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Manifesto por uma educação livre

Resenha do livro "Educação: livre ou obrigatória", do Rothbard

Revista Café com Sociologia | v. 6, n. 3 | p. 287-293 | jul./dez. 2017. RESENHA EDUCAÇÃO: livre e obrigatória. Resenha da obra: ROTHBARD, M. N. Educação: livre e obrigatória. 1. ed. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2013. 62 pp. MANIFESTO POR UMA EDUCAÇÃO LIVRE Patricia Costa Pereira da Silva1 “Um sistema de educação obrigatória, financiado pelos impostos, é o modelo completo de um estado totalitátio.” (Isabel Paterson)2 Murray Newton Rothbard nasceu em 2 de março de 1926, na cidade de Nova Iorque, nos Estados Unidos, e faleceu em 7 de janeiro de 1995, na mesma cidade. Estudou Matemática e Economia na Universidade de Colúmbia. Lecionou no Instituto Politécnico do Brooklyn, de meados dos anos 1960 até meados dos anos 1980, e de 1986 até o ano de sua morte. Foi o vicepresidente acadêmico do Ludwig von Mises Institute e do Center for Libertarian Studies. Como economista, associou-se à Escola Austríaca e ajudou a definir o conceito de libertarianismo. Ele propôs, ainda, uma vertente do anarquismo com base no livre mercado, que veio a ser denominado como anarcocapitalismo. 1 Pedagoga da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Professora-Tutora do curso de Tecnologia em Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora em Educação pela UFF com realização de estágio doutoral na Ohio University, Mestre em Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e Licenciada em Pedagogia pela UFF. E-mail: [email protected] 2 PATERSON, I. The God of the Machine. Caldwell: Caxton Printers,1943. MANIFESTO POR UMA EDUCAÇÃO LIVRE | Patricia Costa Pereira da Silva 287 Revista Café com Sociologia | v. 6, n. 3 | p. 287-293 | jul./dez. 2017. Rothbard pode ser considerado um intelectual de variedade extraordinária. O autor fez grandes contribuições às áreas da economia, da história, da filosofia política e do direito. Desenvolveu e ampliou a economia austríaca de seu mentor e professor Ludwig von Mises. Rothbard se estabeleceu como o principal teórico austríaco na metade final do século XX e aplicou uma análise austríaca a tópicos históricos, como a Grande Depressão de 1929 e a história do sistema bancário norte-americano. Em 1971, o livro “Educação: livre e obrigatória” (2013) foi publicado originalmente como artigo em língua inglesa no periódico “The Individualist”. O texto foi revisado e publicado pelo “Center for Independent Education” em 1979. O “The Ludwig von Mises Institute” restaurou o texto original e publicou-o como livro em 1999. A obra foi traduzida para língua portuguesa e editada pelo Instituto Ludwig von Mises Brasil em 2013. No referido livro, Rothbard explora a história da obrigatoriedade do ensino. Seu objetivo, através dessa incursão histórica, é mostrar que nenhum dos problemas contemporanêos do sistema educacional é obra do acaso. Há muito tempo, o Estado faz-se utilizar da educação obrigatória, acompanhada de uma ideologia igualitária, como um meio de controle e doutrinação do cidadão. Em contraste, o autor aponta que um sistema escolar de mercado seria compatível com uma ética puramente voluntária, financiado com recursos privados e administrado inteiramente pela iniciativa privada. É preciso que o leitor esteja atento ao fato que Rothbard não é pedagogo, tampouco discursa sobre métodos de ensino; o ponto central de sua obra é demonstrar que a instrução pública obrigatória é uma política totalitária. Para Rothbard, a educação deve ser conduzida num cenário institucional de liberdade. O livro está estruturado da seguinte forma: um competente prefácio à edição brasileira, escrito por Filipe Rangel Celeti, professor da Faculdade Sumaré; o prefácio original de autoria de Kevin Ryan, professor emérito da Universidade de Boston, e mais três capítulos. O “Prefácio à Edição Brasileira” situa, de maneira clara e organizada, os argumentos centrais apresentados por Rothbard ao longo do livro. Nesta parte, Celeti anota o ponto central que o autor desenvolve no livro: a obrigatoriedade da instrução pública é um eficiente mecanismo do totalitarismo político. O prefácio original da obra foi escrito por Kevin Ryan, professor emérito da Universidade de Boston. Em seu texto, Ryan indica que a principal preocupação da teoria social e política do novo milênio deve ser a redefinição do papel do Estado nas relações com indivíduos, famílias e comunidades. Para