SOBRE A INTEGRAÇÃO DAS MINAS GERAIS À VIDA ECONÔMICA
DA COLÔNIA
ON THE INTEGRATION OF MINAS GERAIS TO THE ECONOMIC LIFE
OF THE COLONY
RESUMO
Neste artigo são identificados os principais condicionantes de ordem endógena e exógena concernentes ao processo de ocupação econômica da área de Minas Gerais na qual dominou a atividade de exploração do ouro e dos diamantes. Para tanto foram considerados três conceitos básicos, largamente desenvolvidos no corpo do texto: direcionamento, dimensionamento e estruturação. A basear a argumentação encontram-se fontes secundárias abrangendo estudos clássicos da historiografia e fontes primárias consubstanciadas em documentação oficial do período estudado, em relatos de viajantes e em obras históricas de caráter literário referentes à mineração desenvolvida no período colonial brasileiro.
Palavras chave: Minas Gerais, Mineração, Integração Econômica, Ocupação Territorial.
ABSTRACT
This article identifies the main endogenous and exogenous factors that conditioned the process of economic occupancy of the gold and diamond mining region in Minas Gerais. Three concepts, vastly explored in the text, based the study: direction, dimension, and structure. The work used official documents of the period studied, secondary sources from classic historiographical studies and primary sources based on travel journals and literary works set in mining regions of colonial Brazil.
Keywords: Minas Gerais, Mining, Economic Integration, Territory Occupation.
SOBRE A INTEGRAÇÃO DAS MINAS GERAIS À VIDA ECONÔMICA
DA COLÔNIA
Iraci del Nero da Costa
Professor Livre-docente aposentado da FEA-USP - Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo. E-Mail: <
[email protected]>.
Introdução
Procuramos, neste trabalho, identificar o elenco dos principais condicionantes da ocupação e povoamento da área de Minas Gerais na qual predominou a atividade mineradora.
A exploração econômica e o evolver populacional do Brasil no período colonial deveram-se a inúmeros fatores, tanto endógenos como exógenos. Relativamente a estes últimos evidencia-se, imediatamente, o destino político e econômico a que se votou a colônia. Marcaram-no, como sabemos, as práticas mercantilistas, consubstanciadas – no concernente às relações entre as metrópoles e suas colônias – por práticas econômicas que garantissem o maior lucro possível para as metrópoles e seus agentes. Define-se, pois, nos quadros do chamado antigo sistema colonial o próprio direcionamento emprestado à ocupação do território brasileiro, em geral, e das Minas Gerais, em particular. Em suma, cabia ao Brasil Colônia propiciar ganhos aos empreendedores metropolitanos, produzir sobretudo para o mercado externo, oferecendo bens tropicais e metais preciosos à economia europeia.
Ainda no plano exógeno há a considerar as condições sociais, demográficas e econômicas vigentes na Metrópole; ressalta aqui, por um lado, o comportamento da economia portuguesa e, por outro, o entrosamento do complexo econômico metrópole-colônia nos quadros da economia internacional.
Do ponto de vista endógeno salientam-se, primacialmente, o meio físico, a dotação relativa de fatores e a ocorrência de insumos, bem como as formas assumidas na produção ou na extração das riquezas naturais. A tais elementos soma-se outro componente de ordem interna, qual seja, a situação defrontada, em cada momento do tempo, pelas várias "economias" do Brasil Colônia.
Esses fatores compuseram, obviamente, um todo solidário e atuaram conjuntamente na conformação assumida pelo povoamento e aproveitamento econômico do território colonial, em geral, e da área mineratória, em particular. Sem embargo, parece-nos lícito – visando ao entendimento dos processos concretos verificados nas Gerais – referir os aludidos condicionantes aos conceitos de direcionamento, estruturação e dimensionamento. Assim, as políticas mercantilistas – entendidas nos marcos do antigo sistema colonial – direcionaram o povoamento e a exploração da área em tela. A estruturá-los compareceram as condições efetivas das ocorrências auríferas. Por fim, dimensionaram-nos, os quadros socioeconômicos vigentes na colônia e na Metrópole – compreendidos em suas especificidades, interdependência e articulação na economia europeia.
Antes de aprofundarmos as linhas analíticas ora bosquejadas faz-se mister, uma vez mais, denunciar a impossibilidade de se elidir o entrecruzamento dos fatores condicionantes acima enunciados.
Direcionamento
O direcionamento, derivado das políticas mercantilistas, corporificou-se na preeminência emprestada pela Coroa às atividades mais rentáveis propiciadas pela colônia, na elaboração dos regulamentos e normas orientadoras da ação dos agentes econômicos, no controle estrito da população, no tratamento privilegiado das práticas fiscais e nos óbices colocados ao desenvolvimento de setores produtivos que pudessem oferecer concorrência às lidas consideradas prioritárias.
Este rol, conquanto não exaustivo, exprime a rationale dos parâmetros norteadores da exploração das Gerais: extrair o mais avolumado montante de metais preciosos no menor espaço de tempo possível.
Mesmo quanto aos diamantes e demais pedras preciosas seria possível manter tal proposição, pois, as eventuais práticas inibidoras de sua extração visavam a evitar o aviltamento dos preços. Neste caso o "menor espaço de tempo possível" viu-se condicionado pelo comportamento do mercado desses bens. Descurar esta perspectiva representa grave anacronismo e pode levar a incompreensões grosseiras sobre o verdadeiro caráter do colonialismo moderno.
De sorte a clarificar as afirmações acima postas discorreremos, adiante, sobre alguns aspectos da lide mineradora na área em apreço.
Parece-nos elucidativo, desde logo, o problema afeto ao tamanho das datas e à maneira de se as distribuir. Visando a estimular os descobertos, a extensão prevista para as datas tendeu a aumentar nos regimentos do século XVII.
Não nos escapa aqui o empenho da Coroa em criar estímulos dirigidos aos coloniais no sentido de levá-los a procurar os metais preciosos. As promessas de honras e mercês apareciam como forma de se confiar à iniciativa particular a tarefa de descobrir as jazidas pelas quais tanto se anelava. A título ilustrativo transcrevemos duas cartas régias concernentes ao problema em foco. A primeira, datada aos 27 de setembro de 1664, endereçou-se aos juízes, vereadores e ao procurador da Câmara de São Paulo; a outra, com data de 18 de março de 1694, foi dirigida ao Governador e Capitão Mor do Brasil. "Depois que tomei posse de Governe destes meus Reinos, nenhuma outra coisa mais desejo senão que meus vassalos logrem as utilidades, que lhe podem fazer alcançar um negócio feliz; e porque este poderão vir a ter os moradores dessa capitania se aplicarem ao descobrimento das minas, que tanto se desejam fui servido enviar a ela a Agostinho Barbalho Bezerra, considerado ser natural desse Estado e que, como tal, mostra particular desejo dos aumentos dele, por essa experiência, que tenho do bem, que até agora me é servido, me faz confiar que assim o fará em tudo. Ele vos dirá o que convém para esse efeito, e vos encomendo vos disponhais, e animeis, a tratar dele, sendo certos, que se conseguir o fim, hei de fazer honras e mercês que merecerdes, e muito particular aos que neste serviço se sinalarem, fazendo-os acrescentar nos ofícios, e lugares, que forem necessários para a boa administração das minas, segundo a qualidade de cada um, e conforme o zelo, que mostrar nesta diligência, que a todos, e a cada um em particular, hei de remunerar." Apud FERREIRA (Waldemar Martins), História do Direito Brasileiro, Max Limonad Editor, 1956, São Paulo, tomo IV, p. 201-202.
"Se bem que muitas investigações já tenham sido feitas para descobrimento das minas, das quais se diz existirem, que todas, porém, não corresponderam às esperanças, principalmente ao tempo do Governador D. Afonso Furtado de Mendonça, contudo não deveis negligenciar de prosseguir nessas descobertas, e como as mercês e prêmios sempre animaram os homens a dedicar-se às empresas mais difíceis, prometereis em meu nome carta de nobreza e uma das três ordens militares àquelas pessoas que de livre vontade tencionem fazer descobertas de ouro e prata. Os quais, descobrindo uma mina rica, esta pertencerá ao inventor que pagará o quinto ao Real Tesouro, como já foi dito. Sem embargo, me reservo determinar se uma mina é rica e se o inventor merece as recompensas prometidas. No caso que se apresentem pessoas que desejam me prestar serviços, deveis animá-las, fazendo-lhes esperanças de mercês que se podem esperar da minha generosidade, sem que contudo lhes indiqueis quais sejam". Apud ESCHWEGE (W. L. von), Pluto Brasiliensis, Ed. Nacional, São Paulo, s/d, il., (Brasiliana, Biblioteca Pedagógica Brasileira, vol. 257-A), 2o. vol., p. 164-165. Identificada a área aurífera de Minas Gerais, introduziu-se significativa alteração nas normas reguladoras da atividade mineradora mediante o "Regimento dos Superintendentes, guarda mores e oficiais deputados para as minas de ouro, de 19 de abril de 1702" – diploma legal a reger as atividades mineradoras por todo o século XVIII.
"Ao nosso ver, [afirma Alice P. Canabrava] a feição mais importante e característica da legislação de 1702 está no modo da repartição das terras de mineração. Abandonando o critério de dimensões fixas, que caracterizava os preceitos anteriores, consagrou a força de trabalho como fator determinante da extensão das datas. A legislação discriminava de início os que possuíam de 12 escravos para cima, dando-lhes direito a uma data inteira; àqueles cujos escravos se contavam em menor número caberiam duas braças e meia por escravo [...] Nas partes de sobejo faziam-se novas distribuições, sempre na base prevista de duas braças e meia por escravo, atendidos primeiramente os mineradores de 12 escravos para cima. Contudo, pelo fato de que, 'sendo prejudicial repartirem-se as minas somente entre os poderosos, ficando muitos pobres sem elas, e sucede ordinariamente por não poderem lavrar, que não é somente em prejuízo dos meus vassalos mas também dos meus quintos, pois podendo-se tirar logo se dilatam com se não lavrarem as ditas datas, havendo ficado de meus vassalos sem elas', somente se concedia nova data na mesma exploração, depois que se tivesse lavrado a primeira."
ANTONIL (André João), op.cit., p. 98-99.
A escolha dava-se por sorteio "para que não haja queixa nem dos pobres nem dos ricos por dizerem que na repartição houve dolo repartindo-se a uns melhor sítio que a outros por amizade ou despeito."
"Regimento dos Superintendentes, Guarda-Mores e Mais Oficiais, Deputados para as Minas de Ouro Assinado por S. Majestade a 2 de abril de 1702", in ESCHWEGE (W. L. von), op.cit., 1o. vol., p. 168-169.
Patenteia-se, pois, a preocupação de integrar, à atividade exploratória, o maior número de mineradores e de garantir-se, concomitantemente, o emprego pleno da força de trabalho disponível.
Sobra o tema, escreveu A. P. Canabrava: "É claro, parece-nos, o espírito que presidiu a feitura da lei, orientada no sentido de proporcionar ampla participação social nos descobertos, com o propósito de incrementar os proventos reais. Deste aspecto derivariam características especiais com respeito às condições econômicas e sociais dominantes nas áreas de mineração. Lembremos, porém, que a política da Coroa com respeito à distribuição das terras auríferas se constituía como uma réplica ao sistema vigente na distribuição das terras do meneio agrícola, que distinguia a grande lavoura, já analisado. Aqui, as terras de partido asseguravam ao lavrador de menores recursos participar dos lucros do sistema; lá, no granjeio das aluviões auríferas, com um escravo e os instrumentos rudimentares, qualquer um podia buscar os frutos das entranhas da terra". ANTONIL (André João), op. cit., p. 99.
"A regulamentação dos trabalhos da mineração aurífera [acrescenta a autora nomeada] proporcionava oportunidade a pessoas de todas as camadas sociais [...] Nestas condições do meio econômico e social, completamente distintas das que predominaram na formação da grande lavoura, a pequena empresa e a iniciativa individual tinham validade [...] Sem dúvida, trata-se de uma economia escravocrata, como já vimos. Mas, se os escravos dão a medida das explorações, há dificuldade também, aqui, em generalizar a grande exploração. Entre os mais velhos documentos publicados que informam sobre o número de escravos de que dispunham os mineiros, os do ano de 1717 mostram uma pluralidade de contribuintes com número insignificante de escravos, sendo raros aqueles em que os africanos se contavam às dezenas."
ANTONIL (André João) , op. cit., p. 103-104.
Consentâneo com desígnios e interesses do poder régio revelava-se o próprio ânimo dos mineradores ao perseguirem, inabalável e por vezes afoitamente, a máxima rentabilidade dos seus empreendimentos:
"Pelos cerros do Espinhaço, pisados e revolvidos muitas vezes, os mineradores se deslocavam com seus escravos, pondo em exploração novas catas, tão cedo a anterior dava mostras de declínio. O alto índice de reposição do escravo, sem falar na cobiça sem limites, condicionava os lucros da empresa à alta rentabilidade. Segundo escrevia Pedro Taques em 1700, os mineiros somente davam importância às pintas que proporcionavam rendimento de meia oitava para cima por bateia, pois havia ribeiros dos quais obtinham meia libra."
