sections: the discovery of irrational numbers in Greece, the infinitesimals, the
arithmetization of analysis and theories of real numbers. The results show that the history
of real numbers began in Greece, in the theory of non-commensurable segments by the
school of Pythagoras, a fact that brought the irrational numbers out. For a long time, the
work with the irrational numbers was neglected and only 2500 years later it was possible
to establish the axiomatic construction of the real numbers. The emergence of the
expression "real number" occurred with René Descartes (1596-1650) in 1637, when he
rejected the roots of equations expressed by imaginary numbers and such expression is
still used today. With the development of the infinitesimals at the end of the seventeenth
century, many inconsistencies in the foundations of mathematics were observed, but these
were almost unnoticed due to the great applicability of infinitesimal methods, a fact that
was much explored in mathematical studies in the eighteenth century. Only in the
nineteenth century the need of a rigorous analysis was noticed and because of that,
originated the historical movement known as arithmetization of analysis. In this scenario,
mathematicians were aware that progress depended on an extension of the concept of
number. The idea of function itself had to be clarified and notions such as limits,
continuity, differentiability and integrability had to be carefully and clearly defined. At
the end of the nineteenth century, axiomatic constructions arose for the real numbers that
until then were not clearly based. Theories of the real numbers were constructed by the
Frenchman Charles Méray (1835-1911) and by the Germans Karl Weierstrass (18151897), Richard Dedekind (1831-1916) and George Cantor (1845-1918).
Keywords: History of Mathematics; Irrational Numbers; Real Numbers.
Introdução
A oposição de René Descartes (1596-1650) à utilização dos números complexos
a partir dos trabalhos com raízes de equações realizados por Girolamo Cardano (15011576) e Rafael Bombelli (1526-1572) foi o impulso para que ele cunhasse a expressão
“número real”. De acordo com Kline (1972), René Descartes (1596-1650) rejeitou as
raízes complexas e usou o termo “imaginário” para designá-las. Em 1637, Descartes
escreveu em La Géométrie: “tanto as verdadeiras raízes quanto as falsas não são sempre
reais, mas às vezes apenas imaginárias.” Descartes fez uma distinção clara, mais do que
seus antecessores, entre as raízes reais e imaginárias de uma equação. Apesar de Carl
Friedrich Gauss (1777-1855) ter percebido a inadequação do termo “imaginário”, esta
tomou raízes profundas, porém, para a palavra “real” não foi “nem sequer proposta uma
mudança para um têrmo mais adequado.” (DANTZIG, 1970, p. 202).
A evolução histórica dos números reais se deu desde a “descoberta” na Grécia dos
segmentos incomensuráveis no século V a. C. até a sua construção axiomática no século
XIX. Percebemos que foram necessários quase 2500 para que os números reais pudessem
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ser construídos. Cabe ressaltar que neste intervalo temporal, outros fatores foram
extremamente importantes para o desenvolvimento histórico dos números reais.
A concepção do universo pregada pela escola de Pitágoras (580-500 a.C.) era
aritmética: “Tudo é número”. A descoberta da incomensurabilidade pelos gregos trouxe
à tona dos números irracionais e marcou o declínio do pitagorismo como sistema de
filosofia natural e a concordância perfeita entre as coisas aritméticas e as coisas
geométricas mostrou ser um embuste: como o número podia dominar o universo, quando
não podia dar conta nem do aspecto mais imediato do universo, a Geometria?
(DANTZIG, 1970, p. 98)
O desenvolvimento do Cálculo no final do século XVII por Gottfried Leibniz
(1646-1716) e Isaac Newton (1642-1727) foi um passo notável para a matemática, porém
surgiram críticas em relação aos seus fundamentos ao ter em vista imprecisões nas
explicações de Leibniz e Newton. No entanto, as críticas aos métodos infinitesimais
foram praticamente suprimidas em decorrência da grande aplicabilidade do Cálculo,
principalmente à Mecânica, o que foi muito explorado nos estudos do século XVIII.
Em 1797, Joseph-Louis Lagrange (1736-1813) assumiu que uma função contínua
pode sempre ser expressa como uma série de Taylor. No início do século XIX, estudiosos
começaram a questionar a validade do princípio de Lagrange ao ter em vista absurdos em
contradições no uso das séries infinitas. Estes questionamentos impulsionaram a
aritmetização da análise, um movimento que buscou fundamentar o conceito de número.
