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Fechamento desta edição: 14.01.2022
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G829c
Greco, Rogério
Curso de direito penal: volume 2: parte especial : artigos 121 a 212 do código penal /
Rogério Greco. – 19. ed. – Barueri [SP] : Atlas, 2022.
Inclui bibliografia e índice
ISBN 978-65-59-77145-5
1. Brasil. [Código penal. Parte especial (1984)]. 2. Direito penal – Brasil. I. Título.
22-75345
Camila Donis Hartmann - Bibliotecária - CRB-7/6472
CDU: 343.2(81)
Pondera a vereda de teus pés, e todos os teus caminhos sejam
bem ordenados!
Não declines nem para direita nem para esquerda; retira o teu pé do
mal.
Provérbios 4:26-27
Aos meus pais, Jorge e Elena, que, com simplicidade e amor,
moldaram meu caráter.
O Autor
Rogério Greco, casado com Fernanda Greco e pai de Daniela,
Emanuella, Rafaella, João Paulo e Rogério, Secretário de Estado de
Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais, integrou o Ministério
Público de Minas Gerais entre os anos de 1989 a 2019. Foi vi-cepresidente da Associação Mineira do Ministério Público (biênio
1997-1998) e membro do conselho consultivo daquela entidade de
classe (biênio 2000-2001). É membro fundador do Instituto de
Ciências Penais (ICP) e da Associação Brasileira dos Professores
de Ciências Penais, e membro eleito para o Conselho Superior do
Ministério Público durante os anos de 2003, 2006 e 2008; Professor
do Curso de Pós-Graduação de Direito Penal da Fundação Escola
Superior do Ministério Público de Minas Gerais; Pós-doutor pela
Universitá Degli Studi di Messina (Itália); Doutor pela Universidade
de Burgos (Espanha); Mestre em Ciências Penais pela Faculdade
de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG);
formado pela National Defense University (William J. Perry Center
for Hemispheric Defense Studies) (Estados Unidos); especialista em
Direito Penal (Teoria do Delito) pela Universidade de Salamanca
(Espanha); Membro Titular da Banca Examinadora de Direito Penal
do XLVIII Concurso para Ingresso no Ministério Público de Minas
Gerais; palestrante em congressos e universidades em todo o País.
É autor das seguintes obras: Direito Penal (Belo Horizonte: Cultura);
Estrutura Jurídica do Crime (Belo Horizonte: Mandamentos);
Concurso de Pessoas (Belo Horizonte: Mandamentos); Direito Penal
– Lições (Rio de Janeiro: Impetus); Curso de Direito Penal – Parte
geral e Parte Especial (Rio de Janeiro: Impetus); Código Penal
Comentado – Doutrina e Jurisprudência (Rio de Janeiro: Impetus);
Atividade Policial – Aspectos Penais, Processuais Penais,
Administrativos e Constitucionais (Rio de Janeiro: Impetus); Vade
Mecum Penal e Processual Penal (Coordenador) (Rio de Janeiro:
Impetus); A Retomada do Complexo do Alemão (Rio de Janeiro:
Impetus); Virado do Avesso – Um Romance Histórico-Teológico
sobre a Vida do Apóstolo Paulo (Rio de Janeiro: Nah-Gash);
Sistema Prisional – Colapso Atual e Soluções Alternativas (Rio de
Janeiro: Impetus); Crimes Hediondos (Rio de Janeiro: Impetus);
Tortura (Rio de Janeiro: Impetus); Terrorismo (Rio de Janeiro:
Impetus); Organizações Criminosas (Rio de Janeiro: Impetus);
Abuso de Autoridade (Salvador: Jus-Podivm); Derechos Humanos,
Crisis de la Prisión y Modelo de Justicia Penal (Espanha: Publicia
Editorial). É embaixador de Cristo.
Fale direto com o autor pelo e-mail:
[email protected],
pelo Instagram:
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e pelo site: www.rogeriogreco.com.br
Nota do Autor
Era um final de tarde. Jesus já havia feito muitos milagres,
quando pediu aos Seus discípulos que O levassem para a outra
margem do mar da Galileia. Durante a travessia, sobreveio uma
grande tempestade, e as ondas, enormes, varriam o barco, jogandoo de um lado para o outro. Todos ficaram apavorados com aquela
situação, pois temiam pela vida, uma vez que lhes parecia que o
barco não resistiria à tempestade. Enquanto todos se preocupavam
com a própria segurança, Jesus dormia tranquilamente. Nesse
momento, os discípulos vieram acordá-Lo, clamando: “Senhor,
salva-nos!” Jesus respon-deu-lhes: “Por que sois tímidos, homens
de pequena fé?” E, levantando-se, repreendeu os ventos e o mar; e
fez-se grande bonança. E maravilharam-se os homens, dizendo:
“Quem é este que até os ventos e o mar lhe obedecem?”.
Quando medito nessa passagem bíblica, fico pensando: Será
que os discípulos não sabiam com quem eles estavam? Será que,
mesmo depois de tantos milagres feitos por Jesus, ainda não
conseguiam acreditar ser Ele o Filho de Deus? O Autor da vida
estava com eles naquele barco, e, ainda assim, sentiam-se
amedrontados.
Quantas tempestades passam pela nossa vida e nos
esquecemos d’Aquele que tem poder para transformá-las em
bonança. Frequentemente, deparamos com as tempestades da
doença, da intolerância, da rejeição, das fraquezas, dos concursos
em que não conseguimos ser aprovados e tantas outras, e não nos
lembramos de que basta, simplesmente, olhar para o barco e saber
que a Solução de todos os nossos problemas está bem ao nosso
lado, somente aguardando que peçamos a intervenção d’Ele, a fim
de que os ventos e o mar sejam acalmados.
Não há dúvida alguma de que o Direito Penal lida com
tempestades.
A infração penal praticada pelo agente traz uma tempestade
para a vítima, bem como, muitas vezes, para seus familiares. Vejase a hipótese do crime de homicídio. Podemos imaginar os
sentimentos que tomam conta da família da vítima, que passa a
odiar o homicida, a desprezar o Estado pela sua impotência em
evitar os crimes etc. Da mesma forma, podemos também visualizar
a tempestade que toma conta da vida do agente que, após praticar
o delito, vê-se despojado de sua liberdade, sofrendo todas as
agruras do cárcere e o repúdio da sociedade, que o estigmatizará
até o fim de sua vida.
Na verdade, de um modo ou de outro, a tempestade virá, e,
com certeza, não será o Direito Penal que trará a bonança aos
nossos corações. A calmaria, a sensação de paz, enfim, os ventos e
o mar somente se dobrarão ao Senhor dos céus e da terra, Jesus
Cristo, o filho do Deus vivo que se fez carne entre nós.
A partir de agora, não se esqueça de que a solução para as
tempestades está dentro de você, pois Jesus nos legou o Espírito
Santo, Consolador, a fim de que, por intermédio de Seu poder e
autoridade, pudéssemos repreendê-las. O barco é você, e Jesus
está dentro dele.
Mais uma vez, não poderia perder a oportunidade de alertá-lo,
leitor, sobre a total incapacidade deste pequeno manual de resolver
as mazelas, mesmo criminais, que envolvem a sociedade. Desde o
primeiro homicídio, cometido por Caim contra seu irmão Abel, a
sociedade não cessa de praticar toda sorte de infrações penais,
criando, ela mesma, as próprias tempestades.
No entanto, se por algum momento você se encontrar bem no
centro da tormenta, não se esqueça desta mensagem: Jesus Cristo
está com você e Ele tem poder para acalmar qualquer tempestade,
não importa a força dela.
Se você ainda não conhece Jesus, o Filho de Deus, e se quiser
ter um encontro pessoal com Ele, faça a oração a seguir. Se
concordar com o que vier a ler, diga Amém e experimente o poder
que vem dos céus.
Senhor Jesus, eu não Te vejo, mas creio que Tu és o Filho de
Deus, que morreu por mim naquele madeiro para a remissão dos
meus pecados. Reconheço que Tu és o único e suficiente salvador
da minha alma. Escreva meu nome no livro da vida e me dê a
salvação eterna. Amém.
Espero que você goste deste primeiro volume sobre a Parte
Especial do Código Penal. O estudo inicial, denominado “Introdução
à Teoria Geral da Parte Especial”, fornece as ferramentas
necessárias para a análise das figuras típicas. Logo em seguida,
são analisados todos os tipos penais contidos no Título
correspondente aos “Crimes contra a Pessoa”.
Que Deus abençoe você. Maranata!
Rogério Greco
Sumário
O Autor
Nota do Autor
PARTE I
DOS CRIMES CONTRA A PESSOA
Capítulo I – Dos Crimes contra a Vida
1.
2.
Introdução aos crimes contra a pessoa
Homicídio
2.1 O primeiro homicídio
2.2 Homicídio simples, privilegiado e qualificado
2.2.1
Classificação doutrinária
2.2.2
Sujeito ativo e sujeito passivo
2.2.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
2.2.4
Exame de corpo de delito
2.2.4.1 Cadeia de custódia
2.2.5
Elemento subjetivo
2.2.6
Modalidades comissiva e omissiva
2.2.7
Meios de execução
2.2.8
Consumação e tentativa
2.2.9
Homicídio privilegiado
2.2.9.1 Motivo de relevante valor social ou moral
2.2.9.2
Sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida à injusta
provocação da vítima
2.3 Homicídio qualificado
2.3.1
Mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;
motivo fútil
2.3.2
Com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio
insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum
2.3.3
À traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso
que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido
2.3.4
Para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou a vantagem
de outro crime
2.3.5
Contra mulher por razões da condição de sexo feminino (feminicídio)
2.3.6
Contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da
Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força
Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em
decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente
consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição
2.4 Competência para julgamento do homicídio doloso
2.5 Homicídio culposo
2.6 Hipóteses de aumento de pena do § 4º do art. 121 do Código Penal
2.7 Perdão judicial
2.7.1
Perdão judicial no Código de Trânsito Brasileiro
2.8 Homicídio praticado por milícia privada, sob o pretexto de prestação de serviço
de segurança, ou por grupo de extermínio
2.9 Causas de aumento de pena no feminicídio
2.10 Pena, ação penal e suspensão condicional do processo
2.11 Destaques
2.11.1 Homicídio simples considerado como crime hediondo
2.11.2 É sustentável a hipótese de homicídio qualificado-privilegiado?
2.11.2.1 Homicídio qualificado-privilegiado ou privilegiado-qualificado?
2.11.3 O homicídio qualificado-privilegiado como crime hediondo
2.11.4 A presença de mais de uma qualificadora
2.11.5 Homicídio praticado por policial militar – competência para julgamento
2.11.6 Diferença entre eutanásia, distanásia e ortotanásia
2.11.7 Transmissão dolosa do vírus HIV
2.11.8 Julgamento pelo júri sem a presença do réu
2.11.9 Homicídio decorrente de intervenção policial
2.11.10 Feminicídio e ofensa ao princípio da igualdade
2.11.11 Feminicídio – qualificadora de natureza híbrida
2.11.12 Misoginia e rede mundial de computadores
3.
4.
Prioridade de tramitação do processo do homicídio quando praticado
2.11.13 em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um
só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2º, incisos I, II, III, IV, V,
VI e VII)
2.11.14 Destituição do poder familiar 74
2.11.15 Jurisprudência em teses do Superior Tribunal de Justiça. Edição nº 75:
Tribunal do Júri – I
2.11.16 Jurisprudência em teses do Superior Tribunal de Justiça. Edição nº 78:
Tribunal do Júri – II
2.12 Quadro-resumo
Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação
3.1 Introdução
3.2 Classificação doutrinária
3.3 Sujeito ativo e sujeito passivo
3.4 Participação moral e participação material
3.5 Objeto material e bem juridicamente protegido
3.6 Elemento subjetivo
3.7 Modalidades qualificadas
3.8 Modalidades comissiva e omissiva
3.9 Consumação e tentativa
3.10 Causas de aumento de pena
3.11 Vítimas vulneráveis
3.12 Pena, ação penal, competência para julgamento e suspensão condicional do
processo
3.13 Destaques
3.13.1 Suicídio conjunto (pacto de morte)
3.13.2 Greve de fome
3.13.3 Testemunhas de Jeová
3.13.4 Julgamento pelo júri sem a presença do réu
3.13.5 Jogo da baleia azul
3.14 Quadro-resumo
Infanticídio
4.1 Introdução
4.2 Classificação doutrinária
4.3 Sob a influência do estado puerperal
4.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
4.5 Limite temporal
4.6 Elemento subjetivo
4.7 Consumação e tentativa
4.8 Modalidades comissiva e omissiva
4.9
4.10
4.11
4.12
5.
Objeto material e bem juridicamente protegido
Prova da vida
Pena e ação penal
Destaques
4.12.1 Infanticídio com vida intrauterina
4.12.2 Aplicação do art. 20, § 3º (erro sobre a pessoa), ao delito de infanticídio
4.12.3 Concurso de pessoas no delito de infanticídio
4.12.4 Julgamento pelo Júri sem a presença da ré
4.12.5 Aplicação das circunstâncias agravantes do art. 61, II, e, segunda
figura, e h, primeira figura, do Código Penal
4.13 Quadro-resumo
Aborto
5.1 Introdução
5.2 Classificação doutrinária
5.3 Início e término da proteção pelo tipo penal do aborto
5.4 Espécies de aborto
5.5 Sujeito ativo e sujeito passivo
5.6 Bem juridicamente protegido e objeto material
5.7 Elemento subjetivo
5.8 Consumação e tentativa
5.9 Modalidades comissiva e omissiva
5.10 Causas de aumento de pena
5.11 Prova da vida
5.12 Meios de realização do aborto
5.13 Julgamento pelo Júri, sem a presença da ré
5.14 Pena, ação penal e suspensão condicional do processo
5.15 Aborto legal
5.16 Destaques
5.16.1 Gestante que perde o filho em acidente de trânsito
5.16.2 Morte de fetos gêmeos
5.16.3 Agressão à mulher sabidamente grávida
5.16.4 Gestante que tenta o suicídio
5.16.5 Desistência voluntária e arrependimento eficaz
5.16.6 Crime impossível
5.16.7 Aborto econômico
5.16.8 Ordem judicial
5.16.9 Concurso de pessoas no delito de aborto
5.16.10 Gestante que morre ao realizar o aborto, sendo que o feto sobrevive
5.16.11 Majorante nos crimes contra a dignidade sexual
5.16.12 Aborto de feto anencéfalo
5.17 Quadro-resumo
Capítulo II – Das Lesões Corporais
1.
Lesões corporais
1.1 Introdução
1.2 Classificação doutrinária
1.3 Sujeito ativo e sujeito passivo
1.4 Objeto material e bem juridicamente protegido
1.5 Exame de corpo de delito
1.6 Elemento subjetivo
1.7 Modalidades qualificadas consideradas graves ou gravíssimas
1.7.1
Lesões corporais graves
1.7.2
Lesões corporais gravíssimas
1.8 Lesão corporal seguida de morte
1.9 Lesão corporal culposa
1.10 Violência doméstica
1.10.1 Jurisprudência em teses
1.11 Lesão qualificada praticada contra mulher por razões de condições do sexo
feminino
1.12 Diminuição de pena
1.13 Substituição da pena
1.14 Aumento de pena
1.15 Perdão judicial
1.16 Modalidades comissiva e omissiva
1.17 Consumação e tentativa
1.18 Pena, ação penal, transação penal, competência para julgamento e suspensão
condicional do processo
1.19 Destaques
1.19.1 Princípio da insignificância, lesões corporais e vias de fato
1.19.2 Consentimento do ofendido como causa supralegal de exclusão da
ilicitude
1.19.3 Prioridade de tramitação do processo lesão corporal dolosa de natura
gravíssima e de lesão corporal seguida de morte, nas hipóteses do art.
129, § 12, do CP
1.19.4 Destituição do poder familiar
1.20 Quadro-resumo
Capítulo III – Da Periclitação da Vida e da Saúde
1.
Da periclitação da vida e da saúde
1.1 Conceito e espécies de perigo – concreto e abstrato
1.2 Momento de avaliação do perigo: ex ante ou ex post
2.
3.
1.3 Consumação do crime de perigo
1.4 Perigo individual e perigo coletivo (ou transindividual)
1.5 Natureza subsidiária dos crimes de perigo
1.6 Quadro-resumo
Perigo de contágio venéreo
2.1 Introdução
2.2 Classificação doutrinária
2.3 Sujeito ativo e sujeito passivo
2.4 Objeto material e bem juridicamente protegido
2.5 Elemento subjetivo
2.6 Consumação e tentativa
2.7 Modalidade qualificada
2.8 Pena, ação penal, competência para julgamento e suspensão condicional do
processo
2.9 Prova pericial
2.10 Destaques
2.10.1 Consentimento do ofendido
2.10.2 Necessidade de contato pessoal
2.10.3 Efetiva contaminação da vítima
2.10.4 Crime impossível – vítima já contaminada pela mesma doença, ou,
ainda, a hipótese do agente já curado
2.10.5 I.S.T. (Infecções Sexualmente Transmissíveis) e transmissão do vírus
HIV
2.10.6 Morte da vítima quando era intenção do agente transmitir-lhe a doença
2.11 Quadro-resumo
Perigo de contágio de moléstia grave
3.1 Introdução
3.2 Classificação doutrinária
3.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
3.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
3.5 Elemento subjetivo
3.6 Consumação e tentativa
3.7 Modalidades comissiva e omissiva
3.8 Exame de corpo de delito
3.9 Pena, ação penal, suspensão condicional do processo
3.10 Destaques
3.10.1 Utilização de objeto contaminado que não diga respeito ao agente
3.10.2 Crime impossível
3.10.3 Vítima que morre em virtude da doença grave
3.10.4 Transmissão do vírus HIV
4.
5.
6.
3.11 Quadro-resumo
Perigo para a vida ou saúde de outrem
4.1 Introdução
4.2 Classificação doutrinária
4.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
4.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
4.5 Modalidades comissiva e omissiva
4.6 Consumação e tentativa
4.7 Elemento subjetivo
4.8 Causa especial de aumento de pena
4.9 Pena, ação penal, competência para julgamento e suspensão condicional do
processo
4.10 Destaques
4.10.1 Quando o agente produz perigo a um número determinado de pessoas
4.10.2 Consentimento do ofendido
4.10.3 Resultado morte ou lesões corporais
4.10.4 Possibilidade de desclassificação para o delito de lesão corporal
seguida de morte
4.10.5 Disparo de arma de fogo em via pública
4.11 Quadro-resumo
Abandono de incapaz
5.1 Introdução
5.2 Classificação doutrinária
5.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
5.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
5.5 Consumação e tentativa
5.6 Elemento subjetivo
5.7 Modalidades comissiva e omissiva
5.8 Modalidades qualificadas
5.9 Causas de aumento de pena
5.10 Pena, ação penal e suspensão condicional do processo
5.11 Destaques
5.11.1 Quando do abandono sobrevém lesão corporal de natureza leve
5.11.2 Aplicação da majorante em razão da união estável
5.12 Quadro-resumo
Exposição ou abandono de recém-nascido
6.1 Introdução
6.2 Classificação doutrinária
6.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
6.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
6.5
6.6
6.7
6.8
6.9
7.
8.
Consumação e tentativa
Elemento subjetivo
Modalidades comissiva e omissiva
Modalidades qualificadas
Pena, ação penal, competência para julgamento e suspensão condicional do
processo
6.10 Quadro-resumo
Omissão de socorro
7.1 Introdução
7.2 Classificação doutrinária
7.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
7.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
7.5 Consumação e tentativa
7.6 Elemento subjetivo
7.7 Causas de aumento de pena
7.8 Pena, ação penal, competência para julgamento e suspensão condicional do
processo
7.9 Destaques
7.9.1
Agente que não socorre vítima atropelada temendo agravar a situação
7.9.2
Concurso de pessoas nos delitos omissivos
7.9.3
Agente que imagina que corre risco, quando na verdade este não existe
7.9.4
Obrigação solidária e necessidade de ser evitado o resultado
7.9.5
Omissão de socorro no Estatuto do Idoso
7.9.6
Omissão de socorro no Código de Trânsito Brasileiro
7.9.7
Omissão de socorro e Código Penal Militar
7.9.8
Recusa da vítima em deixar-se socorrer
7.10 Quadro-resumo
Condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial
8.1 Introdução
8.2 Classificação doutrinária
8.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
8.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
8.5 Consumação e tentativa
8.6 Elemento subjetivo
8.7 Modalidades comissiva e omissiva
8.8 Causa especial de aumento de pena
8.9 Pena, ação penal, competência para julgamento e suspensão condicional do
processo
8.10 Destaques
8.10.1
9.
Estatuto do Idoso e recusa de outorga de procuração à entidade de
atendimento
8.10.2 Obrigação da afixação de cartaz
8.11 Quadro-resumo
Maus-tratos
9.1 Introdução
9.2 Classificação doutrinária
9.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
9.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
9.5 Consumação e tentativa
9.6 Elemento subjetivo
9.7 Modalidades comissiva e omissiva
9.8 Modalidades qualificadas
9.9 Causa de aumento de pena
9.10 Pena, ação penal, competência para julgamento e suspensão condicional do
processo
9.11 Destaques
9.11.1 Maus-tratos contra idoso – art. 99 da Lei nº 10.741/2003
9.11.2 Maus-tratos e crime de tortura
9.11.3 Maus-tratos à criança e ao adolescente
9.11.4 Maus-tratos e Código Penal Militar
9.12 Quadro-resumo
Capítulo IV – Da Rixa
1.
Rixa
1.1
1.2
1.3
1.4
1.5
1.6
1.7
1.8
1.9
Introdução
Classificação doutrinária
Objeto material e bem juridicamente protegido
Sujeito ativo e sujeito passivo
Consumação e tentativa
Elemento subjetivo
Modalidades comissiva e omissiva
Modalidade qualificada
Pena, ação penal, competência para julgamento e suspensão condicional do
processo
1.10 Destaques
1.10.1 Inimputáveis e desconhecidos integrantes da rixa
1.10.2 Meios de cometimento do delito de rixa
1.10.3 Vias de fato e lesão corporal de natureza leve
1.10.4 Lesão corporal de natureza grave e morte resultantes da rixa
Concurso de crimes entre a rixa (simples ou qualificada) e as lesões
corporais leves ou graves, e o homicídio
1.10.6 Grupos opostos
1.10.7 Rixa simulada
1.10.8 Participação na rixa e participação no crime de rixa
1.10.9 Possibilidade de legítima defesa no delito de rixa
1.10.10 Rixa e Código Penal Militar
1.10.11 Estatuto do Torcedor
1.11 Quadro-resumo
1.10.5
Capítulo V – Dos Crimes contra a Honra
1.
2.
Dos crimes contra a honra
1.1 Introdução
1.2 Meios de execução nos crimes contra a honra
1.3 Imunidades dos Senadores, Deputados e Vereadores
1.4 Do processo e do julgamento dos crimes de calúnia e injúria, de competência do
juiz singular
1.5 Concurso de crimes
Calúnia
2.1 Introdução
2.2 Classificação doutrinária
2.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
2.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
2.5 Consumação e tentativa
2.6 Elemento subjetivo
2.7 Agente que propala ou divulga a calúnia
2.8 Calúnia contra os mortos
2.9 Exceção da verdade
2.10 Pena, ação penal, competência para julgamento e suspensão condicional do
processo
2.11 Destaques
2.11.1 Pessoas desonradas e crime impossível
2.11.2 Calúnia implícita ou equívoca e reflexa
2.11.3 Exceção de notoriedade
2.11.4 Calúnia proferida no calor de uma discussão
2.11.5 Presença do ofendido
2.11.6 Diferença entre calúnia e denunciação caluniosa
2.11.7 Consentimento do ofendido
2.11.8 Calúnia contra o Presidente da República, o Presidente do Senado
Federal, o Presidente da Câmara dos Deputados e o Presidente do STF
3.
4.
.
2.11.9 Diferença entre calúnia e difamação
2.11.10 Diferença entre calúnia e injúria
2.11.11 Foro por prerrogativa de função na exceção da verdade
2.11.12 Calúnia e Código Penal Militar
2.11.13 Calúnia e Código Eleitoral
2.12 Quadro-resumo
Difamação
3.1 Introdução
3.2 Classificação doutrinária
3.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
3.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
3.5 Consumação e tentativa
3.6 Elemento subjetivo
3.7 Exceção da verdade
3.8 Pena, ação penal, competência para julgamento e suspensão condicional do
processo
3.9 Destaques
3.9.1
Consentimento do ofendido
3.9.2
Presença do ofendido
3.9.3
Difamador sem credibilidade
3.9.4
Divulgação ou propalação da difamação
3.9.5
Difamação dirigida à vítima
3.9.6
Vítima que conta os fatos a terceira pessoa
3.9.7
Agente que escreve fatos ofensivos à honra da vítima em seu diário
3.9.8
Exceção de notoriedade
3.9.9
Difamação contra o Presidente da República, o Presidente do Senado
Federal, o Presidente da Câmara dos Deputados e o Presidente do STF
.
3.9.10 Difamação e Código Penal Militar
3.9.11 Difamação e Código Eleitoral
3.10 Quadro-resumo
Injúria
4.1 Introdução
4.2 Classificação doutrinária
4.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
4.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
4.5 Consumação e tentativa
4.6 Elemento subjetivo
4.7 Meios de execução e formas de expressão da injúria
4.8
4.9
5.
Perdão judicial
Modalidades qualificadas
4.9.1
Injúria real
4.9.2
Injúria preconceituosa
4.10 Pena, ação penal, competência para julgamento e suspensão condicional do
processo
4.11 Destaques
4.11.1 Injúria contra pessoa morta
4.11.2 Contexto da injúria
4.11.3 Discussão acalorada
4.11.4 Caracterização da injúria mesmo diante da veracidade das imputações
4.11.5 Injúria coletiva
4.11.6 Injúria e Código Penal Militar
4.11.7 Injúria e Código Eleitoral
4.11.8 Divulgação de imagens depreciativas ou injuriosas à pessoa do idoso
4.12 Quadro-resumo
Disposições comuns aos crimes contra a honra
5.1 Causas de aumento de pena
5.1.1
Calúnia, difamação e injúria praticadas contra o Presidente da
República, ou contra chefe de governo estrangeiro, contra funcionário
público, em razão de suas funções, ou contra os Presidentes do
Senado Federal, da Câmara dos Deputados ou do Supremo Tribunal
Federal
5.1.2
Se qualquer um dos crimes contra a honra é cometido na presença de
várias pessoas, ou por meio que facilite a divulgação da calúnia, da
difamação ou da injúria
5.1.3
Se a calúnia e a difamação forem proferidas contra pessoa maior de 60
(sessenta) anos ou portadora de deficiência
5.2 Exclusão do crime e da punibilidade
5.2.1
Ofensa irrogada em juízo, na discussão da causa, pela parte ou por seu
procurador
5.2.2
Ofensa irrogada contra o juiz da causa
5.2.3
Ofensa irrogada contra o Ministério Público
5.2.4
Ofensa irrogada pelo juiz da causa
5.2.5
Ofensa irrogada pelo Ministério Público, que atua na qualidade de
custos legis
5.2.6
A opinião desfavorável da crítica literária, artística ou científica, salvo
quando inequívoca a intenção de injuriar ou difamar
5.2.7
O conceito desfavorável emitido por funcionário público, em apreciação
ou informação que preste no cumprimento de dever do ofício
5.3
5.4
5.5
5.6
Agente que dá publicidade à difamação ou à injúria, nos casos dos incisos I e III
do art. 142 do Código Penal
Retratação
Pedido de explicações
Lei de imprensa não foi recepcionada pela nova ordem constitucional
Capítulo VI – Dos Crimes contra a Liberdade Individual
1.
2.
Constrangimento ilegal
1.1 Introdução
1.2 Classificação doutrinária
1.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
1.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
1.5 Consumação e tentativa
1.6 Elemento subjetivo
1.7 Modalidades comissiva e omissiva
1.8 Causas de aumento de pena
1.9 Concurso de crimes
1.10 Causas que conduzem à atipicidade do fato
1.11 Pena, ação penal, competência para julgamento e suspensão condicional do
processo
1.12 Destaques
1.12.1 Vítima que é constrangida a praticar uma infração penal
1.12.2 Vítima submetida a tortura a fim de praticar um fato definido como crime
1.12.3 Suicídio como comportamento ilícito, porém atípico
1.12.4 Consentimento do ofendido
1.12.5 Vias de fato em concurso com o constrangimento ilegal
1.12.6 Constrangimento exercido para impedir a prática de um crime
1.12.7 Constrangimento exercido para satisfazer uma pretensão legítima
1.12.8 Revista pessoal em empregados e constrangimento ilegal
1.12.9 Constrangimento ilegal e Código Penal Militar
1.12.10 Constrangimento ilegal e Código de Defesa do Consumidor
1.12.11 Constrangimento ilegal e Estatuto do Idoso
1.12.12 Constrangimento ilegal e abuso de autoridade
1.13 Quadro-resumo
Ameaça
2.1 Introdução
2.2 Classificação doutrinária
2.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
2.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
2.5 Consumação e tentativa
2.6
2.7
3.
4.
5.
Elemento subjetivo
Pena, ação penal, competência para julgamento e suspensão condicional do
processo
2.8 Destaques
2.8.1
O mal deve ser futuro?
2.8.2
Legítima defesa e o crime de ameaça
2.8.3
Verossimilhança do mal prometido
2.8.4
Ameaça supersticiosa
2.8.5
Pluralidade de vítimas
2.8.6
Ameaça proferida em estado de ira ou cólera
2.8.7
Ameaça proferida em estado de embriaguez
2.8.8
Possibilidade de ação penal por tentativa de ameaça
2.8.9
Ameaça reflexa
2.8.10 Ameaça e Código Penal Militar
2.8.11 Ameaça e Código de Defesa do Consumidor
2.9 Quadro-resumo
Perseguição
3.1 Introdução
3.2 Classificação doutrinária
3.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
3.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
3.5 Consumação e tentativa
3.6 Elemento subjetivo
3.7 Modalidades comissiva e omissiva
3.8 Causas de aumento de pena
3.9 Concurso de crimes
3.10 Pena, ação penal, competência para julgamento e suspensão condicional do
processo
3.11 Destaques
3.12 Quadro-resumo
Violência psicológica contra a mulher
4.1 Introdução
4.2 Classificação doutrinária
4.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
4.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
4.5 Consumação e tentativa
4.6 Elemento subjetivo
4.7 Modalidades comissiva e omissiva
4.8 Pena e ação penal
Sequestro e cárcere privado
5.1
5.2
5.3
5.4
5.5
5.6
5.7
5.8
6.
7.
Introdução
Classificação doutrinária
Objeto material e bem juridicamente protegido
Sujeito ativo e sujeito passivo
Consumação e tentativa
Elemento subjetivo
Modalidades comissiva e omissiva
Modalidades qualificadas
5.8.1
Vítima ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro do agente
ou maior de 60 (sessenta) anos
5.8.2
Se o crime é praticado mediante internação da vítima em casa de saúde
ou hospital
5.8.3
Se a privação da liberdade dura mais de quinze dias
5.8.4
Se o crime é praticado contra menor de 18 (dezoito) anos
5.8.5
Se o crime é praticado com fins libidinosos
5.8.6
Se resulta à vítima, em razão de maus-tratos ou da natureza da
detenção, grave sofrimento físico ou moral
5.9 Pena, ação penal e suspensão condicional do processo
5.10 Destaques
5.10.1 Consentimento do ofendido
5.10.2 Subtração de roupas da vítima
5.10.3 Participação ou coautoria sucessiva
5.10.4 Sequestro e roubo com pena especialmente agravada pela restrição da
liberdade da vítima
5.10.5 Sequestro e cárcere privado no Estatuto da Criança e do Adolescente
5.10.6 Sequestro e cárcere privado e a novatio legis in pejus
5.10.7 Sequestro e cárcere privado e Código Penal Militar
5.10.8 Vítima mantida como refém
5.11 Quadro-resumo
Redução a condição análoga à de escravo
6.1 Introdução
6.2 Classificação doutrinária
6.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
6.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
6.5 Consumação e tentativa
6.6 Elemento subjetivo
6.7 Causa de aumento de pena
6.8 Pena, ação penal e competência para julgamento
6.9 Quadro-resumo
Tráfico de pessoas
7.1
7.2
7.3
7.4
7.5
7.6
7.7
7.8
7.9
7.10
7.11
Introdução
Classificação doutrinária
Objeto material e bem juridicamente protegido
Sujeito ativo e sujeito passivo
Consumação e tentativa
Elemento subjetivo
Modalidades comissiva e omissiva
Causas especiais de aumento de pena
Causa especial de diminuição de pena
Pena, ação penal, competência para julgamento
Destaques
7.11.1 Livramento condicional
7.11.2 Concurso de crimes
7.11.3 Diferença entre tráfico de pessoas e contrabando de migrantes
7.11.4 Tráfico internacional e interno de pessoas e continuidade normativo
típica
7.11.5 Política de Enfrentamento do Tráfico de Pessoas
7.12 Quadro-resumo
Capítulo VII – Dos Crimes contra a Inviolabilidade do Domicílio
1.
Violação de domicílio
1.1 Introdução
1.2 Classificação doutrinária
1.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
1.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
1.5 Consumação e tentativa
1.6 Elemento subjetivo
1.7 Modalidades comissiva e omissiva
1.8 Modalidade qualificada
1.9 Exclusão do crime
1.10 Conceito legal de casa
1.11 Pena, ação penal, competência para julgamento e suspensão condicional do
processo
1.12 Destaques
1.12.1 Concurso de crimes
1.12.2 Casa vazia ou desabitada e casa habitada, com ausência momentânea
do morador
1.12.3 Abuso de autoridade, na modalidade de violação de imóvel alheio ou
suas dependências
1.12.4 A tecnologia como violadora da intimidade
1.12.5 Violação de domicílio e Código Penal Militar
1.13 Quadro-resumo
Capítulo VIII – Dos Crimes contra a Inviolabilidade de Correspondência
1.
2.
Violação de correspondência
1.1 Notas explicativas
1.2 Introdução
1.3 Classificação doutrinária
1.4 Objeto material e bem juridicamente protegido
1.5 Sujeito ativo e sujeito passivo
1.6 Sonegação ou destruição de correspondência e violação de comunicação
telegráfica, radioelétrica ou telefônica
1.7 Consumação e tentativa
1.8 Modalidade qualificada
1.9 Causa de aumento de pena
1.10 Elemento subjetivo
1.11 Pena e ação penal
1.12 Destaques
1.12.1 Interceptação de correspondência de presos
1.12.2 Violação de correspondência entre marido e mulher
1.12.3 Crime impossível
1.12.4 Violação de correspondência e Código Penal Militar
1.13 Quadro-resumo
Correspondência comercial
2.1 Introdução
2.2 Classificação doutrinária
2.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
2.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
2.5 Consumação e tentativa
2.6 Elemento subjetivo
2.7 Modalidades comissiva e omissiva
2.8 Pena, ação penal, competência para julgamento e suspensão condicional do
processo
2.9 Quadro-resumo
Capítulo IX – Dos Crimes contra a Inviolabilidade dos Segredos
1.
Divulgação de segredo
1.1 Introdução
1.2 Classificação doutrinária
1.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
1.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
1.5
1.6
1.7
1.8
1.9
2.
3.
Consumação e tentativa
Elemento subjetivo
Modalidades comissiva e omissiva
Modalidade qualificada
Pena, ação penal, competência para julgamento e suspensão condicional do
processo
1.10 Destaques
1.10.1 Divulgação a uma única pessoa
1.10.2 Divulgação de segredo e Código Penal Militar
1.11 Quadro-resumo
Violação de segredo profissional
2.1 Introdução
2.2 Classificação doutrinária
2.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
2.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
2.5 Consumação e tentativa
2.6 Elemento subjetivo
2.7 Modalidades comissiva e omissiva
2.8 Pena, ação penal, competência para julgamento e suspensão condicional do
processo
2.9 Destaques
2.9.1
Violação de segredo profissional e Código Penal Militar
2.10 Quadro-resumo
Invasão de dispositivo informático
3.1 Introdução
3.2 Classificação doutrinária
3.3 Objeto material e bens juridicamente protegidos
3.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
3.5 Consumação e tentativa
3.6 Elemento subjetivo
3.7 Modalidades comissiva e omissiva
3.8 Modalidade qualificada
3.9 Modalidade equiparada
3.10 Causas especiais de aumento de pena
3.11 Pena, suspensão condicional do processo, ação penal
3.12 Destaques
3.12.1 Concurso de causas de aumento de pena
3.12.2 Marco civil da internet
3.12.3 Lei de proteção de dados pessoais
3.12.4
Invasão de dispositivo informático e violação de correspondência
eletrônica
3.12.5 Invasão de dispositivo informático e quebra de sigilo bancário
3.12.6 Infiltração de agentes de polícia na internet
3.13 Quadro-resumo
PARTE II
DOS CRIMES CONTRA O PATRIMÔNIO
Capítulo I – Do Furto
1.
2.
Introdução
1.1 Jurisprudência em teses do Superior Tribunal de Justiça, edição nº 87: crimes
contra o patrimônio – IV
Furto
2.1 Introdução
2.2 Classificação doutrinária
2.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
2.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
2.5 Consumação e tentativa
2.6 Elemento subjetivo
2.7 Modalidades comissiva e omissiva
2.8 Causa de aumento de pena relativa ao repouso noturno
2.9 Primariedade e pequeno valor da coisa furtada
2.10 Furto de energia
2.11 Modalidades qualificadas
2.11.1 Destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa
2.11.1.1 Jurisprudência em teses do Superior Tribunal de Justiça.
Edição nº 105: Provas no processo penal – I
2.11.2 Abuso de confiança, ou mediante fraude, escalada ou destreza
2.11.3 Emprego de chave falsa
2.11.4 Mediante o concurso de duas ou mais pessoas
2.11.5 Emprego de explosivo ou de artefato análogo que cause perigo comum
2.11.6 Se o furto mediante fraude é cometido por meio de dispositivo eletrônico
ou informático, conectado ou não à rede de computadores, com ou sem
a violação de mecanismo de segurança ou a utilização de programa
malicioso, ou por qualquer outro meio fraudulento análogo
2.11.7 Causas de aumento de pena específicas para a qualificadora prevista
no § 4º-B do art. 155 do Código Penal
2.11.8 Subtração de veículo automotor que venha a ser transportado para
outro Estado ou para o exterior
2.11.9
3.
Subtração de semovente domesticável de produção, ainda que abatido
ou dividido em partes no local da subtração
2.11.10 Se a subtração for de substâncias explosivas ou de acessórios que,
conjunta ou isoladamente, possibilitem sua fabricação, montagem ou
emprego
2.12 Causas de aumento de pena específicas para a qualificadora prevista no § 4º-B
do art. 155 do Código Penal
2.12.1 Pena, ação penal e suspensão condicional do processo
2.12.2 Destaques
2.12.2.1 Erro de tipo com relação à elementar coisa alheia, quando o
agente a supõe res derelicta ou res nullius
2.12.2.2 Crime impossível
2.12.2.3 Furto de uso
2.12.2.4 Furto famélico
2.12.2.5 Furto de pequeno valor e subtração insignificante
2.12.2.6 Furto de sinal de TV em canal fechado
2.12.2.7 Vítima desconhecida
2.12.2.8 Diferença entre furto com fraude e estelionato
2.12.2.9 Subtração por arrebatamento (crime do trombadinha)
2.12.2.10 Comunicação das qualificadoras aos coparticipantes
2.12.2.11 Necessidade de laudo pericial
2.12.2.12 Concurso entre as qualificadoras dos §§ 4º e 5º do art. 155 do
Código Penal
2.12.2.13 Antefato e pós-fato impuníveis no furto
2.12.2.14 Furto de automóveis e a qualificadora do rompimento de
obstáculo
2.12.2.15 Subtração de cadáver
2.12.2.16 Perícia e destruição ou rompimento de obstáculo à subtração
da coisa, ou por meio de escalada
2.12.2.17 Furto com fraude e saque em terminal eletrônico
2.12.2.18 Furto e Código Penal Militar
2.12.2.19 Subtração privilegiada de semovente domesticável de
produção
2.12.2.20 Subtração de semovente domesticável de produção e
princípio da insignificância
2.12.2.21 Jurisprudência em teses do Superior Tribunal de Justiça,
edição nº 47: crimes contra o patrimônio – furto
2.13 Quadro-resumo
Furto de coisa comum
3.1 Introdução
3.2 Classificação doutrinária
3.3
3.4
3.5
3.6
3.7
3.8
Objeto material e bem juridicamente protegido
Sujeito ativo e sujeito passivo
Consumação e tentativa
Elemento subjetivo
Modalidades comissiva e omissiva
Pena, ação penal, competência para julgamento e suspensão condicional do
processo
3.9 Destaques
3.9.1
Sócio que furta da pessoa jurídica
3.9.2
União estável
3.9.3
Subtração violenta
3.9.4
Coisa comum de que o agente tinha a posse
3.10 Quadro-resumo
Capítulo II – Do Roubo e da Extorsão
1.
Roubo
1.1 Introdução
1.2 Classificação doutrinária
1.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
1.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
1.5 Roubo próprio e roubo impróprio
1.6 Consumação e tentativa
1.7 Elemento subjetivo
1.8 Modalidades comissiva e omissiva
1.9 Causas especiais de aumento de pena
1.9.1
Concurso de duas ou mais pessoas
1.9.2
Se a vítima está em serviço de transporte de valores e o agente
conhece tal circunstância
1.9.3
Se a subtração for de veículo automotor que venha a ser transportado
para outro Estado ou para o exterior
1.9.4
Se o agente mantém a vítima em seu poder, restringindo sua liberdade
1.9.5
Se a subtração for de substâncias explosivas ou de acessórios que,
conjunta ou isoladamente, possibilitem sua fabricação, montagem ou
emprego
1.9.6
Se a violência ou grave ameaça é exercida com o emprego de arma
branca
1.9.7
Se a violência ou ameaça é exercida com emprego de arma de fogo
1.9.7.1 Jurisprudência em teses do Superior Tribunal de Justiça.
Edição nº 111: Provas no processo penal – II
1.9.8
Se há destruição ou rompimento de obstáculo mediante o emprego de
explosivo ou de artefato análogo que cause perigo comum
Se a violência ou grave ameaça é exercida com emprego de arma de
fogo de uso restrito ou proibido, aplica-se em dobro a pena prevista no
caput deste artigo
1.10 Roubo qualificado pela lesão corporal grave e pela morte (latrocínio)
1.10.1 Consumação e tentativa no delito de latrocínio
1.10.2 Aplicação do art. 9º da Lei nº 8.072/90 ao delito de latrocínio
1.11 Pena e ação penal
1.12 Destaques
1.12.1 Vítima que se coloca em condições que a impossibilitam de oferecer
resistência
1.12.2 Violência ou grave ameaça para escapar, sem a intenção de levar a
coisa consigo
1.12.3 Crime impossível no roubo – Impropriedade do objeto (vítima que nada
possuía ou violência que é empregada contra morto)
1.12.4 Roubo de uso
1.12.5 Presença de mais de uma causa de aumento de pena
1.12.6 Concurso de pessoas e crime de associação criminosa
1.12.7 Diferença entre a tentativa de latrocínio e o roubo qualificado pelas
lesões graves
1.12.8 Arma de fogo sem munição ou impossibilitada de disparar e exame de
potencialidade ofensiva
1.12.9 Possibilidade de arrependimento posterior no roubo
1.12.10 Roubo e princípio da insignificância
1.12.11 Roubo e Código Penal Militar
1.12.12 Prioridade de tramitação do processo de latrocínio (art. 157, § 3º, II, do
CP)
1.12.13 Concorrência das causas de aumento de pena previstas nos §§ 2º, 2º-A
e 2º-B do art. 157 do Código Penal
1.12.14 Roubo com emprego de arma de fogo e extorsão com o emprego de
arma
1.12.15 Sequestro relâmpago e vítima mantida como refém
1.12.16 Jurisprudência em teses do Superior Tribunal de Justiça, edição nº 51:
crimes contra o patrimônio – II
1.13 Quadro-resumo
Extorsão
2.1 Introdução
2.2 Classificação doutrinária
2.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
2.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
2.5 Consumação e tentativa
2.6 Elemento subjetivo
1.9.9
2.
2.7
2.8
3.
Modalidades comissiva e omissiva
Causas de aumento de pena
2.8.1
Concurso de duas ou mais pessoas no cometimento do crime
2.8.2
Se o crime é cometido com o emprego de arma
2.9 Modalidades qualificadas
2.10 Sequestro relâmpago
2.11 Pena e ação penal
2.12 Destaques
2.12.1 Diferença entre roubo e extorsão
2.12.2 Diferença entre concussão e extorsão
2.12.3 Diferença entre exercício arbitrário das próprias razões e extorsão
2.12.4 Prisão em flagrante quando do recebimento da vantagem
2.12.5 Concurso de pessoas no delito de extorsão
2.12.6 Extorsão e Código Penal Militar
2.12.7 Prioridade de tramitação do processo de extorsão qualificada pela
restrição da liberdade da vítima, ocorrência de lesão corporal ou morte
2.13 Quadro-resumo
Extorsão mediante sequestro
3.1 Introdução
3.2 Classificação doutrinária
3.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
3.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
3.5 Consumação e tentativa
3.6 Elemento subjetivo
3.7 Modalidades comissiva e omissiva
3.8 Modalidades qualificadas
3.8.1
Se o sequestro dura mais de 24 (vinte e quatro) horas
3.8.2
Se o sequestrado é menor de 18 (dezoito) ou maior de 60 (sessenta)
anos
3.8.3
Se o crime é cometido por bando ou quadrilha (leia-se, associação
criminosa)
3.8.4
Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave
3.8.5
Se resulta morte
3.9 Delação premiada – causa especial de diminuição de pena
3.10 Pena e ação penal
3.11 Destaques
3.11.1 Concorrência de mais de uma qualificadora
3.11.2 Concurso entre a qualificadora do § 1º do art. 159 do Código Penal com
o crime de associação criminosa
3.11.3 Prisão em flagrante
Aplicação do art. 9º da Lei nº 8.072/90 ao delito de extorsão mediante
sequestro
3.11.5 Extorsão mediante sequestro e Código Penal Militar
3.11.6 Prioridade de tramitação do processo de extorsão mediante sequestro
simples e qualificada (art. 159, caput, e §§ 1º, 2º e 3º)
3.11.7 Vítima mantida como refém
3.12 Quadro-resumo
Extorsão indireta
4.1 Introdução
4.2 Classificação doutrinária
4.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
4.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
4.5 Consumação e tentativa
4.6 Elemento subjetivo
4.7 Modalidades comissiva e omissiva
4.8 Pena, ação penal e suspensão condicional do processo
4.9 Destaques
4.9.1
Cheque sem fundos e a Súmula nº 246 do STF
4.9.2
Extorsão indireta e Código Penal Militar
4.10 Quadro-resumo
3.11.4
4.
Capítulo III – Da Usurpação
1.
Alteração de limites, usurpação de águas e esbulho possessório
1.1 Introdução
1.2 Alteração de limites
1.2.1
Classificação doutrinária
1.2.2
Objeto material e bem juridicamente protegido
1.2.3
Sujeito ativo e sujeito passivo
1.2.4
Consumação e tentativa
1.2.5
Elemento subjetivo
1.2.6
Modalidades comissiva e omissiva
1.2.7
Quadro-resumo
1.3 Usurpação de águas
1.3.1
Classificação doutrinária
1.3.2
Objeto material e bem juridicamente protegido
1.3.3
Sujeito ativo e sujeito passivo
1.3.4
Consumação e tentativa
1.3.5
Elemento subjetivo
1.3.6
Modalidades comissiva e omissiva
1.3.7
Quadro-resumo
1.4
2.
Esbulho possessório
1.4.1
Classificação doutrinária
1.4.2
Objeto material e bem juridicamente protegido
1.4.3
Sujeito ativo e sujeito passivo
1.4.4
Consumação e tentativa
1.4.5
Elemento subjetivo
1.4.6
Modalidades comissiva e omissiva
1.4.7
Quadro-resumo
1.5 Emprego de violência na usurpação
1.6 Pena, ação penal, competência para julgamento e suspensão condicional do
processo
1.7 Destaques
1.7.1
O movimento dos Sem-Terra e o estado de necessidade
1.7.2
Proprietário como sujeito ativo dos crimes de alteração de limites e
esbulho possessório
1.7.3
Violência contra pessoa praticada após o sucesso da invasão
1.7.4
Esbulho de imóvel do Sistema Financeiro da Habitação (SFH) – Lei nº
5.741/71, art. 9º, e Invasão de Terra da União, Estados ou Municípios –
Lei nº 4.947/66, art. 20
1.7.5
Alteração de limites, usurpação de águas e invasão de propriedade
(esbulho possessório) e o Código Penal Militar
Supressão ou alteração de marca em animais
2.1 Introdução
2.2 Classificação doutrinária
2.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
2.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
2.5 Consumação e tentativa
2.6 Elemento subjetivo
2.7 Modalidades comissiva e omissiva
2.8 Pena, ação penal e suspensão condicional do processo
2.9 Destaques
2.9.1
Supressão ou alteração de marca ou sinal indicativo de propriedade em
um único animal
2.9.2
Animal sem qualquer marcação
2.9.3
Aposição, supressão ou alteração de marca e Código Penal Militar
2.10 Quadro-resumo
Capítulo IV – Do Dano
1.
Dano
1.1 Introdução
1.2 Classificação doutrinária
1.3
1.4
1.5
1.6
1.7
2.
Objeto material e bem juridicamente protegido
Sujeito ativo e sujeito passivo
Consumação e tentativa
Elemento subjetivo
Modalidades qualificadas
1.7.1
Violência à pessoa ou grave ameaça
1.7.2
Com emprego de substância inflamável ou explosiva, se o fato não
constitui crime mais grave
1.7.3
Contra o patrimônio da União, de Estado, do Distrito Federal, de
Município ou de autarquia, fundação pública, empresa pública,
sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviços
públicos
1.7.4
Por motivo egoístico ou com prejuízo considerável para a vítima
1.8 Modalidades comissiva e omissiva
1.9 Pena, ação penal, competência para julgamento e suspensão condicional do
processo
1.10 Destaques
1.10.1 Prescindibilidade de animus nocendi à caracterização do dano
1.10.2 Preso ou condenado que danifica cela para fugir da cadeia ou
penitenciária
1.10.3 Pichação
1.10.4 Dano culposo
1.10.5 Presença de mais de uma qualificadora
1.10.6 Exame pericial
1.10.7 Dano e Código Penal Militar
1.10.8 Dano qualificado e princípio da insignificância
1.11 Quadro-resumo
Introdução ou abandono de animais em propriedade alheia
2.1 Introdução
2.2 Classificação doutrinária
2.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
2.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
2.5 Consumação e tentativa
2.6 Elemento subjetivo
2.7 Modalidades comissiva e omissiva
2.8 Pena, ação penal, competência para julgamento e suspensão condicional do
processo
2.9 Destaques
2.9.1
Introdução de somente um animal
2.9.2
3.
4.
Natureza jurídica do prejuízo – Elementar típica ou condição objetiva de
punibilidade
2.10 Quadro-resumo
Dano em coisa de valor artístico, arqueológico ou histórico
3.1 Introdução
3.2 Classificação doutrinária
3.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
3.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
3.5 Consumação e tentativa
3.6 Elemento subjetivo
3.7 Modalidades comissiva e omissiva
3.8 Pena, ação penal, competência para julgamento, transação penal e suspensão
condicional do processo
3.9 Destaque
3.9.1
Conhecimento de que o bem foi protegido legal, administrativa ou
judicialmente
3.10 Quadro-resumo
Alteração de local especialmente protegido
4.1 Introdução
4.2 Classificação doutrinária
4.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
4.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
4.5 Consumação e tentativa
4.6 Elemento subjetivo
4.7 Modalidades comissiva e omissiva
4.8 Pena, ação penal e suspensão condicional do processo
4.9 Quadro-resumo
Capítulo V – Da Apropriação Indébita
1.
Apropriação indébita
1.1 Introdução
1.2 Classificação doutrinária
1.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
1.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
1.5 Consumação e tentativa
1.6 Elemento subjetivo
1.7 Modalidades comissiva e omissiva
1.8 Causas de aumento de pena
1.8.1
Depósito necessário
1.8.2
2.
3.
Na qualidade de tutor, curador, síndico, liquidatário, inventariante,
testamenteiro ou depositário judicial
1.8.3
Em razão de ofício, emprego ou profissão
1.9 Primariedade do agente e pequeno valor da coisa apropriada
1.10 Pena, ação penal e suspensão condicional do processo
1.11 Destaques
1.11.1 Liberdade desvigiada. Diferença entre apropriação indébita e furto
1.11.2 Momento de surgimento do dolo – Diferença entre apropriação indébita
e estelionato
1.11.3 Apropriação indébita de uso
1.11.4 Arrependimento posterior
1.11.5 Apropriação indébita por procurador legalmente constituído
1.11.6 Prescindibilidade da prestação de contas à configuração do delito
1.11.7 Apropriação indébita e Código Penal Militar
1.11.8 Apropriação indébita e Estatuto do Idoso
1.11.9 Apropriação indébita e Sistema Financeiro Nacional
1.11.10 Apropriação indébita eleitoral
1.12 Quadro-resumo
Apropriação indébita previdenciária
2.1 Introdução
2.2 Classificação doutrinária
2.3 Modalidades assemelhadas de apropriação indébita previdenciária
2.4 Objeto material e bem juridicamente protegido
2.5 Sujeito ativo e sujeito passivo
2.6 Consumação e tentativa
2.7 Elemento subjetivo
2.8 Modalidades comissiva e omissiva
2.9 Extinção da punibilidade
2.10 Perdão judicial e pena de multa
2.11 Pena, ação penal e competência para o julgamento
2.12 Destaques
2.12.1 Existência de processo administrativo
2.12.2 Apropriação indébita previdenciária e princípio da insignificância
2.13 Quadro-resumo
Apropriação de coisa havida por erro, caso fortuito ou força da natureza; apropriação
de tesouro e apropriação de coisa achada
3.1 Introdução
3.2 Apropriação de coisa havida por erro, caso fortuito ou força da natureza
3.2.1
Objeto material e bem juridicamente protegido
3.2.2
Sujeito ativo e sujeito passivo
3.3
3.4
3.5
3.6
3.7
3.8
3.9
3.2.3
Consumação e tentativa
3.2.4
Elemento subjetivo
3.2.5
Modalidades comissiva e omissiva
3.2.6
Quadro-resumo
Apropriação de tesouro
3.3.1
Objeto material e bem juridicamente protegido
3.3.2
Sujeito ativo e sujeito passivo
3.3.3
Consumação e tentativa
3.3.4
Elemento subjetivo
3.3.5
Modalidades comissiva e omissiva
3.3.6
Quadro-resumo
Apropriação de coisa achada
3.4.1
Objeto material e bem juridicamente protegido
3.4.2
Sujeito ativo e sujeito passivo
3.4.3
Consumação e tentativa
3.4.4
Elemento subjetivo
3.4.5
Modalidades comissiva e omissiva
Classificação doutrinária
Primariedade do agente e pequeno valor da coisa apropriada havida por erro,
caso fortuito ou força da natureza, do tesouro e da coisa achada
Pena, ação penal, competência para julgamento e suspensão condicional do
processo
Destaque
3.8.1
Apropriação de coisa havida acidentalmente, apropriação de coisa
achada e Código Penal Militar
Quadro-resumo
Capítulo VI – Do Estelionato e Outras Fraudes
1.
Estelionato
1.1 Introdução
1.2 Classificação doutrinária
1.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
1.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
1.5 Consumação e tentativa
1.6 Elemento subjetivo
1.7 Modalidades comissiva e omissiva
1.8 Primariedade do agente e pequeno valor do prejuízo
1.9 Modalidades especiais de estelionato
1.9.1
Disposição de coisa alheia como própria
1.9.2
Alienação ou oneração fraudulenta de coisa própria
1.9.3
1.9.4
1.9.5
1.9.6
1.9.7
2.
Defraudação de penhor
Fraude na entrega de coisa
Fraude para recebimento de indenização ou valor de seguro
Fraude no pagamento por meio de cheque
Fraude eletrônica. Modalidade qualificada de estelionato e causa de
aumento de pena a ele relativa
1.10 Causas especiais de aumento de pena
1.11 Pena, ação penal e suspensão condicional do processo
1.12 Destaques
1.12.1 Torpeza bilateral (fraude nos negócios ilícitos ou imorais)
1.12.2 Estelionato e falsidade documental
1.12.3 Estelionato e apropriação indébita
1.12.4 Estelionato e jogo de azar
1.12.5 Estelionato e furto de energia elétrica
1.12.6 Estelionato e curandeirismo
1.12.7 Estelionato e inimputabilidade da vítima
1.12.8 Crime impossível
1.12.9 Endosso em cheque sem suficiente provisão de fundos
1.12.10 A Súmula nº 554 do STF
1.12.11 Cola eletrônica e estelionato
1.12.12 Estelionato e Código Penal Militar
1.12.13 Estelionato e Estatuto do Torcedor
1.12.14 Estelionato e Sistema Financeiro Nacional
1.12.15 Estelionato e falência
1.12.16 Competência para processo e julgamento e Súmulas dos Tribunais
Superiores
1.12.17 Competencia do estelionato praticado mediante depósito, mediante
emissão de cheques sem suficiente provisão de fundos em poder do
sacado ou com o pagamento frustrado ou mediante transferência de
valores
1.12.17.1 Jurisprudência em teses do Superior Tribunal de Justiça,
edição nº 84: Crimes contra o Patrimônio III – Estelionato
1.13 Quadro-resumo
Duplicata simulada
2.1 Introdução
2.2 Classificação doutrinária
2.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
2.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
2.5 Consumação e tentativa
2.6 Elemento subjetivo
3.
4.
5.
2.7 Modalidades comissiva e omissiva
2.8 Falsificação ou adulteração na escrituração do Livro de Registro de Duplicatas
2.9 Pena e ação penal
2.10 Quadro-resumo
Abuso de incapazes
3.1 Introdução
3.2 Classificação doutrinária
3.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
3.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
3.5 Consumação e tentativa
3.6 Elemento subjetivo
3.7 Modalidades comissiva e omissiva
3.8 Pena e ação penal
3.9 Destaques
3.9.1
Abuso de pessoa e Código Penal Militar
3.9.2
Estatuto do Idoso
3.10 Quadro-resumo
Induzimento à especulação
4.1 Introdução
4.2 Classificação doutrinária
4.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
4.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
4.5 Consumação e tentativa
4.6 Elemento subjetivo
4.7 Modalidades comissiva e omissiva
4.8 Pena, ação penal e suspensão condicional do processo
4.9 Quadro-resumo
Fraude no comércio
5.1 Introdução
5.2 Classificação doutrinária
5.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
5.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
5.5 Consumação e tentativa
5.6 Elemento subjetivo
5.7 Modalidade qualificada
5.8 Modalidades comissiva e omissiva
5.9 Criminoso primário e pequeno valor da mercadoria
5.10 Pena, ação penal, competência para julgamento e suspensão condicional do
processo
5.11 Destaques
6.
7.
5.11.1 Vítima que recebe uma pedra em vez da mercadoria comprada
5.11.2 Compra de produtos falsos em bancas de camelô
5.12 Quadro-resumo
Outras fraudes
6.1 Introdução
6.2 Classificação doutrinária
6.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
6.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
6.5 Consumação e tentativa
6.6 Elemento subjetivo
6.7 Modalidades comissiva e omissiva
6.8 Pena, ação penal, competência para julgamento, suspensão condicional do
processo e perdão judicial
6.9 Destaques
6.9.1
Princípio da insignificância
6.9.2
Dia do pendura
6.10 Quadro-resumo
Fraudes e abusos na fundação ou administração de sociedade por ações
7.1 Introdução
7.2 Promover a fundação de sociedade por ações fazendo, em prospecto ou em
comunicação ao público ou à assembleia, afirmação falsa sobre a constituição
da sociedade, ou ocultando fraudulentamente fato a ela relativo
7.2.1
Classificação doutrinária
7.2.2
Objeto material e bem juridicamente protegido
7.2.3
Sujeito ativo e sujeito passivo
7.2.4
Consumação e tentativa
7.2.5
Elemento subjetivo
7.2.6
Modalidades comissiva e omissiva
7.2.7
Quadro-resumo
7.3 O diretor, o gerente ou o fiscal de sociedade por ações que, em prospecto,
relatório, parecer, balanço ou comunicação ao público ou à assembleia, faz
afirmação falsa sobre as condições econômicas da sociedade, ou oculta
fraudulentamente, no todo ou em parte, fato a elas relativo
7.3.1
Classificação doutrinária
7.3.2
Objeto material e bem juridicamente protegido
7.3.3
Sujeito ativo e sujeito passivo
7.3.4
Consumação e tentativa
7.3.5
Elemento subjetivo
7.3.6
Modalidades comissiva e omissiva
7.3.7
Quadro-resumo
7.4
7.5
7.6
7.7
7.8
O diretor, o gerente ou o fiscal que promove, por qualquer artifício, falsa cotação
das ações ou de outros títulos da sociedade
7.4.1
Classificação doutrinária
7.4.2
Objeto material e bem juridicamente protegido
7.4.3
Sujeito ativo e sujeito passivo
7.4.4
Consumação e tentativa
7.4.5
Elemento subjetivo
7.4.6
Modalidade comissiva
7.4.7
Quadro-resumo
O diretor ou o gerente que toma empréstimo à sociedade ou usa, em proveito
próprio ou de terceiro, dos bens ou haveres sociais, sem prévia autorização da
assembleia Geral
7.5.1
Classificação doutrinária
7.5.2
Objeto material e bem juridicamente protegido
7.5.3
Sujeito ativo e sujeito passivo
7.5.4
Consumação e tentativa
7.5.5
Elemento subjetivo
7.5.6
Modalidades comissiva e omissiva
7.5.7
Quadro-resumo
O diretor ou o gerente que compra ou vende, por conta da sociedade, ações por
ela emitidas, salvo quando a lei o permite
7.6.1
Classificação doutrinária
7.6.2
Objeto material e bem juridicamente protegido
7.6.3
Sujeito ativo e sujeito passivo
7.6.4
Consumação e tentativa
7.6.5
Elemento subjetivo
7.6.6
Modalidades comissiva e omissiva
7.6.7
Quadro-resumo
O diretor ou o gerente que, como garantia de crédito social, aceita em penhor ou
em caução ações da própria sociedade
7.7.1
Classificação doutrinária
7.7.2
Objeto material e bem juridicamente protegido
7.7.3
Sujeito ativo e sujeito passivo
7.7.4
Consumação e tentativa
7.7.5
Elemento subjetivo
7.7.6
Modalidades comissiva e omissiva
7.7.7
Quadro-resumo
O diretor ou o gerente que, na falta de balanço, em desacordo com este, ou
mediante balanço falso, distribui lucros ou dividendos fictícios
7.8.1
Classificação doutrinária
7.9
7.8.2
Objeto material e bem juridicamente protegido
7.8.3
Sujeito ativo e sujeito passivo
7.8.4
Consumação e tentativa
7.8.5
Elemento subjetivo
7.8.6
Modalidades comissiva e omissiva
7.8.7
Quadro-resumo
O diretor, o gerente ou o fiscal que, por interposta pessoa, ou conluiado com
acionista, consegue a aprovação de conta ou parecer
7.9.1
Classificação doutrinária
7.9.2
Objeto material e bem juridicamente protegido
7.9.3
Sujeito ativo e sujeito passivo
7.9.4
Consumação e tentativa
7.9.5
Elemento subjetivo
7.9.6
Modalidade comissiva
7.9.7
Quadro-resumo
7.10 O liquidante, nos casos dos nºs I, II, III, IV, V e VII
7.10.1 Classificação doutrinária
7.10.2 Objeto material e bem juridicamente protegido
7.10.3 Sujeito ativo e sujeito passivo
7.10.4 Consumação e tentativa
7.10.5 Elemento subjetivo
7.10.6 Modalidades comissiva e omissiva
7.11 O representante da sociedade anônima estrangeira, autorizada a funcionar no
8.
País, que pratica os atos mencionados nos nºs I e II, ou dá falsa informação ao
Governo
7.11.1 Classificação doutrinária
7.11.2 Objeto material e bem juridicamente protegido
7.11.3 Sujeito ativo e sujeito passivo
7.11.4 Consumação e tentativa
7.11.5 Elemento subjetivo
7.11.6 Modalidades comissiva e omissiva
7.12 Pena, ação penal, extinção da punibilidade e suspensão condicional do
processo
7.13 Negociação de voto
Emissão irregular de conhecimento de depósito ou warrant
8.1 Introdução
8.2 Classificação doutrinária
8.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
8.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
8.5 Consumação e tentativa
9.
8.6 Elemento subjetivo
8.7 Modalidades comissiva e omissiva
8.8 Pena, ação penal e suspensão condicional do processo
8.9 Quadro-resumo
Fraude à execução
9.1 Introdução
9.2 Classificação doutrinária
9.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
9.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
9.5 Consumação e tentativa
9.6 Elemento subjetivo
9.7 Modalidades comissiva e omissiva
9.8 Pena, ação penal, competência para julgamento e suspensão condicional do
processo
9.9 Quadro-resumo
Capítulo VII – Da Receptação
1.
Receptação
1.1 Classificação doutrinária – Art. 180, caput
1.2 Sujeito ativo e sujeito passivo
1.3 Consumação e tentativa
1.4 Receptação qualificada
1.4.1
Modalidade equiparada
1.4.2
Classificação doutrinária – Art. 180, § 1º
1.4.3
Sujeito ativo e sujeito passivo
1.4.4
Consumação e tentativa
1.5 Elemento subjetivo
1.6 Objeto material e bem juridicamente protegido
1.7 Receptação culposa
1.8 Perdão judicial
1.9 Criminoso primário e pequeno valor da coisa receptada
1.10 Bens do patrimônio da União, de Estado, do Distrito Federal, de Município ou de
autarquia, fundação pública, empresa pública, sociedade de economia mista ou
empresa concessionária de serviços públicos
1.11 Autonomia da receptação
1.12 Pena, ação penal, competência para julgamento e suspensão condicional do
processo
1.13 Destaques
1.13.1 Prova do crime anterior
1.13.2 Receptação e concurso de pessoas no delito anterior
2.
1.13.3 Receptação em cadeia (receptação de receptação)
1.13.4 Imputação alternativa
1.13.5 Receptação e Código Penal Militar
1.14. Quadro-resumo
Receptação de animal
2.1 Introdução
2.2 Classificação doutrinária
2.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
2.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
2.5 Consumação e tentativa
2.6 Elemento subjetivo
2.7 Modalidades comissiva e omissiva
2.8 Pena, ação penal, competência para julgamento
2.9 Destaque
2.9.1
Novatio legis in melius
2.10 Quadro-resumo
Capítulo VIII – Disposições Gerais
1.
Disposições gerais relativas aos crimes contra o patrimônio
1.1 Introdução
1.2 Imunidades penais absolutas ou escusas absolutórias
1.3 Imunidades penais relativas
1.4 Ressalvas às imunidades penais absolutas e relativas
PARTE III
DOS CRIMES CONTRA A PROPRIEDADE IMATERIAL
Capítulo I – Dos Crimes contra a Propriedade Intelectual
1.
2.
Introdução
Violação de direito autoral
2.1 Introdução
2.2 Classificação doutrinária
2.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
2.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
2.5 Consumação e tentativa
2.6 Elemento subjetivo
2.7 Modalidades comissiva e omissiva
2.8 Modalidades qualificadas
2.9 Pena, ação penal, competência para julgamento e suspensão condicional do
processo
2.10 Destaques
2.10.1 Exclusão da tipicidade
2.10.2 Programas de computador
2.10.3 Efeitos da sentença condenatória
2.10.4 Comprovação do delito de violação de direito autoral, bem como sua
materialidade
2.11. Quadro-resumo
PARTE IV
DOS CRIMES CONTRA A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO
Capítulo I – Dos Crimes contra a Organização do Trabalho
1.
2.
3.
4.
Introdução
Atentado contra a liberdade de trabalho
2.1 Introdução
2.2 Classificação doutrinária
2.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
2.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
2.5 Consumação e tentativa
2.6 Elemento subjetivo
2.7 Modalidades comissiva e omissiva
2.8 Pena, ação penal, competência para julgamento e suspensão condicional do
processo
2.9 Quadro-resumo
Atentado contra a liberdade de contrato de trabalho e boicotagem violenta
3.1 Introdução
3.2 Classificação doutrinária
3.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
3.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
3.5 Consumação e tentativa
3.6 Elemento subjetivo
3.7 Modalidades comissiva e omissiva
3.8 Pena, ação penal, competência para julgamento e suspensão condicional do
processo
3.9 Quadro-resumo
Atentado contra a liberdade de associação
4.1 Introdução
4.2 Classificação doutrinária
4.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
4.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
4.5
4.6
4.7
4.8
5.
6.
7.
8.
Consumação e tentativa
Elemento subjetivo
Modalidades comissiva e omissiva
Pena, ação penal, competência para julgamento e suspensão condicional do
processo
4.9 Quadro-resumo
Paralisação de trabalho, seguida de violência ou perturbação da ordem
5.1 Introdução
5.2 Classificação doutrinária
5.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
5.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
5.5 Consumação e tentativa
5.6 Elemento subjetivo
5.7 Modalidades comissiva e omissiva
5.8 Pena, ação penal, competência para julgamento e suspensão condicional do
processo
5.9 Quadro-resumo
Paralisação de trabalho de interesse coletivo
6.1 Introdução
6.2 Classificação doutrinária
6.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
6.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
6.5 Consumação e tentativa
6.6 Elemento subjetivo
6.7 Modalidades comissiva e omissiva
6.8 Pena, ação penal, competência para julgamento e suspensão condicional do
processo
6.9 Quadro-resumo
Invasão de estabelecimento industrial, comercial ou agrícola. Sabotagem
7.1 Introdução
7.2 Classificação doutrinária
7.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
7.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
7.5 Consumação e tentativa
7.6 Elemento subjetivo
7.7 Modalidades comissiva e omissiva
7.8 Pena, ação penal e suspensão condicional do processo
7.9 Quadro-resumo
Frustração de direito assegurado por lei trabalhista
8.1 Introdução
8.2
8.3
8.4
8.5
8.6
8.7
8.8
Classificação doutrinária
Objeto material e bem juridicamente protegido
Sujeito ativo e sujeito passivo
Consumação e tentativa
Elemento subjetivo
Modalidades comissiva e omissiva
Modalidades assemelhadas
8.8.1
Obriga ou coage alguém a usar mercadorias de determinado
estabelecimento, para impossibilitar o desligamento do serviço em
virtude de dívida
8.8.2
Impede alguém de se desligar de serviços de qualquer natureza,
mediante coação ou por meio da retenção de seus documentos
pessoais ou contratuais
8.9 Causas especiais de aumento de pena
8.10 Pena, ação penal, competência para julgamento e suspensão condicional do
processo
8.11 Quadro-resumo
9. Frustração de lei sobre a nacionalização do trabalho
9.1 Introdução
9.2 Classificação doutrinária
9.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
9.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
9.5 Consumação e tentativa
9.6 Elemento subjetivo
9.7 Modalidades comissiva e omissiva
9.8 Pena, ação penal, competência para julgamento e suspensão condicional do
processo
9.9 Quadro-resumo
10. Exercício de atividade com infração de decisão administrativa
10.1 Introdução
10.2 Classificação doutrinária
10.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
10.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
10.5 Consumação e tentativa
10.6 Elemento subjetivo
10.7 Modalidade comissiva
10.8 Pena, ação penal, competência para julgamento e suspensão condicional do
processo
10.9 Quadro-resumo
11. Aliciamento para o fim de emigração
11.1 Introdução
11.2 Classificação doutrinária
11.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
11.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
11.5 Consumação e tentativa
11.6 Elemento subjetivo
11.7 Modalidades comissiva e omissiva
11.8 Pena, ação penal e suspensão condicional do processo
11.9 Quadro-resumo
12. Aliciamento de trabalhadores de um local para outro do território nacional
12.1 Introdução
12.2 Classificação doutrinária
12.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
12.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
12.5 Consumação e tentativa
12.6 Elemento subjetivo
12.7 Modalidades comissiva e omissiva
12.8 Modalidade assemelhada
12.9 Causa especial de aumento de pena
12.10 Pena, ação penal e suspensão condicional do processo
12.11 Quadro-resumo
PARTE V
DOS CRIMES CONTRA O SENTIMENTO RELIGIOSO E CONTRA O RESPEITO AOS
MORTOS
Capítulo I – Dos crimes contra o sentimento religioso
1.
2.
Dos crimes contra o sentimento religioso e contra o respeito aos mortos
Ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo
2.1 Introdução
2.2 Classificação doutrinária
2.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
2.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
2.5 Consumação e tentativa
2.6 Elemento subjetivo
2.7 Modalidades comissiva e omissiva
2.8 Causa de aumento de pena
2.9 Pena, ação penal, competência para julgamento, suspensão condicional do
processo
2.10 Destaque
3.
4.
5.