Idem, Ibidem, p. 103.
A mesma ilação pode-se haurir da Memória sobre a Capitania de Minas Gerais:
"Os montes são os verdadeiros pais dos metais, a natureza os formou nos seus centros e nas suas superfícies, e daqui rodaram para os rios [...] Poucos deles têm sido minerados como devem ser, e as suas entranhas ainda se não patentearam de todo aos seus mineiros por causa de um mau método de os lavrar. No princípio da descoberta das minas parece que um bom gênio guiava os homens: então houveram mineiros; vários montes se minaram como o de Vila Rica; e posto que estas minas não tinham toda a perfeição que se requeria, todavia isto bastou para que deste monte saíssem rios de ouro [...] O horror de soterrar um homem em uma mina por todo um dia, de se despedir ao nascer do sol da sua brilhante luz, e de só se guiar pelo fraco clarão de uma candea, de ouvir estalar a cada instante a montanha sobre a cabeça, e esperar a cada passo pela morte; parece que estas cousas foram desgostando pouco a pouco os homens do trabalho das minas, e enfim os determinaram por uma vez para a mineração dos rios. E com razão, nessas eras os rios também convidavam de sua parte aos homens, os seus cascalhos se achavam à mostra e sem entulhos, a mineração era mais fácil, e ao mesmo tempo também rica."
COUTO (José Vieira), "Memórias sobre a Capitania de Minas Gerais", Revista Trimestral de História e Geografia, Segunda Série, tomo quarto, Tipografia Universal de Laemmert, Rio de Janeiro, 1848, p. 302-303.
Outra faceta da problemática em tela, nos oferecem os óbices impostos à penetração de estrangeiros na área mineradora e a entrada indiscriminada de reinóis e coloniais. Sobreleva aqui, de um lado, a tentativa de evitar o conhecimento – por parte de forasteiros de outras nacionalidades – das reais condições e potencialidades das Gerais e, por outro, a preocupação de estabelecer rígido controle sobre reinóis e coloniais que, na falta de sólida administração e na presença ainda débil do poder do Estado, poderiam dar-se a desmandos, insubordinações e rebeldias.
Corroboram nossas assertivas as palavras de Sérgio Buarque da Holanda: "Na fase primeira e caótica do povoamento das Gerais, a administração reinol tentara em vão regular ou sustar de todo as correntes de forasteiros, que de todas as partas do Brasil e ainda da metrópole, assim como de terras estranhas rumavam para aqueles sertões em busca de riquezas. Correspondiam, tais tentativas, ao vivo empenho da Coroa de ver frustradas, tanto quanto possível, as atividades dos contrabandistas, que iriam redundar, com a fuga do ouro, em grave dano para a Fazenda da sua Majestade.
"Quase simultaneamente outras medidas eram adotadas com igual finalidade e sem melhor fruto. Chegou-se a mandar suspender em 1703 o descobrimento de minas que pudessem existir nas vizinhanças dos portos de mar, atraindo a cobiça de inimigos...
"Na mesma era proibia-se ainda a mineração nos distritos da Jacobina, na Bahia. O interdito é renovado em 1714 e, em 1719, como não fosse rigorosamente cumprido, ordena-se às autoridades locais sua 'inviolável execução', empregando, se preciso, força militar. Caso faltasse às ditas autoridades poder bastante para impedir que se tirasse ouro daquelas partes, caber-lhes-ia ordenar, sob graves penas, aos lavradores de mantimentos, que os não vendessem e nem dessem aos mineradores, ‘para que a falta deles os faça largar os lugares em que estiverem minerando e retirar-se’.
"Renovam-se na mesma ocasião, e mais tarde, as proibições aos estrangeiros da virem às conquistas de Portugal ou morarem nelas. Informado de que, a despeito dessas ordens, muitos tinham passado e continuavam a passar em grandes números, não só para habitar as praças marítimas, mas ainda o sertão e mormente as Minas, adota el-rei novas providências, em 1707, para a cumprimento de ordem. Todos os estrangeiros deveriam, sem remissão, ser despojados da terra, exceção feita da quatro famílias de ingleses e outras quatro de holandeses, que podiam residir na cidade da Bahia, por lhes ser concedida essa faculdade em tratados anteriores.
''As razões oferecidas para o ato prendem-se aos interesses dos vassalos, e ainda mais aos da Coroa e da Fazenda Real. Por um lado a presença desses estrangeiros parecia nefasta, por que viviam eles a fazer o seu próprio comércio, que era dos naturais do reino: já nisso a Coroa viria a ser prejudicada, uma vez que correndo os tratos pelas mãos de intrusos, não podaria ela deixar de padecer maiores descaminhos em seus direitos. O maia grave, porém, estava visto, que sendo o Brasil devassado por tal gente, acabariam ganhando informação das forças dele, disposições da sua defesa e capacidade dos portos e surgidouros, bem como das entradas das terras para as minas." HOLANDA (Sérgio Buarque de), "Metais e Pedras Preciosas", in HOLANDA (Sérgio Buarque de), (organizador), História Geral da Civilização Brasileira, tomo 1, 2o. volume, 3a. ed., DIFEL, São Paulo, 1973, p. 275-276.
Se a restrição imposta aos estrangeiros revela-se perfeitamente compreensível, podem restar dúvidas quanto às limitações colocadas a reinóis e coloniais, pois, tais medidas, aparentemente, contrapunham-se ao objetivo de se extrair o máximo possível de riquezas minerais do solo colonial. No entanto, facilmente se as supera caso atentemos ao desiderato efetivamente perseguido ao se instituírem os aludidos impedimentos: controlar a população, garantir os réditos régios, evitar o descaminho do ouro e o distraimento das lides às quais se dava primazia. Não havia, pois, conflito algum; ao contrário, práticas impeditivas e interesses metropolitanos harmonizavam-se integralmente. Vejamos, a respeito, a opinião de alguns autores coevos e hodiernos.
Afirma Sérgio Buarque de Holanda:
"No terceiro século do domínio português é que temos um afluxo maior de imigrantes para além da faixa litorânea, com o descobrimento do ouro das Gerais... E mesmo essa imigração faz-se largamente a despeito de ferozes obstruções artificialmente instituídas pelo governo; os estrangeiros, então, estavam decididamente excluídos delas (apenas eram tolerados – mal tolerados – os súditos de nações amigas: ingleses e holandeses), bem assim como os monges, considerados dos piores contraventores das determinações régias, os padres sem emprego, os negociantes, estalajadeiros, todos os indivíduos enfim, que pudessem não ir exclusivamente a serviço da insaciável avidez da metrópole. Em 1720 pretende-se mesmo fazer uso de um derradeiro recurso, o da proibição de passagens para o Brasil."
HOLANDA (Sérgio Buarque de), Raízes do Brasil, 7a. ed., José Olympio, Rio de Janeiro, 1973, il., (Coleção Documentos Brasileiros, vol. 1), p. 68-69.
As medidas inibitórias da emigração para a Brasil, mesmo a da 1720, a mais drástica de todas, resultaram inócuas. Pode-se pensar que as disposições limitativas tomadas "tardiamente", ou seja, quando já ia avançado o século XVIII, visavam a evitar a subida do preço da mão de obra em Portugal. Ocorre-nos, a respeito, a afirmação de Augusto de Lima Júnior: "Nesse ano [1720], tentou o Governo mais uma vez, e foi a última, refrear, de um modo decisivo, o fluxo da gente que lhe despovoava as campos e as cidades, desfalcando-lhe os elementos militares e a mão de obra nas faustosas construções de D. João V, que se via obrigado a importar operários estrangeiros, porque os seus próprias súditos fugiam em massa para o Brasil". LIMA JÚNIOR (Augusto de), A Capitania das Mimas Gerais, Itatiaia e EDUSP, Belo Horizonte/São Paulo, 1978, (Reconquista do Brasil, vol. 51), p. 37.
Baseado em correspondência oficial de D. João de Lencastre à Coroa (Bahia, 12 de janeiro de 1701) escreveu C. R. Boxer:
"O perigo principal, explicava [D. João de Lencastre], era que as hordas de aventureiros que enxameavam agora nas regiões mineiras, levando 'uma vida licenciosa e nada cristã', transformassem rapidamente aquele distrito num 'valhacouto de criminosos, vagabundos e malfeitores', que poderiam, facilmente, pôr em perigo todo o Brasil, se manifestassem a mesma propensão para amar a liberdade demonstrada pelos paulistas. Outro, e mais iminente perigo, estava na atração fatal exercida pelos terrenos auríferos em pessoas que, a não ser por aquilo, se teriam contentado em cultivar os principais produtos brasileiros, açúcar e fumo. Além da grande imigração de brancos para a zona de mineração, o número de servos e escravos negros que acompanhavam seus senhores ainda era maior. A carência da mão de obra já se estava fazendo sentir na Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro, 'e se faria também sentir em Portugal se lhe não acudisse a tempo'. E, derradeiro argumento, não o menos importante, falava na dificuldade de cobrar o pagamento dos quintos, ou as quintas partes reais, daqueles mineiros intratáveis e incontroláveis, em tão remota e atrasada região do País."
BOXER (C. R.), A Idade de Ouro do Brasil, 2a. ed., Ed. Nacional, São Paulo, 1969, (Brasiliana, vol. 341), p. 65. "Outra medida restritiva proposta par Dom João da Lencastre em 1701, dizia que não se consentisse a quem quer que fosse a ida para as minas sem um passaporte assinado pelo Governador-geral, na Bahia, ou pelos governadores do Rio de Janeiro e de Pernambuco. E tais passaportes só seriam outorgados a pessoas idôneas e de posses. Tal medida foi realmente adotada pela Coroa, mas sua imposição também se mostrou bastante impraticável". BOXER (C. R.), op.cit., p. 66.
Lemos ainda na Idade de Ouro do Brasil:
"Os primeiros governadores de Minas Gerais foram, geralmente, enfáticos em sua condenação dos homens brancos sob seu governo, descrevendo-os como turba de truculentos, velhacos de baixa extração, prontos para explodir em franca revolta, a qualquer momento. Um dos governadores mais simpáticos e mais populares, Dom Lourenço de Almeida, explicava à Coroa, em 1722, que a maior parte daqueles homens era constituída de moços solteiros, larga proporção dos quais vinha de imigrantes recentes, chegados de Portugal. Já que nada tinham a perder 'por ser o seu cabedal pouco volumoso, por consistir todo em oiro, nem mulher nem filhos que deixar, não só se atrevem a faltar à obediência e às justiças de Vossa Majestade, se não também em cometerem continuamente os mais atrozes delictos, como estão sucedendo nas minas' [Despacho de Dom Lourenço de Almeida, de abril de 1722]. Acusação idêntica foi feita doze anos mais tarde, por Martinho de Mendonça, que assegurava serem os primeiros habitantes daquela indisciplinada capitania, os 'paulistas, acostumados à violência e soltura, e Portugueses de baixíssima extração, sem cultura' [Despacho de Martinho de Mendonça, de 1734]. O Conde de Assumar, que governou Minas Gerais de 1717 a 1721, ainda foi mais depreciador, descrevendo os mineiros como a escória, 'como até os chamados grandes quasi todos foram criados ao leite da servidão' [opinião de Assumar em "Discurso Histórico e Político."]"
Idem, Ibidem, p.184-185.
Os próprios dispositivos adotados pela Coroa visando a impedir a ida de moças brancas do Brasil para Portugal (Provisão de 1-3-1732 e Carta Régia de 14-3-1732) respondiam à necessidade de desarmar o espírito turbulento dos jovens imigrantes lusos: "Conforme confessava Dom Lourenço de Almeida [Despacho de julho de 1731], se pudessem casar com mulheres de sua própria condição, e instalar-se, depressa se tornariam cidadãos respeitáveis e responsáveis, mas a carência aguda de mulheres brancas não permitia que a grande maioria deles fizesse tal coisa."
Idem, Ibidem, p.185.
A desconfiança da Coroa abrangia, também, mercadores e eclesiásticos.
"Já no artigo XIV do regimento de 19 de abril de 1702 procurava acautelar-se Sua Majestade contra os riscos que podiam seguir-se do negócio dos gados vendidos nas Minas. Porque, diz o legislador, 'como o que se vende é a troco de ouro em pó, toda aquela quantia se há de desencaminhar, e porque esta matéria é de tão danosa consequência, é preciso que neste particular haja toda cautela' [...] Ao superintendente e ao guarda-mor cabia ainda o cuidado de lançar fora das minas 'todas as pessoas que nelas não forem necessárias, pois só servem de desencaminharem os quintos e de gastar os mantimentos aos que lá são precisos."
HOLANDA (Sérgio Buarque de), "Metais a Pedras Preciosas", op. cit., p. 278-279.