Na segunda metade do século XIX, emergiram as teorias de números reais, cujas as
contribuições cruciais foram dadas por Charles Méray (1835-1911), Karl Weierstrass
(1815-1897), Georg Cantor (1845-1918) e Richard Dedekind (1831-1916).
Este trabalho traz os resultados de uma pesquisa bibliográfica que teve por
objetivo apresentar uma trajetória histórica dos números reais. O trabalho foi dividido nas
seguintes seções: a descoberta dos números irracionais na Grécia, os infinitesimais, a
aritmetização da análise e as teorias dos números reais.
A descoberta dos números irracionais na Grécia
De acordo com Boyer (1974, p. 53), Pitágoras e seus discípulos defendiam que a
essência de tudo, seja na geometria como nas questões práticas e teóricas da vida do
homem, podia ser explicada em termos de arithmos, isto é, nas propriedades de números
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inteiros e suas razões. Isto levava a uma exaltação e ao estudo das propriedades dos
números junto com a geometria, a música e a astronomia, que constituíam as artes liberais
básicas do programa de estudos pitagórico, conhecido como quadrivium.
A descoberta grega que abalou a fé pitagórica de que “Tudo é número”, iniciando
a primeira “crise” da matemática, foi a incomensurabilidade. Os pitagóricos se depararam
com os números irracionais e perceberam que os números que eles conheciam não eram
suficientes para explicar a natureza. Boyer (1974) explica que a primeira percepção de
grandezas incomensuráveis é tão incerta quando a época de sua descoberta, mas sugere
algum momento antes de 410 a. C. A descoberta da incomensurabilidade foi para os
gregos um “escândalo lógico” que tentaram manter em sigilo:
Alogon, o inexprimível, era como se chamavam tais irracionais, e os membros
da ordem juravam não divulgar sua existência a estranhos. Tendo descoberto
uma imperfeição inexplicável na obra do Arquiteto, era necessário mantê-la
em segredo, senão sua raiva, por ter sido exposto, cairia sôbre o homem.
(DANTZIG, 1970, p. 97)
Segundo Kline (1972), além de Alogon (ou Alogos), também era utilizado o termo
Arratos, que significa “sem razão”, daí o termo atual números irracionais. De acordo com
uma lenda em Eves (2011), foi Hipaso de Metapontum (séc. V a. C.) quem revelou o
segredo das grandezas incomensuráveis a estranhos, e por isso foi expulso da comunidade
pitagórica, sendo-lhe ainda erigido um túmulo, como se estivesse morto.
Encontramos dois relatos distintos sobre o caminho que levou os gregos às
grandezas incomensuráveis, mais especificamente, ao primeiro irracional conhecido: o
número √2. O primeiro caminho é o geométrico, que remete a aplicação do teorema de
Pitágoras, em que os pitagóricos perceberam que “a diagonal do quadrado não tem
medida comum ao seu lado” (DANTZIG, 1970, p. 97). O segundo é o caminho aritmético,
segundo o qual Struik (1986, p. 80) sugere o uso da média geométrica a/b=b/c, símbolo
da aristocracia.
Kline (1972) aponta que, mesmo antes da “crise” ocorrida na Grécia, os números
irracionais já eram conhecidos na Mesopotâmia. Nas tábuas de potências e raízes dos
babilônios, quando a raiz era um inteiro se tinha um valor exato, caso contrário, o valor
sexagesimal correspondente era aproximado. Entretanto, não há nenhuma evidência de
que eles eram conscientes do fato dos irracionais não poderem ser expressos com um
número finito de algarismos, “é mais plausível crer que eles acreditavam que os
irracionais também podiam ser expressos de maneira exata na forma sexagesimal,
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prolongando a expressão até onde fosse necessário” (KLINE, 1972, p. 8). Importa
destacar que os babilônios tinham uma excelente aproximação de √2 que era 1,414213
…, uma vez que para essa quantidade de casas decimais o correto é 1,414214... .