Ryan, há, atualmente, um desequilíbrio entre as famílias e o Estado; e esse MANIFESTO POR UMA EDUCAÇÃO LIVRE | Patricia Costa Pereira da Silva 288 Revista Café com Sociologia | v. 6, n. 3 | p. 287-293 | jul./dez. 2017. desequilíbrio tende a favorecer o poder estatal em detrimento do poder dos pais em relação ao controle dos filhos. No primeiro capítulo, intitulado “A educação individual”, Rothbard discute o desenvolvimento e a diversidade dos seres humanos, os tipos de instrução e a responsabilidade pela educação das crianças. Aponta que uma pessoa adquire sua educação a todo instante e em todas as suas atividades. Ora, se todos estão em constante aprendizado e cada vivência da criança é sua educação, por que a necessidade da obrigatoriedade da instrução formal? Rothbard defende que a necessidade e o uso para o ensino sistemático formal repousa nas disciplinas técnicas, uma vez que estas devem ser apresentadas de forma sistemática. Considerando que cada indivíduo tem seu ritmo e suas necessidades, Rothbard defende que a melhor instrução formal é a instrução individual tutelada pela família. Aponta, ainda, que a educação escolar tal como concebemos hoje tende a converter toda instrução em um molde uniforme, que acaba por prejudicar estudantes com diferentes necessidades. Para o autor, a imposição estatal de padrões uniformes causa um sério dano à diversidade, gostos e aptidões humanas. As leis estatais sobre a escolarização obrigatória causam o seguinte efeito no processo de ensino e aprendizagem: coagem-se crianças a frequentarem aulas em que elas não tem interesse ou habilidade e, por consequência, deformam-se suas personalidades inteiras. Isso acontece, sobretudo, porque é quase inevitável que o estado imponha uniformidade tutelar sobre o ensino. Não somente a uniformidade agrada mais o temperamento burocrático e é mais fácil de aplicar, como seria quase inevitável onde o coletivismo suplantou o individualismo (ROTHBARD, 2013, p. 20). O Estado, então, utiliza da instituição das leis para determinar o que o povo precisa saber e como precisa ser educado. Nesse ponto, pode-se remeter ao pensamento de Frederic Bastiat, economista e jornalista francês alinhado à vertende liberal. Em sua clássica obra “A Lei”, Bastiat aponta que: Nesse assunto de educação a lei só tem duas alternativas: ou deixa acontecer livremente o processo ensino-aprendizagem, sem usar a força, ou forçar a vontade dos homens nesse sentido, tirando de alguns o necessário para pagar os professores que o governo indicar para ensinar gratuitamente a quem necessitar. Mas neste segundo caso, a lei fere a liberdade e a propriedade através da espoliação legal (BASTIAT, 2010, p. 27). Atualmente, a educação obrigatória é entendida como direito de todos. Filipe Celeti, em sua dissertação de mestrado intitulada “Educação não obrigatória: uma discussão sobre o Estado e o mercado”, aponta que: (...) quando o direito à educação é conclamado, se esquece no que ele se pauta. Ora, nos moldes existentes nas sociedades com estado, o direito a algo é necessariamente o dever de alguém suprir o direito. Com isto, temos slogans que enaltecem o direito do cidadão MANIFESTO POR UMA EDUCAÇÃO LIVRE | Patricia Costa Pereira da Silva 289 Revista Café com Sociologia | v. 6, n. 3 | p. 287-293 | jul./dez. 2017. e o dever do estado. Entretanto, o dever do estado recai sobre os cidadãos que são obrigados, através do financiamento compulsório (impostos), a pagar pelo serviço que será usufruído por terceiros. O direito à educação é, em última análise, uma violação das liberdades, visto que o estado que apregoa o direito ao ensino utiliza-se de coação para com as propriedades dos cidadãos (CELETI, 2011, p. 63). O perigo da educação obrigatória foi sinalizado também por Ludwig von Mises, importante escritor liberal da escola austríaca de economia e mentor de Rothbard. Para Mises, a educação obrigatória torna-se perigosa em razão de seu uso como política para uniformidade. Mises, em sua obra intitulada “Liberalismo segundo a Tradição Clássica”, aponta que: A escola pode alienar as crianças da nacionalidade à qual seus pais pertençam e pode ser utilizada como meio de opressão sobre todas as outras nacionalidades. Quem controlar as escolas terá o poder de prejudicar outras nacionalidades e beneficiar a sua própria (MISES, 2010, p. 133). O primeiro capítulo é, sem dúvidas, o mais importante da obra. É neste capítulo que Rothbard apresenta sua tese sobre a não intervenção do Estado na educação, ao