Os paulistas, além de forasteiros oriundos de Portugal e de outros pontos da colônia, viram-se tentados pelos ganhos advindos da atividade comercial. Tamanha foi a atração exercida sobre os antigos descobridores e mineiros
"que o governador-geral D. Rodrigo da Costa é movido a escrever a Borba Gato, superintendente das Minas Gerais de ouro, no tom de quem quer machucar o ponto de honra daquela gente, esperando incliná-los a serviços, mais decorosos para eles próprios e mais proveitosos para a Coroa. Depois de chamar a atenção do bandeirante, nessa carta, de março de 1705, para as mercês de Sua Majestade aos que descobrem as minas ricas e tesouros dos seus reais domínios, recomenda-lhe que a manifeste àqueles que pretendem antes ser mercadores do que mineiros.
"Esperava que um simples aceno àquelas honras e mercês os conduzisse a lavrar o ouro [...] 'deixando o trato mercantil, de que nunca o brio dos Paulistas usou, senão agora, tornando-se de Martes valorosos em sáfios chatins, baixeza que certamente não cabe em ânimos tão generosos, como todo o mundo testemunha; e que tão bem souberam apertar o punho da espada, fazendo-se, com o seu brioso valor, conhecidos entre os mais fortes soldados' [...] são palavras do próprio D. Rodrigo."
Idem, Ibidem, p. 281.
Quanto aos religiosos, principalmente os frades, desde os primeiros descobertos auríferos viram-se denunciados como os elementos que mais contribuíam para o descaminho do ouro. Num documento coevo dizia-se:"é grande multidão de frades que sobem às minas, e que sobre não quintarem o seu ouro, ensinam, e ajudam os seculares a que façam o mesmo."
Anônimo, "Informação sobre as Minas da Brasil", in Anais da Biblioteca Nacional, vol. 57 (1935), Serviço Gráfico do Ministério da Educação, Rio de Janeiro, 1939, p. 184.
Vê-se, pois, claramente, a raiz econômica da proibição, por parte da Coroa, da permanência das ordens religiosas no território das Minas.
"Entre as acusações feitas por D. Pedro de Almeida a esses eclesiásticos consta a de sugerirem publicamente, nos púlpitos, que os vassalos de sua Majestade não tinham obrigação de contribuir com os direitos e mais despesas que deveriam pagar-lhe. O prelado [Bispo D. Francisco de São Jerônimo] não contestou, segundo parece, o que lhe fora dito. Respondeu mesmo que tinha procedido contra os religiosos assistentes nas Minas com excomunhões, de que eles, entretanto, não faziam caso, alegando que o bispo não era seu juiz competente e, por conseguinte, que de nada valiam suas censuras e ameaças.
"Para corrigir o mal, alvitrara D. Fernando de São Jerônimo uma solução prudente. Sugeria que o governador e capitão-general agisse contra os frades mais culpados de escândalos, para que o castigo servisse de escarmento aos timoratos. O conde, entretanto, acreditava que só uma decisão radical acabaria com os abusos. Dificultoso seria nas Minas separar os melhores dos outros, porque, dizia, 'por qualquer lado estão todos com mau procedimento, pois se algum há que vive com menos escândalo e se não engolfe com tratos ilícitos, poucos são os que não vivem alheios do seu instituto e em contratos e comércios indignos do seu caráter e entendo para mim não há frade que venha às Minas que não seja para usar da liberdade que nos seus conventos tem suprimida" [...] Em 1738 uma ordem régia ao governador da capitania determinará mesmo a prisão de todos os religiosos que estiverem nela 'sem emprego ou licença.'"
HOLANDA (Sérgio Buarque de), "Metais e Pedras Preciosas", op. cit., p. 277-278. A respeito da mesma questão veja-se: COELHO (José João Teixeira), ''Instrução para o Governo da Capitania de Mines Gerais", in R.A.P.M. (abreviatura para: Revista do Arquivo Público Mineiro), ano VIII, fascículos 1 e 2, Imprensa Oficial de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1903, p. 447-451 e PIZARRO E ARAÚJO (José de Souza Azevedo), Memórias Históricas do Rio de Janeiro, 8o. vol., tomo II, Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1948, (Biblioteca Popular Brasileira - XI), p. 267-268.
Correlatamente, a própria Coroa "não busca estimular vivamente as plantações, que podem desviar braços da produção principal e mais rendosa para sua Fazenda."
HOLANDA (Sérgio Buarque de), "Metais e Pedras Preciosas", op. cit., p. 281-282. Neste rol entram as proibições ao cultivo da cana e à feitura de aguardente bem como as posturas contra a indústria do tabaco e a criação de muares em Minas Gerais. A respeito desta última questão escrevia, aos 30 de agosto de 1773, D. Luís Antônio de Souza para o Marquês de Lavradio (Vice-Rei do Estado):
"À mesma Capitania de Minas Gerais, imagino eu, serão prejudiciais para o futuro esses estabelecimentos porque, achando os povos outros empregos mais fáceis de ganhar a vida com menos trabalho e menos escravatura do que empregam na extração do ouro, poderá ser que vão pouco a pouco abandonando este utilíssimo trabalho trocando por aquele menos laborioso e mais seguro, o que lhe será de grande inconveniente, para o Real Erário e para todo o Estado em geral."
Apud SIMONSEN (Roberto C.), História Econômica do Brasil (1500~1820), 6a. ed., Ed. Nacional, São Paulo, 1969, il., (Colação Brasiliana - Grande Formato, vol. 10), p. 193.
De outra parte, a atitude da Coroa com respeito aos engenhos destinados a destilar aguardente oferece-nos exemplo palmar da conjugação de práticas mercantilistas – proteção dos produtos oriundos da Metrópole – com o controle dos habitantes da área mineira e com a preocupação em garantir o maior número possível de braços para a atividade exploratória.
A respeito do açúcar e engenhos em Minas veja-se: COSTA FILHO (Miguel), "Engenhos e Produção de Açúcar em Minas Gerais", Revista de História da Economia Brasileira, ano 1, julho de 1953, n. 1, São Paulo, p. 42-50 e, do mesmo autor, A Cana-de-Açúcar em Minas Gerais, IAA, Rio de Janeiro, 1963, il., 432 p.
Segundo José João Teixeira Coelho,
"logo que as Minas foram descobertas, e se entraram a povoar, se fez nelas um grande número de Engenhos de destilar água ardente de Cana [e adita ter sido o Rei] informado de que estas Fábricas eram prejudiciais à Real Fazenda, porque nelas se ocupavam infinitas pessoas, que podiam empregar-se em outros Ministérios; e também constou ao mesmo Senhor, que as ditas Fábricas eram prejudiciais ao Sossego público o qual se perturbara com as desordens causadas pelas bebidas dos negros."
COELHO (José João Teixeira), "Instruções para o Governo da Capitania de Minas Gerais", op. cit., p. 558. São ainda de J. J. Teixeira Coelho as seguintes palavras: "Os prejuízos destas Fábricas são evidentes, porque os Negros embebedam-se, e fazem mil distúrbios, e os Escravos, que trabalham nelas, podiam empregar-se na extração do Ouro. Na Capitania de Mines somente se deve trabalhar nas Lavras, e na cultura das terras, que produzem os gêneros necessários para o sustento dos Povos; e as águas Ardentes de Cana devem ir para Minas, das Capitanias de São Paulo, e do Rio de Janeiro, onde não há ouro: é certo que deste modo hão de ser mais caras, mas assim mesmo é conveniente pare que os negros não possam beber tanta, e para que não sejam tantos os bêbados". COELHO (José João Teixeira), op.cit., p. 559.
Em função dos problemas apontados a Coroa resolveu, por Ordem de 18 de novembro de 1715, para o Governador de São Paulo e Minas, D. Brás Baltasar da Silveira, "que enquanto S. Majestade, não toma Resolução sobre esta matéria, se não consinta que se levantem mais Engenhos."
Título 24, Engenhos – "Coleção sumária das próprias Leis, Cartas Régias, Avisos e ordens que se acham nos livros da Secretaria do Governo desta Capitania de Minas Gerais, deduzidas por ordem e títulos separados, in R.A.P.M., ano XVI, vol. 1, Imprensa Oficial de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1911, p. 462. O Conde de Assumar, em Ordem de 3 de junho de 1718, chegou mesmo a proibir o plantio da cana de açúcar.
Cf. "Cartas, Ordens, Despachos, Bandos ou Editais do Governador das Minas Gerais – D. Pedro de Almeida e Portugal (Conde de Assumar)", in BARRETO (Abílio Velho); "Sumário do Códice n. 11, Cartas, Ordens, Despachos e Bandos do Governo de Minas Gerais (1717-1721)", R.A.P.M., ano XXIV, vol. II, Imprensa Oficial de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1933, p. 461.
As restrições visavam não só a evitar a fuga de braços úteis nas minas e as desordens, mas, também, a proteger a aguardente fabricada na Metrópole; em 26 de março de 1735 exarava-se Ordem ao Governador "para informar do prejuízo que fez ao consumo das Águas Ardentes do Reino, o estabelecimento dos Engenhos, e Engenhocas, que há em Minas."
Título 24, Engenhos – "Coleção sumária das próprias Leis...", op. cit., p. 462.
As mesmas razões que deviam contrariar, segundo J. J. Teixeira Coelho,
"as fábricas de aguardente pareciam-lhe militar de certo modo contra a indústria do tabaco. O cultivo deste produto podia fazer-se nas Capitanias do Rio e de São Paulo, não em Minas, e agora vem o motivo decisivo para abandonar sua lavoura e algumas outras que importassem em sacrifício para a atividade mais rendosa em tais lugares. É que o 'grande número de escravos' que se dedicavam ao plantio e benefício do fumo 'podia empregar-se', diz, 'na extração do ouro, em utilidade do real quinto e dos direitos das entradas que se pagam nos registros.'"
HOLANDA (Sérgio Buarque de), "Metais e Pedras Preciosas", op. cit., p.291.
Justamente nos marcos das políticas mercantilistas – tão eloquente e meridianamente evidenciadas acima – devem-se entender os óbices postos à entrada de escravos na área mineradora.
Ao que nos parece não houve, desde logo, por parte da Coroa, uma avaliação exata das potencialidades da economia mineira do Brasil Colônia. Não se alcançou, portanto, nos seus albores, plena consciência da sua rentabilidade e possível peso relativo frente aos ganhos proporcionados pelos demais produtos oferecidos pelo empreendimento colonial. Ao que tudo indica, levados pela frustrante experiência pretérita, subestimou-se, de início, a mineração e se a colocou em segundo plano vis-à-vis as culturas desenvolvidas na área litorânea. Segundo C. R..Boxer:
"Alguns anos se passaram antes que a Coroa e seus conselheiros compreendessem integralmente a importância da corrida do ouro em Minas Gerais. Quando isso aconteceu, tiveram eles sua principal preocupação tentando controlar o movimento de gente que se dirigia para aquela região e impedir o declínio das lavouras de açúcar e fumo. Em março de 1701 a Coroa ainda tinha uma noção muito vaga do que se estava passando nos distritos mineiros, e Dom João de Lencastre foi solicitado a enviar um relatório da situação ali, de forma que a Coroa pudesse resolver quanto à sua futura política, à luz da informação assim recebida. A correspondência oficial desse período reflete mais preocupação com o problema de monopólio do fumo do que com a produção de ouro em Minas Gerais."
BOXER (C. R.), op.cit., p. 77-78.
Porém, na medida do acumulo de informações e da chegada dos carregamentos
Não devemos descurar aqui a crise por que passavam a economia metropolitana e os produtos coloniais, bem como as pressões exercidas sobre a balança de pagamentos de Portugal, temas aos quais voltaremos no correr desta estudo. as atividades da marinha viram-se deslocadas, no âmbito das preocupações metropolitanas, pela lide mineratória: "Quando a Coroa e seus conselheiros compreenderam, tardiamente, a extensão e a permanência daqueles novos campos auríferos, resolveram modificar sua declarada política de subordinação dos interesses das minas aos das plantações de açúcar e fumo."
BOXER (C. R.) , op. cit., p. 82.
Nesse quadro deve-se, pois, entender os aludidos óbices à passagem de cativos para as Gerais:
"Em janeiro de 1701 a Coroa decretou que só 200 negros escravos poderiam ser importados anualmente da África Ocidental, via Rio de Janeiro, para as minas, e os outros mercados de escravos do Brasil tiveram proibição expressa de vender escravos aos mineiros. Tais restrições foram relaxadas por um outro decreto de março de 1709, mas, devido às reclamações dos senhores de engenho, a Coroa tornou a modificá-lo dois anos depois. O decreto de fevereiro de 1711 ordenava que os negros ocupados em trabalhos agrícolas não fossem vendidos para o serviço das minas, com exceção única daqueles que 'pela perversidade dos seus naturaes não sejam convenientes para o trato dos Engenhos e das suas lavouras' [Carta Régia de 27 de fevereiro de 1711] [...] Em 1703, a Coroa instituía uma cota de importação anual de 1.200 escravos africanos para o Rio de Janeiro, 1.300 para Pernambuco, e todos os outros para a Bahia, enquanto mantinha o limite existente de 200, em termos de reexportação para Minas Gerais. Também essa lei permaneceu letra morta [Carta Régia de 28 de setembro de 1703] e o sistema de cotas foi abolido, finalmente, em 1715 [Carta Régia de 24 de março de 1715].
