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Do Imaterial Na Arte

Depois de Freud e da psicanálise impôs-se uma nova ideia de arte, a de uma procura em direção ao interior. Seja ela tipificada no corpo orgânico e visceral, de alguns quadros de Soutine, de Bacon, nos corpos fatigados do escultor contemporâneo Ron Mueck, ou recuando mais atrás, no "Boi Esventrado" de Rembrandt. Na paisagem, orgânica também, é visível marca desse interior nos primeiros expressionistas, Munch, Van Gogh, Kirschner, e ainda nalguns desenhos de árvores solitárias e despidas de Schiele, e que a par o nosso Alvarez, pinta em recortes surdos da Galiza. Essa ideia de arte introspetiva exploradora dos trilhos mais recônditos do nosso ser é tomada pelos surrealistas numa aventura a que chamaram de "automatismo psíquico", sedentos que estavam de chegar mais além do que o consciente permitia, e que se desenha nas pinturas de areia de Masson, nos "Raiogramas" de Man Ray, nas florestas assombradas de Max Ernst, nos enigmas de Magritte, ou nas "Soprofiguras" e nas "Sismografias" de Cesariny.

DO IMATERIAL NA ARTE Manuela Hargreaves (artigo publicado no jornal Artes entre as Letras, Setembro 2015 – adaptação) DO IMATERIAL NA ARTE Depois de Freud e da psicanálise impôs-se uma nova ideia de arte, a de uma procura em direção ao interior. Seja ela tipificada no corpo orgânico e visceral, de alguns quadros de Soutine, de Bacon, nos corpos fatigados do escultor contemporâneo Ron Mueck, ou recuando mais atrás, no “Boi Esventrado” de Rembrandt. Na paisagem, orgânica também, é visível marca desse interior nos primeiros expressionistas, Munch, Van Gogh, Kirschner, e ainda nalguns desenhos de árvores solitárias e despidas de Schiele, e que a par o nosso Alvarez, pinta em recortes surdos da Galiza. Essa ideia de arte introspetiva exploradora dos trilhos mais recônditos do nosso ser é tomada pelos surrealistas numa aventura a que chamaram de “automatismo psíquico”, sedentos que estavam de chegar mais além do que o consciente permitia, e que se desenha nas pinturas de areia de Masson, nos “Raiogramas” de Man Ray, nas florestas assombradas de Max Ernst, nos enigmas de Magritte, ou nas “Soprofiguras” e nas “Sismografias” de Cesariny. Já no dealbar do século XX Duchamp e os dadaístas, antecipam os fundamentos do que viria a ser a arte conceptual, e mudam radicalmente a abordagem da obra de arte moderna e contemporânea. “Fountain”, objeto enviado por Duchamp para a Exposição de Independentes (Nova Iorque 1917), sob o pseudónimo de R.Mutt, e recusado pela direção - de que ele também fazia parte -, vai ser reeditada 40 anos depois e adquirida por vários museus, sendo ainda hoje um ícone da arte contemporânea. Inúmeros artistas contemporâneos – senão todos - são herdeiros de Duchamp, de Andy Warhol, a Jeff Koons ou Joana Vasconcelos. Depois dos excessos do Expressionismo Abstrato americano, e da vaga consumista da Pop Art, a arte dita conceptual, corrente que se afirma de forma mais vincada nos anos 60 nos EU, pretende pôr um termo à materialidade do objeto submetendo-o a um processo de depuração, e mesmo de evanescência - tal como haviam feito na pintura no inicio do século, Malevich ou Mondrian. Esta posição não é alheia do eclodir do mercado de arte no pós guerra, transformando a obra de arte numa mercadoria de luxo transacionável a par dos bens imobiliários ou financeiros. Yves Klein terá sido um dos primeiros a levar mais além, as experiências de desmaterialização do objeto, ainda nos anos 50, ao fazer exposições sobre o “Vazio” e transações de “imaterialidade” em que parte do dinheiro era atirado ao rio Sena. Por sua vez Joseph Beuys, artista alemão, piloto da Luftwaffe durante a 2ª Guerra, apropria-se do seu “episódio tártaro”, depois de ter sido resgatado por aquele povo nómada e coberto com gordura e feltro, na sequência do acidente de aviação de que foi vítima na Crimeia, e concebe um projeto de vida: fazer uma “escultura social” que acabasse com os males de uma sociedade doente. Pioneiro da performance, exerce o papel de médico social utilizando remédios simbólicos, tais como a gordura (símbolo de mudança), o feltro ( sobrevivência), entre vários outros, e desenvolve uma linguagem intuitiva com animais que permitiria fugir à racionalidade obstinada do Homem, praticada de forma insana na Alemanha nazi. Os murais de SolLewitt, realizados a partir de instruções dadas pelo artista, representam ao mesmo tempo a vontade de escapar às teias do mercado, e uma forma de luta contra a arte como mercadoria, abrindo a possibilidade a qualquer pessoa de executar os seus desenhos. É nesse sentido uma arte mais democrática e livre, que se opõe ao individualismo e ao flow emocional, dos expressionistas abstratos americanos. O Minimalismo encontra-se assim nas raízes da arte conceptual; Ideias banais não podem ser salvas por uma execução perfeita diz SolLewitt. Acrescenta