2.10.1 Estatuto do Índio
2.11 Quadro-resumo
Impedimento ou perturbação de cerimônia funerária
3.1 Introdução
3.2 Classificação doutrinária
3.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
3.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
3.5 Consumação e tentativa
3.6 Elemento subjetivo
3.7 Modalidades comissiva e omissiva
3.8 Causa de aumento de pena
3.9 Pena, ação penal, competência para julgamento, suspensão condicional do
processo
3.10 Quadro-resumo
Violação de sepultura
4.1 Introdução
4.2 Classificação doutrinária
4.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
4.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
4.5 Consumação e tentativa
4.6 Elemento subjetivo
4.7 Modalidades comissiva e omissiva
4.8 Pena, ação penal e suspensão condicional do processo
4.9 Destaques
4.9.1
Agente que viola sepultura com o fim de subtrair pertences enterrados
com o morto
4.9.2
Sepultura ou urna funerária sem cadáver ou restos mortais
4.9.3
Inumação ou exumação de cadáver
4.10 Quadro-resumo
Destruição, subtração ou ocultação de cadáver
5.1 Introdução
5.2 Classificação doutrinária
5.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
5.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
5.5 Consumação e tentativa
5.6 Elemento subjetivo
5.7 Modalidades comissiva e omissiva
5.8 Pena, ação penal e suspensão condicional do processo
5.9 Destaques
5.9.1
Feto natimorto
6.
5.9.2
Lei nº 9.434/97 (Transplante de órgãos)
5.9.3
Furto de cadáver
5.10 Quadro-resumo
Vilipêndio a cadáver
6.1 Introdução
6.2 Classificação doutrinária
6.3 Objeto material e bem juridicamente protegido
6.4 Sujeito ativo e sujeito passivo
6.5 Consumação e tentativa
6.6 Elemento subjetivo
6.7 Modalidades comissiva e omissiva
6.8 Pena, ação penal e suspensão condicional do processo
6.9 Quadro-resumo
Referências
PARTE I
DOS CRIMES CONTRA A
PESSOA
Capítulo I
Dos Crimes contra a Vida
1.
INTRODUÇÃO AOS CRIMES CONTRA A PESSOA
Ao iniciarmos o estudo da Parte Especial do Código Penal,
podemos perceber a preocupação do legislador no que diz respeito
à proteção de diversos bens jurídicos. São 11 os títulos existentes
que traduzem os bens que foram objeto de tutela pela lei penal,
títulos esses que, por sua vez, foram subdivididos em capítulos,
individualizando, ainda mais, os bens juridicamente protegidos pelos
tipos penais incriminadores.
No Título I, cuidou o Código Penal dos crimes contra a pessoa;
no Título II, dos crimes contra o patrimônio; no Título III, dos crimes
contra a propriedade imaterial; no Título IV, dos crimes contra a
organização do trabalho; no Título V, dos crimes contra o sentimento
religioso e contra o respeito aos mortos; no Título VI, dos crimes
contra a dignidade sexual;1 no Título VII, dos crimes contra a família;
no Título VIII, dos crimes contra a incolumidade pública; no Título IX,
dos crimes contra a paz pública; no Título X, dos crimes contra a fé
pública; e, finalmente, no Título XI, dos crimes contra a
Administração Pública.
A finalidade com este trabalho é tentar, ao máximo possível,
trazer ao conhecimento do público as questões mais discutidas e
controvertidas concernentes a cada tipo penal. A meta é dissecar
cada infração penal, apontando todos seus elementos.
Merece ser destacado, por oportuno, que a Parte Especial do
Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940) foi
publicada no Diário Oficial da União em 31 de dezembro de 1940, já
tendo se passado, portanto, mais de sete décadas desde então,
motivo suficiente para que seja estudada com olhos críticos, visto
que a sociedade, decorridos aproximadamente setenta anos, mudou
radicalmente. Bens que, no passado, eram tidos como de extrema
importância, hoje já perderam o seu valor, razão pela qual
ressaltamos a importância da análise dos princípios penais
fundamentais, que terão por finalidade apontar as debilidades
daquelas infrações penais que já não se fazem mais necessárias.
Sabemos também que, embora sendo datada de 1940, a Parte
Especial do Código Penal foi sendo, ao longo dos anos, modificada
por meio de reformas pontuais. Novos artigos foram criados, outros
modificados, enfim, embora antiga, a parte especial do Código
Penal sofreu profundas modificações que tiveram o condão de, em
algumas situações, fornecer-lhe uma aparência jovial, cuidando de
temas que não mereceram a atenção do legislador original, a
exemplo da inserção do capítulo correspondente aos crimes contra
as finanças públicas, inserido no Título XI, relativo aos crimes contra
a Administração Pública, feita pela Lei nº 10.028, de 19 de outubro
de 2000; ou, ainda, a modificação do art. 149, por intermédio da Lei
nº 10.803, de 11 de dezembro de 2003, que prevê o delito de
redução à condição análoga à de escravo; sem falar na Lei nº
10.886, de 17 de junho de 2004, que criou o delito de violência
doméstica, inserindo dois parágrafos (9º e 10) ao art. 129 do Código
Penal; além das modificações feitas pela Lei nº 11.340, de 7 de
agosto de 2006, que criou mecanismos para coibir a violência
doméstica e familiar contra a mulher; pela Lei nº 11.464, de 28 de
março de 2007, que deu nova redação ao inciso II e os §§ 1º e 3º do
art. 2º da Lei nº 8.072/90; pela Lei nº 11.466, de 28 de março de
2007, que alterou a Lei de Execução Penal, bem como inseriu o art.
319-A no Código Penal e pela Lei nº 12.015, de 7 de agosto de
2009, que modificou o Título VI do Código Penal, fazendo menção,
agora, aos chamados crimes contra a dignidade sexual; a Lei nº
12.653, de 28 de maio de 2012, que tipificou o crime de condicionar
atendimento médico-hospitalar emergencial a qualquer garantia; a
Lei nº 12.720, de 27 de setembro de 2012, que dispôs sobre o
extermínio de seres humanos, inseriu o § 6º no art. 121 e alterou o §
7º do art. 129, criando, ainda, o delito de constituição de milícia
privada; a Lei nº 13.008, de 26 de junho de 2014, que deu nova
redação ao art. 334 e acrescentou o art. 334-A, dividindo os delitos
de contrabando e descaminho; a Lei nº 13.104, de 9 de março de
2015, que criou o chamado feminicídio, inserindo o inciso VI ao § 2º
do art. 121, como também a Lei nº 13.142, de 6 de julho de 2015,
que alterou os arts. 121 e 129, acrescendo uma qualificadora ao
primeiro (inciso VII) e uma causa especial de aumento de pena ao
segundo (§ 12), em virtude de os crimes serem praticados contra
autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 das Constituição
Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de
Segurança Pública, da Lei nº 13.330, de 02 de agosto e 2016, que
tipificou, de forma mais gravosa, os crimes de furto e receptação de
semovente domesticável de produção; da Lei nº 13.445, de 25 de
maio de 2017 (Lei de Migração), que tipificou a promoção de
migração ilegal, inserida no art. 232-A, da Lei nº 13654, de 23 de
abril de 2018, que dispôs sobre os crimes de furto qualificado e de
roubo quando envolvam explosivos e do crime de roubo praticado
com emprego de arma de fogo ou do qual resulte lesão corporal
grave; da Lei nº 13.869, de 05 de setembro de 2019, que dispôs
sobre os crimes de abuso de autoridade e revogou o § 2º do art. 155
e o art. 350, ambos do Código Penal, a Lei nº 13.964, de 24 de
dezembro de 2019, fruto do chamado Pacote “anticrime”, que
buscou aperfeiçoar a legislação penal e processual penal, bem
como a Lei nº 13.968, de 26 de dezembro de 2019, que modificou o
crime de incitação ao suicídio, tipificado no art. 122 do Código
Penal, e incluiu as condutas de induzir ou instigar a automutilação,
bem como a de prestar auxílio a quem a pratique.
O projeto original que culminou com o Código Penal de 1940 foi
elaborado, inicialmente, pelo Dr. Alcântara Machado, professor da
Faculdade de Direito de São Paulo, tendo sido entregue ao Governo
Federal em 1938. O Ministro da Justiça, Dr. Francisco Campos, ao
receber o aludido pacote, entendeu por bem submetê-lo à revisão,
assim se manifestando em sua Exposição de Motivos, item 1:
1. A matéria impunha, entretanto, pela
sua delicadeza e por suas notórias
dificuldades, um exame demorado e
minucioso. Sem desmerecer o valor
do trabalho de que se desincumbira o
Professor Alcântara Machado, julguei
de bom aviso submeter o projeto a
uma demorada revisão, convocando
para isso técnicos, que se houvessem
distinguido não somente na teoria do
delito, como também na prática da
aplicação da lei penal.
Assim, constituí a Comissão revisora
com os ilustres magistrados Vieira
Braga, Nélson Hungria e Narcélio de
Queiroz
e
com
um
ilustre
representante do Ministério Público, o
Dr. Roberto Lira.
Durante mais de um ano a Comissão
dedicou-se
quotidianamente
ao
trabalho de revisão, cujos primeiros
resultados comuniquei ao eminente
Dr. Alcântara Machado, que, diante
deles, remodelou seu projeto, dandolhe uma nova edição. Não se achava,
porém, ainda, acabado o trabalho de
revisão. Prosseguiram com a minha
assistência e colaboração até que me
parecesse o projeto em condições de
ser submetido à apreciação de Vossa
Excelência.
Dos trabalhos da Comissão revisora
resultou este projeto. Embora da
revisão
houvessem
advindo
modificações à estrutura e ao plano
sistemático, não há dúvida que o
projeto
Alcântara
Machado
representou,
em
relação
aos
anteriores, um grande passo no
sentido da reforma da nossa
legislação penal. Cumpre-me deixar
aqui consignado o nosso louvor à
obra do eminente patrício, cujo valioso
subsídio ao atual projeto, nem eu,
nem os ilustres membros da
Comissão revisora deixamos de
reconhecer.
O importante, neste momento, é buscar reinterpretar os tipos
penais da Parte Especial do Código Penal que foram recepcionados
pelo texto de nossa Lei Maior, permitindo, com isso, uma visão
garantista, protetora dos direitos de liberdade de todos os cidadãos,
merecendo sempre ser lembrada a máxima de von Liszt quando
dizia ser o Código Penal a “Carta Magna do delinquente.”
Interpretar os tipos penais incriminadores requer, portanto, uma
visão libertária, entendendo-se o tipo penal como garantia, e não
como carrasco do cidadão.
Merece ser destacado o fato de que, ao longo de todos esses
anos de vigência da Parte Especial do Código Penal, várias
modificações foram sendo realizadas, como dissemos, por meio de
reformas pontuais. Percebeu-se, a exemplo daquilo que aconteceu
com o Código Civil, hoje em vigor, e com o projeto de Código de
Processo Penal, que ainda se encontra “guardado” no Congresso
Nacional por algum parlamentar, que introduzir no ordenamento
jurídico um novo Código seria missão quase impossível, uma vez
que, dada a sua particularidade, ou seja, ao fato de possuir
centenas de artigos, caso um congressista não viesse a concordar
com a redação de tão somente um deles, pediria vista para sua
análise e, consequentemente, comprometeria a discussão de todo o
projeto.
O recurso às reformas pontuais, portanto, foi visto como uma
alternativa que teria o condão de atualizar a legislação em vigor,
inserindo novos tipos penais, ou mesmo retirando aqueles que
fugissem à nossa realidade.
A Parte Especial do Código Penal está dividida em títulos,
capítulos e seções, ordenados sistematicamente, levando em
consideração o bem juridicamente protegido. Sérgio de Oliveira
Médici, dissertando sobre o tema, preleciona:
“Quando se adota como critério de classificação o bem jurídico,
deve-se entender no sentido de que mesmo que as
características de concreção próprias da parte especial afetam
em primeiro lugar a antijuridicidade tipificada, esta é que há de
servir de base para a formação dos grupos e subgrupos. O bem
jurídico adquire importância como critério regente enquanto
constitui a essência da antijuridicidade, porém não é um módulo
exclusivo. O objeto sobre o qual recai a conduta, o meio
empregado para cometer o delito e todas as demais
modalidades do tipo que transcendem a antijuridicidade da
conduta aqui também influem. Na realidade, nenhuma
classificação das que partem do bem jurídico deixa de levar em
conta as aludidas modalidades. Por si só, o bem jurídico é
insuficiente para uma classificação exaustiva, pois existem
numerosos delitos que apresentam o mesmo objeto de ataque,
por exemplo furto e roubo (a propriedade representada pelas
coisas móveis), o homicídio, o infanticídio (vida humana).
A parte especial de um Código Penal não pode, portanto,
apresentar uma sequência desordenada de normas
incriminadoras. Os tipos devem ser nela dispostos de acordo
com um critério lógico e que propicie a melhor adequação
legislativa aos interesses da sociedade.”2
Foi somente a partir do Código Penal de 1940 que a Parte
Especial teve início com os chamados Crimes contra a Pessoa,
ressaltando-se, dessa forma, sua importância. Os Códigos que o
antecederam, vale dizer, o Código Criminal do Império do Brasil
(1830) e o primeiro Código Penal publicado durante o período
republicano, denominado Código Penal dos Estados Unidos do
Brasil (1890), iniciavam sua Parte Especial com os crimes contra a
existência política do Império e os crimes contra a existência política
da República, demonstrando, com isso, a preponderância do Estado
sobre o cidadão.
O Código Penal de 1940 rompeu com essa regra, iniciando sua
Parte Especial com o Título I, relativo aos Crimes contra a Pessoa,
que é composto pelos seguintes capítulos e seções: Capítulo I –
Dos Crimes contra a Vida; Capítulo II – Das Lesões Corporais;
Capítulo III – Da Periclitação da Vida e da Saúde; Capítulo IV – Da
Rixa; Capítulo V – Dos Crimes contra a Honra; Capítulo VI – Dos
Crimes contra a Liberdade Individual: Seção I – Dos Crimes contra a
Liberdade Pessoal; Seção II – Dos Crimes contra a Inviolabilidade
do Domicílio; Seção III – Dos Crimes contra a Inviolabilidade de
Correspondência; Seção IV – Dos Crimes contra a Inviolabilidade
dos Segredos.
Nos próximos capítulos, faremos a análise pormenorizada dos
crimes contra a pessoa.
2.
HOMICÍDIO
Homicídio simples
Art. 121. Matar alguém:
Pena – reclusão, de 6 (seis) a 20
(vinte) anos.
Caso de diminuição de pena
§ 1º Se o agente comete o crime
impelido por motivo de relevante valor
social ou moral, ou sob o domínio de
violenta emoção, logo em seguida a
injusta provocação da vítima, o juiz
pode reduzir a pena de um sexto a um
terço.
Homicídio qualificado
§ 2º Se o homicídio é cometido:
I – mediante paga ou promessa de
recompensa, ou por outro motivo
torpe;
II – por motivo fútil;
III – com emprego de veneno, fogo,
explosivo, asfixia, tortura ou outro
meio insidioso ou cruel, ou de que
possa resultar perigo comum;
IV – à traição, de emboscada ou
mediante dissimulação ou outro
recurso que dificulte ou torne
impossível a defesa do ofendido;
V – para assegurar a execução, a
ocultação, a impunidade ou vantagem
de outro crime:
Feminicídio3
VI – contra a mulher por razões da
condição de sexo feminino;
VII – contra autoridade ou agente
descrito nos arts. 142 e 144 da
Constituição Federal, integrantes do
sistema prisional e da Força Nacional
de Segurança Pública, no exercício da
função ou em decorrência dela, ou
contra seu cônjuge, companheiro ou
parente consanguíneo até terceiro
grau, em razão dessa condição:
Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30
(trinta) anos.
§ 2º-A. Considera-se que há razões
de condição de sexo feminino quando
o crime envolve:
I – violência doméstica e familiar;
II – menosprezo ou discriminação à
condição de mulher.
Homicídio culposo § 3º Se o
homicídio é culposo:
Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três)
anos.
Aumento de pena
§ 4º No homicídio culposo, a pena é
aumentada de 1/3 (um terço), se o
crime resulta de inobservância de
regra técnica de profissão, arte ou
ofício, ou se o agente deixa de prestar
imediato socorro à vítima, não procura
diminuir as consequências do seu ato,
ou foge para evitar a prisão em
flagrante. Sendo doloso o homicídio, a
pena é aumentada de 1/3 (um terço)
se o crime é praticado contra pessoa
menor de 14 (quatorze) ou maior de
60 (sessenta) anos.
§ 5º Na hipótese de homicídio
culposo, o juiz poderá deixar de
aplicar a pena, se as consequências
da infração atingirem o próprio agente
de forma tão grave que a sanção
penal se torne desnecessária.
§ 6º A pena é aumentada de 1/3 (um
terço) até a metade se o crime for
praticado por milícia privada, sob o
pretexto de prestação de serviço de
segurança, ou por grupo de
extermínio.
§ 7º A pena do feminicídio é
aumentada de 1/3 (um terço) até a
metade se o crime for praticado:
I – durante a gestação ou nos 3 (três)
meses posteriores ao parto;
II – contra pessoa menor de catorze
anos, maior de sessenta anos, com
deficiência ou portadora de doenças
degenerativas
que
acarretem
condição
limitante
ou
de
vulnerabilidade física ou mental;
III – na presença física ou virtual de
descendente ou de ascendente da
vítima;
IV – em descumprimento das medidas
protetivas de urgência previstas nos
incisos I, II e III do caput do art. 22 da
Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006.
2.1
O primeiro homicídio
De todas as infrações penais, o homicídio é aquela que,
efetivamente, desperta mais interesse. O homicídio reúne uma
mistura de sentimentos – ódio, rancor, inveja, paixão etc. – que o
torna um crime especial, diferente dos demais. Normalmente,
quando não estamos diante de criminosos profissionais, o homicida
é autor de um único crime do qual, normalmente, se arrepende.
A Bíblia nos relata a história do primeiro homicídio, cometido
por Caim, contra seu irmão Abel, em Gênesis, Capítulo 4, versículo
8. Caim agiu impelido por um sentimento de inveja, pois Deus havia
se agradado da oferta trazida pelo seu irmão Abel e rejeitado a dele.
Dessa forma, Caim chamou Abel para com ele ir ao campo e, lá, o
matou.
Pelo fato de ter causado a morte de seu irmão, Deus puniu
Caim, amaldiçoando-o, fazendo com que passasse a ser um fugitivo
e errante pela Terra. Caim, prevendo que também seria morto como
vingança pelo crime por ele praticado, disse a Deus, em Gênesis 4,
versículos 13 a 16:
“É tamanho o meu castigo, que já não posso suportá-lo. Eis que
hoje me lanças da face da Terra, e da tua presença hei de
esconder-me; serei fugitivo e errante pela Terra; quem comigo
se encontrar me matará. O SENHOR, porém, lhe disse: Assim
qualquer que matar Caim será vingado sete vezes. E pôs o
SENHOR um sinal em Caim para que o não ferisse de morte
quem quer que o encontrasse. Retirou-se Caim da presença do
SENHOR e habitou na terra de Node, ao oriente do Éden.”
Como regra, no instante imediatamente seguinte ao do crime
praticado, o homicida percebe as consequências de seu ato. É
tomado, então, por um sentimento de medo, incerteza, insegurança,
fragilidade... A partir daquele instante, ele se tornará um fugitivo de
si mesmo.
A Bíblia ainda faz a distinção entre o homicídio doloso e aquele
praticado culposamente. Para este último, foram criadas as cidades
de refúgio, destinadas a acolher o agente que, de maneira culposa,
causou a morte de alguém, a fim de não ser morto, também, pelo
vingador de sangue. Aquele que passasse a viver nessas cidades
de refúgio estaria a salvo da vingança privada. Se, entretanto, o
homicídio fosse doloso, não importando o lugar onde estivesse o
agente, ele seria entregue nas mãos do mencionado vingador para
que morresse.4
Há, também, criminosos frios, que sentem prazer ao ver o
sofrimento da vítima, que praticam atrocidades inomináveis, como
temos presenciado nos meios de comunicação. Valores são
deixados de lado, para darem lugar a sentimentos desprezíveis.
Filhos causando a morte de seus pais, com a finalidade de herdarlhes os bens, maridos matando suas esposas para ficarem com
suas amantes, enfim, o delito de homicídio, dentre todas as
infrações penais, é aquele que requer estudo mais detalhado, dada
a sua complexidade.
2.2
Homicídio simples, privilegiado e qualificado
O homicídio simples, previsto no caput do art. 121 do Código
Penal, cuja pena de reclusão varia de 6 (seis) a 20 (vinte) anos,
possui a redação mais compacta de todos os tipos penais
incriminadores, que diz: matar alguém. É composto, portanto, pelo
núcleo matar e pelo elemento objetivo alguém. Matar tem o
significado de tirar a vida; alguém, a seu turno, diz respeito ao ser
vivo, nascido de mulher. Somente o ser humano vivo pode ser
vítima do delito de homicídio. Assim, o ato de matar alguém tem o
sentido de ocisão da vida de uma pessoa por outra pessoa.
Dessa forma, podemos identificar, com clareza, nesse tipo
penal, o seu núcleo, o sujeito ativo, o sujeito passivo, o objeto
material, bem como o bem juridicamente protegido.
O § 1º do art. 121 do Código Penal prevê o chamado homicídio
privilegiado. Na verdade, a expressão homicídio privilegiado,
embora largamente utilizada pela doutrina e pela jurisprudência,
nada mais é do que uma causa especial de redução de pena, tendo
influência no terceiro momento da sua aplicação. Para que pudesse,
efetivamente, usufruir o status de privilegiado, as penas mínima e
máxima previstas no mencionado parágrafo deveriam ser menores
do que as do caput. Como isso não acontece, existe ali, tão
somente, uma minorante, ou seja, uma causa de redução de pena,
tal como informa a sua rubrica, cujos elementos serão vistos em
tópico próprio.
Localizado após as causas de diminuição de pena encontra-se
o homicídio qualificado, cominando uma pena de reclusão, de 12
(doze) a 30 (trinta) anos, para aquele que causar a morte de
alguém: I – mediante paga ou promessa de recompensa, ou por
outro motivo torpe; II – por motivo fútil; III – com emprego de
veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou
cruel, ou de que possa resultar perigo comum;
IV – à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro
recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido; V –
para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem
de outro crime; VI – contra a mulher por razões da condição de sexo
feminino (inserido pela Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015); e VII
– contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da
Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força
Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em
decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente
consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição (inserido
pela Lei nº 13.142, de 6 de julho de 2015). Sendo qualificado o
homicídio, deverá o julgador, após concluir que o fato praticado pelo
agente era típico, ilícito e culpável, levando em consideração o
critério trifásico do art. 68 do Código Penal, fixar a pena -base nos
limites nele previstos. Cada uma das qualificadoras também
merecerá análise individualizada mais adiante.
2.2.1
Classificação doutrinária
Crime comum, tanto no que diz respeito ao sujeito ativo, quanto
ao sujeito passivo; simples; de forma livre (como regra, pois existem
modalidades qualificadas que indicam os meios e modos para a
prática do delito, como ocorre nas hipóteses dos incisos III e IV),
podendo ser cometido dolosa ou culposamente, comissiva ou
omissivamente (nos casos de omissão imprópria, quando o agente
possuir status de garantidor); de dano; material; instantâneo de
efeitos
permanentes;
não
transeunte;
monossubjetivo;
plurissubsistente; podendo figurar, também, a hipótese de crime de
ímpeto (como no caso da violenta emoção, logo em seguida à
injusta provocação da vítima).
2.2.2
Sujeito ativo e sujeito passivo
Sujeito ativo do delito de homicídio pode ser qualquer pessoa,
haja vista tratar-se de um delito comum, uma vez que o tipo penal
não delimita sua prática por determinado grupo de pessoas que
possua alguma qualidade especial. Sujeito passivo, da mesma
forma, também pode ser qualquer pessoa, em face da ausência de
qualquer especificidade constante do tipo penal. É, portanto, o ser
vivo, nascido de mulher.
O importante é que o matar alguém seja entendido como a
morte de uma pessoa, produzida por outra pessoa afastando-se,
portanto, por absurdo e atípico, o folclore que se escuta no meio
forense de casos em que já houve denúncia por homicídio em face
de alguém que provocou a morte de uma vaca, um cachorro etc.
Também somente haverá homicídio se, ao tempo da ação ou da
omissão, a vítima se encontrava com vida, pois, caso contrário,
estaremos diante da hipótese de crime impossível, em razão da
absoluta impropriedade do objeto.
Situação que merece análise mais aprofundada, mesmo que
incomum, é a do homicídio praticado por xifópagos, ou irmãos
siameses. Se ambos, de comum acordo, resolverem matar alguém,
serão condenados pelo delito de homicídio, se não houver qualquer
causa que exclua a ilicitude ou afaste a culpabilidade, devendo,
portanto, se for o caso, cumprir as penas a eles aplicadas.
A partir do momento do início do cumprimento da pena, ou no
caso em que não agiam unidos pelo vínculo psicológico, na hipótese
em que um deles não queria causar a morte da vítima, o raciocínio
se torna mais interessante, mesmo que tão somente acadêmico,
pois, até o momento, nunca ouvimos falar de “xifópagos homicidas.”
Contudo, as soluções seriam as seguintes: como os irmãos
siameses possuem, cada qual, sua personalidade distinta da do
outro, no momento de fixação da pena, levando em consideração,
principalmente, o art. 59 do Código Penal, podem receber, ao final
do cálculo relativo ao critério trifásico previsto pelo art. 68 do Código
Penal, penas diferentes, sendo um deles, por exemplo, punido mais
severamente do que o outro. O que fazer na hipótese, quase que
inimaginável, de um dos irmãos siameses já ter conquistado o
tempo para que possa ser colocado em liberdade, enquanto o outro,
não? Nesse caso, sendo impossível a separação cirúrgica, ambos
devem ser colocados em liberdade, sob pena de se tornar ilegal a
prisão daquele que havia alcançado esse direito.
Como segunda hipótese, colocamos o caso de homicídio
praticado por um dos xifópagos, sem que tenha havido o acordo de
vontade do outro, ou seja, sem que se possa falar em concurso de
pessoas. Nesse caso, como professa Bento de Faria, “a decisão
deve ser proferida em favor da liberdade,”5 razão pela qual o irmão
siamês que não desejava o resultado morte não poderá ser punido,
reflexamente, em virtude do comportamento do outro irmão, sendo
que a solução será a impunidade do fato.
Podem os siameses, contudo, ser vítimas, também, do delito de
homicídio. Se o agente queria a morte de ambos, a questão é
relativamente simples, devendo responder por dois crimes de
homicídio, em concurso formal impróprio, uma vez que, por
exemplo, ao atirar contra os xifópagos, agia com desígnios
autônomos, almejando a morte de ambos, devendo, outrossim, de
acordo com a parte final do art. 70 do Código Penal, ser aplicadas
cumulativamente as penas.
O que fazer, entretanto, na hipótese em que o agente era, por
exemplo, amigo de A e inimigo de B, e queria tão somente causar a
morte deste último, mesmo sabendo que eram siameses
inseparáveis cirurgicamente? Hungria, com o auxílio de Manzini,
responde a essa indagação dizendo:
“No caso dos indivíduos duplos ou xifópagos, ter-se-á sempre
um duplo homicídio doloso, ainda que a ação imediata do
criminoso tenha atingido um só dos seres unidos. É o que
observa Manzini: ‘se o criminoso queria matar ambos os irmãos
siameses, é claro que responde por dois homicídios dolosos,
em concurso material; se sua ação era determinada pelo
propósito de matar um só, implicava, por necessidade lógica e
biológica, a vontade de matar ambos, de vez que a morte de
um determina, normalmente, também a morte do outro, e,
assim, quanto a esta, subsiste o dolo eventual’. No caso
excepcionalíssimo, em que uma pronta e eficaz intervenção
cirúrgica logre salvar a vida de um deles, o réu responderá por
homicídio consumado e tentativa de homicídio.”6
Ousamos discordar, permissa vênia, somente da conclusão
relativa ao elemento subjetivo do agente que dirige sua conduta
contra um dos irmãos siameses. Se o resultado com relação a
ambos seria certo, mesmo que o agente quisesse a morte somente
de um deles, atuaria com dolo direto de primeiro grau com relação à
vítima cuja morte queria causar, e dolo direto de segundo grau com
relação ao siamês, cujo resultado não pretendia inicialmente, mas
que, em razão da situação, seria certo de acontecer, visto que são
inseparáveis. Se, por um milagre, o irmão siamês sobreviver, agora
sim, inevitavelmente, deverá responder pelo homicídio consumado,
em concurso com a tentativa de homicídio, uma vez que, tratandose de dolo eventual, não admitimos tal possibilidade.
Dessa forma, será tão somente admitida a tentativa nas
hipóteses de dolo direto, sendo ele de primeiro ou segundo grau,
não se admitindo tal possibilidade quando o dolo for eventual,
conforme já discorremos no estudo correspondente à parte geral do
Código Penal, para onde remetemos o leitor.
Da mesma forma, a Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015,
especializou o homicídio, criando a figura do feminicídio, quando
alguém, de acordo com o disposto no inciso VI do § 2º do art. 121
do Código Penal, causa a morte de uma mulher por razões da
condição de sexo feminino. A Lei nº 13.142, de 6 de julho de 2015,
inserindo o inciso VII no § 2º do art. 121 do Código Penal, também o
especializou, quando o qualificou tendo em vista a especial
condição do sujeito passivo, vale dizer, quando o homicídio tiver
como sujeito passivo autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e
144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da
Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em
decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente
consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição.
2.2.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
Objeto material do delito é a pessoa contra a qual recai a
conduta praticada pelo agente.
Bem juridicamente protegido é a vida e, num sentido mais
amplo, a pessoa, haja vista que o delito de homicídio encontra-se
inserido no capítulo correspondente aos crimes contra a vida, no
Título I do Código Penal, que prevê os crimes contra a pessoa.
O caput do art. 5º de nossa Constituição Federal assevera que
todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País
a inviolabilidade do direito à vida [...]. Embora a Lei Maior nos tenha
assegurado esse direito, a vida pode ser considerada como um
direito absoluto do cidadão? A resposta a essa indagação só pode
ser negativa. Isso porque, mesmo sendo o mais importante de
todos, o direito à vida não é absoluto, pois a Constituição da
República, mesmo que excepcionalmente, permitiu a pena de morte,
nos casos de guerra declarada, nos termos do seu art. 84, XIX.
Se não bastasse, ainda existem em favor do agente que elimina
a vida de seu semelhante as causas de justificação, a exemplo do
estado de necessidade e da legítima defesa, como ainda algumas
dirimentes, como acontece nas hipóteses em que era inexigível um
outro comportamento do agente.
Independentemente das exceções que têm por finalidade
justificar a regra, a proteção da vida, por intermédio do art. 121 do
Código Penal, começa a partir do início do parto, encerrando-se
com a morte da vítima. Isso quer dizer que, uma vez iniciado o
trabalho de parto, com a dilatação do colo do útero ou com o
rompimento da membrana amniótica, sendo o parto normal, ou a
partir das incisões das camadas abdominais, no parto cesariana, até
a morte do ser humano, que ocorre com a morte encefálica, nos
termos do art. 3º da Lei nº 9.434/97, mesmo que haja vida
intrauterina, poderá ocorrer o delito em estudo.
A prova da vida, portanto, é indispensável à caracterização do
homicídio. Hungria afirma:
“Somente pode ser sujeito passivo do homicídio o ser humano
com vida. Mas o que é vida? Ou, mais precisamente: como ou
quando começa a vida? Dizia Gasper: ‘viver é respirar; não ter
respirado é não ter vivido’. Formulado assim irrestritamente,
não é exato o conceito, ainda mesmo que se considerasse vida
somente a que se apresenta de modo autônomo, per se stante,
já inteiramente destacado o feto do útero materno. A respiração
é uma prova, ou melhor, a infalível prova da vida; mas não é a
imprescindível condição desta, nem a sua única prova. O
neonato apneico ou asfíxico não deixa de estar vivo pelo fato de
não respirar. Mesmo sem respiração, a vida pode manifestar-se
por outros sinais, como sejam o movimento circulatório, as
pulsações do coração etc. É de notar-se, além disso, que a
própria destruição da vida biológica do feto, no início do parto
(com o rompimento do saco amniótico), já constitui homicídio,
embora eventualmente assuma o título de infanticídio.”7
Como se pode perceber pelas lições de Hungria, iniciado o
parto (normal ou cesárea), comprovada a vitalidade do nascente, ou
seja, aquele que está nascendo, ou do neonato, isto é, o que
acabou de nascer, já podemos pensar, em termos de crimes contra
a vida, no delito de homicídio, ou, caso tenha sido praticado pela
gestante, sob a influência do estado puerperal, no crime de
infanticídio.
No que diz respeito à possibilidade de ocorrência do delito de
homicídio, ainda havendo vida intrauterina, mesmo depois de já ter
sido iniciado o parto, há divergência em nossa doutrina.
Cezar Roberto Bitencourt, com precisão, esclarece:
“A vida começa com o início do parto, com o rompimento do
saco amniótico; é suficiente a vida, sendo indiferente a
capacidade de viver. Antes do início do parto, o crime será de
aborto. Assim, a simples destruição da vida biológica do feto, no
início do parto, já constitui o crime de homicídio.”8
Em sentido contrário, Ney Moura Teles afirma que “homicídio é
a destruição da vida humana extrauterina, praticada por outro ser
humano.”9
Acreditamos não haver necessidade de vida extrauterina para
que se possa falar em homicídio. O início do parto encerra, na
verdade, a possibilidade de prática do delito de aborto e dá início ao
raciocínio dos crimes de homicídio e infanticídio.
Deve ser destacado, por oportuno, que a inviabilidade de o feto
permanecer vivo depois do rompimento do cordão umbilical não
afasta a ocorrência do delito de homicídio. Assim, suponhamos a
hipótese de feto anencéfalo, cuja sobrevida será quase que
nenhuma após o rompimento do cordão umbilical. Se alguém vier a
causar a sua morte, mesmo que essa fosse ocorrer poucos minutos
após a conduta do agente, sendo, portanto, um fato inevitável, ainda
assim deverá responder pelo crime de homicídio.10
Com a morte encerra-se a proteção pelo art. 121 do Código
Penal. A Lei nº 9.434/97, que dispõe sobre a remoção de órgãos,
tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e
tratamento, especificando o momento em que se considera extinta a
vida, diz em seu art. 3º:
Art. 3º A retirada post mortem de
tecidos, órgãos ou partes do corpo
humano destinados a transplante ou
tratamento deverá ser precedida de
diagnóstico de morte encefálica,
constatada e registrada por dois
médicos não participantes das
equipes de remoção e transplante,
mediante a utilização de critérios
clínicos e tecnológicos definidos por
resolução do Conselho Federal de
Medicina.
2.2.4
Exame de corpo de delito
Tratando-se de crime material, infração penal que deixa
vestígios, o homicídio, para que possa ser atribuído a alguém, exige
a confecção do indispensável exame conforme determinam os arts.
158 e 167 do Código de Processo Penal, verbis:
Art. 158. Quando a infração deixar
vestígios, será indispensável o exame
de corpo de delito, direto ou indireto,
não podendo supri-lo a confissão do
acusado.
Parágrafo único. Dar-se-á prioridade à
realização do exame de corpo de
delito quando se tratar de crime que
envolva:
I – violência doméstica e familiar
contra mulher;
II – violência contra criança,
adolescente, idoso ou pessoa com
deficiência.
Art. 167. Não sendo possível o exame
de corpo de delito, por haverem
desaparecido os vestígios, a prova
testemunhal poderá suprir-lhe a falta.
Conforme esclarece Eugênio Pacelli de Oliveira:
“Deixando vestígios a infração, a materialidade do delito e/ou a
extensão de suas consequências deverão ser objeto de prova
pericial, a ser realizada diretamente sobre o objeto material do
crime, o corpo de delito, ou, não mais podendo sê-lo, pelo
desaparecimento inevitável do vestígio, de modo indireto.
O exame indireto será feito também por meio de peritos, só que
a partir de informações prestadas por testemunhas ou pelo
exame de documentos relativos aos fatos cuja existência se
quiser provar, quando então se exercerá e se obterá apenas um
conhecimento técnico por dedução.”11
Somente na ausência completa de possibilidade de realização
do exame de corpo de delito, seja ele direto, seja indireto, é que a
prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta, nos termos
preconizados pelo art. 167 do Código de Processo Penal.
Deverão os expertus, portanto, confeccionar o necessário laudo
pericial com base no exame direto no corpo da vítima, ou, ainda, por
meio de informações (documentos, materiais, testemunhos etc.) que
os faça concluir pela sua morte, narrando, precisamente, os motivos
pelos quais são levados a acreditar na sua efetiva ocorrência.
Somente não havendo possibilidade de confeccionar o laudo
pericial é que a prova testemunhal poderá ser considerada, em
substituição a ele.12
Estamos com Cezar Roberto Bitencourt quando preleciona:
“Uma coisa é afirmarem as testemunhas que viram tais ou
quais aspectos ou vestígios, e outra é os peritos concluírem
através da análise realizada pela existência da materialidade do
crime. Todos recordam a fatídica perda do saudoso Ulysses
Guimarães, em 1992, com a queda do helicóptero no mar.
Aquela situação poderia dar lugar ao exame indireto do corpo
de delito ou, dependendo das circunstâncias, ser este suprido
pela prova testemunhal. Se tivessem sido encontrados no fundo
do mar vestígios da queda do helicóptero, com pertences da
vítima, destroços com peças de seu vestuário ou até partes de
seu organismo, caberia o exame indireto de corpo de delito, a
ser realizado pelos peritos. Contudo, se nada disso fosse
encontrado, o exame indireto seria impossível, mas poderia ser
suprido pela prova testemunhal, inquirindo-se alguém que
tivesse presenciado o embarque na aeronave, o sobrevoo do
mar com dificuldades de sustentação e a própria queda no mar;
estar-se-ia diante da hipótese do art. 167 do CPP.”13
2.2.4.1
Cadeia de custódia
O art. 158-A, inserido no Código de Processo Penal através da
Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, criou a chamada cadeia
de custódia, dizendo, verbis:
Art. 158-A. Considera-se cadeia de
custódia o conjunto de todos os
procedimentos utilizados para manter
e documentar a história cronológica
do vestígio coletado em locais ou em
vítimas de crimes, para rastrear sua
posse e manuseio a partir de seu
reconhecimento até o descarte.
§ 1º O início da cadeia de custódia dáse com a preservação do local de
crime ou com procedimentos policiais
ou periciais nos quais seja detectada
a existência de vestígio.
§ 2º O agente público que reconhecer
um elemento como de potencial
interesse para a produção da prova
pericial fica responsável por sua
preservação.
§ 3º Vestígio é todo objeto ou material
bruto, visível ou latente, constatado ou
recolhido, que se relaciona à infração
penal.
Os arts. 158-B a 158-F, também inseridos no mesmo diploma
processual pela Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, cuidam
e especificam todos os procedimentos necessários à manutenção e
documentação histórica cronológica do vestígio coletado.
2.2.5
Elemento subjetivo
O elemento subjetivo constante do caput do art. 121 do Código
Penal é o dolo, ou seja, a vontade livre e consciente de matar
alguém. O agente atua com o chamado animus necandi ou animus
occidendi. A conduta do agente, portanto, é dirigida finalisticamente
a causar a morte de uma pessoa.
Admite-se que o delito seja cometido a título de dolo direto
quando o agente quer, efetivamente, a produção do resultado morte,
ou quando assume o risco de produzi-lo, atuando, outrossim, com
dolo eventual.
Pode ocorrer, portanto, o homicídio, tanto a título de dolo direto,
seja ele de primeiro ou de segundo grau, quanto eventual.
2.2.6
Modalidades comissiva e omissiva
Pode o delito ser praticado comissivamente quando o agente
dirige sua conduta com o fim de causar a morte da vítima, ou
omissivamente, quando deixa de fazer aquilo a que estava obrigado
em virtude da sua qualidade de garantidor (crime omissivo
impróprio), conforme preconizado pelo art. 13, § 2º, alíneas a, b, e c,
do Código Penal, agindo dolosamente em ambas as situações.
Isso significa que o agente pode causar a morte de seu
desafeto atirando contra ele, ou, como no caso da mãe que, na
qualidade de garantidora de seu filho recém-nascido, almejando a
sua morte, não lhe fornece a alimentação necessária à sua
sobrevivência.
A redação contida no art. 121 do Código Penal, portanto, prevê
um comportamento comissivo, que poderá, entretanto, ser praticado
via omissão, em virtude da posição de garante ocupada pelo
agente.
2.2.7
Meios de execução
Delito de forma livre, o homicídio pode ser praticado mediante
diversos meios, que podem ser subdivididos em: a) diretos; b)
indiretos; c) materiais; d) morais.
Podemos citar como exemplos de meios diretos na prática do
homicídio o disparo de arma de fogo, a esganadura etc.; indiretos, o
ataque de animais açulados pelo dono, loucos estimulados; os
meios materiais podem ser mecânicos, químicos, patológicos; os
meios morais são, por exemplo, o susto, o medo, a emoção violenta.
2.2.8
Consumação e tentativa
A consumação do delito de homicídio ocorre com o resultado
morte, já mencionado, sendo, in casu, perfeitamente admissível a
tentativa, tendo em vista tratar-se de crime material e
plurissubsistente, sendo possível a hipótese de fracionamento do
iter criminis.
O agente, portanto, deverá agir com animus necandi, dirigindo
finalisticamente sua conduta no sentido de causar a morte da vítima.
Apesar da possibilidade de o resultado morte ocorrer até
mesmo dias, ou meses após a prática da conduta levada a efeito
pelo agente, para fins de aplicação da lei penal, considera-se
praticado o crime, nos termos do art. 4º do Código Penal, no
momento da ação ou da omissão, ainda que outro seja o momento
do resultado.
Entretanto, com o objetivo de apontar o termo inicial da
prescrição, conforme determinam os incisos I e II do art. 111 do
Código Penal, levaremos em consideração: I – o dia em que o crime
se consumou, vale dizer, no caso do delito de homicídio, quando
ocorrer, efetivamente, a morte da vítima; II – no caso de tentativa, do
dia em que cessou a atividade criminosa.
Após o advento da Lei nº 9.434/97, que dispôs sobre a remoção
de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de
transplante e tratamento, adotou-se a morte encefálica como o
momento de cessação da vida, devendo, pois, nos termos do art. 3º
do mencionado diploma legal, para efeitos das finalidades por ela
previstas, ser constatada e registrada por dois médicos não
participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a
utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução
do Conselho Federal de Medicina.
2.2.9
Homicídio privilegiado
O § 1º do art. 121 do Código Penal cuida do chamado homicídio
privilegiado. Na verdade, como já dissemos, trata-se de uma causa
especial de diminuição de pena,14 aplicada às hipóteses nele
previstas.
O mencionado parágrafo cuida de duas situações distintas. Na
sua primeira parte, a minorante será aplicada quando o agente
comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou
moral. Na segunda parte, já não se tem que perquirir a relevância
social ou moral que motivou o agente a atuar, causando a morte da
vítima. Agora, numa situação distinta da anterior, age sob o domínio
de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da
vítima.
Como se percebe, para que se possa erigir em favor do agente
a diminuição de pena relativa ao motivo de relevante valor social ou
moral, não há necessidade de que tenha sido injustamente
provocado pela vítima. São, portanto, situações distintas que
importam em redução da pena.
Na qualidade de minorante ou causa de diminuição de pena,
deverá ser aplicada a redução de um sexto a um terço no terceiro
momento previsto pelo art. 68 do Código Penal.
Embora a lei diga que o juiz pode reduzir a pena, não se trata
de faculdade do julgador, senão direito subjetivo do agente em ver
diminuída sua pena, quando seu comportamento se amoldar a
qualquer uma das duas situações elencadas pelo parágrafo.
Luiz Regis Prado, analisando o dispositivo em questão,
esclarece:
“A redução de pena expressamente consignada no citado
dispositivo seria obrigatória ou meramente facultativa? Trata-se
de questão assaz conflitiva, cuja solução não é unitária. Parte
da doutrina divisa que a diminuição da sanção penal imposta é
facultativa, já que a própria Exposição de Motivos (Decreto-lei
nº 2.848/40) se pronunciava nesse sentido. De outro lado,
defende-se a obrigatoriedade da atenuação da pena, com lastro
na soberania do júri, constitucionalmente reconhecida (art. 5º,
XXXVIII, CF). Com efeito, sendo o homicídio delito de
competência do Tribunal do Júri, ter-se-ia manifesta violação da
soberania dos veredictos na hipótese de não realização pelo
juiz da atenuação prevista, se reconhecido o privilégio ínsito no
§ 1º do art. 121.
O entendimento mais acertado é o de que a redução é
imperativa.”15
Assim, presentes todos os elementos constantes do § 1º do art.
121 do Código Penal, reconhecida a causa de diminuição pelo
Tribunal do Júri, importa ao julgador tão somente a fixação do
quantum da redução, não podendo levar a efeito qualquer juízo
sobre a possibilidade ou não de sua aplicação.
2.2.9.1
Motivo de relevante valor social ou moral
Os elementos que integram a primeira parte do § 1º do art. 121
do Código Penal são os seguintes: motivo de relevante valor social
e motivo de relevante valor moral.
Como se depreende da leitura da primeira parte do aludido
parágrafo, inicialmente, o motivo que impeliu o agente a praticar o
homicídio deve ser relevante. O primeiro raciocínio a ser feito,
portanto, diz respeito à comprovação da relevância. Caso não seja
relevante, isto é, não goze de certa importância, coletiva ou
individual, mesmo que tenha valor social ou moral, não poderá servir
como causa de diminuição de pena.
Relevante valor social é aquele motivo que atende aos
interesses da coletividade. Não interessa tão somente ao agente,
mas, sim, ao corpo social. A morte de um traidor da pátria, no
exemplo clássico da doutrina, atenderia à coletividade, encaixandose no conceito de valor social. Podemos traçar um paralelo com a
morte de um político corrupto por um agente revoltado com a
situação de impunidade no país, em que o Direito Penal, de acordo
com sua característica de seletividade, escolhe somente a classe
mais baixa, miserável, a fim de fazer valer a sua força.
Relevante valor moral é aquele que, embora importante, é
considerado levando-se em conta os interesses do agente. Seria,
por assim dizer, um motivo egoisticamente considerado, a exemplo
do pai que mata o estuprador de sua filha.
As hipóteses de eutanásia também se amoldam à primeira
parte do § 1º do art. 121 do Código Penal. Nas precisas lições de
Fernando Capez, eutanásia:
“Significa boa morte. É o antônimo de distanásia. Consiste em
pôr fim à vida de alguém, cuja recuperação é de dificílimo
prognóstico, mediante o seu consentimento expresso ou
presumido, com a finalidade de abreviar-lhe o sofrimento.
Troca-se, a pedido do ofendido, um doloroso prolongamento de
sua existência por uma cessação imediata da vida, encurtando
sua aflição física. Pode ser praticada mediante um
comportamento comissivo (eutanásia ativa) ou omissivo (forma
passiva).”16
Quando o agente causa a morte do paciente já em estado
terminal, que não suporta mais as dores impostas pela doença da
qual está acometido, impelido por esse sentimento de compaixão,
deve ser considerado um motivo de relevante valor moral, impondose a redução obrigatória da pena.
Merece ressaltar que, em ambas as hipóteses, a diminuição
deve ser aplicada, em decorrência do menor juízo de censura que
recai sobre a conduta do agente que atua amparado por uma
dessas motivações.
2.2.9.2
Sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida à
injusta provocação da vítima
A segunda parte do § 1º do art. 121 do Código Penal também
determina a redução da pena quando o agente atua sob o domínio
de violenta emoção, logo em seguida à injusta provocação da
vítima.
São vários, portanto, os elementos que devem se fazer
presentes para que o agente possa ter o direito subjetivo de ver
diminuída sua pena, a saber: a) sob o domínio; b) violenta emoção;
c) logo em seguida; d) injusta provocação da vítima.
a)
b)
Quando a lei penal usa a expressão sob o domínio, isso
significa que o agente deve estar completamente dominado
pela situação. Caso contrário, se somente agiu
influenciado, a hipótese não será de redução de pena em
virtude da aplicação da minorante, mas tão somente de
atenuação, em face da existência da circunstância prevista
na alínea c do inciso III do art. 65 do Código Penal (sob a
influência de violenta emoção, provocada por ato injusto da
vítima). Isso significa que a injusta provocação levada a
efeito pela vítima fez com que o agente perdesse a sua
capacidade de autocontrole, levando-o a praticar o ato
extremo.
Emoção, na lição de Hungria:
“É um estado de ânimo ou de consciência caracterizado
por uma viva excitação do sentimento. É uma forte e
transitória perturbação da efetividade, a que estão
ligadas certas variações somáticas ou modificações
particulares das funções da vida orgânica (pulsar
precípite do coração, alterações térmicas, aumento da
irrigação cerebral, aceleração do ritmo respiratório,
alterações vasimotoras, intensa palidez ou intenso rubor,
tremores, fenômenos musculares, alteração das
secreções, suor, lágrimas etc.).”17
A punição daquele que atua sob o domínio de violenta emoção
se compatibiliza com a regra contida no inciso I do art. 28 do Código
Penal, que diz não excluir a imputabilidade penal a emoção ou a
paixão. A mensagem que se depreende do mencionado inciso é a
de que a legislação penal não adota a emoção ou a paixão, mesmo
que violentas, como causas que conduzem à exclusão da
culpabilidade do agente.
Nos julgamentos realizados pelo Júri, embora não devam ser
admitidos os chamados crimes passionais, como os jurados, em
geral, se colocam no lugar daquele que praticou a infração penal,
absolvem, muitas vezes, o agente de fatos que, de acordo com a lei
penal, ensejariam condenações. Daí por que exclamava Roberto
Lyra, alertando: “A absolvição dos homicidas passionais, quando
são condenados os passionais que apenas ferem ou injuriam, é
conselho para o crime máximo.”18
c)
A expressão logo em seguida denota relação de
imediatidade, de proximidade com a provocação injusta a
que foi submetido o agente. Isso não significa, contudo,
que logo em seguida não permita qualquer espaço de
tempo. O que a lei busca evitar, com a utilização dessa
expressão, é que o agente que, provocado injustamente,
possa ficar “ruminando” a sua vingança, sendo, ainda
assim, beneficiado com a diminuição da pena. Não elimina,
contudo, a hipótese daquele que, injustamente provocado,
vai até a sua casa em busca do instrumento do crime, para
com ele produzir o homicídio. Devemos entender a
expressão logo em seguida utilizando um critério de
razoabilidade. Guilherme de Souza Nucci, analisando a
expressão em estudo, preleciona:
“O aspecto temporal – logo em seguida – deve ser
analisado com critério e objetividade, constituindo algo
imediato, instantâneo. Embora se admita o decurso de
alguns minutos, não se pode estender o conceito para
horas, quiçá dias. Um maior espaço de tempo entre a
injusta provocação e a reação do agente deve ser
encaixado na hipótese da atenuante, mas jamais do
privilégio.”19
d)
Finalmente, merece destaque, também, a locução injusta
provocação. Prima facie, devemos distinguir o que vem a
ser injusta provocação, que permite a redução de pena, da
chamada injusta agressão, que conduzirá ao completo
afastamento da infração penal, em virtude da existência de
uma causa de justificação, vale dizer, a legítima defesa.
Já tivemos oportunidade de salientar, quando do estudo da
legítima defesa, que é importantíssima a distinção entre agressão
injusta e provocação. Isso porque se considerarmos o fato como
injusta agressão caberá a arguição da legítima defesa, não se
podendo cogitar da prática de qualquer infração penal por aquele
que se defende nessa condição; caso contrário, se entendermos
como uma simples provocação, contra ela não poderá ser alegada a
excludente em benefício do agente, e ele terá que responder
penalmente pela sua conduta.
No escólio de Assis Toledo, é preciso:
“Não confundir, como se tem feito por vezes, ‘provocação’ não
intencional com ‘agressão’. Embora a agressão possa ser uma
provocação (um tapa, um empurrão) nem toda provocação
constitui verdadeira agressão (pilhérias, desafios, insultos).
Nesta última hipótese é que não se deve supervalorizar a
provocação para permitir-se, a despeito dela, a legítima defesa
quando o revide do provocado ultrapassar o mesmo nível e
grau da primeira. Em outras palavras: uma provocação verbal
pode ser razoavelmente repelida com expressões verbais, não
com um tiro, uma facada ou coisa parecida. Se o provocado
chega a estes extremos, não há como negar ao provocador a
possibilidade de defesa, com as ressalvas inicialmente feitas.”20
Na verdade, o ilustre Ministro, quando faz a distinção entre
agressão e provocação, utiliza os critérios da necessidade dos
meios e da proporcionalidade da repulsa, os quais são pertinentes
quando estamos diante de uma agressão injusta, na qual levamos
em conta, para se concluir pela necessidade dos meios utilizados, a
proporção entre a repulsa e a ofensa ao bem protegido. Tais
critérios, contudo, segundo entendemos, não resolvem o problema
da distinção entre agressão e provocação.
O que para alguns poderá ser considerado mera provocação,
para outros terá o cunho de agressão. A distinção é extremamente
subjetiva em algumas situações.
Imaginemos que determinado agente, sensível a qualquer tipo
de brincadeira que atinja os seus brios, esteja caminhando em
direção à sua residência quando, de repente, percebe que um de
seus vizinhos, sabendo dos seus limites, começa a enviar-lhe beijos
jocosos. O agente, não suportando aquela situação e entendendo
que sua honra estava sendo agredida, vai ao encontro daquele que,
segundo o seu entendimento, o atingia moralmente e o agride,
querendo, com isso, fazer cessar a suposta agressão contra a sua
honra. Do exemplo fornecido podem surgir duas consequências: a)
o ato de enviar beijos pode ser considerado mera provocação e,
como tanto, não permite ao agente atuar em legítima defesa,
servindo, tão somente, como circunstância atenuante (art. 65, III, c),
em caso de ser ele condenado por ter praticado o delito tipificado no
art. 129 do Código Penal, pois o fato pode ser considerado típico,
antijurídico e culpável; b) se considerarmos que os beijos enviados
ao agente consistiam numa agressão à sua honra subjetiva, terá ele
atuado em legítima defesa e, assim, a sua conduta, embora típica,
não poderá ser considerada ilícita, devendo ser absolvido por não
ter cometido infração penal alguma.
Como consequência desse raciocínio, devemos concluir que
aquele que provoca alguém sem o intuito de agredi-lo pode agir na
defesa da sua pessoa, caso o provocado parta para o ataque, não
sendo permitida essa possibilidade àquele que comete injusta
agressão.
O próprio Código Penal faz menção, mesmo que
implicitamente, à provocação, distinguindo-a da agressão, a
exemplo dos arts. 59 (comportamento da vítima), 65, III, c (sob a
influência de violenta emoção, provocada por ato injusto da vítima),
e 121, § 1º (logo em seguida à injusta provocação da vítima).
Tomemos o exemplo contido no § 1º do art. 121 do Código Penal,
que prevê o crime de homicídio privilegiado. A segunda parte do §
1º diz que se o agente comete o crime sob o domínio de violenta
emoção, logo em seguida à injusta provocação da vítima, o juiz
pode reduzir a pena de um sexto a um terço. Ora, se o que ocorre é
mera causa de redução de pena, é sinal de que se o agente reage a
uma provocação e causa a morte do provocador, pratica uma
conduta típica, antijurídica e culpável. Numa de suas brilhantes
passagens, dissertando sobre o homicídio privilegiado, mais
especificamente sobre a injustiça da provocação, assim se
posiciona Nélson Hungria:
“A injustiça da provocação deve ser apreciada objetivamente,
isto é, não segundo a opinião de quem reage, mas segundo a
opinião geral, sem se perder de vista, entretanto, a qualidade
ou condição das pessoas dos contendores, seu nível de
educação, seus legítimos melindres. Uma palavra que pode
ofender a um homem de bem já não terá o mesmo efeito
quando dirigida a um desclassificado. Por outro lado, não
justifica o estado de ira a hiperestesia sentimental dos alfenins
e mimosos. Faltará a objetividade da provocação, se esta não é
suscetível de provocar a indignação de uma pessoa normal e
de boa-fé.
É bem de ver que a provocação injusta deve ser tal que contra
ela não haja necessidade de defesa, pois, de outro modo, se
teria de identificar na reação a legítima defesa, que é causa
excludente de crime.”21
Concluindo, somente a agressão injusta abre a possibilidade ao
agredido de se defender legitimamente nos limites legais, o mesmo
não acontecendo com aquele que reage a uma provocação, pois
responderá pelo seu dolo, não havendo exclusão da ilicitude de sua
conduta.22
Assim, uma vez comprovado que o agente atuou sob o domínio
de violenta emoção, logo em seguida à injusta provocação da
vítima, deverá o julgador reduzir a sua pena de um sexto a um terço,
percentual que variará de acordo com a maior ou menor intensidade
da situação em que estava envolvido, sendo, portanto, direito
subjetivo do autor da infração penal ver aplicada a minorante, e não
mera faculdade do juiz, como poderia dar a entender a redação do §
1º do art. 121 do Código Penal, mesmo porque, como já frisamos,
reconhecida a causa de diminuição de pena pelo Tribunal do Júri,
não poderia o julgador, na qualidade de aplicador da pena, deixar de
apreciá-la no terceiro momento do critério trifásico previsto pelo art.
68 do Código Penal.
2.3
Homicídio qualificado
O § 2º do art. 121 do Código Penal cuidou do chamado
homicídio qualificado. As qualificadoras estão divididas em quatro
grupos, em razão dos quais a pena relativa ao crime de homicídio
passa a ser a de reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos, a saber:
a)
b)
c)
d)
motivos;
meios;
modos;
fins.
As qualificadoras que correspondem aos motivos estão
elencadas nos incisos I (paga ou promessa de recompensa, ou por
motivo torpe); II (motivo fútil); VI (contra a mulher por razões da
condição de sexo feminino) e VII (contra autoridade ou agente
descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do
sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no
exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge,
companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão
dessa condição).
No inciso III, diz a lei penal que qualifica o homicídio o emprego
de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso
ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum, apontando, assim,
os meios utilizados na prática da infração penal.
No inciso IV, o Código Penal arrolou, a título de qualificadoras,
os modos como a infração penal é cometida, vale dizer, à traição, de
emboscada ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte
ou torne impossível a defesa do ofendido.
No inciso V, o homicídio é qualificado pelos fins quando for
levado a efeito para assegurar a execução, a ocultação, a
impunidade ou a vantagem de outro crime.
A Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015, fez inserir mais um
inciso ao § 2º do art. 121 do Código Penal, criando, no inciso VI, o
chamado feminicídio, quando o homicídio é praticado contra a
mulher por razões da condição de sexo feminino. Aqui, como se
percebe, existe uma motivação especial, razão pela qual optamos
por subdividi-la em relação aos motivos apontados nos incisos I e II,
conforme analisaremos adiante com mais profundidade.
É importante frisar, nesta oportunidade, que o § 2º do art. 121
do Código Penal prevê uma modalidade de tipo derivado
qualificado. Isso significa que todas as qualificadoras devem ser
consideradas como circunstâncias, e não como elementares do tipo.
Tal raciocínio se faz mister pelo fato de que o art. 30 do Código
Penal determina:
Art. 30. Não se comunicam as
circunstâncias e as condições de
caráter
pessoal,
salvo
quando
elementares do crime.
Dessa forma, embora duas pessoas possam, agindo em
concurso, ter causado a morte de alguém, uma delas poderá ter
praticado o delito impelida por um motivo fútil, não comunicável ao
coparticipante, enquanto o outro poderá, por exemplo, responder
pela infração penal com a redução de pena relativa ao § 1º do
mencionado artigo, visto ter agido impelido por um motivo de
relevante valor moral.
São precisas as lições de Damásio de Jesus quando aduz:
“Circunstâncias são elementos acessórios (acidentais) que,
agregados ao crime, têm função de aumentar ou diminuir a
pena. Não interferem na qualidade do crime, mas sim afetam a
sua gravidade (quantitas delicti).
Podem ser:
a) objetivas (materiais ou reais);
b) subjetivas (ou pessoais).
Circunstâncias objetivas são as que se relacionam com os
meios e modos de realização do crime, tempo, ocasião, lugar,
objeto material e qualidades da vítima.
Circunstâncias subjetivas (de caráter pessoal) são as que só
dizem respeito à pessoa do participante, sem qualquer relação
com a materialidade do delito, como os motivos determinantes,
suas condições ou qualidades pessoais e relações com a vítima
ou com outros concorrentes. Observando-se que a participação
de cada concorrente adere à conduta e não à pessoa dos
outros participantes, devemos estabelecer as seguintes regras
quanto às circunstâncias do homicídio, aplicáveis à coautoria:
1a) não se comunicam as circunstâncias de caráter pessoal (de
natureza subjetiva);
2a) a circunstância objetiva não pode ser considerada no fato do
partícipe se não entrou na esfera de seu conhecimento.”23
Entendemos que toda vez que os tipos penais estiverem
ligados entre si pelos seus parágrafos estaremos diante dos
chamados tipos derivados, e não de delitos autônomos.
Analisaremos, a partir de agora, cada uma das qualificadoras
elencadas pelos sete incisos do § 2º do art. 121 do Código Penal.
2.3.1
Mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro
motivo torpe; motivo fútil
O inciso I do § 2º do art. 121 do Código Penal prevê a
modalidade qualificada do homicídio cometido mediante paga ou
promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe.
Ab initio, deve ser ressaltado que a lei penal, usando o recurso
da interpretação analógica, aponta que tanto a paga quanto a
promessa de recompensa são consideradas motivos torpes.
Torpe é o motivo abjeto que causa repugnância, nojo, sensação
de repulsa pelo fato praticado pelo agente. Aníbal Bruno, com
precisão, afirma:
“Torpe é o motivo que contrasta violentamente com o senso
ético comum e faz do agente um ser à parte no mundo socialjurídico em que vivemos. Entram nessa categoria, por exemplo,
a cobiça, o egoísmo inconsiderado, a depravação dos instintos.
Assim, a ambição de lucro de quem pratica homicídio para
receber um prêmio de seguro ou apressar a posse de uma
herança, ou eliminar um coerdeiro, ou fazer desaparecer um
credor inoportuno; o propósito de dar morte ao marido para
abrir caminho aos amores com a esposa; o prazer de matar, a
libido de sanguine, dos velhos práticos, essa rara e absurda
satisfação que o agente encontra na destruição da vida de
outrem e que vem muitas vezes associada a fatos de natureza
sexual ou constitui expansão do sentimento monstruoso de ódio
aos outros homens; o impulso mórbido de lascívia que conduz o
agente a atos de necrofilia.”24
Dentre esses motivos abjetos, o Código Penal apontou,
expressamente, a paga e a promessa de recompensa.
A paga é o valor ou qualquer outra vantagem, tenha ou não
natureza patrimonial, recebida antecipadamente, para que o agente
leve a efeito a empreitada criminosa. Já na promessa de
recompensa, como a própria expressão está a demonstrar, o agente
não recebe antecipadamente, mas, sim, existe uma promessa de
pagamento futuro.
Alguns detalhes merecem ser destacados com relação a essa
qualificadora. Inicialmente, afirmamos que a paga e a promessa de
recompensa não necessitam possuir natureza patrimonial. Podem
até, na verdade, e o que é mais comum, consubstanciar-se em
vantagens patrimoniais, a exemplo do pagamento em dinheiro.
Contudo, isso não é indispensável ao reconhecimento da
qualificadora, embora parte da doutrina se posicione contrariamente
a esse entendimento, como veremos adiante.
Tal ilação faz-se necessária considerando-se uma interpretação
sistêmica do Código Penal. Os tipos penais devem ser analisados
de acordo com os seus capítulos e títulos, buscando-se, outrossim,
chegar a uma interpretação mais coerente com o sistema no qual
está inserido. Assim, as qualificadoras da paga e da promessa de
recompensa pertencem ao delito de homicídio, que, por sua vez,
encontra-se inserido no capítulo correspondente aos crimes contra a
vida, também contido no Título relativo aos crimes contra a pessoa.
Não há, portanto, nenhuma limitação interpretativa a ele
correspondente, como acontece com aquela que devemos levar a
efeito quando do estudo do art. 159 do Código Penal, assim
redigido:
Art. 159. Sequestrar pessoa com o
fim de obter, para si ou para outrem,
qualquer vantagem, como condição
ou preço do resgate:
Que vantagem seria essa mencionada pelo art. 159 do Código
Penal? Poderia ter qualquer natureza, ou somente aquela de
natureza patrimonial? Interpretando sistemicamente o mencionado
artigo, verificamos que ele está inserido no capítulo correspondente
aos crimes de roubo e extorsão, que, por sua vez, encontram-se no
Título II, concernente aos crimes contra o patrimônio. Aqui, portanto,
de acordo com essa interpretação, a vantagem exigida pelo art. 159
do Código Penal só pode ser aquela de natureza patrimonial, ao
contrário do art. 121, que não limita ao patrimônio o seu bem
juridicamente protegido.
Em sentido contrário, trazemos à colação as lições de Luiz
Regis Prado:
“Questiona-se se a recompensa visada limita-se à retribuição
de ordem econômica ou se o legislador também albergou, no
presente dispositivo, a contraprestação sem valor patrimonial.
Sustenta-se, por um lado, que a qualificadora em análise
engloba inclusive a recompensa destituída de valor econômico,
isto é, considera-se que a expressão ‘promessa de
recompensa’ comporta motivos outros que, embora não
econômicos, possam ser equiparados a estes (v.g., promessa
de casamento, promessa de obtenção de cargo político etc.).
Todavia, predomina o entendimento segundo o qual a
recompensa deve ter, para a configuração da qualificadora,
conteúdo econômico. Embora não se negue que motivos não
econômicos possam perfeitamente figurar como móvil do delito,
não foram estes incluídos no âmbito da qualificadora. O
fundamento de maior reprovabilidade reside na desvaloração
do motivo, de forma que a admissão de motivos não
econômicos implicaria a necessidade de determinação, em
cada caso, da especial reprovabilidade dos mesmos, o que
criaria grande insegurança jurídica. Deveria ser analisado,
concretamente, se a promessa de um cargo público, de
matrimônio ou de um favor sexual, por exemplo, configuraria ou
não motivos torpes e, por isso, particularmente reprováveis. Por
essa razão, acertada a posição dominante que considera que a
paga ou a promessa de recompensa devam ter conteúdo
econômico. Pode o juiz, porém, avaliar o motivo não econômico
quando da fixação da pena-base (art. 59. CP).”25
Apesar da força do raciocínio anterior, entendemos que tanto a
paga quanto a promessa de recompensa não devem possuir,
necessariamente, natureza patrimonial, dife-renciando-se apenas no
que diz respeito ao momento em que são realizadas. A paga deve
ser entendida como a entrega antecipada da vantagem para a
prática do homicídio; a promessa de recompensa deve ser futura,
após a prática do delito extremo. Não estamos, como já afirmamos,
no Título correspondente aos crimes contra o patrimônio, mas, sim,
naquele que diz respeito aos crimes contra a pessoa. Não podemos,
in casu, limitar a interpretação, sob pena de fugirmos ao sistema do
Código Penal.
Ainda com relação à promessa de recompensa, merece
destaque o fato de que o agente responderá por esse delito mesmo
que não a receba após o cometimento do crime e ainda que o
mandante não tivesse a intenção, desde o início, de cumpri-la. Isso
porque o que qualifica o homicídio, nesse inciso I, é o motivo pelo
qual o agente atuou. Se o que determinou sua motivação foi o
recebimento de vantagem prometida, pouco importa se, após o
delito, a recebeu ou não. A raiz do homicídio está na motivação,
razão pela qual, ainda assim, o delito será qualificado.
Outro raciocínio que devemos trazer à tona neste momento é:
se existiu a paga ou a promessa de recompensa, é sinal de que
alguém pagou ou prometeu a vantagem para que outra pessoa
praticasse o homicídio. Existem, portanto, sempre dois personagens
pelo menos: mandante e executor.
A indagação que se faz, agora, é a seguinte: deverá o
mandante responder, também, pelo homicídio qualificado pelo
simples fato de ter prometido vantagem para que alguém o
praticasse? Entendemos que não. Isso porque, como já
esclarecemos acima, todas as qualificadoras devem ser
consideradas como circunstâncias. Aquele que recebe a paga ou
aceita a promessa de recebimento da vantagem para que pratique o
homicídio o faz por um motivo torpe. Pode ser, inclusive, que o
mandante possuísse um motivo de relevante valor moral, que não
se confundirá com aquele que motivou o executor a cometer o
homicídio.
Imagine a hipótese na qual um pai de família, trabalhador,
honesto, cumpridor de seus deveres, em virtude de sua situação
econômica ruim, tenha de residir em um local no qual impera o
tráfico de drogas. Sua filha, de apenas 15 anos de idade, foi
estuprada pelo traficante que dominava aquela região. Quando
soube da notícia, não tendo coragem de, por si mesmo, causar a
morte do traficante, contratou um justiceiro, que “executou o
serviço.” O mandante, isto é, o pai da menina estuprada, deverá
responder pelo delito de homicídio simples, ainda com a diminuição
de pena relativa ao motivo de relevante valor moral. Já o justiceiro,
autor do homicídio mercenário, responderá pela modalidade
qualificada.
O inciso II do § 2º do art. 121 do Código Penal prevê, também,
a qualificadora do motivo fútil. Fútil é o motivo insignificante, que faz
com que o comportamento do agente seja desproporcional.
Segundo Heleno Fragoso, “é aquele que se apresenta, como
antecedente psicológico, desproporcionado com a gravidade da
reação homicida, tendo-se em vista a sensibilidade moral média.”26
São exemplos clássicos de motivação fútil, apontados pela
doutrina, o cliente que mata o garçom por entregar-lhe o troco
errado, ou aquele que mata seu devedor que não havia quitado, no
tempo prometido, sua dívida de R$ 1,00 (um real).
Enfim, motivo fútil é aquele no qual há um abismo entre a
motivação e o comportamento extremo levado a efeito pelo agente.
A doutrina aponta, ainda, para o fato de crime sem motivo não
configurar motivo fútil. Nesse sentido, afirma Damásio de Jesus:
“O motivo fútil não se confunde com a ausência de motivo.
Assim, se o sujeito pratica o fato sem razão alguma, não incide
a qualificadora, nada impedindo que responda por outra, como
é o caso do motivo torpe.”27
Com a devida vênia das posições em contrário, não podemos
compreender a coerência desse raciocínio. Assim, a título de
ilustração, se o agente pratica o homicídio valendo-se de um motivo
insignificante, qualifica-se o crime; se não tem qualquer motivo, ou
seja, menos ainda que o motivo insignificante, o homicídio é
simples. Não conseguimos, portanto, entender o tratamento
diferenciado. Tal fato não passou despercebido por Fernando
Capez, quando afirmou que “matar alguém sem nenhum motivo é
ainda pior que matar por mesquinharia, estando, portanto, incluído
no conceito de fútil.”28
O que não podemos confundir é o fato de não sabermos o
motivo e, sem mais, qualificar o homicídio, com o crime de morte
sabidamente sem motivo, ou seja, matar por matar, que dificilmente
ocorre. Pelo fato de não sabermos o motivo do homicídio não
podemos reputá-lo como qualificado; ao contrário, aquele que mata
alguém sem qualquer motivo, um minus, ainda, com relação ao
homicídio fútil, deve merecer a qualificadora.
Tratando-se de homicídio com duas ou mais qualificadoras,
como veremos mais à frente, poderá qualquer uma delas servir para
qualificar a infração penal, sendo que as demais serão utilizadas
como circunstâncias agravantes, no segundo momento de aplicação
da pena, determinado pelo art. 68 do Código Penal.
As circunstâncias agravantes relativas aos motivos fútil e torpe
estão previstas pela alínea a do inciso II do art. 61 do diploma
repressivo.
Ao lado dos motivos torpe e fútil poderíamos acrescentar
também o chamado feminicídio, quando o agente, nos termos do
inciso VI do § 2º do art. 121 do Código Penal causa a morte de uma
mulher por razões da condição de sexo feminino. No entanto, como
para fins de reconhecimento do feminicídio basta que o agente
tenha cometido o crime, por exemplo, num contexto de violência
doméstica e familiar, resolvemos des-tacá-lo dos motivos
tradicionais. Assim, v.g., imagine-se a hipótese em que um marido,
ao chegar em casa, após um longo dia de trabalho, não encontra
seu jantar servido por sua esposa. Irritado com essa situação, após
uma intensa discussão, causa-lhe a morte. Nesse caso, como se
percebe, o motivo é fútil, ou seja, não ter encontrado seu jantar
servido à mesa. Contudo, foi praticado numa relação de violência
doméstica e familiar, o que implicará o reconhecimento do
feminicídio. Aqui, segundo nosso posicionamento, serão aplicadas
as duas qualificadoras, razão pela qual entendemos que as
hipóteses de feminicídio são de motivação especial, e serão
analisadas em tópico próprio.
2.3.2
Com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura
ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar
perigo comum
O inciso III do § 2º do art. 121 do Código Penal prevê o
homicídio qualificado pelos meios utilizados pelo agente na prática
do delito. Por mais uma vez, utilizou a lei penal o recurso da
interpretação analógica, vale dizer, a uma fórmula casuística –
veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura –, o legislador fez seguir
uma fórmula genérica – ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que
possa resultar perigo comum.