Idem, Ibidem, p.67-68.
Já avançado o século XVIII, para que mais escravos pudessem ser dirigidos para o Brasil, Pombal proibiu sua ida para Portugal e estimulou a sua compra em Moçambique, mercado até então pouco explorado.
Cf. MENDES (Luís Antônio de O.), Memória a Respeito dos Escravos e Tráfico da Escravatura entre a Costa d'África e o Brasil, prefacio de José Capela, Publicações Escorpião, Porto, 1977, (cadernos "O Homem e a Sociedade - 26), p. 16-17.
A coerência no trato, por parte da Coroa, dos problemas suscitados pela necessidade de mão de obra nas Gerais, vê-se reafirmada pela taxação imposta ao deslocamento de escravos para aquela área. Assim, em 1711, lançou um direito adicional sobre os cativos que eram reexportados para Minas. Pelos oriundos de Angola dever-se-ia pagar a tarifa de seis mil reis, superior à arbitrada para os cativos originários da Costa da Mina (três mil reis).
"Me pareceu resolver que os negros que entrarem neste Estado [Brasil] vindos de Angola, e forem enviados por negócios para as Minas paguem de saída a seis mil réis a que chamam peça das Índias, e os lotados ao mesmo respeito, e os que forem da Costa da Mina, e se remeterem também para as Minas, paguem três mil réis por cabeça a que chamam peça, e os lotados na mesma forma, por serem inferiores, e de menos serviços que os de Angola". "Carta Régia estabelecendo novas providências sobra a venda e remessa de escravos Africanos para as Minas", datada aos 27 de fevereiro de 1711, in Documentos Interessantes, n. 49, Arquivo do Estado de São Paulo, 1929, p. 8. Em documento datado aos 28 de julho de 1714, o Governador-Geral da Bahia reformulava o tributo:
"Pela cópia do edital que com esta remeto será presente a Vossa Majestade ter-se dado cumprimento ao que foi servido ordenar por esta Provisão e como nela se determina que os negros que viessem de Angola para esta praça e dela fossem por negócio para as Minas pagassem à saída seis mil réis por cabeça, sendo peças da Índia e os da Costa da Mina a três mil réis por serem inferiores e de menos serviços que os de Angola, o que é tanto pelo contrario, que os que vêm da Mina se vendem por preço mais subido por ter mostrado a experiência dos mineiros serem estes mais fortes e capazes para aturar o trabalho a que os aplicam; o que me obrigou a consultar esta matéria com os Ministros, e pessoas de mais inteligência e resolvi que vista a equivocação que houve no valor de uns e outros negros pagassem todos igualmente quatro mil e quinhentos por cabeça e nesta forma interessa à Real Fazenda de Vossa Majestade, os mesmos direitos que importam os direitos de três e seis..."
Citado por Braz do Amaral, in Anais do 1o. Congresso de História Nacional, Rio de Janeiro, 1915, p. 676-677.
Eis-nos, pois, remetidos às questões concernentes ao fisco: fulcro das práticas mercantilistas da Coroa lusitana. Como assevera Francisco Iglésias, Portugal "fiscalizou apenas, montando máquina policial, aparelho de repressão, rede interminável de tributos. Na papelada oficial, a maior parte diz respeito à fiscalização. O Estado se realizava na função de tributar. E foi em torno dessa função que se teceu a vida da Capitania, com as ordens sucessivas, as medidas de forçar o cumprimento, a montagem da máquina estatal, o desagrado dos povos, que foi da simples burla ao contrabando e às lutas sangrentas. Um tributo teve mais significado e pode mesmo encarnar todo o sistema: o quinto, que chegou a adquirir fisionomia de entidade fantástica, Diogo de Vasconcelos acertou ao dizer que 'a historia dos tempos coloniais e a dos quintos se confundem. Se houvesse mesmo caso em que a parte pudesse ser igual ou maior do que o todo, era este'. Foi para a sua arrecadação que se criaram a burocracia de superintendentes, tesoureiros, escrivães, as casas de fundição, os registros nos caminhos de São Paulo, Rio, Bahia e Pernambuco. O quinto é responsável pela pronta montagem da máquina administrativa e ampliação das Terras da Nova Unidade. Como a cobrança não fosse fácil e apresentasse problemas contínuos, o governo não se fixou nunca em uma forma – da capitação passou à arrematação, depois às casas em que se fundia o ouro, voltou à capitação, mais tarde adotou as casas de fundição novamente. Não se encontrou fórmula adequada à cobrança. Ainda aí se manifesta hesitante a Coroa, sem uma linha definida; só teve constância em um ponto: no propósito de cobrar sempre e cada vez mais.
IGLESIAS (Francisco), "Minas Gerais", in HOLANDA (Sérgio Buarque de), (organizador), História Geral da Civilização Brasileira, tomo II, 2o. vol., livro IV, cap. III, 3a. ed., DIFEL, São Paulo, 1972, p. 367.
Centrada na arrecadação dos quintos devidos "não hesitava a Coroa, se necessário, em criar embaraços à própria colheita de ouro em terras onde se tornava difícil uma fiscalização eficaz. No Serro do Frio, por exemplo, onde as bateadas no ribeiro do Padre Frei Pedro da Cruz, em 1705, eram de libra e meia libra, chega-se, em dado momento, a ordenar que não haja cultura das lavras."
HOLANDA (Sérgio Buarque da), "Metais e Pedras Preciosas", op. cit., p. 277. Este fato parece tornar claro o objetivo visado pelos obstáculos e restrições aos quais nos referimos exaustivamente no correr deste artigo.
O "fiscalismo", subjacente ao mercantilismo português, aliado às dificuldades de tornar efetiva a cobrança dos tributos a recair sobre os mineradores induziram mudanças político-administrativas das mais relevantes. Diz-nos Sérgio Buarque de Holanda: "A circunstância do descobrimento das minas, sobretudo das minas de diamantes foi, pois, o que determinou finalmente Portugal a pôr um pouco mais de ordem em sua Colônia, ordem mantida com artifício pela tirania dos que se interessavam em ter mobilizadas todas as forças econômicas do país para lhe desfrutarem, sem maior trabalho, os benefícios."
Idem, Ibidem, p. 69.
A própria insubordinação dos ocupantes das Gerais e os choques dos primeiros descobridores com o elemento reinol adventício, atuaram no sentido de tornar indispensável a efetiva presença da força coercitiva e ordenadora do Estado.
"... os aventureiros que enxameavam pela região mineira permaneceram por mais de uma década afastados do controle efetivo das autoridades coloniais, apesar de duas extensas visitas que fez às minas de ouro o governador do Rio de Janeiro, entre 1700 e 1702. Se os mineiros se tivessem conservado unidos, podariam ter desafiado facilmente o controle efetivo da Coroe durante mais tempo, mas a eclosão, em 1709, da guerra civil entre os pioneiros paulistas e os recém-chegados, quase todos de origem europeia, deu oportunidade aos representantes da Coroa, no ano seguinte, de firmar sua autoridade. Mesmo assim, outra década se passou antes que a consolidação do controle da Coroa se efetivasse, com a supressão da revolta em Vila Rica". BOXER (C. R.), op. cit., p. 65. Não se deve ao acaso, pois, ter-se estruturado mais solidamente a vida civil, política e administrativa logo após a aludida guerra intestina:
"Para terminar a sangrenta luta emboaba só a instauração da máquina administrativa. E o Governo, em 9 de novembro de 1709, separou os distritos de São Paulo e Minas da Capitania do Rio, formando a Capitania de São Paulo e Minas do Ouro. A máquina administrativa tentava pôr fim às desordens da improvisação do início e às lutas de facções desejosas de supremacia. Ainda era pouco, no entanto. O poder da Coroa precisava estar mais próximo. Os chefes da nova unidade não podiam ficar em São Paulo, uma vez que os interesses e a rebeldia se localizavam no sertão. Deixando a sede, viviam em Minas. Ante o recrudescimento das paixões e a gravidade das revoltas, solução foi criar capitania no centro: o alvará de 2 de dezembro de 1720 emancipou Minas de São Paulo."
IGLÉSIAS (Francisco), "Mines Gerais", op. cit., p. 365-366.
Sob a égide dos novos rumos que se imprimiam à vida colonial deu-se o estabelecimento, nos primeiros anos da segunda década do século XVIII, de inúmeras vilas. Paralelamente delimitavam-se, em 1714, as três primeiras Comarcas de Minas Gerais; a repartição das terras que deveriam tocar a cada uma delas se a fez visando-se à arrecadação dos quintos do ouro. Destarte, a própria definição jurisdicional das grandes unidades componentes das Gerais viu-se marcada pelo fiscalismo régio.
Cf. MAGALHÃES (Basílio de) e CARVALHO (Feu de), "Estudos Históricos (Controvérsia)", in R.A.P.M., ano XXIV, vol. I, Imprensa Oficial de Minas Gerias, Belo Horizonte, 1933, p. 405-436.
Dimensionamento
Passemos agora à perquirição dos condicionantes do dimensionamento da ocupação e povoamento das Gerais.
Este conceito, o entendemos em termos do vulto alcançado pelo empreendimento minerador, da intensidade com que se explorou o metal precioso e, sobretudo, dos movimentos demográficos relativos aos deslocamentos populacionais reguladores tanto da empresa exploratória como do ritmo de seu desenvolvimento.
Impõem-se, antes do mais, dois problemas merecedores de qualificação. Em primeiro, faz-se necessário lembrar que grande parte dos condicionantes da estrutura socioeconômica das Gerais atuou imediatamente sobre o "dimensionamento" como aqui o definimos. Justifica-se, no entanto, a permanência deste último conceito porque existem fatores que, guardando certa independência com respeito à maneira pela qual se estruturou a sociedade mineira, operaram diretamente sobre o dimensionamento da ocupação e povoamento de Minas Gerais. A outra questão refere-se ao fato de que, ao discutirmos o processo acima aludido, necessariamente evidenciar-se-ão algumas das mudanças socioeconômicas ocorridas na Colônia em decorrência da atividade mineradora. Tais alterações, como já salientamos, derivaram-se do complexo de fatores condicionantes que estamos a identificar e não podem, portanto, prender-se a apenas parte deles. Esta última ressalva parece-nos importante porque parcela substancial das referidas transformações ver-se-á explicada no tópico subsecutivo ao vertente.
Colocadas essas observações, retornemos ao leito natural de nosso discurso. Como sabido, a atividade aurífera levou à ocupação do interior brasileiro; os limites teóricos fixados em Tordesilhas foram largamente ultrapassados. As áreas de ocorrência do ouro, afastadas do litoral e de baixa densidade populacional, exerceram tamanha atração sobre o espírito dos reinóis e colonos que, em pouco mais de noventa anos, o número de habitantes do Brasil viu-se decuplicado, concentrando-se no centro-sul – área que apresentava, anteriormente, população escassa e amplamente diluída – cerca de cinquenta por cento do contingente humano da colônia.
A interligação das áreas já ocupadas pelo colonizador europeu apareceu como primeiro elemento de integração economicosocial, ao mesmo tempo esboçava-se o mercado consumidor interno e intensificava-se o processo de urbanização, de divisão do trabalho e de especialização regional.
Como adverte Caio Prado Junior, os descobertos auríferos afetaram profundamente a vida da colônia projetando-se, ademais, na futura articulação econômica do Brasil: "O impulso desencadeado pela descoberta das Minas permitiu à colonização portuguesa ocupar todo o centro do continente sul-americano. É este mais um fator que precisa ser contado na explicação da atual área imensa do Brasil.
"As transformações provocadas pela mineração deram como resultado final o deslocamento do eixo econômico da colônia, antes localizado nos grandes centros açucareiros do Nordeste (Pernambuco e Bahia). A própria capital da colônia (capital mais de nome, pois as diferentes capitanias, que são hoje os Estados, sempre foram mais ou menos independentes entre si, subordinando-se cada qual diretamente a Lisboa) transfere-se em 1763 da Bahia para o Rio de Janeiro. As comunicações mais fáceis das minas para o exterior se fazem por este porto, que se tornará assim o principal centro urbano da colônia.
"De um modo geral, é todo este setor centro-sul que, graças em grande parte à mineração, toma o primeiro lugar entre as diferentes regiões do país; para conservá-lo até hoje. A necessidade de abastecer a população concentrada nas minas e na nova capital estimulará as atividades econômicas num largo raio geográfico que atingirá não somente as capitanias de Minas Gerais e Rio de Janeiro propriamente, mas também São Paulo. A agricultura e mais em particular a pecuária se desenvolverão grandemente nestas regiões. É de notar que o território das Minas propriamente (sobretudo das mais importantes localizadas no centro de Minas Gerais) é impróprio para as atividades rurais. O solo é pobre e o relevo excessivamente acidentado. Nestas condições, os mineradores terão de se abastecer de gêneros de consumo vindos de fora. Servir-lhes-á sobretudo, o sul de Minas Gerais, onde se desenvolve uma economia agrária que embora não contando com gêneros exportáveis de alto valor comercial – como se dera com as regiões açucareiras do litoral –, alcançará um nível de relativa prosperidade."