Para Eves (2011), a irracionalidade de √2 provocou alguma consternação nos
meios pitagóricos, pois ela parecia perturbar não só a crença de que “tudo é número”,
como também a definição pitagórica de proporção, cujas proposições se limitavam às
grandezas comensuráveis. A partir deste momento, as demonstrações que faziam uso da
teoria das proporções tiveram que ser abandonadas. Neste contexto, era necessário
estabelecer uma nova teoria das proporções que foi independente da comensurabilidade.
Apenas por volta de 370 a.C., Eudoxo de Cnido (408-355 a.C.) conseguiu este feito. A
teoria das proporções eudoxiana constitui a base do livro V dos Elementos de Euclides
(séc. III a. C).
Nos séculos seguintes, o uso da Teoria das Proporções de Eudoxo evitou a
discussão sobre a natureza dos números irracionais. Foi apenas no século XVII com o
surgimento dos métodos infinitesimais, que o assunto gerou inquietação dos estudiosos
novamente. Discutimos este cenário histórico a seguir.
Os infinitesimais
O trabalho de sistematização do cálculo foi realizado de forma independente por
Leibniz e Newton no fim do século XVII, a realização matemática mais notável do
período. Porém, surgiram discussões a respeito da legitimidade dos métodos
infinitesimais, uma vez que os argumentos de Leibniz não eram definitivos e ele propunha
diversas justificativas, uma delas era a aceitação dos infinitésimos como meras ficções.
Newton, ao contrário, trabalhava bem seus argumentos antes de publicá-los e considerava
o padrão da geometria grega mais adequada para expor suas ideias, contudo havia certa
imprecisão no seu método de expressão. Struik (1986) aponta que as explicações sobre
os fundamentos do Cálculo eram imprecisas: “algumas vezes, os seus dx, dy eram
quantidades finitas, outras vezes quantidades menores que qualquer quantidade
significativa, porém não nulas” (STRUIK, 1986, p. 186).
As imprecisões de Leibniz e Newton provocaram as críticas de Bernard Nieuwentijt
(1654-1718) e de George Berkeley (1685–1753), respectivamente. A obra The Analyst
(1734) de Berkeley é considerada a mais importante oposição, na qual ele revelou um
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grande número de argumentos frouxos, afirmações vagas e contradições claras na
doutrina dos infinitesimais.
Por algum tempo, os fundamentos do Cálculo permaneceram despercebidos ao ter em
vista a sua aplicabilidade (principalmente à mecânica), fator muito explorado na produção
matemática no século XVIII. Porém, este cenário começou a mudar quando Lagrange
publicou dois livros sobre funções como uma tentativa de dar uma fundamentação sólida
ao cálculo, pela sua redução à álgebra. Em 1797, Lagrange assumiu, a partir de um
processo puramente algébrico, que uma função contínua pode sempre ser expressa por
meios do teorema de Taylor como uma série infinita. Struik (1986) esclarece que o
“método algébrico” de Lagrange foi insatisfatório e, apesar de não ser dada a suficiente
atenção à convergência das séries, este tratamento foi um considerável passo em frente.
No início do século XIX, estudiosos começaram a questionar a validade do princípio de
Lagrange e logo começaram a perguntar o que se entendia por uma função em geral e por
uma função contínua em particular. Estes questionamentos impulsionaram a busca por
uma matemática mais rigorosa, fundamentada no conceito de número, o que resultou em
um movimento histórico, o qual discutimos a seguir.
A aritmetização da análise
Os matemáticos que se depararam com os problemas relativos aos fundamentos
da análise estavam cientes que de o progresso dependia de uma extensão do conceito de
número. A própria ideia de função teve que ser esclarecida e noções como as de limite,
continuidade, diferenciabilidade e integrabilidade tiveram de ser cuidadosa e claramente
definidas. Se, em grande parte, o século XVIII foi gasto na exploração dos métodos do
cálculo, “o século XIX foi dedicado grandemente à tarefa de construir uma
fundamentação lógica sólida para a enorme, porém débil, superestrutura construída no
século precedente.” (EVES, 2011, p. 463)
Apesar de D’Alembert ter observado que era necessária uma teoria de limites em
1754, não houve um desenvolvimento sólido dessa teoria durante muito tempo. Somente
em 1821 com Cours d’analyse, Augustin-Louis Cauchy (1789-1857) “pôs em prática com
êxito a sugestão de d’Alembert de desenvolver uma teoria de limites aceitável e definir
então continuidade, diferenciabilidade e integral definida em termos de conceito de
limite” (EVES, 2011, p. 610).