Tal recurso visa a preservar, na verdade, o princípio da
isonomia, no qual situações idênticas merecerão o mesmo
tratamento pela lei penal. Ou seja, tudo aquilo que for considerado
meio insidioso, cruel ou de que possa resultar perigo comum
qualificará o homicídio, a exemplo das hipóteses mencionadas
expressamente pelo inciso III (veneno, fogo, explosivo, asfixia e
tortura).
O item 38 da Exposição de Motivos do Código Penal traduz o
que vem a ser meio insidioso ou cruel, dizendo ser aquele o meio
dissimulado na sua eficiência maléfica, e este, ou seja, o cruel, o
que aumenta inutilmente o sofrimento da vítima, ou revela uma
brutalidade fora do comum ou em contraste com o mais elementar
sentimento de piedade. A expressão perigo comum significa que o
meio utilizado pelo agente, além de causar dano à vítima, traz
perigo a outras pessoas.
Veneno, segundo os conceitos, respectivamente, de Almeida
Júnior, Taylor e Fonzes Diacon, é:
“a) toda substância que, atuando química ou bioquimicamente
sobre o organismo, lesa a integridade corporal ou a saúde do
indivíduo ou lhe produz a morte; b) toda substância, que,
introduzida, por absorção, no sangue, é capaz de afetar
seriamente a saúde ou destruir a vida; c) uma substância
química definida que, introduzida no organismo, age, até a dose
tóxica, proporcionalmente à massa e ocasiona desordens,
podendo acarretar a morte.”29
A primeira observação a ser feita diz respeito à qualificadora do
veneno. Imagine-se a hipótese em que o agente, querendo causar a
morte da vítima, fazendo-a saber que trazia consigo certa
quantidade de veneno, por ser fisicamente mais forte, a subjuga,
abrindo-lhe a boca, para, logo em seguida, deitar-lhe o veneno
“goela abaixo.” A vítima, no caso em exame, sabia que faria a
ingestão do veneno letal. Pergunta-se: deverá o autor do homicídio
responder pelo delito com a qualificadora do emprego de veneno?
De acordo com a interpretação que se faz do mencionado
inciso III, devemos responder negativamente. Isso porque, na
segunda parte do aludido inciso, quando a lei faz menção à sua
fórmula genérica, usa, inicialmente, a expressão meio insidioso,
dando a entender que o veneno, para que qualifique o delito
mediante esse meio, deverá ser ministrado insidiosamente, sem que
a vítima perceba que faz a sua ingestão. Caso contrário, ou seja,
caso a vítima venha a saber que morrerá pelo veneno, que é
forçada a ingerir, o agente deverá responder pelo homicídio, agora
qualificado pela fórmula genérica do meio cruel.
Aníbal Bruno, com precisão, afirma:
“O uso do veneno é um dos meios de dar morte com
dissimulação, entregue a vítima indefesa à atuação do
criminoso, porque inconsciente da manobra que vai tirar-lhe a
vida. É pela insídia característica dessa maneira de matar, que
dela se faz uma causa de qualificação do homicídio. Se a vítima
sabe que se trata de substância venenosa e a ingere sob
coação, a insídia é substituída pela crueldade e a qualificação
persiste.”30
Insidioso, portanto, é o meio utilizado pelo agente sem que a
vítima dele tome conhecimento; cruel, a seu turno, é aquele que
causa um sofrimento excessivo, desnecessário à vítima enquanto
viva, obviamente, pois a crueldade praticada após a sua morte não
qualifica o delito. Esquartejar uma pessoa ainda viva se configura
em meio cruel à execução do homicídio; esquartejá-la após a sua
morte já não induz a ocorrência da qualificadora.
A utilização de fogo também qualifica o homicídio, uma vez que
se trata de meio extremamente cruel à sua execução. Infelizmente,
a mídia tem noticiado, com certa frequência, a utilização de fogo em
mortes de mendigos, índios, enfim, de pessoas excluídas pela
sociedade, que vivem embaixo de viadutos, em praças públicas etc.
Também é comum a veiculação de informações de traficantes que
se valem desse meio cruel a fim de causar a morte de suas vítimas,
normalmente prendendo-as entre pneus de caminhão para, logo em
seguida, embebidas em combustível, atear-lhes fogo ao corpo,
fazendo, assim, uma fogueira humana.
Explosivo é o meio utilizado pelo agente que traz perigo,
também, a um número indeterminado de pessoas. Matar a vítima
arremessando contra ela uma granada qualifica o homicídio pelo
uso de explosivo. Segundo Hungria:
“Na sua decomposição brusca, o explosivo opera a violenta
deslocação e destruição de matérias circunjacentes. Não há
que distinguir entre substâncias e aparelhos ou engenhos
explosivos. Entre os explosivos mais conhecidos, podem ser
citados os derivados da nitroglicerina (dinamite), da
nitrobenzina (belite), do nitrocresol (cresolite), da nitronaftalina
(schneiderite, chedite), do nitrotolueno (trotil ou tolite), do
trinitofenol ou ácido pícrico (melinite, lidite), o algodão-pólvora
(explosivo mediante choque), os fulminatos, os explosivos com
base de ar líquido etc.”31
Asfixia é a supressão da respiração. Conforme lições de
Hungria:
“O texto legal não distingue entre asfixia mecânica e asfixia
tóxica (produzida por gases deletérios, como o óxido de
carbono, o gás de iluminação, o cloro, o bromo etc.). A asfixia
mecânica pode ocorrer: a) por oclusão dos orifícios respiratórios
(nariz e boca) ou sufocação direta; b) por oclusão das vias
aéreas (glote, laringe, traqueia, brônquios); c) por compressão
da caixa torácica (sufocação indireta); d) por supressão
funcional do campo respiratório.
Os processos de provocação da asfixia mecânica são o
enforcamento, o imprensamento, o estrangulamento, o
afogamento, a submersão, a esganadura.”32
A tortura, também, encontra-se no rol dos meios considerados
cruéis que têm por finalidade qualificar o homicídio. Importa
ressaltar que a tortura, qualificadora do homicídio, não se confunde
com aquela prevista pela Lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997.33 O art.
1º da mencionada lei define o crime de tortura, sendo que o seu § 3º
comina uma pena de reclusão, que varia de 8 (oito) e 16 (dezesseis)
anos, se da prática da tortura sobrevier a morte da vítima.34
Qual é a diferença, portanto, entre a tortura prevista como
qualificadora do delito de homicídio e a tortura com resultado morte
prevista pela Lei nº 9.455/97? A diferença reside no fato de que a
tortura, no art. 121, é tão somente um meio para o cometimento do
homicídio. É um meio cruel de que se utiliza o agente, com o fim de
causar a morte da vítima. Já na Lei nº9.455/97, a tortura é um fim
em si mesmo. Se vier a ocorrer o resultado morte, este somente
poderá qualificar a tortura a título de culpa. Isso significa que a
tortura qualificada pelo resultado morte é um delito eminentemente
preterdoloso. O agente não pode, dessa forma, para que se aplique
a Lei de Tortura, pretender a morte do agente, pois, caso contrário,
responderá pelo crime de homicídio tipificado pelo Código Penal.
Concluindo o raciocínio, no art. 121, a tortura é um meio cruel,
utilizado pelo agente na prática do homicídio; na Lei nº 9.455/97, ela
é um fim em si mesmo e, caso ocorra a morte da vítima, terá o
condão de qualificar o delito, que possui o status de crime
preterdoloso.
2.3.3
À traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou
outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do
ofendido
O inciso IV do § 2º do art. 121 do Código Penal, também se
valendo do recurso da interpretação analógica, assevera que a
traição, a emboscada, a dissimulação ou qualquer outro recurso que
dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido também
qualificará o homicídio.
Os modos pelos quais são praticados o homicídio, portanto,
também têm o condão de qualificá-lo.
A primeira qualificadora diz respeito à traição. Segundo as
lições de Guilherme de Souza Nucci:
“Trair significa enganar, ser infiel, de modo que, no contexto do
homicídio, é a ação do agente que colhe a vítima por trás,
desprevenida, sem ter esta qualquer visualização do ataque. O
ataque súbito, pela frente, pode constituir surpresa, mas não
traição.”35
Há diferença, para fins de identificação da traição, entre o golpe
efetuado nas costas da vítima e aquele praticado pelas costas.
Pelas costas configura-se à traição, quando o agente ataca a vítima
por trás, sem que ela possa percebê-lo. Golpe nas costas identifica
a região do corpo onde o golpe foi produzido. Muitas vezes, o golpe
é aplicado nas costas, mas não se configura traição. Suponhamos
que a vítima estivesse sendo subjugada pelo agente, fisicamente
mais forte do que ela, e, com um punhal, lhe aplicasse o golpe nas
costas. Não houve traição. Não conseguimos visualizar, aqui, o
golpe pelas costas, mas tão somente nas costas da vítima, não
qualificando, assim, o homicídio.
A emboscada pode ser entendida como uma espécie de
traição. Nela, contudo, o agente se coloca escondido, de tocaia,
aguardando a vítima passar, para que o ataque tenha sucesso.
Dissimular tem o significado de ocultar a intenção homicida,
fazendo-se passar por amigo, conselheiro, enfim, dando falsas
mostras de amizade, a fim de facilitar o cometimento do delito.
A fórmula genérica contida na parte final do inciso IV em estudo
faz menção à utilização de recurso que dificulte ou torne impossível
a defesa do ofendido. Dificultar, como se percebe, é um minus em
relação ao tornar impossível a defesa do ofendido. Naquele, a vítima
tem alguma possibilidade de defesa, mesmo que dificultada por
causa da ação do agente. O tornar impossível é eliminar,
completamente, qualquer possibilidade de defesa por parte da
vítima, a exemplo da hipótese em que esta é morta enquanto
dormia.
Deve ser ressaltado que, quando do oferecimento da denúncia,
o Promotor de Justiça deverá determinar, com precisão, se a
conduta do agente dificultou ou tornou impossível a defesa do
ofendido, não podendo consignar a parte final do aludido inciso IV
como se fosse uma fórmula de aplicação geral. Se somente
dificultou, deverá narrar os fatos que fizeram com que concluísse
seu raciocínio nesse sentido; se tornou impossível, da mesma
forma, deverá apontar o comportamento do agente que fez com que
a vítima não tivesse qualquer possibilidade de defesa. O que não se
pode tolerar é o uso indiscriminado da fórmula genérica, como se
fossem expressões sinônimas as duas hipóteses.
O juiz, da mesma forma, ao pronunciar o réu, deverá esclarecer
se sua conduta tão somente dificultou ou inviabilizou completamente
a defesa do ofendido, haja vista que o acusado se defende de fatos,
e são fatos diferentes o dificultar e o tornar impossível a defesa.
2.3.4
Para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou
a vantagem de outro crime
O inciso V, do § 2º do art. 121 do diploma repressivo diz
respeito ao homicídio praticado para fins de assegurar a execução,
a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime.
Isso significa que, toda vez que for aplicada a qualificadora em
estudo, o homicídio deverá ter relação com outro crime, havendo,
outrossim, a chamada conexão.
Júlio Fabbrini Mirabete, com precisão, assevera:
“Essas circunstâncias, que configurariam a rigor motivo torpe,
originam casos de conexão teleológica ou consequencial. A
conexão teleológica ocorre quando o homicídio é perpetrado
como meio para executar outro crime (homicídio para poder
provocar um incêndio). A conexão consequencial ocorre
quando é praticado ou para ocultar a prática de outro delito
(homicídio contra o perito que vai apurar apropriação indébita
do agente), ou para assegurar a impunidade dele (homicídio da
testemunha que pode identificar o agente como autor de um
roubo), ou para fugir à prisão em flagrante (RT 434/358), ou
para garantir a vantagem do produto, preço ou proveito de
crime (homicídio contra o coautor de roubo ou furto para
apossar-se da res furtiva).”36
Diz-se teleológica a conexão quando se leva em consideração
o fim em virtude do qual é praticado o homicídio. No caso da
qualificadora do inciso V, será considerada teleológica a conexão
quando o homicídio é cometido com o fim de assegurar a execução
de outro crime. Por exemplo, matar o vigilante da agência bancária
no dia anterior à prática do crime de roubo. Ressalte-se que, neste
caso, o homicídio é cometido para assegurar a execução de um
crime futuro.
Consequencial é a conexão em que o homicídio é cometido
com a finalidade de assegurar a ocultação ou a vantagem de outro
crime. Ao contrário da situação anterior, aqui o delito de homicídio é
praticado com vistas a ocultar, assegurar a impunidade ou a
vantagem de um crime já cometido.
Quando se busca assegurar a ocultação, o que se pretende, na
verdade, é manter desconhecida a infração penal praticada, a
exemplo do marido que mata a única testemunha que o viu enterrar
o corpo de sua mulher, também morta por ele. Já quando o agente
visa a assegurar a impunidade, a infração penal é conhecida, mas
sua autoria ainda se encontra ignorada, a exemplo da hipótese do
agente que mata também a única testemunha que presenciou o
homicídio cujo corpo fora deixado em um local público. Quanto à
vantagem de outro crime, conforme esclarece Hungria, “o propósito
do agente é garantir a fruição de qualquer vantagem, patrimonial ou
não, direta ou indireta, resultante de outro crime”,37 como no caso
daquele que mata o seu companheiro de roubo, para que fique,
sozinho, com o produto do crime.
Com relação às qualificadoras contidas no inciso V em exame,
devem ser ressaltadas as seguintes indagações:
1)
2)
3)
4)
Se o agente comete o homicídio com o fim de assegurar a
execução de outro crime que, por um motivo qualquer, não
vem a ser praticado, ainda deve subsistir a qualificadora?
Sim, haja vista a maior censurabilidade do comportamento
daquele que atua motivado por essa finalidade.
Se o agente comete o homicídio a fim de assegurar a
ocultação ou a impunidade de um delito já prescrito,
também subsiste a qualificadora? Sim, pelas mesmas
razões apontadas acima.
Se o agente pratica o homicídio para assegurar, em tese, a
impunidade de um crime impossível, na hipótese, por
exemplo, em que mata a testemunha que o viu apunhalar a
suposta vítima, que já estava morta? Segundo Damásio, “a
qualificadora subsiste, uma vez que o Código pune a maior
culpabilidade do sujeito, revelada em sua conduta
subjetiva.”38
E se o homicídio é cometido com o fim de assegurar a
execução, a ocultação, a impunidade ou a vantagem de
uma contravenção penal? Em virtude da proibição da
analogia in malam partem, não se pode ampliar a
qualificadora a fim de nela abranger, também, as
contravenções penais, sob pena de ser violado o princípio
da legalidade em sua vertente do nullum crimen nulla
poena sine lege stricta, podendo o agente, entretanto,
dependendo da hipótese, responder pelo homicídio
qualificado pelo motivo torpe ou fútil.
2.3.5
Contra mulher por razões da condição de sexo feminino
(feminicídio)
Infelizmente, inúmeras infrações penais são praticadas no
interior dos lares, no seio das famílias. Desde agressões verbais,
ofensivas às honras subjetiva e objetiva das pessoas, passando por
ameaças, lesões corporais, crimes contra o patrimônio, violências
sexuais, homicídios e tantos outros. Esses fatos passaram a
merecer uma atenção especial dos criminólogos, que identificaram
os chamados broken homes (lares desfeitos ou quebrados) como
fonte geradora de delitos dentro e também fora deles.
Gerardo Landrove Díaz, analisando especificamente as
situações de infrações penais praticadas no interior dos lares, nos
esclarece que:
“Dentro das tipologias que levam em conta a relação prévia
entre vítima e autor do delito (vítima conhecida ou
desconhecida) temos que ressaltar a especial condição das
vítimas pertencentes ao mesmo grupo familiar do infrator;
tratam-se de hipóteses de vulnerabilidade convivencial ou
doméstica. Os maus-tratos e as agressões sexuais produzidos
nesse âmbito têm, fundamentalmente, como vítimas seus
membros mais débeis: as mulheres e as crianças. A
impossibilidade de defesa dessas vítimas – que chegam a
sofrer, ademais, graves danos psicológicos – aparece
ressaltada pela existência a respeito de uma elevada cifra
negra.”39
Contudo, isso não quer dizer que esse grupo de pessoas
apontado como vulnerável, ou seja, mulheres e crianças, seja vítima
somente no interior dos lares. As mulheres, principalmente, pela sua
simples condição de pertencerem ao sexo feminino, têm sido
vítimas dentro e fora deles, o que levou o legislador a despertar para
uma maior proteção.
Sob a ótica de uma necessária e diferenciada proteção à
mulher, o Brasil editou o Decreto nº 1.973, em 1º de agosto de 1996,
promulgando a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência contra a Mulher, concluída em Belém do Pará,
em 09 de junho de 1994.
Os arts. 1º, 3º e 4º, alínea a, da referida Convenção dizem,
respectivamente:
Artigo 1
Para os efeitos desta Convenção,
entender-se-á por violência contra a
mulher qualquer ato ou conduta
baseada no gênero, que cause morte,
dano ou sofrimento físico, sexual ou
psicológico à mulher, tanto na esfera
pública como na esfera privada.
Artigo 3
Toda mulher tem direito a uma vida
livre de violência, tanto na esfera
pública como na esfera privada.
Artigo 4
Toda
mulher
tem
direito
ao
reconhecimento, desfrute, exercício e
proteção de todos os direitos
humanos e liberdades consagrados
em todos os instrumentos regionais e
internacionais relativos aos direitos
humanos. Estes direitos abrangem,
entre outros:
a) direito a que se respeite sua vida;
Seguindo as determinações contidas na aludida Convenção,
em 7 de agosto de 2006 foi publicada a Lei nº 11.340, criando
mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a
mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, que
ficou popularmente conhecida como “Lei Maria da Penha”, a qual,
além de dispor sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica
e Familiar contra a Mulher, estabeleceu medidas de assistência e
proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar,
nos termos dispostos no art. 1º da mencionada lei.
Em 9 de março de 2015, indo mais além, fruto do Projeto de Lei
do Senado nº 8.305/2014, foi publicada a Lei nº 13.104, que criou,
como modalidade de homicídio qualificado, o chamado feminicídio,
que ocorre quando uma mulher vem a ser vítima de homicídio
simplesmente por razões de sua condição de sexo feminino.
Jeferson Botelho Pereira, com o brilhantismo que lhe é peculiar,
dissertando a respeito do tema, sobre os tipos possíveis de
feminicídio, preleciona que:
“A doutrina costuma dividir o feminicídio em íntimo, não íntimo e
por conexão. Por feminicídio íntimo entende aquele cometido
por homens com os quais a vítima tem ou teve uma relação
íntima, familiar, de convivência ou afins.
O feminicídio não íntimo é aquele cometido por homens com os
quais a vítima não tinha relações íntimas, familiares ou de
convivência.
O feminicídio por conexão é aquele em que uma mulher é
assassinada porque se encontrava na ‘linha de tiro’ de um
homem que tentava matar outra mulher, o que pode acontecer
na aberratio ictus.”40
Devemos observar, entretanto, que não é pelo fato de uma
mulher figurar como sujeito passivo do delito tipificado no art. 121 do
Código Penal que já estará caracterizado o delito qualificado, ou
seja, o feminicídio. Para que reste configurada a qualificadora, nos
termos do § 2º-A do art. 121 do diploma repressivo, o crime deverá
ser praticado por razões de condição de sexo feminino, o que
efetivamente ocorrerá quando envolver:
I – violência doméstica41 e familiar;
II – menosprezo ou discriminação à
condição de mulher.
Assim, por exemplo, imagine-se a hipótese em que alguém, que
havia sido dispensado de seu trabalho por sua empregadora, uma
empresária, resolve matá-la por não se conformar com a sua
dispensa, sem justa causa. Neste caso, como se percebe, o
homicídio não foi praticado simplesmente pela condição de mulher
da empregadora, razão pela qual não incidirá a qualificadora do
feminicídio, podendo, no entanto, ser qualificado o crime em virtude
de alguma das demais situações previstas no § 2º do art. 121 do
Código Penal.
Agora, raciocinemos com a hipótese em que o marido mata sua
esposa, dentro de um contexto de violência doméstica e familiar.
Para fins de reconhecimento das hipóteses de violência doméstica e
familiar deverá ser utilizado como referência o art. 5º da Lei nº
11.340, de 7 de agosto de 2006, que diz, verbis:
Art. 5º Para os efeitos desta Lei,
configura violência doméstica e
familiar contra a mulher qualquer ação
ou omissão baseada no gênero que
lhe cause morte, lesão, sofrimento
físico, sexual ou psicológico e dano
moral ou patrimonial:
I – no âmbito da unidade doméstica,
compreendida como o espaço de
convívio permanente de pessoas, com
ou sem vínculo familiar, inclusive as
esporadicamente agregadas;
II
–
no
âmbito
da
família,
compreendida como a comunidade
formada por indivíduos que são ou se
consideram aparentados, unidos por
laços naturais, por afinidade ou por
vontade expressa;
III – em qualquer relação íntima de
afeto, na qual o agressor conviva ou
tenha convivido com a ofendida,
independentemente de coabitação.
Parágrafo
único.
As
relações
pessoais enunciadas neste artigo
independem de orientação sexual.
Em ocorrendo uma das hipóteses previstas nos incisos acima
transcritos, já será possível o reconhecimento da qualificadora
relativa ao feminicídio.
O inciso II do § 2º-A do art. 121 do Código Penal assegura ser
também qualificado o homicídio quando a morte de uma mulher se
der por menosprezo ou discriminação a essa sua condição.
Menosprezo, aqui, pode ser entendido no sentido de desprezo,
sentimento de aversão, repulsa, repugnância a uma pessoa do sexo
feminino; discriminação tem o sentido de tratar de forma diferente,
distinguir pelo fato da condição de mulher da vítima.
Merece ser frisado, por oportuno, que o feminicídio, em sendo
uma das modalidades de homicídio qualificado, pode ser praticado
por qualquer pessoa, seja ela do sexo masculino, ou mesmo do
sexo feminino. Assim, não existe óbice à aplicação da qualificadora
se, numa relação homoafetiva feminina, uma das parceiras, vivendo
em um contexto de unidade doméstica, vier a causar a morte de sua
companheira.
Para que possa ocorrer o feminicídio é preciso, como vimos
anteriormente, que o sujeito passivo seja uma mulher, e que o crime
tenha sido cometido por razões da sua condição de sexo feminino.
Assim, vale a pergunta, quem pode ser considerada mulher, para
efeitos de reconhecimento do homicídio qualificado?
A questão, longe de ser simples, envolve intensas discussões
nos dias de hoje. Tal fato não passou despercebido por Francisco
Dirceu Barros que previu as discussões que seriam travadas
doutrinária e jurisprudencialmente, e propôs uma série de
problematizações, a saber:
“Problematização I: Tício fez um procedimento cirúrgico
denominado neocolpovulvoplastia alterando genitália masculina
para feminina, ato contínuo, Tício, através de uma ação judicial,
muda seu nome para Tícia e, consequentemente, todos seus
documentos são alterados. Posteriormente, em uma discussão
motivada pela opção sexual de Tícia, Seprônio disparou 05
tiros, assassinando-a.
Pergunta-se: Seprônio será denunciado por homicídio com a
qualificadora do inciso VI (Se o homicídio é cometido:
VI – contra a mulher por razões de gênero)?
Problematização II: Tícia, entendendo que psicologicamente é
do sexo masculino, interpõe ação judicial e, muda seu nome
para Tício, consequentemente, todos seus documentos são
alterados. Posteriormente, em uma discussão motivada pela
opção sexual de Tício, Seprônio disparou 05 tiros,
assassinando-o.
Pergunta-se: considerando que a vítima é biologicamente
mulher, mas foi registrada como Tício, Seprônio será
denunciado por homicídio com a qualificadora do inciso VI (Se o
homicídio é cometido: VI – contra a mulher por razões de
gênero)?
Problematização III: Tício tem dois órgãos genitais, um feminino
e outro masculino. O órgão genital biologicamente prevalente é
o masculino. Certo dia, em uma discussão motivada pela opção
sexual de Tício, Seprônio disparou 05 tiros, assassinando-o.
Pergunta-se: considerando que a vítima também tem um órgão
genital feminino, Seprônio será denunciado por homicídio com a
qualificadora do inciso VI (Se o homicídio é cometido: VI –
contra a mulher por razões de gênero)?”42
As discussões lançadas são perfeitamente possíveis de
acontecer. Assim, precisamos definir, com precisão, o conceito de
mulher para fins de reconhecimento da qualificadora em estudo.
Inicialmente, podemos apontar um critério de natureza
psicológica, ou seja, embora alguém seja do sexo masculino,
psicologicamente, acredita pertencer ao sexo feminino, ou viceversa, vale dizer, mesmo tendo nascido mulher, acredita,
psicologicamente, ser do sexo masculino, a exemplo do que ocorre
com os chamados transexuais.
O segundo critério, apontado e defendido por Francisco Dirceu
Barros, diz respeito àquele de natureza biológica. Segundo o
renomado autor, através dele:
“Identifica-se a mulher em sua concepção genética ou
cromossômica. Neste caso, como a neocolpovulvoplastia altera
a estética, mas não a concepção genética, não será possível a
aplicação da qualificadora do feminicídio.
O critério biológico identifica homem ou mulher pelo sexo
morfológico, sexo genético e sexo endócrino:
a) sexomorfológico ou somático resulta da soma das
características genitais (órgão genitais externos, pênis e vagina,
e órgãos genitais internos, testículos e ovários) e extragenitais
somáticas (caracteres secundários – desenvolvimento de
mamas, dos pelos pubianos, timbre de voz etc.);
b) sexo genético ou cromossômico é responsável pela
determinação do sexo do indivíduo através dos genes ou pares
de cromossomos sexuais (XY – masculino e XX – feminino) e;
c) sexo endócrino é identificado nas glândulas sexuais,
testículos e ovários, que produzem hormônios sexuais
(testosterona e progesterona) responsáveis em conceder à
pessoa atributos masculino ou feminino.”43
Com todo respeito às posições em contrário, entendemos que o
único critério que nos traduz, com a segurança necessária exigida
pelo Direito, e em especial o Direito Penal, é o critério que podemos
denominar jurídico. Assim, somente aquele que for portador de um
registro oficial (certidão de nascimento, documento de identidade)
em que figure, expressamente, o seu sexo feminino, é que poderá
ser considerado sujeito passivo do feminicídio.
Aqui, pode ocorrer que a vítima tenha nascido com o sexo
masculino, havendo tal fato constado expressamente de seu registro
de nascimento. No entanto, posteriormente, ingressando com uma
ação judicial, vê sua pretensão de mudança de sexo atendida, razão
pela qual, por conta de uma determinação do Poder Judiciário, seu
registro original vem a ser modificado, passando a constar, agora,
como pessoa do sexo feminino. Somente a partir desse momento é
que poderá, segundo nossa posição, ser considerada como sujeito
passivo do feminicídio.
Assim, concluindo, das três posições possíveis, isto é, entre os
critérios psicológico, biológico e jurídico, somente este último nos
traz a segurança necessária para efeitos de reconhecimento do
conceito de mulher.
Além disso, não podemos estender tal conceito a outros
critérios que não o jurídico, uma vez que, in casu, estamos diante de
uma norma penal incriminadora, que deve ser interpretada o mais
restritamente possível, evitando-se uma indevida ampliação do seu
conteúdo que ofenderia, frontalmente, o princípio da legalidade, em
sua vertente nullum crimen nulla poena sine lege stricta.
O Superior Tribunal de Justiça publicou no DJe de 18 de
setembro de 2017 a Súmula nº 588, dizendo:
Súmula nº 588. A prática de crime ou
contravenção penal contra a mulher
com violência ou grave ameaça no
ambiente doméstico impossibilita a
substituição da pena privativa de
liberdade por restritiva de direitos.
2.3.6
Contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144
da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e
da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da
função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge,
companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau,
em razão dessa condição
A Lei nº 13.142, de 6 de julho de 2015, inseriu o inciso VII no §
2º do art. 121 do Código Penal, criando mais uma modalidade
qualificada, na hipótese em que o agente praticar o crime de
homicídio contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144
da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força
Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em
decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente
consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição.
Conforme as lúcidas lições de Jeferson Botelho Pereira:
“É verdade que na maioria das vezes, a morte de policiais de
serviço ou fora dele já qualifica o crime de homicídio pela
torpeza ou futilidade, ou ainda por meio que dificultou a defesa
da vítima, mas a inserção do inciso VII do § 2º do artigo 121 do
CP, como homicídio qualificado pode evitar possível incidência
de homicídio qualificado privilegiado nos casos de
compatibilidade legal até antes da vigência da lei em apreço.
É certo que o delinquente não tem medo de uma mera folha de
papel transformada em leis no momento de acionar o gatilho.
Não querem saber se terão restringidos os benefícios
processuais se seus atos são considerados hediondos, e
também é verdade que os matadores de policiais se exibem, se
intitulam assassinos de policiais, tatuando a imagem de um
palhaço em seu corpo.
Verdadeira é afirmação de que não há necessidade de leis
positivas dizendo que trata-se de homicídio qualificado, e,
portanto, hediondo, a morte de policiais fardados ou em serviço,
pois quando isso ocorre quem morre é o próprio Estado,
ocorrendo aquilo que denominamos de genocídio social, numa
espécie de sociecídio, em face de um estado fraco, inoperante
e omisso, que deveria também aproveitar-se da oportunidade e
tipificar como crime hediondo o corrupcídio, pelo qual o Brasil
vive inundado, mas de toda forma é momento de reconhecer
que a iniciativa é plausível, muito embora com o invólucro do
engodo, e homiziado sob o capuz da hipocrisia, pois visa
ilusoriamente prevenir crimes contra policiais e seus familiares
mediante simples canetada da incompetência.”44
De acordo com a redação constante do inciso VII do § 2º do art.
121 do Código Penal, são considerados sujeitos passivos os
integrantes:
I – das Forças Armadas – Exército,
Marinha ou Aeronáutica (art. 142 da
CF);
II – da Polícia Federal (art. 144, I, da
CF);
III – da Polícia Rodoviária Federal (art.
144, II, da CF);
IV – da Polícia Ferroviária Federal
(art. 144, III, da CF);
V – das Polícias Civis (art. 144, IV, da
CF);
VI – das Polícias Militares e corpos de
Bombeiros Militares (art. 144, V, da
CF);
VII – das Guardas Municipais (art.
144, § 8º, da CF);
VIII – do Sistema Prisional;
IX – da Força Nacional de Segurança
Pública (Lei nº 11.473/2007).
Da mesma forma, serão considerados sujeitos passivos o
cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até o terceiro grau,
em razão dessa condição, ou seja, considerando seu vínculo
familiar com qualquer uma das autoridades ou agentes previstos
pelos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, conforme elenco
acima indicado.
A primeira indagação que poderia surgir com relação à
interpretação da qualificadora em estudo diz respeito a abrangência
da palavra autoridade. Assim, indagamos, o atentado contra a vida
de qualquer autoridade, a exemplo dos membros da Magistratura ou
do Ministério Público, em razão da função por eles exercida,
também qualificaria o homicídio? Respondendo afirmativamente a
essa indagação, Francisco Dirceu Barros assevera que:
“Usando a interpretação analógica e atendendo ao princípio da
legalidade, entendemos que a ratio legis não foi alcançar todas
as espécies de autoridades do Brasil e sim aquelas que
exercem funções semelhantes às definidas no próprio inciso,
quais sejam, as autoridades do sistema de segurança pública
assim definidas como os membros do Poder Judiciário e do
Ministério Público.
Perceba que o legislador, logo após o uso da terminologia
‘autoridade’, usa a frase ‘OU’ agente descrito nos artigos 142
(Forças Armadas) e 144 (Policiais) da Constituição Federal,
integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de
Segurança Pública, ou seja, todos são ‘autoridades’, ‘agentes’ e
‘integrantes’ do sistema de segurança pública.
Portanto, podem ser agentes passivos do homicídio funcional,
os ministros do STF, membros dos Tribunais Superiores,
desembargadores dos Tribunais de Justiça, magistrados
federais e estaduais, membros do Ministério Público da União e
membros dos Ministérios Públicos dos Estados quando formem
vítimas no exercício da função ou em decorrência dela, e seus
respectivos
cônjuges,
companheiros
ou
parentes
consanguíneos até terceiro grau, em razão da motivação
funcional do crime.”45
Com toda vênia, ousamos discordar. Isso porque, segundo
nosso posicionamento, quando a lei faz menção à autoridade e, em
seguida, utilizando a conjunção alternativa ou, cita também o
agente, quer dizer que, nem sempre, aquele elencado pelos arts.
142 e 144 da Constituição Federal poderá ser considerado como
uma autoridade, já que utilizamos essa denominação
especificamente para aqueles que, normalmente, exercem o
comando, possuem hierarquia superior, a exemplo do que ocorre
com os delegados de polícia, seja na esfera estadual seja na
federal.
Por outro lado, os arts. 142 e 144 da Constituição Federal não
fazem menção ou mesmo não nos permitem ampliar seu espectro
de abrangência, a fim de entendermos que outras autoridades
(juízes, promotores de justiça etc.), estejam por eles englobadas.
Isso porque estão inseridos em capítulos específicos da
Constituição Federal, vale dizer, Capítulo II (das Forças Armadas) e
Capítulo III (Da Segurança Pública), referentes ao Título V (Da
Defesa do Estado e Das Instituições Democráticas).
Dessa forma, só estão abrangidos pelo inciso VII do § 2º do art.
121 do Código Penal aqueles que exerçam uma função policial lato
sensu, e não as demais autoridades, mesmo que ligadas de alguma
forma à Justiça Penal.
Merece destaque, ainda, a menção à autoridade ou agente
integrante do sistema prisional. Interpretando corretamente a
amplitude, Rogério Sanches Cunha adverte que:
“Estão abrangidos, nessa categoria, não apenas os agentes
presentes no dia a dia da execução penal (diretor da
penitenciária, agentes penitenciários, guardas, etc.), mas
também aqueles que atuam em certas etapas da execução
(comissão técnica de classificação, comissão de exame
criminológico, conselho penitenciário etc.). E não poderia ser
diferente. Imaginemos um egresso, revoltado com os vários
exames criminológicos que o impediram de conquistar
prematura liberdade, buscando vingar-se daqueles que
subscreveram o exame, contra eles pratica homicídio. Parece
evidente que o crime de homicídio, além de outras
qualificadoras (como a do inciso II), será também qualificado
pelo inciso VII.”46
Hoje, os até então chamados de agentes penitenciários, após a
promulgação da Emenda Constitucional nº 104, de 4 de dezembro
de 2019, que alterou o inciso XIV do caput do art. 21, o § 4º do art.
32 e o art. 144 da Constituição Federal, passaram, corretamente, a
gozar do status de Polícia Penal (federal, estaduais e distrital),
fazendo parte integrante do rol existente no último artigo, conforme
se verifica pela leitura do seu inciso VI.
Para que incida a qualificada sub examen é preciso que o
homicídio tenha sido praticado enquanto algumas das autoridades
ou agentes acima mencionados estavam no exercício da função ou
em decorrência dela.
Infelizmente, temos tido notícias frequentes de policiais mortos
durante o exercício de suas funções. Em muitos casos, criminosos
passam em frente a postos policiais, ou mesmo diante de viaturas, e
efetuam disparos, querendo simplesmente causar-lhes a morte. Isso
ocorre, inclusive, em locais supostamente pacificados, a exemplo
das comunidades cariocas, onde já foram instaladas Unidades de
Polícia Pacificadora. Da mesma forma, quando criminosos
identificam, ou descobrem locais de residências de policiais, vão à
sua captura, a fim de matá-los. Quando os homicídios são
praticados nessas circunstâncias, ou seja, durante o exercício da
função ou em decorrência dela, é que se poderá aplicar a
qualificadora em questão.
O que estamos querendo afirmar, com isso, é que não é pelo
fato de ser vítima de homicídio uma autoridade ou agente descrito
nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal que, automaticamente,
entenderemos pelo homicídio qualificado. Isso porque a morte de
uma dessas pessoas poderá ser ocasionada por diversos outros
motivos, que afastarão a qualificadora em estudo. Assim, por
exemplo, se durante uma discussão sobre futebol, o agente acaba
causando a morte de um policial militar, que com ele se encontrava
no interior de um bar, o fato poderá se amoldar a outro tipo
qualificado, que não o previsto no inciso VII do § 2º do art. 121 do
Código Penal.
Será possível, ainda, o reconhecimento da qualificadora,
mesmo na hipótese em que a autoridade ou o agente descrito nos
arts. 142 e 144 da Constituição Federal já esteja aposentado, desde
que, como temos frisado, o homicídio se dê em razão da função que
exercia anteriormente. Assim, não é incomum que, por exemplo,
alguém venha a matar um policial que acabara de se aposentar,
pelo simples fato de haver exercido suas funções na polícia militar,
na polícia civil etc.
Se o homicídio for praticado contra cônjuge, companheiro ou
parente consanguíneo até terceiro grau, de alguma das autoridades
ou agentes descritos nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal,
em razão dessa condição, o fato também será qualificado. No que
diz respeito ao cônjuge ou companheiro, não há dúvida na
interpretação. O problema surge quando a lei faz menção a parente
consanguíneo até o terceiro grau. Parentes consanguíneos seriam
pai, mãe e filhos (em primeiro grau), irmãos, avós e netos (em
segundo grau), e tios, sobrinhos, bisavós e bisnetos (em terceiro
grau). Parentes por afinidade, que não estão abrangidos pela
qualificadora em estudo, são sogro, sogra, genro, nora, padrasto,
madrasta, enteados e cunhados.
Como a lei utilizou a palavra consanguíneo, como ficaria a
situação do filho adotivo, mesmo que a Constituição Federal, em
seu art. 227, § 6º, tenha proibido quaisquer designações
discriminatórias? O art. 1.593 do Código Civil diz que o parentesco é
natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra
origem. Assim, temos que concluir, forçosamente, que não existe
consanguinidade quando o filho for adotivo, mesmo que não
possamos mais utilizar essa expressão discriminatória. Não há
consanguinidade, ou seja, relação de sangue, que permita o
reconhecimento de um tronco comum com relação ao filho adotivo.
Dessa forma, infelizmente, se o homicídio for praticado contra o filho
adotivo de um policial, em razão dessa condição, não poderemos
aplicar a qualificadora do inciso VII do § 2º do art. 121 do Código
Penal, tendo em vista que, caso assim fizéssemos, estaríamos
utilizando a chamada analogia in malam partem.
Nesse sentido, preleciona Eduardo Luiz Santos Cabette,
acertadamente, que:
“Se um sujeito mata o filho consanguíneo de um policial
(parentesco biológico ou natural), é atingido pela norma sob
comento. Mas, se mata o filho adotivo do mesmo policial
(parentesco civil), não é alcançado. Não é possível consertar o
equívoco legislativo mediante o recurso da analogia porque isso
constituiria analogia ‘in mallam partem’, vedada no âmbito
criminal. Efetivamente houve um grande equívoco do legislador
nesse ponto específico. A única consolação em meio a essa
barbeiragem legislativa é o fato de que a morte de um filho
adotivo de um policial, por exemplo, em represália ou vingança
pela atividade deste último, configurará tranquilamente o
‘motivo torpe’ e fará do homicídio um crime qualificado da
mesma maneira, tendo em vista o mero simbolismo da norma
que veio a lume com a Lei nº 13.142/2015.”47
Em sentido contrário, entendendo pela possibilidade da
aplicação da qualificadora do filho adotivo, aduz Francisco Dirceu
Barros:
“A Constituição Federal equipara os filhos adotivos aos filhos
consanguíneos, vide o § 6º do artigo 227, in verbis:
‘Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por
adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas
quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
Portanto, se o mandamento constitucional preconiza que os
filhos adotivos são equiparados aos consanguíneos, a ilação
lógica é a de que quem mata, por motivos funcionais, filho
adotivo de uma das pessoas elencadas no art. 121, § 2º, VII, do
Código Penal, comete homicídio funcional.
Não estamos fazendo uso da analogia in malam partem, pois
não existe lacuna a ser preenchida e a norma constitucional
não permite fazer nenhuma discriminação.”48
Como se trata de uma qualificadora de natureza subjetiva, será
impossível a aplicação da causa especial de diminuição de pena
prevista no § 1º do art. 121 do diploma repressivo, não se admitindo,
outrossim o chamado homicídio qualificado-privilegiado.
2.4
Competência para julgamento do homicídio doloso
O inciso XXXVIII do art. 5º da Constituição Federal diz:
XXXVIII – reconhecida a instituição do
júri, com a organização que lhe der a
lei, assegurados:
a) a plenitude de defesa;
b) o sigilo das votações;
c) a soberania dos veredictos;
d) a competência para o julgamento
dos crimes dolosos contra a vida.
Pelo que se verifica por meio da alínea d do mencionado inciso,
o Tribunal do Júri é o competente para julgar os crimes dolosos
contra a vida, destacando-se dentre eles o homicídio, em todas as
suas modalidades – simples, privilegiada e qualificada.
Questão importante a ser observada é a que diz respeito ao
fato de não ser o latrocínio julgado pelo Júri, mesmo que a morte da
vítima seja dolosa. Imaginemos a seguinte situação: A, percebendo
que a vítima trazia consigo um valioso relógio, objetivando sua
subtração, nela desfere um tiro na cabeça, causando-lhe a morte. O
agente, portanto, atirou para matar, a fim de subtrair da vítima o
mencionado relógio. A morte foi dolosa, sendo, contudo, levada a
efeito para fins de subtração. Numa outra hipótese, A percebe que
seu maior inimigo está caminhando descontraidamente, sem se dar
conta da sua presença. Querendo causar-lhe a morte, vai ao
encontro dele e, sem que a vítima perceba, aponta-lhe uma arma e
puxa o gatilho, acertando-a mortalmente na cabeça. Quando a
vítima, já morta, estava caída, o agente percebe que ela trazia
consigo um valioso relógio e o subtrai.
Na primeira hipótese, teremos a prática de um crime de
latrocínio, pois o agente, dolosamente, matou a vítima para roubarlhe. A finalidade era a subtração. No segundo caso, teremos um
crime de homicídio doloso, seguido de furto. Pergunta-se:
Considerando-se que em ambas as hipóteses o agente causou,
dolosamente, a morte da vítima, os dois casos serão submetidos a
julgamento pelo Tribunal do Júri? A resposta, aqui, só pode ser
negativa, uma vez que, interpretando-se sistemicamente o inciso II,
do § 3º do art. 157 do Código Penal, verificamos que o latrocínio
encontra-se no Título correspondente aos crimes contra o
patrimônio, sendo que o Tribunal do Júri, de acordo com a
competência que lhe é atribuída pela Constituição Federal, julga os
crimes dolosos contra a vida.
O STF, por meio da Súmula nº 603, firmou seu entendimento
dizendo:
Súmula nº 603. A competência para o
processo e julgamento de latrocínio é
do juiz singular e não do Tribunal do
Júri.
Merece observar que a Constituição Federal não impediu que
outras infrações penais fossem submetidas a julgamento pelo
Tribunal do Júri, mas tão somente garantiu que os crimes dolosos
contra a vida fizessem, sempre, parte desse rol, podendo o
legislador infraconstitucional agregar-lhe outros delitos, ampliandose, portanto, sua competência. Como bem observado por Elder
Lisboa Ferreira da Costa:
“A nossa atual carta constitucional atribui ao tribunal do júri
competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a
vida. Trata-se, a bem da verdade, de uma competência mínima.
Nada impede que o legislador ordinário remeta à apreciação do
júri matérias de natureza diversa.”49
2.5
Homicídio culposo
Em sede de crimes culposos, vige o princípio da
excepcionalidade, ou seja, a regra é que todo crime seja doloso,
somente sendo punido a título de culpa se houver previsão expressa
nesse sentido, como é o caso do § 3º do art. 121 do Código Penal,
que diz: Se o homicídio é culposo.
O parágrafo único do art. 18 do diploma repressivo,
confirmando a regra da excepcionalidade do crime culposo,
determina:
Parágrafo único. Salvo os casos
expressos em lei, ninguém pode ser
punido por fato previsto como crime,
senão quando o pratica dolosamente.
Percebe-se que, no crime culposo, estamos diante da hipótese,
como regra, do chamado tipo aberto. Nas precisas lições de Assis
Toledo:
“Na criação dos tipos penais, pode o legislador adotar dois
critérios. O primeiro consiste na descrição completa do modelo
de conduta proibida, sem deixar ao intérprete, para verificação
da ilicitude, outra tarefa além da constatação da
correspondência entre a conduta concreta e a descrição típica,
bem como a inexistência de causas de justificação. Tal critério
conduz à construção dos denominados ‘tipos fechados’, do qual
seria exemplo o homicídio do art. 121 do Código Penal. A
descrição ‘matar alguém’, por ser completa, não exigiria do
intérprete qualquer trabalho de complementação do tipo. A
imensa variedade da ação de matar um ser humano cairia
facilmente sob o domínio desse tipo; a ilicitude resultaria da
simples incidência de ignorar normas permissivas. O segundo
critério consiste na descrição incompleta do modelo de conduta
proibida, transferindo-se para o intérprete o encargo de
completar o tipo, dentro dos limites e das indicações nele
próprio contidas. São os denominados ‘tipos abertos’, como se
dá em geral nos delitos culposos que precisam ser completados
pela norma geral que impõe a observância do dever de
cuidado.”50
Além do trabalho de adequação a ser realizado pelo julgador,
que deverá aferir se, no caso concreto, o agente deixou de observar
o dever objetivo de cuidado que lhe competia, para que se possa
configurar o delito culposo há necessidade inafastável de verificar se
a conduta do agente produziu algum resultado. Por mais que o
agente tenha deixado de observar seu dever de cuidado, se dessa
inobservância não advier qualquer resultado lesivo, o fato não se
amoldará à figura do delito culposo.
Assim, imagine-se a hipótese em que o agente, pai de uma
criança de três anos de idade, morador do 14º andar de um prédio
de apartamentos, deixe de colocar o necessário dispositivo de
segurança em suas janelas e varanda (rede de proteção). Seu filho,
que por um instante não estava sendo observado, debruça-se no
parapeito da janela e cai, morrendo com a queda.
No caso em exame, o pai deixou de observar o seu dever
objetivo de cuidado, não tendo a preocupação necessária de colocar
as redes de proteção, devendo responder, portanto, pela morte de
seu filho, a título de culpa, independentemente do raciocínio que se
possa realizar a respeito da possibilidade de aplicação do perdão
judicial, que veremos mais adiante.
Entretanto, imaginemos hipótese diferente em que esse mesmo
pai, antes que a criança caísse do apartamento, viesse retirá-la do
parapeito da janela, quando nele já estava debruçada. O fato de não
colocar as redes de segurança nas janelas e na varanda do
apartamento, bem como o de não tê-la vigiado cuidadosamente,
configura-se numa inobservância ao dever objetivo de cuidado.
Contudo, será que nesse caso o pai deveria responder por algum
delito culposo? Obviamente que não, pois, sem a ocorrência do
resultado, descarta-se a infração penal de natureza culposa.
Outra característica fundamental para a configuração do delito
culposo é a aferição da previsibilidade do agente. Se o fato escapar
totalmente à sua previsibilidade, o resultado não lhe pode ser
atribuído, mas, sim, ao caso fortuito ou à força maior.
Respondendo à sua própria indagação do que seria
previsibilidade como conceito jurídico-penal, Hungria diz:
“Existe previsibilidade quando o agente, nas circunstâncias em
que se encontrou, podia, segundo a experiência geral, ter-se
representado, como possíveis, as consequências do seu ato.
Previsível é o fato cuja possível superveniência não escapa à
perspicácia comum. Por outras palavras: é previsível o fato, sob
o prisma penal, quando a previsão do seu advento, no caso
concreto, podia ser exigida do homem normal, do homo medius,
do tipo comum de sensibilidade ético-social.”51
A previsibilidade condiciona o dever de cuidado: “Quem não
pode prever não tem a seu cargo o dever de cuidado e não pode
violá-lo.”52
Faz a doutrina distinção, ainda, entre a previsibilidade objetiva e
a previsibilidade subjetiva. Previsibilidade objetiva seria aquela,
conceituada por Hungria, em que o agente, no caso concreto, deve
ser substituído pelo chamado “homem médio, de prudência normal.”
Se, uma vez levada a efeito essa substituição hipotética, o resultado
ainda assim persistir, é sinal de que o fato havia escapado ao seu
âmbito de previsibilidade, porque dele não se exigia nada além da
capacidade normal dos homens. Não é imposta ao agente uma
previsibilidade extremamente larga que, de acordo com a
imaginação do aplicador da lei, poderá ser imposta em todos os
casos.
Exemplificando: suponhamos que determinado agente, dirigindo
em velocidade excessiva seu veículo próximo a uma escola, no
horário de saída dos alunos, atropele um dos estudantes, causandolhe a morte. Verifica-se, pelo exemplo fornecido, que,
voluntariamente, o agente (um ser humano), dirigindo o seu
automóvel em velocidade excessiva (infração ao seu dever de
cuidado objetivo), atropelou e causou a morte (resultado
naturalístico e nexo de causalidade) de um estudante que, naquele
local e horário, acabava de sair da escola (previsibilidade no que diz
respeito ao fato de que, naquele local e naquela hora, muitas
pessoas poderiam estar tentando efetuar a travessia da rua). Se
substituirmos o agente (o motorista que atropelou o estudante) por
um homem médio, de prudência normal, este último teria tido uma
conduta diferente daquela que fora realizada pelo agente, deixando
de imprimir velocidade excessiva ao seu automóvel próximo a uma
escola. Se o homem médio estivesse no lugar do agente, teria
atuado de maneira diferente e, portanto, o resultado, em tese, teria
sido evitado. Essa substituição em busca da modificação do
resultado é que dá origem à chamada previsibilidade objetiva.
Além da previsibilidade objetiva, existe a previsibilidade
subjetiva. Vimos que para haver a previsibilidade objetiva deve-se
fazer a substituição do agente por um homem médio. Se o homem
médio, naquelas circunstâncias em que atuou o agente, tivesse
agido de forma diferente a fim de evitar o resultado, é sinal de que
este era previsível. Se mesmo com a substituição do agente pelo
homem médio o resultado ainda assim persistir, devemos concluir
que o fato escapou ao âmbito normal de previsibilidade e, portanto,
não lhe pode ser atribuído.
Na previsibilidade subjetiva não existe essa substituição
hipotética; não há a troca do agente pelo homem médio para saber
se o fato escapava ou não à sua previsibilidade. Aqui, na
previsibilidade subjetiva, o que é levado em consideração são as
condições pessoais do agente, quer dizer, considera-se, na
previsibilidade subjetiva, as limitações e as experiências daquela
pessoa cuja previsibilidade está se aferindo em um caso concreto.
Na precisa lição de Damásio:
“Nos termos do critério subjetivo, deve ser aferida tendo em
vista as condições pessoais do sujeito, i.e., a questão de o
resultado ser ou não previsível é resolvida com base nas
circunstâncias antecedentes à sua produção. Não se pergunta
o que o homem prudente deveria fazer naquele momento, mas
sim o que era exigível do sujeito nas circunstâncias em que se
viu envolvido.”53
Repelindo o critério subjetivo de aferição da previsibilidade,
assim se manifesta Hungria:
“É de rejeitar-se, porém, a opinião segundo a qual a
previsibilidade deve ser referida à individualidade subjetiva do
agente, e não ao tipo psicológico médio. O que decide não é a
atenção habitual do agente ou a diligência que ele costuma
empregar in rebus suis, mas a atenção e diligência próprias do
comum dos homens; não é a previsibilidade individual, mas a
medida objetiva média de precaução imposta ou reclamada
pela vida social.”54
Discordando da posição de Hungria, preleciona Zaffaroni:
“a previsibilidade deve estabelecer-se conforme a capacidade
de previsão de cada indivíduo, sem que para isso possa
socorrer-se a nenhum ‘homem médio’ ou critério de
normalidade. Um técnico em eletricidade pode prever com
maior precisão do que um leigo o risco que implica um cabo
solto, e quem tem um dispositivo em seu automóvel que lhe
permite prever acidentes que sem esse dispositivo seriam
imprevisíveis, tem um maior dever de cuidado do que quem não
possui este dispositivo, ainda que somente um em 999 mil o
possua.”55
Assim, para aqueles que entendem possível a aferição da
previsibilidade subjetiva, em que são consideradas as condições
pessoais do agente, tais fatos poderão ser objeto de análise por
ocasião do estudo da culpabilidade, quando se perquirirá se era
exigível do agente, nas circunstâncias em que se encontrava, agir
de outro modo. Após a verificação das circunstâncias que envolvem
o agente, bem como das suas condições pessoais, chega-se à
conclusão de que não lhe era exigível outra conduta. Embora o fato
seja típico, não será culpável e, portanto, não será objeto de
reprovação pela lei penal.
2.6
Hipóteses de aumento de pena do § 4º do art. 121 do
Código Penal
O § 4º do art. 121 do Código Penal prevê o aumento de 1/3 (um
terço) da pena nas seguintes hipóteses:
1)
homicídio culposo:
a) se o crime resulta de inobservância
de regra técnica de profissão, arte ou
ofício;
b) se o agente deixa de prestar
imediato socorro à vítima, não procura
diminuir as consequências do seu ato,
ou foge para evitar a prisão em
flagrante.
2)
homicídio doloso:
a) se o crime é cometido contra
pessoa menor de 14 (quatorze) ou
maior de 60 (sessenta) anos.
No homicídio culposo, a inobservância de regra técnica faz com
que a pena aplicada ao agente seja majorada em um terço. Esse
substancial aumento se deve ao fato de que o agente, mesmo tendo
os conhecimentos das técnicas exigidas ao exercício de sua
profissão, arte ou ofício, não os utiliza por leviandade, sendo maior,
portanto, o juízo de reprovação que deve recair sobre o seu
comportamento.
Conforme alerta Fragoso:
“Tal dispositivo só se aplica quando se trata de um profissional,
pois somente em tal caso se acresce à medida do dever de
cuidado a reprovabilidade da falta de atenção, diligência ou
cautela exigíveis. Se não se trata de um profissional, o
componente da culpabilidade não excede o que regularmente
se requer para a configuração do crime culposo em sua
hipótese típica básica, de modo que o reconhecimento da
agravante significaria uma dupla valoração inadmissível.
Se alguém constrói um muro divisório de seu terreno e se tal
muro vem a ruir causando morte, por ter sido edificado com
inobservância de regras técnicas, parece evidente que uma
culpa agravada só poderia ter um técnico na construção de
muros. Quem, não sendo técnico, se lançasse à construção de
um muro, seria apenas culpado da imprudência elementar ao
crime culposo.”56
O alerta feito por Fragoso nos faz refletir sobre dois pontos
importantes. O primeiro deles é o fato de que a majorante somente
poderá incidir nos casos que disserem respeito às condutas
praticadas mediante imperícia. O segundo é que, embora possa o
agente ter atuado com imperícia, não necessariamente deverá
incidir a majorante, pois poderá, no caso concreto, ter observado as
regras técnicas necessárias ao ato que estava praticando, não
tendo, contudo, agido com a habilidade necessária.
Imagine-se a hipótese em que um médico, durante a realização
de uma videolaparoscopia, venha perfurar algum órgão da vítima,
mesmo utilizando técnicas exigidas no caso concreto. Embora
possa, em tese, ser considerado imperito, não necessariamente
deverá incidir a causa especial de aumento.
A pena ainda é aumentada em um terço no homicídio culposo
quando o agente deixa de prestar o imediato socorro à vítima, não
procura diminuir as consequências do seu ato ou foge para evitar a
prisão em flagrante.
Na primeira hipótese, o agente demonstra sua insensibilidade
para com o sofrimento alheio, cuja autoria lhe é atribuída. Aquele
que, culposamente, ofende, inicialmente, a integridade corporal ou a
saúde de alguém deve fazer o possível para evitar a produção do
resultado mais gravoso, vale dizer, a morte da vítima. A negação do
socorro demonstra a maior reprovabilidade do comportamento, que
merecerá, consequentemente, maior juízo de reprovação, com a
aplicação do percentual de aumento de pena.
A omissão de socorro, quando não punida de forma autônoma,
como acontece na hipótese do art. 135 do Código Penal, funciona,
geralmente, como causa de aumento de pena, a exemplo das
infrações penais previstas nos arts. 302 e 303 do Código de Trânsito
Brasileiro, que preveem, respectivamente, os delitos de homicídio e
lesões corporais culposas na direção de veículo automotor.
Aqui merece destaque o fato de que, se outras pessoas já
tiverem efetuado o socorro da vítima, não poderá ser aplicado o
aumento de pena ao agente, visto que o que se pretende com a
majorante é fazer com que a vítima não fique ao desamparo. Se
outras pessoas prestavam o socorro, seria inimaginável que o
agente tivesse de com elas brigar para que, ele próprio, pudesse
socorrer a vítima. Se não houve recusa de sua parte em levar a
efeito o socorro que fora realizado por terceiros, nenhuma
justificativa existe para o aumento de pena.
Da mesma forma, não se fala em omissão de socorro quando a
vítima tiver, por exemplo, morte instantânea. O parágrafo não exige
que se socorra um cadáver. Há casos, como é cediço, que
percebemos, a toda prova, a morte da vítima. Nessas hipóteses
também não há falar em omissão de socorro, como aquela absurda
situação criada pelo já citado Código de Trânsito Brasileiro que, no
parágrafo único do seu art. 304, exige a prestação do socorro ainda
que se trate de vítima com morte instantânea, verbis:
Art. 304. Deixar o condutor do
veículo, na ocasião do acidente, de
prestar imediato socorro à vítima, ou,
não podendo fazê-lo diretamente, por
justa causa, deixar de solicitar auxílio
da autoridade pública:
Penas – detenção, de 6 (seis) meses
a 1 (um) ano, ou multa, se o fato não
constituir elemento de crime mais
grave.
Parágrafo único. Incide nas penas
previstas neste artigo o condutor do
veículo, ainda que a sua omissão seja
suprida por terceiros ou que se trate
de vítima com morte instantânea ou
com ferimentos leves.
Da mesma forma, aumenta-se a pena aplicada quando o
agente não procura diminuir as consequências de seu ato, quer
dizer, segundo Hungria, que não tenta, “na medida do possível,
atenuar o dano ocasionado por sua culpa, como quando, por
exemplo, deixa de transportar a malferida vítima ao primeiro posto
hospitalar ou a uma farmácia, ou omite qualquer providência
indicada pela necessidade do seu urgente tratamento”,57 a exemplo
daquele que sabendo que a vítima não possui condições financeiras
para arcar com o custo do tratamento e medicamentos não a auxilia
materialmente nesse sentido, deixando-a à própria sorte, ou
também naquele caso em que o agente, ameaçado de ser linchado
pela população revoltada com o seu comportamento, não busca
socorro nas autoridades.
A última das majorantes aplicável ao homicídio culposo diz
respeito ao fato do agente que foge para evitar sua prisão em
flagrante. Ab initio deve ser destacado o fato de que se a vida do
agente correr perigo, como acontece quando o seu linchamento é
iminente, tendo em vista a manifestação de populares que se
encontravam no local do acidente, não se lhe pode exigir que
permaneça no local dos fatos, afastando-se, outrossim, a majorante.
Independentemente da situação anterior, tem-se questionado a
validade dessa causa de aumento de pena em virtude do fato de ter
o art. 301 do Código de Trânsito Brasileiro determinado que ao
condutor de veículo, nos casos de acidentes de trânsito de que
resulta vítima, não se imporá a prisão em flagrante, nem se exigirá
fiança, se prestar pronto e integral socorro àquela, estimulando,
assim, a presença do motorista atropelador no local do acidente,
uma vez que, se ali permanecer, não poderá ser conduzido preso.
Dessa forma, aplicando-se, por analogia, o mencionado
dispositivo, devemos afastar, também, a prisão em flagrante delito
nas hipóteses de homicídio culposo do Código Penal, uma vez que
são idênticas as razões de política criminal.
Até o advento da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto
da Criança e do Adolescente), todas as majorantes do § 4º do art.
121 do Código Penal eram destinadas ao delito de homicídio
culposo. Após a sua edição, foi inserida a majorante dirigida
exclusivamente ao homicídio doloso, quando praticado contra
pessoa menor de 14 (quatorze) anos.
Mais uma introdução foi procedida no mencionado parágrafo,
agora por intermédio da Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003
(Estatuto do Idoso), que também determinou o aumento de um terço
quando o delito for praticado contra pessoa maior de 60 (sessenta)
anos.
As duas majorantes podem ser aplicadas a todas as
modalidades de homicídio doloso – simples, privilegiado e
qualificado, devendo, contudo, ser demonstrada a idade das vítimas
por meio de documento hábil, conforme preconiza o parágrafo único
do art. 155 do Código de Processo Penal, de acordo com a nova
redação que lhe foi dada pela Lei nº 11.690, de 9 de junho de 2008,
que diz que somente quanto ao estado das pessoas serão
observadas as restrições estabelecidas na lei civil.
Merece ser ressaltado, ainda, que quando se tratar de
feminicídio, praticado contra vítima menor de 14 (quatorze) anos e
maior de 60 (sessenta) anos, será aplicada a majorante prevista
pelo § 7º do art. 121 do Código Penal, observando-se, outrossim, o
princípio da especialidade. Assim, o § 4º do mencionado art. 121 do
diploma repressivo será aplicado por exclusão, ou seja, quando não
for a hipótese de feminicídio, aplica-se a causa especial de aumento
de pena em estudo.
2.7
Perdão judicial
Inicialmente, é preciso destacar que o perdão judicial não se
dirige a toda e qualquer infração penal, mas, sim, àquelas
previamente determinadas pela lei. Assim, não cabe ao julgador
aplicar o perdão judicial nas hipóteses em que bem entender, mas
tão somente nos casos predeterminados pela lei penal.
Com esse raciocínio, pelo menos ab initio, torna-se impossível
a aplicação da analogia in bonam partem quando se tratar de
ampliação das hipóteses de perdão judicial. Isso porque a lei penal
afirmou categoricamente que o perdão judicial somente seria
concedido nos casos por ela previstos, afastando-se, portanto,
qualquer outra interpretação.
Muito se discutiu sobre a natureza jurídica da sentença que
concede o perdão judicial, sendo que as opiniões se dividiam no
sentido de que seria absolutória, condenatória ou meramente
declaratória de extinção da punibilidade. O STJ, por intermédio da
Súmula nº 18, posicionou-se nesse último sentido, afirmando que a
sentença concessiva do perdão judicial é declaratória da extinção da
punibilidade, não subsistindo qualquer efeito condenatório, devendo
ser realizada uma releitura do art. 120 do Código Penal.
A forma como o perdão judicial normalmente vem previsto, a
fim de ser aplicado a determinada infração penal, deixa dúvida se
ele é uma faculdade do juiz ou um direito subjetivo do agente. O §
5º do art. 121 do Código Penal diz que, na hipótese de homicídio
culposo, o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as
consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão
grave que a sanção penal se torne desnecessária.
Suponhamos que um pai, que possua porte legal de arma,
chegue em casa apressado e, negligentemente, retire a arma da
cintura e a coloque sobre a mesa da sala, indo, logo em seguida, ao
banheiro. Seu filho menor, ao avistar a arma, começa a brincar com
ela. A arma dispara, atingindo-o mortalmente. O pai ainda se
encontrava no banheiro quando escutou o estampido. Desesperado,
lembrou-se de que havia deixado a arma ao alcance do seu filho,
mas, ao sair do banheiro, já o encontrou morto. Pergunta-se: será
que esse pai, que, em razão de ter deixado de observar o seu dever
objetivo de cuidado, culposamente causou a morte de seu próprio
filho, necessita de mais alguma sanção? Acreditamos que não,
devendo, pois, ser-lhe concedido o perdão judicial. Em casos como
esse, indaga-se: o perdão judicial continua a ser uma faculdade do
juiz ou é um direito subjetivo do agente?
Respondendo à indagação formulada, Damásio de Jesus afirma
tratar-se de:
“Um direito penal público subjetivo de liberdade. Não é um favor
concedido pelo juiz. É um direito do réu. Se presentes as
circunstâncias exigidas pelo tipo, o juiz não pode, segundo puro
arbítrio, deixar de aplicá-lo. A expressão ‘pode’ empregada pelo
CP nos dispositivos que disciplinam o perdão judicial, de acordo
com a moderna doutrina penal, perdeu a natureza de simples
faculdade judicial, no sentido de o juiz poder, sem
fundamentação, aplicar ou não o privilégio. Satisfeitos os
pressupostos exigidos pela norma, está o juiz obrigado a deixar
de aplicar a pena.”58
Entendemos, permissa vênia, que o perdão judicial pode ser
entendido sob os dois aspectos, ou seja, como um direito subjetivo
do acusado ou como uma faculdade do julgador. Isso dependerá da
hipótese e das pessoas envolvidas. Assim, sendo o caso de crime
cometido por ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou
irmão, o perdão judicial deverá ser encarado como um direito
subjetivo do agente, pois, nesses casos, presume-se que a infração
penal atinge o agente de forma tão grave que a sanção penal se
torna desnecessária.
Por outro lado, há situações em que o julgador deverá, caso a
caso, verificar a viabilidade ou não da aplicação do perdão judicial.
Imagine-se a hipótese daquele que, querendo mostrar sua arma ao
seu melhor amigo, acidentalmente, faz com que ela dispare,
causando-lhe a morte. Seria aplicável, aqui, o perdão judicial, uma
vez que o agente que causou a morte de seu melhor amigo ficou
tremendamente abalado psicologicamente, pensando, inclusive, em
dar cabo da própria vida, em razão da sua imprudência? A resposta
virá, como dissemos, no caso concreto, não se podendo generalizar,
como nas hipóteses em que houver uma relação de parentesco
próximo entre o agente e a vítima, conforme destacamos.
2.7.1
Perdão judicial no Código de Trânsito Brasileiro
Dissemos que o perdão judicial somente pode ser concedido
nas hipóteses determinadas expressamente em lei, sendo,
inicialmente, uma escolha do legislador para, posteriormente, ficar a
critério do juiz a sua aplicação ao caso concreto, se presentes os
seus requisitos. Assim, quando não houver previsão expressa em
lei, o julgador estará impossibilitado de conceder perdão judicial,
sendo vedada, nesse caso, a analogia in bonam partem.
Anteriormente ao advento da Lei nº 9.503/97, a sociedade
mobilizou-se no sentido de que houvesse maior recrudescimento
das penas correspondentes aos delitos de homicídio e lesões
corporais culposas praticados no trânsito, fato que culminou com a
edição do Código de Trânsito Brasileiro.
Antes do novo Código de Trânsito, quando os motoristas, na
direção de seus veículos, causavam mortes ou lesões culposas,
respondiam, respectivamente, pelas sanções previstas nos arts.
121, § 3º, e 129, § 6º, ambos do Código Penal. Para essas infrações
penais havia, também, a previsão do perdão judicial (art. 121, § 5º, e
art. 129, § 8º, do CP).
O Código de Trânsito Brasileiro especializou os delitos de
homicídio e lesões corporais de natureza culposa, criando os tipos
dos arts. 302 e 303 que dizem:
Art. 302. Praticar homicídio culposo
na direção de veículo automotor:
Penas – detenção, de dois a quatro
anos, e suspensão ou proibição de se
obter a permissão ou a habilitação
para dirigir veículo automotor.
Art. 303. Praticar lesão corporal
culposa na direção de veículo
automotor:
Penas – detenção, de seis meses a
dois anos e suspensão ou proibição
de se obter a permissão ou a
habilitação
para
dirigir
veículo
automotor.
Embora o projeto de lei que disciplinou o Código de Trânsito
Brasileiro tivesse feito previsão do perdão judicial, em seu art. 300,
nas hipóteses de homicídio culposo e lesão corporal culposa, o
Presidente da República entendeu por bem vetá-lo, sob o seguinte
fundamento:
“O artigo trata do perdão judicial, já consagrado pelo Direito
Penal. Deve ser vetado, porém, porque as hipóteses previstas
pelo § 5º do art. 121 e § 8º do art. 129 do Código Penal
disciplinam o instituto de forma mais abrangente.”
Apesar dos argumentos expendidos no veto presidencial,
podemos nos fazer a seguinte indagação: sendo o perdão judicial
somente aplicável nas hipóteses previamente determinadas em lei,
pelo fato de não haver, em virtude do veto presidencial, previsão
expressa do perdão judicial no Código de Trânsito Brasileiro,
podemos continuar a aplicá-lo nas hipóteses de homicídio culposo,
bem como de lesão corporal culposa praticados na direção de
veículo automotor?
Respondendo afirmativamente à indagação, Ariosvaldo de
Campos Pires e Sheila Selim, com maestria, aduzem:
“Embora justificáveis as razões do veto, parece-nos, com efeito,
que de melhor técnica seria prever expressamente tais
hipóteses no Código de Trânsito, ampliando-as como
necessário. O legislador não o fez. Ainda assim, as hipóteses
de perdão judicial previstas para o homicídio culposo e a lesão
corporal culposa, no Código Penal, devem ser aplicadas aos
arts. 302 e 303 do Código de Trânsito, seja porque o art. 291
envia o intérprete à aplicação das normas gerais do Código
Penal, seja por força das razões do veto, antes expostas, que
se referem expressamente àquelas hipóteses.”59
Luiz Flávio Gomes60 e Damásio de Jesus61 também se
posicionam favoravelmente à aplicação do perdão judicial aos arts.
302 e 303 do Código de Trânsito Brasileiro.
Em sentido contrário, Rui Stoco, sob o argumento de que:
“O § 5º do art. 121 do Código Penal contém disposição
assemelhada, com o mesmo objetivo, cabendo, então, indagar
se essa hipótese de perdão judicial aplica-se ao homicídio
culposo ou lesão corporal culposa decorrente de acidente de
trânsito. Lamentavelmente, a resposta é negativa. É certo que o
art. 291 desse Estatuto mandou aplicar aos crimes cometidos
na direção de veículos automotores o Código Penal, o Código
de Processo Penal e a Lei nº 9.099/95. Contudo, restringiu essa
aplicação às normas gerais do Código Penal, de modo que
apenas a parte geral deste Código é que se aplica
subsidiariamente. E então estamos diante de absurda injustiça
ou desajuste legal, na medida em que o ordenamento jurídico
passa a estabelecer critérios diversos para situações idênticas.
Aquele que vitima um parente e comete homicídio culposo na
direção de uma aeronave, de uma composição férrea, no metrô,
na intervenção cirúrgica etc., terá possibilidade de obter o
perdão judicial, enquanto a ocorrência do mesmo fato, nas
mesmas circunstâncias, mas na condução de um veículo
automotor, não poderá ensejar a obtenção do benefício. Não
havendo como buscar razão lógico-jurídica onde ela não existe,
só cabe lamentar a impropriedade e falta de sensibilidade da
autoridade, que insiste em negar vigência à Constituição
Federal e escarnecer o princípio da isonomia.”62
Embora não concordemos com o veto presidencial, pois
entendemos que as hipóteses que possibilitam a aplicação deverão
estar expressas, ou seja, deverá haver previsão legal em cada tipo
penal em que seja permitido, pela lei, o perdão judicial, acreditamos,
com a corrente majoritária, ser possível, por questões de política
criminal, a aplicação do perdão judicial aos arts. 302 e 303 do
Código de Trânsito Brasileiro. Isso porque não seria razoável
entender que, embora as razões que fizeram inserir o perdão judicial
para os crimes de homicídio culposo e lesão corporal culposa
tenham sido, sem dúvida, o elevado número de acidentes de
trânsito, agora que foram criadas infrações penais específicas para
esse tipo de acidente, o perdão judicial não possa ser aplicado.
Assim, mesmo correndo o risco de se abrir uma porta para
outras infrações penais, excepcionando-se a regra contida no inciso
IX do art. 107 do Código Penal, somos pela possibilidade de
aplicação do perdão judicial aos delitos tipificados nos arts. 302 e
303 do Código de Trânsito Brasileiro.
2.8
Homicídio praticado por milícia privada, sob o pretexto
de prestação de serviço de segurança, ou por grupo de
extermínio
A Lei nº 12.720, de 27 de setembro de 2012, acrescentou o § 6º
ao art. 121 do Código Penal, prevendo mais uma causa especial de
aumento de pena, dizendo, verbis:
§ 6º A pena é aumentada de 1/3 (um
terço) até a metade se o crime for
praticado por milícia privada, sob o
pretexto de prestação de serviço de
segurança, ou por grupo de
extermínio.
Definir, com precisão, o conceito de milícia, não é tarefa fácil.
Historicamente, voltando à época do Império, os portugueses
entendiam como “milícia” as chamadas tropas de segunda linha,
que exerciam uma reserva auxiliar ao Exército, considerado de
primeira linha. Como a polícia militar, durante muito tempo, foi
considerada uma reserva do Exército, passou, em virtude disso, a
ser considerada milícia.
No meio forense, não era incomum atribuir-se a denominação
“milícia” quando se queria fazer referência à Policia Militar. Assim,
por exemplo, quando, na peça inicial de acusação ou da lavratura
do auto de prisão em flagrante, ou mesmo em qualquer
manifestação escrita nos autos, era comum referir-se aos policiais
militares, que efetuavam a prisão, como “milicianos.”