PRADO JÚNIOR (Caio), História Econômica do Brasil, Brasiliense, São Paulo, 5a. ed., 1959, p. 65-66.
Paralelamente ocorriam – como avançado acima – mudanças significativas na administração colonial, maior vigor e fortalecimento do Estado faziam-se necessários para controlar a economia, a cada passo mais complexa, e enquadrar uma população a crescer aceleradamente:
"É no século XVIII, no entanto, que se define com rigor a administração portuguesa, com o fortalecimento do Estado, antes dividido e frágil [...] Neste breve ensaio, não se pretende tratar deste aspecto, mas tão só realçar a novidade no quadro das instituições políticas, com seu fortalecimento ao longo de cem anos, na caracterização do que foi o Estado. Pretende-se, também, explicar o fato pela existência de um eixo em torno do qual gira o administrador, que são as minas de ouro, que condicionam direta ou indiretamente o período. Esse eixo é um dos responsáveis – sem dúvida o principal – pela centralização política com todas as suas consequências."
IGLÉSIAS (Francisco), "Minas Gerais, Pólo de Desenvolvimanto no Século XVIII", in Primeira Semana de Estudos Históricos (O Brasil Século XVIII - O Século Mineiro), Ponte Nova, Minas Gerais, 1972, p. 83-85.
A região das Minas Gerais desenvolveu-se no século XVIII como centro de intensa atividade, cuja influência se fez sentir nas várias economias da Colônia. Dos mais importantes é o fato de que o desenvolvimento da mineração vinculou-se à decadência da lavoura, atividade que até então havia monopolizado as energias do colonizador luso.
"A mineração teve na vida da colônia um grande papel. Durante três quartos de século ocupou a maior parte das atenções do país, e desenvolveu-se à custa da decadência das demais atividades. O fluxo de população para as Minas é desde o início do século XVIII considerável: um rush de proporções gigantescas, que relativamente às condições da colônia é ainda mais acentuado e violento que o famoso rush californiano do século XIX.
"Isto já seria o suficiente para desequilibrar a vida do país e lhe transformar completamente o aspecto. Em alguns decênios povoa-se um território imenso até então desabitado, e cuja área global não é inferior a 2 milhões de km2."
PRADO JÚNIOR (Caio), História Econômica do Brasil, op. cit., p. 65.
Evento de tamanha magnitude, além de repercutir nas atividades econômicas da Colônia, multiplicou o fluxo imigratório e, concomitantemente, inflectiu a direção do povoamento:
"A economia colonial brasileira havia se desenvolvido, até então, na zona litorânea. Os engenhos de açúcar ocupavam uma faixa de solos ricos, primitivamente cobertos de florestas, que abrangia apenas 30 a 60 km junto ao mar. As notícias que se propagavam sobre as descobertas nas Gerais, os rendimentos consideráveis das pintas atraíram para aquela área elementos da população de todas as partes da Colônia. O entusiasmo contagiou todas as camadas sociais. Nas frotas comprimiam-se centenas de reinóis e até estrangeiros se infiltraram nas entradas de roldão dos primeiros anos. O fenômeno, comum historicamente quanto ao papel polarizador de população dos achados auríferos, deslocou rapidamente para o interior da colônia o centro de gravidade do povoamento, localizado até então no litoral leste."
ANTONIL (André João), op. cit., p. 83.
Altamente relevantes mostraram-se, ademais, o processo de imigração e os movimentos migratórios, a concentração populacional em pequena área da qual decorreu, em aliança com outros fatores, o surgimento de vida urbana em moldes novos para os padrões até então vigentes na sociedade colonial brasileira, bem como as interações dos segmentos populacionais – livres, forros e escravos – entre si e de toda a população mineira com o meio físico, à base da atividade exploratória.
Quanto ao movimento imigratório dirigido para Minas coube significado dos mais expressivos ao afluxo do elemento africano. D. Rodrigo da Costa, Governador do Brasil, ao voltar à Europa, em 1706, "representava caminhar o Estado para a ruína total por faltarem os escravos, todos vendidos para as minas, mal chegavam aos portos."
AZEVEDO (João Lúcio de), Épocas de Portugal Econômico – esboços de história, Livraria Clássica Editora, Lisboa, 3a. edição, 1973, p. 323.
À afluência da mão de obra africana deve-se aliar a rápida concentração, na área mineratória, de grande contingente de livres e escravos oriundos do Reino e do próprio território colonial.
O mais eloquente testemunho desse fenômeno, legou-nos Antonil. No alvorecer do século XVIII, assim caracterizava, o jesuíta, as "pessoas que andam nas minas e tiram ouro dos ribeiros":
"A sede insaciável do ouro estimulou a tantos a deixarem suas terras e a meterem-se por caminhos tão ásperos como são os das minas, que dificultosamente se poderá dar conta do número das pessoas que atualmente lá estão. Contudo, os que assistiram nelas nestes últimos anos por largo tempo, e as correram todas, dizem que mais de trinta mil almas se ocupam, umas em catar, e outras em mandar catar nos ribeiros do ouro, e outras em negociar, vendendo e comprando o que se há mister não só para a vida, mas para o regalo, mais que nos portos do mar.
"Cada ano, vem nas frotas quantidade de portugueses e de estrangeiros, para passarem às minas. Das cidades, vilas, recôncavos e sertões do Brasil, vão brancos, pardos e pretos e muitos índios, de que os paulistas se servem. A mistura é de toda a condição de pessoas: homens e mulheres, moças e velhos, pobres e ricos, nobres e plebeus, seculares e clérigos, e religiosos de diversos institutos muitos dos quais não têm no Brasil convento nem casa."
ANTONIL (André João), op. cit., p. 263-264.
A Coroa, alarmada com o despovoamento decorrente desse processo emigratório indiscriminado, resolveu refreá-lo e passou a exarar decretos e dispositivos legais dos quais a própria frequência evidencia a inocuidade. Desses instrumentos, o mais eloquente e restritivo, parece ter sido a lei de 20 de março de 1720.
Lei de 20 de março de 1720: "Não tendo bastado, as providências dos decretos de 26 de Novembro de 1709 e 19 de Fevereiro de 1711, para obstar a que do reino passe ao Brasil a muita gente que todos os anos dela se ausenta, mormente da província do Minho, que sendo tão povoada já não tem a gente necessária para a cultura das terras, cuja falta é tão sensível, que se torna urgente acudir com um remédio eficaz à frequência com que se vai despovoando o reino"; resolveu, o rei, que "Nenhuma pessoa de qualquer qual idade poderá passar às capitanias do Brasil, senão as que forem despachadas com governos, postos, cargos ou ofícios, as quais não levarão mais criados do que a cada um competir conforme sua qualidade e emprego, e sendo os criados, em todo o caso, portugueses.
“Das pessoas eclesiásticas, somente as que forem como bispos, missionários, prelados e religiosos da religião do mesmo Estado, professos nas províncias dele, como também capelães dos navios que para ali navegarem.
“E das seculares, além das já referidas, só podarão ir as que, além de mostrarem que são portugueses, justificarem com documentos que ali vão a negócio considerável com fazendas suas e alheias, para voltarem, ou as que, outrossim, justificarem que têm negócios tão urgentes e precisos que se lhes seguirá muito prejuízo se não for acudir a eles.
“Só nestes termos, e depois de rigorosa averiguação judicial, se lhes poderá dar passaporte na Secretaria do Estado.
“Na hora de partida dos navios para o Brasil, e estando eles já à vela, se lhes dará busca, e serão presos todos os indivíduos encontrados sem passaportes, assentando-se praça aos que tiverem idade para isso e sofrendo os mais seis meses de cadeia e cem mil réis de multa. À chegada dos navios ao Brasil, e antes de comunicarem com a terra, repetir-se-á a diligência de busca; e quantos se encontrarem sem passaporte e não pertencerem à equipagem, de que haverá lista, serão remetidos para o reino.
"E porque estas providências de per si não bastam para atalhar a passagem de gente para o Brasil, a fim de as tornar mais eficazes há El Rei por bem que metade daquelas condenações seja para os denunciantes". Apud LIMA JÚNIOR (Augusto de), op. cit., p. 37-38. Mesmo com respeito a ela, revelou-se céptico João Lúcio de Azevedo: "Quanto tempo estaria em vigor a proibição não sabemos, e é de crer que, por mil modos iludida, se lhe reconhecesse em breve tempo a ineficácia."
AZEVEDO (João Lúcio de), op. cit., p. 311.
Por seu lado, o movimento migratório colonial, de grandes proporções, chegou a abalar a economia agrícola preexistente.
"Na borda marítima da colônia, o êxodo, motivado pela atração das minas, teve consequências deploráveis. Despovoavam-se as terras, não só da gente livre, que acorria à aventura, mas principalmente dos escravos, sem os quais não havia lavoura nem indústria possíveis. A cultura e fabricação do açúcar, que era a riqueza essencial do país, cessava em muitos lugares, porque os lavradores partiam com seus negros, ou os vendiam para serem levados às minas, por altos preços, de que não tinham sonhado em tempo algum. Mas, realizada a operação, impossibilitados estavam de substituir os trabalhadores perdidos, porque se lhes não ofereciam outros. Com os negros emigrava juntamente o pessoal de raça branca, a gente hábil dos engenhos, feitores, mestres, purgadores, carpinteiros das caixas, e outros, de ofícios necessários à indústria."
Idem, Ibidem, p. 322.
Evidencia-se, do acima exposto, o papel crucial dos movimentos migratórios de grandes contingentes populacionais na explicação do aqui chamado dimensionamento da ocupação e povoamento das Gerais. Acresce que tal deslocamento deu-se espontaneamente, contrariando mesmo os dispositivos legais desenhados para refreá-lo; a este respeito, lembramos os dizeres de representação do Conselho Ultramarino, dirigida ao rei em 1732:
"A fama dessas riquezas convida os vassalos do Reino a passarem-se para o Brasil e procurá-las e ainda que por uma lei, se quis dar providência a esta deserção, por mil modos se vê frustrado o efeito dela e passam para aquele estado muitas pessoas, assim do Reino como das ilhas, fazendo esta passagem ocultamente, negociando este transporte com os mandantes dos navios e seus oficiais, assim nos de guerra, como nos mercantes, ou com fraudes que se fazem à lei, procurando passaportes com pretextos e carregações falsas."
Apud, LIMA JÚNIOR (Augusto de), op. cit., p. 38.
A nosso ver, seria prova de extremo simplismo imputar tamanho deslocamento à ganância cega, ao puro espírito aventureiro em demanda de riqueza quimérica. As possibilidades reais de largos ganhos devem justificar, em grande parte, o afã acima denunciado, e ao qual tantos se vergaram. Mais ainda, as condições econômicas defrontadas por reinóis e coloniais certamente compuseram o rol dos condicionantes do evento em foco; cabe realce aqui à rentabilidade relativa das oportunidades econômicas abertas a uns e outros. Assim, os preços dos produtos exportados pela Colônia e a situação econômica interna de Portugal aparecem como elementos explicativos de alta significância. Outro fator relevante encontramo-lo na balança de pagamentos da Metrópole, cujos movimentos, sobretudo os deficitários, atuariam como reguladores do próprio empenho régio em promover a extração do ouro.
Há ainda a considerar o espectro de atividades que se ofereciam na área mineira, assim como as possibilidades de acesso ao maneio exploratório, sua lucratividade e exigência em termos de dispêndios frente às demais lides ensejadas tanto pela economia portuguesa como pela colonial.
Atenhamo-nos aos pontos acima enumerados.
"Na época em que o antigo anelo dos colonos e da mãe pátria principiava a realizar-se no interior de São Paulo, longe estava de florescente, em qualquer parte do país Brasílico, a situação econômica. A riqueza principal, que era o açúcar, atravessava uma quadra de desvalia. Abatidos os preços pela competência estrangeira, diminuíra a exportação portuguesa, tolhida ao mesmo tempo pela política fiscal das nações com colônias na América, que de consumidores do gênero do Brasil passavam a produzi-lo, e o protegiam por direitos de importação proibitivos. Por esta causa, os negociantes, que abasteciam a terra das mercadorias da Europa, preferiam levar o retorno em moeda, de valor certo, a empregá-lo em produtos, sujeitando-se à perda eventual."
AZEVEDO (João Lúcio de), op. cit., p. 328.
De um lado, pois, os produtos tradicionalmente oferecidos pelos portugueses tinham seus preços reduzidos e, concomitantemente, verificava-se cadente o quantum exportado, por outro, exigia-se o pagamento das importações portuguesas em numerário, fato a tornar ainda mais difíceis as condições econômicas defrontadas pelo complexo metrópole-colônia. Tal crise precede, pois, os descobertos auríferos no Brasil.