apontar a diferença entre uma educação obrigatória e uma educação livre. O autor busca, em teóricos como Herbert Read, Herbert Spencer e Isabel Paterson, argumentos para defender uma educação livre e realizar oposição à educação obrigatória. A defesa da educação livre realizada por Rothbard pode ser sintetizada na fantástica analogia utilizada pelo autor em sua obra: O que pensaríamos sobre uma proposta do governo, federal ou estadual, de usar o dinheiro dos pagadores de impostos para criar uma rede nacional de jornais públicos e obrigar todo o povo, ou todas as crianças a lê-los? O que pensaríamos se, além disto, o governo proibisse todos os jornais que não se encaixem aos “padrões” do que uma comissão do governo acha que as crianças devem ler? Essa proposta seria geralmente considerada um horror nos Estados Unidos e, no entanto, este é exatamente o tipo de regime que o governo criou no âmbito da instrução escolar. Jornais públicos obrigatórios seriam considerados uma invasão à liberdade básica da imprensa; no entanto, a liberdade escolar não é ao menos tão importante quanto a liberdade de imprensa? Não são dois meios vitais para a educação e informação pública, para a consulta livre e a busca pela verdade? É claro que a supressão da livre instrução deve ser encarada com horror ainda maior do que a supressão da liberdade de imprensa, já que aqui estão envolvidas as mentes não formadas das crianças (ROTHBARD, 2013, pp. 267). É ainda no primeiro capítulo que o autor lança a ideia de quão absurdo é limitar o termo “educação” para um tipo de escolaridade formal. O capítulo possui um enorme material para discutir problemas vivenciados na realidade brasileira, como é o caso da criminalização do “homeschooling” (ensino doméstico). Ainda que proibido, o ensino doméstico no Brasil está em franco crescimento: segundo a Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned), cerca de 3,2 mil famílias já aderiram ao homeschooling. As famílias que aderiram a esse modelo de ensino defendem que a socialização das crianças tende a ser mais natural quando elas escolhem seus grupos de forma espontânea, e não apenas pelo fato de estudarem no mesmo local. Os pais defendem ainda que a educação doméstica é mais completa, pois consideram as escolas despreparadas e pouco MANIFESTO POR UMA EDUCAÇÃO LIVRE | Patricia Costa Pereira da Silva 290 Revista Café com Sociologia | v. 6, n. 3 | p. 287-293 | jul./dez. 2017. atenciosas com as reais necessidades de seus filhos. O pensamento dessas famílias encontra respaldo na obra de Rothbard, que aponta a instrução familiar como o arranjo ideal de processo educativo. O autor entende que os pais são os melhores indivíduos para decidirem quais as necessidades de seus filhos. No segundo capítulo, intitulado “Educação Obrigatória na Europa”, Rothbard aponta que foi a Reforma Protestante, enquanto movimento, que colocou a Europa numa cruzada pela instituição de uma escolaridade compulsória. O pensamento dos reformadores influenciou principalmente a Prússia, o primeiro Estado moderno a ter um sistema de educação obrigatória. Em 1524, o monge Martin Lutero escreveu uma carta aos governantes da Alemanha requerendo a instituição de escolas públicas com frequência obrigatória: Caros governantes... afirmo que as autoridades civis têm a obrigação de compelir o povo a enviar seus filhos para a escola... Se o governo pode compelir alguns cidadãos que estejam aptos ao serviço militar para empunhar lanças e espingardas, para erguer defesas, e para executar outras tarefas marciais em tempos de guerra, têm muito mais direito de compelir o povo a enviar seus filhos para a escola, porque, neste caso, estamos em guerra contra o diabo, cujo objetivo é secretamente esvair nossas cidades e principados de seus homens fortes. (PERRIN, 1896 apud ROTHBARD, 2013, pp. 29-30) No terceiro e último capítulo, Rothbard dá continuidade ao seu trabalho de investigação histórica. O autor faz análise do debate e da construção da obrigatoriedade do ensino público nos Estados Unidos. Aponta que o atual cenário do ensino está inundando de ideias coletivistas que têm conduzido a educação ao desastre. O coletivismo leva a ideia de que a escola deve não apenas ensinar disciplinas, mas educar “toda a criança” em todas as fases da vida. Essa ideia, obviamente, é uma estratégia para atribuir ao Estado todas as funções do lar, o que gera, em verdade, a dependência do indivíduo ao grupo e ao Estado. Como diz Rothbard: “a individualidade é suprimida