Infelizmente, nos dias de hoje, já não se pode mais utilizar essa
denominação sem que, com ela, venha uma forte carga pejorativa.
Existe, na verdade, uma dificuldade na tradução do termo “milícia.”
Essa dificuldade foi externada, inclusive, no Relatório Final da
Comissão Parlamentar de Inquérito (Resolução nº 433/2008), da
Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, presidida pelo
Deputado Marcelo Freixo, destinada a investigar a ação dessas
novas “milícias”, no âmbito daquele Estado.
Tal dificuldade de conceituação pode ser vislumbrada já no
início do referido Relatório (página 34), quando diz que:
“Desde que grupos de agentes do Estado, utilizando-se de
métodos violentos passaram a dominar comunidades inteiras
nas regiões mais carentes do município do Rio, exercendo à
margem da Lei o papel de polícia e juiz, o conceito de milícia
consagrado nos dicionários foi superado. A expressão milícias
se incorporou ao vocabulário da segurança pública no Estado
do Rio e começou a ser usada frequentemente por órgãos de
imprensa quando as mesmas tiveram vertiginoso aumento, a
partir de 2004. Ficou ainda mais consolidado após os atentados
ocorridos no final de dezembro de 2006, tidos como uma ação
de represália de facções de narcotraficantes à propagação de
milícias na cidade.”
Embora de difícil tradução, mas para efeitos de aplicação da
causa especial de aumento de pena prevista no § 6º do art. 121 do
Código Penal, podemos, inicialmente, subdividir as milícias em
públicas, isto é, pertencentes, oficialmente, ao Poder Público, e
privadas, vale dizer, criadas às margens do aludido Poder.
Dessa forma, as milícias podem ser consideradas, ainda,
militares ou paramilitares. Militares são as forças policiais
pertencentes à Administração Pública, que envolvem não somente
as Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica), mas também
as forças policiais (polícia militar), que tenham uma função
específica, determinada legalmente pelas autoridades competentes.
Paramilitares são associações não oficiais, cujos membros atuam
ilegalmente, com o emprego de armas, com estrutura semelhante à
militar. Essas forças paramilitares utilizam as técnicas e táticas
policiais oficiais por elas conhecidas, a fim de executarem seus
objetivos anteriormente planejados. Não é raro ocorrer e, na
verdade, acontece com frequência, que pessoas pertencentes a
grupos paramilitares também façam parte das forças militares
oficiais do Estado, a exemplo de policiais militares, bombeiros,
policiais civis e federais.
As milícias consideradas criminosas, ou seja, que se encontram
à margem da lei, eram, inicialmente, formadas por policiais, expoliciais e também por civis (entendidos aqui aqueles que nunca
fizeram parte de qualquer força policial).
Suas atividades, no começo, cingiam-se à proteção de
comerciantes e moradores de determinada região da cidade. Para
tanto, cobravam pequenos valores individuais, que serviam como
remuneração aos serviços de segurança por elas prestados. Como
as milícias eram armadas, havia, normalmente, o confronto com
traficantes, que eram expulsos dos locais ocupados, como também
os pequenos criminosos (normalmente pessoas que costumavam
praticar crimes contra o patrimônio).
A diferença fundamental, naquela oportunidade, entre a milícia
e as forças policiais do Estado era que os milicianos não somente
expulsavam os traficantes de drogas, por exemplo, mas também se
mantinham no local, ocupando os espaços por eles anteriormente
dominados, ao contrário do que ocorria com as forças policiais que,
após algum confronto com criminosos da região, saíam daquela
comunidade, permitindo que a situação voltasse ao status quo, ou
seja, retornava ao domínio do grupo criminoso que ali imperava.
Essa situação original da milícia a identificava como um grupo
organizado, não formalizado, ou seja, sem a regular constituição de
empresa, voltado para a prestação de serviço de segurança em
determinada região. Quando havia empresa constituída, esta era
puramente de fachada, ou seja, utilizada para dar uma aparência de
legalidade aos serviços de segurança prestados, que, na verdade,
eram impostos, mediante violência e ameaça à população.
Nesses locais é que costumava ocorrer o chamado “bico” por
parte dos integrantes das forças policiais. O “bico” diz respeito à
atividade remunerada do policial, quando deixa seu turno de serviço,
que é proibido em grande parte dos Estados da Federação, e
tolerado em outros, permitindo que o policial consiga auferir um
ganho além do seu soldo ou vencimentos, auxiliando nas suas
despesas pessoais.
Normalmente, as milícias exercem uma vigilância da
comunidade, por meio de pessoas armadas que se revezam em
turnos, impedindo, assim, a ação de outros grupos criminosos.
Com o passar do tempo, os membros integrantes das milícias
despertaram para o fato de que, além do serviço de segurança,
podiam também auferir lucros com outros serviços, por eles
monopolizados, como aconteceu com os transportes realizados
pelas “vans” e motocicletas, com o fornecimento de gás, TV a cabo
(vulgarmente conhecido como “gatonet”), internet (ou “gato velox”,
como é conhecida).
Passaram, outrossim, a exigir que os moradores de
determinada região somente adquirissem seus produtos e serviços
mediante a imposição do regime de terror. A violência, inicialmente
voltada contra os traficantes e outros criminosos, passou a ser
dirigida, também, contra a população em geral, que se via
compelida a aceitar o comando da milícia e suas determinações.
Para ele não havia concorrência, ou seja, ninguém, além dos
integrantes da milícia, podia explorar os serviços ou mesmo o
comércio de bens por eles monopolizados. Em caso de
desobediência, eram julgados e imediatamente executados,
sofrendo em seus corpos a punição determinada pela milícia
(normalmente lesões corporais ou mesmo a morte).
O § 6º do art. 121 do Código Penal diz que a pena é aumentada
de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado por milícia
privada, sob o pretexto de prestação de serviço de segurança, ou
por grupo de extermínio. Ao se referir à milícia privada, está dizendo
respeito àquela de natureza paramilitar, isto é, a uma organização
não estatal, que atua ilegalmente, mediante o emprego da força,
com a utilização de armas, impondo seu regime de terror em
determinada localidade.
Podemos tomar como parâmetro, para efeitos de definição de
milícia privada, as lições do sociólogo Ignácio Cano, citado no
Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito da
Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (p. 36), quando
aponta as seguintes características que lhe são peculiares:
1.
2.
3.
4.
5.
controle de um território e da população que nele habita por
parte de um grupo armado irregular;
o caráter coativo desse controle;
o ânimo de lucro individual como motivação central;
um discurso de legitimação referido à proteção dos
moradores e à instauração de uma ordem;
a participação ativa e reconhecida dos agentes do Estado.
Se o homicídio, portanto, for praticado por algum membro
integrante de milícia privada, sob o pretexto de prestação de serviço
de segurança, a pena deverá ser especialmente aumentada de 1/3
(um terço) até a metade. Assim, por exemplo, imagine-se a hipótese
em que um integrante da milícia, agindo de acordo com a ordem
emanada do grupo, mate alguém porque se atribuía à vítima a
prática frequente de crimes contra o patrimônio naquela região, ou
mesmo que a milícia determine a morte de um traficante que,
anteriormente, ocupava o local no qual levava a efeito o tráfico ilícito
de drogas. As mortes, portanto, são produzidas sob o falso
argumento de se estar levando a efeito a segurança do local, com a
eliminação de criminosos.
Nesses casos, todos aqueles que compõem a milícia devem
responder pelo delito de homicídio, com a pena especialmente
agravada, uma vez que seus integrantes atuam em concurso de
pessoas, e a execução do crime praticada por um deles é
considerada uma simples divisão de tarefas, de acordo com a teoria
do domínio funcional sobre o fato.
A Lei nº 12.720, de 27 de setembro de 2012, criou, ainda, o
delito de constituição de milícia privada, inserindo o art. 288-A no
Código Penal, dizendo, textualmente:
Art. 288-A. Constituir, organizar,
integrar,
manter
ou
custear
organização
paramilitar,
milícia
particular, grupo ou esquadrão com a
finalidade de praticar qualquer dos
crimes previstos neste Código: Pena –
reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos.
Embora não faça parte de uma milícia, com as características
acima apontadas, poderá ocorrer que o homicídio tenha sido
praticado por alguém pertencente a um grupo de extermínio, ou
seja, um grupo, geralmente, de “justiceiros”, que procura eliminar
aqueles que, segundo seus conceitos, por algum motivo, merecem
morrer. Podem ser contratados para a empreitada de morte, ou
podem cometer, gratuitamente, os crimes de homicídio de acordo
com a “filosofia” do grupo criminoso, que escolhe suas vítimas para
que seja realizada uma “limpeza social.”
Conforme esclarecimentos do Deputado Federal Nilmário
Miranda, Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara
Federal:
“A ação dos grupos de extermínio consiste numa das principais
fontes de violação dos direitos humanos e de ameaça ao
Estado de direito no país. Essas quadrilhas agem normalmente
nas periferias dos grandes centros urbanos e têm seus
correspondentes nos jagunços do interior. Usam estratégia de
ocultar os corpos de suas vítimas para se furtar à ação da
justiça, sendo que os mais ousados chegam a exibir
publicamente sua crueldade. Surgem como decorrência da
perda de credibilidade nas instituições da justiça e de
segurança pública e da certeza da impunidade, resultante da
incapacidade de organismos competentes em resolver o
problema. Os embriões dos grupos de extermínio nascem
quando comerciantes e outros empresários recrutam matadores
de aluguel, frequentemente policiais militares e civis, para o que
chamam ‘limpar’ o ‘seu bairro’ ou ‘sua cidade’”.63
Gerson Santana Arrais, discordando da possibilidade de se
considerar grupo de extermínio as mortes ocorridas “gratuitamente”,
e amparado na definição apontada pelo ilustre Deputado mineiro,
assevera:
“As principais características dos grupos de extermínio são a
matança de pessoas, após aqueles serem recrutados ou
contratados por pessoas do comércio e outras empresas.
Claramente, por óbvio, que esses exterminadores não fazem
esse ‘serviço sujo’ sem ônus, não o fazem ‘de graça’.
Certamente são pagos pelos contratantes – os maiores
interessados. Assim, são profissionais do crime que não
possuem, em primeiro plano, uma relação de desafeto com as
vítimas do extermínio.
De tudo isso, não podemos nos furtar em concluir com clareza
e inquestionável lógica, que esses exterminadores, ao silenciar
as suas vítimas, não estão animados por nenhum motivo de
ordem pessoal em relação a elas (frieza e torpeza); são
profissionais (recebem pelo que fazem, então alguém os paga);
por serem frios e receberem por esse vil mister, agem com
futilidade em relação à causa de agir; pelo profissionalismo e
destreza que animam os seus perfis (bons atiradores, frios,
experientes, treinados, profissionais, normalmente em bando),
estão em grande condição de superioridade em relação à vítima
ou às vítimas, as quais, na maioria das vezes, não têm
possibilidade ou oportunidade de defesa”.64
O conceito, no entanto, ainda não se encontra completamente
esclarecido, como dissemos no tópico correspondente aos
destaques do crime de homicídio, para onde remetemos o leitor.
2.9
Causas de aumento de pena no feminicídio
Diz o § 7º do art. 121 do Código Penal:
§ 7º A pena do feminicídio é
aumentada de 1/3 (um terço) até a
metade se o crime for praticado:
I – durante a gestação ou nos 3 (três)
meses posteriores ao parto;
II – contra pessoa menor de catorze
anos, maior de sessenta anos, com
deficiência ou portadora de doenças
degenerativas
que
acarretem
condição
limitante
ou
de
vulnerabilidade física ou mental;
III – na presença física ou virtual de
descendente ou de ascendente da
vítima;
IV – em descumprimento das medidas
protetivas de urgência previstas nos
incisos I, II e III do caput do art. 22 da
Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006.
Antes de analisarmos cada uma das hipóteses de aumento de
pena, vale ressaltar que embora a segunda parte do § 4º do art. 121
do Código Penal tenha uma redação parecida com aquela trazida
pelo § 7º do mesmo artigo, asseverando que se o crime de
homicídio doloso for praticado contra pessoa menor de 14 (catorze)
ou maior de 60 (sessenta) anos, a pena será aumentada de 1/3 (um
terço), havendo, mesmo que parcialmente, um conflito aparente de
normas, devemos concluir que as referidas majorantes cuidam de
situações
distintas,
aplicando-se,
pois,
como
dissemos
anteriormente, o princípio da especialidade, ou seja, quando
estivermos diante de um feminicídio, e se a vítima for menor de 14
(catorze) ou maior de 60 (sessenta) anos, como preveem os dois
parágrafos, deverá ser aplicado o § 7º do art. 121 do estatuto
repressivo. Dessa forma, o § 4º, nas hipóteses mencionadas,
também como já ressaltado, será aplicado por exclusão, ou seja,
quando não se tratar de feminicídio, aplica-se o § 4º do art. 121 do
diploma penal.
Ao contrário do que ocorre no § 4º do art. 121 do Código Penal,
em que foi determinado o aumento de 1/3 (um terço), no § 7º do
mesmo artigo determinou a lei que a pena seria aumentada entre o
percentual mínimo de 1/3 (um terço) até a metade. Assim, o julgador
poderá percorrer entre os limites mínimo e máximo. No entanto, qual
será o critério para que, no caso concreto, possa o julgador
determinar o percentual a ser aplicado? Existe alguma regra a ser
observada que permita a escolha de um percentual, partindo do
mínimo, podendo chegar ao máximo de aumento?
Imaginemos a hipótese em que o agente foi condenado pelo
delito de homicídio qualificado, caracterizando-se, outrossim, o
feminicídio. Vamos considerar que o crime foi consumado e que o
fato foi praticado contra uma senhora que contava com 65 anos de
idade. O agente foi condenado e o julgador, ao fixar a pena-base,
determinou o patamar mínimo (12 anos de reclusão), após avaliar
as circunstâncias judiciais. Não havia circunstâncias atenuantes ou
agravantes, tendo em vista a impossibilidade de aplicação do art.
61, II, h, pois que a idade da vítima já havia sido considerada para
efeitos de qualificação do crime. Uma vez comprovado nos autos
que o agente tinha conhecimento da idade da vítima, qual o
percentual de aumento a ser aplicado? Se determinar 1/3 (um
terço), por exemplo, a pena final será de 16 anos de reclusão; se
entender pela aplicação do percentual máximo, a pena final será de
18 anos de reclusão. Enfim, a diferença será ainda maior à medida
que a pena-base for superior aos 12 anos e terá repercussões
importantes quando, após o efetivo trânsito em julgado da sentença
penal condenatória, for iniciada a fase da execução penal,
interferindo, por exemplo, na contagem do tempo para a progressão
de regime, livramento condicional etc.
O critério que norteará o julgador, segundo nosso
posicionamento, será o princípio da culpabilidade. Quanto maior o
juízo de reprovação no caso concreto, maior será a possibilidade de
aumento. Como se percebe, não deixa de ser também um critério
subjetivo, mas, de qualquer forma, o juiz deverá motivar a sua
decisão, esclarecendo as razões pelas quais não optou pela
aplicação do percentual mínimo. Na verdade, como o processo é
dialético, ou seja, é feito de partes, tanto a aplicação do percentual
mínimo quanto a de qualquer outro em patamar superior devem ser
fundamentadas, porque o órgão acusador e a defesa precisam
tomar conhecimento dessa fundamentação para que possam,
querendo, ingressar com algum tipo de recurso, caso venham a dela
discordar.
Dessa forma, em sendo condenado o agente que praticou o
feminicídio, quando da aplicação da pena, o juiz deverá fazer incidir,
no terceiro momento do critério trifásico, previsto no art. 68 do
Código Penal, o aumento de 1/3 (um terço) até a metade, se o crime
for praticado:
I – durante a gestação ou nos 3 (três)
meses posteriores ao parto
Ab initio, para que as causas de aumento de pena previstas
pelo inciso I do § 7º do art. 121 do Código Penal possam ser
aplicadas é preciso que, anteriormente, tenham ingressado na
esfera de conhecimento do agente, ou seja, para que o autor do
feminicídio possa ter sua pena majorada, quando de sua conduta
tinha que saber, obrigatoriamente, que a vítima se encontrava
grávida ou que, há três meses, tinha realizado seu parto. Caso
contrário, ou seja, se tais fatos não forem do conhecimento do
agente, será impossível a aplicação das referidas majorantes, sob
pena de adotarmos a tão repudiada responsabilidade penal objetiva,
também conhecida como responsabilidade penal sem culpa ou pelo
resultado.
Na primeira parte do inciso I sub examen, podemos extrair as
seguintes hipóteses, partindo do pressuposto que o agente conhecia
a gravidez da vítima, e que agia com a finalidade de praticar um
feminicídio:
–
–
–
–
a mulher e o feto sobrevivem – nesse caso, o agente
deverá responder pela tentativa de feminicídio e pela
tentativa de aborto;
a mulher e o feto morrem – aqui, deverá responder pelo
feminicídio consumado e pelo aborto consumado;
a mulher morre e o feto sobrevive – nesta hipótese,
teremos um feminicídio consumado, em concurso com uma
tentativa de aborto;
a mulher sobrevive e o feto morre – in casu, será
responsabilizado pelo feminicídio tentado, em concurso
com o aborto consumado.
Entendemos que, em virtude da necessidade de aplicação do
concurso de crimes, ou seja, feminicídio (consumado ou tentado) e
aborto (consumado ou tentado), a majorante em estudo jamais
poderá ser aplicada, pois, caso contrário, adotaríamos o chamado
bis in idem, ou seja, a gestação estaria sendo considerada tanto
para a majoração da pena do feminicídio, quanto para a
caracterização do delito de aborto. Assim, podemos afirmar que a
inovação legislativa é natimorta, ou seja, já surgiu sem vida,
impossibilitada de ser aplicada em qualquer hipótese.
Nesse sentido, afirma Francisco Dirceu Barros que:
“Não é possível ao praticar o feminicídio o agente ativo incidir
em homicídio qualificado majorado e também no crime de
aborto, pois ao matar ou tentar matar uma mulher grávida
pagaria duas vezes, pela majorante e pelo crime de aborto.”65
A segunda parte do inciso I do § 7º do art. 121 do Código Penal
assevera que se o agente causa a morte da mulher por razões da
condição de sexo feminino, nos 3 (três) meses posteriores ao parto,
também terá sua pena majorada. Aqui, conta-se o primeiro dia do
prazo de 3 (três) meses na data em que praticou a conduta, e não
no momento do resultado morte. Assim, por exemplo, se o agente
deu início aos atos de execução do crime de feminicídio, agredindo
a vítima a facadas, e esta vem a falecer somente uma semana após
as agressões, para efeito de contagem do prazo de 3 (três) meses
será levado em consideração o dia em que desferiu os golpes,
conforme determina o art. 4º do Código Penal, que diz que se
considera praticado o crime no momento da ação ou da omissão,
ainda que outro seja o momento do resultado.
II – contra pessoa menor de catorze
anos, maior de sessenta anos, com
deficiência ou portadora de doenças
degenerativas
que
acarretem
condição
limitante
ou
vulnerabilidade física ou mental
de
O inciso II do § 7º do art. 121 do Código Penal teve sua redação
modificada pela Lei nº 13.771, de 19 de dezembro de 2018.
Tal como ocorre com o inciso I, analisado anteriormente, para
que as majorantes constantes do inciso II sejam aplicadas ao
agente é preciso que todas elas tenham ingressado na sua esfera
de conhecimento, pois, caso contrário, poderá ser alegado o erro de
tipo, afastando-se, consequentemente, o aumento de pena.
Deverá, ainda, ser demonstrado nos autos, através de
documento hábil, que a vítima era menor de 14 (catorze) anos, ou
seja, não tinha ainda completado 14 (catorze) anos de idade, ou era
maior de 60 (sessenta) anos. Tal prova deve ser feita através de
certidão de nascimento, expedida pelo registro civil ou documento
que o substitua, a exemplo da carteira de identidade, conforme
determina o parágrafo único do art. 155 do Código de Processo
Penal, de acordo com a redação que lhe foi conferida pela Lei nº
11.690, de 9 de junho de 2008, que diz que somente quanto ao
estado das pessoas serão observadas as restrições estabelecidas
na lei civil.
A deficiência da vítima que, nos termos do art. 4º do Decreto nº
3.298, de 20 de dezembro de 1999, que regulamentou a Lei nº
7.853, de 24 de outubro de 1989, pode ser física, auditiva, visual,
mental e múltipla, poderá ser comprovada através de um laudo
pericial, ou por outros meios capazes de afastar a dúvida. Assim,
por exemplo, imagine-se a hipótese em que o agente cause a morte
de sua mulher, paraplégica, fato que era do conhecimento de todos.
Aqui, v.g., a paraplegia da vítima poderá ser demonstrada, inclusive,
através da prova testemunhal, não havendo necessidade de laudo
médico. O que se quer, na verdade, é que o julgador tenha certeza
absoluta dos fatos que conduzirão a um aumento de pena
considerável, quando da aplicação do art. 68 do Código Penal.
Doenças degenerativas são aquelas que recebem essa
denominação porque provocam, efetivamente, a degeneração de
todo o organismo, e envolvem os vasos sanguíneos, tecidos, ossos,
visão, órgãos internos e cérebro. Essas doenças levam à alteração
do funcionamento de uma célula, um tecido ou um órgão. Podemos
citar como exemplos de doenças degenerativas o Mal de Alzheimer,
a esclerose múltipla, a arteriosclerose, as doenças cardíacas e da
coluna vertebral, o diabetes etc. Para que possa ser aplicada a
causa especial de aumento de pena em estudo, é preciso, ainda,
que, além de portador de uma doença reconhecidamente
degenerativa, essa doença imponha uma condição limitante ou
mesmo de vulnerabilidade física ou mental. Assim, por exemplo,
pode a vítima ser portadora de diabetes, sem que isso a limite de
alguma maneira. Nesse caso, não poderia ser aplicada a majorante.
Em ocorrendo a hipótese de feminicídio contra uma criança
(menor de 12 anos de idade) ou uma mulher maior de 60
(sessenta), não será aplicada a circunstância agravante prevista na
alínea “h”, do art. 61 do Código Penal, pois, caso contrário,
estaríamos levando a efeito o chamado bis in idem, em que um
mesmo fato estaria incidindo duas vezes em prejuízo do agente.
Nesses casos, terá aplicação o inciso II do § 7º do art. 121 do
Código Penal, também devido à sua especialidade.
III – na presença física ou virtual de
descendente ou de ascendente da
vítima
Com a modificação introduzida pela Lei nº 13.771, de 19 de
dezembro de 2018, o referido inciso III do § 7º do art. 121 do Código
Penal passou a se referir, expressamente, à possibilidade de o
crime ter sido cometido na presença tanto física quanto virtual de
ascendente ou descendente da vítima.
Assim, para que possa ser aplicada a majorante do inciso III do
§ 7º do art. 121 do Código Penal é preciso que o feminicídio tenha
sido praticado na presença de algum descendente ou de
ascendente da vítima, ou seja, qualquer um dos parentes
mencionados deve presenciar, quer dizer, testemunhar a prática do
crime. Isso pode acontecer tanto com uma presença física, isto é, o
descendente ou o ascendente da vítima podem estar no mesmo
local onde o delito de morte é cometido, quanto também podem
presenciá--lo virtualmente, através de um computador que captava
as imagens da cena do crime. Assim, imagine-se a hipótese em que
a vítima mantinha com sua mãe, que morava em outra cidade, uma
conversa com áudio e vídeo, através de um programa de
computador quando, de repente, seu marido, agindo com vontade
de matá-la, mesmo sabendo que sua sogra a tudo assistia, efetua
os disparos com uma arma de fogo ou mesmo os golpes de faca.
Nesse caso, podemos dizer que, mesmo a distância, o fato foi
praticado na presença da ascendente da vítima.
O fato de matar a vítima na presença de seu descendente ou
ascendente sofre um maior juízo de reprovação, uma vez que o
agente produzirá, nessas pessoas, um trauma quase irremediável.
Assim, raciocinemos com outra hipótese em que o marido mata a
sua esposa na presença de seu filho, que contava na época dos
fatos com apenas 7 anos de idade. O trauma dessa cena violenta o
acompanhará a vida toda. Infelizmente, tal fato tem sido comum e
faz com que aquele que presenciou, por exemplo, a morte brutal de
sua mãe cresça, ou mesmo conviva até a sua morte, com
problemas psicológicos seríssimos, repercutindo na sua vida em
sociedade.
O que importa, portanto, é que tanto o descendente quanto o
ascendente presenciem o feminicídio, devendo o autor do crime
sofrer um maior juízo de reprovação.
Além de o agente que pratica o feminicídio ter que saber que as
pessoas que se encontravam presentes quando da sua ação
criminosa eram descendentes ou ascendentes da vítima, para que a
referida causa de aumento de pena possa ser aplicada é preciso,
também, que haja prova do parentesco nos autos, produzida através
dos documentos necessários (certidão de nascimento, documento
de identidade etc.), conforme preconiza o parágrafo único do art.
155 do Código de Processo Penal referido anteriormente.
IV – em descumprimento das medidas
protetivas de urgência previstas nos
incisos I, II e III do caput do art. 22 da
Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006
A pena também será aumentada de 1/3 (um terço) até a
metade se o crime for praticado em descumprimento das medidas
protetivas de urgência previstas nos incisos I, II e III do caput do art.
22 da chamada Lei Maria da Penha, que dizem, verbis
Art. 22. Constatada a prática de
violência doméstica e familiar contra a
mulher, nos termos desta Lei, o juiz
poderá aplicar, de imediato, ao
agressor,
em
conjunto
ou
separadamente,
as
seguintes
medidas protetivas de urgência, entre
outras:
I – suspensão da posse ou restrição
do porte de armas, com comunicação
ao órgão competente, nos termos da
Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de
2003;
II – afastamento do lar, domicílio ou
local de convivência com a ofendida;
III – proibição de determinadas
condutas, entre as quais:
a) aproximação da ofendida, de seus
familiares e das testemunhas, fixando
o limite mínimo de distância entre
estes e o agressor;
b) contato com a ofendida, seus
familiares e testemunhas por qualquer
meio de comunicação;
c) frequentação de determinados
lugares a fim de preservar a
integridade física e psicológica da
ofendida.
2.10
Pena, ação penal e suspensão condicional do processo
Para o homicídio simples, a pena é de reclusão, de 6 (seis) a 20
(vinte) anos; nas formas qualificadas, a pena é de reclusão, de 12
(doze) a 30 (trinta) anos; no homicídio culposo, a pena é de
detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos.
A ação penal no delito de homicídio, seja ele doloso ou culposo,
é de iniciativa pública incondicionada.
O instituto da suspensão condicional do processo foi introduzido
em nosso ordenamento jurídico por intermédio da Lei nº 9.099, de
26 de setembro de 1995, que, em seu art. 89, determinou:
Art. 89. Nos crimes em que a pena
mínima cominada for igual ou inferior
a um ano, abrangidos ou não por esta
Lei, o Ministério Público, ao oferecer a
denúncia, poderá propor a suspensão
do processo, por dois a quatro anos,
desde que o acusado não esteja
sendo processado ou não tenha sido
condenado por outro crime, presentes
os demais requisitos que autorizariam
a suspensão condicional da pena (art.
77 do Código Penal).
Medida de natureza despenalizadora, a suspensão condicional
do processo tem por finalidade evitar, presentes determinados
requisitos, em infrações penais cuja pena mínima for igual ou inferior
a 1 (um) ano, a chamada persecutio criminis in judicio, com todas as
características que lhe são inerentes, consistindo, segundo as lições
de Geraldo Prado e Luis Gustavo Grandinetti C. de Carvalho:
“Em o Ministério Público formular proposta ao réu, visando
obter dele determinados comportamentos positivos e negativos
ao longo de um tempo preciso, de modo a ver declarada extinta
a punibilidade do acusado pelo crime que funda a causa de
pedir da ação penal. Para que a extinção da punibilidade se
concretize, é necessário que o acusado, orientado por seu
defensor, aceite a proposta e o juiz a homologue. Provas não
serão produzidas e o acordo somente será válido se
aperfeiçoado depois de recebida a denúncia, com a
constatação da existência de justa causa para a ação penal.
Finalmente, a medida só é cabível para determinado grupo de
infrações penais, originando-se a extinção da punibilidade na
hipótese de
revogação.”66
consumação
do
período
de
prova
sem
Pouco tempo depois, mais precisamente em 12 de julho de
2001, surgiu a Lei nº 10.259, regulando os Juizados Especiais Cíveis
e Criminais no âmbito da Justiça Federal. O mencionado estatuto,
ao contrário da Lei nº 9.099/95, que dispunha sobre o conceito de
infração penal de menor potencial ofensivo, elegendo, para esse
fim, as contravenções penais e os crimes a que a lei cominava pena
máxima não superior a 1(um) ano, aumentou para 2 (dois) anos o
tempo de pena máxima cominada abstratamente aos crimes,
revogando parcialmente o art. 61 da referida Lei nº 9.099/95.
Com essa modificação surgiu a discussão no sentido de que
também teria ocorrido modificação quanto ao tempo mínimo de
pena cominada nos tipos penais para efeito de raciocínio sobre a
suspensão condicional do processo, passando-se, agora, também
para 2 (dois) anos.
Embora houvesse sido levantada inicialmente a dúvida e com
ela as discussões pertinentes, entende-se, atualmente, de forma
majoritária, que não houve modificação no que diz respeito ao
tempo de pena mínima cominada para efeito de possibilitar a
proposta de transação processual, devendo esta, portanto, ser igual
ou inferior a 1 (um) ano.
Corroborando o raciocínio acima, afirmam Tourinho Neto e Joel
Dias Figueira Júnior:
“Para fixar a competência do Juizado Especial, leva-se em
consideração a pena máxima de dois anos. Cuidando-se de
suspensão processual, deve-se atentar para a pena mínima de
um ano. Portanto, se ao crime for cominada pena máxima não
superior a dois anos, a competência será do Juizado Especial,
e se a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano,
poder-se-á, satisfeitos os demais requisitos, conceder ao
acusado a suspensão do processo; se superior, não.”67
Merecem, ainda, registro as lições precisas de Geraldo Prado e
Luis Gustavo Grandinetti C. de Carvalho que, com segurança,
afirmam:
“Convém lembrar que o Superior Tribunal de Justiça chegou a
definir a pena mínima de dois anos de prisão como patamar
para o cabimento da suspensão condicional do processo.
Partia-se de suposta simetria, inexistente é verdade, com a
pena máxima de dois anos que a Lei nº 10.259/2001 fixou para
definir infrações de menor potencial ofensivo. Com a devida
vênia dos que entendem de modo diferente, não há qualquer
correspondência entre dois anos de pena máxima para definir
infrações de menor potencial ofensivo e dois anos de pena
mínima para cabimento da suspensão condicional do processo.
Como frisado, a suspensão condicional do processo é
categoria, geral, que deveria vir regulada no Código de
Processo Penal, mas que terminou sendo disciplinada na Lei
dos Juizados Especiais para se aproveitar uma situação
excepcional de política legislativa, apenas por esse motivo.
Prevista para incidir em caso de crime com pena mínima de até
dois anos de prisão, por opção do Congresso Nacional foi
limitada a crimes com pena mínima de um ano. Trata-se de
liberdade de conformação do legislador, e exclusivamente dele,
nos termos do art. 5º, inciso XXXIX, da Constituição da
República, de modo que somente outra lei pode alterar o
referido patamar. A circunstância de estar prevista na Lei nº
9.099/95 não muda isso.”68
O art. 61 da Lei nº 9.099/95 teve sua redação modificada pela
Lei nº 11.313, de 28 de julho de 2006, que passou a considerar
como infração penal de menor potencial ofensivo as contravenções
penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2
(dois) anos, cumulada ou não com multa. A referida lei não fez
qualquer menção à suspensão condicional do processo, quando, se
fosse intenção do legislador aumentar o seu limite para 2 (dois)
anos, poderia tê-lo feito expressamente, afastando, dessa forma,
qualquer dúvida. Assim, entendemos que prevalece a regra
constante do art. 89 da Lei nº 9.099/95.
Analisando a pena mínima cominada ao delito de homicídio
culposo, percebemos que ela não é superior a 1 (um) ano, razão
pela qual será possível a confecção de proposta de suspensão
condicional do processo pelo Ministério Público, com todas as
implicações que lhe são inerentes.
Merece ser frisado, contudo, que o concurso de crimes, em
quaisquer das suas modalidades (concurso material, concurso
formal ou continuidade delitiva), de acordo com a Súmula nº 243 do
Superior Tribunal de Justiça, afasta a possibilidade de aplicação da
suspensão condicional do processo, tendo o Supremo Tribunal
Federal também editado a Súmula nº 723 não admitindo a transação
processual nas hipóteses de crime continuado, verbis:
Súmula nº 243. O benefício da
suspensão do processo não é
aplicável em relação às infrações
penais cometidas em concurso
material,
concurso
formal
ou
continuidade delitiva, quando a pena
mínima
cominada,
seja
pelo
somatório, seja pela incidência da
majorante, ultrapassar o limite de um
(01) ano.
Súmula nº 723. Não se admite a
suspensão condicional do processo
por crime continuado, se a soma da
pena mínima da infração mais grave
com o aumento mínimo de um sexto
for superior a um ano.
Pode ocorrer, por exemplo, que alguém, descuidadamente,
fazendo a limpeza de sua arma, efetue um disparo, atingindo
fatalmente duas pessoas. Teremos, aqui, dois homicídios culposos,
praticados em concurso formal. Assim, em que pese a pena mínima
para essa infração penal permitir o raciocínio, pelo menos
inicialmente, sobre a possibilidade de aplicação da suspensão
condicional do processo, esta será inviabilizada em decorrência do
concurso de crimes.
2.11
Destaques
2.11.1
Homicídio simples considerado como crime hediondo
Relembra Alberto Silva Franco:
“As chacinas da Candelária e de Vigário Geral, no Rio de
Janeiro, aliadas ao assassinato da artista de televisão, Daniela
Perez, deram o pano de fundo necessário para que os meios de
comunicação social iniciassem uma ampla e intensa campanha
com o objetivo de incluir o delito de homicídio no rol dos crimes
hediondos.”69
A mídia, mobilizando as massas populares, fez com que fosse
ampliado o elenco das infrações consideradas hediondas para nele
inserir o delito de homicídio, o que foi efetivamente concretizado por
intermédio da Lei nº 8.930, de 6 de setembro de 1994, que deu nova
redação ao inciso I do art. 1º da Lei nº 8.072/90.
Diz o inciso I do art. 1º da Lei nº 8.072/1990, com a alteração
promovida pela Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019:
Art. 1º São considerados hediondos
os seguintes crimes, todos tipificados
no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de
dezembro de 1940 – Código Penal,
consumados ou tentados:
I – homicídio (art. 121), quando
praticado em atividade típica de grupo
de extermínio, ainda que cometido por
um só agente, e homicídio qualificado
(art. 121, § 2º, incisos I, II, III, IV, V, VI,
VII e VIII);
Interpretando a redação do inciso I do mencionado artigo,
podemos concluir que o homicídio simples também passou a gozar
do status de crime hediondo – se praticado em atividade típica de
grupo de extermínio –, mesmo que cometido por uma só pessoa.
Desde a inovação trazida para o bojo da Lei nº 8.072/90, a
doutrina vem se perguntando, incessantemente, o que vem a ser
atividade típica de grupo de extermínio.
Antônio Lopes Monteiro, buscando resolver essa vexata
quaestio, destaca:
“Quererá, talvez, o legislador referir-se ao famigerado
‘esquadrão da morte’, quiçá aos atuais ‘justiceiros’ ou a
pessoas pagas para ‘apagar’ pequenos delinquentes? Temos
nossas dúvidas, até porque, se a um ou a outro se quisesse
reportar a lei, inútil destacar esta figura como hedionda, já que
homicídios assim praticados qualificam-se pelo motivo torpe
(art. 121, § 2º, I) ou por emboscada, ou outro recurso que
dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido (inciso IV), ou
até, na pior das hipóteses, por motivo fútil (inciso II). É por isso
que não entendemos a finalidade desta inclusão.”70
Ainda poderíamos adicionar, já que não há consenso sobre o
que seja atividade típica de grupo de extermínio, aqueles
comportamentos dirigidos a destruir os grupos apontados pela Lei nº
2.889/56, que define e pune o crime de genocídio, a saber, grupo
nacional, étnico, racial ou religioso.
Enfim, apesar da previsão contida na Lei nº 8.072/90, inserindo
no rol das infrações hediondas o homicídio simples, conforme
destacado, se a conduta do agente, mesmo não agindo em
concurso, se caracterizar como atividade típica de grupo de
extermínio, dificilmente não encontraremos uma qualificadora para
essa motivação.
Eduardo Luiz Santos Cabette, de forma mais incisiva, adverte:
“Atualmente não é mais, nem mesmo teoricamente, correta a
afirmação de que pode haver um homicídio simples hediondo,
desde que cometido em ação de grupo de extermínio. Isso
porque ou o homicídio será qualificado ou será majorado pelo §
6º, jamais simples. No caso das milícias privadas, como já dito,
normalmente será qualificado. Levantando-se a hipótese
meramente teórica de que seja, em um caso concreto, simples
embora perpetrado por milícia, não haverá crime hediondo, já
que a Lei nº 8.072/90 não o prevê em seu rol taxativo, mas
apenas os grupos de extermínio.”71
Podemos, assim, concluir com Guilherme de Souza Nucci que
“a atividade típica de grupo de extermínio sempre foi considerada
pela nossa jurisprudência amplamente majoritária um crime
cometido por motivo torpe”,72 razão pela qual se torna impossível a
ocorrência de homicídio simples, praticado por conta dessa
motivação.
2.11.2
É sustentável a hipótese de homicídio qualificadoprivilegiado?
Interpretando sistemicamente os §§ 1º e 2º do art. 121 do
Código Penal, chegaríamos à conclusão de que não seria possível a
existência de um homicídio qualificado-privilegiado. Se fosse a
intenção da lei aplicar a causa de redução de pena constante do §
1º do art. 121 às suas modalidades qualificadas, o mencionado
parágrafo deveria estar localizado posteriormente ao elenco das
qualificadoras, haja vista ser princípio de hermenêutica aplicar o
parágrafo somente às hipóteses que lhe são antecedentes.
Assim, como a causa de diminuição de pena está localizada, no
art. 121 do Código Penal, anteriormente às modalidades
qualificadas do delito de homicídio, a conclusão de tal raciocínio
seria pela impossibilidade da existência de um homicídio
qualificado-privilegiado.
Nesse sentido, ensina Magalhães Noronha:
“Veja-se primeiramente a disposição técnica do Código. Depois
de definir o homicídio simples, no artigo, passa no § 1º – a que
ele denomina Caso de diminuição de pena – a tratar de
mitigação penal. Qual será, entretanto, a pena? Evidentemente
a cominada antes, ou seja, a do artigo, ou do homicídio simples.
Elementar conhecimento de técnica legislativa levaria o
legislador, se quisesse estender o privilégio ao homicídio
qualificado, a definir este em primeiro lugar, isto é, antes da
causa de diminuição que, então, vindo depois dele e do
homicídio simples, indicaria que a pena era tanto a de um como
a de outro.”73
Contudo, majoritariamente, a doutrina, por questões de política
criminal, posiciona-se favoravelmente à aplicação das minorantes
ao homicídio qualificado, desde que as qualificadoras sejam de
natureza objetiva, a fim de que ocorra compatibilidade entre elas.
Dessa forma, poderia haver, por exemplo, um homicídio
praticado mediante emboscada (qualificadora de natureza objetiva),
tendo o agente atuado impelido por um motivo de relevante valor
moral (minorante de natureza subjetiva).
O que se torna inviável, no caso concreto, é a concomitância de
uma qualificadora de natureza subjetiva, com o chamado,
equivocadamente, privilégio, visto serem incompatíveis, a exemplo
daquele que mata o seu desafeto por um motivo fútil e ao mesmo
tempo de relevante valor moral. São situações excludentes entre
si.74
Nesse sentido, preleciona Cezar Roberto Bitencourt, em
comentários às causas de redução de pena previstas pelo § 1º do
art. 121 do Código Penal:
“Essas privilegiadoras não podem concorrer com as
qualificadoras subjetivas, por absoluta incompatibilidade.
Respondendo-se
positivamente
aos
quesitos
das
privilegiadoras, ficam prejudicados os quesitos referentes às
qualificadoras subjetivas. No entanto, nada impede que as
privilegiadoras concorram com as qualificadoras objetivas.”75
2.11.2.1 Homicídio
qualificado-privilegiado
qualificado?
ou
privilegiado-
É importante consignar que, embora a doutrina use as duas
expressões – qualificado-privilegiado e privilegiado-qualificado –,
não podemos considerá-las, ambas, como corretas, mas tão
somente uma delas, vale dizer, a que intitula o homicídio de
qualificado-privilegiado.
Isso porque devemos atender não à ordem constante dos
parágrafos do art. 121 do Código Penal, que nos conduziria,
fatalmente, à expressão privilegiado-qualificado, haja vista que as
causas de diminuição de pena estão consignadas anteriormente às
qualificadoras.
O raciocínio, na verdade, deve ser outro. Estamos diante, como
se verifica com clareza, de um homicídio qualificado que não perdeu
essa natureza pelo fato de existirem algumas causas que têm por
finalidade diminuir a pena aplicada nos momentos anteriores,
determinados pelo art. 68 do Código Penal.
Dessa forma, o homicídio, por ser qualificado, deverá assim ser
reconhecido, para, em momento posterior, ser adjetivado de
privilegiado, razão pela qual, tecnicamente, estaremos, sempre,
diante de um homicídio qualificado-privilegiado, e não privilegiadoqualificado.
2.11.3
O homicídio qualificado-privilegiado como crime hediondo
A segunda parte do inciso I do art. 1º da Lei nº 8.072/90 aponta
o homicídio qualificado, em todas as suas modalidades (art. 121, §
2º, I, II, III, IV, V, VI, VII e VIII), como infração de natureza hedionda.
Admitindo-se, como o faz majoritariamente nossa doutrina, a
possibilidade de coexistência de um homicídio qualificadoprivilegiado, o privilégio teria o condão de afastar a natureza
hedionda das qualificadoras?
Tecnicamente, a resposta teria de ser negativa, pois a Lei nº
8.072/90 não faz qualquer tipo de ressalva que nos permita tal
ilação. Na verdade, diz textualmente que o homicídio qualificado
goza do status de infração penal de natureza hedionda. O chamado
privilégio não é, nada mais, do que uma simples causa de redução
de pena, a ser analisada no terceiro momento do critério trifásico,
previsto pelo art. 68 do Código Penal.
Assim, sendo reconhecido o homicídio qualificado, deverá o
julgador fixar a pena-base levando em conta as balizas mínima (12
anos) e máxima (30 anos) previstas no § 2º do art. 121 do estatuto
repressivo. Somente no terceiro momento, quando da aplicação das
causas de diminuição de pena, é que fará incidir o percentual de
redução de um sexto a um terço.
Como se percebe, a infração penal não deixa de ser qualificada
em razão da existência de uma minorante (privilégio).
Contudo, majoritariamente, a doutrina repele a natureza
hedionda do homicídio qualificado-privilegiado, haja vista que – é o
argumento – não se compatibiliza a essência do delito
objetivamente qualificado, tido como hediondo, com o privilégio de
natureza subjetiva.76
Nesse sentido, assevera Fernando Capez:
“Reconhecida a figura híbrida do homicídio privilegiadoqualificado, fica afastada a qualificação de hediondo do
homicídio qualificado, pois, no concurso entre as circunstâncias
objetivas (qualificadoras que convivem com o privilégio) e as
subjetivas
(privilegiadoras),
estas
últimas
serão
preponderantes, nos termos do art. 67 do CP, pois dizem
respeito aos motivos determinantes do crime.”77
Guilherme de Souza Nucci complementa o raciocínio anterior
dizendo:
“Não deixa de ser estranha a qualificação de hediondo
(repugnante, vil, reles) a um delito cometido, por exemplo, por
motivo de relevante valor moral ou social. Ainda que possa ser
praticado com crueldade (qualificadora objetiva, que diz
respeito ao modo de execução), a motivação nobre permite que
se considere delito comum e não hediondo, afinal, acima de
tudo, devem-se considerar os motivos (finalidade) do agente
para a consecução do crime e não simplesmente seus atos.”78
2.11.4
A presença de mais de uma qualificadora
Não raro,
prática de um
qualificado. O
aplicação da
qualificadora?
acontecem fatos em que se atribui ao agente a
delito de homicídio dupla ou mesmo triplamente
que fazer diante dessa situação, para fins de
pena, quando estiver presente mais de uma
A doutrina também se divide nessa questão.
Uma corrente entende que todas as qualificadoras devem ser
analisadas no momento da fixação da pena-base. Se a pena
cominada à modalidade qualificada do homicídio varia de 12 (doze)
a 30 (trinta) anos de reclusão, o julgador, uma vez reconhecidas
duas ou três qualificadoras, poderia, sob esse fundamento,
considerando-se as circunstâncias judiciais elencadas no art. 59 do
Código Penal, fixar uma pena-base, em tese, maior do que aplicaria
em face da existência de uma única qualificadora.
Em sentido contrário, tendo em vista que muitas das
qualificadoras do homicídio fazem parte do elenco constante do art.
61 do Código Penal, tem-se entendido, de forma majoritária, que o
julgador deverá, quando da fixação da pena-base, levar em
consideração tão somente uma qualificadora, servindo as demais
para fins de agravação da pena, no segundo momento do critério
trifásico. Assim, seria afastada a possibilidade de o julgador fixar a
pena-base em patamar muito superior ao mínimo legal, pois não
mais poderia fundamentar sua decisão na multiplicidade de
qualificadoras. Por outro lado, somente poderia, de acordo com o
melhor posicionamento doutrinário, agravar em até um sexto a
pena-base dada a existência de circunstâncias agravantes, o que,
político-cri-minalmente, atenderia melhor aos interesses do
acusado, que não receberia uma pena excessivamente longa.
O STJ vem decidindo reiteradamente no seguinte sentido:
“Não há bis in idem quando, havendo
mais de uma qualificadora, uma delas
for utilizada para qualificar o delito e
as demais forem consideradas como
circunstâncias desfavoráveis, seja
para agravar a pena na segunda
etapa da dosimetria, seja para elevar
a reprimenda básica na primeira fase.
Precedentes” (STJ, AgRg no HC
512.372/PE, Rel. Min. Jorge Mussi, 5ª
T., DJe 22/08/2019). “O acórdão
recorrido encontra-se em harmonia
com a jurisprudência desta Corte
Superior,
no
sentido
de
ser
admissível, quando reconhecida a
incidência de duas qualificadoras, que
uma delas seja utilizada para tipificar
a conduta qualificada e a outra para
fins de exasperação da pena-base.
Precedentes” (STJ, AgRg no REsp
1.553.373/SP, Rel. Min. Jorge Mussi,
5ª T., DJe 04/06/2019).
2.11.5
Homicídio praticado por policial militar – competência para
julgamento
A Lei nº 9.299, de 7 de agosto de 1996, deu nova redação ao
caput do art. 82 do Código de Processo Penal Militar, bem como
incluiu o § 2º, que possuem a seguinte redação:
Art. 82. O foro militar é especial, e,
exceto nos crimes dolosos contra a
vida praticados contra civil, a ele
estão sujeitos, em tempo de paz:
§ 1º [...].
§ 2º Nos crimes dolosos contra a vida,
praticados contra civil, a Justiça Militar
encaminhará os autos do inquérito
policial militar à Justiça comum.
Dessa forma, a partir das modificações trazidas pela Lei nº
9.299/96, se um militar vier a causar a morte de um civil, a
competência para o processo e julgamento será do Tribunal do Júri.
A Emenda nº 45, de 8 de dezembro de 2004, dando nova
redação ao § 4º do art. 125 da Constituição Federal, ratificando o
posicionamento anterior, asseverou:
§ 4º Compete à Justiça Militar
estadual processar e julgar os
militares dos Estados, nos crimes
militares definidos em lei e as ações
judiciais contra atos disciplinares,
ressalvada a competência do Júri
quando a vítima for civil, cabendo ao
tribunal competente decidir sobre a
perda do posto e da patente dos
oficiais e da graduação das praças.
Da mesma forma, a Lei nº 13.491, de 13 de outubro de 2017,
que alterou parte do art. 9º do Código Penal Militar, deu nova
redação ao § 1º, que diz, verbis:
§ 1º Os crimes de que trata este
artigo, quando dolosos contra a vida e
cometidos por militares contra civil,
serão da competência do Tribunal do
Júri.
“Conforme precedente do Supremo Tribunal Federal, ‘para a
definição da competência da Justiça Militar, a Carta Política de
1988 (art. 124) adota a tipificação do delito como critério
objetivo da atribuição da mesma competência’ [...]. Ou seja,
tem-se competência da Justiça especializada Militar sempre
que a lei considerar determinado crime como sendo militar. A
previsão constitucional em relação à competência da Justiça
Militar estadual também adota o critério objetivo da natureza
jurídica do crime, militar ou não, para definir a competência
desta. Há, porém, duas importantes distinções. Primeira, na
Justiça Militar estadual cumu-lam-se as competências criminal e
administrativo-disciplinar. Segunda diferença, no âmbito
estadual, a Justiça castrense jamais julgará civil (Súmula
53/STJ. ‘Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar
civil acusado de prática de crime contra instituições militares
estaduais’)” (Informações Complementares à Ementa – HC
550.998/MG, Rel. Min. Ribeiro Dantas, 5ª T., j. 23/06/2020, DJe
26/06/2020).
2.11.6
Diferença entre eutanásia, distanásia e ortotanásia
A eutanásia diz respeito à prática do chamado homicídio
piedoso, no qual o agente antecipa a morte da vítima, acometida de
uma doença incurável, com a finalidade, quase sempre, de abreviarlhe algum tipo de sofrimento. Em geral, a eutanásia é praticada a
pedido ou com o consentimento da própria vítima. A eutanásia
também tem sido traduzida como “morte serena, boa morte, morte
sem sofrimento.”
A distanásia importa em uma morte lenta, prolongada, com
muito sofrimento, a exemplo daqueles pacientes que são mantidos
vivos por meio de aparelhos, sem qualquer chance de sobrevida
caso esses aparelhos venham a ser desligados. Como bem
observado por Léo Pessini, “trata-se da atitude médica que, visando
salvar a vida do paciente terminal, submete-o a grande sofrimento.
Nesta conduta não se prolonga a vida propriamente dita, mas o
processo de morrer.”79
Ortotanásia,80 de acordo com as lições de Genival Veloso de
França, diz respeito à “suspensão de meios medicamentosos ou
artificiais de vida de um paciente em coma irreversível e
considerado em ‘morte encefálica’, quando há grave
comprometimento da coordenação da vida vegetativa e da vida de
relação.”81
2.11.7
Transmissão dolosa do vírus HIV82
Pode ocorrer a hipótese em que o agente, sabendo-se portador
do vírus da Aids, o HIV, queira, dolosamente, transmiti-lo a outra
pessoa, mediante, por exemplo, a prática de relações sexuais, ou,
como ocorre em algumas penitenciárias, retira o próprio sangue,
colocando-o em uma seringa, para ser aplicado na vítima. Nesse
caso, se, efetivamente, vier a ocorrer a transmissão, ou, pelo
menos, a tentativa de transmissão, qual seria a infração penal
praticada?
Nossos Tribunais Superiores têm concluído, acertadamente,
nessas hipóteses, pela prática do delito tipificado no art. 131 do
Código Penal, conforme se verifica pelos seguintes julgados:
“O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 98.712/RJ,
Rel. Min. Marco Aurélio (1ª Turma, DJe 17/12/2010), firmou a
compreensão de que a conduta de praticar ato sexual com a
finalidade de transmitir AIDS não configura crime doloso contra
a vida. Assim não há constrangimento ilegal a ser reparado de
ofício, em razão de não ter sido o caso julgado pelo Tribunal do
Júri. O ato de propagar síndrome da imunodeficiência adquirida
não é tratado no Capítulo III, Título I, da Parte Especial, do
Código Penal (art. 130 e seguintes), onde não há menção a
enfermidades sem cura. Inclusive, nos debates havidos no
julgamento do HC 98.712/ RJ, o eminente Ministro Ricardo
Lewandowski, ao excluir a possibilidade de a Suprema Corte,
naquele caso, conferir ao delito a classificação de ‘Perigo de
contágio de moléstia grave’ (art. 131 do Código Penal),
esclareceu que, ‘no atual estágio da ciência, a enfermidade é
incurável, quer dizer, ela não é só grave, nos termos do art.
131’. Na hipótese de transmissão dolosa de doença incurável, a
conduta deverá será apenada com mais rigor do que o ato de
contaminar outra pessoa com moléstia grave, conforme
previsão clara do art. 129, § 2º, inciso II, do Código Penal. A
alegação de que a vítima não manifestou sintomas não serve
para afastar a configuração do delito previsto no art. 129, § 2º,
inciso II, do Código Penal. É de notória sabença que o
contaminado pelo vírus do HIV necessita de constante
acompanhamento médico e de administração de remédios
específicos, o que aumenta as probabilidades de que a
enfermidade permaneça assintomática. Porém, o tratamento
não enseja a cura da moléstia” (STJ, HC 160.982/DF, Rel.ª
Min.ª Laurita Vaz, 5ª T., DJe 28/05/2012, RT, v. 925, p. 663).
“Moléstia grave. Transmissão. HIV. Crime doloso contra a vida
versus o de transmitir doença grave. Descabe, ante previsão
expressa quanto ao tipo penal, partir-se para o enquadramento
de ato relativo à transmissão de doença grave como a
configurar crime doloso contra a vida. Considerações” (STF, HC
98.712/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, 1ª T., DJe 16/12/2010, RT,
v. 100, n. 906, 2011, p. 453-468).
2.11.8
Julgamento pelo júri sem a presença do réu
Dadas as alterações levadas a efeito no Código de Processo
Penal, não mais se exige a presença do réu em plenário do Júri
para que possa ser realizado o seu julgamento. O art. 457 e
parágrafos, com a redação determinada pela Lei nº 11.689, de 9 de
junho de 2008, dizem, verbis:
Art. 457. O julgamento não será
adiado pelo não comparecimento do
acusado solto, do assistente ou do
advogado do querelante, que tiver
sido regularmente intimado.
§ 1º Os pedidos de adiamento e as
justificações de não comparecimento
deverão ser, salvo comprovado motivo
de
força
maior,
previamente
submetidos à apreciação do juiz
presidente do Tribunal do Júri.
§ 2º Se o acusado preso não for
conduzido, o julgamento será adiado
para o primeiro dia desimpedido da
mesma reunião, salvo se houver
pedido
de
dispensa
de
comparecimento subscrito por ele e
seu defensor.
Andrey Borges de Mendonça esclarece, com precisão:
“Embora seja facultado ao acusado, em princípio, ausentar-se
da sessão de julgamento, tal disposição não deve ser
considerada absoluta. Em determinadas situações, será
necessária a presença do réu em plenário, mesmo contra a sua
vontade. Caso o juiz entenda, por exemplo, que há necessidade
de reconhecimento pessoal do acusado, especialmente nas
situações em que há dúvida sobre a autoria delitiva, poderá
determinar a condução coercitiva do acusado, se não
comparecer à sessão. Do contrário, os jurados seriam
impossibilitados de conhecer a verdade dos fatos,
especialmente no tocante à autoria delitiva.
No caso de réu preso, a regra é a do comparecimento, devendo
a autoridade providenciar a sua apresentação. Se não tiver sido
conduzido, por qualquer motivo, deve haver adiamento para o
primeiro dia desimpedido. No entanto, é possível a dispensa da
presença do acusado preso em plenário, se houver pedido de
dispensa de comparecimento subscrito pelo acusado e por se
defensor (não basta, portanto, a assinatura de um deles).”83
2.11.9
Homicídio decorrente de intervenção policial
Não é incomum que, durante confrontos policiais, o suposto
autor de determinada infração penal, ou mesmo alguém contra
quem tenha sido expedido mandado de prisão, possa vir a morrer. A
polícia, nesses casos, ao narrar o aludido confronto, normalmente
fazia menção à resistência oferecida pelo agente, que colocava em
risco a vida ou mesmo a integridade física dos policiais que
participavam daquela diligência. Assim, convencio-nou-se formalizar
essa narrativa em um documento chamado auto de resistência, em
que se informava que o agente havia sido morto dada a resistência
ativa por ele empregada. Nesses casos, os policiais relatavam uma
situação de agressão injusta, que lhes permitia agir em legítima
defesa.
Como o número de autos de resistência aumentou
sensivelmente ao longo dos anos, a Secretaria Especial de Direitos
Humanos da Presidência da República entendeu por bem em
regulamentar essas hipóteses fazendo editar a Resolução nº 8, de
20 de dezembro de 2012, que, após algumas considerações,
assevera:
Art. 1º As autoridades policiais devem
deixar de usar em registros policiais,
boletins de ocorrência, inquéritos
policiais e notícias de crimes
designações genéricas como “autos
de resistência”, “resistência seguida
de morte”, promovendo o registro,
com o nome técnico de “lesão
corporal decorrente de intervenção
policial” ou “homicídio decorrente de
intervenção policial”, conforme o caso.
Art. 2º Os órgãos e instituições
estatais que, no exercício de suas
atribuições, se confrontarem com
fatos classificados como “lesão
corporal decorrente de intervenção
policial” ou “homicídio decorrente de
intervenção policial” devem observar,
em sua atuação, o seguinte:
I – os fatos serão noticiados
imediatamente a Delegacia de Crimes
contra a Pessoa ou a repartição de
polícia judiciária, federal ou civil, com
atribuição assemelhada, nos termos
do art. 144 da Constituição, que
deverá:
a) instaurar, inquérito policial para
investigação de homicídio ou de lesão
corporal;
b) comunicar nos termos da lei, o
ocorrido ao Ministério Público.
II – a perícia técnica especializada
será realizada de imediato em todos
os
armamentos,
veículos
e
maquinários, envolvidos em ação
policial com resultado morte ou lesão
corporal, assim como no local em que
a
ação
tenha
ocorrido,
com
preservação da cena do crime, das
cápsulas e projeteis até que a perícia
compareça ao local, conforme o
disposto no art. 6º, incisos I e II; art.
159; art. 160; art. 164 e art. 181, do
Código de Processo Penal;
III – é vedada a remoção do corpo do
local da morte ou de onde tenha sido
encontrado sem que antes se proceda
ao devido exame pericial da cena, a
teor do previsto no art. 6º, incisos I e
II, do Código de Processo Penal;
IV – cumpre garantir que nenhum
inquérito policial seja sobrestado ou
arquivado sem que tenha sido juntado
o respectivo laudo necroscópico ou
cadavérico subscrito por peritos
criminais independentes e imparciais,
não subordinados às autoridades
investigadas;
V – todas as testemunhas presenciais
serão identificadas e sua inquirição
será realizada com devida proteção,
para que possam relatar o ocorrido
em segurança e sem temor;
VI
–
cumpre
garantir,
nas
investigações e nos processos penais
relativos a homicídios ocorridos em
confrontos
policiais,
que
seja
observado o disposto na Resolução
1989/65 do Conselho Econômico e
Social das Nações Unidas (Ecosoc);
VII – o Ministério Público requisitará
diligências complementares caso
algum dos requisitos constantes dos
incisos I a V não tenha sido
preenchido;
VIII – no âmbito do Ministério Público,
o inquérito policial será distribuído a
membro com atribuição de atuar junto
ao Tribunal do Júri, salvo quando for
hipótese de “lesão corporal decorrente
de intervenção policial”;
IX – as Corregedorias de Polícia
determinarão a imediata instauração
de processos administrativos para
apurar a regularidade da ação policial
de que tenha resultado morte,
adotando
prioridade
em
sua
tramitação;
X – sem prejuízo da investigação
criminal e do processo administrativo
disciplinar, cumpre à Ouvidoria de
Polícia, quando houver, monitorar,
registrar,
informar,
de
forma
independente e imparcial, possíveis
abusos cometidos por agentes de
segurança pública em ações de que
resultem lesão corporal ou morte;
XI – os Comandantes das Polícias
Militares nos Estados envidarão
esforços no sentido de coibir a
realização de investigações pelo
Serviço
Reservado
(P-2)
em
hipóteses não relacionadas com a
prática de infrações penais militares;
XII – até que se esclareçam as
circunstâncias
do
fato
e
as
responsabilidades,
os
policiais
envolvidos em ação policial com
resultado de morte:
a) serão afastados de imediato dos
serviços de policiamento ostensivo ou
de missões externas, ordinárias ou
especiais; e
b) não participarão de processo de
promoção por merecimento ou por
bravura.
XIII – cumpre às Secretarias de
Segurança
Pública
ou
pastas
estaduais
assemelhadas
abolir,
quando existentes, políticas de
promoção funcional que tenham por
fundamento o encorajamento de
confrontos entre policiais e pessoas
supostamente envolvidas em práticas
criminosas, bem como abste-rem-se
de promoções fundamentadas em
ações de bravura decorrentes da
morte dessas pessoas;
XIV – será divulgado, trimestralmente,
no Diário Oficial da unidade federada,
relatório de estatísticas criminais que
registre o número de casos de morte
ou lesões corporais decorrentes de
atos praticados por policiais civis e
militares, bem como dados referentes
a vítimas, classificadas por gênero,
faixa etária, raça e cor;
XV – será assegurada a inclusão de
conteúdos de Direitos Humanos nos
concursos para provimento de cargos
e nos cursos de formação de agentes
de segurança pública, membros do
Poder Judiciário, do Ministério Público
e da Defensoria Pública, com enfoque
historicamente fundamentado sobre a
necessidade de ações e processos
assecuratórios
de
política
de
segurança baseada na cidadania e
nos direitos humanos;
XVI – serão instaladas câmeras de
vídeo
e
equipamentos
de
geolocalização (GPS) em todas as
viaturas policiais;
XVII – é vedado o uso, em
fardamentos e veículos oficiais das
polícias, de símbolos e expressões
com
conteúdo
intimidatório
ou
ameaçador, assim como de frases e
jargões em músicas ou jingles de
treinamento que façam apologia ao
crime e à violência;
XVIII
–
o
acompanhamento
psicológico
constante
será
assegurado a policiais envolvidos em
conflitos com resultado morte e
facultado a familiares de vítimas de
agentes do Estado;
XIX – cumpre garantir a devida
reparação às vítimas e a familiares
das pessoas mortas em decorrência
de intervenções policiais;
XX – será assegurada reparação a
familiares dos policiais mortos em
decorrência
de
sua
atuação
profissional legítima;
XXI – cumpre condicionar o repasse
de verbas federais ao cumprimento de
metas públicas de redução de:
a) mortes decorrentes de intervenção
policial em situações de alegado
confronto;
b) homicídios com suspeitas de ação
de grupo de extermínio com a
participação de agentes públicos; e
c)
desaparecimentos
forçados
registrados
com
suspeita
de
participação de agentes públicos.
XXII – cumpre criar unidades de apoio
especializadas
no
âmbito
dos
Ministérios Públicos para, em casos
de
homicídios
decorrentes
de
intervenção policial, prestarem devida
colaboração ao promotor natural
previsto em lei, com conhecimentos e
recursos humanos e financeiros
necessários para a investigação
adequada e o processo penal eficaz.
Art. 3º Cumpre ao Ministério Público
assegurar, por meio de sua atuação
no controle externo da atividade
policial, a investigação isenta e
imparcial de homicídios decorrentes
de ação policial, sem prejuízo de sua
própria
iniciativa
investigatória,
quando necessária para instruir a
eventual propositura de ação penal,
bem como zelar, em conformidade
com
suas
competências,
pela
tramitação prioritária dos respectivos
processos
administrativos
disciplinares instaurados no âmbito
das Corregedorias de Polícia.
Art. 4º O Conselho de Defesa dos
Direitos da Pessoa Humana oficiará
os órgãos federais e estaduais com
atribuições afetas às recomendações
constantes desta Resolução dandolhes ciência de seu inteiro teor.
Art. 5º Esta Resolução entra em vigor
na data de sua publicação.
Merece ser ressaltado, por oportuno, que quando houver a
prática de uma infração penal com a existência de reféns, será
aplicado o parágrafo único do art. 25 do Código Penal, conforme já
exposto anteriormente, que diz:
Parágrafo único. Observados os
requisitos previstos no caput deste
artigo, considera-se também em
legítima defesa o agente de
segurança
pública
que
repele
agressão ou risco de agressão a
vítima mantida refém durante a prática
de crimes.
2.11.10 Feminicídio e ofensa ao princípio da igualdade
Tal como ocorreu quando do advento da Lei nº 11.340, de 7 de
agosto de 2006, quando inúmeras vozes se levantaram
questionando a constitucionalidade do referido diploma legal que
tinha como uma de suas finalidades a criação de mecanismos para
coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, a
mesma discussão poderá ocorrer no que diz respeito à qualificadora
relativa ao feminicídio, trazido pela Lei nº 13.104, de 9 de março de
2015, em que o delito de homicídio é cometido contra mulher, por
razões da condição de sexo feminino.
No entanto, o Supremo Tribunal Federal, em 09 de dezembro
de 2012, na ação declaratória de constitucionalidade nº 19, decidiu,
acertadamente e por unanimidade, julgar procedente o pedido e
reconhecer a constitucionalidade dos artigos 1º, 33 e 41 da Lei nº
11.340, de 7 de agosto de 2006, conforme se verifica pela ementa
abaixo transcrita:
“Violência doméstica. Lei nº 11.340/2006. Gêneros masculino e
feminino. Tratamento diferenciado. O artigo 1º da Lei nº
11.340/2006 surge, sob o ângulo do tratamento diferenciado
entre os gêneros – mulher e homem –, harmônica com a
Constituição Federal, no que necessária a proteção ante as
peculiaridades física e moral da mulher e a cultura brasileira.
Competência. Violência doméstica. Lei nº 11.340/2006.
Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher. O
artigo 33 da Lei nº 11.340/2006, no que revela a conveniência
de criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar
contra a mulher, não implica usurpação da competência
normativa dos Estados quanto à própria organização judiciária.
Violência doméstica e familiar contra a mulher. Regência. Lei nº
9.099/95. Afastamento. O artigo 41 da Lei nº 11.340/2006, ao
afastar, nos crimes de violência doméstica contra a mulher, a
Lei nº 9.099/95, mostra-se em consonância com o disposto no §
8º do artigo 226 da Carta da República, a prever a
obrigatoriedade de o Estado adotar mecanismos que coíbam a
violência no âmbito das relações familiares.”
Assim, tudo leva a crer que, se acionada, a nossa Corte
Suprema manterá a linha de raciocínio que a conduziu a declarar a
constitucionalidade da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006,
reconhecendo, também, a constitucionalidade da Lei nº 13.104, de 9
de março de 2015.
2.11.11 Feminicídio – qualificadora de natureza híbrida
Existe controvérsia doutrinária e jurisprudencial no que diz
respeito à natureza da qualificadora correspondente ao feminicídio.
Isso porque o inc. VI do § 2º do art. 121 do Código exige, para a sua
configuração, que o homicídio seja praticado contra mulher por
razões da condição de sexo feminino.
Entendendo pela natureza subjetiva da mencionada
qualificadora, Cleber Masson assevera:
“O feminicídio constitui-se em circunstância pessoal ou
subjetiva, pois diz respeito à motivação do agente. O homicídio
é cometido por razões de condição de sexo feminino. Não há
nenhuma ligação com os meios ou modos de execução do
delito. Consequentemente, essa qualificadora é incompatível
com o privilégio que a exclui, afastando o homicídio híbrido
(privilegiado-qualificado)”.84
Em sentido contrário, entendendo pela natureza objetiva da
qualificadora do feminicídio, Guilherme de Souza Nucci aduz:
“Trata-se de uma qualificadora objetiva, pois se liga ao gênero
da vítima: ser mulher. Historicamente, sempre predominou o
androcentrismo, colocando o homem no centro de tudo, em
oposição à misoginia, justificando um ódio às mulheres, mais
fracas fisicamente e sem condições de ascensão social.
Não aquiescemos à ideia de ser uma qualificadora subjetiva
(como o motivo torpe ou fútil) somente porque se inseriu a
expressão ‘por razões de condição de sexo feminino’. Não é
essa a motivação do homicídio”.85
Em que pese às lições dos renomados autores, entendemos
que estamos diante de uma qualificadora de natureza híbrida. Isso
porque o inc. VI do § 2º do art. 121 do Código Penal diz qualificar o
homicídio quando este for praticado contra mulher por razões da
condição de sexo feminino, e o § 2º-A do mesmo artigo aponta
essas hipóteses quando o crime envolve: I – violência doméstica e
familiar e II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
Assim, no que diz respeito ao mencionado inciso I, temos uma
qualificadora de natureza objetiva, uma vez que tais hipóteses são
aquelas objetivamente elencadas no art. 5º da Lei nº 11.340, de 7 de
agosto de 2006. Por outro lado, temos também uma qualificadora de
natureza subjetiva, quando o feminicídio é praticado por
menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
Assim, nada impede que tenhamos um homicídio qualificadoprivilegiado (feminicídio privilegiado) quando estivermos diante da
hipótese constante do inciso I do § 2º-A do art. 121 do Código
Penal, ficando vedada essa possibilidade quando o feminicídio for
praticado com a motivação prevista no inciso II do citado parágrafo,
vale dizer, quando for levado a efeito por menosprezo ou
discriminação à condição de mulher.
Entendo pela natureza tão somente objetiva da qualificadora do
feminicídio, assim vem decidindo o STJ:
“Esta Corte possui o entendimento segundo o qual as
qualificadoras do motivo torpe e do feminicídio não possuem a
mesma natureza, sendo certo que a primeira tem caráter
subjetivo, ao passo que a segunda é objetiva, não havendo,
assim, qualquer óbice à sua imputação simultânea” (STJ, AgRg
no AREsp 1.166.764/MS, Rel. Min. Antônio Saldanha Palheiro,
6ª T., DJe 17/06/2019).
Observe-se, inicialmente, que, conforme determina o art. 121, §
2º-A, I, do CP, a qualificadora do feminicídio deve ser
reconhecida nos casos em que o delito é cometido em face de
mulher em violência doméstica e familiar. Assim, “considerando
as circunstâncias subjetivas e objetivas, temos a possibilidade
de coexistência entre as qualificadoras do motivo torpe e do
feminicídio. Isso porque a natureza do motivo torpe é subjetiva,
porquanto de caráter pessoal, enquanto o feminicídio possui
natureza objetiva, pois incide nos crimes praticados contra a
mulher por razão do seu gênero feminino e/ou sempre que o
crime estiver atrelado à violência doméstica e familiar
propriamente dita, assim o animus do agente não é objeto de
análise” (Rel. Min. Felix Fischer, REsp 1.707.113-MG, DJe
07/12/2017) (STJ, HC 433.898-RS, Rel. Min. Nefi Cordeiro, 6ª
T., DJe 11/05/2018, Informativo nº 625).
2.11.12 Misoginia e rede mundial de computadores
O inciso VII foi acrescentado ao art. 1º da Lei nº 10.446, de 8 de
maio de 2002, pela Lei nº 13.642, de 3 de abril de 2018, dizendo,
verbis:
Art. 1º Na forma do inciso I do § 1º do
art. 144 da Constituição, quando
houver repercussão interestadual ou
internacional que exija repressão
uniforme, poderá o Departamento de
Polícia Federal do Ministério da
Justiça,
sem
prejuízo
da
responsabilidade dos órgãos de
segurança pública arrolados no art.
144 da Constituição Federal, em
especial das Polícias Militares e Civis
dos Estados, proceder à investigação,
dentre outras, das seguintes infrações
penais:
[...]
VII – quaisquer crimes praticados por
meio
da
rede
mundial
de
computadores que difundam conteúdo
misógino, definidos como aqueles que
propagam o ódio ou a aversão às
mulheres.
2.11.13 Prioridade de tramitação do processo do homicídio quando
praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda
que cometido por um só agente, e homicídio qualificado
(art. 121, § 2º, incisos I, II, III, IV, V, VI e VII)
A Lei nº 13.285, de 10 de maio de 2016, acrescentou o art. 394A ao Código de Processo Penal, determinando, verbis:
Art. 394-A. Os processos que apurem
a prática de crime hediondo terão
prioridade de tramitação em todas as
instâncias.
2.11.14 Destituição do poder familiar
O parágrafo único do art. 1.638 do Código Civil, com a redação
que lhe foi conferida pela Lei nº 13.715, de 24 de setembro de 2018,
assevera que, verbis:
Art. 1.638. Perderá por ato judicial o
poder familiar o pai ou a mãe que:
[...]
Parágrafo único. Perderá também
por ato judicial o poder familiar aquele
que:
I – praticar contra outrem igualmente
titular do mesmo poder familiar:
a) homicídio, feminicídio ou lesão
corporal de natureza grave ou seguida
de morte, quando se tratar de crime
doloso
envolvendo
violência
doméstica e familiar ou menosprezo
ou discriminação à condição de
mulher;
b) [...]
II – praticar contra filho, filha ou outro
descendente:
a) homicídio, feminicídio ou lesão
corporal de natureza grave ou seguida
de morte, quando se tratar de crime
doloso
envolvendo
violência
doméstica e familiar ou menosprezo
ou discriminação à condição de
mulher;
b) [...].