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Desta forma, a matemática do século XIX passava por um processo de
formalização, conhecido como aritmetização da análise, termo cunhado por Felix Klein
(1849-1925) em 1895. De acordo com Dantzig (1970), tal movimento teve como objetivo
“a separação de conceitos puramente matemáticos tais como número, correspondência e
conjunto, de ideias intuitivas, que a matemática adquiriu através de uma longa associação
com a geometria e a mecânica.” (DANTZIG, 1970, p. 93)
Com um dos precursores do movimento, destacamos Bernhard Bolzano (17811848) pois “perto de 1817 ele já estava plenamente cônscio da necessidade de rigor em
análise” (EVES, 2011, p. 530). As principais ideias de Cauchy já tinham sido antecipadas
por ele, mas foi impedido de publicá-las e muitos de seus resultados tiveram que ser
redescobertos. Por tal fato, Klein o denominou de “o pai da aritmetização”.
A partir das ideias de Bolzano e Cauchy, o estudo de limites mostrou a necessidade
de adquirir uma compreensão lógica dos números. Boyer (1974) ressalta que a
investigação sobre a natureza de função e do número iniciou em 1822 com a teoria de
calor de Joseph Fourier (1768-1830) e com uma tentativa de Martin Ohm (1792-1872) de
reduzir toda a análise a aritmética. Lejeune Dirichlet (1805-1859) tentou dar consistência
aos trabalhos de Fourier, demonstrando que suas séries convergem. No entanto, em 1829,
Dirichlet percebeu que nem toda função podia ser integrada, quando descobriu uma
função que não pode ser representada por uma série de Fourier, não-derivável e
descontínua em todos os pontos. A compreensão da função de Dirichlet dependia da
forma como os racionais e irracionais estavam distribuídos sobre o eixo das abcissas, isto
é, sobre a reta numérica.
Na segunda metade do século XIX, emergiu a preocupação em relação à definição
de número real e à distribuição dos racionais e irracionais na reta e, logo, muitos trabalhos
foram publicados, dedicados a colocar os números reais em uma base aritmética sólida.
A partir deste momento, surgem as teorias de números reais. As contribuições cruciais
neste aspecto foram dadas por Charles Méray (1835-1911), Karl Weierstrass (18151897), Georg Cantor (1845-1918) e Richard Dedekind (1831-1916), cujas teorias são, em
essência, muito parecidas e, apesar das publicações quase simultâneas, foram elaboradas
em épocas diferentes. A seguir, apresentamos os aspectos mais gerais de tais teorias.
As teorias dos números reais
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Boyer (1974) mostra que no início de 1830, Bolzano havia feito uma tentativa
para desenvolver uma teoria dos números irracionais como limites de sequências de
números racionais, deixando seu manuscrito Teoria das Quantidades inacabado, o qual
não foi reconhecido nem publicado até 1962. Na esperança de que sua obra fosse
terminada, Bolzano a ofereceu ao seu aluno Robert Zimmermann (1824-1898), que
deixou de se dedicar a Matemática e entregou a obra à Biblioteca Nacional de Viena.
A trajetória cronológica dos acontecimentos permite dizer que Charles Méray foi
o primeiro matemático a apresentar uma definição satisfatória dos números irracionais,
pois em 1869 ele publicou Remarques sur la nature dês quantités définies par la condition
de servir de limites à des variables données, artigo no qual exaltou uma séria falha de
raciocínio que os matemáticos haviam cometido desde os tempos de Cauchy (BOYER,
1974, p. 409).
Dugac (1970) aponta que Méray considerava dois princípios como base essencial
para todas as partes da matemática que levavam o conceito de limite de uma sequência e,
em particular, aqueles relacionados com números irracionais, séries e integração. O
primeiro deles era que uma sequência crescente e majorada (ou decrescente e minorada)
tende para um limite; e o segundo, era que toda sequência de Cauchy tende para um limite.
Méray definiu um número irracional ao ter em vista a natureza dos limites de sucessões
de números racionais que não admitiam nenhum número racional como limite.