"Nos meados do século XVII, os holandeses, expulsos do Nordeste do Brasil onde se queriam assenhorear do açúcar, do tabaco e do gengibre, transplantam as técnicas brasileiras para as Pequenas Antilhas. Os franceses e ingleses, também estabelecidos neste pequeno mundo da pirataria, com uma população fracamente hierarquizada que nas suas pequenas explorações apenas se entrega à cultura do anil e de alguns gêneros alimentícios, igualmente aproveitam desta transplantação de técnicas. Estas, de resto, no fim do século XVII e princípios do XVIII, melhoradas e aperfeiçoadas, chegarão ao México, onde por outro lado, já tinham aparecido pela via terrestre – pelo Peru.
"Não nos devemos admirar de que a implantação desta nova economia do açúcar e do tabaco no Mediterrâneo americano – de 1650 a 1670 – e a política de Colbert, tenham tido consequências econômicas desastrosas para o comércio atlântico português. Os produtos portugueses veem-se expulsos dos mercados franceses, ingleses e holandeses. É verdade que ingleses, franceses e holandeses ainda carregam açúcar e tabaco em Lisboa, mas é para os venderem noutras partes; os seus mercados nacionais propriamente ditos estão perdidos para os portugueses. E é cerca de 1670 que esta falta se começa a fazer sentir em Lisboa. As existências acumulam-se nos armazéns; os produtos não se vendem; vendem-se por preço inferior ao do custo; e não só isso, mas também queda dos preços porque a oferta aumenta muito mais rapidamente que a procura.
"Vejamos o açúcar: em 1650 a arroba vendia-se, em Lisboa, a 3.800 réis; em 1659 primeira descida, 3.600 réis; em 1668, 2.400 réis e, portanto, uma baixa de 33% em 9 anos. E 20 anos mais tarde a arroba valerá 1.300 ou 1.400 réis, baixa, desta vez, de 41% (mas o ritmo é já mais lento).
"Passemos ao tabaco: em 1650, o preço, em Lisboa era de 260 réis o arrátel; em 1668 tinha descido para 200 réis e em 1688 caíra para 70 réis, ou seja, uma descida de 65% em 20 anos, mais forte do que a do açúcar.
"Ainda mais inquietante foi a quebra nos preços do cravo: em 1668 vendia-se, em Lisboa, o quintal a 18.000 réis e 20 anos mais tarde a apenas 5.000; neste lapso de tempo o preço desceu 72%.
"Surge aqui um problema: as investigações de Beveridge, de Hamilton, de Meuvret, provam que, a partir de 1620-1640 e até 1680, os preços desceram em toda a parte de maneira firme e contínua. A história dos preços portugueses seria apenas mais um caso deste movimento geral de longa duração no sentido descendente: enfraquecimento, descida, baixa dos preços e não queda , decadência , crise? – Mas as percentagens citadas acima levam-nos a preferir a interpretação dramática que aliás se impõe, se compararmos estes dados com a curva dos preços do trigo. Eis as médias quinquenais no mercado dos Açores, solidário do de Lisboa.
1659-1663 7.200 réis
1664-1668 7.840 "
1669-1673 6.280 "
1674-1678 6.960 "
1679-1683 7.680 "
1684-1688 7.680 "
"De resto, pode-se estabelecer que os preços da produção portuguesa não diminuíram, e há mesmo a registar uma alta nalguns deles, nomeadamente no dos escravos. Porque o desenvolvimento das culturas das Antilhas torna mais dura a concorrência para a compra dos Negros nas costas africanas (no Golfo da Guiné, os holandeses perseguem vitoriosamente os portugueses; em Angola o litoral está esgotado de homens e a caça ao escravo no interior faz subir o seu preço. Os lucros portugueses são apertados por este movimento de tenaz produzido pela baixa dos preços nas vendas, devida à concorrência das Antilhas, e pela alta ou, pelo menos, a manutenção das despesas, devida ou à concorrência nos mercados de escravos ou ao número excessivo dos produtores em face das possibilidades de colocação, de que resultou subir o custo da madeira, dos bois de trabalho, das caldeiras etc. Donde, disjunção nos preços, empolgados por dois movimentos contraditórios).
"Ao mesmo tempo, o abastecimento em prata sofre uma nova crise. A primeira situara-se cerca de 1625-1630; a segunda produz-se, precisamente, cerca de 1670-1680. E não é apenas a afluência do metal branco a Sevilha que diminui – mas ainda o fato de o comércio holandês se desenvolver noutras direções que não Setúbal e Lisboa. Assim essa corrente de prata que de Sevilha corria para Lisboa é em parte desviada, em parte diminui porque a fonte quase seca.
"E eis que esta crise é, simultaneamente, uma crise de açúcar, do tabaco e da prata."
GODINHO (Vitorino de Magalhães), "Portugal, as frotas do Açúcar e as frotas do ouro (1670-1770)", Revista de História, ano IV, n. 15, jul.-set. 1953, FFLCH-USP, São Paulo, p. 74-75.
Se, em 1690, a crise comercial estava em via de se extinguir, é forçoso reconhecer o quão combalidas saíram dela a Metrópole e a Colônia. Lembre-se, ademais, a falência da política de estabelecimento de manufaturas nos últimos anos do século XVII e a desarticulação, no primeiro meado do século XVIII, das poucas existentes. Por outro lado, a este tempo colocava-se dramaticamente a questão da balança de pagamentos. A necessidade de espécies revelava-se crescente. "Graças às moedas de ouro, podem conseguir-se no estrangeiro as mercadorias que de outra maneira teriam de se produzir no próprio país – ou então abster-se de as possuir. O deficit da balança comercial em 1713 ultrapassa largamente o terço a que já tinha subido em 1675; as moedas têm de tapar um buraco quase igual à metade da totalidade das importações."
GODINHO (Vitorino de Magalhães) , op. cit., p. 80.
"A exportação ou, como se usava dizer, a saca dos vinhos, tinha igualmente crescido, mas, por muito que aumentasse, o valor ficava nos melhores anos muito aquém do das importações. Nos anos anteriores ao tratado [de Methuen], as relações comerciais de Portugal com Inglaterra haviam tomado grande desenvolvimento. Em 1700 as exportações, em que entravam, ao lado do vinho, o açúcar, o pau-brasil e outros gêneros coloniais, excediam a 279 mil libras, quatro vezes mais que trinta anos atrás. Em 1715 passam a 333 mil libras, contra 625 mil de mercadorias recebidas. De 1730 a 40 andam as exportações por 400 mil libras anuais, as importações em um milhão. Depois disso, e tendo estas chegado a 1.200.000 libras e mais, não passou nunca o retorno de 400 mil nos anos mais favoráveis. O oiro das Minas, que através da Inglaterra se espalhava pela Europa, preenchia a diferença."
AZEVEDO (João Lúcio de), op.cit., p. 404-405. Sobre os efeitos do tratado de Methuen diz o mesmo autor: "Por muito vinho do Porto que bebessem os ingleses, mais ainda somavam, em fazendas e trigo e bacalhau, as vendas aos portugueses. No tráfico o saldo e favor da Inglaterra era enorme: duas vezes o valor das suas importações nos primeiros anos; três e quatro vezes ao diante, no período mais activo. Como havia de ser embolsado o credor, se não pelo oiro que o Brasil, consumidor de vulto, e da nação o principal, das fazendas ingleses, mandava à metrópole? De açúcar e tabaco, gêneros que mais avolumavam depois do metal precioso, não carecia já a Inglaterra, que os tinha de suas colônias. Os demais produtos da América somavam pouco. A exportação do oiro impunha-se como necessidade, e não conseguia o artifício das leis tolher-lhe a saída". AZEVEDO (João Lúcio de), op.cit., p. 421-422.
Por outro lado, a recuperação comercial ocorrida a partir de 1690 não parece ter sido suficiente para sanar os problemas decorrentes da crise que empolgava tanto a Metrópole como a Colônia.
"Em 1709 recorreu-se para alcançar dinheiro à venda de empregos. Alguns dos mais rendosos, Provedor dos Armazéns, Casa da Índia e Guiné, Provedores da Casa da Moeda, da Fazenda do Rio de Janeiro, e outros de categoria semelhante foram postos em arrematação [...] quatro anos depois, o agente secreto de Luís XIV em Lisboa descrevia-lhe em estado de penúria a corte, e no de pobreza a nação [...] Nesse mesmo ano houve necessidade de tirar do cofre dos defuntos e ausentes 150 mil cruzados para as despesas públicas, em que entravam as da Casa Real. Deviam-se às tropas onze meses de soldo, e magotes numerosos de soldados desertavam para Espanha. Não diferem no sentido as informações mandadas em 1715 pelo embaixador acreditado, abade Mornay, que sucedeu ao agente secreto."
AZEVEDO (João Lúcio de), op. cit., p. 371-372.
No Brasil, a economia açucareira, cuja decadência assenta-se na segunda metade do século XVII, fornecia à mineração braços e capitais: "A mineração ofereceu, também, um enorme mercado para os escravos e para o gado do Norte; e se proporcionou, em momento oportuno, um derivativo de alto rendimento para os elementos que trabalhavam deficitariamente na indústria do açúcar, passou, mais tarde, a prejudicá-la, quando, pela melhoria dos preços, os engenhos desejaram retomar sua antiga atividade."
SIMONSEN (Roberto C. ), op. cit., p. 264.
Outro fator condicionante a dimensionar o empreendimento minerador consubstanciou-se nas oportunidades que ele propiciava a coloniais e reinóis. Possibilitaram elas o acorrimento de dezenas de milhares de pessoas e funcionaram como polo de atração pelo qual deixaram-se arrastar, como dizia Antonil, "homens e mulheres, moços e velhos, pobres e ricos, nobres e plebeus, seculares e clérigos..."
Conforme Celso Furtado:
"O estado de prostração e pobreza em que se encontravam a Metrópole e a colônia explica a extraordinária rapidez com que se desenvolveu a economia do ouro nos primeiros decênios do século XVIII. De Piratininga a população emigrou em massa, do nordeste se deslocaram grandes recursos, principalmente sob a forma de mão de obra escrava, e em Portugal se formou pela primeira vez uma grande corrente migratória espontânea com destino ao Brasil. O facies da colônia iria modificar-se fundamentalmente.
"Até esse momento, sua existência estivera ligada a um negócio que se concretizava num número pequeno de grandes empresas – os engenhos de açúcar – sendo a emigração pouco atrativa para o homem comum de escassas posses. Transferir-se de Portugal para o Brasil só tinha sentido para aquelas pessoas que dispunham de meios para financiar uma empresa de dimensões relativamente grandes. Fora disso, a emigração deveria ser subsidiada e respondia a um propósito não-econômico. Na região açucareira, os imigrantes regulares limitavam-se a artesãos e trabalhadores especializados que vinham diretamente para trabalhar nos engenhos.
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"A economia mineira abriu um ciclo migratório europeu totalmente novo para a colônia. Dadas suas características, a economia mineira brasileira oferecia possibilidades a pessoas de recursos limitados, pois não se exploravam grandes minas – como ocorria com a prata no Peru e no México – e sim o metal de aluvião que se encontrava depositado no fundo dos rios.
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"No que respeita ao ambiente em que circula o homem livre – nascido na Metrópole ou na colônia maiores ainda são as diferenças da economia mineira com respeito às terras do açúcar. Nestas últimas, abaixo da classe reduzida de senhores de engenho ou grandes proprietários de terras, nenhum homem livre lograva alcançar uma verdadeira expressão social. Ao estagnar-se a economia açucareira, as possibilidades de um homem livre para elevar-se socialmente se reduziram ainda mais. Em consequência, começou a avolumar-se uma subclasse de homens livres sem positivo papel social, a qual em certas épocas chegou a constituir um problema. Na economia mineira, as possibilidades que tinha um homem livre com iniciativa eram muito maiores. Se dispunha de recursos, podia organizar uma lavra em escala grande, com cem ou mais escravos. Contudo, o capital que imobilizava por escravo ou por unidade de produção era bem inferior ao que correspondia a um engenho real. Se eram reduzidos os seus recursos iniciais, podia limitar sua empresa às mínimas proporções permitidas pela disponibilidade de mão de obra, isto é, a um escravo. Por último, se seus recursos não lhe permitiam mais que financiar o próprio sustento durante um período limitado de tempo, podia trabalhar ele mesmo como faiscador. Se lhe favorecia a sorte, em pouco tempo ascenderia à posição de empresário."
FURTADO (Celso), Formação Econômica do Brasil, 10a. ed., Editora Nacional, São Paulo, 1970, p. 73-76.
Eis arrolados, a nosso ver, os principais condicionantes do dimensionamento da ocupação e povoamento das Gerais. Restam-nos, a explorar, os fatores que atuaram sobre a forma como se articularam a sociedade e a economia mineira.
Estruturação
A ocupação e povoamento das Minas Gerais se nos apresentam, em grande parte, regulados pelas condições em que se exploraram o ouro e as pedras preciosas.