2.11.15 Jurisprudência em teses do Superior Tribunal de Justiça.
Edição nº 75: Tribunal do Júri – I
1)
2)
3)
O ciúme, sem outras circunstâncias, não caracteriza motivo
torpe.
Cabe ao Tribunal do Júri decidir se o homicídio foi motivado
por ciúmes, assim como analisar se referido sentimento, no
caso concreto, qualifica o crime.
Na fase de pronúncia, cabe ao Tribunal do Júri a resolução
de dúvidas quanto à aplicabilidade de excludente de
ilicitude.
4) A exclusão de qualificadora constante na pronúncia só
pode ocorrer quando manifestamente improcedente e
descabida, sob pena de usurpação da competência do
Tribunal do Júri.
5) A complementação do número regulamentar mínimo de 15
(quinze) jurados por suplentes de outro plenário do mesmo
Tribunal do Júri, por si só, não enseja nulidade do
julgamento.
6) Viola o princípio da soberania dos veredictos a anulação
parcial de decisão proferida pelo Conselho de Sentença
acerca da qualificadora sem a submissão do réu a novo
Júri.
7) A ausência do oferecimento das alegações finais em
processos de competência do Tribunal do Júri não acarreta
nulidade, uma vez que a decisão de pronúncia encerra
juízo provisório acerca da culpa.
8) A simples leitura da pronúncia no Plenário do Júri não leva
à nulidade do julgamento, que somente ocorre se a
referência for utilizada como argumento de autoridade que
beneficie ou prejudique o acusado.
9) Na intimação pessoal do réu acerca de sentença de
pronúncia ou condenatória do Júri, a ausência de
apresentação do termo de recurso ou a não indagação
sobre sua intenção de recorrer não gera nulidade do ato.
10) A sentença de pronúncia deve limitar-se à indicação da
materialidade do delito e aos indícios de autoria para evitar
nulidade por excesso de linguagem e para não influenciar o
ânimo do Conselho de Sentença.
11) É possível rasurar trecho ínfimo da sentença de pronúncia
para afastar eventual nulidade decorrente de excesso de
12)
13)
14)
15)
linguagem.
Reconhecida a nulidade da pronúncia por excesso de
linguagem, outra decisão deve ser proferida, visto que o
simples envelopamento e desentranhamento da peça
viciada não é suficiente.
A competência para o processo e julgamento do latrocínio
é do juiz singular e não do Tribunal do Júri. (Súmula nº
603/STF)
Compete ao Tribunal do Júri decretar, motivadamente,
como efeito da condenação, a perda do cargo ou função
pública, inclusive de militar quando o fato não tiver relação
com o exercício da atividade na caserna.
A pronúncia é causa interruptiva da prescrição, ainda que o
Tribunal do Júri venha a desclassificar o crime. (Súmula nº
191/STJ)
2.11.16 Jurisprudência em teses do Superior Tribunal de Justiça.
Edição nº 78: Tribunal do Júri – II
1)
2)
3)
O emprego de algemas deve ser medida excepcional e a
utilização delas em plenário de júri depende de motivada
decisão judicial, sob pena de configurar constrangimento
ilegal e de anular a sessão de julgamento. (Vide Súmula
Vinculante nº 11)
Compete às instâncias ordinárias, com base no cotejo
fático carreado aos autos, absolver, pronunciar,
desclassificar ou impronunciar o réu, sendo vedado em
sede de recurso especial o revolvimento do acervo fáticoprobatório. (Súmula nº 7/STJ)
As nulidades existentes na decisão de pronúncia devem
ser arguidas no momento oportuno e por meio do recurso
próprio, sob pena de preclusão.
4) A leitura em plenário do júri dos antecedentes criminais do
réu não se enquadra nos casos apresentados pelo art. 478,
incisos I e II, do Código de Processo Penal, inexistindo
óbice à sua menção por quaisquer das partes.
5) O exame de controvérsia acerca do elemento subjetivo do
delito é reservado ao Tribunal do Júri, juiz natural da causa.
6) É nula a decisão que determina o desaforamento de
processo da competência do Júri sem audiência da defesa.
(Súmula nº 712/STF)
7) Eventuais nulidades ocorridas em Plenário do Júri,
decorrentes de impedimento ou suspeição de jurados,
devem ser arguidas no momento oportuno, sob pena de
preclusão.
8) É absoluta a nulidade do julgamento, pelo Júri, por falta de
quesito obrigatório. (Súmula nº 156/STF)
9) Após as modificações no rito do Tribunal do Júri
introduzidas pela Lei nº 11.689/2008, o quesito genérico de
absolvição (art. 483, III, do CPP) não pode ser tido como
contraditório em relação ao reconhecimento da autoria e da
materialidade do crime.
10) Possíveis irregularidades na quesitação devem ser
arguidas após a leitura dos quesitos e a explicação dos
critérios pelo Juiz presidente, sob pena de preclusão (art.
571, inciso VIII, do CPP).
11) É nulo o julgamento quando os quesitos forem
apresentados com má redação ou quando forem
formulados de modo complexo, a ponto de causarem
perplexidade ou de dificultarem o entendimento dos
jurados.
12) O efeito devolutivo da apelação contra decisões do Júri é
adstrito aos fundamentos da sua interposição. (Súmula nº
713/STF)
13) Não viola o princípio da soberania dos vereditos a
cassação da decisão do Tribunal do Júri manifestamente
contrária à prova dos autos.
14) A soberania do veredicto do Tribunal do Júri não impede a
desconstituição da decisão por meio de revisão criminal.
2.12
QUADRO-RESUMO
Sujeitos
»
»
Ativo: qualquer pessoa.
Passivo: qualquer pessoa.
Objeto material
É a pessoa contra a qual recai a
conduta praticada pelo agente.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
A vida e, num sentido mais
amplo, a pessoa.
Exame de corpo de delito
Tratando-se de crime material,
infração penal que deixa
vestígios, há necessidade de
realização do exame de corpo
de delito, direto ou indireto, nos
termos dos arts. 158 e 167 do
CPP.
Elemento subjetivo
»
»
É o dolo (animus necandi,
animus occidendi).
Existe previsão para a
modalidade culposa – Art.
121, § 3º, do CP.
Modalidades
omissiva
comissiva
e
Pode o delito ser praticado
comissivamente
quando
o
agente dirige sua conduta com
o fim de causar a morte da
vítima,
ou
omissivamente,
quando deixa de fazer aquilo a
que estava obrigado em virtude
da sua qualidade de garantidor
(art. 13, § 2º, do CP).
Meios de execução
Delito de forma livre, o
homicídio pode ser praticado
mediante diversos meios, que
podem ser subdivididos em: a)
diretos;
b)
indiretos;
c)
materiais; d) morais. Podemos
citar como exemplos de meios
diretos na prática do homicídio
o disparo de arma de fogo, a
esganadura etc.; indiretos, o
ataque de animais açulados
pelo dono; os meios materiais
podem
ser
mecânicos,
químicos, patológicos; os meios
morais são, por exemplo, o
susto, o medo, a emoção
violenta.
Consumação e tentativa
»
»
A consumação do delito de
homicídio ocorre com o
resultado morte.
É admissível a tentativa,
tendo em vista tratar-se de
crime
material
e
plurissubsistente, em que
se pode fracionar o iter
criminis.
3.
INDUZIMENTO, INSTIGAÇÃO OU AUXÍLIO A SUICÍDIO OU A
AUTOMUTILAÇÃO
Induzimento, instigação ou auxílio
a suicídio ou a automutilação
Art. 122. Induzir ou instigar alguém a
suicidar-se
ou
a
praticar
automutilação ou prestar-lhe auxílio
material para que o faça:
Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a
2 (dois) anos.
§ 1º Se da automutilação ou da
tentativa de suicídio resulta lesão
corporal de natureza grave ou
gravíssima, nos termos dos §§ 1º e 2º
do art. 129 deste Código:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três)
anos.
§ 2º Se o suicídio se consuma ou se
da automutilação resulta morte:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis)
anos.
§ 3º A pena é duplicada:
I – se o crime é praticado por motivo
egoístico, torpe ou fútil;
II – se a vítima é menor ou tem
diminuída, por qualquer causa, a
capacidade de resistência.
§ 4º A pena é aumentada até o dobro
se a conduta é realizada por meio da
rede de computadores, de rede social
ou transmitida em tempo real.
§ 5º Aumenta-se a pena em metade
se o agente é líder ou coordenador de
grupo ou de rede virtual. § 6º Se o
crime de que trata o § 1º deste artigo
resulta em lesão corporal de natureza
gravíssima e é cometido contra menor
de 14 (quatorze) anos ou contra
quem, por enfermidade ou deficiência
mental, não tem o necessário
discernimento para a prática do ato,
ou que, por qualquer outra causa, não
pode oferecer resistência, responde o
agente pelo crime descrito no § 2º do
art. 129 deste Código.
§ 7º Se o crime de que trata o § 2º
deste artigo é cometido contra menor
de 14 (quatorze) anos ou contra quem
não tem o necessário discernimento
para a prática do ato, ou que, por
qualquer outra causa, não pode
oferecer resistência, responde o
agente pelo crime de homicídio, nos
termos do art. 121 deste Código.
3.1
Introdução
A Lei nº 13.968, de 26 de dezembro de 2019, modificou,
significativamente, o delito tipificado no art. 122 do Código Penal.
Antes da referida alteração legislativa tínhamos, tão somente, o
delito de induzimento, instigação e auxílio a suicídio. Agora, o tipo
penal foi ampliado como induz o nome da rubrica atual, vale dizer:
induzimento, instigação e auxílio a suicídio ou a automutilação.
Como se percebe, a conduta do agente pode ter duas
finalidades distintas. A primeira delas é dirigida finalisticamente a
fazer com que a vítima pratique o ato extremo, vindo a retirar a
própria vida; a segunda, o agente induz ou instiga a vítima a se
automutilar, ou seja, faz com que esta produza lesões em seu corpo.
Que motivos levariam alguém a eliminar a própria vida? Ato de
covardia ou de extrema coragem? O suicídio, também denominado
pela medicina de autocídio ou autoquiria, é um dos enigmas que
envolvem a humanidade. A falta de esperança, a ausência completa
de qualquer resposta aos seus problemas, o desconhecimento da
pessoa de Deus podem levar alguém a eliminar a própria vida. O
suicida, em virtude do desespero de que é acometido, pratica o ato
extremo de matar-se, entendendo-o como única e última resposta a
tudo que enfrenta.86
Como se percebe pela leitura do art. 122 do Código Penal, não
se pune aquele que tentou contra a própria vida e escapou da
morte, mas tão somente aquele que o induziu, instigou ou auxiliou
materialmente para esse fim.
Vários raciocínios impedem a punição daquele que queria se
matar e não conseguiu. Dentre eles, podemos citar um argumento,
de ordem lógica, no sentido de que se a vítima – e é assim que
devemos chamá-la – tentou contra a própria vida por não suportar
alguns momentos tormentosos pelos quais passava ainda quando
estava em liberdade, que dirá se for colocada no cárcere. Lá, então,
com todo o tratamento indigno que receberá, se sentirá infinitamente
mais estimulada a tentar novamente o suicídio. Merece ser frisado,
ainda, também como argumento contrário à punição do sobrevivente
à tentativa de suicídio, que se punir tal comportamento ofenderia o
princípio da lesividade.
Da mesma forma, o que leva uma pessoa a causar lesões em si
mesma? A dor por ela própria infligida seria uma válvula de escape,
a exteriorização de uma revolta interna, obter alívio de um estado de
sentimento ou de cognição negativos, resolução de uma dificuldade
interpessoal, um pedido de socorro para que as pessoas tomem
conhecimento do seu sofrimento?
A automutilação pode ser definida, de acordo com o programa
ambulatorial integrado dos transtornos do impulso (PRO-AMITI),
como qualquer comportamento intencional envolvendo agressão
direta ao próprio corpo sem intenção consciente de suicídio.
Normalmente, as formas mais comuns de automutilação são: cortar
a própria pele, bater em si mesmo e produzir queimaduras. Os
ferimentos, também como regra, são produzidos nos braços,
pernas, abdômen e áreas expostas.
Para que o legislador possa criar os tipos penais
incriminadores, numa visão ga-rantista-constitucional do Direito
Penal, deverá observar todos os princípios que lhe servirão de
norte, a exemplo da intervenção mínima, lesividade, adequação
social, proporcionalidade etc.
De acordo com o enfoque do princípio da lesividade, podemos
trabalhar, segundo Nilo Batista,87 com quatro vertentes que lhe são
fundamentais, a saber:
a)
b)
c)
d)
proibição de incriminações que digam respeito a uma
atitude interna do agente;
proibição de incriminações de comportamentos que não
excedam ao âmbito do próprio autor;
proibição de incriminações de simples estados ou
condições existenciais;
proibição de incriminações de condutas desviadas que não
afetem qualquer bem jurídico.
Na verdade, podemos resumir todas as vertentes anunciadas
por Nilo Batista em um único raciocínio: o Direito Penal só pode, de
acordo com o princípio da lesividade, proibir comportamentos que
extrapolem o âmbito do próprio agente, que venham a atingir bens
de terceiros, atendendo-se, pois, ao brocardo nulla lex poenalis sine
injuria.
Assim, por mais que a vida seja um bem que mereça a
proteção do Estado, dada sua evidente importância, tal proteção
não poderá ser realizada por intermédio do Direito Penal na
hipótese daquele que procura eliminar a própria vida. Isso porque tal
comportamento não atinge bens de terceiros, senão os do próprio
agente, da mesma forma que não pode o Estado punir, também por
intermédio do Direito Penal, as automutilações. O raciocínio é
idêntico. A integridade corporal é um bem de relevo que merece a
proteção estatal. Contudo, o fato de se automutilar deve ficar
afastado do Direito Penal, uma vez que tal comportamento não
ultrapassa a esfera do próprio agente.
Para nós, portanto, resumindo, os fundamentos principais da
proibição de incriminação da tentativa de suicídio e da
automutilação são: a falta de logicidade de tal punição, haja vista
que aquele que procurar tirar a própria vida enquanto estava em
liberdade não hesitará em fazê-lo quando estiver no cárcere. O
mesmo ocorre com aquele que se automutila. Puni-lo criminalmente
somente aumentará seu desejo de ferir-se. Além disso, esses
comportamentos não atendem às exigências do princípio da
lesividade, como apontamos anteriormente.
Entretanto, embora seja atípica a conduta daquele que
sobreviveu ao ato extremo, tem-se entendido pela ilicitude de tal
comportamento, uma vez que o Código Penal afirma não se
configurar o delito de constrangimento ilegal na coação exercida
para impedir suicídio, ao contrário de outros atos considerados
meramente imorais, a exemplo da prostituição.
Nesse sentido, afirma Hungria:
“Que o suicídio não é um fato juridicamente lícito, de modo a
tornar ilegítima a incriminação da participação nele, está a
demonstrá-lo, indiretamente, o art. 146, § 3º, nº II, do nosso
atual Código, que declara não constituir crime de
constrangimento ilegal ‘a coação exercida para impedir
suicídio’.”88
Assim, se alguém, mediante violência ou grave ameaça,
mesmo que no intuito de ajudar a vítima, a impede de prostituir-se,
estaria praticando a infração penal tipificada no art. 146 do estatuto
repressivo, vale dizer, o delito de constrangimento ilegal. Ao
contrário, se o agente, por exemplo, mediante o emprego de
violência, impede que a vítima extermine a própria vida, não pratica
qualquer delito, pois, nesse caso, a própria lei penal entendeu por
bem afastar a tipicidade desse comportamento, deixando antever,
portanto, como afirmado por Hungria, a ilicitude da conduta levada a
efeito por aquele que tentou contra sua vida.
Contudo, embora tal previsão legal não se estenda à
automutilação, tal como ocorre com o citado caso da prostituição,
seria razoável a alegação da inexigibilidade de conduta diversa na
hipótese em que alguém, por exemplo, viesse a impedir a vítima de
se automutilar. Aqui, segundo nosso posicionamento, restaria
afastado também o delito de constrangimento ilegal, por ausência
de culpabilidade do agente que atuou no sentido de impedir que a
vítima iniciasse ou mesmo continuasse a se mutilar.
3.2
Classificação doutrinária
Crime comum; simples; de forma livre; doloso (pois o tipo penal
não fez previsão expressa da modalidade culposa); comissivo
(podendo, entretanto, ser praticado omissivamente nos casos de
omissão imprópria, quando o agente gozar do status de garantidor);
de dano; material; instantâneo de efeitos permanentes (em caso de
morte da vítima); não transeunte; monossubjetivo; plurissubsistente;
de conteúdo variado (crimes de ação múltipla, podendo o agente
levar a efeito os vários comportamentos previstos no tipo – induzir,
instigar ou auxiliar –, devendo responder, tão somente, por uma
única infração penal).
3.3
Sujeito ativo e sujeito passivo
Em se tratando de um delito comum, tanto com relação ao
sujeito ativo quanto ao sujeito passivo, o delito de induzimento,
instigação e auxílio a suicídio ou a automutilação pode ser praticado
por qualquer pessoa.
Sujeito passivo, da mesma forma, poderá ser qualquer pessoa.
3.4
Participação moral e participação material
A redação contida no caput do art. 122 do Código Penal nos
permite concluir pelas modalidades de participação moral e material
no mencionado delito.
Embora utilizemos as expressões participação moral e
participação material, as hipóteses não são as de participação em
sentido estrito, como ocorre no concurso de pessoas. O termo
empregado denota, na verdade, formas diferentes de realização do
tipo. São, outrossim, meios de execução da infração penal.
Esclarecido esse ponto, que poderia nos levar a conclusões
equivocadas sobre a natureza do comportamento praticado por
aquele que induz, instiga ou auxilia materialmente a vítima a dar
cabo da própria vida, ou a se automutilar, sendo este, portanto,
considerado verdadeiramente autor, e não partícipe, tem-se
entendido subdividir o comportamento do agente, intitulando-o de
participação moral e participação material.
Ocorre a participação moral nas hipóteses de induzimento ou
instigação ao suicídio ou a automutilação. Induzir significa fazer
nascer, criar a ideia suicida ou automutiladora na vítima. Instigar, a
seu turno, demonstra que a ideia de eliminar a própria vida ou de
automutilar-se já existia, sendo que o agente, dessa forma, reforça,
estimula a ideia já preconcebida.
Na participação material, o agente auxilia materialmente a
vítima a conseguir o seu intento, fornecendo, por exemplo, o
instrumento que será utilizado na execução do autocídio ou na
automutilação (revólver, faca, navalha, lâmina, corda para se
enforcar, cigarro para se queimar etc.) ou mesmo simplesmente
esclarecendo como usá-los. Merece ser registrado que em toda
participação material encontra-se implícita uma dose de instigação.
Aquele que fornece, por exemplo, uma pistola para que a vítima
atire contra a própria cabeça, ao entregar-lhe a arma, está, com
isso, aprovando e estimulando a prática do ato de autoextermínio.
Com base no raciocínio anterior, devemos analisar a hipótese
em que a vítima, auxiliada materialmente pelo agente, deixa de lado
o instrumento que lhe fora fornecido. Imagine-se o fato em que o
agente empresta uma pistola à vítima para que com ela seja levado
a efeito o suicídio. Se a vítima, deixando de lado a arma de fogo que
lhe fora entregue pelo agente, vier a suicidar-se de outro modo, por
exemplo, fazendo a ingestão de veneno, o agente deverá responder
pelo delito em estudo? Acreditamos que o agente somente
responderá pelo delito se o fato de emprestar-lhe a arma contribuiu,
decisivamente, para a prática do suicídio, considerando-o também
como uma instigação.
Pode acontecer, por exemplo, que a vítima peça a arma
emprestada ao agente, confessando sua intenção suicida, sendo
que este, mesmo anuindo ao pedido, diz-lhe para “pensar bem no
que vai fazer.” Embora tenha aqui, a toda evidência, um auxílio
material, uma vez que o agente sabia da vontade da vítima de
eliminar a própria vida com a arma por ele cedida, podemos, neste
caso, descartar a infração penal caso o suicídio tenha sido cometido
por outros meios, como o caso já citado do veneno.
Assim, como regra geral, mantendo a linha do raciocínio
anterior, podemos visualizar uma instigação na prestação de
auxílios materiais, ressalvando a possibilidade de ser excepcionada,
como no exemplo citado anteriormente.
A conduta levada a efeito pelo agente deve, ainda, limitar-se a
induzir, instigar ou a auxiliar materialmente aquele que procura
eliminar a própria vida. Com isso estamos querendo afirmar que se
o agente vier a praticar qualquer ato de execução deverá responder
pelo delito de homicídio, conforme analisaremos mais adiante ao
estudarmos algumas situações específicas, como na hipótese do
suicídio conjunto. Da mesma forma, o agente não poderá causar
qualquer tipo de lesão na vítima que pretende se automutilar, a
exemplo daquele que a ensina como se cortar com uma navalha,
evitando que o corte seja demasiadamente profundo etc.
Sendo considerado um crime de conteúdo múltiplo, aquele que,
após fazer nascer a ideia suicida ou automutiladora na vítima, a
instiga e também a auxilia materialmente, responderá por um único
delito.
3.5
Objeto material e bem juridicamente protegido
A vida e a integridade física são os bens juridicamente
protegidos pelo tipo do art. 122 do Código Penal, com a nova
redação que lhe foi conferida pela Lei nº 13.968, de 26 de dezembro
de 2019, sendo que a pessoa contra a qual é dirigida a conduta do
agente é o objeto material do crime de induzimento, instigação e
auxílio a suicídio ou a automutilação.
3.6
Elemento subjetivo
O delito de induzimento, instigação e auxílio a suicídio ou a
automutilação somente pode ser praticado dolosamente, seja o dolo
direto ou eventual, ficando afastada sua punição mediante a
modalidade culposa.
Assim, o agente deve dirigir finalisticamente sua conduta no
sentido de criar a ideia suicida ou automutiladora na vítima, ou
mesmo estimulá-la ou auxiliá-la materialmente a esse fim.
Cezar Roberto Bitencourt afirma:
“Nada impede que o dolo orientador da conduta do agente
configure-se em sua forma eventual. A doutrina procura citar
alguns exemplos que, para ilustrar, invocaremos: o pai que
expulsa de casa a filha ‘desonrada’, havendo fortes razões para
acreditar que ela se suicidará, o marido que sevicia a esposa,
conhecendo a intenção desta de vir a suicidar-se, reitera as
agressões.”89
A conduta do agente deve, de alguma forma, exercer influência
na vontade da vítima em suicidar-se ou automutilar-se, bem como
deverá ser idônea a este fim, não se configurando o delito quando o
agente atua com animus jocandi, simplesmente com o intuito de
com ela brincar.
Não existe previsão legal para a responsabilidade penal do
agente que, culposamente, contribui para o suicídio ou
automutilação praticado pela vítima. Assim, imagine-se a hipótese
daquele que, sabendo das intenções suicidas da vítima,
negligentemente, es-quece-se de guardar sua arma em local
seguro, permitindo que esta a utilize na prática do autoextermínio.
Nesse caso, o fato praticado pelo agente seria atípico, tendo em
vista a ausência de previsão legal para a modalidade culposa do
delito em exame.
3.7
Modalidades qualificadas
Os §§ 1º e 2º do art. 122 do Código Penal, com a redação que
lhes foi conferida pela Lei nº 13.968, de 26 de dezembro de 2019,
preveem as modalidades qualificadas do delito de induzimento,
instigação e auxílio a suicídio ou a automutilação, dizendo, verbis:
§ 1º Se da automutilação ou da
tentativa de suicídio resulta lesão
corporal de natureza grave ou
gravíssima, nos termos dos §§ 1º e 2º
do art. 129 deste Código:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três)
anos.
§ 2º Se o suicídio se consuma ou se
da automutilação resulta morte:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis)
anos.
3.8
Modalidades comissiva e omissiva
As condutas previstas no tipo penal em estudo somente podem
ser praticadas comissivamente.
Contudo, será possível o raciocínio correspondente à omissão
imprópria se o agente, na condição de garantidor, nos termos do art.
13, § 2º, do Código Penal, podendo, dolosamente nada fizer para
impedir que a vítima se suicide ou se automutile.
3.9
Consumação e tentativa
O caput do art. 122 do Código Penal, com a redação dada pela
Lei nº 13.968, de 26 de dezembro de 2019, prevê pena de reclusão,
de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos para aquele que induzir ou instigar
alguém a suicidar-se ou a praticar automutilação ou prestar auxílio
material para que o faça.
A nova redação constante do preceito secundário do
mencionado caput difere substancialmente da que fora revogada.
Antes, no que dizia respeito ao induzimento, instigação e auxílio ao
suicídio, já que não havia previsão para a automutilação, o delito
somente se consumava quando ocorria a morte ou, pelo menos,
lesões corporais de natureza grave na vítima. Hoje, tal postura foi
modificada, como veremos a seguir.
Assim, no que diz respeito ao comportamento tipificado no
caput do art. 122 do Código Penal, o delito se consuma quando a
vítima, após ter sido induzida, instigada ou auxiliada materialmente
pelo agente, dá início a atos tendentes a eliminar a própria vida ou a
se automutilar. Em se tratando de um delito material, quando a
vítima tenta contra a própria vida, produzindo ou não, em si mesma,
lesões corporais de natureza leve, ou quando, efetivamente, se
automutila, ofendendo sua integridade corporal, nesse exato
instante entendemos como consumado o delito de induzimento,
instigação e auxílio a suicídio ou a automutilação.
Da mesma forma, somente restará consumada a modalidade
qualificada prevista no § 1º do art. 122 do Código Penal quando a
vítima, induzida, instigada ou auxiliada materialmente, leva a efeito o
comportamento tendente a eliminar a própria vida ou a se
automutilar, advindo, daí, lesão corporal de natureza grave ou
gravíssima, isto é, aquelas previstas nos §§ 1º e 2º do art. 120 do
diploma repressivo.
Se o suicídio se consuma, ocorrendo a morte da vítima, ou se o
automutilador também vem a falecer, mesmo não sendo essa sua
intenção inicial, restará consumado o delito na modalidade prevista
no § 2º do mencionado art. 122.
Em se tratando de um delito plurissubsistente, será
perfeitamente admissível a tentativa.
3.10
Causas de aumento de pena
Dizem os §§ 3º, 4º e 5º do art. 122 do Código Penal, com a
redação dada pela Lei nº 13.968, de 26 de dezembro de 2019:
§ 3º A pena é duplicada:
I – se o crime é praticado por motivo
egoístico, torpe ou fútil;
II – se a vítima é menor ou tem
diminuída, por qualquer causa, a
capacidade de resistência.
§ 4º A pena é aumentada até o dobro
se a conduta é realizada por meio da
rede de computadores, de rede social
ou transmitida em tempo real.
§ 5º Aumenta-se a pena em metade
se o agente é líder ou coordenador de
grupo ou de rede virtual.
Preconizam os incisos I e II do § 3º do art. 122 do Código Penal
que a pena será duplicada: I – se o crime é praticado por motivo
egoístico, torpe ou fútil; II – se a vítima é menor ou tem diminuída,
por qualquer causa, a capacidade de resistência.
Inicialmente, devemos salientar que os §§ 3º, 4º e 5º do
mencionado art. 122 contêm causas especiais de aumento de pena
(ou majorantes), e não qualificadoras, como afirmam alguns autores,
a exemplo de Frederico Marques.90
Assim, somente no terceiro momento do critério trifásico de
aplicação da pena é que será considerada a majorante, duplicandose a pena que tiver sido encontrada até aquela fase.
Imagine-se a hipótese em que o julgador, após condenar o
agente pela prática do delito em tela, comece o raciocínio
correspondente à aplicação da pena. Suponhamos que todas as
circunstâncias judiciais lhe sejam favoráveis, razão pela qual, tendo
em vista que a vítima, efetivamente, viera a falecer, fixa a pena-base
no mínimo legal, vale dizer, em 2 (dois) anos. No momento seguinte,
ou seja, quando da análise das circunstâncias atenuantes ou
agravantes, o juiz percebe a existência de uma certidão de
nascimento nos autos comprovando que o agente era menor de 21
anos à época, devendo, portanto, nos termos do art. 65, I, do
Código Penal, atenuar a pena-base que lhe fora aplicada.
Suponhamos que a redução tenha sido de 2 (dois) meses, ficando,
agora, a pena em 1 (um) ano e 10 (dez) meses de reclusão. No
terceiro momento, o juiz verifica, mediante a análise do conjunto
probatório, que o réu praticou o delito impelido por um motivo
egoístico, e duplica a pena até então encontrada, que passa a
perfazer o total de 3 (três) anos e 8 (oito) meses.
Entendidas como causas especiais de aumento de pena,
vamos à análise de cada uma delas, individualmente:
a)
b)
c)
d)
Motivo egoístico. Por motivo egoístico entende-se o motivo
mesquinho, torpe, que cause certa repugnância, a exemplo
da hipótese em que o agente induz seu irmão a cometer o
suicídio a fim de herdar, sozinho, o patrimônio deixado
pelos seus pais. Guilherme de Souza Nucci ainda o define
dizendo tratar-se “do excessivo apego a si mesmo, o que
evidencia o desprezo pela vida alheia, desde que algum
benefício concreto advenha ao agente. Logicamente
merece maior punição.”91
Motivo torpe ou fútil. Torpe é o motivo abjeto, que causa
repugnância, nojo, sensação de repulsa pelo fato praticado
pelo agente, a exemplo daquele que induz a vítima ao
suicídio com a finalidade de herdar-lhe a herança; fútil é o
motivo insignificante, havendo uma desproporcionalidade
no comportamento praticado pelo agente.
Vítima menor. Quando a lei fala em vítima menor, está se
referindo àquela menor de 18 anos, data em que se inicia a
maturidade penal, e maior de 14 anos.
Vítima que tem diminuída, por qualquer causa, a
capacidade de resistência. A lei fala em diminuição da
capacidade de resistência, e não em eliminação dessa
capacidade. Se a vítima não pode oferecer resistência, o
delito será o de homicídio, nos termos preconizados pelo §
7º do art. 122 do Código Penal. Podem ser citados como
exemplos de diminuição de capacidade o fato de estar a
vítima embriagada, sob o efeito de drogas, deprimida,
angustiada, com algum tipo de enfermidade grave etc.
Diz o § 4º do art. 122 do Código Penal que a pena é aumentada
até o dobro se a conduta é realizada por meio da rede de
computadores, de rede social ou transmitida em tempo real.
Por rede de computadores podemos entender um conjunto de
equipamentos interligados, que possibilitam a troca de dados, de
informações entre si. Existem vários tipos de rede, a exemplo da
Internet, das redes de área local (LAN), das redes de área pessoal
(PAN), das redes de campus, das redes globais (GAN), das
Internetworks, das metropolitan área network (MAN) etc.
A rede social é uma plataforma cuja finalidade principal é
conectar pessoas e compartilhar informações entre elas, e pode
possuir tanto um caráter pessoal quanto de natureza comercial ou
profissional. Podem se configurar através de diversas formas, a
exemplo de sites ou mesmo aplicativos. Hoje em dia, existem
diversas redes sociais, a exemplo do Facebook, Instagram,
Linkedin, Twitter, YouTube, TikTok, Snapchat etc.
Por transmissão em tempo real, podemos entender qualquer
meio que possibilite a comunicação entre o agente e a vítima.
A pena poderá ser aumentada até o dobro. Assim, nos
perguntamos: qual seria o aumento mínimo a ser aplicado pelo
julgador, em ocorrendo qualquer das hipóteses previstas pelo § 4º
do art. 122 do Código Penal? Entendemos que o aumento mínimo
deverá ser de 1/6 (um sexto), para que seja mantida a coerência
com as demais causas de aumento de pena, previstas no Código
Penal, que adota esse padrão mínimo. Assim, quanto maior a
gravidade da conduta e a facilidade obtida para a prática do crime
através da utilização da rede de computadores, ou da rede social,
ou mesmo quando transmitida em tempo real, maior será o aumento
da pena.
Determina, ainda, o § 5º do art. 122 do Código Penal que a
pena aumenta-se em metade se o agente é líder ou coordenador de
grupo ou de rede virtual.
Aqui, impõe-se um maior juízo de reprovação para aqueles que,
efetivamente, ocupam posição de liderança ou de coordenação de
grupo ou de rede virtual, tendo, outrossim, capacidade maior de
influenciar as pessoas.
3.11
Vítimas vulneráveis
Os §§ 6º e 7º do art. 122 do Código Penal trouxeram hipóteses
em que as vítimas se encontram em situação de vulnerabilidade,
que as impede de raciocinar com relação aos atos que praticam. Em
alguns casos, há uma presunção absoluta dessa incapacidade, a
exemplo do que ocorre com os menores de 14 anos. Em outros,
essa situação deverá ser demonstrada no caso concreto, como no
caso da comprovação do discernimento do portador de enfermidade
ou deficiência mental.
Assim, diz o § 6º do referido art. 122, verbis:
§ 6º Se o crime de que trata o § 1º
deste artigo resulta em lesão corporal
de natureza gravíssima e é cometido
contra menor de 14 (quatorze) anos
ou contra quem, por enfermidade ou
deficiência mental, não tem o
necessário discernimento para a
prática do ato, ou que, por qualquer
outra causa, não pode oferecer
resistência, responde o agente pelo
crime descrito no § 2º do art. 129
deste Código.
Inicialmente, o § 6º nos remete ao § 1º, ambos do art. 122 do
Código Penal, asseverando que o agente será responsabilizado
pelo delito tipificado no § 2º do art. 129 do Código Penal se do
induzimento, instigação ou auxílio material vier a ocorrer lesão
corporal gravíssima na vítima, independentemente de a finalidade
dessa última ser a prática do suicídio ou a automutilação.
Embora o § 1º do art. 122 faça menção tanto a lesão corporal
de natureza grave como também às gravíssimas, somente haverá a
aplicação do § 2º do mesmo artigo se houver lesão corporal
gravíssima. Assim, por exemplo, se a vítima for menor de 14 anos e,
em razão da automutilação, sofrer lesão corporal de natureza grave,
o fato continuará a ser punido tão somente pelo § 1º do art. 122 do
estatuto repressivo.
São consideradas vulneráveis, para efeitos de aplicação do § 2º
do art. 122 do Código Penal, as vítimas:
a)
b)
c)
menores de 14 anos;
portadoras de enfermidade ou deficiência mental, que não
tenham o necessário discernimento para a prática do ato;
que por qualquer outra causa não puderem oferecer
resistência.
Já o § 7º do art. 122 do Código Penal aduz que:
§ 7º Se o crime de que trata o § 2º
deste artigo é cometido contra menor
de 14 (quatorze) anos ou contra quem
não tem o necessário discernimento
para a prática do ato, ou que, por
qualquer outra causa, não pode
oferecer resistência, responde o
agente pelo crime de homicídio, nos
termos do art. 121 deste Código.
A falta de técnica do legislador fica evidente nesse parágrafo.
Por que razão mencionaria no § 6º o portador de enfermidade ou
deficiência mental, e não exigiria essa condição no § 7º do mesmo
artigo? Na verdade, o que muda nos dois parágrafos é tão somente
a gravidade do resultado. No § 6º exige-se que tenha ocorrido uma
lesão corporal gravíssima, isto é, qualquer uma daquelas existentes
no rol do § 2º do art. 129 do Código Penal. No § 7º exige-se que
tenha ocorrido o resultado morte.
Enfim, para efeitos de aplicação do § 7º do art. 122 do Código
Penal, são essas as pessoas consideradas vulneráveis:
a)
b)
menores de 14 anos;
as que não tenham o necessário discernimento para a
prática do ato;
c)
3.12
as que por qualquer outra causa, não puderem oferecer
resistência.
Pena, ação penal, competência para julgamento e
suspensão condicional do processo
A pena prevista pelo caput do art. 122 do Código Penal é de
reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos.
A pena será de reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, de acordo
com o § 1º do art. 122 do diploma repressivo se da automutilação ou
da tentativa de suicídio resultar lesão corporal de natureza grave ou
gravíssima, nos termos dos §§ 1º e 2º do art. 129 do Código Penal.
Se o suicídio se consuma ou se da automutilação resultar
morte, a pena será de reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos,
conforme preconiza o § 2º do art. 122 do Código Penal.
De acordo com o § 6º do art. 122, se o crime de que trata o § 1º
deste artigo resulta em lesão corporal de natureza gravíssima e é
cometido contra menor de 14 (quatorze) anos ou contra quem, por
enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário
discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra
causa, não pode oferecer resistência, responderá o agente pelo
crime descrito no § 2º do art. 129 do Código Penal.
Se o crime de que trata o § 2º do art. 122 do Código Penal é
cometido contra menor de 14 (quatorze) anos ou contra quem não
tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por
qualquer outra causa, não pode oferecer resistência, responderá o
agente pelo crime de homicídio (art. 121 do CP), conforme
determina o § 7º do art. 122 do Código Penal.
A ação penal é de iniciativa pública incondicionada.
Com relação à infração penal tipificada no caput do art. 122 do
Código Penal, teremos que avaliar duas situações distintas. A
primeira delas diz respeito ao fato de o agente agir com a finalidade
de induzir, instigar ou auxiliar materialmente a vítima ao suicídio.
Aqui, sem dúvida, teríamos a prática de um crime doloso contra a
vida, independentemente do fato de a pena máxima cominada em
abstrato ser de, tão somente, dois anos, o que nos induziria,
equivocadamente, a entender pela competência do Juizado Especial
Criminal. In casu, em se tratando de induzimento, instigação ou
auxílio material ao suicídio a competência para o processo e o
julgamento será do Tribunal do Júri, nos termos da alínea d do
inciso XXXVIII do art. 5º da Constituição Federal, que diz, verbis:
XXXVIII – é reconhecida a instituição
do júri, com a organização que lhe der
a lei, assegurados:
(...)
d) a competência para o julgamento
dos crimes dolosos contra a vida;
No que diz respeito ao induzimento, instigação e auxílio à
automutilação, não sendo um crime doloso contra a vida, mas sim
contra a integridade física, por mais que esteja, equivocadamente,
inserido no Capítulo I (Dos crimes contra a vida) do Título I (Dos
crimes contra a pessoa) do Código Penal, será o dolo do agente que
definirá a natureza da infração penal. Assim, portanto, no que diz
respeito ao induzimento, instigação e auxílio material à
automutilação, por não se tratar de um crime doloso contra a vida,
mas sim de um delito doloso contra a integridade física da vítima,
tendo em vista a pena máxima cominada em abstrato no caput do
art. 122 do Código Penal, a competência, para este delito será do
Juizado Especial Criminal, nos termos dos arts. 60 e 61 da Lei nº
9.099/95, que dizem:
Art. 60. O Juizado Especial Criminal,
provido por juízes togados ou togados
e leigos, tem competência para a
conciliação, o julgamento e a
execução das infrações penais de
menor potencial ofensivo, respeitadas
as regras de conexão e continência.
Art. 61. Consideram-se infrações
penais de menor potencial ofensivo,
para os efeitos desta Lei, as
contravenções penais e os crimes a
que a lei comine pena máxima não
superior a 2 (dois) anos, cumulada ou
não com multa.
Ab initio, será possível proposta de suspensão condicional do
processo nas infrações penais tipificadas no caput e no § 1º do art.
122 do Código Penal.
3.13
3.13.1
Destaques
Suicídio conjunto (pacto de morte)
Impossível discorrer sobre o crime de induzimento, instigação e
auxílio a suicídio ou a automutilação sem fazer menção ao chamado
suicídio conjunto ou pacto de morte. Assim, no exemplo em que dois
namorados, contrariados porque ambas as famílias não permitem o
romance, resolvem suicidar-se, devemos sempre ter em foco o
comportamento de cada um deles, no sentido de conseguirem
sucesso no plano de morte.
Isso porque, conforme afirmamos, para que responda pelo
delito do art. 122 do Código Penal, o agente não pode ter praticado
qualquer ato de execução característico do delito de homicídio, pois,
caso contrário, deverá ser responsabilizado por esse delito.
Imagine-se a hipótese daquele casal de namorados que, após
decidirem que eliminariam a vida, resolvam fazê-lo com o emprego
de um revólver. Como a menina não tinha força suficiente para
apertar o gatilho, seu namorado, “gentilmente”, aponta-lhe a arma
em direção à cabeça e puxa o gatilho, causando-lhe a morte. Ele,
logo em seguida, faz o mesmo, atirando contra a própria cabeça.
Contudo, embora ferido gravemente, consegue sobreviver.
Teria o namorado sobrevivente cometido o delito do art. 122 do
Código Penal? A resposta, aqui, só pode ser negativa, uma vez que,
tendo executado comportamento característico do crime de
homicídio, deverá por este responder.
Se cada um dos namorados, cada qual com sua própria arma,
tivesse atirado contra a cabeça, o sobrevivente responderia pelo
delito de induzimento, instigação e auxílio a suicídio ou a
automutilação.
Podemos citar, ainda, o exemplo trazido à colação por Hungria,
quando os namorados pactuados em morrer juntos optam por fazê-
lo por asfixia de gás carbônico, “e enquanto um abria o bico de gás,
o outro calafetava as frinchas do compartimento. Se qualquer deles
sobrevive, responderá por homicídio, pois concorreu materialmente
no ato executivo da morte do outro. Se ambos sobrevivem,
responderão por tentativa de homicídio. No caso em que somente
um deles tivesse calafetado as frestas e aberto o bico de gás,
responderá este, na hipótese de sobrevivência de ambos, por
tentativa de homicídio, enquanto o outro responderá por instigação a
suicídio”.92
3.13.2
Greve de fome
Inicialmente, devemos salientar que aqueles que, reivindicando
ser atendidos em um pedido qualquer, com o objetivo de sensibilizar
os responsáveis, dão início à chamada “greve de fome”, não atuam
no sentido de querer causar a própria morte.
A regra, na verdade, é que nutrem a esperança de serem
atendidos o mais rápido possível, a fim de que possam sair daquela
situação desconfortável.
Em cada caso, devemos procurar saber quais são os agentes
que, em razão de sua particular condição, a exemplo do médico,
polícia penal etc., gozam do status de garantidor, com a finalidade
de poder-lhes atribuir eventual resultado (morte ou lesões).
Contudo, podem existir situações em que os grevistas se
encontrem realmente dispostos a morrer pela causa que defendem.
A greve se transforma, muitas vezes, em um protesto, que pode ter
consequências funestas. Não é incomum, nos dias de hoje, os
canais de televisão mostrarem cenas estarrecedoras de pessoas
que lançam fogo contra o próprio corpo, transformando-se em
tochas humanas, para que as demais pessoas, ven-do-as morrer,
também se sensibilizem com a causa em razão da qual entregaram
a vida.
Nesse caso, a exemplo daquilo que discorremos no item
anterior, se a greve de fome se transforma em um protesto mortal, o
caso será resolvido como sendo o de pacto de morte, e voltaremos
ao que dissemos acima. Se dois manifestantes, de comum acordo,
resolvem incendiar o próprio corpo, um agindo estimulado pelo
outro, teremos aqui, mais uma vez, o pacto de morte, com os
raciocínios que lhe são inerentes.
Nesse caso, se um dos manifestantes risca o fósforo e o
arremessa ao corpo do outro, já totalmente embebido de
combustível, responderá pelo homicídio, tentado ou consumado, se
sobreviver. Agora, se ambos os manifestantes praticam todos os
atos destinados a produzir-lhes a morte, ou seja, cada um deles
joga em si mesmo o combustível e risca o fósforo, o sobrevivente
responderá pelo delito de induzimento, instigação e auxílio a suicídio
ou a automutilação.
3.13.3
Testemunhas de Jeová
A seita Testemunhas de Jeová foi fundada, em 1872, por
Charles Taze Russel e tem como um de seus dogmas não aceitar a
transfusão de sangue, sob o argumento, permissa vênia,
equivocado, de que introduzir sangue no corpo pela boca ou pelas
veias viola as leis de Deus.
O que fazer diante de uma situação em que um adepto da seita
das Testemunhas de Jeová, depois de ferir-se gravemente em um
acidente de trânsito, necessitando realizar uma transfusão de
sangue, recusa-se a fazê-lo sob o argumento de que prefere morrer
a ser contaminado com o sangue de outra pessoa, que passará a
correr em suas veias?
Imagine-se a situação em que, sem a transfusão de sangue, a
morte da vítima seja certa. Dessa forma, temos de observar os
seguintes detalhes:
a)
b)
c)
o
próprio
agente,
maior
e
capaz,
recusa-se
terminantemente a receber o sangue;
seus pais, dada a falta de consciência do paciente, não
permitem a transfusão;
a responsabilidade do médico diante dessa hipótese.
Entendemos que, no caso de ser imprescindível a transfusão de
sangue, mesmo sendo a vítima maior e capaz, tal comportamento
deverá ser encarado como uma tentativa de suicídio, podendo o
médico intervir, inclusive sem o seu consentimento, uma vez que
atuaria amparado pelo inciso I do § 3º do art. 146 do Código Penal,
que diz não se configurar constrangimento ilegal a “intervenção
médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu
representante legal, se justificada por iminente perigo de vida.”
Os pais daquele que não possui capacidade para consentir são,
conforme determina o § 2º do art. 13 do Código Penal, considerados
garantidores, tendo de levar a efeito tudo o que esteja ao alcance
deles, a fim de evitar a produção do resultado lesivo. Se o paciente,
por exemplo, necessitava de transfusão de sangue, sob risco
iminente de morte, também poderá o médico, deixando de lado a
orientação dos pais que seguem a seita das Testemunhas de Jeová,
realizar a transfusão de sangue, com fundamento no mencionado
parágrafo do art. 146 do Código Penal.
Agora, o que fazer com os pais que não autorizam a necessária
transfusão de sangue, retirando até mesmo seu filho do hospital, o
qual, em razão disso, vem a falecer? Embora a Constituição
Federal, no inciso VI do seu art. 5º, diga ser inviolável a liberdade de
consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos
cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais
de culto e as suas liturgias, entendemos que, nesse caso, deverão
os pais responder pelo delito de homicídio, uma vez que gozam do
status de garantidores, não podendo erigir em seu benefício a
dirimente relativa à inexigibilidade de conduta diversa.
Se permitíssemos esse raciocínio, outras seitas que apregoam
o sacrifício de seres humanos, até mesmo mediante sua vontade
expressa nesse sentido, também agiriam acobertadas por essa
excludente da culpabilidade.
No que diz respeito à posição ocupada pelo médico, também
acreditamos que, enquanto o paciente estiver sob os seus cuidados,
deverá levar a efeito todos os procedimentos que estejam ao seu
alcance, aí incluída a transfusão de sangue, no sentido de salvá-lo,
pois que também é considerado garantidor.
Em artigo específico sobre o tema, em que analisa a
coexistência de princípios constitucionais do direito à vida e à
liberdade de crença religiosa, Élber Bezerra de Andrade aponta a
existência de tratamentos alternativos à transfusão de sangue, o
que permitiria respeitar a crença do paciente sem colocar em risco a
sua vida, aduzindo que:
“No decorrer dos anos a Medicina desenvolveu alternativas às
transfusões de sangue, comumente denominadas de
‘gerenciamento e conservação de sangue’. As justificativas para
o desenvolvimento dessas alternativas são: a) atender
pacientes que recusam as transfusões de sangue por motivos
religiosos ou pessoais; b) evitar complicações médicas
associadas às transfusões de sangue; c) proteger os pacientes
da exposição de doenças causadas por vírus e bactérias
resultantes de sangue contaminado. As alternativas à
transfusão se fundamentam em quatro princípios: a) reduzir a
perda de sangue; b) preservar glóbulos vermelhos; c) estimular
a produção de sangue; d) recuperar o sangue perdido durante a
cirurgia.
Como meio de prevenir a perda de sangue, o cirurgião pode
utilizar instrumentos cirúrgicos como o eletrocautério, que, à
medida que corta os tecidos, cauteriza os vasos sanguíneos,
prevenindo hemorragias. Caso ocorra uma hemorragia no local
que está sendo operado, é possível utilizar o feixe de gás
argônio como coagulador. Há também a cola de fibrina, que
estimula a coagulação por contato.
Para a preservação dos glóbulos vermelhos, que são
essenciais para o transporte de gases, a equipe médica pode
empregar o uso da hemodiluição, uma técnica que, por meio de
um circuito fechado em contato com o corpo do paciente,
desvia o sangue para bolsas, e em seguida são injetados
fluidos que aumentam o volume, resultando em sangue diluído.
Em caso de sangramento, a perda de glóbulos vermelhos será
reduzida. Seria como misturar 2 litros de leite com 5 litros de
água, obtendo 7 litros em volume. Mesmo que se retire 1 litro
desse volume, a perda de leite não é tão drástica. Na
hemodiluição, encerrado o procedimento cirúrgico, os fluidos
são descartados e o sangue retido em bolsas retorna ao
sistema circulatório do paciente.
Conforme citado anteriormente, a produção de sangue pode ser
estimulada por meio de drogas como a eritoproetina,
interleucina e o aranesp. Para recuperação do sangue perdido
durante a cirurgia, podem ser utilizados equipamentos como o
Cell Saver.”
E continua seu raciocínio citando uma reportagem da revista
Time de outubro de 1997:
“Explicando sobre os avanços da medicina sem sangue,
Langone (1997) considerou o caso de Henry Jackson, um
homem de 32 anos. Ele havia sofrido uma forte hemorragia
interna, perdendo 90% de sangue. Seu nível de hemoglobina
(que são vitais para o transporte de oxigênio) havia caído de
13g/dl para 1,7. Seu quadro clínico era considerado
extremamente crítico, já que em um nível de 6g/dl de
hemoglobina a transfusão de sangue já é recomendada. O
hospital de New Jersey havia recebido Henry Jackson e a
equipe médica que o atendia estava determinada a transfundir
sangue, mas a esposa do paciente, que era Testemunha de
Jeová, estava dividida entre a vida do seu marido e sua crença
religiosa. Devido ao posicionamento da equipe médica do
primeiro hospital, o paciente foi transferido para o Hospital
Englewood, sob os cuidados da equipe do Dr. Aryeh Shander. A
primeira medida da equipe foi aplicar medicamentos no
paciente para reduzir o consumo de oxigênio pelos músculos,
cérebro e pulmões. Em seguida foram ministradas doses de
suplementos de alto teor de ferro e de vitaminas. Por fim, o
paciente recebeu doses elevadas de eritoproetina e fluidos
intravenosos para manter a circulação sanguínea. Depois de
quatro dias o nível de hemoglobina do paciente estava
estabilizado. Curiosamente, o primeiro hospital havia ligado
para saber se Henry Jackson havia morrido. Sem disfarçar a
satisfação o Dr. Shander respondeu: ‘Ele não só está vivo, mas
está bem e pronto para receber alta, e em pouco tempo voltará
às suas atividades normais’ (LANGONE, 1997, p. 2, tradução
nossa).
O emprego das alternativas às transfusões de sangue permite
ao médico tratar pacientes que rejeitam o uso de sangue como
terapia, seja por convicções pessoais ou religiosas. O corpo do
paciente não é um mero objeto nas mãos de um médico. Todo
paciente tem o direito de escolher o tratamento médico que
considera necessário. A relação entre médico e paciente deve
ser pautada pela cooperação, não pela imposição.”
Dessa forma, sendo possível o tratamento alternativo, já não
mais poderemos imputar a prática de qualquer infração penal aos
responsáveis pelo paciente que, supostamente, necessitava da
transfusão de sangue, ficando, agora, os médicos obrigados a optar
pela alternativa que não agrida suas crenças religiosas.
3.13.4
Julgamento pelo júri sem a presença do réu
Dadas as alterações levadas a efeito no Código de Processo
Penal, não mais se exige a presença do réu em plenário do Júri
para que possa ser realizado o seu julgamento. O art. 457 e
parágrafos, com a redação determinada pela Lei nº 11.689, de 9 de
junho de 2008, dizem, verbis:
Art. 457. O julgamento não será
adiado pelo não comparecimento do
acusado solto, do assistente ou do
advogado do querelante, que tiver
sido regularmente intimado.
§ 1º Os pedidos de adiamento e as
justificações de não comparecimento
deverão ser, salvo comprovado motivo
de
força
maior,
previamente
submetidos à apreciação do juiz
presidente do Tribunal do Júri.
§ 2º Se o acusado preso não for
conduzido, o julgamento será adiado
para o primeiro dia desimpedido da
mesma reunião, salvo se houver
pedido
de
dispensa
de
comparecimento subscrito por ele e
seu defensor.
3.13.5
Jogo da baleia azul
A baleia azul é um jogo que, provavelmente, teria surgido na
Rússia, se alastrando por todas as redes sociais. Essa expressão
“baleia azul” diz respeito ao fenômeno de baleias encalhadas,
taxadas, equivocadamente, de suicidas. Seus líderes usam perfis
falsos,
dificultando,
assim,
seu
reconhecimento
e,
consequentemente, sua prisão.
A finalidade do jogo é fazer com que seus participantes,
normalmente crianças e adolescentes, cumpram tarefas diárias,
perfazendo um total de 50. Essas tarefas, em sua maioria, envolvem
automutilações, que devem ser devidamente registradas via
fotografia, ou mesmo filmadas, e enviadas ao chamado
“curador/líder” do grupo, cuja finalidade é coordenar o jogo e fazer o
passo a passo com as vítimas, induzindo-as e incitando-as às
automutilações.
A última de todas as tarefas é o suicídio.
O jogo também é feito com intimidações, pois aqueles que
desejam dele sair são ameaçados por esses covardes
“curadores/líderes/administradores”.
Infelizmente, o jogo já se espalhou por todo o território nacional,
deixando um rastro de vítimas inocentes.
Agora, após a edição da Lei nº 13.968, de 26 de dezembro de
2019, com a inclusão da automutilação no art. 122 do Código Penal,
a conduta desses criminosos se amoldará, com precisão, ao tipo
penal em exame, em que, como regra, será aplicada a causa
especial de aumento de pena prevista no § 1º do art. 122 do Código
Penal, aumentando-se a pena até o dobro, uma vez que a conduta
do agente é praticada por meio da rede de computadores ou pelas
redes sociais, podendo, ainda, ser aplicada a majorante do § 5º do
mesmo artigo, na hipótese de ser descoberto o chamado curador,
que na verdade se encontra numa posição de liderança, fazendo
jus, assim, a um aumento de metade da pena que lhe for imposta.
3.14
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: qualquer pessoa.
Passivo: qualquer pessoa,
desde que a vítima tenha
capacidade
de
discernimento,
de
autodeterminação,
pois,
caso contrário, estaremos
diante
do
delito
de
homicídio.
Objeto material
É a pessoa contra a qual é
dirigida a conduta do agente.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
A vida e a integridade física são
os
bens
juridicamente
protegidos pelo tipo do art. 122
do Código Penal, com a nova
redação que lhe foi conferida
pela Lei 13.968, de 26 de
dezembro de 2019.
Elemento subjetivo
»
»
»
É o dolo, seja direto, seja
eventual.
Não há previsão legal para
a modalidade culposa.
Assim, o agente deve dirigir
finalisticamente
sua
conduta no sentido de criar
a
ideia
suicida
ou
automutiladora na vítima,
ou mesmo estimulá-la ou
auxiliá-la materialmente a
esse fim.
Modalidades
omissiva
comissiva
e
Os núcleos constantes do art.
122 do CP pressupõem um
comportamento comissivo por
parte do agente, podendo ser
praticado, também, via omissão
imprópria.
Participações
»
»
Moral: ocorre nas hipóteses
de
induzimento
ou
instigação ao suicídio.
Material: o agente auxilia
materialmente a vítima a
conseguir o seu intento,
fornecendo, por exemplo, o
instrumento
que
será
utilizado na execução do
autocídio (revólver, faca,
corda para a forca etc.), ou
mesmo
simplesmente
esclarecendo como usá-lo
Consumação e tentativa
»
»
No que diz respeito ao
comportamento tipificado
no caput do art. 122 do
Código Penal, o delito se
consuma quando a vítima,
após ter sido induzida,
instigada
ou
auxiliada
materialmente pelo agente,
dá início a atos tendentes a
eliminar a própria vida ou
se automutilar.
Em se tratando de um
delito material, quando a
»
vítima atenta contra a
própria vida, produzindo ou
não, em si mesma lesões
corporais de natureza leve,
ou quando, efetivamente se
automutila, ofendendo sua
integridade corporal, nesse
exato instante entendemos
como consumado o delito
de induzimento, instigação
e auxílio a suicídio ou a
automutilação.
A modalidade qualificada
prevista no § 1º do art. 122
do CP quando a vítima,
induzida,
instigada
ou
auxiliada
materialmente,
leva
a
efeito
o
comportamento tendente a
eliminar a própria vida ou a
se automutilar, advindo,
daí, lesão corporal de
»
»
natureza
grave
ou
gravíssima, isto é, aquelas
previstas nos §§ 1º e 2º do
art.
129
do
diploma
repressivo.
Se o suicídio se consuma,
ocorrendo a morte da
vítima,
ou
se
o
automutilado também vem
a falecer, mesmo não
sendo essa sua intenção
inicial, restará consumado
o delito na modalidade
prevista no § 2º do
mencionado art. 122.
Em se tratando de um
delito
plurissubsistente,
será
perfeitamente
admissível a tentativa.
4.
INFANTICÍDIO
Infanticídio Art. 123. Matar, sob a
influência do estado puerperal, o
próprio filho, durante o parto ou logo
após: Pena – detenção, de dois a seis
anos.
4.1
Introdução
Relembra Noronha:
“O infanticídio teve, através das épocas, considerações
diversas. Em Roma, como se vê das Institutas de Justiniano
(Liv. IV, Tít. XVIII, § 6º), foi punido com pena atroz, pois o
condenado era cosido em um saco com um cão, um galo, uma
víbora e uma macaca, e lançado ao mar ou ao rio. No direito
medieval, a Carolina (Ordenação de Carlos V), art. 131,
impunha o sepultamento em vida, o afogamento, o
empalamento ou a dilaceração com tenazes ardentes. Foi no
século XVIII, sobretudo, que o delito passou a ser considerado
mais brandamente, e hoje, não obstante vozes em contrário, é
orientação comum das legislações e também a seguida pelos
Códigos pátrios.”93
Analisando a figura típica do infanticídio, percebe-se que se
trata, na verdade, de uma modalidade especial de homicídio, que é
cometido levando-se em consideração determinadas condições
particulares do sujeito ativo, que atua influenciado pelo estado
puerperal, em meio a certo espaço de tempo, pois o delito deve ser
praticado durante o parto ou logo após.
O ideal seria, como veremos mais adiante, que o delito de
infanticídio fosse tratado como uma espécie de homicídio
privilegiado, ficando, dessa forma, umbilicalmente ligado ao caput
do art. 121 do Código Penal por meio de um parágrafo, coisa que
não acontece atualmente, fazendo com que seja entendido como
uma infração penal autônoma.
Seus traços marcantes e inafastáveis são, portanto, os
seguintes:
a)
b)
c)
4.2
que o delito seja cometido sob a influência do estado
puerperal;
que tenha como objeto o próprio filho da parturiente;
que seja cometido durante o parto ou, pelo menos, logo
após.
Classificação doutrinária
Crime próprio (pois somente pode ser cometido pela mãe, que
atua influenciada pelo estado puerperal); simples; de forma livre;
doloso, comissivo e omissivo impróprio (uma vez que o sujeito ativo
goza do status de garantidor); de dano; material; plurissubsistente;
monossubjetivo; não transeunte; instantâneo de efeitos
permanentes.
4.3
Sob a influência do estado puerperal
Ab initio, deve ser determinado um conceito de estado
puerperal, a fim de que se possa iniciar o raciocínio do delito de
infanticídio.
Jorge de Rezende, traduzindo um conceito médico de
puerpério, esclarece:
“Puerpério, sobreparto ou pós-parto, é o período
cronologicamente variável, de âmbito impreciso, durante o qual
se desenrolam todas as manifestações involutivas e de
recuperação da genitália materna havidas após o parto. Há,
contemporaneamente, importantes modificações gerais, que
perduram até o retorno do organismo às condições vigentes
antes da prenhez. A relevância e a extensão desses processos
são proporcionais ao vulto das transformações gestativas
experimentadas, isto é, diretamente subordinadas à duração da
gravidez.”94
Apesar da definição médica trazida à colação, tem-se entendido
que o chamado estado puerperal não é tão somente aquele que se
desenvolve após o parto, incluindo-se nesse raciocínio o período do
parto e também o sobreparto.95 Durante esse período, a parturiente
sofre abalos de natureza psicológica que a influenciam para que
decida causar a morte do próprio filho. Paulo José da Costa Júnior,
analisando o estado puerperal, diz:
“A mulher, abalada pela dor obstétrica, fatigada, sacudida pela
emoção, sofre um colapso do senso moral, uma liberação de
instintos perversos, vindo a matar o próprio filho.”96
A lei penal exige, portanto, para reconhecimento do infanticídio,
que a parturiente atue sob a influência do estado puerperal. Dessa
forma, imagine-se a hipótese em que uma mulher, logo após o
parto, em estado puerperal, vá até ao berçário e cause a morte do
seu próprio filho. Indaga-se: qual infração penal teria cometido a
parturiente?
À primeira vista, somos quase que impulsionados a responder
pelo delito de infanticídio. Contudo, a resposta correta para a
questão apresentada, da forma como foi elaborada, seria, na
verdade, o delito de homicídio.
Isso porque, conforme inserimos no exemplo formulado, a mãe,
realmente, havia causado a morte do próprio filho, logo após o
parto, encontrando-se, ainda, em estado puerperal. Entretanto, para
que se caracterize o infanticídio, exige a lei penal mais do que a
existência do estado puerperal, comum em quase todas as
parturientes, algumas em menor e outras em maior grau. O que o
Código Penal requer, de forma clara, é que a parturiente atue
influenciada por esse estado puerperal.
Assim, o critério adotado não foi o puramente biológico, físico,
mas, sim, uma fusão desse critério com outro, de natureza
psicológica, surgindo daí o critério chamado fisiopsíquico ou
biopsíquico.
Podemos, a título de ilustração, identificar três níveis de estado
puerperal, a saber: mínimo, médio, máximo.
Se a parturiente, embora em estado puerperal, considerado de
grau mínimo, não atuar, por essa razão, influenciada por ele, e vier a
causar a morte de seu filho, durante ou logo após o parto, deverá
responder pelo delito de homicídio.
Em sentido diametralmente oposto, se a parturiente,
completamente perturbada psicologicamente, dada a intensidade do
seu estado puerperal, considerado aqui como de nível máximo,
provocar a morte de seu filho durante o parto ou logo após, deverá
ser tratada como inimputável, afastando-se, outrossim, a sua
culpabilidade e, consequentemente, a própria infração penal.
Nesse sentido, concluindo pelo afastamento da culpabilidade
em decorrência ao estado puerperal da parturiente, posiciona-se
Frederico Marques:
“Quando a parturiente é uma doente mental e comete o crime
sob a influência do estado puerperal, sem qualquer poder de
autodeterminação, impunível é o seu ato homicida, por tratar-se
de pessoa inimputável. E o mesmo se dá quando ocorrem
psicoses ou doenças mentais causadas pelo puerpério, com
completa anulação do poder de autodeterminação, cabendo,
então, aplicar-se o que dispõe o art. 26 do Código Penal.”97
Numa situação intermediária encontra-se a gestante que atua
influenciada pelo estado puerperal e, assim, vem a dar causa à
morte de seu filho durante o parto ou logo após, sendo o seu estado
puerperal considerado de grau médio. Este, para nós, é o que havia
sido adotado pelo Código Penal e que caracteriza, efetivamente, o
delito de infanticídio.
A própria Exposição de Motivos da parte especial do Código
Penal, em seu item 40, esclarece:
40. O infanticídio é considerado um
delictum exceptum quando praticado
pela parturiente sob a influência do
estado puerperal. Esta cláusula, como
é óbvio, não quer significar que o
puerpério acarrete sempre uma
perturbação psíquica: é preciso que
fique averiguado ter esta realmente
sobrevindo em consequência daquele,
de modo a diminuir a capacidade de
entendimento ou de autoinibição da
parturiente. Fora daí, não há por que
distinguir
entre
infanticídio
e
homicídio. Ainda quando ocorra
honoris causa [...], a pena aplicável é
a de homicídio.
Ainda temos de resolver uma última indagação. Afirmamos,
com base nas lições de Frederico Marques, que se a parturiente
estiver abalada de tal maneira que seja inteiramente incapaz de
entender a ilicitude do fato por ela praticado, ou de determinar-se de
acordo com esse entendimento, será tratada como inimputável,
afastando-se, consequentemente, sua culpabilidade, bem como a
própria infração penal, uma vez que a característica da culpabilidade
é um dos elementos que integram o conceito analítico de crime.
Contudo, pode ser que a gestante, em decorrência de suas
perturbações psicológicas originárias de seu estado puerperal, não
seja totalmente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de
determinar-se de acordo com esse entendimento. Nesse caso,
poderíamos aplicar-lhe a diminuição de pena contida no parágrafo
único do art. 26 do Código Penal?
Embora não seja pacífico o tema, a maioria de nossos
doutrinadores admite tal possibilidade, a exemplo de Hungria, que
diz que “não há incompatibilidade alguma entre o reconhecimento
da influência do estado puerperal e, a seguir, o da
irresponsabilidade ou da responsabilidade diminuída, segundo a
regra geral;”98 ou, ainda, Luiz Regis Prado afirmando ser possível “o
reconhecimento da influência do estado puerperal e também da
inimputabilidade (art. 26, caput) ou da semi-imputabilidade da
parturiente (art. 26, parágrafo único), conforme o caso.”99
4.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
O infanticídio é um delito próprio, uma vez que o tipo penal do
art. 123 do Código Penal indicou tanto o seu sujeito ativo quanto o
sujeito passivo.
Assim, pela redação da figura típica, somente a mãe pode ser
sujeito ativo da mencionada infração penal, tendo como sujeito
passivo o próprio filho.
Tratando-se de crime próprio, como veremos a seguir, o
infanticídio admite as duas espécies de concurso de pessoas, vale
dizer, a coautoria e a participação.
No que diz respeito ao sujeito passivo, a lei penal aponta como
infanticídio o fato de causar a morte, sob a influência do estado
puerperal, do próprio filho, durante o parto ou logo após, podendose visualizar, por meio dessas duas últimas expressões, que o delito
pode ser cometido tanto contra o nascente, isto é, aquele que está
nascendo, que ainda se encontra no processo de expulsão, quanto
contra o neonato, ou seja, aquele que acabou de nascer, já se
encontrando desprendido da mãe.
4.5
Limite temporal
O Código Penal determina um limite temporal para que se
possa caracterizar o delito de infanticídio. Além de exigir que o fato
seja cometido pela mãe, que atua influenciada pelo estado
puerperal, causando a morte do próprio filho, determina que esse
comportamento seja levado a efeito durante o parto ou logo após.
A expressão durante o parto indica o momento a partir do qual
o fato deixa de ser considerado como aborto e passa a ser
entendido como infanticídio. Dessa forma, o marco inicial para o
raciocínio correspondente à figura típica do infanticídio é,
efetivamente, o início do parto.
A medicina visualiza formas diferentes de início do parto,
dependendo da natureza que este assuma. Temos de trabalhar,
portanto, com duas espécies diferentes de parto, que possuem,
consequentemente, dois momentos distintos de início.
Existe, inicialmente, o parto considerado normal ou natural.
Conforme esclarece Jorge de Rezende:
“Clinicamente, o estudo do parto compreende três fases
principais (dilatação, expulsão, secundamento), precedidas de
estágio preliminar, o período premunitório.
[...].
É o período premunitório caracterizado, precipuamente, pela
descida do fundo uterino.”100
E continua o professor emérito da Faculdade de Medicina da
Universidade Federal do Rio de Janeiro dizendo que as fases do
parto podem ser classificadas em:
“a) Dilatação, ou 1º período;
b) Expulsão, ou 2º período;
c) Secundamento, ou 3º período.
Inicia-se a fase de dilatação, ou primeiro período, no prevalente
conceito dos tratadistas, e, ostensivamente, com as primeiras
contrações uterinas dolorosas, que começam de modificar a
cérvice, e termina quando a sua dilatação está completa.”101
Assim, com a dilatação do colo do útero ou com as contrações
uterinas já podemos concluir pelo início do parto normal.
Por outro lado, também ocorre, e com muita frequência,
principalmente no Brasil, o parto denominado cesariana, cesárea ou
tomotocia, que se entende, de acordo com os ensinamentos de
Jorge de Rezende, como o “ato cirúrgico consistente em incisar o
abdome e a parede do útero para libertar o concepto aí
desenvolvido.”102 Dessa forma, uma vez levadas a efeito as incisões
nas camadas abdominais, podemos entender como já iniciado o
parto por meio dessa modalidade.
A doutrina tem afirmado, portanto, que o início do parto pode
ocorrer, considerando-se os dados acima, em três momentos, a
saber: a) com a dilatação do colo do útero,103 b) com o rompimento
da membrana amniótica,104 c) com a incisão das camadas
abdominais, no parto cesariana.
Uma vez iniciado o parto, não mais se poderá raciocinar em
termos de delito de aborto, passando a infração penal a se
configurar em homicídio ou em infanticídio, presentes todos os seus
elementos.
Por outro lado, o que devemos entender pela expressão logo
após o parto? Magalhães Noronha posiciona-se no sentido de que
esse período acha-se:
“Delimitado pela influência do estado puerperal, isto é, aquele
estado de angústia, perturbações etc., que justificam o delictum
exceptum. A lei não fixou prazo, como outrora alguns códigos
faziam, porém não se lhe pode dar uma interpretação
mesquinha, mas ampla, de modo que abranja o variável
período do choque puerperal. É essencial que a parturiente não
haja entrado ainda na fase da bonança, em que predomina o
instinto materno. Trata-se de circunstância de fato a ser
averiguada pelos peritos médicos e mediante prova indireta.”105
Luiz Regis Prado, na mesma linha de raciocínio de Noronha,
afirma que a expressão logo após “implica a realização imediata e
sem intervalo da conduta delituosa. O importante, porém, é que a
parturiente não tenha ingressado na fase de quietação, isto é, no
período em que se afirma o instinto maternal.”106
Apesar da autoridade dos autores citados, entendemos que a
expressão logo após o parto deve ser entendida à luz do princípio
da razoabilidade. A medicina aponta o período de seis a oito
semanas como o tempo de duração normal do puerpério.107 Como
seria possível, então, entender como infanticídio a morte do filho
produzida pela própria mãe, ainda influenciada pelo estado
puerperal, dois meses e meio após o parto?
Não nos parece razoável tal entendimento, uma vez que a lei
penal usa, expressamente, a expressão logo após o parto, e não
somente após o parto. Fosse intenção da lei reconhecer o delito de
infanticídio a partir do início do parto, agindo a gestante influenciada
pelo estado puerperal, teria afirmado expressamente isso. Não foi o
que aconteceu.
Assim, a parturiente somente será beneficiada com o
reconhecimento do infanticídio se, entre o início do parto e a morte
do seu próprio filho houver uma relação de proximidade, a ser
analisada sob o enfoque do princípio da razoabilidade.
Não estamos, aqui, almejando determinar o tempo máximo para
a ocorrência do infanticídio, mas tão somente afastar situações que,
por aberrantes, fugiriam por completo à ilação da expressão logo
após, contida no art. 123 do Código Penal.
A medicina nos informa que o estado puerperal pode durar,
como regra, de seis a oito semanas. Se a parturiente, contudo, vier
a causar a morte de seu próprio filho, dado o estado prolongado do
puerpério, cinco meses após o parto, por mais que queiramos
entender como infanticídio, a expressão logo após, adotada
razoavelmente, nos conduziria ao reconhecimento do homicídio.
Merece ser frisado, ainda, que para o infanticídio ser
reconhecido haverá necessidade, também, de prova pericial, a fim
de que fique evidenciado que, ao tempo da ação ou da omissão, a
parturiente encontrava-se sob a influência do estado puerperal, pois,
caso contrário, o crime por ela praticado se amoldará à figura do art.
121 do Código Penal.
4.6
Elemento subjetivo
Não tendo sido prevista a modalidade culposa no art. 123 do
Código Penal, o crime de infanticídio somente pode ser cometido
dolosamente, seja o dolo direto seja, mesmo, eventual.
Assim, a parturiente, durante o parto ou logo após, influenciada
pelo estado puerperal, deverá agir finalisticamente no sentido de
produzir a morte do próprio filho, agindo com vontade livre e
consciente a esse fim.
A parturiente, portanto, deve querer a morte do filho agindo,
outrossim, com dolo direto ou, pelo menos, não se importando com
a ocorrência desse resultado, que lhe é indiferente, atuando, agora,
com dolo eventual.
Se a morte do nascente ou neonato decorrer da inobservância
do dever objetivo de cuidado que era devido à parturiente, deverá
ser responsabilizada pelo delito de homicídio culposo, não se
justificando, permissa vênia, a posição de Damásio de Jesus, que
advoga a tese da atipicidade do fato dizendo:
“Não há infanticídio culposo, uma vez que no art. 123 do CP o
legislador não se refere à modalidade culposa (CP, art. 18,
parágrafo único). Se a mulher vem a matar o próprio filho, sob a
influência do estado puerperal, de forma culposa, não responde
por delito algum (nem homicídio, nem infanticídio). A mulher,
porém, pode vir a matar a criança, não se encontrando sob a
influência do estado puerperal, agindo culposamente. Haverá,
neste caso, homicídio culposo, descrito no art. 121, § 3º, do
CP.”108
Pelo que se verifica da exposição feita pelo renomado
tratadista, tenta-se afastar a responsabilidade pelo delito culposo
erigindo-se a existência do estado puerperal, o que, segundo
entendemos, não se justifica. Pode a parturiente, ainda que
influenciada pelo estado puerperal, cuja ocorrência é comum,
mesmo não querendo a morte de seu filho, deixar de tomar os
cuidados necessários à manutenção de sua vida, agindo, pois,
culposamente, caso a inobservância ao seu dever objetivo de
cuidado venha a produzir a morte de seu próprio filho.