Bolzano e Cauchy haviam tentado provar que uma sequência que “converge para
si” também converge no sentido de relações externas a um número real S, o limite da
sequência. Mas Méray deixou de apelar para a condição externa de convergência ou para
o número real S, visto que usando apenas o critério de Cauchy-Bolzano, a convergência
pode ser escrita sem referência a números irracionais. Méray considerava que uma
sequência convergente determina ou número racional como limite ou um “número
fictício” como um “limite fictício”; e estes “números fictícios” podem ser ordenados e
em essências, são os números irracionais. Ainda assim, “Méray era um tanto vago quanto
a se ou não sua sequência convergente é o número. Se é, como parece indicado, então sua
teoria é equivalente a desenvolvida ao mesmo tempo por Weierstrass.” (BOYER, 1974,
p. 409)
Kline (1972) considera Méray o matemático francês equivalente à Karl
Weierstrass na Alemanha. Ao lecionar cursos de matemática, iniciados em 1856, na
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Universidade de Berlim, Weierstrass percebeu a necessidade de elaborar uma teoria de
números irracionais ao tentar construir os fundamentos da análise. Por volta de 18631864, apresentou sua construção como parte de um curso sobre a teoria geral das funções
analíticas.
De acordo com Boyer (1974), Weierstrass tentou separar o cálculo da geometria
e baseá-lo apenas no conceito de número e, assim como Méray, percebeu que era
necessário definir um número irracional independentemente do conceito de limite, assim
“decidiu a questão da existência de um limite de uma seqüência convergente tomando a
própria sequência como número ou limite” (BOYER, 1974, p. 410). Podemos considerar
a série
3
10
3
3
3
+ 100 + 1000 + ⋯ + 10𝑎 + ⋯ onde a é um número natural, cujo limite é 1/3.
Weierstrass considerou que este número não é o limite da série, e sim a sequência
associada a esta série. Assim, Weierstrass não só contribuiu para uma definição
satisfatória de número real, como também para uma definição aperfeiçoada de limite.
A atenção de Richard Dedekind se voltou para os números irracionais desde
1858, quando lecionava Cálculo na Escola Politécnica de Zurique, ao ter que provar a
existência do limite de uma função crescente e limitada. Boyer (1974) diz que Dedekind
concluiu que, se havia o desejo de que o conceito de limite fosse rigoroso, então era
necessário desenvolvê-lo através da aritmética sem usar a geometria como guia. O
tratamento dado por Dedekind aos números irracionais é o mais conhecido atualmente.
Em dois livros pequenos, Stetigkeit und irrationale Zahlen (1872) e Was sind und was
sollen die Zahlen? (1888), ele realizou na matemática moderna aquilo que Eudoxo tinha
feito na matemática grega, e ele próprio se referiu a teoria das proporções eudoxiana no
livro V de Euclides:
[...] e se interpretamos número como razão de duas grandezas, há de se convir
que tal interpretação já aparece de maneira bem clara na célebre definição dada
por Euclides sobre igualdade de razões. Aí reside a origem de minha teoria (...)
e muitas outras tentativas de construir os números reais. (DEDEKIND, 1887
apud ÁVILA, 2006, p. 57)
O princípio de Dedekind consistia em tomar como ponto de partida o domínio dos
números racionais. Em vez de identificar o número real como uma sequência convergente
de números racionais e procurar uma saída para o círculo vicioso de Cauchy, Dedekind
se perguntou o que há na grandeza geométrica contínua que a distingue dos números
racionais. Galileu e Leibniz tinham julgado que a “continuidade” de pontos sobre uma
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reta era consequência de sua densidade – isto é- do fato que entre dois pontos quaisquer
existe sempre um terceiro. Porém, os números racionais têm essa propriedade, no entanto
não formam um continuum. (BOYER, 1974, p. 410)
Ao refletir sobre a questão, Dedekind chegou à conclusão de que a essência da
continuidade de um segmento de reta não se deve a uma vaga propriedade de ligação
mútua, mas a uma propriedade exatamente oposta – a natureza da divisão do segmento
em duas partes por um ponto sobre o segmento. Em qualquer divisão dos pontos do
segmento em duas classes tais que cada ponto pertence a uma e somente uma, e tal que
todo ponto numa classe está à esquerda de todo ponto da outra, existe um e só um ponto
que realiza a divisão. Como Dedekind escreveu: “Por essa observação trivial o segredo
da continuidade será revelado”. A observação podia ser trivial, mas seu autor parece ter
tido algumas dúvidas quanto a ela, pois hesitou durante alguns anos antes de se
comprometer em algo impresso.