Para descrição minuciosa das formas de ocorrência de ouro e maneiras de explorá-lo veja-se: ESCHWEGE (W. L. von), Pluto Brasiliensis, Editora Nacional, São Paulo, s/d, il., 2 volumes, (Brasiliana, Biblioteca Pedagógica Brasileira, vol.. 257 e vol. 257-A), 377 p. e 469 p.; ANTONIL (André João), pseudônimo de João Antônio Andreoni, Cultura e Opulência do Brasil, Introdução e Vocabulário por A. P. Canabrava, 2a. ed., Ed. Nacional, São Paulo, s/d, (Roteiro do Brasil, vol. 2), 316 p. LATIF (Miran M. de Barros), As Minas Gerais, a Aventura Portuguesa, a Obra Paulista, a Capitania e a Província, A Noite, Rio de Janeiro, s/d, il., 208 p. Em cada momento relacionaram-se as condições geográficas, de um lado, e a maneira de recolhimento das riquezas minerais, por outro.
Em Minas, a ocorrência do ouro dá-se em terrenos do algonquiano (Séries de Minas e Itacolomi), numa faixa – correspondente à serra do Espinhaço – que se estende de sul a norte: da bacia do Rio Grande às proximidades das nascentes do Jequitinhonha. Ai concentrou-se o povoamento, cujos principais centros foram: São João d'El Rei, São José d'El Rei (hoje Tiradentes), Vila Rica (atual Ouro Preto), Mariana, Caeté, Sabará, Vila do Príncipe (agora Serro) e Arraial do Tejuco (a Diamantina de nossos dias – onde exploravam-se os diamantes). Em torno desse núcleo central surgiram outros, secundários: Minas Novas, ocupadas a partir de 1726; Minas do Rio Verde, exploradas desde 1720; Minas do Itajubá, por volta de 1723 e Minas do Paracatu, descobertas em 1744. Cf. PRADO JÚNIOR (Caio), Formação do Brasil Contemporâneo (Colônia), op. cit., p. 50-51. Para descrição pormenorizada dos descobertos auríferos veja-se: CANABRAVA (Alice Piffer), "Bandeiras'', in MORAES (R. B.) e BERRIEN (W.), (diretores), Manual Bibliográfico de Estudos Brasileiros, Gráfica Editora Souza, Rio de Janeiro, 1949, p. 492-526. Nesse trabalho a autora resenhou, entre dezenas de outras, as obras essenciais ao estudo de ocupação e povoamento de Minas Gerais; HOLANDA (Sérgio Buarque de), "A Mineração: antecedentes luso-brasileiros" e "Metais e Pedras preciosas", in HOLANDA (Sérgio Buarque de), (organizador), História Geral da Civilização Brasileira, tomo I, 2o. vol., 3a. ed., DIFEL, São Paulo, 1973, p. 228-310; LIMA JÚNIOR (Augusto de), A Capitania de Minas Gerais, Ed. Itatiaia (Belo Horizonte) e EDUSP (São Paulo), 1978, il., (Coleção Reconquista do Brasil, vol. 51), 140 p. Tomemos em conta, pois, o conceito aqui identificado como estruturação e que, a nosso juízo, em muito contribui para o entendimento da ocupação e povoamento das Gerais.
Os depósitos de aluvião – produto da atividade milenar das águas, a desagregar e a remover as partes leves das rochas decompostas impelem o ouro, mais denso, a acumular-se no fundo dos vales, no leito dos rios e na meia encosta dos morros – a par de se esgotarem com rapidez são facilmente exploráveis; este fenômeno levou as primeiras atividades extrativas
Vide ressalva colocada na citação acima, relativa à nota 9. a se localizarem nos rios, com o mínimo de aparelhagem, dependendo, o produto do trabalho, do maior ou menor número de escravos. Mesmo os "rosários" – almanjarras que punham a seco trechos previamente cercados dos rios – não constituíram utensilagem capaz de impedir o nomadismo dos mineradores. A exploração a seco efetuava-se rapidamente entre os meses de chuva, pois, as águas, engrossadas, arrebentavam as ensecadeiras inundando e destruindo o que se lhes anteparava.
Em pleno século XIX, Eschwege viu-se vencido pelas águas engrossadas dos rios: "Trabalhei durante quatro meses para estabelecer uma barragem de vinte metros de altura no ribeirão do Carmo, e, quando estava quasi terminada, veio, à noite, um temporal extraordinariamente violento, que engrossou o ribeirão e aniquilou a barragem até a base. Em virtude da aproximação do tempo das chuvas, nenhuma esperança tive de poder reconstruí-la logo no mesmo lugar, e, por isso, resolvi abandonar essas águas de regime incerto", ESCHWEGE (W. L. von), Pluto Brasiliensis, op. cit., p. 69-70. A falta de continuidade nos trabalhos vinha a facilitar o abandono de uma exploração por outra com maiores perspectivas de ganho.
Durante essa primeira fase o explorador vivia nômade e a população apresentava-se extremamente diluída. Centrados na atividade mais rentável os mineradores deixavam-se absorver completamente pelo trabalho nas aluviões; os períodos de grandes fomes, sincrônicos com a alta dos preços, geraram-se pela concentração dos recursos na tarefa mineratória. A falta de gêneros propiciou a primeira convergência das atividades, até então esparsas, e ensejou os grandes acampamentos ao longo dos rios. Esses primeiros núcleos abasteciam-se por tropas oriundas da Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro.
À medida que escasseava o ouro de aluvião os mineradores, antes limitados a explorar o leito dos rios, passaram a procurá-lo nos "tabuleiros", à margem daqueles, onde abriram as primeiras catas. Tal faina, já mais complexa, não conseguiu, contudo, fixar o homem; continuava-se a viver em acampamentos, abandonados tão cedo quanto migravam as catas.
Durante cerca de trinta anos explorou-se, precipuamente, o ouro de lavagem e abriram-se catas nos tabuleiros. Os primeiros povoados viviam a fase embrionária, caracterizada pelo comércio feito por tropas e com o concurso dos mascates que percorriam as áreas mineratórias.
Logo os exploradores começavam a subir pelas encostas dos morros à procura de ouro nas aluviões de meia encosta,as chamadas "gupiaras". Somente a partir desse momento o trabalho tendeu a estabilizar-se. Seu denominador comum foram as primeiras "catas altas", verdadeiras lavras pelo movimento de terra nelas efetuado.
No morro – onde inicialmente apenas se trabalhava na época das chuvas, pois, como avançado, as águas avolumadas impossibilitavam a atividade junto aos rios – concentraram-se os trabalhos, que se multiplicaram como razão direta do esgotamento dos leitos dos rios.
As explorações na meia encosta necessitavam de água, conduzida por canais que se estendiam por quilômetros. Instituiu-se, em 1720, o Regimento das Águas e a Guardamoria passou a conceder, também, datas de "águas minerais". Os regos, a contornar vales, a atravessar morros, a correr sobre extensos "andaimes" de pedra empilhada, eram verdadeiros aquedutos; os "mundéus" reservatórios enormes – apareciam como trabalhos de vulto a reclamar significativos investimentos em capital fixo. A exploração das grupiaras exigia estabilidade populacional e operava no sentido de consolidar os povoados anteriormente esboçados.
A contar de 1720 restavam poucos descobertos a fazer nos rios. Os mineiros, sem necessitar de novas concessões, subiram pelas encostas dos vales, colocadas junto de suas datas, até atingir o alto dos morros. Os trabalhes vultosos que o ouro de montanha exigia revelavam-se incompatíveis com a atividade errante dos primeiros mineradores. Os homens passaram a radicar-se à terra. Organizava-se a sociedade e justiça civil começava a firmar-se. Desde o fim da segunda década do Setecentos grande parte da população das Minas já não vivia nômade. A concentração e a estabilidade dos trabalhos levaram os senhores a construir suas casas próximo às minerações e avolumou-se a constituição de famílias regulares.
Junto das primeiras lavras, com o tempo, desapareceram as primitivas "casas de sopapo". Em seu lugar os mineradores levantaram seus casarões. Paralelamente, estruturavam-se os povoados como centro de gravidade das zonas mais ricas, nos quais os tropeiros pediam mais facilmente estabelecer-se como comerciantes; tais lugarejos definiam-se como retaguarda imediata da lide mineratória. O local da primitiva Capela – situada morro acima, bem à vista das várias minerações – já não servia como núcleo para as vilas em desenvolvimento.
O casario desceu para o vale à procura de local mais apropriado ao seu crescimento. Em cada área de maior densidade de mineração surgiu um núcleo urbano. Os senhores das lavras acabaram por instalar-se nesses povoados, embora continuassem a manter suas residências nas lavras. Os arraiais, originados da fixação do comércio, cresceram com o duplicar das moradas.
Como ressaltamos, o processo de povoamento verificado nas Gerais apresentou características próprias. Do ponto de vista da urbanização tratou-se de um fenômeno novo na Colônia. Voltada precipuamente à atividade exploratória, a população – quase toda concentrada nos povoados que se organizaram junto às lavras –, ficava na dependência dos fornecimentos de produtos de subsistência transportados de outros locais, que passariam a depender da área exploratória, na qual se constituía um mercado urbano vigoroso.
Gilberto Freire assim realça o caráter específico da formação mineira: "Minas Gerais foi outra área Colonial onde cedo se processou a diferenciação no sentido urbano. Nas minas, o século XVIII é de diferenciação intensa, às vezes em franco conflito com as tendências para a integração das atividades ou energias dispersas no sentido rural, Católico, castiçamente português."
FREYRE (Gilberto), Sobrados e Mucambos, Decadência do Patriarcado Rural e Desenvolvimento do Urbano, 2a. edição, José Olympio, Rio de Janeiro, 1951, (Coleção Documentos Brasileiros – 66) , 1o. vol., p. 119-120.
Vemo-nos, pois, frente a um feixe de problemas: vida urbana característica, diversificação de atividades, marcante presença do Estado, maior flexibilidade social, economia mais fortemente integrada, estabelecimento de interdependência regional e consequente estruturação de significativo mercado interno. Estes elementos articularam-se peculiarmente, dando origem a um sistema complexo do qual interessa-nos salientar, neste ponto de nosso trabalho, dois aspectos fundamentais: o caráter urbano da formação mineira e o diversificado conjunto de atividades econômicas, em geral, e artesanais, em particular, desenvolvidas na área em apreço. A sociedade mineira, como já frisamos,
"distingue-se da de outras áreas. Nas agrícolas, impõe-se a dicotomia de senhores e escravos, com mínimas possibilidades para os grupos médios que se desenvolvem inicialmente em Minas, pela diversificação econômica que leva a uma agricultura de subsistência, a atividades artesanais e manufatureiras, a comércio intenso, que tudo tem que ser comprado. Não há aqui a auto-suficiência das fazendas, de modo que o comerciante é indispensável. O mesmo motivo – economia mineratória – explica o processo de urbanização em Minas mais intenso que no resto do pais."
IGLÉSIAS (Francisco), "Minas Gerais, Pólo de Desenvolvimento no Século XVIII", op. cit., p. 98-99.
"Já se desenvolvera, no afã mineratório, uma fisionomia mais próxima do urbano em Minas do que nas outras capitanias. Daí um quadro mais diversificado de atividades, com maiores perspectivas de acesso a todos e menos discriminação entre setores: mais possíveis os grupos médios, consequentemente com o funcionalismo, os artesãos, os comerciantes – elementos indispensáveis à sociedade que se desenvolvera com a mineração.
"O caráter urbano da formação mineira é mesmo outra nota distintiva da Capitania. Enquanto em regiões como o Rio, Bahia ou Pernambuco a exploração de certo produto formava pequeno grupo em torno da fazenda, grupo que crescia lentamente, em Minas os agrupamentos humanos apresentavam logo certa densidade. Se a lavoura impunha o latifúndio, a pecuária exigia espaços bem amplos para a sua expansão. Não impunham a existência da cidade [...] Em regiões de economia essencialmente rural, sob o domínio de um senhor quase verdadeiro patriarca, corpo e alma das fazendas que se mantinham independentes, o Estado foi presença menos absorvente, às vezes até mesmo entidade vaga. A cidade era secundária, pobre e destituída de luxo ou de conforto, cheia de perigos e sem a relativa fartura dos núcleos rurais [...] Senhores e escravos viviam nos campos, e os grupos médios, característicos das cidades eram reduzidos. Assim foi para todo o país, com raras exceções, até avançado o século XIX. Já em Minas, a urbanização foi nota distintiva. O comum não era o senhor todo-poderoso, mas o núcleo urbano, com a máquina administrativa bem instalada...
"Apesar do alto número de escravos, haverá ponderáveis grupos médios, constituídos de funcionários, comerciantes, oficiais mecânicos."
IGLÉSIAS (Francisco), "Minas Gerais", in HOLANDA (Sérgio Buarque de), (organizador), História Geral da Civilização Brasileira, tomo II, 2o. volume, livro IV, cap. III, 3a. edição, DIFEL, São Paulo, 1972, p. 371.
A atividade exploratória operou, ainda, no sentido de articular, caracteristicamente, as relações entre senhores e cativos. Embora fadados a existência árdua e breve – resultante da labuta a que se os destinava – podiam esquivar-se de muitos maus tratos dada a possibilidade de utilizarem, contra seus donos, a arma da denúncia de fraudes fiscais; qualquer delação, mesmo infundada, podia causar sérios transtornos.