ensinando todos a se ajustarem ao grupo” (2013, p. 62). A obra de Rothbard contribui para pensarmos sobre a origem e os propósitos da educação obrigatória no Brasil. É possível apontar, por exemplo, que o absolutismo ilustrado de Maquês de Pombal tem semelhanças com o despotismo esclarecido prussiano. A história de como o tema da educação foi tratado pelas inúmeras constituições brasileiras demonstra objetivamente como as crianças deixaram de ser incumbência da família e passaram a ser cooptadas pelo Estado. A Ditadura Militar fez do ensino público obrigatório uma arma para doutrinação de crianças através das disciplinas de “Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política Brasileira”. No atual cenário brasileiro, vemos outros usos políticos-ideológicos da educação como a obrigatoriedade de determinados conteúdos. Assistimos, ainda, a mão do Estado (e de seus intelectuais) na disseminação de seus ideais através do espaço escolar. É nesse cenário que o Projeto MANIFESTO POR UMA EDUCAÇÃO LIVRE | Patricia Costa Pereira da Silva 291 Revista Café com Sociologia | v. 6, n. 3 | p. 287-293 | jul./dez. 2017. de Lei do Senado nº193/2016, conhecido como Escola sem Partido, surge. O referido projeto aponta que os docentes utilizam a frequência cativa dos estudantes para disseminar conteúdos ideológicos e políticos. O objetivo do projeto é fazer com que esses docentes não reproduzam suas pessoais crenças em sala de aula; ou seja, pretende-se conquistar a neutralidade de conteúdos apresentados nas escolas. Seria isso, de fato, possível num regime obrigatório de escolarização? Uma educação que não fosse compulsória não seria a melhor solução para o problema diagnosticado pelos autores do referido projeto de lei? O controle do Ministério da Educação sobre os currículos, os programas, as instituições públicas e privadas, e a implantação de avaliações nacionais não é algo inédito; essa prática remonta ao Ministério do Interior da Prússia; ou seja, em pleno século XXI, reproduzimos no nosso país um modelo de gestão pública e política da educação nacional similar (ou pelo menos muito próximo) ao modelo de Estado mais despótico da história da Europa. Além de exercer a função de regulador, o Estado atua como formador de opiniões. Nas palavras de Rothbard: [...] a “educação moderna” tem abandonado as funções escolares de instrução formal em favor de moldar toda a personalidade, tanto para forçar a igualdade do aprendizado ao nível dos menos educáveis, quanto para usurpar, o quanto possível, o papel educacional do lar e de outras influências. Como ninguém vai aceitar a definitiva “comunização” estatal das crianças (...) o controle estatal deve ser alcançado mais silenciosa e sutilmente (ROTHBARD, 2013, p. 21). Os argumentos de Rothbard permitem refletir se, de fato, é dever do Estado cuidar da educação de nossos filhos. Rothbard ainda vai além: o debate entre obrigatoriedade e liberdade na educação permite-nos refletir sobre qual é, de fato, a função social da educação. As indagações contidas nesse livro podem auxiliar os leitores, especialmente os profissionais da educação, a desfazerem alguns mitos que permeiam o debate sobre nossa conjuntura educacional. Trata-se de uma leitura “obrigatória” para aqueles que defendem uma educação livre. Referências BASTIAT, F. A Lei. 3. ed. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010. 62 pp. CELETI, F. R. Educação não obrigatória: uma discussão sobre o Estado e o mercado. 2011. 95 f. Dissertação (Mestrado em Educação, Arte e História – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2011. CRESCER. Homeschooling: Brasil já tem 6 mil crianças sendo educadas em casa. Disponível em: http://revistacrescer.globo.com/Criancas/Escola/noticia/2017/01/homeschooling-brasil-ja-tem-6mil-criancas-sendo-educadas-em-casa.html. Acesso em: 14 mar. 2017. MANIFESTO POR UMA EDUCAÇÃO LIVRE | Patricia Costa Pereira da Silva 292 Revista Café com Sociologia | v. 6, n. 3 | p. 287-293 | jul./dez. 2017. MISES, L. v. Liberalismo segundo a Tradição Clássica. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010. ROTHBARD, M. N. Educação: livre e obrigatória. 1. ed. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2013. 62 pp. COMO REFERENCIAR ESTE TEXTO SILVA, Patricia Costa Pereira da. Manifesto por uma educação livre. Revista Café com Sociologia. v.6, n.3, p. 287-293, 2017. Recebido em: 18 de jul. 2017 Aceito em: 22 de dez. 2017 MANIFESTO POR UMA EDUCAÇÃO LIVRE | Patricia Costa Pereira da Silva 293