Dedekind viu que o domínio dos números racionais pode ser estendido de modo
a formar um continuum de números reais, se supusermos que os pontos sobre uma reta
podem ser postos em correspondência biunívoca com os números reais (axioma de
Cantor-Dedekind). Aritmeticamente, significa que para toda divisão de números racionais
em duas classes A e B tais que todo número da primeira classe, A é menor que todo
número da segunda classe, B, existe um e só um número real que produz um schnitt ou
corte de Dedekind. Se A tem um maior número, ou se B contém um menor número, um
corte define um número racional; mas se A não tem um maior elemento e B não tem um
menor, então o corte define um número irracional. (BOYER, 1974, p. 410)
No cenário das teorias dos números reais, destacamos o matemático Georg
Cantor, grande amigo de Dedekind, com o qual trocou diversas cartas. Em 1871, Cantor
iniciou um programa de aritmetização semelhante ao de Méray e Weierstrass, contudo
Cantor parece ter formado suas ideias independentemente do trabalho de Méray.
Cantor assumiu que existia algum modo de enumerar todos os números da reta
real. Restringiu sua análise aos números entre 0 e 1 e assumiu que os números deste
intervalo poderiam se listados em uma ordem como decimais infinitos. No entanto,
Cantor percebeu que nem todos os números reais entre 0 e 1 estavam incluídos na lista
que havia elaborado onde presumia haver todos os números reais no referido intervalo.
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Assim, o estudioso surpreendeu o mundo matemático ao provar a não-enumerabilidade
dos números reais, cuja prova é dada por Ávila (2006).
Cantor mostrou que existiam infinitos diferentes, um que caracterizava os
números racionais e outro que caracterizava todos os números reais. Deste resultado, é
possível concluir que “são os números transcendentes que dão ao sistema de números
reais a “densidade” que resulta em maior potência” (BOYER, 1974, p. 415). Cantor
decidiu publicar este importante resultado no Journal de Crelle, mas sabia que a oposição
era forte ao seu trabalho sobre os números irracionais e o tamanho dos conjuntos.
Para Boyer (1974), os incríveis resultados de Cantor o levaram a estabelecer a
teoria dos conjuntos, porém este despendeu muitos esforços para convencer seus
contemporâneos da validade de seus resultados, uma vez que havia considerável horror
infiniti. O principal opositor de Cantor era Leopold Kronecker (1823-1891), que
representava uma tendência totalmente oposta no mesmo processo de aritmetização.
Segundo Struik (1986, p. 258), a tentativa de Kronecker era modelar toda matemática
segundo a teoria dos números inteiros, tanto que chegou a proferir em um encontro em
Berlim no ano de 1886 a conhecida frase “Deus fez os inteiros e os homens fizeram o
resto.” Mas Cantor ganhou finalmente aceitação quando a enorme importância de sua
teoria se tornou mais óbvia para a fundamentação das funções reais e da topologia no
século XX.
A seguir, apresentamos nossas considerações finais.
Considerações Finais
Este estudo teve por objetivo apresentar uma trajetória histórica dos números
reais, cuja realização permitiu o resgate do desenvolvimento histórico desde a descoberta
dos números irracionais na Grécia no século V a.C. até às construções axiomáticas dos
números reais que surgiram no final do século XIX. Consideramos que o conhecimento
da história dos números reais é importante não só para o entendimento da própria
construção histórica da matemática, mas também para servir de fonte a fim de eliminar
possíveis dúvidas que possam emergir de discussões sobre o assunto em ambientes
escolares e acadêmicos.
Boletim Cearense de Educação e História da Matemática - Volume 03, Número 09, 79-90 (2016)
DOI:10.30938/bocehm.v3i9.56
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Adrielle Cristine Mendello Lopes e Pedro Franco de Sá
Números reais: aspectos históricos
Referências
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Boletim Cearense de Educação e História da Matemática - Volume 03, Número 09, 79-90 (2016)
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