Em suma, a influência do estado puerperal não tem o condão
de afastar a tipicidade do comportamento praticado pela parturiente
que se amolda, em tese, ao delito de homicídio culposo, embora tal
fato deva influenciar o julgador no momento da fixação da penabase, quando da análise das circunstâncias judiciais.
4.7
Consumação e tentativa
Crime material, o delito de infanticídio se consuma com a morte
do nascente ou do neonato, daí a necessidade de ser produzida
prova no sentido de verificar se, durante os atos de execução,
estava vivo o nascente ou neonato, pois, caso contrário, estaremos
diante da hipótese de crime impossível, em razão da absoluta
impropriedade do objeto.
Tratando-se de crime material que permite o fracionamento do
iter criminis, a parturiente, durante o parto ou logo após, influenciada
pelo estado puerperal, pode ter dirigido finalisticamente sua conduta
no sentido de causar a morte do nascente ou neonato, somente não
produzindo o resultado por circunstâncias alheias à sua vontade,
podendo-se concluir, portanto, pela possibilidade da tentativa.
4.8
Modalidades comissiva e omissiva
O delito de infanticídio pode ser praticado comissiva ou
omissivamente.
O núcleo contido no tipo do art. 123 do Código Penal é o verbo
matar, que pressupõe uma conduta comissiva, dirigida à produção
do resultado morte.
A parturiente, influenciada pelo estado puerperal, durante o
parto ou logo após, pode realizar um comportamento positivo,
dirigido a produzir a morte do próprio filho, por exemplo, afogando-o
em uma banheira.
No entanto, embora não prevista expressamente a modalidade
omissiva, a parturiente, na qualidade de garante, pode também,
influenciada pelo estado puerperal, causar a morte do próprio filho,
deixando de fazer o que é necessário à sobrevivência dele, por
exemplo, não lhe oferecendo o alimento indispensável (leite materno
ou de outra natureza).
Chegamos a essa conclusão em decorrência da natureza
jurídica do § 2º do art. 13 do Código Penal, considerado norma de
extensão cuja função é alargar o tipo penal, fazendo-se nele
enxergar hipóteses que não foram previstas expressamente pelo
legislador, assegurando-se, assim, o princípio da legalidade.
Como o verbo matar pressupõe um comportamento comissivo,
a parturiente, com a sua inação, somente poderá responder pelo
delito em questão em virtude da sua qualidade especial de
garantidora, que lhe foi atribuída pela alínea a do § 2º do art. 13 do
Código Penal, que diz que a omissão é penalmente relevante
quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado,
atribuindo esse dever de agir a quem tenha por lei obrigação de
cuidado, proteção ou vigilância, como é o caso da mãe com relação
ao seu filho.
Concluindo, o ato de a mãe matar o próprio filho, durante o
parto ou logo após, influenciada pelo estado puerperal pode ser
entendido tanto comissiva quanto omissivamente.
4.9
Objeto material e bem juridicamente protegido
O infanticídio encontra-se no rol daqueles delitos que têm por
finalidade proteger a vida humana. O bem juridicamente protegido,
portanto, é a vida do nascente ou do neonato.
Se a vida é o bem juridicamente protegido pelo delito de
infanticídio, o nascente e o neonato são os objetos do delito em
estudo, pois a conduta da parturiente é dirigida finalisticamente
contra eles.
Flamínio Fávero, discorrendo sobre o objeto material do delito
de infanticídio, aponta a distinção entre os termos nascente e
neonato:
“Não importa que a vítima seja viável ou não. A monstruosidade
também pode ser objeto de infanticídio. Exclui-se, apenas, a
mola, que é um ovo degenerado, à qual não assiste
possibilidade de ter vida fora do ventre materno e, menos ainda,
de se desenvolver como ente humano. Vítima do infanticídio,
pode ser não só o verdadeiro recém-nascido, isto é, o feto já
nascido, já fora do álveo materno, malgrado continue preso pelo
cordão umbilical, mas também o feto nascendo ou nascente,
em plena expulsão embora ainda não tenha respirado. Neste
caso, haveria rigorosamente a figura do feticídio que o Código
louvavelmente equipara ao infanticídio.”109
4.10
Prova da vida
Para que a parturiente responda pelo delito de infanticídio é
fundamental a comprovação de que o nascente ou o neonato
encontrava-se vivo, pois, caso contrário, como já dissemos,
estaríamos diante do chamado crime impossível, em razão da
absoluta impropriedade do objeto.
A prova da vida do nascente ou do neonato é, portanto, crucial.
Existem exames que são produzidos para comprovar se houve vida
no nascente, ou seja, aquele que ainda se encontrava no processo
de expulsão do útero materno, bem como do neonato, isto é, aquele
que acabara de nascer.
Odon Ramos Maranhão, com precisão, aponta duas provas de
vida que dizem respeito ao nascente, a saber: a) tumor de parto e b)
reação vital. Assim, explica o renomado professor:
“a) Tumor de parto – as compressões sofridas pela porção do
organismo fetal que primeiro alcança as aberturas genitais da
parturiente provocam edema local, que constitui tumor de parto.
Geralmente se situa na cabeça, que chega a assumir aspecto
assimétrico. Essa saliência se deve ao fato de haver circulação
no organismo fetal.
No feto morto antes do nascimento não há tumor de parto.
b) Reação vital – se a morte do feto nascente foi provocada, é
claro que no início da parturição este estava vivo. Logo, as
lesões encontradas no feto terão sido produzidas intra vitam. O
perito, ao examinar o cadáver do feto, deverá colher material
para fazer uma reação vital, pelas técnicas usuais (Verderaux,
F. Fávero, Orsós etc.).”110
Quanto ao neonato ou recém-nascido, normalmente são
utilizadas as provas que procuram demonstrar ter havido respiração,
sendo essas provas chamadas de docimasias respiratórias.
As docimasias respiratórias, segundo ainda as lições de Odon
Ramos Maranhão, podem ser divididas em diretas e indiretas.
As provas diretas podem acontecer por meio de cinco
modalidades: a) radiográfica; b) diafragmática; c) visual; d)
hidrostática; e e) epimicroscopia. As provas indiretas são duas:
gastrointestinal e auricular.
São essas as definições do conceituado autor:
Diretas:
“Radiográfica (Bordas). Radiografa-se
o pulmão depois de extraído do
organismo (durante a necroscopia).
Pode-se também radiografar antes de
se abrir o tórax (Ottolenghi). Serve
para
documentar.
Estuda-se
a
transparência
do
parênquima
pulmonar, que se estabelece no que
respirou e está ausente na hipótese
contrária.
Diafragmática (Casper). Estuda-se a
relação entre a curva diafragmática e
a arcada costal. Se houver respiração,
o diafragma se movimentou e a
inspiração o fez subir ao 5º espaço
intercostal; isto não ocorrendo,
inexistiu respiração.
Visual (Bouchut). Basta se estudar o
pulmão a olho nu ou com auxílio de
aumento ótico. O pulmão que respirou
se
mostra
rosado,
expandido,
vesiculado, o que não ocorre caso
não tenha havido vida extrauterina.
Hidrostática (Galeno). Possivelmente
é a mais conhecida e praticada. O
pulmão fetal não se expandiu, mostrase compacto e tem uma densidade de
1,09, enquanto que o que recebeu ar
e se inflou mostra-se com cavidades
pneumáticas
e
consequente
densidade mais baixa (0,9). Por isso
se colocarmos um fragmento ou
mesmo o pulmão todo em vasilha com
água (densidade = 1,0) poderemos
observar que o primeiro vai ao fundo e
o segundo flutua.
Epimicroscopia (Veiga de Carvalho).
São duas provas: epimicroscopia
pneumo-arquitetônica histológica. São
exatamente feitos por visualização
estereoscópica para verificar se os
alvéolos pulmonares se distenderam
ou não.”111
Indiretas:
“Gastrointestinal (Breslav). Consiste
em verificar presença de ar no
aparelho digestivo. Quando se dá a
inspiração inicial, passa ar para o
aparelho digestivo, o que serve de
base para essa prova. O método de
realização é semelhante ao galênico.
É prova indireta.
Auricular (Wreden-Wendt). Após o
início da respiração passa ar no
ouvido médio. Por isso, se for feita
trepanação na membrana do tímpano
dentro de recipiente com água, o
aparecimento de bolha gasosa
indicará
presença
de
ar
e
consequente respiração. É prova
delicada e difícil. Tem interesse
quando se dispõe somente da cabeça
do recém-nascido para exame.”112
Além das docimasias respiratórias, também são utilizadas as
docimasias não respiratórias, que, segundo a lição de Hungria,
podem ser assim divididas:
“A alimentar (pesquisa microscópica,
macroscópica, ou química de traços
de alimentos ou outras substâncias
absorvidas pelo neonato), a siálica
(pesquisa de saliva no estômago do
feto), a renal (averiguação de infartos
úricos nos rins do feto), a
bacteriológica
(constatação
do
bacterium coli no tubo gastroentérico),
a vascular (pesquisa de mudanças
anatômicas no coração e sistema
artério-venoso do neonato), a do
nervo óptico (fundada na mielinização
das fibras nervosas do nervo óptico),
a bulbar (exame histológico do
desenvolvimento e caracteres dos
centros respiratórios bulbares), a
umbilical (exames das alterações que
sofre o coto do cordão umbilical até o
momento de sua queda).”113
Mesmo com todo esse arsenal de exames à disposição, pode
acontecer a hipótese em que nenhum deles tenha sido efetivamente
realizado. Poderá a parturiente, ainda assim, responder pelo delito
de infanticídio, sem que se tenha à disposição um exame pericial
comprovando a vida do nascente ou do neonato?
A resposta só pode ser afirmativa. Embora exista a necessária
segurança nas provas periciais, sua ausência não implicará,
necessariamente, a descaracterização do delito em estudo. É
preciso, sim, comprovar que houve vida, para que se possa imputar
à parturiente, que agira influenciada pelo estado puerperal, a morte
do seu filho, durante o parto ou logo após.
Nesses casos, podemos nos socorrer subsidiariamente da
prova testemunhal, uma vez que o art. 167 do Código de Processo
Penal aduz que, não sendo possível o exame de corpo de delito, por
haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá
suprir-lhe a falta.
4.11
Pena e ação penal
A pena cominada ao delito de infanticídio é a de detenção de 2
(dois) a 6 (seis) anos, sendo incabível, de acordo com a posição
majoritária de nossa doutrina, proposta de suspensão condicional do
processo, uma vez que a alteração trazida pela Lei nº 10.259, de 12
de julho de 2001, que regulamentou os Juizados Especiais Cíveis e
Criminais no âmbito da Justiça Federal, embora tenha ampliado o
conceito de infração penal de menor potencial ofensivo,
aumentando para 2 (dois) anos o tempo de pena máxima cominada
abstratamente aos crimes, revogando parcialmente o art. 61 da Lei
nº 9.099/95, não alargou também para 2 (dois) anos o tempo de
pena mínima cominada para fins de confecção de proposta de
suspensão condicional do processo, posição confirmada através da
Lei nº 11.313, de 28 de junho de 2006, que, modificando a redação
do art. 61 da Lei nº 9.099/95, ampliou para 2 (dois) anos a pena
máxima cominada para efeito de reconhecimento da infração penal
de menor potencial ofensivo, não sendo modificado o art. 89 da
referida lei, quando podia tê-lo feito expressamente, se fosse
intenção do legislador ampliar o limite para efeito de concessão de
suspensão condicional do processo.
A ação penal relativa ao crime de infanticídio é de iniciativa
pública incondicionada.
4.12
Destaques
4.12.1
Infanticídio com vida intrauterina
Dissemos que o início do parto ocorre com a dilatação do colo
do útero, com o rompimento da membrana amniótica ou com a
incisão das camadas abdominais.
Pode ser que, uma vez iniciado o parto, por exemplo, com o
rompimento da membrana amniótica, a parturiente, influenciada pelo
estado puerperal, pratique manobra no sentido de causar a morte de
seu próprio filho, ainda em seu útero. Pergunta-se: nesse caso,
estaríamos diante do delito de infanticídio ou do crime de aborto?
Para que possamos manter a coerência do raciocínio, não
importa se a vida seja intra ou extrauterina. Para nós, o divisor de
águas entre o crime de aborto e o de infanticídio é, efetivamente, o
início do parto, e não se a vida era intra ou extrauterina, embora
exista controvérsia doutrinária e jurisprudencial nesse sentido.
Merece destaque a extraordinária lição de Hungria, quando
assevera:
“O Código atual ampliou o conceito do infanticídio: o sujeito
passivo deste já não é apenas o recém-nascido, mas também o
feto nascente. Ficou, assim, dirimida a dúvida que se
apresentava no regime do Código anterior, quando o crime se
realizava in ipso partu, isto é, na parte de transição da vida
uterina para a vida extrauterina. Já não há mais identificar-se,
em tal hipótese, o simples aborto – solução que, em face do
Código de 90, era aconselhada pelo princípio do in dubio pro
reo: o crime é infanticídio. Deixou de ser condição necessária
do infanticídio a vida autônoma do fruto da concepção. O feto
vindo à luz já representa, do ponto de vista biológico, antes
mesmo de totalmente desligado do corpo materno, uma vida
humana. Sob o prisma jurídico penal, é, assim, antecipado o
início da personalidade. Remonta esta ao início do parto, isto é,
à apresentação do feto no orifício do útero. Já então o feto
passa a ser uma unidade social. Não se pode negar que o feto
nascente seja um ser vivo, embora não possua todas as
atividades vitais.”114
4.12.2
Aplicação do art. 20, § 3º (erro sobre a pessoa), ao delito
de infanticídio
Imagine-se a hipótese em que a parturiente, influenciada pelo
estado puerperal, vá até o berçário, logo após o parto, e, querendo
causar a morte do próprio filho, por erro, acabe estrangulando o filho
de sua colega de enfermaria, causando-lhe a morte.
A parturiente, portanto, matou o filho de terceira pessoa,
supondo-o seu. Pergunta-se: no caso em questão, deverá a
parturiente responder pelo delito de homicídio ou pelo infanticídio?
Preconiza o § 3º do art. 20 do Código Penal:
§ 3º O erro quanto à pessoa contra a
qual o crime é praticado não isenta de
pena. Não se consideram, neste caso,
as condições ou qualidades da vítima,
senão as da pessoa contra quem o
agente queria praticar o crime.
Considerando-se que a parturiente almejava causar a morte do
próprio filho e, por erro, acabou matando o filho de sua colega de
quarto, aplica-se a regra correspondente ao erro sobre a pessoa,
devendo ser responsabilizada pelo infanticídio.
4.12.3
Concurso de pessoas no delito de infanticídio
Dissemos que o delito de infanticídio é, na verdade, um
homicídio especializado por vários elementos, sendo um deles a
influência do estado puerperal. Dessa forma, comparativamente, o
infanticídio é menos severamente punido do que o homicídio,
mesmo que em sua modalidade fundamental.
Por essa razão, ou seja, em virtude dos vários elementos que
tornam o infanticídio especial em relação ao homicídio, pergunta-se:
Será possível o concurso de pessoas no crime de infanticídio?
O fato deverá ser desdobrado em várias situações para que
melhor se possa com-preendê-lo. Entretanto, em nosso raciocínio,
partiremos do pressuposto de que o terceiro que, em companhia da
parturiente, de alguma forma, concorre para a morte do recémnascido ou do nascente, é conhecedor de que aquela atua
influenciada pelo estado puerperal, pois, caso contrário, perderia
sentido a discussão, haja vista que se tal fato não fosse do
conhecimento do terceiro, que de alguma forma concorreu para o
resultado morte, teria ele que responder, sempre, pelo homicídio.
Assim, vejamos as hipóteses possíveis:
a)
b)
a parturiente e o terceiro executam a conduta núcleo do
tipo do art. 123 Código Penal, ou seja, ambos praticam
comportamentos no sentido de causar a morte do recémnascido;
somente a parturiente executa a conduta de matar o
próprio filho, com a participação do terceiro;
c)
somente o terceiro executa a conduta de matar o filho da
parturiente, contando com o auxílio desta.
Para que as hipóteses sejam resolvidas corretamente, mister se
faz alertar para as determinações contidas nos arts. 29 e 30 do
Código Penal, que dizem, respectivamente:
Art. 29. Quem, de qualquer modo,
concorre para o crime incide nas
penas a este cominadas, na medida
de sua culpabilidade.
Art. 30. Não se comunicam as
circunstâncias e as condições de
caráter
pessoal,
salvo
quando
elementares do crime.
O primeiro raciocínio que deveríamos fazer seria no sentido de
que a condição de parturiente e a influência do estado puerperal
sobre o animus são condições de caráter pessoal. A regra geral
determina, assim, que não se comuniquem ao coparticipante, salvo
nos casos em que figurarem como elementos do tipo.
Por elementos ou elementares devemos considerar todos
aqueles dados indispensáveis à definição típica, sem os quais o fato
se torna atípico ou há, no mínimo, desclassificação.
Se, por exemplo, a parturiente mata o próprio filho, logo após o
parto, sem que tenha agido influenciada pelo estado puerperal, a
ausência dessa elementar (sob a influência do estado puerperal)
fará com que seja responsabilizada pelo resultado morte a título de
homicídio. Haverá, portanto, uma desclassificação do delito de
infanticídio para o crime de homicídio.
Percebe-se, pois, a importância de se concluir pela existência de
uma elementar. As circunstâncias, ao contrário, são dados
periféricos à definição típica. Não interferem na figura típica em si,
somente tendo a finalidade de fazer com que a pena seja
aumentada ou diminuída. Nada mais.
No caso em exame, como já deixamos antever, a influência do
estado puerperal não pode ser considerada mera circunstância,
mas, sim, elementar do tipo do art. 123, que tem vida autônoma
comparativamente ao delito do art. 121 ambos do Código Penal.
Em razão disso, nos termos do art. 30 do Código Penal, se for
do conhecimento do terceiro que, de alguma forma, concorre para o
crime, deverá a ele se comunicar.
Partindo desses pressupostos, vamos trabalhar com as hipóteses
apresentadas. Inicialmente, parturiente e terceiro praticam a conduta
núcleo do art. 123 do diploma repressivo, que é o verbo matar.
Ambos, portanto, praticam atos de execução no sentido de causar a
morte, por exemplo, do recém-nascido.
A gestante, não temos dúvida, que atua influenciada pelo
estado puerperal, causando a morte do próprio filho logo após o
parto, deverá ser responsabilizada pelo infanticídio. O terceiro, que
também executa a ação de matar, da mesma forma, deverá
responder pelo mesmo delito, conforme determina o art. 30 do
Código Penal.
Fragoso diz ser inadmissível o concurso de pessoas no crime
de infanticídio, argumentando que “o privilégio se funda numa
diminuição da imputabilidade, que não é possível estender aos
partícipes. Na hipótese de coautoria (realização de atos de
execução por parte do terceiro), parece-nos evidente que o crime
deste será o de homicídio.”115
Em defesa de nosso posicionamento, trazemos à colação os
ensinamentos de Noronha que, com particular lucidez, afirma:
“Não há dúvida alguma de que o estado puerperal é
circunstância (isto é, estado, condição, particularidade etc.)
pessoal e que, sendo elementar do delito, comunica-se, ex vi do
art. 30, aos copartícipes. Só mediante texto expresso tal regra
poderia ser derrogada.”116
E conclui o renomado autor:
“A não comunicação ao corréu só seria compreensível se o
infanticídio fosse mero caso de atenuação do homicídio e não
um tipo inteiramente à parte, completamente autônomo em
nossa lei.”117
As observações feitas por Noronha são precisas. O infanticídio,
ao contrário do que afirma a doutrina, permissa vênia, não é
modalidade de homicídio privilegiado. Seria se figurasse como um
parágrafo do art. 121 do Código Penal. Cuida-se, portanto, de
verdadeiro delito autônomo, razão pela qual tudo aquilo que estiver
contido em seu tipo será considerado elementar, e não
circunstância, devendo, pois, nos termos da determinação contida
no art. 30 do Código Penal, ser comunicado ao coparticipante,
desde que todos os elementos sejam de seu conhecimento.
Fosse o delito de infanticídio previsto simplesmente como um
parágrafo do art. 121 do Código Penal, deveria ser reconhecido
como modalidade de homicídio privilegiado e, consequentemente,
seus dados seriam considerados circunstâncias, deixando, a partir
de então, de acordo com a mesma regra já apontada no art. 30 do
diploma repressivo, de se comunicar aos coparticipantes.
Não tendo sido essa a opção da lei penal, todos aqueles que,
juntamente com a parturiente, praticarem atos de execução
tendentes a produzir a morte do recém-nascido ou do nascente, se
conhecerem o fato de que aquela atua influenciada pelo estado
puerperal, deverão ser, infelizmente, beneficiados com o
reconhecimento do infanticídio.
Quando é a própria parturiente que, sozinha, causa a morte do
recém-nascido, mas com a participação de terceiro que, por
exemplo, a auxilia materialmente, fornecendo--lhe o instrumento do
crime, ou orientando-a sobre como utilizá-lo, ambos, da mesma
forma, responderão pelo infanticídio, já que a parturiente atuava
influenciada pelo estado puerperal e o terceiro que a auxiliou
conhecia essa particular condição, concorrendo, portanto, para o
sucesso do infanticídio.
A última hipótese seria aquela em que somente o terceiro
praticasse os atos de execução, com o auxílio e a mando da
parturiente, que atua influenciada pelo estado puerperal. Damásio,
com precisão, alerta:
“Se o terceiro mata a criança, a mando da mãe, qual o fato
principal determinado pelo induzimento? Homicídio ou
infanticídio? Não pode ser homicídio, uma vez que, se assim
fosse, haveria outra incongruência: se a mãe matasse a
criança, responderia por delito menos grave (infanticídio); se
induzisse ou instigasse o terceiro a executar a morte do sujeito
passivo, responderia por delito mais grave (coautoria no
homicídio).
Segundo entendemos, o terceiro deveria responder por delito
de homicídio. Entretanto, diante da formulação típica desse
crime em nossa legislação, não há fugir à regra do art. 30:
como a influência do estado puerperal e a relação de
parentesco são elementos do tipo, comunicam-se entre os fatos
dos participantes. Diante disso, o terceiro responde por delito
de infanticídio. Não deveria ser assim. O crime de terceiro
deveria ser homicídio. Para nós, a solução do problema está
em transformar o delito de infanticídio em tipo privilegiado de
homicídio.”118
Em suma, se o terceiro acede à vontade da parturiente que,
influenciada pelo estado puerperal, dirige finalisticamente sua
conduta no sentido de causar, durante o parto ou logo após, a morte
do recém-nascido ou nascente, em qualquer das modalidades de
concurso de pessoas, de acordo com a regra contida no art. 30 do
Código Penal, deverá ser responsabilizado pelo delito de
infanticídio.
4.12.4
Julgamento pelo Júri sem a presença da ré
O art. 457 e parágrafos do Código de Processo Penal, com a
nova redação que lhe foi conferida pela Lei nº 11.689, de 9 de junho
de 2008, cuidou do comparecimento do(a) acusado(a) à sessão de
julgamento pelo Tribunal do Júri dizendo:
Art. 457. O julgamento não será
adiado pelo não comparecimento do
acusado solto, do assistente ou do
advogado do querelante, que tiver
sido regularmente intimado.
§ 1º Os pedidos de adiamento e as
justificações de não comparecimento
deverão ser, salvo comprovado motivo
de
força
maior,
previamente
submetidos à apreciação do juiz
presidente do Tribunal do Júri. § 2º Se
o acusado preso não for conduzido, o
julgamento será adiado para o
primeiro dia desimpedido da mesma
reunião, salvo se houver pedido de
dispensa
de
comparecimento
subscrito por ele e seu defensor.
4.12.5
Aplicação das circunstâncias agravantes do art. 61, II, e,
segunda figura, e h, primeira figura, do Código Penal3
Tratando-se de crime de infanticídio, como o fato narrado no
tipo penal diz respeito à conduta da mãe que, influenciada pelo
estado puerperal, causa a morte do próprio filho, durante o parto ou
logo após, caberia a aplicação da circunstância agravante prevista
no art. 61, II, e, segunda figura (ter cometido o crime contra
descendente)?
Não, pois, caso contrário, estaríamos fazendo uso do chamado
bis in idem, uma vez que a própria redação contida no caput do art.
61 do Código Penal diz serem “circunstâncias que sempre agravam
a pena, quando não constituem ou qualificam o crime.”
Na infração penal em estudo, a condição de filho é elementar
constitutiva do delito de infanticídio, razão pela qual a pena não
poderá ser agravada no segundo momento do critério trifásico
previsto pelo art. 68 do Código Penal.
Da mesma forma, não terá aplicação a circunstância agravante
prevista na primeira figura, da alínea h do inciso II do art. 61 do
mesmo diploma legal, vale dizer, ter cometido o crime contra
criança, haja vista ser essa condição elementar do tipo penal que
prevê o infanticídio.
4.13
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: somente a mãe.
Passivo: o próprio filho.
Objeto material
O nascente ou o neonato.
Bem(ns)
protegido(s)
Vida do
neonato.
juridicamente
nascente
ou
do
Prova pericial
Conforme esclarece Francisco
Dirceu Barros (2007, p. 125), “o
entendimento da jurisprudência
majoritária é no sentido da
dispensa da perícia médica
para a constatação do estado
puerperal”.
Elemento subjetivo
»
»
Somente o dolo, direto ou
eventual.
Não
há
previsão
de
modalidade culposa.
Modalidades
omissiva
»
comissiva
e
O delito de infanticídio
pode
ser
praticado
comissiva
ou
omissivamente (conforme
art. 13, § 2º, do CP).
»
O crime pode ser omissivo
impróprio (uma vez que o
sujeito ativo goza do status
de garantidor).
Consumação e tentativa
»
Crime material, consumase com a morte do
nascente ou do neonato,
daí a necessidade de ser
produzida prova no sentido
de se verificar se, durante
os atos de execução,
estava vivo o nascente ou
neonato,
pois,
caso
contrário, estaremos diante
da hipótese de crime
impossível, em razão da
»
absoluta impropriedade do
objeto.
É admissível a tentativa.
5.
ABORTO
Aborto provocado pela gestante ou
com seu consentimento
Art. 124. Provocar aborto em si
mesma ou consentir que outrem lho
provoque:
Pena – detenção, de um a três anos.
Aborto provocado por terceiro Art.
125. Provocar aborto, sem o
consentimento da gestante:
Pena – reclusão, de três a dez anos.
Art. 126. Provocar aborto com o
consentimento da gestante:
Pena – reclusão, de um a quatro
anos.
Parágrafo único. Aplica-se a pena do
artigo anterior, se a gestante não é
maior de quatorze anos, ou é alienada
ou
débil
mental,
ou
se
o
consentimento é obtido mediante
fraude, grave ameaça ou violência.
Forma qualificada Art. 127. As
penas cominadas nos dois artigos
anteriores são aumentadas de um
terço, se, em consequência do aborto
ou dos meios empregados para
provocá-lo, a gestante sofre lesão
corporal de natureza grave; e são
duplicadas, se, por qualquer dessas
causas, lhe sobrevém a morte.
Art. 128. Não se pune o aborto
praticado por médico:
Aborto necessário
I – se não há outro meio de salvar a
vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez
resultante de estupro
II – se a gravidez resulta de estupro e
o
aborto
é
precedido
de
consentimento da gestante ou,
quando incapaz, de seu representante
legal.
5.1
Introdução119
Talvez o aborto seja uma das infrações penais mais
controvertidas atualmente.
Nosso Código Penal não define claramente o aborto, usando
tão somente a expressão provocar aborto, ficando a cargo da
doutrina e da jurisprudência o esclarecimento dessa expressão.
Aníbal Bruno preleciona:
“Segundo se admite geralmente, provocar aborto é interromper
o processo fisiológico da gestação, com a consequente morte
do feto.
Tem-se admitido muitas vezes o aborto ou como a expulsão
prematura do feto, ou como a interrupção do processo de
gestação. Mas nem um nem outro desses fatos bastará
isoladamente para caracterizá-lo.”120
Ou, ainda, na definição proposta por Frederico Marques:
“Para o Direito Penal e do ponto de vista médico-legal, o aborto
é a interrupção voluntária da gravidez, com a morte do produto
da concepção.”121
A todo instante são travadas discussões que ora giram em
torno da sua revogação, ora da sua manutenção no nosso Código
Penal.
Um dos argumentos principais daqueles que pretendem
suprimir a incriminação do aborto é justamente o fato de que,
embora proibido pela lei penal, sua realização é frequente e
constante e, o que é pior, em clínicas clandestinas que colocam em
risco também a vida da gestante.
Por outro lado, há os defensores da vida, principalmente a do
ser que está em formação. Quando a gestante engravida, uma nova
vida começa a crescer em seu útero.
No livro de Jeremias, constante do Antigo Testamento,
percebemos, pela Palavra de Deus, que Ele já nos conhecia antes
mesmo de haver a fecundação do óvulo materno, pelo
espermatozoide do homem. Quando o Senhor constituiu Jeremias
como profeta, Ele o tinha feito antes mesmo do seu nascimento. Na
verdade, antes mesmo que se tivesse formado no ventre materno.
Vejamos, literalmente, o que diz esta passagem no livro de
Jeremias, Capítulo 1, versículos 5 e 6:
“Antes que eu te formasse no ventre materno, eu te conheci, e,
antes que saísses da madre, te consagrei, e te constitui profeta
às nações.”122
Isso significa que, embora não saibamos, Deus tem um
propósito na vida de cada um de nós, razão pela qual, a não ser por
situações excepcionais, não podemos tirar a vida de um
semelhante, não importando o seu tamanho.
Ainda no livro de Salmos, no Capítulo 139, o salmista Davi, no
versículo 16, diz:
“Os teus olhos me viram a substância ainda informe, e no teu
livro foram escritos todos os meus dias, cada um deles escrito e
determinado quando nem um deles havia ainda.”123
O problema no delito de aborto é que não percebemos a dor
sofrida pelo óvulo, pelo embrião ou mesmo pelo feto. Como não
presenciamos, não enxergamos, não ouvimos o seu sofrimento,
aceitamos a morte dele com tranquilidade.
A vida, independentemente do seu tempo, deve ser protegida.
Qual a diferença entre causar a morte de um ser que possui apenas
10 dias de vida, mesmo que no útero materno, e matar outro que já
conta com 10 anos de idade? Nenhuma, pois vida é vida, não
importando sua quantidade de tempo.
O Código Penal, quebrando a regra trazida pela teoria monista,
que será analisada mais adiante, pune, de forma diversa, dois
personagens que estão envolvidos diretamente no aborto, vale
dizer, a gestante e o terceiro que nela realiza as manobras
abortivas.
Caso a própria gestante execute as manobras tendentes à
expulsão do feto, praticará o crime de autoaborto. Se for um terceiro
que o realiza, devemos observar se o seu comportamento se deu
com ou sem o consentimento da gestante, pois as penas são
diferentes para cada uma dessas situações.
Houve, também, previsão para as hipóteses em que a gestante
sofre lesão corporal de natureza grave, ou ocorre sua morte,
havendo, outrossim, uma causa especial de aumento de pena para
cada um desses resultados agravadores.
Também a lei penal fez previsão expressa da possibilidade de
realização do aborto nos casos em que a vida da gestante correr
risco com a manutenção da gravidez, ou quando esta for resultante
de estupro, desde que o aborto seja precedido de seu
consentimento ou, quando incapaz, de seu representante legal.
5.2
Classificação doutrinária
Crime de mão própria, quando realizado pela própria gestante
(autoaborto), sendo comum nas demais hipóteses quanto ao sujeito
ativo; considera-se próprio quanto ao sujeito passivo, pois somente
o feto e a mulher grávida podem figurar nessa condição; pode ser
comissivo ou omissivo (desde que a omissão seja imprópria);
doloso; de dano; material; instantâneo de efeitos permanentes (caso
ocorra a morte do feto, consumando o aborto); não transeunte;
monossubjetivo; plurissubsistente; de forma livre.
5.3
Início e término da proteção pelo tipo penal do aborto
Se por intermédio da incriminação do aborto procura-se
proteger a vida, temos de saber, com precisão, a partir de quando
se tem início tal proteção. Na verdade, em alguns casos, como no
delito de aborto provocado sem o consentimento da gestante, se
precipuamente se protege a vida do feto, também se quer tutelar a
vida e a integridade física da gestante, como analisaremos em
tópico próprio.
Assim, nosso ponto de partida será detectar quando surge a
vida para fins de proteção por meio da lei penal.
A vida tem início a partir da concepção ou fecundação, isto é,
desde o momento em que o óvulo feminino é fecundado pelo
espermatozoide masculino. Contudo, para fins de proteção por
intermédio da lei penal, a vida só terá relevância após a nidação,
que diz respeito à implantação do óvulo já fecundado no útero
materno, o que ocorre 14 (catorze) dias após a fecundação.
Assim, enquanto não houver a nidação não haverá
possibilidade de proteção a ser realizada por meio da lei penal.
Dessa forma, afastamos de nosso raciocínio inúmeras discussões
relativas ao uso de dispositivos ou substâncias que seriam
consideradas abortivas, mas que não têm o condão de repercutir
juridicamente, pelo fato de não permitirem, justamente, a
implantação do óvulo já fecundado no útero materno.
Fragoso, com precisão, ressalta a controvérsia antes referida:
“O aborto consiste na interrupção da gravidez com a morte do
feto. Pressupõe, portanto, a gravidez, isto é o estado de
gestação, que, para efeitos legais, inicia-se com a implantação
do ovo na cavidade uterina. Do ponto de vista médico, a
gestação se inicia com a fecundação, ou seja, quando o ovo se
forma na trompa, pela união dos gametas masculino e feminino.
Inicia-se então a marcha do óvulo fecundado para o útero, com
a duração média de três a seis dias, dando-se a implantação no
endométrio. Daí por diante é possível o aborto.
A matéria tem sido objeto de debate em face dos efeitos dos
anovulatórios orais ou ‘pílulas anticoncepcionais’, bem como do
dispositivo intrauterino (DIU). Certas pílulas impedem a
ovulação ou o acesso do espermatozoide ao óvulo, pelas
transformações que causam no muco cervical. Em tal caso,
impede-se a concepção. Outras pílulas, no entanto, atuam após
a concepção, impedindo a implantação do ovo no endométrio.
O mesmo ocorre com os dispositivos intrauterinos, cuja ação,
para muitos, ainda não está perfeitamente explicada: é certo, no
entanto, que não impedem a concepção, mas sim a
implantação do ovo ou o seu desenvolvimento, provocando a
sua expulsão precoce. É fácil compreender que as pílulas da
segunda espécie e os DIU, que não impedem a concepção,
seriam abortivos (e não anticoncepcionais), se por aborto se
entende a interrupção da gravidez e esta se inicia com a
concepção. Todavia, a lei não especifica o que se deva
entender por aborto, que deve ser definido com critérios
normativos, tendo-se presente a valoração social que recai
sobre o fato e que conduz a restringir o crime ao período da
gravidez que se segue à nidação. Aborto é, pois, a interrupção
do processo fisiológico da gravidez desde a implantação do ovo
no útero materno até o início do parto.”124
Dessa forma, temos a nidação como termo inicial para a
proteção da vida, por intermédio do tipo penal do aborto. Portanto,
uma vez implantado o ovo no útero materno, qualquer
comportamento dirigido finalisticamente no sentido de interromper a
gravidez, pelo menos à primeira vista, será considerado aborto
(consumado ou tentado).
Isso nos leva também a elaborar outro raciocínio. Suponhamos
que o óvulo já fecundado não consiga chegar ao útero, mas se
desenvolva fora dele. Temos aqui o que a medicina denomina
gravidez ectópica que, segundo a definição contida no Manual
Merck de Medicina, seria a “gestação na qual a implantação ocorre
em outro local que não o endométrio ou a cavidade endometrial; isto
é, na cérvix, no tubo uterino, no ovário, nas cavidades abdominais
ou pélvica.”125 Ou, ainda, na definição de Jorge de Rezende, “é a
prenhez ectópica (PE) quando o ovo se aninha fora do útero. Assim
conceituada é sinônimo de prenhez extrauterina [...].”126
Não é incomum ouvirmos falar na chamada gravidez tubária,
em que o ovo se desenvolve nas trompas de Falópio. Nesse caso,
realizando-se a retirada do óvulo já fecundado, estaríamos diante do
delito de aborto? Não, uma vez que, juridicamente, somente nas
hipóteses de gravidez intrauterina é que se pode configurar o delito
em estudo.
Nesse sentido, trazemos à colação as lições de Ney Moura
Teles, quando afirma:
“A interrupção de gravidez desenvolvida fora do útero, ovárica
ou tubárica, quando o óvulo se instala na parede das trompas,
onde passa a desenvolver-se, e a da gravidez molar, com a
formação degenerativa do óvulo fecundado, não constitui
aborto. A falta de espaço impede que o feto cresça
normalmente e a gravidez é interrompida. Quando o óvulo se
aloja em outros órgãos, como nas trompas de Falópio, ovários e
até no abdome, a gravidez é caracterizada como ectópica.”127
Por outro lado, até quando é possível o raciocínio correspondente
ao delito de aborto? Se a vida, para fins de proteção pelo tipo penal
que prevê o delito de aborto, tem início a partir da nidação, o termo
ad quem para essa específica proteção se encerra com o início do
parto.
Portanto, o início do parto faz com que seja encerrada a
possibilidade de realização do aborto, passando a morte do
nascente a ser considerada homicídio ou infanticídio, dependendo
do caso concreto.
O parto, como já dissemos, tem início com: a) dilatação do colo
do útero; b) com o rompimento da membrana amniótica; ou, c)
tratando-se de parto cesariana, com a incisão das camadas
abdominais.
Merece destaque, por oportuno, que a Lei nº 11.105, de 24 de
março de 2005, revogando expressamente a Lei nº 8.974, de 5 de
janeiro de 1995, estabeleceu normas de segurança e mecanismos
de fiscalização de atividades que envolvam organismos
geneticamente modificados (OGM) e seus derivados, punindo, com
pena de detenção de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa, a utilização de
embrião em desacordo com o disposto no seu art. 5º, bem como a
prática de engenharia genética em célula germinal humana, zigoto
humano ou embrião humano e a liberação e o descarte de
organismos geneticamente modificados no meio ambiente, em
desacordo com as normas estabelecidas pela CTN-Bio e pelos
órgãos e entidades de registro e fiscalização. Nessas duas últimas
hipóteses, o agente será punido com pena de reclusão, de 1 (um) a
4 (quatro) anos, e multa, conforme se verifica, respectivamente, pela
leitura dos arts. 25 e 26 do mencionado diploma legal.
Dessa forma, se houver manipulação do ovo já fecundado
antes de sua nidação, deverá ser aplicado o mencionado diploma
legal.
Assim, concluindo com Hungria:
“O Código, ao incriminar o aborto, não distingue entre óvulo
fecundado, embrião ou feto: interrompida a gravidez antes do
seu termo normal, há crime de aborto. Qualquer que seja a fase
da gravidez (desde a concepção128 até o início do parto, isto é, o
rompimento da membrana amniótica), provocar sua interrupção
é cometer o crime de aborto. A ocisão do feto (alheio à sua
imaturidade ou ao emprego dos meios abortivos), depois de
iniciado o processo do parto, é infanticídio, e não aborto
criminoso.”129
5.4
Espécies de aborto
Podem ocorrer duas espécies de aborto, a saber:
a)
b)
natural ou espontâneo;
provocado (dolosa ou culposamente).
Ocorre o chamado aborto natural ou espontâneo quando o
próprio organismo materno se encarrega de expulsar o produto da
concepção.
Odon Ramos Maranhão salienta que os abortos “espontâneos
são atribuídos a causas mórbidas de várias categorias, que
provocam a morte fetal e expulsão do produto da concepção.”130
Jorge de Rezende, Carlos Antônio Barbosa Montenegro e José
Maria Barcellos advertem, ainda:
“Até pouco tempo, ao abortamento eram imputadas,
principalmente, causas decorrentes do ambiente, e.g. do
sistema genital feminino (meio intrauterino). Nos últimos anos,
com o surgimento de técnicas mais apuradas de análise
cromossomial (bandeamento), observou-se que parte
expressiva das mortes embrionárias é consequente a
anomalias cromossomiais (trissomias, tripoidias, 45 XO,
tetraploidias, translocações, mosaico etc.).”131
Para fins de aplicação da lei penal, não nos interessa o
chamado aborto natural ou espontâneo, haja vista que o próprio
organismo, de acordo com um critério natural, se encarrega de levar
a efeito a seleção dos óvulos fecundados que terão chances de
vingar.
Por outro lado, temos o aborto provocado, sendo esta
provocação subdividida em: dolosa e culposa, também reconhecida
como acidental.
As espécies dolosas são aquelas previstas nos arts. 124
(autoaborto ou aborto provocado com o consentimento da gestante),
125 (aborto provocado por terceiro sem o consentimento da
gestante) e 126 (aborto provocado por terceiro com o consentimento
da gestante).
Não houve previsão legal para a modalidade de provocação
culposa do aborto, razão pela qual, como veremos adiante, se uma
gestante, com seu comportamento culposo, vier a dar causa à
expulsão do feto, o fato será considerado um indiferente penal.
5.5
Sujeito ativo e sujeito passivo
Para que se possa identificar, com precisão, o sujeito ativo e o
sujeito passivo do aborto, faz-se mister uma análise individualizada
de cada figura típica constante dos arts. 124, 125 e 126 do Código
Penal.
O art. 124 fez a previsão do aborto provocado pela gestante
(autoaborto) ou o aborto provocado com seu consentimento. No
autoaborto, por ser um crime de mão própria, temos somente a
gestante como sujeito ativo do crime, sendo o óvulo fecundado,
embrião ou feto, ou seja, o produto da concepção, protegido em
suas várias etapas de desenvolvimento.
Já no art. 125, que prevê o delito de aborto provocado por
terceiro, sem o consentimento da gestante, tem-se entendido que
qualquer pessoa pode ser sujeito ativo dessa modalidade de aborto,
uma vez que o tipo penal não exige nenhuma qualidade especial,
sendo o sujeito passivo, de forma precípua, o produto da concepção
e, de maneira secundária, a própria gestante. Conforme preconiza
Cezar Roberto Bitencourt, “nessa espécie de aborto, há dupla
subjetividade passiva: o feto e a gestante.”132
A última modalidade diz respeito ao aborto provocado por
terceiro, com o consentimento da gestante. Aqui também qualquer
pessoa poderá ser sujeito ativo do crime. Quanto ao sujeito passivo,
entendemos que somente o fruto da concepção (óvulo fecundado,
embrião ou feto) é que poderá gozar desse status, pois que, se a
gestante permitir que com ela sejam praticadas as manobras
abortivas, as lesões de natureza leve porventura sofridas não a
conduzirão a também assumir o status de sujeito passivo, dado o
seu consentimento. Contudo, sendo graves as lesões ou ocorrendo
a morte da gestante, esta também figurará como sujeito passivo,
mesmo que secundariamente, haja vista a invalidade de seu
consentimento, em decorrência da gravidade dos resultados.
5.6
Bem juridicamente protegido e objeto material
O delito de aborto encontra-se no Capítulo I do Título I do
Código Penal, correspondente aos crimes contra a vida, razão pela
qual, de acordo com a sua própria situação topográfica, o bem
juridicamente protegido, de forma precípua, por meio dos três tipos
penais incriminadores, é a vida humana em desenvolvimento.
Luiz Regis Prado alerta que, de modo geral:
“No aborto provocado por terceiro (com ou sem o
consentimento da gestante) tutelam-se também – ao lado da
vida humana dependente (do embrião ou do feto) – a vida e a
incolumidade física e psíquica da mulher grávida. Todavia,
apenas é possível vislumbrar a liberdade ou a integridade
pessoal como bens jurídicos secundariamente protegidos em se
tratando de aborto não consentido (art. 125, CP) ou qualificado
pelo resultado (art. 127, CP).”133
O objeto material do delito de aborto pode ser o óvulo
fecundado, o embrião ou o feto, razão pela qual o aborto poderá ser
considerado ovular (se cometido até os dois primeiros meses da
gravidez), embrionário (praticado no terceiro ou quarto mês de
gravidez) e, por último, fetal (quando o produto da concepção já
atingiu os cinco meses de vida intrauterina e daí em diante).
5.7
Elemento subjetivo
Os crimes de autoaborto, aborto provocado por terceiro sem o
consentimento da gestante e aborto provocado por terceiro com o
consentimento da gestante somente podem ser praticados a título
de dolo, seja ele direto ou eventual, isto é, ou o agente dirige
finalisticamente sua conduta no sentido de causar a morte do óvulo,
embrião ou feto, ou, embora não realizando um comportamento
diretamente a este fim, atua não se importando com a ocorrência do
resultado.
Assim, por exemplo, no caso daquele que agride uma mulher
sabidamente grávida, provocando o aborto e a consequente morte
do feto, tem-se que verificar o seu elemento subjetivo, a fim de que
se possa imputar-lhe corretamente o resultado por ele produzido. No
caso em estudo, se agia com dolo de causar lesão na gestante, por
exemplo, agredindo-a no rosto, se esta vier a abortar em virtude do
comportamento levado a efeito pelo agente, este terá de ser
responsabilizado pelo delito de lesão corporal qualificada pelo
resultado aborto (art. 129, § 2º, V, do CP), pois, sabendo da
gravidez, era-lhe previsível que, agredindo uma mulher naquele
estado, ela poderia abortar. Sua conduta, portanto, era dirigida a tão
somente causar lesão na gestante, sendo-lhe previsível o resultado
aborto, que efetivamente ocorreu e que terá o condão de qualificar o
seu comportamento inicial. Deve ser ressaltado, por oportuno, que
há dolo quanto às lesões corporais, e culpa no que diz respeito ao
resultado agravador (aborto), caracterizando-se um delito
nitidamente preterdoloso.
Pode acontecer, contudo, que a conduta do agente seja
dirigida, especificamente, a produzir o aborto na gestante, sem o
consentimento desta, razão pela qual responderá pelo delito de
aborto, tipificado no art. 125 do Código Penal, agindo, outrossim,
com dolo direto.
Também poderá o agente atuar com dolo eventual, uma vez
que, ao agredir uma mulher sabidamente grávida, não se importou
que esta viesse a abortar, o que realmente aconteceu. Nessa
hipótese, deverá responder pelas lesões corporais produzidas na
gestante em concurso formal impróprio com o delito de aborto, pois
agia com desígnios autônomos, aplicando-se-lhe, no caso em
exame, a regra do cúmulo material de penas.
Não houve previsão da modalidade culposa para o delito de
aborto. Assim, se a gestante, que conhecia a sua gravidez, resolve
praticar um esporte radical, por exemplo, descendo um rio
turbulento dentro de um caiaque, se em virtude da sua conduta
imprudente vier a abortar, não poderá ser responsabilizada
criminalmente, haja vista somente ter havido previsão para as
modalidades dolosas de aborto. Da mesma forma, se o agente que
se encontrava em uma fila de banco, ao ser chamado pelo painel
eletrônico, dirige-se abruptamente ao caixa, esbarrando na barriga
da gestante que se encontrava imediatamente atrás dele e, que, em
razão do impacto recebido, vem a abortar, somente responderá
pelas lesões corporais culposas produzidas com a expulsão do feto.
5.8
Consumação e tentativa
Crime material, o delito de aborto se consuma com a efetiva
morte do produto da concepção. Não há necessidade de que o
óvulo fecundado, embrião ou o feto seja expulso, podendo,
inclusive, ocorrer sua petrificação no útero materno.
Na brilhante explicação de Noronha:
“Consuma-se o crime com a morte do feto, resultante da
interrupção da gravidez. Pode ocorrer dentro do útero materno
como ser subsequente à expulsão prematura.
Carece de razão Logoz quando escreve que ‘o delito está
consumado pela expulsão do foetus’. Não é esse o momento
consumativo. Pode haver expulsão sem existir aborto, quando,
no parto acelerado, o feto continua a viver, embora com vida
precária ou deficiente; pode ser expulso, já tendo, entretanto,
sido morto no ventre materno; pode ser morto aí, e não se dar a
expulsão, e pode ser morto juntamente com a mãe, sem ser
expulso. Em todas essas hipóteses, é a morte do feto que
caracteriza o momento consumativo.”134
Fundamental é a prova de que o feto estava vivo no momento
da ação ou da omissão do agente, dirigida no sentido de causar-lhe
a morte, pois, caso contrário, já estando morto o feto no momento
da prática da conduta pelo agente, o caso será o de crime
impossível, em virtude da absoluta impropriedade do objeto.
Não exige a doutrina, para fins de caracterização do aborto, que
o feto seja viável, ou seja, que possua capacidade de
desenvolvimento que o conduza à maturação. Hungria posiciona-se
nesse sentido, afirmando:
“Para a existência do aborto, não é necessária a prova da
vitalidade do feto. Conforme adverte Hafter, pouco importa se o
feto era ou não vital, desde que o objeto da proteção penal é,
aqui, antes de tudo, a vida do feto, a vida humana em germe
[...]. Averiguado o estado fisiológico da gestação em curso, isto
é, provado que o feto estava vivo, e não era um produto
patológico (como no caso de gravidez extrauterina), não há
indagar da sua vitalidade biológica ou capacidade de atingir a
maturação. Do mesmo modo, é indiferente o grau de
maturidade do feto: em qualquer fase da vida intrauterina, a
eliminação desta é aborto.”135
No que diz respeito ao feto inviável que, com absoluta certeza,
não terá uma sobrevida após o parto, para aqueles que adotam e
trabalham com a teoria da imputação objetiva, nesse caso poderia
ser arguida a falta do incremento do risco, evitando-se, assim, a
responsabilização do agente pelo delito de aborto. A título de
raciocínio, dizem os defensores dessa teoria, que se o bem
juridicamente protegido pelo delito de aborto é, primordialmente, a
vida do ser em formação, e se, após o parto, já não haverá vida,
pois que inviável o feto, por que se punir o agente que causou o
aborto, já que seu comportamento não incrementou o risco de
morte? Nessa hipótese, o fato praticado pelo agente seria
considerado atípico, afastando-se, consequentemente, o delito de
aborto.
No que diz respeito especificamente ao feto anencéfalo, o
Supremo Tribunal Federal, na ADPF 54, decidiu a questão por
maioria, nos termos do voto do Relator, Ministro Marco Aurélio, a fim
de declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual
a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada
nos arts. 124, 126, 128, I e II, todos do diploma repressivo.
Na qualidade de crime material, podendo-se fracionar o iter
criminis, é perfeitamente admissível a tentativa de aborto. Se o
agente já tiver dado início aos atos de execução e, por
circunstâncias alheias à sua vontade, a exemplo de ter sido
surpreendido por policiais dentro da sala cirúrgica, não conseguir
consumar a infração penal, deverá ser responsabilizado pelo aborto
tentado, como também na hipótese daquele que, executando todas
as manobras necessárias à expulsão do feto, este, mesmo tendo
sido efetivamente expulso, consegue sobreviver.
Deverá, no caso concreto, ser apontado o início da execução,
distinguindo-o dos atos meramente preparatórios, que são
impuníveis de acordo com a regra prevista no inciso II do art. 14 do
Código Penal. Imagine-se a situação em que a gestante é
surpreendida na sala de espera de uma clínica que, sabidamente,
apenas tinha por finalidade praticar abortos. Aquele local já estava
sendo objeto de investigação há algum tempo, sendo que os
policiais concluíram que ali não se fazia outro procedimento a não
ser realizar abortos. Pergunta-se: a gestante que fora surpreendida
na sala de espera poderia responder pela tentativa de aborto? A
pergunta requer uma resposta mais elaborada, pois diversas teorias
procuram levar a efeito a distinção entre um ato preparatório
impunível de um ato de execução punível. Para nós, o fato seria
atípico, pois estar aguardando para ser atendida, mesmo que para
realização de um aborto, não se configura início de execução, mas
ato de mera preparação.
5.9
Modalidades comissiva e omissiva
As normas existentes nos tipos penais dos arts. 124, 125 e 126
do Código Penal são de natureza proibitiva, isto é, proíbe-se o
comportamento previsto naquelas figuras típicas, que é o de
provocar aborto. As condutas previstas expressamente são,
portanto, comissivas.
Entretanto, seria possível a prática do crime de aborto por
omissão? Sim, desde que o agente goze o status de garantidor.
Imagine-se a hipótese em que a gestante perceba um sangramento
vaginal. Almejando o aborto, não se dirige ao posto de saúde
próximo à sua casa, a fim de verificar o porquê do sangramento, que
acaba culminando com a expulsão do feto, o que teria sido evitado
se a gestante tivesse sido orientada e medicada corretamente.
Embora não tenha praticado qualquer manobra abortiva, deverá a
gestante responder pelo crime de aborto, dada sua particular
condição de garante.
Suponhamos, agora, que um médico, percebendo que uma
gestante sofria intensas dores, demore a prestar-lhe o socorro,
sendo, portanto, negligente no atendimento, e, em virtude dessa
demora, a gestante venha a abortar. Pergunta-se: o médico goza do
status de garantidor? Nas condições em que se encontrava, isto é,
dentro de um hospital, tendo a obrigação de atender os pacientes
que foram ao seu encontro, sim. Sendo garantidor, deverá
responder pelo aborto doloso? Acreditamos que não, pois, no
exemplo fornecido, o médico não desejava que a gestante
abortasse. Contudo, foi negligente no atendimento, agindo com
culpa. Como não existe a modalidade culposa de aborto, deverá o
médico responder pelas lesões corporais de natureza culposa
sofridas pela gestante decorrentes da expulsão do feto.
5.10
Causas de aumento de pena
Por uma impropriedade técnica, a rubrica constante do art. 127
do Código Penal anuncia: forma qualificada. Na verdade, percebese que no mencionado artigo não existem qualificadoras, mas, sim,
causas especiais de aumento de pena, ou majorantes, conforme se
verifica na sua redação, que diz:
Art. 127. As penas cominadas nos
dois
artigos
anteriores
são
aumentadas de um terço, se, em
consequência do aborto ou dos meios
empregados para provocá-lo, a
gestante sofre lesão corporal de
natureza grave; e são duplicadas, se,
por qualquer dessas causas lhe
sobrevém a morte.
Dessa forma, somente no terceiro momento do critério trifásico
de aplicação da pena é que o julgador, verificadas as lesões
corporais graves ou a morte da gestante, fará incidir o aumento de
um terço, ou mesmo duplicar a pena até então encontrada.
Ainda merece destaque, na redação contida no art. 127 do
Código Penal, o fato de que somente terá aplicação a majorante nas
hipóteses de aborto provocado por terceiro, com ou sem o
consentimento da gestante. Como a autolesão não é punível, à
gestante que, realizando o autoaborto, vier a causar em si mesma
lesão corporal de natureza grave, não se aplicará a causa de
aumento de pena.
Os resultados apontados no art. 127 do Código Penal – lesão
corporal grave e morte – somente podem ter sido produzidos
culposamente tratando-se, na espécie, de crime preterdoloso, ou
seja, o dolo do agente era o de produzir tão somente o aborto e,
além da morte do feto, produz lesão corporal grave na gestante ou
lhe causa a morte. Assim, as lesões corporais graves e a morte
somente podem ser imputadas ao agente a título de culpa. Se ele
queria, com o seu comportamento inicial, dirigido à realização do
aborto, produzir na gestante lesão corporal grave ou mesmo a sua
morte, responderá pelos dois delitos (aborto + lesão corporal grave
ou aborto + homicídio) em concurso formal impróprio, posto que
atua com desígnios autônomos, aplicando-se a regra do cúmulo
material de penas.
Frederico Marques ressalta:
“Só se opera a majoração da pena se o evento qualificador tiver
ocorrido por culpa do agente. Desde que o resultado, que
agrava a pena, se originar de caso fortuito, não se tem crime
qualificado pelo resultado; e se o evento foi querido, haverá
concurso de crimes: aborto e homicídio, ou aborto em concurso
com lesão corporal grave.
Como no aborto está sempre inserta a prática de lesão da
pessoa da gestante [...], será lesão corporal grave,
qualificadora, a que apresente caráter de excepcionalidade, ou
a que não represente uma consequência normal do processo
abortivo ou dos meios empregados, como os distúrbios próprios
do puerpério, a perfuração do saco amniótico etc. Noutras
palavras – deverá tratar-se de lesão que represente um quid
extraordinário, decorrente dos meios abortivos usados ou do
próprio fato do aborto.”136
5.11
Prova da vida
O aborto é um crime que deixa vestígios. Nesse caso, nos
termos do caput do art. 158 do Código de Processo Penal, quando a
infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de
delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do
acusado.
Contudo, também de acordo com o art. 167 do diploma
processual penal, não sendo possível o exame de corpo de delito,
por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá
suprir-lhe a falta.
5.12
Meios de realização do aborto
O aborto pode ser realizado com a utilização de diversos meios.
Mirabete os sintetiza, dizendo:
“Os processos utilizados podem ser químicos, orgânicos, físicos
ou psíquicos. São substâncias que provocam a intoxicação do
organismo da gestante e o consequente aborto: o fósforo, o
chumbo, o mercúrio, o arsênico (químicos), e a quinina, a
estricnina, o ópio, a beladona etc. (orgânicos). Os meios físicos
são os mecânicos (traumatismo do ovo com punção, dilatação
do colo do útero, curetagem do útero, microcesária), térmicos
(bolsas de água quente, escalda-pés etc.) ou elétricos (choque
elétrico por máquina estática). Os meios psíquicos ou morais
são os que agem sobre o psiquismo da mulher (sugestão,
susto, terror, choque moral etc.).”137
Assim, tanto pode produzir a morte do feto, por exemplo, aquele
que introduz instrumento cortante no útero da gestante, quanto
aquele que, conhecedor de que a gestante sofre da chamada
“síndrome do pânico”, cria-lhe situação de terror insuportável.
5.13
Julgamento pelo Júri, sem a presença da ré
O crime de aborto, nas suas três modalidades – autoaborto,
aborto provocado por terceiro, sem o consentimento da gestante e
aborto provocado por terceiro, com o consentimento da gestante –,
deve ser submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri, uma vez que
a vida é o bem jurídico por ele protegido.
O art. 457 e parágrafos do Código de Processo Penal, com a
nova redação que lhes foi conferida pela Lei nº 11.689, de 9 de
junho de 2008, cuidou do comparecimento do(a) acusado(a) à
sessão de julgamento pelo Tribunal do Júri, dizendo:
Art. 457. O julgamento não será
adiado pelo não comparecimento do
acusado solto, do assistente ou do
advogado do querelante, que tiver
sido regularmente intimado.
§ 1º Os pedidos de adiamento e as
justificações de não comparecimento
deverão ser, salvo comprovado motivo
de
força
maior,
previamente
submetidos à apreciação do juiz
presidente do Tribunal do Júri.
§ 2º Se o acusado preso não for
conduzido, o julgamento será adiado
para o primeiro dia desimpedido da
mesma reunião, salvo se houver
pedido
de
dispensa
de
comparecimento subscrito por ele e
seu defensor.
5.14
Pena, ação penal e suspensão condicional do processo
Ao crime de autoaborto, ou mesmo na hipótese de a gestante
consentir que nela seja realizado o aborto (art. 124 do CP), foi
cominada uma pena de detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos. Nos
casos de aborto provocado por terceiro, para aqueles que o
realizam sem o consentimento da gestante a pena será de reclusão,
de 3 (três) a 10 (dez) anos; se o delito é cometido com o
consentimento da gestante, a pena será de reclusão, de 1 (um) a 4
(quatro) anos.
Tanto no delito de autoaborto (ou mesmo quando a gestante
consente que nela seja realizado o aborto por terceiro) como no de
aborto provocado por terceiro, com o consentimento da gestante,
em virtude da pena mínima cominada a essas duas infrações
penais, tipificadas nos arts. 124 e 126 do diploma repressivo, será
permitida a proposta de suspensão condicional do processo,
presentes seus requisitos legais. Entretanto, no delito de aborto
provocado por terceiro, com o consentimento da gestante, tal
proposta restará inviabilizada se houver a produção de lesões
corporais de natureza grave ou a morte da gestante, pois serão
aplicadas as majorantes previstas no art. 127 do Código Penal,
ultrapassando, assim, o limite de 1 (um) ano previsto para a pena
mínima cominada à infração penal, determinado pelo art. 89 da Lei
nº 9.099/95.
A ação penal, em todas as modalidades de aborto, é de
iniciativa pública incondicionada.
5.15
Aborto legal
O art. 128 do Código Penal prevê duas modalidades de aborto
legal, ou seja, o aborto que pode ser realizado em virtude de
autorização da lei penal: a) aborto terapêutico (curativo) ou
profilático (preventivo); e b) aborto sentimental, humanitário ou ético.
A primeira indagação que devemos nos fazer é a seguinte: qual
a natureza jurídica dessas duas modalidades de autorização legal
para fins de realização do aborto?
Essa indagação requer uma resposta mais detalhada.
Ab initio, diz a lei penal o seguinte:
Art. 128. Não se pune o aborto
praticado por médico:
Aborto necessário
I – se não há outro meio de salvar a
vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez
resultante de estupro
II – se a gravidez resulta de estupro e
o
aborto
é
precedido
de
consentimento da gestante ou,
quando incapaz, de seu representante
legal.
No caso de aborto necessário, também conhecido por aborto
terapêutico ou profilático, não temos dúvida em afirmar que se trata
de uma causa de justificação correspondente ao estado de
necessidade.
Fragoso, analisando o inciso em questão, diz: “A primeira
hipótese é a do chamado aborto necessário ou terapêutico, que,
segundo a opinião dominante, constitui caso especial de estado de
necessidade.”138
Frederico Marques, no mesmo sentido, afirma: “Ao aborto
terapêutico, dá o Código Penal, na epígrafe do art. 128, nº I, o
nomen juris de aborto necessário, talvez para ressaltar a ratio
essendi da impunidade, que outra não é que o estado de
necessidade.”139
De maneira ainda mais enfática, Paulo José da Costa Júnior
aduz: “Despicienda a referência à presente causa de exclusão da
antijuridicidade, diante do preceito genérico do art. 24 (estado de
necessidade).”140
Não há como deixar de lado o raciocínio relativo ao estado de
necessidade no chamado aborto necessário. Isso porque, segundo
se dessume da redação do inciso I do art. 128 do Código Penal,
entre a vida da gestante e a vida do feto, a lei optou por aquela. No
caso, ambos os bens (vida da gestante e vida do feto) são
juridicamente protegidos. Um deve perecer para que o outro
subsista. A lei penal, portanto, escolheu a vida da gestante ao invés
da vida do feto. Quando estamos diante do confronto de bens
protegidos pela lei penal, estamos também, como regra, diante da
situação de estado de necessidade, desde que presentes todos os
seus requisitos, elencados no art. 24 do Código Penal.
A discussão, na verdade, diz respeito à natureza jurídica da
segunda modalidade de aborto legal, vale dizer, o chamado aborto
sentimental ou humanitário, quando a gravidez é resultante de
estupro.
Afirma Aníbal Bruno:
“Em verdade, a questão aí está muito aquém do caso em que
se trata de preservar a vida da mulher. Dificilmente se poderia
reduzir a hipótese a um estado de necessidade. Mas razões de
ordem ética ou emocional que o legislador considerou
extremamente ponderáveis têm introduzido essa descriminante
em algumas legislações, atitude incentivada por episódios
graves que realmente reclamavam medidas de exceção.”141
E continua o grande penalista:
“No curso das duas grandes guerras, os inúmeros atos de
violência sexual praticados por soldados inimigos nos países
invadidos, com a consequência de numerosas concepções
ilegítimas, deram ao problema uma dimensão particular,
fazendo-o sair do domínio do interesse privado para o do
interesse público, político, suscitando, sobretudo depois da
primeira guerra, ardorosos debates. Foi então legitimada a
intervenção abortiva nos casos de concepção resultante de
violência.”142
A maioria de nossos doutrinadores entende que, na hipótese de
gravidez resultante de estupro, o aborto realizado pela gestante não
será considerado antijurídico.
Frederico Marques diz que, “nos termos em que o situou o
Código Penal, no art. 128, nº II, trata-se de fato típico penalmente
lícito. Afasta a lei a antijuridicidade da ação de provocar aborto, por
entender que a gravidez, no caso, produz dano altamente afrontoso
para a pessoa da mulher, o que significa que é o estado de
necessidade a ratio essendi da impunidade do fato típico.”143 Essa é
também a posição de Fragoso.144 Hungria, cuidando do aborto
sentimental, assevera que “nada justifica que se obrigue a mulher
estuprada a aceitar uma maternidade odiosa, que dê vida a um ser
que lhe recordará perpetuamente o horrível episódio da violência
sofrida. Segundo Binding, seria profundamente iníqua a terrível
exigência do direito de que a mulher suporte o fruto de sua
involuntária desonra.”145
Embora seja esse o pensamento de Hungria, em seu texto não
fica evidenciada sua posição quanto à natureza jurídica do inciso II
do art. 128 do Código Penal, ao contrário da sua conclusão quanto à
natureza jurídica do inciso I do mencionado artigo, que cuida do
chamado aborto terapêutico ou profilático. Ali, diz um dos maiores
penalistas que o Brasil já conheceu, “trata-se de um caso
especialmente destacado de estado de necessidade.”146
Para que pudéssemos concordar com a maioria de nossos
autores, seria preciso amoldar, com precisão, a hipótese prevista no
inciso II do art. 128 do Código Penal a uma das causas legais de
exclusão da ilicitude elencadas no art. 23 do Código Penal, vale
dizer: estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento
de dever legal e exercício regular de direito.
Já tivemos oportunidade de salientar, quando do estudo da
Parte Geral do Código Penal, que, para que se possa falar em
estado de necessidade, é preciso que haja um confronto de bens
igualmente protegidos pelo ordenamento jurídico. Duas são as
teorias que disputam o tratamento do estado de necessidade: teoria
unitária e teoria diferenciadora. Para a teoria unitária, adotada pelo
nosso Código Penal, todo estado de necessidade é justificante, isto
é, afasta a ilicitude da conduta típica levada a efeito pelo agente. A
teoria diferenciadora, a seu turno, traça uma distinção entre o
estado de necessidade justificante (que exclui a ilicitude do fato) e o
estado de necessidade exculpante (que afeta a culpabilidade). Para
essa teoria, se o bem que se quer preservar for de valor superior
àquele contra o qual se dirige a conduta do agente, estaremos
diante de um estado de necessidade justificante; se o bem que se
quer preservar for de valor inferior ao agredido, o estado de
necessidade será exculpante; se os bens forem de valor idêntico
existe controvérsia doutrinária e jurisprudencial, sendo que uma
corrente opta pelo estado de necessidade justificante e outra, pelo
exculpante.
Enfim, no inciso II do art. 128 do Código Penal há dois bens em
confronto: de um lado, a vida do feto, tutelada pelo nosso
ordenamento jurídico desde a concepção; do outro, como sugere
Frederico Marques, a honra da mulher vítima de estupro, ou a dor
pela recordação dos momentos terríveis pelos quais passou nas
mãos do estuprador. Adotando-se a teoria unitária ou a
diferenciadora, a solução para este caso seria a mesma. Pela
redação do art. 24 do Código Penal, somente se pode alegar o
estado de necessidade quando o sacrifício, nas circunstâncias, não
era razoável exigir-se. Ora, há uma vida em crescimento no útero
materno. Não entendemos razoável no confronto entre a vida do ser
humano e a honra da gestante estuprada optar por esse último bem,
razão pela qual, mesmo adotando-se a teoria unitária, não
poderíamos falar em estado de necessidade. Com relação à teoria
diferenciadora, o tema fica mais evidente. Se o bem vida é de valor
superior ao bem honra, para ela o problema se resolve não em sede
de ilicitude, mas, sim, no terreno da culpabilidade, afastando-se a
reprovabilidade da conduta da gestante que pratica o aborto.
Da mesma forma não conseguimos visualizar a aplicação das
demais causas excludentes da ilicitude ao inciso II do art. 128 do
Código Penal. Não se trata de legítima defesa, pois o feto não está
agredindo injustamente a gestante; não é o caso de estrito
cumprimento de dever legal, haja vista a inexistência do dever legal
de matar, a não ser nos casos excepcionais, previstos no art. 84,
XIX, da Constituição Federal, cuja sinistra função caberá àquele que
exercer o papel de carrasco; e muito menos se pode argumentar
com o exercício regular de direito, uma vez que o ordenamento
jurídico quer, na verdade, é a preservação da vida, e não a sua
destruição.
Entendemos, com a devida vênia das posições em contrário,
que, no inciso II do art. 128 do Código Penal, o legislador cuidou de
uma hipótese de inexigibilidade de conduta diversa, não se podendo
exigir da gestante que sofreu a violência sexual a manutenção da
sua gravidez, razão pela qual, optando-se pelo aborto, o fato será
típico e ilícito, mas deixará de ser culpável.147
Outros aspectos merecem ainda ser analisados no que diz
respeito às hipóteses de aborto legal, a saber:
a)
b)
A)
possibilidade de analogia in bonam partem quando o
aborto não for realizado por médico;
representante legal da incapaz que consente na realização
do aborto, contrariamente à vontade da gestante.
O caput do art. 128 do Código Penal determina que não é
punível o aborto praticado por médico nas hipóteses dos
seus incisos I e II. No primeiro caso, se a gestante correr
risco de morrer com a manutenção da gravidez, poderia
outra pessoa, que não gozasse da qualidade de médico, a
exemplo do que ocorre com as parteiras, nela realizar o
aborto com o fim de salvar-lhe a vida? Entendemos que a
resposta, levando em consideração a natureza jurídica do
inciso I do art. 128 do Código Penal, só pode ser positiva.
Estaria o agente, que atua no lugar do médico, agindo em
estado de necessidade de terceiro.
Contudo, questão mais tormentosa se encontra no inciso II
do mencionado artigo. Isso porque sua natureza é diversa
daquela consignada no inciso I do art. 128 do diploma
repressivo, cuidando-se de uma causa legal de exclusão
da culpabilidade pela inexigibilidade de conduta diversa.
Frederico Marques posiciona-se radicalmente contra a
possibilidade de realização do aborto por outra pessoa que
não o médico:
“Aceita que foi, porém, a impunidade dessa forma de aborto,
deve-se aplicar a lei, no que diz respeito às exigências nela
contidas, com o mais absoluto rigor, só admitindo a licitude da
ação, quando preenchidos, irrestritamente, os pressupostos
exarados na norma permissiva.
Em primeiro lugar, nem a gestante, e muito menos parteiras ou
pessoas sem habilitação profissional, podem provocar o aborto
para interromper gestação oriunda de estupro. Em segundo
lugar, indeclinável é o consentimento da gestante ou de seu
representante legal, como antecedente ou prius da operação
abortiva. Por fim, indispensável é que o médico tenha
elementos seguros sobre a existência do estupro.
Faltando um desses requisitos, que seja, o aborto será
criminoso.”148
Luiz Regis Prado, por seu turno, fundamenta a
impossibilidade do recurso da analogia in bonam partem,
assim se manifestando:
“A regra do art. 128, II, do Código Penal é norma penal não
incriminadora excepcional ou singular em relação à norma não
incriminadora geral (art. 23, CP). De conseguinte, como se trata
de jus singulare, em princípio, não é de ser aplicado o
procedimento analógico, ainda que in bonam partem.”149
Apesar da força dos argumentos expendidos, não
entendemos ser essa a melhor conclusão. Inicialmente,
somente devemos afastar o recurso da chamada analogia
in bonam partem quando tivermos a convicção de que foi
intenção da lei deixar de lado determinada hipótese. Do
contrário, quando houver necessidade de preservar o
tratamento isonômico, o recurso a ela se fará necessário.
Imagine-se a seguinte hipótese: uma mulher que reside em
uma aldeia de difícil acesso, no interior da floresta
amazônica, por exemplo, é vítima de um delito de estupro.
B)
Não tendo condições de sair de sua aldeia, tampouco
existindo possibilidade de receber, em sua residência, a
visita de um médico, solicita à parteira da região que
realize o aborto, depois de narrar-lhe os fatos que a
motivaram ao ato extremo. Pergunta-se: não estaria
também a parteira acobertada pelo inciso II do art. 128 do
Código Penal, ou, em decorrência do fato de não haver
médicos disponíveis na região, a gestante, por esse
motivo, deveria levar sua gravidez a termo, contrariamente
à sua vontade?
Entendemos, aqui, perfeitamente admissível a analogia in
bonam partem, isentando a parteira de qualquer
responsabilidade penal.
Para que seja realizado o aborto há necessidade imperiosa
de que a gestante consinta a sua realização.