uma série de conceitos que considera fundamentais para definir aquilo que considera ser uma obra de arte: - em contraste absoluto com as pinceladas alietórias de Pollock ou De Kooning -, a obra devia ser o mais impessoal possível e não dar ao observador nenhum indício sobre a personalidade do autor, o Minimalismo elege a ordem versus caos, a contemplação meditativa contrapõem-se à emoção dos sentidos e à ilusão, mesmo se alguns deles, Donald Judd ou Frank Stella, tenham sido no seu início pintores de grandes telas expressionistas abstratas. Dessa raiz expressionista, surgem também algumas pinturas de Ângelo de Sousa dos anos 70, num processo evolutivo de depuração e acentuação geométrica, refinamento de espessuras e densidades de tintas originando cambiantes de luz, que nos convidam a uma relação mais intimista com a pintura. A primazia da conceção versus execução, que nos distancia do classicismo, subvertendo o que até há pouco era considerado uma obra de arte, está presente de forma pós romântica, na narrativa que envolve a obra Erased De Kooning de Rauschenberg. O cenário desta narrativa é o de Rauschenberg ainda jovem artista, em início de carreira, bater à porta do estúdio de De Kooning na época já um consagrado - desejando no fundo que este lá não estivesse -, munido de uma garrafa de whisky (um bom cartão de visita para os expressionistas abstratos americanos); a intenção era pedir-lhe um desenho, o objetivo conseguir apagá-lo até a imagem desaparecer (Rauschemberg conta que De Kooning procurou entre inúmeros desenhos, um que fosse realmente difícil de apagar). Este desenho ficou na história da arte como um exemplo de arte performativa que iria inspirar uma geração de artistas da década de 60. Deste percurso em direção a uma desidentificação da imagem, fala-nos Lurdes de Castro, emigrada em França como muitos dos artistas portugueses seus contemporâneos, fixando-se num vasto mundo de sombras, como manifestação inquietante da vida, ou da presença da “ausência” como referiu Pierre Restany na apresentação dos seus trabalhos em Paris. A colaboração dos artistas portugueses do grupo KWY (Ka Wamos Yndo, iniciais das três letras que não fazem parte do alfabeto português) com a vanguarda internacional, é nesta época motor fulcral para o desenvolvimento da arte contemporânea no nosso país. Este caminho porventura acidental, da arte do século XX em direcção a uma poética do imaterial, conduz a uma não materialização da posse. Lawrence Weiner vai nesse sentido dizendo: A partir do momento em que alguém conhece um trabalho meu, ele pertence-lhe. Não há forma de penetrar dentro da cabeça de alguém e retirá-lo. Não é necessário comprá-lo porque já o experienciou. Nesta ordem de ideias quem de nós já não experienciou obras de arte que, apesar de não se materializarem fisicamente, ficaram a pertencer-nos no mais íntimo do nosso ser? Trabalhar com o imaterial torna-se um tema recorrente na arte pós anos 60, vejamos por exemplo os magníficos trabalhos de James Turrel, sobre o espaço e a luz que o habita. Na difícil tarefa de a esculpir, leva-nos à perceção da força com que as nossas experiências com a luz estão ligadas às nossas experiências com o mundo; o nosso corpo alimenta-se de luz quer na sua forma orgânica pela absorção vitamina D, quer pelo seu forte relacionamento com o equilíbrio emocional, para além das conotações com o cinema, a pintura e outras manifestações visuais. Turrel induz-nos através das suas esculturas espaciais e luminosas este facto: a luz pode ser tão valiosa como o ouro, a prata, pinturas ou objetos. Ainda exemplo de arte conceptual, a peça The impossibility of death in the mind of someone living, um tubarão conservado num enorme tanque de formol , concebida - mas não executada – em 1991 por Damien Hirst, o bad boy da arte contemporânea. Hirst surpreende o mundo artístico na sua fase mais criativa, para nos fazer chegar uma mensagem alusiva à forma como encaramos a morte, ou mais ainda, questionando se seremos capazes de a imaginar na nossa condição de seres vivos (corroborando assim uma inscrição gravada na lápide de Duchamp D’ailleurs c’ést toujours les autres qui meurent). Para esse efeito escolhe o tubarão animal predador entre os predadores, que simboliza o medo e a morte, mas ao mesmo tempo nos fascina. Pode-se assim concluir que a obra de arte vai muito mais além da representação do objeto - ou da sua posse. Uma grande parte daquilo que foi feito pós anos 60, e que encontra raízes muito atrás logo no dealbar do século XX - quando Rodchenko, tomado de uma reflexão, quiçá revelação momentânea, expôs um tríptico com o sugestivo título “A Última Pintura” ou “A Morte da Pintura” (1921) -, é reveladora dessa tendência, que apesar de não cumprida, várias vezes essa morte tenha sido anunciada. Manuela Hargreaves (artigo publicado no jornal Artes entre as Letras, Setembro 2015 – adaptação)