Por outro lado, o rendimento das lavras dependia, em grande parte, da diligência e boa vontade do trabalhador. Os escravos mais produtivos recebiam prêmios: "há senhores que, ao fim de umas tantas gramas apuradas pelo negro, consentem que este trabalhe o resto do dia para o seu próprio proveito. Nos contratos diamantíferos, o escravo que achar um diamante de certo tamanho obtém a liberdade."
LATIF (Miran M. de Barros), op. cit., p. 166.
Em Minas, defrontamo-nos com realidade diversa daquela das áreas voltadas precipuamente para a atividade agrícola.
"Se bem que a base da economia mineira também seja o trabalho escravo, por sua organização geral ela se diferencia amplamente da economia açucareira... a forma como se organiza o trabalho permite que o escravo tenha maior iniciativa e que circule num meio social mais complexo... Muitos escravos chegam mesmo a trabalhar por conta própria, comprometendo-se a pagar periodicamente uma quantia fixa a seu dono, o que lhes abre a possibilidade de comprar a própria liberdade."
FURTADO (Celso), op. cit., p. 75.
Em face do número crescente de alforrias a Coroa adotou medidas visando a inibir tal prática.
O rei "baixou a ordem desconsoladora e terrível, que não se alforriassem negros nas Minas sem justificação dos motivos em juízo, não somente por dinheiro", VASCONCELOS, (Diogo de L. A. P.) História Antiga das Minas Gerais (1703/1720), Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1948, (Biblioteca Popular Brasileira, vol. XXIV), 2o. vol., p. 244.
Os mineradores viam-se, com respeito aos cativos, frente a situação dilemática: por um lado tendiam a dispensar-lhes – dadas as condições de trabalho – bom tratamento, por outro, fazia-se necessária estrita vigilância para evitar fugas.
"Mas os escravos fogem muito. Os que logram escapar acham fácil subsistência maneirando, num córrego escondido, um ouro que não lhes é difícil negociar o que não acontece nos canaviais do norte, nem acontecerá mais tarde nas lavouras de café'', LATIF (M. M. de Barros), op. cit., p. 167. Apresentavam, no entanto, via de regra, fácies branda, delegando aos capitães do mato o lado antipático da ação repressora: "Os capitães do mato, agindo por conta dos Governos das Câmaras, permitem que os senhores de lavra usem de certa liberalidade junto aos negros e assim consigam, em troca, maior diligencia nos serviços [...] nas vilas, as cadeias – feitas sobretudo para abrigar o escravo fujão à espera de que o senhor o reclame, pagando ao capitão do mato o devido pela captura – tornam-se os maiores edifícios dentre o casario."
LATIF (M. M. de Barros), op. cit., p. 169-170.
O ouro condicionava, igualmente, o tônus e ritmo da sociedade mineira. O próprio juízo que se alcançava da vida social e das instituições a ele relacionava-se; movimento similar dá-se com respeito à percepção do meio físico circundante.
A euforia gerada pelos novos e contínuos descobertos, pela afluência, consubstanciaram-se, por exemplo, no Triunfo Eucarístico,
MACHADO (Simão Ferreira), Triunfo Eucarístico. Exemplar da Cristandade Lusitana, Oficina da Música, Lisboa, 1734. esfuziante símbolo da unidade de pensamento e ação de uma comunidade rica e em processo de crescimento econômico. Nele, Simão Ferreira Machado relata as festividades associadas à inauguração, em 1733, da nova matriz de Nossa Senhora do Pilar e a transferência para ela da Eucaristia, depositada que estivera em outra igreja. Quanto à urbe (Ouro Preto) assim a via o cronista:
"Nesta vila habitam os homens de maior comércio, cujo tráfego e importância excede sem comparação o maior dos maiores homens de Portugal: a ela, como a porto, se encaminham, e recolhem as grandiosas somas de ouro de todas as minas na Real Casa da Moeda: nela residem os homens de maiores letras, seculares, e eclesiásticos: nela tem assento toda a nobreza, e força da milícia; é por situação da natureza cabeça de toda a América, pela opulência das riquezas a pérola preciosa do Brasil."
MACHADO (Simão Ferreira), op.cit., p. 24-25.
Já outro espírito nota-se no Áureo Trono Episcopal,
Anônimo, Áureo Trono Episcopal, colocado nas Minas de Ouro, publicado por Francisco Ribeiro da Silva, Oficina de Miguel Manescal da Costa, Lisboa, 1749. relato da posse, em 1748, de Dom Frei Manuel da Cruz como primeiro bispo da diocese de Mariana, criada que fora em 1745. O autor, anônimo, pinta-nos o quadro das Minas Gerais nos meados do século XVIII: "...sem embargo de ser tanta a decadência do mesmo país, que por acaso se acha nele quem possa com o dispêndio necessário para a conservação de sua pessoa, e fábricas."
Áureo Trono Episcopal, op. cit., p. 35.
A crise aprofundava-se; em Tomás Antônio Gonzaga
OLIVEIRA (Tarquínio J. B. de), As Cartas Chilenas – fontes textuais, Editora Referência, São Paulo, 1972, 332 p. – 1786/89 – adverte-se, de um lado, nostalgia, por outro, revolta.
Para análise pormenorizada das Cartas Chilenas e dos outros textos aqui referidos veja-se: ÁVILA (Affonso), Resíduos Seiscentistas em Minas – textos do século do ouro e as projeções do mundo barroco, Imprensa da Universidade Federal de Minas Gerais e Centro de Estudos Mineiros, Belo Horizonte, 1967, 2 volumes, 695 p. e LAPA (M. Rodrigues), As "Cartas Chilenas" – Um problema histórico e filológico, Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1958, XLIV + 382 p. Com o ouro a esgotar-se, acabam a bonomia, o fastígio; resta a crítica dos costumes, das práticas, do sistema – a Inconfidência.
A situação de outrora, do ouro aluvionário, é decantada:
"Em quanto, Doretheo, a nossa Chile
Em toda a parte tinha à flor da terra
Extensas, e abundantes minas de oiro
......................................................................
Então, prezado amigo, em qualquer festa
Tirava liberal o bom Senado
Dos cofres chapeados grossas barras."
Cartas Chilenas, Carta 5a., versos 52/54, 65/67.
Enquanto as dívidas para com a Coroa aumentavam, os exatores mostravam-se mais inflexíveis:
"Pretende, Dorotheo, o nosso chefe
Mostrar um grande zelo nas cobranças
Do imenso cabedal, que todo o povo
Aos cofres do Monarca, está devendo:
Envia bons soldados às Comarcas,
E manda-lhes, que cobrem, ou que metam
A quantos não pagarem nas Cadeias."
Cartas Chilenas, Carta 7a., versos 202/208.
O encanto chegara ao fim, Vila Rica – "pela opulência das riquezas a pérola preciosa do Brasil" – transformara-se em “pobre Aldeia"
Cartas Chilenas, Carta 3a., verso 123. , "terra decadente",
Cartas Chilenas, Carta 3a. , verso 85. "Humilde povoado, onde os Grandes/Moram em casas de madeira a pique."
Cartas Chilenas, Carta 3a., versos 89/90.
Depois de três décadas de intensa produção aurífera, no meado do século XVIII, as minas começaram a exaurir-se. O produto das jazidas vê-se reduzido, a Coroa, por seu lado, negava-se a reformular a sistemática tributária.
Nas minas, exploravam-se os depósitos superficiais rapidamente esgotáveis. As reservas de aluvião extinguiam-se com brevidade; nos morros chegava-se à rocha dura. Para os trabalhos subterrâneos, a nosso ver de duvidosa rentabilidade – faltavam capitais e, sobretudo, técnicas. No último quartel do século XVIII a decadência generalizou-se. Os mineiros passaram a procurar as poucas áreas de terra fértil na região das Minas ou dirigiram-se para leste – Zona da Mata, de terras mais ricas –, para as áreas de plantio do sul ou demandaram os campos criatórios situados a oeste. Superava-se uma fase da vida econômica colonial, as atenções voltavam-se, redobradamente, para a atividade agrícola.
Conforme Caio Prado Júnior: "Este renascimento agrícola da colônia se faz em contraste frisante com as regiões mineradoras, cujo declínio se torna cada vez mais acentuado. Elas se voltam, aliás, na medida do possível, para as atividades rurais. Vimos já como a cultura do algodão aí se desenvolve; a pecuária também adquire importância excepcional, e em Minas Gerais constituir-se-á o centro criador de mais alto nível na colônia. Particularmente a indústria de laticínios, que antes não se praticava no Brasil em escala comercial, torna-se notável. O queijo aí fabricado será famoso, e até hoje é o mais conhecido do país (o "queijo de Minas"). Forma-se também, no sul de Minas Gerais, uma região de cultura do tabaco, que embora não chegue nunca a rivalizar com a Bahia, tem sua importância". PRADO JÚNIOR (Caio), História Econômica do Brasil, op. cit., p. 87.
À convergência populacional seguia-se a diáspora:
"A propósito, impõe-se lembrar a observação já tantas vezes feita de que o povoamento do território mineiro é centrífugo – a população irradiou-se partindo do centro para a periferia. Na ânsia de enriquecimento fácil, os homens vieram em grande número para as minas, do Norte, de Leste, do Sul, passaram por terras incultas, cobrindo extensões em busca do centro. Só maus e raros caminhos proporcionavam ligação com os núcleos populacionais do país. E do centro se dispersaram, em movimento natural de expansão, para outras terras, no exercício da mesma atividade ou de outros trabalhos."
IGLÉSIAS (Francisco), “Minas Gerais”, op. cit., p. 366. Vide, a respeito, PRADO JÚNIOR (Caio), História Econômica do Brasil, op. cit., p. 69 e seguintes.
Justifica, o supradito, nossas assertivas sobre os condicionantes que estruturaram a ocupação e povoamento das Gerais: as formas de ocorrência do ouro e pedras preciosas, os métodos empregados para se os extrair, o meio geográfico e a disponibilidade de fatores produtivos.
A política aurívora da Coroa visou a instalar no Brasil um sistema cujo funcionamento garantisse carrear para a Metrópole o máximo possível de ouro e pedras preciosas no mais curto espaço de tempo. A própria "concorrência" estabelecida entre os mineradores – de resto por sua auricídia, participantes ávidos do esquema montado – viabilizou a implementação da aludida política. Num primeiro momento os mineiros aplicaram-se com denodo inaudito na cata do ouro – transferido quase todo para Portugal. Depois, no período da decadência, deitaram a perder a maior parte das economias amealhadas na fase de fastígio, deixando-as esvaírem-se nos gastos efetuados em busca de novos campos auríferos.
A pobreza a que se viram reduzidos os mineradores, a decadência rápida, o fato de a mineração mostrar-se como "aventura passageira que mal tocava um ponto para abandoná-lo logo em seguida e passar adiante. E é esta a causa principal por que, apesar da riqueza relativamente avultada que produziu, drenada aliás toda para fora do país, deixou tão poucos vestígios, a não ser a prodigiosa destruição de recursos naturais que semeou pelos distritos mineradores, e que ainda hoje fere a vista do observador"
PRADO JÚNIOR (Caio), Formação do Brasil contemporâneo (Colônia), op. cit., p. 166., como afirmou Caio Prado Júnior, a inexistência de obras de vulto como anotou Roberto C. Simonsen – "Ouro Preto, Diamantina, Mariana e tantas outras cidades mineiras, ostentam vestígios de um passado grandioso e curto, demonstrando pela modéstia das obras de arte remanescentes que não houve o tempo necessário para que a sociedade alcançasse ali suficiente evolução progressista."
SIMONSEN (Roberto C.), op. cit., p. 292. –, as montanhas de cascalho, as terras incultas, os montes carcomidos que tanto chocaram os visitantes estrangeiros do início do século XIX, enfim, os restos das Minas e a exinanição dos mineradores, a nosso ver, provam decisivamente o êxito da Coroa em implantar um sistema que despojasse a Colônia de suas riquezas minerais.
Cf. LUNA (Francisco Vidal), Minas Gerais: Escravos e Senhores. Análise da Estrutura Populacional e Econômica de Alguns Centros Mineratórios (1718-1804), FEA-USP, São Paulo, 1980, mimeografado.
Conclusão
A matriz socioeconômica comum aos centros mineratórios – referida na introdução deste artigo e para a qual advogamos papel fundamental na gênese destes últimos – deriva-se da interação dos fatores condicionantes ora explicitados. Tal nascedouro genérico atuou no sentido de configurar estruturas populacionais, sociais e econômicas basicamente semelhantes nos vários núcleos que se desenvolveram na área exploratória de Minas Gerais.
Não obstante a existência de tal base comum, também ocorreram dessemelhanças devidas não só às condições imperantes em cada região ou local, mas, também, ao momento em que se deu a emergência e consolidação de cada localidade mineira.
Cumpre lembrar, por fim, que os estudos desenvolvidos na área da demografia histórica posteriormente à elaboração deste artigo vieram a corroborar inteiramente os determinantes e conclusões aqui explicitados; tal verificação ganha relevo maior se atentarmos para o fato de ser possível delinear, sem o apoio de documentação especificamente demográfica, os processos de ocupação econômica e populacional de uma dada área do mundo colonial.