Pode ocorrer, e não raro acontece, que a gestante, mesmo
tendo sido violentada, leve a termo a sua gravidez e dê à
luz ao seu filho. Normalmente, após o nascimento da
criança, a mãe apaga da sua mente a violência por ela
sofrida, pois o amor pelo filho sobreleva todas as coisas.
Entretanto, também não é incomum que a gestante, por
outro lado, queira se submeter ao aborto, nos casos de
gravidez que tenha sido fruto de violência sexual. Para
tanto, deverá emitir seu consentimento de maneira
inequívoca, sem o qual se torna impossível a realização do
aborto.
O que fazer, então, diante da divergência de opiniões entre
a gestante incapaz e seu representante legal. Suponha-se
que o representante legal da gestante, que contava com
apenas 14 anos de idade, queira que ela se submeta ao
aborto, ao passo que ela própria, mesmo tendo sido
violentada, deseje dar a luz ao seu filho?
Entendemos que, havendo divergência de posições, deve
prevalecer o raciocínio pela vida do feto, não importando a
incapacidade da gestante.
O suprimento de seu consentimento pelo de seu
representante legal só deve ser entendido no sentido de
corroborar a sua decisão na eliminação do produto da
concepção. Caso contrário, se deseja levar a gravidez a
termo, sua vontade deverá ser atendida.
Em 1º de agosto de 2013, foi editada a Lei nº 12.845, que
dispôs sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em
situação de violência sexual, considerando como tal aquelas, para
efeitos da mencionada lei, que tenham sido vítimas de atividade
sexual não consentida, como é o caso do delito de estupro, que
tenha resultado em gravidez.150
Antecedendo o referido diploma legal, em 13 de março de 2013,
foi publicado o Decreto nº 7.958, que estabeleceu diretrizes para o
atendimento humanizado às vítimas de violência sexual pelos
profissionais de segurança pública e da rede de atendimento do
Sistema Único de Saúde.
5.16
5.16.1
Destaques
Gestante que perde o filho em acidente de trânsito
Pode acontecer que a própria gestante, estando na direção de
seu veículo automotor, venha, por exemplo, culposamente, a colidir
com um poste, causando, em virtude do impacto sofrido, o aborto.
Nesse caso, não deverá ser responsabilizada criminalmente,
haja vista a inexistência de previsão legal para a modalidade
culposa de aborto.
De outro lado, pode ser que a gestante tenha sido vítima de
acidente de trânsito, tendo sido seu veículo atingido por terceiro
que, agindo de forma imprudente, dirigindo em velocidade
excessiva, com ela colidiu, causando-lhe, também, em virtude do
impacto, o aborto.
Aqui, ao contrário do raciocínio anterior, o agente causador do
aborto, embora não possa ser responsabilizado penalmente por
esse resultado, poderá responder pelas lesões corporais de
natureza culposa produzidas na gestante em virtude da expulsão
prematura do produto da concepção.
Como o acidente ocorreu na direção de veículo automotor, sua
conduta, em tese, se amoldará ao art. 303 da Lei nº 9.503/97
(Código de Trânsito Brasileiro), que diz:
Art. 303. Praticar lesão corporal
culposa na direção de veículo
automotor:
Penas – detenção, de 6 (seis) meses
a 2 (dois) anos e suspensão ou
proibição de se obter a permissão ou
a habilitação para dirigir veículo
automotor.
5.16.2
Morte de fetos gêmeos
Suponha-se que o agente coloque substância química abortiva
na refeição da gestante, almejando a interrupção da gravidez que,
de antemão, era sabidamente gemelar.
O agente, portanto, além de conhecer o estado gravídico da
gestante, sabia que a gestação era de fetos gêmeos.
Ocorrendo a morte dos produtos da concepção, quais seriam os
crimes por ele praticados?
No caso em exame, aplica-se a regra do concurso formal
impróprio de crimes, contida na segunda parte do art. 70, caput, do
Código Penal, haja vista que com a sua conduta única o agente
produziu dois resultados que faziam parte do seu dolo, agindo,
portanto, com desígnios autônomos com relação a eles.
Nesse primeiro exemplo não existe qualquer dificuldade de
raciocínio. Imagine-se, agora, entretanto, que o agente queria
produzir o resultado aborto na gestante, acreditando que a sua
gravidez era simples, quando, na verdade, havia concebido fetos
gêmeos, causando a morte de ambos.
Pergunta-se: deverá o agente responder pelo aborto em
concurso formal, da mesma forma que no exemplo anterior?
Aqui, entendemos que não. Embora tenha atuado no sentido de
praticar o aborto, ministrando à gestante substância química
abortiva, somente poderá responder subjetivamente pelos
resultados produzidos. Se não conhecia a gravidez gemelar,
segundo entendemos, não lhe poderá ser aplicada a regra do
concurso formal impróprio, devendo responder por um único aborto.
Podemos raciocinar, ainda, com uma terceira hipótese.
Suponha-se agora que a gestante, almejando praticar o aborto, vá
até uma clínica que realize esse tipo de serviço. No início de sua
curetagem, o “médico” percebe que sua gravidez era gemelar, o que
não era de seu conhecimento. O médico, sem comunicar tal fato à
gestante, interrompe a gravidez com a retirada de ambos os fetos,
que morrem.
Pergunta-se: quais os delitos praticados pelo médico que
realizou o aborto com o consentimento da gestante, e pela gestante
que a ele se submeteu volitivamente?
Entendemos que o médico deverá ser responsabilizado pelos
dois abortos, aplicando-se a regra do concurso formal impróprio,
vale dizer, embora conduta única, produtora de dois resultados, pelo
fato de ter agido com desígnios autônomos, ser-lhe-á aplicado o
cúmulo material, devendo ser somadas as penas dos dois abortos.
Já a gestante, como desconhecia a gravidez gemelar, somente
poderá responder por um único delito de aborto, afastando o
concurso de crimes.
5.16.3
Agressão à mulher sabidamente grávida
Vamos trabalhar com o seguinte exemplo: assim que o agente
chega em casa, tem início uma discussão com sua mulher, que se
encontra grávida. Durante a discussão, o marido se descontrola e a
agride, fazendo com que a gestante aborte. Pergunta-se: qual o
crime que ele cometeu? Lesão corporal qualificada pelo resultado
aborto ou o delito de aborto?
Essa resposta, como sabemos, vai depender do elemento
subjetivo com que atuava o agente. Se sua conduta foi dirigida
finalisticamente a causar lesão corporal em sua esposa e desse
comportamento adveio o resultado aborto, que lhe era previsível, ela
se amoldará ao tipo penal previsto pelo art. 129, § 2º, V, do diploma
repressivo, ou seja, lesão corporal qualificada pelo resultado aborto.
Agora, se ao agredir a sua esposa pretendia a interrupção da
gravidez, terá cometido o delito de aborto.
Se o réu se calar, valendo-se do seu direito ao silêncio
constitucionalmente assegurado (art. 5º, LXIII, da CF), como saber a
que se dirigia finalisticamente seu comportamento? Na verdade, os
fatos falarão por si. Se agrediu sua esposa, por exemplo,
desferindo-lhe um violento soco no rosto, o seu dolo, ao que parece,
não era o de produzir o aborto. Contudo, se das agressões
praticadas contra sua esposa, que sabidamente se encontrava
grávida, sobrevém o resultado aborto, será responsabilizado pelas
lesões corporais gravíssimas, isto é, qualificada pelo resultado
aborto, uma vez que este último lhe era previsível. Agora, se agride
sua esposa desferindo-lhe um pontapé na barriga, obviamente que
o seu dolo era o de abortar o produto da concepção.
Na dúvida, entretanto, esta deverá pender em seu benefício,
uma vez que in dubio pro reo, devendo o agente ser
responsabilizado pela infração penal menos grave, no caso a lesão
corporal qualificada pelo resultado aborto.
Se, agindo com dolo de lesão, agredir uma mulher grávida que,
contudo, não vier a abortar, ao agente será aplicada a circunstância
agravante prevista no art. 61, II, h, última figura, do Código Penal,
ou seja, agrava-se a pena por ter cometido o crime contra mulher
grávida.
Ocorrendo o aborto como resultado qualificador das lesões
corporais por ele praticadas, ou mesmo na hipótese em que o dolo
do agente era o de interromper a gravidez, isto é, o dolo de aborto,
não será possível a aplicação da circunstância agravante acima
mencionada, pois tais circunstâncias, conforme determina o caput
do art. 61 do Código Penal, somente podem agravar a pena quando
não constituem ou qualificam o crime.
5.16.4
Gestante que tenta o suicídio
A tentativa de suicídio, por si mesma, como vimos, não é
punível, mas, sim, o comportamento daquele que induz, instiga ou
auxilia materialmente alguém a cometer o ato extremo.
Contudo, pode ocorrer que a gestante queira eliminar a própria
vida e realize um comportamento dirigido a esse fim, por exemplo,
fazendo a ingestão de veneno ou atirando contra si mesma.
Ela sabe que, assim agindo, causará não somente a morte
dela, mas também a do feto que carrega em seu útero. Pergunta-se:
caso a gestante sobreviva ao atentado contra a própria vida, não
ocorrendo,
também,
a
interrupção
da
gravidez,
será
responsabilizada por alguma infração penal? Acreditamos que sim.
Deverá ser imputado à gestante o delito de tentativa de aborto, uma
vez que, almejando eliminar a própria vida, consequentemente,
produziria a morte do feto, razão pela qual, se sobreviver, não
ocorrendo a morte do feto, deverá ser responsabilizada pelo
conatus.
Caso haja a morte do feto, terá cometido o delito de aborto
consumado.
5.16.5
Desistência voluntária e arrependimento eficaz
Os institutos da desistência voluntária e do arrependimento
eficaz são perfeitamente aplicáveis ao delito de aborto, em todas as
suas modalidades.
No crime de autoaborto, se a gestante dá início às manobras
abortivas, mas as interrompe durante sua execução, teremos aqui a
aplicação da desistência voluntária, sendo atípicos os atos por ela
eventualmente realizados que, de alguma forma, vieram a pro-duzirlhe lesões corporais, uma vez que não se pune a autolesão.
Também pode ocorrer que, após esgotado tudo aquilo que tinha ao
seu alcance no sentido de realizar o aborto, por exemplo, fazendo
uso de substâncias abortivas, a gestante, arrependida de seu ato,
procure neutralizar, com algum antídoto, a substância ingerida
anteriormente.
Se nas hipóteses criadas não sobrevém o aborto, ou seja, tanto
na desistência quanto no arrependimento foi eficaz a intervenção da
gestante no sentido de evitar a produção do resultado aborto, não
será responsabilizada criminalmente por qualquer delito.
No caso do terceiro que inicia os atos de execução tendentes à
produção do aborto, com o consentimento da gestante, se desiste
de prosseguir com esses atos – desistindo voluntariamente –, ou
impede que o resultado se produza – dado o seu arrependimento
eficaz –, não deverá ser responsabilizado também por qualquer
infração penal se os atos já praticados se configurarem em lesões
corporais de natureza leve, passíveis de serem afastadas mediante
o consentimento do ofendido.
Havendo lesões corporais graves, como o consentimento do
ofendido não tem o condão de afastar a ilicitude do comportamento
praticado pelo agente, este deverá por elas responder.
No caso de aborto provocado por terceiro sem o consentimento
da gestante, o agente sempre, nas hipóteses de desistência e
arrependimento eficaz, responderá pelos atos já praticados. Se
produziu lesões corporais leves, responderá pela infração penal
prevista no caput do art. 129 do Código Penal; se graves ou
gravíssimas, deverá ser responsabilizado levando-se em
consideração, respectivamente, os §§ 1º e 2º do art. 129 do diploma
repressivo.
Em qualquer situação, se o aborto vier a ocorrer, mesmo tendo
os agentes se esforçado ao máximo para que isso não acontecesse,
deverão por ele responder, cada qual na sua situação (autoaborto,
aborto provocado por terceiro sem o consentimento da gestante e
aborto provocado por terceiro com o consentimento da gestante).
5.16.6
Crime impossível
Diz o art. 17 do Código Penal:
Art. 17. Não se pune a tentativa
quando, por ineficácia absoluta do
meio ou por absoluta impropriedade
do objeto, é impossível consumar-se o
crime.
O crime impossível poderá ocorrer, portanto, ou pela absoluta
ineficácia do meio ou pela absoluta impropriedade do objeto.
No caso do aborto, a gestante poderá fazer a ingestão de
substância completamente inócua, inofensiva a seu organismo,
acreditando que, com isso, conseguirá produzir a interrupção da
gravidez, sendo o meio, portanto, considerado absolutamente
ineficaz, não podendo ser responsabilizada penalmente pelo seu
comportamento.
Também poderá ocorrer a hipótese em que o meio seja eficaz,
mas não exista objeto a ser atacado por ele, como é o caso da
agente que faz a ingestão de substância abortiva acreditando
encontrar-se grávida, quando na verdade, não está, somente tendo
ocorrido um atraso em sua menstruação. Nesse caso, também, não
se lhe poderá imputar qualquer infração penal.
5.16.7
Aborto econômico
Muito comum no Brasil, principalmente na modalidade do
autoaborto, é o chamado aborto econômico.
A gestante que se encontra grávida por mais uma vez, dada
sua falta de conhecimento na utilização de meios contraceptivos, ou
mesmo diante de sua impossibilidade de adquiri-los, não podendo
arcar com a manutenção de mais um filho em decorrência de sua
condição de miserabilidade, resolve interromper a gravidez,
eliminando o produto da concepção, causando a sua morte.
Não encontramos, nesses casos, qualquer causa de justificação
ou mesmo de exculpação que tenha por finalidade afastar a ilicitude
ou a culpabilidade daquela que atuou impelida por essa motivação
econômica.
Aníbal Bruno, com peculiar brilhantismo, diz:
“A justificação da morte do feto pela consideração das
vicissitudes financeiras da mulher contém em si muito
individualismo e egoísmo, sinal da progressiva materialização
das forças que orientam a cultura moderna, corresponde ainda
a um pensamento de desvalorização da vida do feto em face do
Direito Penal e da proteção que este lhe concede,
desvalorização que contrasta com a ideia de que a vida
humana é o bem jurídico fundamental, origem e suporte dos
demais bens individuais e sociais.”151
Caso a agente, que vive numa situação completa de exclusão
social, abandonada pelo Estado, que não lhe fornece meios
suficientes para que possa trabalhar e cuidar de seus filhos,
engravide, mesmo com todas as dificuldades que lhe sejam
impostas, deverá, ainda assim, levar adiante a gravidez. Sua opção
não está em causar a morte do feto, ou seja, de uma vida em
desenvolvimento, em razão de não poder mantê-lo após o seu
nascimento. Sua opção, nesse caso, infelizmente, será entregá-lo
para fins de adoção, que é um minus em relação à conduta extrema
de causar a morte de um ser, mesmo que ainda em formação.
5.16.8
Ordem judicial
A lei penal e a lei processual penal não preveem nenhum tipo
de formalização judicial no sentido de obter uma ordem para que
seja levada a efeito qualquer uma das modalidades do chamado
aborto legal, seja aquele de natureza terapêutica ou profilática,
previsto no inciso I do art. 128 do Código Penal, ou mesmo o de
natureza sentimental ou humanitário, cuja previsão expressa
encontra-se no inciso II do mencionado artigo.
O “senhor da decisão”, nessas hipóteses, será o médico.
Verificando que a vida da gestante corre risco, poderá praticar o
aborto, documentando sua decisão em papeletas e prontuários, os
quais terão o condão de demonstrar, inclusive pela realização de
exames, que a vida da gestante corria risco em caso de
manutenção da gravidez.
Na segunda hipótese, ou seja, nos casos de gravidez resultante
de estupro, para que o aborto seja realizado pelo médico, além de
não ser exigida autorização judicial, não há necessidade sequer que
o inquérito policial tenha sido instaurado, ou mesmo que o Ministério
Público tenha oferecido denúncia, uma vez que, agora, com a nova
redação que foi conferida ao art. 225 do Código Penal, pela Lei nº
13.718, de 24 de setembro de 2018, a ação penal será sempre de
iniciativa pública incondicionada.
É preciso, contudo, que tenha, de alguma forma, trazido ao
conhecimento oficial do Estado o fato de ter sido vítima de um crime
de estupro. Sua palavra, segundo entendemos, destituída de
qualquer formalização, não pode ser levada em consideração.
Esse documento, válido para fins de trazer ao médico a
segurança de que precisa para a realização do aborto, poderia ser
um simples boletim de ocorrência policial, lavrado pela polícia militar
ou pela polícia civil, um exame de corpo de delito feito por órgão
oficial do Estado, como o Instituto Médico Legal, ou até mesmo a
cópia da inicial da ação penal.
O que estamos querendo afirmar é que não há necessidade de
uma decisão formal do Estado, por exemplo, na eventual ação
penal, condenando o agente pela prática do delito de estupro. Se
assim exigíssemos, o tempo que levaria para se alcançar o trânsito
em julgado impediria a realização do aborto. Sem exagero, teríamos
de causar a morte da criança que cursaria o terceiro ou o quarto ano
escolar.
Caso se comprove que a gestante falseou a verdade, o que
também não é incomum nas hipóteses em que engravida de algum
parceiro ou namorado, querendo se justificar com seus pais,
temerosa, muitas vezes, atribui a gravidez à violência sexual,
quando, na verdade, nada disso ocorreu. Enfim, se comprovada a
falsidade das declarações, a gestante terá que responder pelo crime
de aborto, sendo que ao médico será aplicada a causa de exclusão
da culpabilidade correspondente ao erro de proibição indireto, pois
atuou acreditando estar amparado por uma causa de justificação,
relativa ao exercício regular de um direito.
5.16.9
Concurso de pessoas no delito de aborto
Adotando uma teoria reconhecida como monista temperada,
moderada ou matizada, diz o art. 29 do Código Penal:
Art. 29. Quem, de qualquer modo,
concorre para o crime incide nas
penas a este cominadas, na medida
de sua culpabilidade.
A regra, que sofre algumas exceções, é a de que todos que
concorrem para o crime respondam pela mesma infração penal. Ou
seja, existe uma única infração penal distribuída entre coautores e
partícipes.
Contudo, há exceção a essa regra no próprio art. 29, conforme
se verifica da leitura de seu § 2º, que diz que se algum dos
concorrentes quis participar de crime menos grave, ser-lhe-á
aplicada a pena deste; essa pena será aumentada até metade, na
hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave.
No crime de aborto também existe exceção à regra adotada
pela teoria monista. Mediante o confronto dos arts. 124 e 126 do
Código Penal, percebemos que se a gestante procura alguém para
que nela possa realizar o aborto, o médico que levou a efeito as
manobras abortivas responderá por uma infração penal (art. 126 do
CP), e a gestante por outra (art. 124 do CP), quando, de acordo com
a teoria monista, deveríamos ter uma única infração penal
distribuída entre a gestante e o médico, razão pela qual não
podemos considerar pura a teoria monista adotada pelo Código
Penal, mas sim moderada, temperada ou matizada, dadas as
exceções existentes.
Merece destaque, também, em sede de concurso de pessoas, a
discussão relativa à participação no crime de aborto. Não há
qualquer dúvida quanto ao seu cabimento, em qualquer das três
modalidades constantes dos arts. 124, 125 e 126 do Código Penal.
Assim, para fins de raciocínio, se a gestante é induzida por seu
namorado a praticar o aborto e se, efetivamente, vier a realizá-lo,
este deverá ser responsabilizado penalmente pela sua participação
no crime do art. 124 do Código Penal.
Se um médico, por exemplo, é convencido por um amigo de
profissão a realizar um aborto em uma gestante que foi procurá-lo
especificamente com essa finalidade, aquele que o induziu deverá
ser considerado partícipe do delito tipificado no art. 126.
Da mesma forma, se alguém é induzido a praticar um aborto na
gestante sem o consentimento dela, aquele que fez nascer a ideia
criminosa na mente do agente deverá ser responsabilizado pelo
delito previsto pelo art. 125 do diploma repressivo, se este vier a ser
executado pelo autor.
A questão ganha relevo quando deparamos com as causas de
aumento de pena previstas no art. 127 do Código Penal, que diz:
Art. 127. As penas cominadas nos
dois
artigos
anteriores
são
aumentadas de um terço, se, em
consequência do aborto ou dos meios
empregados para provocá-lo, a
gestante sofre lesão corporal de
natureza grave; e são duplicadas, se,
por qualquer dessas causas, lhe
sobrevém a morte.
Se, no caso concreto, entendermos, por exemplo, que a
participação se deu no comportamento previsto no art. 124 do
Código Penal e se, porventura, vier a gestante, no autoaborto, a
sofrer lesões corporais de natureza grave, ou mesmo a falecer, o
agente que a induziu não responderá pela participação com sua
pena especialmente agravada, pois a lei afirma, claramente, que a
majorante somente incidirá nos dois artigos anteriores ao art. 127,
vale dizer, naqueles artigos que preveem o aborto provocado por
terceiro, sem o consentimento da gestante, e também o aborto
provocado por terceiro, com o consentimento da gestante.
Ao contrário, se a participação disser respeito a qualquer
desses dois artigos (arts. 125 e 126 do CP) e se, em consequência
do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante
sofrer lesões corporais de natureza grave ou se vier a morrer, terão
aplicação os aumentos previstos no art. 127 do Código Penal.
5.16.10 Gestante que morre ao realizar o aborto, sendo que o feto
sobrevive
Podemos, também, trabalhar com a hipótese de que tenha
havido a morte da gestante ao se submeter a um aborto, sendo que
o feto, mesmo retirado antecipadamente do útero materno,
sobrevive.
No caso em questão, estaríamos diante de uma tentativa de
aborto, uma vez que este se consuma somente com a morte do
produto da concepção, cuja pena será especialmente agravada em
decorrência da morte da gestante.
Como observado por Fragoso:
“Para que haja a qualificação do crime, não é indispensável que
o aborto se consume. Basta que a morte ou as lesões graves
tenham resultado dos meios empregados para provocá-lo,
qualquer que seja o tempo decorrido, desde que seja certo o
nexo de causalidade. Lesão corporal grave ou morte, como
resultados não dolosos, sem a morte do feto, constituirão
tentativa da forma qualificada.”152
5.16.11 Majorante nos crimes contra a dignidade sexual
O inciso III do art. 234-A, com a nova redação que lhe foi dada
pela Lei nº 13.718, de 24 de setembro de 2018, determina que a
pena para os crimes contra a dignidade sexual, previstos no Título
VI, seja aumentada de metade a 2/3 (dois terços), se do crime
resulta gravidez.
A aludida causa especial de aumento de pena procura evitar,
por exemplo, a prática de abortos legais, na hipótese em que a
vítima tenha sido estuprada, resultando o fato em gravidez.
5.16.12 Aborto de feto anencéfalo
Durante muitos anos, discutiu-se a possibilidade de interrupção
da gravidez na hipótese de feto anencéfalo. As decisões dos
tribunais eram conflitantes e faziam com que reinasse a insegurança
jurídica.
Em 17 de junho de 2004, a Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Saúde (CNTS) propôs a Ação de Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF nº 54),
questionando a aplicação dos arts. 124, 126, e 128, I e II, do Código
Penal, no que diz respeito ao feto anencéfalo.
Após oito anos, aproximadamente, vale dizer, em 12 de abril de
2012, o Supremo Tribunal Federal decidiu a questão por maioria e
nos termos do voto do Relator, Ministro Marco Aurélio, a fim de
declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a
interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos
arts. 124, 126, 128, I e II, todos do diploma repressivo.
Assim, uma vez diagnosticada a anencefalia, poderá a
gestante, se for de sua vontade, submeter-se ao aborto, sem que tal
comportamento seja entendido como criminoso.
Vale ressaltar que o Conselho Federal de Medicina, a fim de
regulamentar a hipótese, editou a Resolução nº 1.989, de 10 de
maio de 2012.153
5.17
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
»
»
»
»
»
Ativo:
Art. 124: a gestante.
Art. 125: qualquer pessoa.
» Art. 126: qualquer
pessoa.
Passivos:
Art. 124: o produto da
concepção
(óvulo
fecundado, embrião ou
feto).
Art. 125: o produto da
concepção e, de maneira
secundária,
a
própria
gestante.
Art. 126: o fruto da
concepção
(óvulo
fecundado, embrião ou
feto).
Contudo,
sendo
graves as lesões ou
ocorrendo a morte da
gestante em razão do
aborto,
esta
também
figurará
como
sujeito
passivo,
mesmo
que
secundariamente.
Objeto material
O óvulo fecundado, o embrião
ou o feto, razão pela qual o
aborto poderá ser considerado
ovular (se cometido até os dois
primeiros meses da gravidez),
embrionário
(praticado
no
terceiro ou quarto mês de
gravidez) ou, fetal (quando o
produto da concepção já atingiu
os cinco meses de vida
intrauterina e daí em diante).
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
A
vida
humana
em
desenvolvimento. “No aborto
provocado por terceiro (com ou
sem o consentimento da
gestante) tutelam-se também a
vida e a incolumidade física e
psíquica da mulher grávida.
Todavia, apenas é possível
vislumbrar a liberdade ou a
integridade pessoal como bens
jurídicos
secundariamente
protegidos em se tratando de
aborto não consentido (art. 125
do CP) ou qualificado pelo
resultado (art. 127 do CP)”
(BITENCOURT, 2003, p. 159).
Exame de corpo de delito
Prova
de
vida:
Será
indispensável o exame de corpo
de delito, direto ou indireto, não
podendo supri-lo a confissão do
acusado. Contudo, não sendo
possível o exame de corpo de
delito,
por
haverem
desaparecido os vestígios, a
prova
testemunhal
poderá
suprir-lhe a falta.
Elemento subjetivo
»
»
Os crimes em análise
somente
podem
ser
praticados a título de dolo,
seja ele direto ou eventual.
Não houve previsão da
modalidade culposa para o
delito de aborto.
Modalidades
omissiva
comissiva
e
As condutas previstas são
comissivas. Entretanto, será
possível a prática do crime de
aborto por omissão, desde que
o agente goze o status de
garantidor.
Meios de execução
O aborto pode ser realizado
com a utilização de diversos
meios. “Os processos utilizados
podem ser químicos, orgânicos,
físicos
ou
psíquicos.”
(MIRABETE, 2010, p. 95).
Consumação e tentativa
»
»
O delito se consuma com a
efetiva morte do produto da
concepção.
Não
há
necessidade que o óvulo
fecundado, embrião ou
feto,
seja
expulso,
podendo,
até
mesmo
ocorrer sua petrificação no
útero materno.
É admissível a tentativa.
1
A Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009, alterou o Título VI da Parte Especial do
Código Penal, que antes previa os crimes contra os costumes, passando a dispor
sobre os crimes contra a dignidade sexual.
2
MÉDICI, Sérgio de Oliveira. Teoria dos tipos penais, p. 152-153.
3
OBS.: Vide Lei 14.232/2021, que instituiu a Política Nacional de Dados e Informações
relacionadas à Violência contra as Mulheres (PNAINFO), e o Decreto 10.906/2021,
que instituiu o Plano Nacional de Enfrentamento ao Feminicídio.
4
BÍBLIA SAGRADA. A. T. Deuteronômio 19:1-13.
5
FARIA, Bento de. Código penal brasileiro comentado, p. 8.
6
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. V, p. 37.
7
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. V, p. 37-38.
8
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 2, p. 31.
9
TELES, Ney Moura. Direito penal, v. II, p. 50.
10
Para aqueles que adotam a teoria da imputação objetiva, talvez fosse possível o
raciocínio pertinente à vertente relativa ao incremento do risco, fazendo com que o
agente não respondesse pela morte do nascente ou neonato a título de homicídio,
uma vez que o resultado, com ou sem o seu comportamento, certamente ocorreria.
Para mais detalhes, cf. nosso Curso de direito penal – Parte geral.
11
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de processo penal, p. 421.
12
Quanto ao procedimento de registro civil sem que haja a localização do corpo, a Lei nº
6.015/73 prevê, em seu art. 88, a possibilidade de justificação de óbito.
13
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 2, p. 40.
14
Interessante a colocação de George Fletcher quando diz: “A percepção refinada de
como os homicidas interagem com suas vítimas distingue o homicídio de outros
crimes. Em outras áreas da lei penal, onde as vítimas contribuem para o seu próprio
prejuízo, resistimos em diminuir a severidade do crime transferindo para ela parte da
culpa. Não há mitigação no furto de veículo se o proprietário descuidadamente deixar
as chaves no carro, como tampouco atenua um ataque a um turista que estivesse
andando à noite pelo parque, e tampouco há mitigação legal do estupro se a vítima
desenvolve uma conduta sexualmente provocativa. Ao contrário, cabe uma atenuação
do homicídio sobre a base das ações da vítima junto ao homicida” (Las víctimas ante
el jurado, p. 42-43). No Brasil, no entanto, o comportamento da vítima será levado em
consideração no momento da fixação da pena-base, conforme determina o art. 59 do
Código Penal, ou, ainda, como circunstância atenuante, a exemplo do que ocorre com
o art. 65, III, c, do mesmo estatuto repressivo.
15
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro – Parte especial, v.2, p. 50-51.
16
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, v. 2, p. 34.
17
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. V, p. 131.
18
LYRA, Roberto. Como julgar, como defender, como acusar, p. 99.
19
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado, p. 387.
20
TOLEDO, Francisco de Assis. Ilicitude penal e causas de sua exclusão, p. 77-78.
21
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. I, t. II, p. 289.
22
GRECO, Rogério. Curso de direito penal – Parte geral.
23
JESUS, Damásio E. de. Direito penal, v. 2, p. 59-60.
24
BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa, p. 77.
25
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, p. 51-52.
26
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal – Parte especial (arts. 121 a 160),
p. 53.
27
JESUS, Damásio E. de. Direito penal, v. 2, p. 67.
28
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, v. 2, p. 48.
29
Apud DOUGLAS, William; CALHAU, Lélio Braga; KRYMCHANTOWSKY, Abouch V.;
DUQUE, Flávio Granado. Medicina legal, p. 125.
30
BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa, p. 79-80.
31
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. V, p. 163-164.
32
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal, v. V, p. 164.
33
Art. 1º Constitui crime de tortura: I – constranger alguém com emprego de violência ou
grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: a) com o fim de obter
informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) para provocar
ação ou omissão de natureza criminosa; c) em razão de discriminação racial ou
religiosa; II – submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de
violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de
aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Pena – reclusão, de 2 (dois) a
8 (oito) anos. § 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a
medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato
não previsto em lei ou não resultante de medida legal. § 2º Aquele que se omite em
face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena
de detenção de 1 (um) a 4 (quarto) anos. § 3º Se resulta lesão corporal de natureza
grave ou gravíssima, a pena é de reclusão de quatro a dez anos; se resulta morte, a
reclusão é de oito a dezesseis anos. § 4º Aumenta-se a pena de um sexto até um
terço: I – se o crime é cometido por agente público; II – se o crime é cometido contra
criança, gestante, portador de deficiência, adolescente ou maior de 60 (sessenta)
anos; III – se o crime é cometido mediante sequestro. § 5º A condenação acarretará a
perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exercício pelo
dobro do prazo da pena aplicada.§ 6º O crime de tortura é inafiançável e insuscetível
de graça ou anistia. § 7º O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese
do § 2º, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado.
34
Vide Lei nº 12.847, de 2 de agosto de 2013, que instituiu o Sistema Nacional de
Prevenção e Combate à Tortura; criou o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à
Tortura e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, além de adotar
outras providências.
35
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado, p. 392.
36
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal, p. 74.
37
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. V, p. 169.
38
JESUS, Damásio E. de. Direito penal, v. 2, p. 71.
39
DÍAZ, Gerardo Landrove. La moderna victimología, p. 45.
40
PEREIRA, Jeferson Botelho. Breves apontamentos sobre a Lei nº 13.104/2015, que
cria o crime de feminicídio no ordenamento jurídico brasileiro. Disponível em:
<http://jus.com.br/artigos/37061/breves--apontamentos-sobre-a-lei-n-13-104-2015-quecria-de-crime-feminicidio-no-ordenamento-juridi-co-brasileiro>. Acesso em: 14 mar.
2015.
41
A Lei nº 13.505, de 8 de novembro de 2017, acrescentou dispositivos à Lei nº 11.340,
de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), dispondo sobre o direito da mulher em
situação de violência doméstica e familiar de ter atendimento policial e pericial
especializado, ininterrupto e prestado, preferencialmente, por servidores do sexo
feminino, dizendo, em seus arts. 10-A e 12-A: Art. 10-A. É direito da mulher em
situação de violência doméstica e familiar o atendimento policial e pericial
especializado, ininterrupto e prestado por servidores – preferencialmente do sexo
feminino – previamente capacitados. § 1º A inquirição de mulher em situação de
violência doméstica e familiar ou de testemunha de violência doméstica, quando se
tratar de crime contra a mulher, obedecerá às seguintes diretrizes: I – salvaguarda da
integridade física, psíquica e emocional da depoente, considerada a sua condição
peculiar de pessoa em situação de violência doméstica e familiar; II – garantia de que,
em nenhuma hipótese, a mulher em situação de violência doméstica e familiar,
familiares e testemunhas terão contato direto com investigados ou suspeitos e
pessoas a eles relacionadas; III – não revitimização da depoente, evitando sucessivas
inquirições sobre o mesmo fato nos âmbitos criminal, cível e administrativo, bem como
questionamentos sobre a vida privada. § 2º Na inquirição de mulher em situação de
violência doméstica e familiar ou de testemunha de delitos de que trata esta Lei,
adotar-se-á, preferencialmente, o seguinte procedimento: I – a inquirição será feita em
recinto especialmente projetado para esse fim, o qual conterá os equipamentos
próprios e adequados à idade da mulher em situação de violência doméstica e familiar
ou testemunha e ao tipo e à gravidade da violência sofrida; II – quando for o caso, a
inquirição será intermediada por profissional especializado em violência doméstica e
familiar designado pela autoridade judiciária ou policial; III – o depoimento será
registrado em meio eletrônico ou magnético, devendo a degravação e a mídia integrar
o inquérito. Art. 12-A. Os Estados e o Distrito Federal, na formulação de suas políticas
e planos de atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, darão
prioridade, no âmbito da Polícia Civil, à criação de Delegacias Especializadas de
Atendimento à Mulher (Deams), de Núcleos Investigativos de Feminicídio e de equipes
especializadas para o atendimento e a investigação das violências graves contra a
mulher.
42
DIRCEU BARROS, Francisco. Feminicídio e neocolpovulvoplastia: As implicações
legais do conceito de mulher para os fins penais. Disponível em:
<http://franciscodirceubarros.jusbrasil.com.br/arti-gos/173139537/feminicidio-eneocolpovulvoplastia-as-implicacoes-legais-do-conceito-de-mu-lher-para-os-finspenais>. Acesso em: 14 mar. 2015.
43
DIRCEU BARROS, Francisco. Feminicídio e neocolpovulvoplastia: As implicações
legais do conceito de mulher para os fins penais. Disponível em:
<http://franciscodirceubarros.jusbrasil.com.br/arti-gos/173139537/feminicidio-eneocolpovulvoplastia-as-implicacoes-legais-do-conceito-de-mu-lher-para-os-finspenais>. Acesso em: 14 mar. 2015.
44
PEREIRA, Jeferson Botelho. Morte de Policiais – Uma lei que tenta inibir a ação contra
o Estado. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/40770/morte-de-policiais-uma-leique-tenta-inibir-a-acao--contra-o-estado>. Acesso em: 5 ago. 2015.
45
BARROS, Francisco Dirceu. Os agentes passivos do homicídio funcional: Lei nº
13.142/2015. A controvérsia da terminologia autoridade e o filho adotivo como agente
passivo do homicídio funcional. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/41302/osagentes-passivos-do-homicidio-funcional-lei--n-13-142-2015>. Acesso em: 5 ago.
2015.
46
CUNHA, Rogério Sanches. Nova Lei 13.142/15: Breves Comentários. Disponível em:
<http://www.portalcarreirajuridica.com.br/noticias/nova-lei-13-142-15-brevescomentarios-por-rogerio-san-ches-cunha>. Acesso em: 5 ago. 2015.
47
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Homicídio e lesões corporais de agentes de
segurança pública e forças armadas: alterações da Lei nº 13.142/2015. Disponível em:
<http://jus.com.br/artigos/40830/
homicidio-e-lesoes-corporais-de-agentes-deseguranca-publica-e-forcas-armadas-alteracoes-da--lei-13-142-15>. Acesso em: 5 ago.
2015.
48
BARROS, Francisco Dirceu. Os agentes passivos do homicídio funcional: Lei nº
13.142/2015. A controvérsia da terminologia autoridade e o filho adotivo como agente
passivo do homicídio funcional. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/41302/osagentes-passivos-do-homicidio-funcional-lei--n-13-142-2015>. Acesso em: 5 ago.
2015.
49
COSTA, Elder Lisboa Ferreira da. Compêndio teórico e prático do tribunal do júri, p.
89-90.
50
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal, p. 136.
51
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. I, t. II, p. 188.
52
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de derecho penal – Parte general, p. 435.
53
JESUS, Damásio E. de. Comentários ao código penal, v. I, p. 256.
54
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. I, t. II, p. 188.
55
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de derecho penal – Parte general, p. 435.
56
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal – Parte especial (arts. 121 a 160),
p. 64.
57
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. V, p. 188.
58
JESUS, Damásio E. de. Direito penal – Parte geral, v. 1, p. 597.
59
PIRES, Ariosvaldo de Campos; SALES, Sheila Jorge Selim de. Crimes de trânsito, p.
186.
60
GOMES, Luiz Flávio. Estudos de direito penal e processo penal, p. 30.
61
JESUS, Damásio E. de. Crimes de trânsito, p. 50.
62
STOCO, Rui. Código de trânsito Brasileiro: disposições penais e suas incongruências.
Boletim do IBCCrim, nº 61, p. 9.
63
MIRANDA, Nilmário. A ação dos grupos de extermínio no Brasil. DHnet. Disponível
em:
<http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/nilmario/nilmario_dossieexterminio.html>,
apud ARRAIS, Gerson Santana. Homicídio simples praticado a partir de atividade de
extermínio
considerado
como
hediondo.
Disponível
em:
<http://jus.com.br/revista/texto/14711/homicidio-simples-praticado-a-partir-de-atividade-de-exterminio-considerado-como-hediondo#ixzz27t0tXHHg>. Acesso em: 29
set. 2012.
64
ARRAIS, Gerson Santana. Homicídio simples praticado a partir de atividade de
extermínio
considerado
como
hediondo.
Disponível
em:
<http://jus.com.br/revista/texto/14711/homicidio-simples-prati-cado-a-partir-deatividade-de-exterminio-considerado-como-hediondo#ixzz27t0tXHHg>. Acesso em: 29
set. 2012.
65
BARROS, Francisco Dirceu. Feminicídio e neocolpovulvoplastia: As implicações legais
do
conceito
de
mulher
para
os
fins
penais.
Disponível
em:
<http://franciscodirceubarros.jusbrasil.com.br/arti-gos/173139537/feminicidio-eneocolpovulvoplastia-as-implicacoes-legais-do-conceito-de-mu-lher-para-os-finspenais>. Acesso em: 14 mar. 2015.
66
PRADO, Geraldo; CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Lei dos
juizados especiais criminais, p. 259.
67
TOURINHO NETO, Fernando da Costa; FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Juizados
especiais federais cíveis e criminais, p. 723.
68
PRADO, Geraldo; CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Lei dos
juizados especiais criminais, p. 276.
69
FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos, p. 101.
70
MONTEIRO, Antônio Lopes. Crimes hediondos, p. 24.
71
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Considerações iniciais sobre a Lei no 12.720/12:
novas majorantes nos crimes de homicídio e lesões corporais e o novo crime de
constituição de milícia privada. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/?
n_link =revista_artigos_leitura&artigo_ id=12427>. Acesso em: 13 mai. 2017.
72
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado, p. 381.
73
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 26.
74
No que diz respeito à possibilidade de coexistência entre a circunstância atenuante
relativa à violenta emoção (art. 65, III, c, in fine) e à qualificadora do motivo fútil no
homicídio, já decidiu o STJ, por intermédio da sua 5a Turma, no RE 1992/0009657-3,
tendo como relator o Min. Assis Toledo: “A qualificadora do motivo fútil pode coexistir
com a atenuante da influência de violenta emoção. Não vai contra a experiência
cotidiana o deparar-se com indivíduos portadores de uma sensibilidade à flor da pele
que, por razões insignificantes, são impelidos à prática de crimes, quando provocados.
Não se deve confundir a circunstância atenuante em foco (‘sob influência de violenta
emoção’) com a causa de diminuição de pena do art. 121, § 1º (‘sob o domínio de
violenta emoção’). Só esta última apresenta real incompatibilidade com a qualificadora
do modo fútil.”
75
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 2, p. 64.
76
O STJ já decidiu reiteradas vezes pelo não reconhecimento da natureza hedionda do
homicídio qualificado-privilegiado, conforme se verifica nas transcrições parciais das
ementas que se seguem: “Por incompatibilidade axiológica e por falta de previsão
legal, o homicídio qualificado-privilegiado não integra o rol dos denominados crimes
hediondos” (HC 153.728/SP, Habeas Corpus 2009/0223917-8, Rel. Min. Felix Fischer,
5ª T., julg. 13/4/2010); “O homicídio qualificado-privilegiado é estranho ao elenco dos
crimes hediondos” (HC 2002/0082726-5, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, 6ª T., julg.
3/2/2004).
77
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, v. 2, p. 42.
78
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado, p. 389.
79
PESSINI, Léo. Distanásia: até quando investir sem agredir. Disponível em:
<http://www.cfm.org.br/revista/411996/dist.htm>.
80
RESOLUÇÃO CFM Nº 1.805/2006 (DOU, 28 nov. 2006, Seção I, p. 169) “Na fase
terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou
suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindolhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na
perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu
representante legal.
O Conselho Federal de Medicina, no uso das atribuições conferidas pela Lei nº 3.268,
de 30 de setembro de 1957, alterada pela Lei nº 11.000, de 15 de dezembro de 2004,
regulamentada pelo Decreto nº 44.045, de 19 de julho de 1958, e CONSIDERANDO
que os Conselhos de Medicina são ao mesmo tempo julgadores e disciplinadores da
classe médica, cabendo-lhes zelar e trabalhar, por todos os meios ao seu alcance,
pelo perfeito desempenho ético da Medicina e pelo prestígio e bom conceito da
profissão e dos que a exerçam legalmente;
CONSIDERANDO o art. 1º, inciso III, da Constituição Federal, que elegeu o princípio
da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa
do Brasil;
CONSIDERANDO o art. 5º, inciso III, da Constituição Federal, que estabelece que
‘ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante’;
CONSIDERANDO que cabe ao médico zelar pelo bem-estar dos pacientes;
CONSIDERANDO que o art. 1º da Resolução CFM no 1.493, de 20/5/98, determina ao
diretor clínico adotar as providências cabíveis para que todo paciente hospitalizado
tenha o seu médico assistente responsável, desde a internação até a alta;
CONSIDERANDO que incumbe ao médico diagnosticar o doente como portador de
enfermidade em fase terminal;
CONSIDERANDO, finalmente, o decidido em reunião plenária de 9/11/2006,
RESOLVE:
Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que
prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável,
respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.
§ 1º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal
as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação.
§ 2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário.
§ 3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma
segunda opinião médica. Art. 2º O doente continuará a receber todos os cuidados
necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a
assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar.
Art. 3º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se as
disposições em contrário. Brasília, 9 de novembro de 2006
Edson de Oliveira Andrade Presidente do Conselho Lívia Barros Garção SecretáriaGeral”.
81
FRANÇA, Genival Veloso de. Fundamentos de medicina legal, p. 200.
82
Conforme Informativo nº 584, do STF, “a Turma iniciou julgamento de habeas corpus
em que se discute se o portador do vírus HIV que, tendo ciência da doença e
deliberadamente a ocultando de seus parceiros, pratica tentativa de homicídio ao
manter relações sexuais sem preservativo. Trata-se de writ impetrado contra o
indeferimento, pelo STJ, de liminar em idêntica medida na qual se reitera o pleito de
revogação do decreto de prisão preventiva e de desclassificação do delito para o de
perigo de contágio de moléstia grave (CP: ‘Art. 131 Praticar, com o fim de transmitir a
outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio:
[...]’). Preliminarmente, o Min. Marco Aurélio, relator, salientando a existência de
sentença de pronúncia e aduzindo que, em prol de uma boa política judiciária, a
situação em tela estaria a ensejar a manifestação do STF, conheceu do writ. No
mérito, concedeu, em parte, a ordem para imprimir a desclassificação do crime e
determinar o envio do processo para distribuição a uma das varas criminais comuns do
Estado-membro. Em interpretação sistemática, reputou descabido cogitar-se de
tentativa de homicídio, porquanto haveria crime específico, considerada a imputação.
Registrou, relativamente ao tipo subjetivo, que se teria no art. 131 do CP a presença
do dolo de dano, enquanto que no art. 121 do CP verificar-se-ia a vontade consciente
de matar ou a assunção do risco de provocar a morte. Afirmou não ser possível
potencializar este último tipo a ponto de afastar, tendo em conta certas doenças, o que
disposto no aludido art. 131 do CP. Após os votos dos Ministros Dias Toffoli e Cármen
Lúcia acompanhando o relator, pediu vista o Min. Ayres Britto” (HC 98.712/SP, Rel.
Min. Marco Aurélio, julg. 27/4/2010).
83
MENDONÇA, Andrey Borges de. Nova reforma do código de processo penal, p. 76.
84
MASSON, Cleber. Direito penal – parte especial, v. 2, p. 46.
85
NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de direito penal – parte especial, v. 2, p. 49.
86
De acordo com a lições de Emiliano Borja Jiménez, “o suicídio, que pode ser definido
como a morte voluntária, querida e desejada, de uma pessoa com capacidade de agir,
é uma conduta propriamente humana, e praticamente desconhecida pelo resto dos
seres vivos. Quando uma pessoa chega à convicção de que sua existência já não tem
sentido, de que o sofrimento apaga todos seus projetos, desejos e prazeres, e decide
quitar a própria vida, o Direito não pode intervir proibindo esse comportamento, e
menos ainda sancioná-lo. Pois se o suicida conseguiu seu objetivo, nada nem
ninguém pode atuar juridicamente contra ele. E se não logrou seu propósito, o único
que poderia conseguir a imposição de uma sanção era justamente um efeito contrário
ao que se persegue: que o sujeito volte a tentar acabar com sua vida por conta do
sofrimento adicional que derivaria de seus novos problemas com a administração da
justiça” (Curso de política criminal, p. 126).
87
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal, p. 92-94.
88
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. V, p. 222.
89
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 2, p. 124-125.
90
MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal, v. IV, p. 167.
91
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado, p. 401.
92
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. V, p. 232.
93
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 40.
94
REZENDE, Jorge de. O puerpério. In: REZENDE, Jorge de et al. (Coord.). Obstetrícia,
p. 373.
95
Conforme Hungria (Comentários ao código penal, v. V, p. 239).
96
COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Curso de direito penal, v. 2, p. 18.
97
MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal, v. IV, p. 180.
98
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. V, p. 246.
99
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 85.
100
REZENDE, Jorge de. O parto. In: REZENDE, Jorge de et al. (Coord.). Obstetrícia, p.
326.
101
REZENDE, Jorge de. O parto. In: REZENDE, Jorge de et al. (Coord.). Obstetrícia, p.
326.
102
REZENDE, Jorge de. Operação cesariana. In: REZENDE, Jorge de et al. (Coord.).
Obstetrícia, p. 1.173.
103
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 43.
104
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado, p. 403.
105
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 44.
106
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 84.
107
REZENDE, Jorge de. O puerpério. In: REZENDE, Jorge de et al. (Coord.). Obstetrícia,
p. 373.
108
JESUS, Damásio E. de. Direito penal, v. 2, p. 109.
109
FÁVERO, Flamínio. Medicina legal, v. 2, p. 759-760.
110
MARANHÃO, Odon Ramos. Curso básico de medicina legal, p. 197-198.
111
MARANHÃO, Odon Ramos. Curso básico de medicina legal, p. 198-199.
112
MARANHÃO, Odon Ramos. Curso básico de medicina legal, p.199.
113
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. V, p. 256.
114
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. V, p. 250-251.
115
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal – Parte especial (arts. 121 a 160),
p. 80.
116
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 47.
117
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 48.
118
JESUS, Damásio E. de. Direito penal, v. 2, p.113.
119
Vide Portaria do MS nº 2.561, de setembro de 2020, que dispõe que “o Procedimento
de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei
compõe-se de quatro fases que deverão ser registradas no formato de termos,
arquivados anexos ao prontuário médico, garantida a confidencialidade desses
termos”.
120
BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa, p. 160.
121
MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal, v. IV, p. 183.
122
BÍBLIA DE ESTUDOS GENEBRA, p. 861.
123
BÍBLIA DE ESTUDOS GENEBRA, p. 716.
124
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal, p. 115-116.
125
Manual Merck de medicina, p. 1.850.
126
REZENDE, Jorge de. Prenhez ectópica. In: REZENDE, Jorge de et al. (Coord.).
Obstetrícia, p. 717.
127
TELES, Ney Moura. Direito penal, v. 2, p. 174.
128
Para nós, desde a nidação até o início do parto.
129
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. V, p. 281.
130
MARANHÃO, Odon Ramos. Curso básico de medicina legal, p. 187.
131
REZENDE, Jorge de; MONTENEGRO, Carlos Antônio Barbosa; BARCELLOS, José
Maria. Abortamento. In: REZENDE, Jorge de et al. (Coord.) Obstetrícia, p. 691.
132
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, p. 159.
133
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 94.
134
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, p. 52.
135
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. V, p. 293.
136
MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal, v. IV, p. 210-211.
137
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal, p. 95.
138
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal – Parte especial (arts. 121 a 160,
CP), p. 124.
139
MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal, v. 2, p. 213.
140
COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Curso de direito penal, v. 2, p. 23.
141
BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa, p. 173.
142
BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa, p. 173.
143
MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal, v. 2, p. 218.
144
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal – Parte especial (arts. 121 a 160,
CP), p. 124.
145
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. V, p. 304.
146
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. V, p. 304.
147
GRECO, Rogério. Curso de direito penal – Parte geral.
148
MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal, v. IV, p. 219.
149
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 108.
150
LEI Nº 12.845, DE 1º DE AGOSTO DE 2013 A Presidenta da República Faço saber
que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1º Os hospitais devem oferecer às vítimas de violência sexual atendimento
emergencial, integral e multidisciplinar, visando ao controle e ao tratamento dos
agravos físicos e psíquicos decorrentes de violência sexual, e encaminhamento, se for
o caso, aos serviços de assistência social.
Art. 2º Considera-se violência sexual, para os efeitos desta Lei, qualquer forma de
atividade sexual não consentida.
Art. 3º O atendimento imediato, obrigatório em todos os hospitais integrantes da rede
do SUS, compreende os seguintes serviços:
I – diagnóstico e tratamento das lesões físicas no aparelho genital e nas demais áreas
afetadas;
II – amparo médico, psicológico e social imediatos;
III – facilitação do registro da ocorrência e encaminhamento ao órgão de medicina
legal e às delegacias especializadas com informações que possam ser úteis à
identificação do agressor e à comprovação da violência sexual;
IV – profilaxia da gravidez;
V – profilaxia das Doenças Sexualmente Transmissíveis – DST;
VI – coleta de material para realização do exame de HIV para posterior
acompanhamento e terapia;
VII – fornecimento de informações às vítimas sobre os direitos legais e sobre todos os
serviços sanitários disponíveis.
§ 1º Os serviços de que trata esta Lei são prestados de forma gratuita aos que deles
necessitarem.
§ 2º No tratamento das lesões, caberá ao médico preservar materiais que possam ser
coletados no exame médico legal.
§ 3º Cabe ao órgão de medicina legal o exame de DNA para identificação do agressor.
Art. 4º Esta Lei entra em vigor após decorridos 90 (noventa) dias de sua publicação
oficial.
Brasília, 1º de agosto de 2013; 192º da Independência e 125º da República.
Dilma Rousseff José Eduardo Cardozo Alexandre Rocha Santos Padilha Eleonora
Menicucci de Oliveira Maria do Rosário Nunes
151
BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa, p. 177.
152
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal – Parte especial (arts. 121 a 160,
CP), p. 123-124. Como dissemos anteriormente (item 6.10), a lesão corporal grave e a
morte da gestante devem ser consideradas causas especiais de aumento da pena, e
não qualificadoras.
153
RESOLUÇÃO CFM Nº 1.989/2012 (Publicada no DOU de 14 de maio de 2012, Seção
I, p. 308-309) Art. 1º Na ocorrência do diagnóstico inequívoco de anencefalia o médico
pode, a pedido da gestante, independente de autorização do Estado, interromper a
gravidez.
Art. 2º O diagnóstico de anencefalia é feito por exame ultrassonográfico realizado a
partir da 12ª (décima segunda) semana de gestação e deve conter:
I – duas fotografias, identificadas e datadas: uma com a face do feto em posição
sagital; a outra, com a visualização do polo cefálico no corte transversal,
demonstrando a ausência da calota craniana e de parênquima cerebral identificável;
II – laudo assinado por dois médicos, capacitados para tal diagnóstico.
Art. 3º Concluído o diagnóstico de anencefalia, o médico deve prestar à gestante todos
os esclarecimentos que lhe forem solicitados, garantindo a ela o direito de decidir
livremente sobre a conduta a ser adotada, sem impor sua autoridade para induzi-la a
tomar qualquer decisão ou para limitá-la naquilo que decidir:
§ 1º É direito da gestante solicitar a realização de junta médica ou buscar outra opinião
sobre o diagnóstico.
§ 2º Ante o diagnóstico de anencefalia, a gestante tem o direito de:
I – manter a gravidez;
II – interromper imediatamente a gravidez, independente do tempo de gestação, ou
adiar essa decisão para outro momento.
§ 3º Qualquer que seja a decisão da gestante, o médico deve informá-la das
consequências, incluindo os riscos decorrentes ou associados de cada uma.
§ 4º Se a gestante optar pela manutenção da gravidez, ser-lhe-á assegurada
assistência médica pré-na-tal compatível com o diagnóstico.
§ 5º Tanto a gestante que optar pela manutenção da gravidez quanto a que optar por
sua interrupção receberão, se assim o desejarem, assistência de equipe
multiprofissional nos locais onde houver disponibilidade.
§ 6º A antecipação terapêutica do parto pode ser realizada apenas em hospital que
disponha de estrutura adequada ao tratamento de complicações eventuais, inerentes
aos respectivos procedimentos.
Art. 4º Será lavrada ata da antecipação terapêutica do parto, na qual deve constar o
consentimento da gestante e/ou, se for o caso, de seu representante legal.
Parágrafo único. A ata, as fotografias e o laudo do exame referido no artigo 2º desta
resolução integrarão o prontuário da paciente.
Art. 5º Realizada a antecipação terapêutica do parto, o médico deve informar à
paciente os riscos de recorrência da anencefalia e referenciá-la para programas de
planejamento familiar com assistência à
contracepção, enquanto essa for necessária, e à preconcepção, quando for livremente
desejada, garantindo-se, sempre, o direito de opção da mulher.
Parágrafo único. A paciente deve ser informada expressamente que a assistência
preconcepcional tem por objetivo reduzir a recorrência da anencefalia.
Art. 6º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília-DF, 10 de maio de 2012.
CARLOS VITAL TAVARES CORRÊA LIMA – Presidente em exercício HENRIQUE
BATISTA E SILVA – Secretário-geral
Capítulo II
Das Lesões Corporais
1.
LESÕES CORPORAIS
Lesão corporal
Art. 129. Ofender a integridade
corporal ou a saúde de outrem:
Pena – detenção, de três meses a um
ano.
Lesão corporal de natureza grave §
1º Se resulta:
I – incapacidade para as ocupações
habituais, por mais de trinta dias;
II – perigo de vida;
III – debilidade permanente de
membro, sentido ou função;
IV – aceleração de parto:
Pena – reclusão, de um a cinco anos.
§ 2º Se resulta:
I – incapacidade permanente para o
trabalho;
II – enfermidade incurável;
III – perda ou inutilização de membro,
sentido ou função;
IV – deformidade permanente;
V – aborto:
Pena – reclusão, de dois a oito anos.
Lesão corporal seguida de morte
§ 3º Se resulta morte e as
circunstâncias evidenciam que o
agente não quis o resultado, nem
assumiu o risco de produzi-lo:
Pena – reclusão, de quatro a doze
anos.
Diminuição de pena
§ 4º Se o agente comete o crime
impelido por motivo de relevante valor
social ou moral ou sob o domínio de
violenta emoção, logo em seguida a
injusta provocação da vítima, o juiz
pode reduzir a pena de um sexto a um
terço.
Substituição da pena
§ 5º O juiz, não sendo graves as
lesões, pode ainda substituir a pena
de detenção pela de multa:
I – se ocorre qualquer das hipóteses
do parágrafo anterior;
II – se as lesões são recíprocas.
Lesão corporal culposa § 6º Se a
lesão é culposa:
Pena – detenção, de dois meses a um
ano.
Aumento de pena
§ 7º Aumenta-se a pena de 1/3 (um
terço) se ocorrer qualquer das
hipóteses dos §§ 4º e 6º do art. 121
deste Código (nova redação dada
pela Lei nº 12.720, de 27 de setembro
de 2012).
§ 8º Aplica-se à lesão culposa o
disposto no § 5º do art. 121.
Violência doméstica
§ 9º Se a lesão for praticada contra
ascendente, descendente, irmão,
cônjuge ou companheiro, ou com
quem conviva ou tenha convivido, ou,
ainda, prevalecendo-se o agente das
relações domésticas, de coabitação
ou de hospitalidade:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a
3 (três) anos.
§ 10. Nos casos previstos nos §§ 1º a
3º deste artigo, se as circunstâncias
são as indicadas no § 9º deste artigo,
aumenta-se a pena em 1/3 (um terço).
§ 11. Na hipótese do § 9º deste artigo,
a pena será aumentada de um terço
se o crime for cometido contra pessoa
portadora de deficiência.
§ 12. Se a lesão for praticada contra
autoridade ou agente descrito nos
arts. 142 e 144 da Constituição
Federal, integrantes do sistema
prisional e da Força Nacional de
Segurança Pública, no exercício da
função ou em decorrência dela, ou
contra seu cônjuge, companheiro ou
parente consanguíneo até terceiro
grau, em razão dessa condição, a
pena é aumentada de um a dois
terços.
§ 13. Se a lesão for praticada contra a
mulher, por razões da condição do
sexo feminino, nos termos do § 2º-A
do art. 121 deste Código:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4
(quatro anos).
1.1
Introdução
Analisando o caput do art. 129 e seus parágrafos, percebemos
que o crime de lesão corporal pode ocorrer por meio de oito
modalidades diferentes, a saber:
a)
b)
c)
d)
lesão corporal leve – art. 129, caput, do CP;
lesão corporal grave – art. 129, § 1º, do CP;
lesão corporal gravíssima – art. 129, § 2º, do CP;
lesão corporal seguida de morte – art. 129, § 3º, do CP;
e)
f)
g)
lesão corporal culposa – art. 129, § 6º, do CP.
violência doméstica – art. 129, § 9º, do CP;
lesão qualificada praticada contra mulher, por razões de
condições do sexo feminino (art. 129, § 13, do CP).
O caput do art. 129 do Código Penal, definindo o tipo penal de
lesões corporais, usa o verbo ofender, procedente da palavra latina
offendere, no sentido de fazer mal a alguém, lesar, ferir, atacar etc.
Prossegue a redação legal apontando que essa ofensa é
dirigida contra a integridade corporal ou a saúde de outrem.
Conforme apontado precisamente por Hungria:
“O crime de lesão corporal consiste em qualquer dano
ocasionado por alguém, sem animus necandi, à integridade
física ou a saúde (fisiológica ou mental) de outrem. Não se
trata, como o nomen juris poderia sugerir prima facie, apenas
do mal infligido à inteireza anatômica da pessoa. Lesão corporal
compreende toda e qualquer ofensa ocasionada à normalidade
funcional do corpo ou organismo humano, seja do ponto de
vista anatômico, seja do ponto de vista fisiológico ou psíquico.
Mesmo a desintegração da saúde mental é lesão corporal, pois
a inteligência, a vontade ou a memória dizem com a atividade
funcional do cérebro, que é um dos mais importantes órgãos do
corpo. Não se concebe uma perturbação mental sem um dano
à saúde, e é inconcebível um dano à saúde sem um mal
corpóreo ou uma alteração do corpo. Quer como alteração da
integridade física, quer como perturbação do equilíbrio funcional
do organismo (saúde), a lesão corporal resulta sempre de uma
violência exercida sobre a pessoa.”1
Da mesma forma, entende-se como delito de lesão corporal não
somente aquelas situações de ofensa à integridade corporal ou à
saúde da vítima criadas originalmente pelo agente, mas também a
agravação de uma situação já existente.
Como a lei penal define o delito de lesão corporal dizendo ser a
ofensa à integridade corporal ou à saúde de outrem, quem devemos
entender por esse outrem?
Por outrem devemos entender, como raciocínio inicial, tão
somente o ser humano vivo. Assim, não há possibilidade de se
cogitar de lesões corporais em pessoas jurídicas, animais ou, ainda,
coisas inanimadas. Outrem, portanto, é o ser humano vivo. Dessa
forma, com essa definição, também são excluídos os cadáveres.
Assim, aquele que agride um cadáver, destruindo-lhe parcialmente o
corpo morto, pode, dependendo do elemento subjetivo e da situação
específica em estudo, cometer o crime de destruição de cadáver
(art. 211 do CP), vilipêndio a cadáver (art. 212 do CP) ou, mesmo, o
delito de dano (art. 163 do CP). Tudo isso vai depender, como
deixamos antever, do elemento subjetivo do agente, bem como da
situação efetiva em que se encontra o cadáver (dentro do túmulo,
utilizado em pesquisas anatômicas universitárias etc.).
Entretanto, devemos esclarecer a partir de quando esse ser
vivo já se encontrará sob a proteção do art. 129 do diploma
repressivo. Será que o ser ainda em formação já pode ter sua
integridade física e sua saúde protegidas pelo tipo penal em estudo?
Ou seja, é possível a proteção por intermédio do art. 129 do Código
Penal do ser humano com vida intrauterina, em seus três estágios
de evolução, sendo, ainda, um óvulo, um embrião ou mesmo um
feto?
Existe controvérsia doutrinária nesse sentido.
Luiz Regis Prado, quando identifica o objeto material do crime
de lesão corporal, afirma ser “o ser humano vivo, a partir do
momento do início do parto até sua morte”,2 descartando, ao que
parece, a possibilidade de o crime de lesões corporais ser cometido,
por exemplo, contra o feto ainda em formação no útero materno.
Em sentido contrário posiciona-se Ney Moura Teles,
argumentando:
“Evidente, pois, que também o ser em formação possui uma
integridade corporal que sustenta sua vida. Se esta é protegida,
aquela também o é. E assim deve ser porque importa, para a
sociedade, a proteção dos seres humanos em formação não
somente contra ações que o destruam, mas também aquelas
que o lesionam em sua integridade corporal ou que danificam
sua saúde.
Seria contrassenso imaginar que a lesão ao feto ou ao embrião,
a amputação de um de seus membros ou a ofensa a sua
saúde, a um de seus órgãos componentes, fosse um indiferente
penal. Também absurdo é considerar o ser humano em
formação apenas uma parte do corpo da gestante e incriminar a
conduta apenas por ter ela atingido também a gestante. Ainda
porque é perfeitamente possível uma lesão atingir tão somente
o feto, deixando íntegro o corpo ou a saúde da gestante.”3
Entendemos assistir razão a essa última posição. O elemento
subjetivo do agente é que direciona o seu comportamento,
apontando para a infração penal por ele pretendida. Se o agente
queria, como sugeriu o professor Ney Moura Teles, ofender a
integridade corporal ou a saúde do feto, deverá responder pelo
delito de lesões corporais, devendo-se, unicamente, comprovar que,
ao tempo da sua ação, o feto encontrava-se vivo, condição
indispensável à configuração do delito.
Dessa forma, a proteção mediante o art. 129 do Código Penal
tem início a partir do momento em que surge uma nova vida
carregada dentro do útero materno, o que ocorre com a nidação, já
estudada anteriormente quando analisamos o delito de aborto.
Merece ser destacado, ainda, o fato de que a ausência de dor
ou efusão de sangue não descaracterizam as lesões corporais,
devendo ser procedida, como veremos em continuidade ao nosso
estudo, a diferença entre o delito de lesões corporais e a
contravenção penal de vias de fato, sob a luz do princípio da
insignificância.
Em consonância com o princípio da lesividade, principalmente
na vertente por ele proposta, que proíbe a incriminação de uma
conduta que não exceda ao âmbito do próprio autor, conforme
destaca Nilo Batista, é que se “veda a punibilidade da autolesão,”4
não podendo o legislador brasileiro criar figuras típicas, por
exemplo, proibindo automutilações.
1.2
Classificação doutrinária
Crime comum quanto ao sujeito ativo, bem como, em regra,
quanto ao sujeito passivo, à exceção, neste último caso, das
hipóteses previstas no inciso IV do § 1º, no inciso V do § 2º, bem
como nos §§ 9º e 13 todos do art. 129 do Código Penal; crime
material; de forma livre; comissivo; omissivo impróprio; instantâneo
(em algumas situações, a exemplo da perda de membro, quando
pode ser considerado como instantâneo de efeitos permanentes); de
dano; monossubjetivo; plurissubsistente; não transeunte.
1.3
Sujeito ativo e sujeito passivo
A lei penal não individualiza determinado sujeito ativo para o
crime de lesões corporais, razão pela qual qualquer pessoa pode
gozar desse status, não se exigindo nenhuma qualidade especial.
No que diz respeito ao sujeito passivo, à exceção do inciso IV
do § 1º e do inciso V do § 2º do art. 129 do Código Penal, que
preveem, respectivamente, como resultado qualificador das lesões
corporais a aceleração de parto e o aborto, bem como dos §§ 9º e
13, que preveem também a modalidade qualificada relativa à
violência doméstica e a lesão praticada contra mulher, por razões de
condições do sexo feminino, qualquer pessoa pode assumir essa
posição.
Nas exceções apontadas – aceleração de parto e aborto –,
somente a gestante pode ser considerada sujeito passivo, bem
como aquele que seja ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou
companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda,
quando se prevalece o agente das relações domésticas, de
coabitação ou de hospitalidade, ou quando a lesão for praticada
contra mulher, por razões de condições do sexo feminino, sendo os
crimes, nesses casos, entendidos como próprios com relação ao
sujeito passivo, pois os tipos penais os identificam.
Ney Moura Teles ainda alerta para o fato de que:
“Quando a ofensa recair sobre o ser humano em formação,
sujeito passivo é a coletividade, a sociedade, o Estado, o
interesse estatal na preservação da integridade corporal ou da
saúde do ser humano em formação.”5
1.4
Objeto material e bem juridicamente protegido
Bens juridicamente protegidos, segundo o art. 129 do Código
Penal, são a integridade corporal e a saúde do ser humano.
Objeto material é a pessoa humana, mesmo que com vida
intrauterina, sobre a qual recai a conduta do agente no sentido de
ofender-lhe a integridade corporal ou a saúde.
1.5
Exame de corpo de delito
Sendo um crime que deixa vestígios, há necessidade de ser
produzida prova pericial, comprovando-se a natureza das lesões,
isto é, se leve, grave ou gravíssima.
O art. 168 do Código de Processo Penal determina
expressamente:
Art. 168. Em caso de lesões
corporais, se o primeiro exame
pericial
tiver
sido
incompleto,
proceder--se-á
a
exame
complementar por determinação da
autoridade policial ou judiciária, de
ofício, ou a requerimento do Ministério
Público, do ofendido ou do acusado,
ou de seu defensor.
§ 1º No exame complementar, os
peritos terão presente o auto de corpo
de delito, a fim de suprir-lhe a
deficiência ou retificá-lo.
§ 2º Se o exame tiver por fim precisar
a classificação do delito no art. 129, §
1º, I, do Código Penal, deverá ser feito
logo que decorra o prazo de 30 (trinta)
dias, contado da data do crime.
§ 3º A falta de exame complementar
poderá ser suprida pela prova
testemunhal.
Os peritos, ao avaliarem a vítima, devem confeccionar um
diagnóstico correspondente ao estado em que ela se encontra no
momento em que é submetida ao exame de corpo de delito. Isso
significa que devem retratar a realidade daquilo que efetivamente
verificaram como lesões corporais sofridas pela vítima, não se
podendo, contudo, produzir prognósticos, que significa, de acordo
com Aurélio Buarque de Holanda, “juízo médico, baseado no
diagnóstico e nas possibilidades terapêuticas, acerca da duração,
evolução ou termo de uma doença.”6
A ausência do exame de corpo de delito, nos crimes que
deixam vestígios, configura-se caso de nulidade, conforme
determina a alínea b do inciso III do art. 564 do Código de Processo
Penal, que ressalva o fato de que, não sendo possível a sua
realização, por haverem desaparecido os vestígios, a prova
testemunhal poderá suprir-lhe a falta, conforme preconiza o art. 167
do mesmo diploma processual.
1.6
Elemento subjetivo
Como o crime de lesão corporal pode ser praticado mediante
oito modalidades diferentes, conforme apontamos em nossa
introdução, deixaremos a análise do elemento subjetivo de cada
uma delas para quando do estudo pormenorizado dos parágrafos do
art. 129 do Código Penal, somente ressaltando, nesta oportunidade,
que a modalidade simples da figura típica, prevista no caput do
mencionado artigo, que prevê o delito de lesão corporal de natureza
leve, somente pode ser praticada a título de dolo, seja ele direto ou
eventual.
O dolo de causar lesão é reconhecido por intermédio das
expressões latinas animus laedendi ou animus vulnerandi.
1.7
Modalidades
gravíssimas
qualificadas
consideradas
graves
ou
Embora o Código Penal não utilize essa terminologia no art.
129, as lesões corporais qualificadas pelos seus §§ 1º e 2º podem
ser consideradas, respectivamente, graves ou gravíssimas. São,
efetivamente, tipos derivados qualificados, uma vez que o legislador,
de antemão, cominou as penas mínima e máxima, para essas
lesões, em patamares superiores àquelas cominadas no caput.
Considera-se grave a lesão corporal se resulta na vítima: I –
incapacidade para as ocupações habituais por mais de 30 (trinta)
dias; II – perigo de vida; III – debilidade permanente de membro,
sentido ou função; IV – aceleração de parto. Gravíssima, a que
resulta em: I – incapacidade permanente para o trabalho; II –
enfermidade incurável; III – perda ou inutilização de membro,
sentido ou função; IV – deformidade permanente; V – aborto.
Por intermédio da Lei nº 10.886, de 17 de junho de 2004, foi
criada mais uma modalidade qualificada de lesão corporal, com a
inserção do § 9º ao art. 129, na hipótese de ter sido a lesão
praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou
companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda,
prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação
ou de hospitalidade.
Originariamente, a pena era de detenção, de 6 (seis) meses a 1
(um) ano. No entanto, com o advento da Lei nº 11.340, de 7 de
agosto de 2006, que criou mecanismos para coibir a violência
doméstica e familiar contra a mulher, houve modificação no preceito
secundário do referido parágrafo, que passou, agora, a cominar uma
pena de detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos.
A Lei nº 13.142, de 6 de julho de 2015, inseriu o inciso I-A no
art. 1º da Lei nº 8.072/90, passando a considerar como hedionda a
lesão corporal dolosa de natureza gravíssima (art. 129, § 2º, do CP),
e também a lesão corporal seguida de morte (art. 129, § 3º, do CP),
quando praticadas contra autoridade ou agente descrito nos arts.
142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional
e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função
ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou
parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição.
Vejamos cada uma delas, isoladamente.
1.7.1
Lesões corporais graves
I – Incapacidade para as ocupações habituais, por mais de
trinta dias
Ab initio, merece ser destacado que o resultado que conduz à
qualificação das lesões corporais pretendidas inicialmente pelo
agente pode ter sido produzido a título de dolo, ou mesmo
culposamente. Essa modalidade de crime qualificado pelo resultado
permite as duas formas de raciocínio.
Assim, se era a finalidade do agente fazer com que a vítima
ficasse impossibilitada de exercer suas ocupações habituais por
mais de 30 (trinta) dias, ou se esse resultado adveio culposamente,
isso não interfere na definição da mencionada figura típica.
Quando a lei penal utiliza a expressão incapacidade para as
ocupações habituais, que tipo de ocupação está abrangida pelo
mencionado inciso? Estaria a lei penal se referindo às ocupações
ligadas diretamente ao trabalho da vítima, ou aqui também se
incluiriam quaisquer atividades, mesmo as de lazer?
Na verdade, o Código Penal não faz distinção. Qualquer
ocupação de natureza habitual está abrangida pelo inciso I. Assim,
aquele que fica impedido de trabalhar por um período superior a 30
(trinta) dias se amolda à modalidade qualificada de lesão corporal,
da mesma forma que aquele que deixa de praticar suas atividades
esportivas.
Contudo, a doutrina faz distinção entre as atividades ilícitas,
que, por essa razão, não estariam abrangidas pelo artigo, e as
atividades consideradas imorais. Imagine-se a hipótese daquele
que, em virtude das agressões sofridas, não pode praticar o crime
de estelionato por mais de 30 (trinta) dias, haja vista que, durante
esse período, perdeu, momentaneamente, a habilidade em suas
mãos, o que o impedia de enganar as pessoas com as quais jogava
na rua. Por outro lado, suponha-se que, em razão também das
agressões sofridas, uma mulher tenha ficado impedida de se
prostituir por mais de 30 (trinta) dias. Neste último caso, embora
considerada moralmente reprovável pela sociedade, a atividade
praticada não é ilícita, podendo, outrossim, incidir a qualificadora.
Nesse sentido, trazemos à colação as lições de Álvaro Mayrink
da Costa:
“A lei brasileira fala em ocupações habituais, o que significa que
não se limita ao trabalho da vítima, mas a toda atividade
laborativa, não entendida só a atividade de natureza lucrativa,
pois o conceito é funcional e não econômico. Entenda-se como
atividade corporal, física ou intelectual, razão pela qual pode ser
sujeito passivo tanto o ancião, como a criança ou o adolescente
incapacitado de continuar sua preparação profissional.
Outrossim, é necessário que a atividade não seja juridicamente
ilícita, podendo ser eticamente desvalorada (a prostituta que
teve seu braço fraturado pode ser sujeito passivo do tipo
agravado).”7
Para que se possa configurar a qualificadora, há necessidade
de realização do exame de corpo de delito. Quando a vítima se
submete a exame pericial, devem os expertus concluir por um
determinado diagnóstico, não podendo, conforme dissertamos em
tópico próprio, realizar um prognóstico antevendo aquilo que com
ela acontecerá no futuro. Assim, para que os peritos possam atestar
que as lesões corporais sofridas pela vítima a incapacitaram para
suas ocupações habituais por mais de 30 (trinta) dias, deverão
determinar o seu retorno, para fins de submissão a um novo exame
pericial, decorrido o período de 30 (trinta) dias, a fim de que seja
levado a efeito o chamado exame complementar, sem o qual se
torna inviável a aplicação da mencionada qualificadora ao delito de
lesão corporal.
O próprio § 2º do art. 168 do Código de Processo Penal,
cuidando do exame complementar, é claro no sentido de que:
§ 2º Se o exame tiver por fim precisar
a classificação do delito no art. 129, §
1º, I, do Código Penal, deverá ser feito
logo que decorra o prazo de 30 (trinta)
dias, contado da data do crime.
Somente não sendo possível a realização do exame
complementar é que este poderá ser substituído pela prova
testemunhal, embora o § 3º do art. 168 do referido diploma
processual diga tão somente que a falta de exame complementar
poderá ser suprida pela prova testemunhal. Em virtude da gravidade
da qualificadora, se a vítima, nas condições em que se encontrava,
podia ser submetida a exame complementar, não se justifica substituí-lo pela prova testemunhal. Dessa forma, somente em casos
justificáveis (ausência de perito que possa realizar o exame,
impossibilidade da vítima de se locomover para que possa ser
submetida à perícia complementar etc.), é que se permite que a falta
do exame complementar seja suprida pela prova testemunhal. Caso
contrário, não deverá ser aplicada a qualificadora.
Por último, vale ressaltar que o prazo em estudo, que qualifica
as lesões corporais, é de natureza penal, ou seja, é contado nos
moldes preconizados pelo art. 10 do Código Penal, que diz que o
dia do começo inclui-se no cômputo do prazo. Tal ilação se coaduna
com aquilo que determina a parte final do § 2º do art. 168 do Código
de Processo Penal, que determina que o exame complementar seja
feito logo que decorra o prazo de 30 (trinta) dias, contado da data do
crime.
II – Perigo de vida
Ao contrário da qualificadora anteriormente analisada, para que
o perigo de vida qualifique o crime de lesões corporais, esse
resultado não pode ter sido querido pelo agente, isto é, não pode ter
agido com dolo de causar perigo à vítima contra a qual eram
praticadas as lesões corporais.
Trata-se, portanto, de qualificadora de natureza culposa, sendo
as lesões corporais qualificadas pelo perigo de vida um crime
eminentemente preterdoloso, ou seja, havendo dolo no que diz
respeito ao cometimento das lesões corporais e culpa quanto ao
resultado agravador.
Se o agente, quando agredia a vítima, atuava com dolo no
sentido de causar-lhe perigo de vida, na verdade agia com o dolo do
delito de homicídio, razão pela qual, sobrevivendo a vítima, deverá
responder por tentativa de homicídio, e não por lesão corporal
qualificada pelo perigo de vida.
Merecem destaque as lições do renomado professor de
Medicina Legal, Flamínio Fávero, quando esclarece:
“O perigo de vida, pois, se mede pela natureza e sede da lesão.
É inútil observar, porque se impõe, que o perito precisa ser
rigorosamente criterioso na resposta afirmativa a esse quesito,
porquanto depende dela a classificação exata do ferimento.
Auxilia a solução do problema pericial o seguinte conceito de
Biamonte (apud Altavilla, ‘Delitti Contro la Persona’): tem-se o
perigo de vida ou a probabilidade de morte sempre que no
decorrer de processo patológico, gerado pela lesão, há um
momento, mais ou menos longe, no qual as condições
orgânicas do paciente e o conjunto dos particulares do caso
fazem presumir, ao homem de ciência, provável êxito letal.
Deve, pois, à anterior experiência genérica do profissional,
juntar-se o subsídio da real existência do perigo, por
circunstâncias ocasionais, pessoais etc. É o caso de um dano
físico, em si, de pouca monta, mas que, incidindo em indivíduo
de resistência precária, pode determinar perigo de vida.”8
E, ainda, como bem observado por Noronha:
“Não basta a idoneidade da lesão para criar a situação de
perigo: é mister que esta se tenha realmente manifestado.
Assim, por exemplo, um ferimento no pulmão é geralmente
perigoso; todavia pode, no caso concreto, a constituição
excepcional do ofendido, a natureza do instrumento ou qualquer
outra circunstância impedir que se verifique esse risco. A lesão
grave só existe, portanto, se, em um dado momento, a vida do
sujeito passivo esteve efetivamente em perigo. Compete ao
perito médico-legal essa verificação.”9
Não podemos deixar de lembrar que, uma vez adotado o
princípio da culpabilidade, que proíbe a chamada responsabilidade
penal objetiva, o agente somente poderá ser responsabilizado pela
qualificadora do perigo de vida se, embora não querendo esse
resultado, lhe fosse previsível que seu comportamento pudesse
causá-lo, uma vez que o art. 19, textualmente, afirma: Pelo
resultado que agrava especialmente a pena, só responde o agente
que o houver causado ao menos culposamente.
Dessa forma, ausente a previsibilidade, característica
inafastável para que se possa atribuir culposamente um resultado a
alguém, embora o comportamento do agente, objetivamente, tenha
trazido perigo à vida da vítima, não poderá incidir a qualificadora em
estudo.
Aqui, também, vale o alerta levado a efeito na qualificadora
anterior de que os peritos não podem realizar prognósticos, mas,
sim, diagnósticos. Devem afirmar que, no momento em que
avaliaram a vítima, em virtude da natureza e sede das lesões, por
exemplo, estas lhe trouxeram perigo de vida.
III – Debilidade permanente de membro, sentido ou função
A qualificadora da debilidade permanente de membro, sentido
ou função permite que tal resultado possa ser atribuído ao agente a
título de dolo, direto ou eventual, ou mesmo culposamente, desde
que tal resultado tenha sido previsível, em atenção ao art. 19 do
diploma repressivo.
Dessa forma, pode o agente dirigir finalisticamente sua conduta
no sentido de arrancar um dos olhos da vítima ou, mesmo sem ter
essa intenção, pode ter produzido o resultado depois de agredi-la
violentamente no rosto.
A debilidade, no sentido empregado pela lei penal, significa
enfraquecimento ou redução da capacidade funcional.
Quando se exige debilidade permanente, para fins de
configuração da qualificadora em estudo, não se deve entender a
permanência no sentido de eterno, melhor ainda, sem possibilidade
de retorno à capacidade original. A melhor ilação do inciso em
estudo é aquela que entende a permanência no sentido de
duradouro, mesmo que reversível após longo tempo.
Nesse sentido, Luiz Regis Prado afirma:
“Exige-se que a debilidade seja permanente, o que não implica
perpetuidade. A debilidade permanente é, portanto, a redução
duradoura da plena capacidade de um membro, sentido ou
função.”10
Assim, imagine-se o caso daquele que teve seu braço
lesionado e, por conta das lesões sofridas, enfraquecido que foi o
membro superior, não podia mais, por exemplo, carregar qualquer
tipo de peso. Submetida a incontáveis sessões de fisioterapia, anos
mais tarde, a vítima consegue fazer regredir a debilidade,
retornando ao statu quo, isto é, voltando a ter a força e a mobilidade
anteriores às lesões sofridas.
Embora tenha retornado à sua situação original, deve ser
aplicada a qualificadora, uma vez que o seu retorno à situação
anterior, graças às sessões fisioterápicas, não tem o condão de
afastar o raciocínio correspondente à permanência, pois esta,
conforme conclui Aníbal Bruno, é aquela que “não se pode
determinar, previamente, mesmo por aproximação, se e quando terá
fim.”11
Essa debilidade permanente deve estar ligada aos membros,
sentidos ou funções. Os membros são subdivididos em superiores e
inferiores. Por membros superiores devem ser entendidos o braço, o
antebraço e a mão. Inferiores, a seu turno, são a coxa, a perna e o
pé. Os dedos, como salienta Guilherme de Souza Nucci, “são
apenas partes dos membros, de modo que a perda de um dos
dedos constitui-se em debilidade permanente da mão ou do pé.”12
O ser humano possui cinco sentidos: visão, olfato, audição, tato
e paladar. Se em razão das lesões sofridas houver debilidade em
qualquer um deles, qualifica-se o crime. Assim, por exemplo, a
vítima que, agredida violentamente, perdeu um dos olhos, ou
mesmo ficou surda de um de seus ouvidos, o caso é tratado como
debilidade, isto é, diminuição, redução da capacidade de enxergar
ou ouvir. Se tivesse ficado completamente cega ou surda, como
veremos adiante, o caso não seria tratado como debilidade, mas,
sim, como perda ou inutilização do sentido, transformando a lesão
corporal de grave em gravíssima, nos termos do inciso III do § 2º do
art. 129 do Código Penal.
Função, segundo a definição de Hungria, “é a atuação
específica exercida por qualquer órgão. As principais funções são
em número de sete: digestiva, respiratória, circulatória, secretora,
reprodutora, sensitiva e locomotora.”13 Tratando-se de órgãos
duplos, a exemplo dos rins, a perda de um deles se configura como
debilidade permanente da função renal, e não perda dessa referida
função. Obviamente que, no caso sugerido, se a vítima somente
contava com um dos rins, uma vez que já havia se submetido a uma
cirurgia para extração do outro órgão, a perda do segundo rim,
obrigando-a a realizar, em regime de urgência, um transplante,
importará na aplicação da qualificadora correspondente à lesão
gravíssima, prevista no inciso III do § 2º do art. 129 do Código
Penal.
IV – Aceleração de parto
Embora a lei penal se valha da expressão aceleração de parto
para qualificar a lesão corporal, teria sido melhor a utilização da
expressão antecipação de parto, uma vez que somente se pode
acelerar aquilo que já teve início.
Prima facie, a qualificadora da aceleração de parto somente
pode ser atribuída ao agente a título de culpa, sendo a infração
penal, ou seja, a lesão corporal qualificada pela aceleração de parto,
de natureza preterdolosa.
Se o agente atuava no sentido de interromper a gravidez com a
consequente expulsão do feto, o seu dolo era o de aborto, e não o
de lesão corporal qualificada pela aceleração de parto.
Se o feto sobrevive, mesmo após o comportamento do agente
dirigido finalisticamente à interrupção da gravidez, com a sua
consequente expulsão, deverá ser responsabilizado pela tentativa
de aborto.
Dessa forma, somente se pode classificar o comportamento
praticado pelo agente como lesão corporal qualificada mediante
aceleração de parto se o seu dolo era tão somente o de produzir
lesão em uma mulher que sabidamente se encontrava grávida e
que, dada sua particular condição de gestante, veio dar à luz
prematuramente ao feto, antecipando o parto.
Merece destaque tal raciocínio porque o dolo do agente era o
de ofender a integridade corporal da gestante, sendo que daí adveio
um resultado agravador, que lhe era perfeitamente previsível.
Imagine-se a hipótese daquele que, ao chegar em casa, discuta
com sua esposa, que se encontrava grávida, sendo tal situação do
conhecimento do agente, e este, covardemente, a agrida com um
soco no rosto. Em virtude da agressão, a gestante cai, começa a
sentir contrações e é encaminhada ao hospital mais próximo, sendo
que, pouco tempo depois, ocorre a expulsão prematura do feto, que
sobrevive.
Em tal hipótese, o agente deverá responder pelo delito de lesão
corporal qualificada pelo resultado aceleração de parto.
Mais uma vez, não custa alertar que o resultado agravador
deve ter sido previsível para o agente. Se ele, por exemplo, não
tinha conhecimento da gravidez de sua esposa, terá de responder
tão somente pelas lesões nela produzidas, afastando-se a
qualificadora da aceleração de parto, nos termos do art. 19 do
Código Penal.
Tal situação não é de todo inviável. Imagine-se que uma
gestante, portadora de obesidade mórbida, grávida, não conte esse
fato a seu marido, que, dado o excesso de gordura da sua mulher,
não percebe a gravidez. Após agredi-la, ela é conduzida ao hospital,
havendo a expulsão prematura do feto, que sobrevive. O marido
agressor deverá responder tão somente pelos resultados advindos
de seu comportamento, excluindo-se a qualificadora da aceleração
de parto, uma vez que tal resultado não lhe era previsível, por
desconhecer a gravidez.
1.7.2
Lesões corporais gravíssimas
I – Incapacidade permanente para o trabalho
A qualificadora em estudo diz respeito à perda ou à inaptidão
permanente para o trabalho.
Esse resultado qualificador pode ter sido produzido dolosa ou
culposamente. Admite-se tanto o dolo direto quanto o eventual; na
modalidade culposa, como já temos alertado nos estudos anteriores,
faz-se mister seja o resultado previsível para o agente.
A incapacidade diz respeito à impossibilidade, de caráter
duradouro, para o trabalho. É conhecida a discutível posição de
Hungria quando afirma que a lei penal não se referia:
“À ocupação habitual do ofendido, mas ao trabalho in genere. O
ofendido deve ficar privado da possibilidade, física ou psíquica,
de aplicar-se a qualquer atividade lucrativa. O vocábulo trabalho
é empregado em sentido restrito, isto é, como livre movimento
ou emprego do corpo para um fim econômico.”14
Damásio de Jesus, corroborando as lições de Hungria, afirma:
“Devemos considerar o trabalho genérico. Suponha-se que um
violinista, em consequência de lesão corporal, fique
incapacitado permanentemente para o trabalho. Responde o
autor da lesão corporal pela qualificadora da incapacidade
permanente para o trabalho? Cremos que não, uma vez que,
embora não possa exercer a profissão de violinista, pode
exercer outro trabalho. Assim, só funciona a qualificadora
quando o ofendido, em face de ter sofrido lesão corporal, ficar
permanentemente incapacitado para qualquer espécie de
trabalho.”15
Apesar da força do raciocínio dos renomados tratadistas,
permissa vênia, ousamos discordar da conclusão por eles
assumida. Isso porque, quando a lei penal menciona a incapacidade
para o trabalho, se fizermos uma interpretação muito elástica do
inciso em questão, basicamente ninguém responderá por essa
modalidade de lesão corporal qualificada.
Como regra, sempre podemos visualizar uma situação em que
a vítima poderia trabalhar. Existem, como sabemos, casos de
pessoas que ficaram tetraplégicas e que conseguem fazer pinturas
prendendo o pincel entre os dentes. Não podemos chegar a
raciocínios que se distanciam, em muito, da mens legis.
Se a vítima exercia uma atividade intelectual e, em razão das
lesões sofridas, não mais poderá trabalhar em atividades dessa
natureza, entendemos ser cabível a qualificadora. Mesmo que só
pudesse, agora, depois das lesões sofridas, exercer atividades
braçais, ainda assim deveríamos entender pelas lesões qualificadas.
Nesse sentido, são precisas as lições de Álvaro Mayrink da
Costa, quando, analisando a natureza do trabalho para o qual está
incapacitada a vítima, assevera:
“A doutrina advoga que significa qualquer modalidade de
trabalho e não especificamente o trabalho a que a vítima se
dedicava. Contudo, há necessidade de serem estabelecidas
certas restrições, visto que não se pode exigir de um intelectual
ou de um artista que se inicie na atividade de pedreiro. Fixa-se
o campo do factualmente possível e não no teoricamente
imaginável.”16
A incapacidade deve ser permanente, isto é, duradoura, mas
não necessariamente perpétua. É possível que a vítima, algum
tempo depois de sofrida a lesão, volte a se capacitar normalmente
para o trabalho. O que importa, aqui, como afirmamos, é que essa
incapacidade tenha caráter duradouro, sem tempo certo para se
restabelecer.
II – Enfermidade incurável
Cezar Roberto Bitencourt esclarece que enfermidade:
“É um processo patológico em curso. Enfermidade incurável é a
doença cuja curabilidade não é conseguida no atual estágio da
Medicina, pressupondo um processo patológico que afeta a
saúde em geral. A incurabilidade deve ser conformada com
dados da ciência atual, com um juízo de probabilidade.”17
A medicina aponta algumas doenças que são entendidas
atualmente como incuráveis, a exemplo da lepra, da tuberculose, da
sífilis, da epilepsia etc.
Admite-se que a qualificadora da enfermidade incurável possa
resultar do comportamento doloso ou mesmo culposo do agente.
“O ato de propagar síndrome da imunodeficiência adquirida não
é tratado no Capítulo III, Título I, da Parte Especial, do Código
Penal (art. 130 e seguintes), onde não há menção a
enfermidades sem cura. Inclusive, nos debates havidos no
julgamento do HC 98.712/RJ, o eminente Ministro Ricardo
Lewandowski, ao excluir a possibilidade de a Suprema Corte,
naquele caso, conferir ao delito a classificação de ‘Perigo de
contágio de moléstia grave’ (art. 131 do Código Penal),
esclareceu que, ‘no atual estágio da ciência, a enfermidade é
incurável, quer dizer, ela não é só grave, nos termos do art.
131’. Na hipótese de transmissão dolosa de doença incurável, a
conduta deverá será apenada com mais rigor do que o ato de
contaminar outra pessoa com moléstia grave, conforme
previsão clara do art. 129, § 2º, inciso II, do Código Penal. A
alegação de que a Vítima não manifestou sintomas não serve
para afastar a configuração do delito previsto no art. 129, § 2º,
inciso II, do Código Penal. É de notória sabença que o
contaminado pelo vírus do HIV necessita de constante
acompanhamento médico e de administração de remédios
específicos, o que aumenta as probabilidades de que a
enfermidade permaneça assintomática. Porém, o tratamento
não enseja a cura da moléstia” (STJ, HC 160.982/DF, Rel.ª
Min.ª Laurita Vaz, 5ª T., RT, v. 925, p. 663).
III – Perda ou inutilização de membro, sentido ou função
Tal como ocorre com a hipótese prevista no inciso II do § 2º do
art. 129 do Código Penal, a qualificadora correspondente à perda ou
à inutilização de membro, sentido ou função pode ser atribuída ao
agente a título de dolo, direto ou eventual, ou mesmo culposamente.
O que não se admite, como frisamos, é a responsabilização
puramente objetiva, sem que, ao menos, tenha o agente incorrido
em culpa, conforme determinação contida no art. 19 do diploma
penal.
Perda, como destaca Guilherme de Souza Nucci:
“Implica em destruição ou privação de algum membro (ex.:
corte de um braço), sentido (ex.: aniquilamento dos olhos) ou
função (ex.: ablação da bolsa escrotal, impedindo a função
reprodutora); inutilização quer dizer falta de utilidade, ainda que
fisicamente esteja presente o membro ou o órgão humano.
Assim, inutilizar um membro seria a perda de movimento da
mão ou a impotência para o coito, embora sem remoção do
órgão sexual.”18
Comparativamente à lesão grave que importe em debilidade,
mais do que o simples enfraquecimento, a qualificadora em exame
exige a perda, isto é, a ablação de qualquer membro, superior ou
inferior, ou mesmo sua completa inutilização. Isso significa que,
mesmo existindo o membro, não possui ele qualquer capacidade
física de ser utilizado. Quando a vítima, por exemplo, sofre lesões
no braço, tornando-o débil, fraco, mas ainda pode ser utilizado,
embora não mais com a força e a capacidade anteriores, a hipótese
será considerada como debilidade; ao contrário, se as lesões
sofridas pela vítima fazem com que seu braço, embora fisicamente
ainda preso ao seu corpo, não possa mais ser utilizado para
qualquer movimento rotineiro, o caso será o de inutilização.
No mesmo sentido é o raciocínio quanto à perda ou inutilização
de sentido ou função. Se, por exemplo, com a lesão sofrida, a vítima
passa a ter dificuldades em sua audição, o caso será resolvido
como de debilidade de sentido. Agora, se com as lesões sofridas
fica completamente surda, o comportamento se amoldará à
qualificadora constante do inciso III do § 2º do art. 129.
IV – Deformidade permanente
Deformar significa, aqui, modificar esteticamente a forma
anteriormente existente. Grande parte de nossos doutrinadores
entende que, para que se possa aplicar a qualificadora em estudo,
há necessidade de que a deformidade seja aparente, causando
constrangimento à vítima perante a sociedade.
Dissertando sobre a deformidade permanente, diz Noronha:
“Acerca do conceito desta, variam as opiniões: uns exigem que
o dano estético seja de vulto, impressionando logo o
observador; outros contentam-se com o prejuízo mínimo; e
ainda outros colocam-se entre esses dois grupos; a lesão à
estética deve ser de certa monta, preocupando, causando
mesmo vexame ao portador e desgosto ou desagrado a quem o
vê, sem ser necessário atingir os limites de coisa horripilante ou
aleijão. É a opinião que nos parece mais certa.”19
Além do mais, a lei penal não exige que o dano seja visível, isto
é, que esteja ao alcance de todos. Pode, em muitas situações, ser
visto tão somente por um número limitado de pessoas, a exemplo
dos danos ocorridos em partes do corpo da vítima que somente
serão percebidos pelo seu marido.
O que se exige para que se configure a qualificadora é que a
deformidade tenha certo significado, quer dizer, não seja um dano
insignificante, quase que desprezível, como a marca deixada no
corpo da vítima que lhe proporciona um aspecto de “arranhão.”
A deformidade, de acordo com o raciocínio antes expendido,
deverá modificar de forma visível e grave o corpo da vítima, mesmo
que essa visibilidade somente seja limitada a algumas pessoas.
Não se deve entender a permanência no sentido de
perpetuidade, ou seja, sem possibilidade de retorno à capacidade
original. A melhor ilação do inciso em estudo é aquela que entende
a permanência num sentido duradouro, mesmo que reversível, por
exemplo, com o recurso à cirurgia plástica, pois, conforme
corretamente afirmam Calderón Cerezo e Choclán Montalvo, a
“enfermidade é apreciável penalmente ainda que sua correção
posterior seja possível mediante tratamento cirúrgico.”20
Poderá a qualificadora ser atribuída a título de dolo, direto ou
eventual, ou culpa.
V – Aborto
Tal como a hipótese de aceleração de parto, para que o aborto
qualifique as lesões corporais sofridas pela vítima, tal resultado não
poderá ter sido querido, direta ou eventualmente, pelo agente,
sendo, portanto, um resultado qualificador que somente poderá ser
atribuído a título de culpa.
Trata-se, outrossim, de crime preterdoloso. A conduta deve ter
sido dirigida finalisticamente a produzir lesões corporais na vítima,
cuja gravidez era conhecida pelo agente. Contudo, o resultado
aborto não estava abrangido pelo seu dolo, direto ou eventual,
sendo-lhe, entretanto, previsível.
O raciocínio é o mesmo levado a efeito quando do estudo da
qualificadora relativa à aceleração de parto, devendo ser
observadas as disposições contidas no art. 19 do Código Penal.
Caso o agente tenha atuado com dolo de produzir a expulsão
do feto, seja esse dolo direto ou eventual, o fato será classificado
como delito de aborto (art. 125 do CP).
1.8
Lesão corporal seguida de morte
A lesão corporal seguida de morte veio prevista no § 3º do art.
129 do Código Penal, assim redigido:
§ 3º Se resulta morte e as
circunstâncias evidenciam que o
agente não quis o resultado, nem
assumiu o risco de produzi-lo:
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 12
(doze) anos.
Cuida-se, no caso, de crime eminentemente preterdoloso. A
conduta do agente deve ter sido finalisticamente dirigida à produção
das lesões corporais, tendo o resultado morte sido produzido a título
de culpa.
A redação da lei penal é clara no sentido de que o agente, para
que seja responsabilizado pelo delito de lesão corporal seguida de
morte, não pode ter querido o resultado, agindo, portanto, com dolo
direto ou mesmo assumindo o risco de produzi-lo, atuando com dolo
eventual.
Ressalte-se, por mais uma vez, que a morte, obrigatoriamente,
deve ter sido previsível para o agente, pois, caso contrário, somente
poderá ser responsabilizado pelas lesões corporais praticadas, sem
a incidência da qualificadora.
Imagine-se a hipótese em que A se encontre com seu desafeto
B numa praia. Assim que o vê, agindo com dolo de lesão, desferelhe uma “rasteira”, fazendo com que ele caia e bata com a cabeça
na areia. Para infelicidade da vítima, no local onde caiu, havia
oculta, por debaixo da areia, uma pedra de grandes proporções,
sendo que a vítima nela bate a cabeça e sofre traumatismo
craniano, vindo a morrer. Pergunta-se: era previsível que por
debaixo daquela areia estivesse oculta uma pedra na qual a vítima,
caindo, nela pudesse bater a cabeça? A resposta só pode ser
negativa, razão pela qual o crime a ser imputado ao agente seria o
de lesão corporal (simples, grave ou gravíssima), dependendo do
resultado que nela fora produzido antes da sua morte, afastando-se,
contudo, o § 3º do art. 129 do Código Penal, em face da ausência
de previsibilidade.
A título de raciocínio, se mudássemos o local da agressão, por
exemplo, para o interior de um restaurante, modificaríamos,
também, a conclusão do nosso problema? Sim, visto que seria
previsível que a vítima, caindo, pudesse bater com a cabeça no
chão, vindo a sofrer, devido ao impacto, traumatismo craniano,
razão pela qual o delito a ser imputado ao agente seria o de lesão
corporal seguida de morte.
A Lei nº 13.142, de 6 de julho de 2015, inseriu o inciso I-A no
art. 1º da Lei nº 8.072/90, passando a considerar como hedionda a
lesão corporal seguida de morte (art. 129, § 3º, do CP), bem como a
lesão corporal dolosa de natureza gravíssima (art. 129, § 2º, do CP),
quando praticadas contra autoridade ou agente descrito nos arts.
142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional
e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função
ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou
parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição.
1.9
Lesão corporal culposa
Entendeu por bem o legislador, seguindo a tradição de nossa
legislação penal, punir a lesão corporal de natureza culposa.
Conforme explicitado no item 42 da Exposição de Motivos à parte
especial do Código Penal:
42. Não se distingue, aqui, entre a
maior ou menor importância do dano
material: leve ou grave a lesão, a
pena é a mesma, isto é, detenção de
2 (dois) meses a 1 (um) ano.
Isso significa que se a vítima, em virtude das lesões corporais
sofridas, ficou paralítica, uma vez concluído que o fato se subsume
ao delito de lesão corporal culposa, tal resultado terá repercussão
quando da aplicação da pena, não modificando, contudo, a natureza
do delito.
O que se exige, na verdade, para a caracterização do § 6º do
art. 129 do Código Penal é que estejam presentes todos os
requisitos necessários à configuração do delito culposo, devendo o
julgador realizar um trabalho de adequação à figura típica, haja vista
tratar-se de tipo penal aberto.
Caso as lesões corporais de natureza culposa tenham sido
produzidas pelo agente que se encontrava na direção de seu
veículo automotor, em virtude do princípio da especialidade, terá
aplicação o art. 303 do Código de Trânsito Brasileiro, que diz:
Art. 303. Praticar lesão corporal
culposa na direção de veículo
automotor:
Penas – detenção, de 6 (seis) meses
a 2 (dois) anos e suspensão ou
proibição de se obter a permissão ou
a habilitação para dirigir veículo
automotor.
1.10
Violência doméstica
A Lei nº 10.886, de 17 de junho de 2004, acrescentou os §§ 9º
e 10 ao art. 129 do Código Penal, criando, por intermédio do
primeiro, o delito de violência doméstica, com a seguinte redação:
§ 9º Se a lesão for praticada contra
ascendente, descendente, irmão,
cônjuge ou companheiro, ou com
quem conviva ou tenha convivido, ou,
ainda, prevalecendo-se o agente das
relações domésticas, de coabitação
ou de hospitalidade:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a
3 (três) anos.
Inicialmente, vale ressaltar que quase todas as situações
previstas no mencionado parágrafo já figuravam em nosso Código
Penal como circunstâncias agravantes, previstas nas alíneas e e f
do inciso II do seu art. 61. Agora, especificamente no crime de lesão
corporal, terão o condão de qualificá-lo, uma vez que a Lei nº
11.340, de 7 de agosto de 2006, que criou mecanismos para coibir a
violência doméstica e familiar contra a mulher, embora mantendo a
redação original do § 9º do art. 129 do Código Penal, modificou a
pena anteriormente cominada, passando a prever uma pena de
detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos.
Discorrendo sobre a nova criação típica, Damásio de Jesus
esclarece:
“Em primeiro lugar, o tipo menciona as figuras do ascendente,
descendente, irmão, cônjuge ou companheiro. Cremos que não
é imprescindível a coabitação entre o autor e a vítima, i.e.,
basta existir relação doméstica, familiar, para incidir o tipo.
Exemplo: por ocasião de uma visita, um irmão agride outro,
ferindo-o, apesar de morarem em cidades diferentes. É também
sujeito passivo a pessoa ‘com quem’ o agente ‘conviva ou tenha
convivido’. Não se pode restringir sua aplicação ao regime de
união estável. De ver-se que o tipo fala expressamente em
‘companheiro’. Por isso, a convivência, desde que seja
doméstica, faz incidir o tipo. Exemplo: moradores de um
aposento de república de estudantes. Se a convivência é
passada (tenham convivido), acreditamos que a melhor
interpretação exige que a lesão corporal tenha sido provocada
em razão da vivência anterior ocorrida entre o autor e vítima.”21
Na verdade, a violência doméstica, ou seja, aquela que ocorre,
especificamente, nos lares, não é um produto de nossa sociedade
moderna, pois sempre aconteceu. No entanto, em um passado não
muito distante, argumentávamos, a fim de não proteger suas
vítimas, que aquilo dizia respeito a um problema de família e que
terceiros, estranhos àquela relação, “não tinham que se meter.” É
muito conhecido o ditado popular que diz: “Em briga de marido e
mulher, ninguém mete a colher.” Esses anos todos de passividade
estatal fizeram com que a violência nos lares aumentasse cada dia
mais. Assim, é muito comum a violência praticada por pais contra
filhos, filhos contra pais, avós e, principalmente, por maridos contra
suas esposas. Proporcionalmente, é infinitamente superior o número
de casos de agressão contra mulher. Hassemer e Muñoz Conde,
dissertando sobre o tema, esclarecem:
“Entre os grupos de vítimas que mais estão representadas nas
atuais pesquisas de vitimização e que são objeto de estudos
especiais e investigações se encontram as mulheres
maltratadas no âmbito familiar por seu companheiro ou cônjuge.
Provavelmente nenhuma relação de convivência humana é tão
conflitiva e produtora de violência como a família, e dentro dela
a conjugal ou de companheirismo.”22
José Sanmartín, com precisão, descreve o perfil do agressor
nas hipóteses de violência doméstica dizendo:
“Cuida-se, por um lado, de uma pessoa cuja imagem amistosa
e correta não corresponde com seu comportamento privado, o
que se traduz frequentemente na percepção social da vítima
como uma pessoa histérica ou exagerada. Por outra parte, o
agressor costuma reduzir a importância de seus ataques ou
simplesmente os nega, quando não se dedica a culpar os
outros e, em particular, a vítima de provocar suas agressões,
valendo-se de todos os recursos que tiver ao seu alcance para
isolá-la socialmente e atingi-la psicologicamente. Por último, o
agressor costuma abusar do álcool e outras substâncias
tóxicas.”23
Embora devamos proteger, cada dia mais, as vítimas de
violência doméstica, tais situações não devem ficar a cargo,
exclusivamente, do Direito Penal. Programas devem ser
implementados pelo Estado, fazendo com que os agressores se
submetam a tratamentos psicológicos, terapêuticos etc. Imagine-se
a hipótese em que uma mulher, agredida por seu marido, denuncie
o fato às autoridades, oferecendo sua necessária representação,
permitindo, assim, o início da persecução penal. A regra será que,
assim agindo, também estará pondo fim ao seu casamento, pois a
convivência com o agressor, a partir de sua submissão à Justiça
Penal, será muito complicada. No entanto, muitas mulheres
agredidas amam seus maridos e entendem que eles necessitam
mais de um socorro psicológico do Estado do que efetivamente da
prisão.
Por causa disso, foi editada a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de
2006, criando mecanismos para coibir a violência doméstica e
familiar contra a mulher, regulamentando, assim, o § 8º do art. 226
da Constituição Federal, bem como se amoldando à Convenção
sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as
mulheres (ONU, 18 de dezembro de 1979) e à Convenção
interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a
mulher (Convenção de Belém do Pará, adotada pela Assembleia
Geral da Organização dos Estados Americanos em 6 de junho de
1994 e ratificada pelo Brasil em 27 de novembro de 1995).
Dispondo sobre as modalidades de configuração de violência
doméstica e familiar contra a mulher, o art. 5º da Lei nº 11.340, de 7
de agosto de 2006, assevera:
Art. 5º Para os efeitos desta Lei,
configura violência doméstica e
familiar contra a mulher qualquer ação
ou omissão baseada no gênero que
lhe cause morte, lesão, sofrimento
físico, sexual ou psicológico e dano
moral ou patrimonial:
I – no âmbito da unidade doméstica,
compreendida como o espaço de
convívio permanente de pessoas, com
ou sem vínculo familiar, inclusive as
esporadicamente agregadas;
II
–
no
âmbito
da
família,
compreendida como a comunidade
formada por indivíduos que são ou se
consideram aparentados, unidos por
laços naturais, por afinidade ou por
vontade expressa;
III – em qualquer relação íntima de
afeto, na qual o agressor conviva ou
tenha convivido com a ofendida.
Parágrafo
único.
As
relações
pessoais enunciadas neste artigo
independem de orientação sexual.
Merece ser esclarecido, nesta oportunidade, que o § 9º do art.
129 do Código Penal deverá ser aplicado não somente aos casos
em que a mulher for vítima de violência doméstica ou familiar, mas a
todas as pessoas, sejam do sexo masculino ou feminino, que se
amoldarem às situações narradas pelo tipo.
No entanto, quando a mulher for vítima de violência doméstica
ou familiar, figurando como sujeito passivo do delito de lesões
corporais, tal fato importará em tratamento mais severo ao autor da
infração penal, haja vista que o art. 41 da Lei nº 11.340, de 7 de
agosto de 2006, proíbe a aplicação da Lei nº 9.099/95.
Além disso, deve ser lembrado que a hipótese de violência
doméstica, prevista no § 9º do art. 129 do Código Penal, ainda se
configura como lesão corporal leve, embora qualificada. Por isso, de
acordo com a posição majoritária da doutrina, seria possível a
aplicação das penas substitutivas previstas no art. 44 do Código
Penal.
No entanto, se o sujeito passivo for mulher, tal substituição não
poderá importar na aplicação de cesta básica ou outras de
prestação pecuniária, bem como no pagamento isolado de multa,
nos termos preconizados pelo art. 17 da Lei nº 11.340, de 7 de
agosto de 2006.
Em 18 de setembro de 2017, o Superior Tribunal de Justiça
publicou as Súmulas nºs 588 e 589, dizendo:
Súmula nº 588. A prática de crime ou
contravenção penal contra a mulher
com violência ou grave ameaça no
ambiente doméstico impossibilita a
substituição da pena privativa de
liberdade por restritiva de direitos.
Súmula nº 589. É inaplicável o
princípio da insignificância nos crimes
ou contravenções penais praticados
contra a mulher no âmbito das
relações domésticas.
No dia 22 de novembro de 2017, a 3ª Seção do Superior
Tribunal de Justiça aprovou a Súmula nº 600, dizendo:
Súmula nº 600. Para a configuração
da violência doméstica e familiar
prevista no art. 5º da Lei nº
11.340/2006 (Lei Maria da Penha) não
se exige a coabitação entre autor e
vítima.
As Leis nºs 13.505/2017 e 13.505, 13.827, 13.880, 13.882 e
13.894, essas últimas todas publicadas em 2019, acrescentaram
importantes dispositivos à Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006
(Lei Maria da Penha), prevendo o seguinte:
Art. 9º [...] § 7º A mulher em situação
de violência doméstica e familiar tem
prioridade para matricular seus
dependentes em instituição de
educação básica mais próxima de seu
domicílio, ou transferi-los para essa
instituição, mediante a apresentação
dos documentos comprobatórios do
registro da ocorrência policial ou do
processo de violência doméstica e
familiar em curso. (Incluído pela Lei nº
13.882, de 2019.) § 8º Serão sigilosos
os dados da ofendida e de seus
dependentes
matriculados
ou
transferidos conforme o disposto no §
7º deste artigo, e o acesso às
informações será reservado ao juiz,
ao Ministério Público e aos órgãos
competentes do poder público.
(Incluído pela Lei nº 13.882, de 2019.)
Art. 10-A. É direito da mulher em
situação de violência doméstica e
familiar o atendimento policial e
pericial especializado, ininterrupto e
prestado
por
servidores
–
preferencialmente do sexo feminino –
previamente capacitados.
§ 1º A inquirição de mulher em
situação de violência doméstica e
familiar ou de testemunha de violência
doméstica, quando se tratar de crime
contra a mulher, obedecerá às
seguintes diretrizes:
I – salvaguarda da integridade física,
psíquica e emocional da depoente,
considerada a sua condição peculiar
de pessoa em situação de violência
doméstica e familiar;
II – garantia de que, em nenhuma
hipótese, a mulher em situação de
violência
doméstica
e
familiar,
familiares e testemunhas terão
contato direto com investigados ou
suspeitos
e
pessoas
a
eles
relacionadas;
III – não revitimização da depoente,
evitando sucessivas inquirições sobre
o mesmo fato nos âmbitos criminal,
cível e administrativo, bem como
questionamentos
sobre
a
vida
privada.
§ 2º Na inquirição de mulher em
situação de violência doméstica e
familiar ou de testemunha de delitos
de que trata esta Lei, adotar-se-á,
preferencialmente,
o
seguinte
procedimento:
I – a inquirição será feita em recinto
especialmente projetado para esse
fim, o qual conterá os equipamentos
próprios e adequados à idade da
mulher em situação de violência
doméstica e familiar ou testemunha e
ao tipo e à gravidade da violência
sofrida;
II – quando for o caso, a inquirição
será intermediada por profissional
especializado em violência doméstica
e familiar designado pela autoridade
judiciária ou policial;
III – o depoimento será registrado em
meio
eletrônico
ou
magnético,
devendo a degravação e a mídia
integrar o inquérito. [...] Art. 12-A. Os
Estados e o Distrito Federal, na
formulação de suas políticas e planos
de atendimento à mulher em situação
de violência doméstica e familiar,
darão prioridade, no âmbito da Polícia
Civil, à criação de Delegacias
Especializadas de Atendimento à
Mulher
(Deams),
de
Núcleos
Investigativos de Feminicídio e de
equipes
especializadas
para
o
atendimento e a investigação das
violências graves contra a mulher.
Art. 12-C. Verificada a existência de
risco atual ou iminente à vida ou à
integridade física da mulher em
situação de violência doméstica e
familiar, ou de seus dependentes, o
agressor será imediatamente afastado
do lar, domicílio ou local de
convivência com a ofendida: (Incluído
pela Lei nº 13.827, de 2019.) I – pela
autoridade judicial; (Incluído pela Lei
nº 13.827, de 2019.) II – pelo
delegado de polícia, quando o
Município não for sede de comarca;
ou (Incluído pela Lei nº 13.827, de
2019.) III – pelo policial, quando o
Município não for sede de comarca e
não houver delegado disponível no
momento da denúncia. (Incluído pela
Lei nº 13.827, de 2019.) § 1º Nas
hipóteses dos incisos II e III do caput
deste artigo, o juiz será comunicado
no prazo máximo de 24 (vinte e
quatro) horas e decidirá, em igual
prazo, sobre a manutenção ou a
revogação da medida aplicada,
devendo dar ciência ao Ministério
Público concomitantemente. (Incluído
pela Lei nº 13.827, de 2019.) § 2º Nos
casos de risco à integridade física da
ofendida ou à efetividade da medida
protetiva de urgência, não será
concedida liberdade provisória ao
preso. (Incluído pela Lei nº 13.827, de
2019.) Art. 18. Recebido o expediente
com o pedido da ofendida, caberá ao
juiz, no prazo de 48 (quarenta e oito)
horas: (...) II – determinar o
encaminhamento da ofendida ao
órgão de assistência judiciária,
quando for o caso, inclusive para o
ajuizamento da ação de separação
judicial, de divórcio, de anulação de
casamento ou de dissolução de união
estável perante o juízo competente;
(Redação dada pela Lei nº 13.894, de
2019.) (...) IV – determinar a
apreensão imediata de arma de fogo
sob a posse do agressor. (Incluído
pela Lei nº 13.880, de 2019.) Art. 23.
Poderá o juiz, quando necessário,
sem prejuízo de outras medidas: (...)
V – determinar a matrícula dos
dependentes
da
ofendida
em
instituição de educação básica mais
próxima do seu domicílio, ou a
transferência
deles
para
essa
instituição, independentemente da
existência de vaga. (Incluído pela Lei
nº 13.882, de 2019.) Art. 38-A. O juiz
competente providenciará o registro
da medida protetiva de urgência.
(Incluído pela Lei nº 13.827, de 2019.)
Parágrafo
único.
As
medidas
protetivas
de
urgência
serão
registradas em banco de dados
mantido e regulamentado pelo
Conselho
Nacional
de
Justiça,
garantido o acesso do Ministério
Público, da Defensoria Pública e dos
órgãos de segurança pública e de
assistência social, com vistas à
fiscalização e à efetividade das
medidas protetivas. (Incluído pela Lei
nº 13.827, de 2019.)
1.10.1
Jurisprudência em teses
Jurisprudência em teses do Superior Tribunal de Justiça.
Edição nº 111: Provas no processo penal – II
Nos delitos praticados em ambiente doméstico e familiar,
geralmente praticados à clandestinidade, sem a presença de
testemunhas, a palavra da vítima possui especial relevância,
notadamente quando corroborada por outros elementos probatórios
acostados aos autos.
É necessária a realização do exame de corpo de delito para
comprovação da materialidade do crime quando a conduta deixar
vestígios, entretanto, o laudo pericial será substituído por outros
elementos de prova na hipótese em que as evidências tenham
desaparecido ou que o lugar se tenha tornado impróprio ou, ainda,
quando as circunstâncias do crime não permitirem a análise técnica.
1.11
Lesão qualificada praticada contra mulher por razões de
condições do sexo feminino
O § 13 foi inserido ao art. 129 do Código Penal através da Lei
nº 14.188, de 28 de julho de 2021, qualificando a lesão corporal
quando for praticada contra a mulher, por razões da condição do
sexo feminino, nos termos do § 2º-A do art. 121 do mesmo diploma
repressivo, dizendo, verbis:
§ 13. Se a lesão for praticada contra a
mulher, por razões da condição do
sexo feminino, nos termos do § 2º-A
do art. 121 deste Código:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4
(quatro anos)
Inicialmente, vale frisar que a mencionada qualificadora
somente terá aplicação nas hipóteses que estivermos diante de
lesões corporais simples, conforme o disposto no art. 1º da Lei nº
14.188, de 28 de julho de 2021. Isto porque, caso as lesões sofridas
pela mulher sejam de natureza grave (§ 1º do art. 129 do CP) ou
mesmo gravíssima (§ 2º do art. 129 do CP), como as penas
previstas, respectivamente, nos preceitos secundários dos §§ 1º e
2º do art. 129 do Código Penal são superiores àqueles cominadas
no aludido § 13, aqueles deverão ser aplicados em detrimento deste
último.
Assim, por exemplo, se uma mulher, por razões da condição do
sexo feminino, for agredida e vier a se incapacitar para suas
ocupações habituais por mais de 30 (trinta) dias, ou mesmo se
houver a perda ou inutilização de membro, sentido ou função, o
agente deverá ser responsabilizado, respectivamente, ou pela
infração penal tipificada no inciso I, do § 1º do art. 129, ou aquela
prevista no inciso III, do § 2º do mesmo artigo, ambos do Código
Penal, afastando-se, consequentemente, o § 13 do art. 129 do
diploma repressivo.
A regra, portanto, é que seja aplicada a qualificadora que
preveja as maiores penas cominadas, não importando se ambas, ou
seja, as penas mínima e máxima, ou mesmo uma só delas, como é
o caso do § 1º do art. 129 do Código Penal, em que somente a pena
máxima cominada em abstrato é superior àquela prevista no § 13 do
mesmo artigo.
Por razões da condição do sexo feminino, nos termos do § 2º-A
do art. 121 do Código Penal, podemos entender o crime que
envolva:
I – violência doméstica e familiar;
II – menosprezo ou discriminação à
condição de mulher.
Para que não sejamos repetitivos, remetemos o leitor ao art.
121, § 2º-A do Código Penal, em que discorremos sobre as
hipóteses mencionadas nos incisos I (violência doméstica e familiar)
e II (menosprezo ou discriminação à condição de mulher).
1.12
Diminuição de pena
Diz o § 4º do art. 129:
§ 4º Se o agente comete o crime impelido por motivo de
relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta
emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz
pode reduzir a pena de um sexto a um terço.
A redação contida no mencionado parágrafo é idêntica àquela
utilizada para fins de diminuição de pena na hipótese do delito de
homicídio, considerado, por isso, privilegiado, razão pela qual,
doutrinariamente, mesmo que não concordemos com esse termo, as
lesões corporais são reconhecidas como privilegiadas.
Para que não sejamos repetitivos, remetemos o leitor ao
capítulo correspondente ao crime de homicídio, em que as
discussões mais importantes foram trazidas à tona no tópico
correspondente ao homicídio privilegiado, devendo-se, outrossim,
somente ser procedido um trabalho de adaptação interpretativa.
Contudo, merece ser frisado, nesta oportunidade, que a
redução de pena, obrigatória, em nossa opinião, se presentes os
requisitos que a autorizam, é aplicável a todas as modalidades de
lesão: leve, grave, gravíssima e seguida de morte. Apesar da
situação topográfica do § 9º do art. 129 do Código Penal, que prevê
o delito de violência doméstica, entendemos, por questões de
política criminal, deva também ser estendida a essa infração penal a
diminuição de pena constante do § 4º do mesmo artigo. Isso porque
ocorrem, com muita frequência, agressões consideradas domésticas
que foram praticadas pelo agente em decorrência de provocações
da própria vítima, possibilitando, nesse caso, a redução da pena.
1.13
Substituição da pena
Assevera o § 5º do art. 129 do Código Penal:
§ 5º O juiz, não sendo graves as
lesões, pode ainda substituir a pena
de detenção pela de multa:
I – se ocorre qualquer das hipóteses
do parágrafo anterior;
II – se as lesões são recíprocas.
O inciso I do parágrafo em exame aduz que o juiz poderá
substituir a pena de detenção pela de multa quando o agente,
praticando uma lesão corporal de natureza leve, cometer o crime
impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o
domínio de violenta emoção, logo em seguida à injusta provocação
da vítima.
Por lesões corporais de natureza leve devemos entender
aquelas previstas no caput do art. 129, bem como em seu § 9º, que
criou o delito de violência doméstica.
Na verdade, ocorrendo lesões corporais leves e tendo o agente
cometido o crime por motivo de relevante valor social ou moral, ou
sob domínio de violenta emoção, logo em seguida à injusta
provocação da vítima, o julgador deverá aplicar um dos parágrafos
que se destinam a beneficiar o agente. Se entender que, no caso
concreto, a redução da pena é o que melhor atende às
determinações contidas na parte final do caput do art. 59 do Código
Penal, que diz que a pena a ser aplicada deve ser aquela
necessária e suficiente para a reprovação e prevenção do crime,
deverá levar a efeito a redução prevista no § 4º do art. 129. Se, ao
contrário, entender que a pena de multa atende aos interesses de
política criminal, deverá desprezar o aludido § 4º e aplicar o § 5º do
art. 129.
Na hipótese de violência doméstica ou familiar contra a mulher,
ficará impossibilitada a substituição da pena privativa de liberdade
pela pena de multa, aplicada isoladamente, tendo em vista a
determinação expressa do art. 17 da Lei nº 11.340, de 7 de agosto
de 2006.
O importante é ressaltar que, embora o julgador tenha essa
discricionariedade no caso concreto, uma das soluções deve ser
aplicada, ou seja, ou reduz a pena privativa de liberdade prevista no
caput do art. 129 ou a substitui pela pena pecuniária. Ele não
poderá deixar de lado uma das soluções legais apresentadas, uma
vez que se cuida, na espécie, de direito subjetivo do sentenciado, e
não de mera faculdade do julgador.
Quando ocorrer reciprocidade nas lesões corporais, também de
natureza leve, poderá ser substituída a pena. O Código Penal, ao
punir as lesões recíprocas, parte do pressuposto de que ambas as
agressões sejam injustas, isto é, no caso concreto, nenhum dos
contendores atua em legítima defesa, o que resultaria, por certo, na
condenação de um e na absolvição do outro.
Assim, podemos imaginar o exemplo daqueles que almejando
resolver uma “diferença” do passado o fazem com os próprios
punhos, em dia e hora marcados. Caso os contendores sofram
lesões corporais leves, a pena poderá ser substituída pela pena de
multa. Se um deles sofrer lesão corporal grave ou gravíssima, não
mais terá aplicação o parágrafo em estudo.
1.14
Aumento de pena
Determina o § 7º do art. 129 do Código Penal, com a nova
redação que lhe foi conferida pela Lei nº 12.720, de 27 de setembro
de 2012, verbis:
§ 7º Aumenta-se a pena de 1/3 (um
terço) se ocorrer qualquer das
hipóteses dos §§ 4º e 6º do art. 121
deste Código.
Como as discussões mais importantes foram travadas quando
da análise do art. 121 do Código Penal, cujas hipóteses, em virtude
da redação contida no § 7º do art. 129 do mesmo diploma
repressivo, são as mesmas, para lá remetemos o leitor, evitando-se
repetições.
Com o advento da Lei nº 10.886, de 17 de junho de 2004, foi
acrescentado o § 10 ao art. 129 do Código Penal, assim redigido:
§ 10. Nos casos previstos nos §§ 1º a
3º deste artigo, se as circunstâncias
são as indicadas no § 9º deste artigo,
aumenta-se a pena em 1/3 (um terço).
Assim, se a lesão for praticada contra ascendente,
descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem
conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente
das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade,
teremos de verificar a sua natureza para fins de aplicação dos §§ 9º
e 10. Sendo leves as lesões, desde que praticadas contra as
pessoas indicadas acima, ou nas circunstâncias apontadas, terá
aplicação o § 9º do art. 129 do Código Penal, que prevê mais uma
modalidade qualificada.
No caso de terem sido consideradas graves ou gravíssimas, ou
ainda na hipótese de lesão corporal seguida de morte, se forem
praticadas nas circunstâncias do § 9º do art. 129 do Código Penal,
ainda deverá ser aplicada ao agente o aumento de um terço previsto
pelo § 10 do mesmo artigo.
A Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, que criou mecanismos
para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, fez
inserir o § 11 ao art. 129 do Código Penal, acrescentando mais uma
causa especial de aumento de pena, dizendo:
§ 11. Na hipótese do § 9º deste artigo,
a pena será aumentada de um terço
se o crime for cometido contra pessoa
portadora de deficiência.
Por pessoa portadora de deficiência deve ser entendida aquela
especificada no art. 2º da Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015
(Estatuto da Pessoa com Deficiência), que diz:
Art. 2º Considera-se pessoa com
deficiência
aquela
que
tem
impedimento de longo prazo de
natureza física, mental, intelectual ou
sensorial, o qual, em interação com
uma ou mais barreiras, pode obstruir
sua participação plena e efetiva na
sociedade em igualdade de condições
com as demais pessoas.
Como o § 11 do art. 129 do Código Penal não fez qualquer
distinção, entendemos que poderá ser aplicado a todas essas
hipóteses de deficiência.
A Lei nº 13.142, de 6 de julho de 2015, por sua vez,
acrescentou o § 12 ao art. 129 do Código Penal, com a seguinte
redação:
§ 12. Se a lesão for praticada contra
autoridade ou agente descrito nos
arts. 142 e 144 da Constituição
Federal, integrantes do sistema
prisional e da Força Nacional de
Segurança Pública, no exercício da
função ou em decorrência dela, ou
contra seu cônjuge, companheiro ou
parente consanguíneo até terceiro
grau, em razão dessa condição, a
pena é aumentada de um a dois
terços.
Ao contrário do que ocorreu com o delito de homicídio, em que
o mencionado diploma legal criou uma qualificadora, aqui, em sede
de lesões corporais, determinou um aumento de pena, variando
entre um a dois terços, aplicando-se a todas as modalidades de
lesões corporais dolosas, vale dizer, leve, grave e gravíssima, não
sendo compatível a majorante na hipótese de lesão corporal de
natureza culposa.
Aplica-se, in casu, tudo o que foi dito em relação ao delito de
homicídio, razão pela qual remetemos o leitor às discussões
realizadas quando do estudo daquela infração penal, a fim de não
sermos repetitivos.
1.15
Perdão judicial
De maneira idêntica ao delito de homicídio, o perdão judicial
veio previsto no § 8º do art. 129 do Código Penal, que diz: Aplica-se
à lesão culposa o disposto no § 5º do art. 121.
Assim, solicitamos a leitura dos comentários levados a efeito
quando da análise do perdão judicial no delito de homicídio culposo.
1.16
Modalidades comissiva e omissiva
O crime de lesões corporais pode ser praticado comissiva ou
omissivamente, sendo que neste último caso o agente deverá gozar
do status de garantidor, amoldando-se a qualquer uma das alíneas
previstas no § 2º do art. 13 do Código Penal.
Vale o registro das precisas lições de Muñoz Conde que,
dissertando sobre o dever, inerente ao garantidor, de evitar a
produção do resultado, afirma:
“Diferentemente do que sucede no delito de ação, no delito de
comissão por omissão, para imputar um resultado ao sujeito da
omissão não basta a simples constatação da causalidade
hipotética da omissão a respeito do resultado produzido e da
evitabilidade do mesmo. É preciso, ademais, que o sujeito
tenha a obrigação de tratar de impedir a produção do resultado
em virtude de determinados deveres cujo cumprimento haja
assumido ou lhe incumbem por razão do cargo ou profissão.”24
No Brasil, como já dissemos, somente goza da condição de
garantidor quem tem o dever de agir a fim de evitar o resultado,
podendo, ainda, fazê-lo fisicamente, sendo que esse dever de agir
surge, de acordo com as alíneas a, b e c do § 2º do art. 13 do
Código Penal, quando o agente: a) tenha por lei obrigação de
cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu a
responsabilidade de impedir o resultado; c) com o seu
comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.
Dessa forma, o delito de lesão corporal, em qualquer de suas
modalidades – dolosa ou culposa –, pode ser cometido comissiva ou
omissivamente, desde que o agente, neste último caso, seja
considerado garante.
1.17
Consumação e tentativa
Consuma-se o delito com a efetiva produção da ofensa à
integridade corporal ou à saúde da vítima, incluindo-se, também, os
resultados qualificadores previstos pelos §§ 1º, 2º, e 3º, que
preveem, respectivamente, as lesões graves, gravíssimas e
seguidas de morte.
No que diz respeito à tentativa, ela será perfeitamente
admissível na hipótese de lesão corporal de natureza leve.
Sendo graves ou gravíssimas as lesões, somente se admitirá a
tentativa nos casos em que o delito não for classificado como
preterdoloso. Assim, portanto, não há falar em tentativa nas
hipóteses de lesão corporal qualificada pelo: 1) perigo de vida; 2)
aceleração de parto; 3) aborto.
Da mesma forma, não se admitirá a tentativa no delito de lesão
corporal seguida de morte, em face da sua natureza preterdolosa.
1.18
Pena, ação penal, transação penal, competência para
julgamento e suspensão condicional do processo
Ao delito de lesão corporal leve ou simples foi cominada uma
pena de detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano; à lesão corporal
de natureza culposa foi reservada uma pena de detenção, de 2
(dois) meses a 1 (um) ano, sendo que para a modalidade
qualificada, prevista pelo § 9º do art. 129 do Código Penal, foi
prevista uma pena de detenção de 3 (três) meses a 3 (três) anos,
nos termos da modificação procedida pela Lei nº 11.340/2006 o § 13
foi inserido no art. 129 do Código Penal através da Lei nº 14.188, de
28 de julho de 2021, cominando uma pena de reclusão, de 1 (um) a
4 (quatro anos), se a lesão for praticada contra a mulher, por razões
da condição do sexo feminino, nos termos do § 2º-A do art. 121 do
Código Penal.
Tanto a ação penal quanto as investigações policiais somente
poderão ter início, nesses casos, com a necessária representação
do ofendido, conforme determina o art. 88 da Lei nº 9.099/95, que
diz:
Art. 88. Além das hipóteses do
Código Penal e da legislação
especial, dependerá de representação
a ação penal relativa aos crimes de
lesões corporais leves e culposas.
Por maioria de votos, o Plenário do Supremo Tribunal Federal,
julgou, equivocadamente, procedente a Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI nº 4.424) para, segundo aquela Corte
Superior, dar interpretação conforme aos arts. 12, inciso I, e 16,
ambos da Lei nº 11.340/2006, a fim de assentar a natureza
incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão corporal,
pouco importando a extensão desta.
O art. 16 da chamada Lei “Maria da Penha” dispõe que as
ações penais públicas “são condicionadas à representação da
ofendida”, mas, para a maioria dos ministros do STF, essa
circunstância acaba por esvaziar a proteção constitucional
assegurada às mulheres.
“O Plenário, por maioria, julgou procedente ação direta,
proposta pelo Procurador-Geral da República, para atribuir
interpretação conforme à Constituição aos arts. 12, I; 16 e 41,
todos da Lei nº 11.340/2006, e assentar a natureza
incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão
corporal praticado mediante violência doméstica e familiar
contra a mulher” (STF, ADI 4.424/DF, Rel. Min. Marco Aurélio,
9/2/2012, Informativo nº 654).
O Superior Tribunal de Justiça, a seu turno, consolidando seu
posicionamento no mesmo sentido de nossa Corte Suprema, editou
a Súmula nº 542, publicada no DJe de 31 de agosto de 2015,
dizendo:
Súmula nº 542. A ação penal relativa
ao crime de lesão corporal resultante
de violência doméstica contra
mulher é pública incondicionada.
a
Tendo em vista a pena máxima cominada em abstrato, regra
geral é que os delitos de lesão corporal de natureza leve (à exceção
da violência doméstica e familiar contra a mulher) e culposa sejam
de competência dos Juizados Especiais Criminais,25 havendo
possibilidade até mesmo de composição dos danos ou transação
penal, nos termos dos arts. 72 e 76 da Lei nº 9.099/95:
Art. 72. Na audiência preliminar,
presente o representante do Ministério
Público, o autor do fato e a vítima e,
se possível, o responsável civil,
acompanhados por seus advogados,
o
juiz
esclarecerá
sobre
a
possibilidade da composição dos
danos e da aceitação da proposta de
aplicação imediata de pena não
privativa de liberdade.
Art. 76. Havendo representação ou
tratando-se de crime de ação penal
pública incondicionada, não sendo
caso de arquivamento, o Ministério
Público poderá propor a aplicação
imediata de pena restritiva de direitos
ou multa, a ser especificada na
proposta.
Não sendo realizada a composição dos danos, o que impediria,
se homologada pelo juiz, o início da ação penal dada a renúncia que
acarreta ao direito de queixa ou representação, bem como se não
aceita a transação penal, para os delitos de lesões corporais leves
ou culposas ainda existe a possibilidade de ser procedida a
proposta de suspensão condicional do processo, conforme o art. 89
da Lei nº 9.099/95, verbis:
Art. 89. Nos crimes em que a pena
mínima cominada for igual ou inferior
a 1 (um) ano, abrangidas ou não por
esta Lei, o Ministério Público, ao
oferecer a denúncia, poderá propor a
suspensão do processo, por 2 (dois) a
4 (quatro) anos, desde que o acusado
não esteja sendo processado ou não
tenha sido condenado por outro crime,
presentes os demais requisitos que
autorizariam a suspensão condicional
da pena (art. 77 do CP).
Para o delito de lesão corporal grave, previsto no § 1º do art.
129 do Código Penal, foi cominada pena de reclusão de 1 (um) a 5
(cinco) anos.
A ação penal é de iniciativa pública incondicionada, já que não
há qualquer ressalva no artigo, conforme orientação contida no
caput do art. 100 e seu § 1º do Código Penal.
Tendo em vista a pena mínima cominada, há possibilidade de
ser confeccionada proposta de suspensão condicional do processo,
ainda que a mulher figure como sujeito passivo, nas hipóteses
previstas pela Lei nº 11.340/2006, pois, conforme adverte Luis
Gustavo Grandinetti,26 “se o objetivo do art. 41 do referido diploma
legal foi impossibilitar também a suspensão condicional do
processo, tal proibição seria inconstitucional, em gritante ofensa ao
princípio da isonomia. Não será possível a transação penal.”
A pena é de reclusão de 2 (dois) a 8 (oito) anos na hipótese de
lesão corporal gravíssima, prevista no § 2º do art. 129 do Código
Penal.
A ação penal é de iniciativa pública incondicionada.
Para a lesão corporal seguida de morte, prevista no § 3º do art.
129 do Código Penal, foi cominada uma pena de reclusão, de 4
(quatro) a 12 (doze) anos, sendo, também, incondicionado o início
da ação penal.
No que diz respeito à lesão corporal culposa praticada na
direção de veículo automotor, a Lei nº 11.705, de 19 de junho de
2008, alterando o art. 291 do Código de Trânsito Brasileiro, passou
a determinar o seguinte:
Art. 291. [...]
§ 1º Aplica-se aos crimes de trânsito
de lesão corporal culposa o disposto
nos arts. 74, 76 e 88 da Lei nº 9.099,
de 26 de setembro de 1995, exceto se
o agente estiver:
I – sob a influência de álcool ou
qualquer outra substância psicoativa
que determine dependência;
II – participando, em via pública, de
corrida, disputa ou competição
automobilística, de exibição ou
demonstração de perícia em manobra
de veículo automotor, não autorizada
pela autoridade competente;
III – transitando em velocidade
superior à máxima permitida para a
via
em
50
km/h
(cinquenta
quilômetros por hora).
1.19
Destaques
1.19.1
Princípio da insignificância, lesões corporais e vias de fato
Já tivemos oportunidade de esclarecer, em nosso trabalho
intitulado Direito penal do equilíbrio – uma visão minimalista do
direito penal,27 que existe divergência quanto às origens do princípio
da insignificância, sendo que o seu estágio atual muito se deve ao
professor alemão Claus Roxin.
Francisco de Assis Toledo, discorrendo sobre o tema,
preleciona:
“Welzel considera que o princípio da adequação social bastaria
para excluir certas lesões insignificantes. É discutível que assim
seja. Por isso, Claus Roxin propôs a introdução, no sistema
penal, de outro princípio geral para a determinação do injusto, o
qual atuaria igualmente como regra auxiliar de interpretação.
Trata-se do princípio da insignificância, que permite na maioria
dos tipos, excluir danos de pouca importância.”28
De acordo com as lições proferidas, percebe-se que o princípio
da insignificância:
a)
b)
c)
é entendido como um princípio auxiliar de interpretação;
pode ser aplicado em grande parte dos tipos;
tem por finalidade afastar do tipo penal os danos de pouca
ou nenhuma importância.
Realmente, como já deixamos antever, o princípio da
insignificância serve como instrumento de interpretação, a fim de
que o exegeta leve a efeito uma correta ilação do tipo penal, dele
retirando, de acordo com uma visão minimalista, bens que,
analisados no plano concreto, são considerados de menor
importância em relação àquela exigida pelo tipo penal quando da
sua proteção em abstrato.
Contudo, embora de utilização obrigatória em muitos casos,
nem todos os tipos penais permitem o raciocínio da insignificância.
Assim, por exemplo, não se discute que em sede de homicídio não
se aplica o princípio. Por mais que, segundo a argumentação do
autor do fato, a vítima não “valesse nada”, tal conclusão não permite
a aplicação do princípio. Em outros fatos que aparentemente se
amoldariam à lei penal, o princípio é de aplicação obrigatória, a
exemplo do que ocorre com os delitos de furto, dano, peculato,
lesões corporais, uso de drogas etc.
Assim, interpretando-se restritivamente o tipo penal, o princípio
da insignificância evidencia a sua natureza de princípio que conduz
à atipicidade do fato. Tal situação, contudo, merece análise mais
aprofundada, tendo como pano de fundo nossa estrutura jurídica do
crime.
Em uma concepção analítica tripartida, o crime é entendido
como ação típica, ilícita e culpável. O fato típico, primeira
característica a ser analisada na estrutura jurídica do crime, é
composto pelos seguintes elementos:
a)
b)
c)
d)
conduta dolosa ou culposa, comissiva ou omissiva;
resultado;
nexo de causalidade;
tipicidade penal.
Por tipicidade penal entende-se, modernamente, a conjugação
da tipicidade formal com a tipicidade conglobante. A tipicidade
chamada conglobante ou conglobada exige, para a sua
configuração, que no caso concreto o intérprete conclua pela
tipicidade material, na qual será realizada a análise e aplicação do
princípio da insignificância, bem como a antinormatividade do
comportamento levado a efeito pelo agente.
Zaffaroni, com o brilhantismo que lhe é peculiar, afirma:
“O tipo penal se compõe do tipo legal (adequação da conduta à
individualização predominantemente descritiva feita no preceito
legal, com seu aspecto objetivo e subjetivo), e do tipo
conglobante (que requer a lesão ou colocação em perigo do
bem jurídico tutelado mediante a comprovação da
antinormatividade pela contradição da conduta com a norma,
conglobada com as restantes do ordenamento que integra).
Será função deste segundo passo da tipicidade penal, operar
como corretivo da tipicidade legal, reduzindo à verdadeira
dimensão do que a norma proíbe, deixando fora da tipicidade
penal aquelas condutas que somente são alcançadas pela
tipicidade legal, mas que o ordenamento normativo não proíbe,
precisamente porque as ordena ou as fomenta ou não as pode
alcançar, por exceder o poder repressivo do Estado ou por ser
insignificante sua lesividade.”29
Interessa-nos, nesta oportunidade, o estudo tão somente da
tipicidade conglobante, em sua característica correspondente à
tipicidade material. Por tipicidade material devemos entender o
critério por meio do qual o Direito Penal avalia a importância do bem
no caso concreto ou, melhor dizendo, a importância da lesão ou do
perigo de lesão sofrido pelo bem em determinada situação fática. Na
verdade, o estudo da teoria da tipicidade penal tem início com a
aferição da chamada tipicidade formal ou legal. Isso quer dizer que,
se o fato for formalmente típico, ou seja, se houver uma adequação
do comportamento praticado pelo agente ao modelo abstrato
previsto na lei penal, que é o nosso tipo, devemos ingressar no
estudo da característica seguinte, ainda dentro da tipicidade penal.
Concluindo-se, pelo menos em tese, pela tipicidade formal do
fato, o estudo da tipicidade conglobante funcionará, como afirmou
Zaffaroni, como um corretivo à tipicidade, ajustando-a, efetivamente,
com os raciocínios minimalistas, como ocorre com relação à
tipicidade material.
Já deixamos antever ser possível a aplicação do princípio da
insignificância ao delito de lesão corporal, seja ela dolosa ou
culposa, visto que, embora abstratamente considerada, a
integridade corporal e a saúde sejam bens que mereçam,
efetivamente, a proteção do Estado por intermédio do Direito Penal,
muitas vezes no caso concreto tal proteção se faz desnecessária,
dada a pouca ou nenhuma importância da lesão sofrida pela vítima.
Imagine-se a hipótese em que alguém, no interior de um
cinema, irritado porque a pessoa que estava assentada no banco à
sua frente não parava de se mexer, impedindo-o de assistir ao filme
que estava sendo exibido, valendo-se de um alfinete, espete-a nas
nádegas, produzindo uma lesão imperceptível. Será que, nesse
caso, deveria o autor responder pelo delito de lesões corporais?
Entendemos que não, em face da insignificância da lesão à
integridade corporal da vítima.
O problema está, na verdade, em tentarmos conciliar a
aplicação do princípio da insignificância, trabalhando não somente
com o delito de lesão corporal, mas também com a contravenção
penal de vias de fato, prevista no art. 21 do Decreto-Lei nº 3.688/41,
que diz:
Art. 21. Praticar vias de fato contra
alguém:
Pena – prisão simples, de 15 (quinze)
dias a 3 (três) meses, ou multa, se o
fato não constitui crime.
O que distingue o delito de lesão corporal da contravenção
penal de vias de fato é o dolo do agente, o seu elemento subjetivo.
No primeiro caso, a finalidade do agente é praticar um
comportamento que venha, efetivamente, a ofender a integridade
corporal ou a saúde da vítima; no segundo, embora a conduta
também se dirija contra a vítima, não tem a magnitude da primeira.
Assim, por exemplo, aquele que desfere um soco no rosto da vítima
atua com dolo do art. 129 do Código Penal; aquele que a empurra,
tão somente, pratica a contravenção penal de vias de fato.
O problema é que tentamos fazer malabarismos para explicar a
diferença entre as duas situações, que, no caso concreto, podem se
parecer. Espetar alguém com um alfinete, conforme o exemplo por
nós fornecido, seria um delito de lesões corporais ou uma
contravenção penal de vias de fato? Com certeza, encontraríamos
adeptos para as duas posições.
Dessa forma, para que não incorramos nessas dificuldades,
devemos nos socorrer da proposta de Ferrajoli,30 quando preconiza
que todas a contravenções penais devem ser revogadas, se
quisermos, realmente, manter o equilíbrio do sistema penal, com a
adoção das teses minimalistas, com seus correspondentes
princípios, destacando-se dentre eles o da intervenção mínima e o
da insignificância.
Concluindo, portanto, entendemos ser possível a aplicação do
princípio da insignificância ao delito de lesões corporais, devendose, por oportuno, ser negada a validade da contravenção penal de
vias de fato, que contraria a lógica do raciocínio minimalista,
principalmente na vertente que impõe ao Direito Penal tão somente
a proteção dos bens mais importantes e necessários ao convívio em
sociedade. Caso o bem em estudo seja de pouca ou mesmo de
nenhuma importância, dele deverá ser retirada a proteção do Direito
Penal, sendo realizada, contudo, por intermédio de outros ramos do
ordenamento jurídico, a exemplo do civil, do administrativo etc.
No que diz respeito aos crimes ou contravenções penais
praticados contra mulher no âmbito das relações domésticas, o
Superior Tribunal de Justiça publicou no DJe de 18 de setembro de
2017 a Súmula nº 589, dizendo:
Súmula nº 589. É inaplicável o
princípio da insignificância nos crimes
ou contravenções penais praticados
contra a mulher no âmbito das
relações domésticas.
1.19.2
Consentimento do ofendido como causa supralegal de
exclusão da ilicitude
Tivemos oportunidade de analisar, quando do estudo da Parte
Geral do Código Penal, que o consentimento do ofendido pode ter
duas finalidades importantes consideradas em nossa teoria do
delito.
A primeira seria a de aplicá-lo como causa que conduziria à
atipicidade do fato toda vez que o dissenso fizesse parte da figura
típica. Assim, imagine-se a hipótese do crime de violação de
domicílio, previsto no art. 150 do Código Penal, com a seguinte
redação:
Art. 150. Entrar ou permanecer,
clandestina ou astuciosamente, ou
contra a vontade expressa ou tácita
de quem de direito, em casa alheia ou
em suas dependências:
Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três)
meses, ou multa.
Como se percebe pela redação acima, somente ocorrerá a
violação de domicílio se a vítima não consentir no ingresso do
agente. Caso contrário, o fato será considerado um indiferente
penal.
Uma segunda colocação relativa ao estudo do consentimento
do ofendido nos levaria à exclusão da ilicitude do fato típico
cometido, como é a hipótese que começaremos a estudar, que diz
respeito ao delito de lesão corporal.
Entretanto, antes de analisarmos a efetiva possibilidade de ser
alegado o consentimento do ofendido em sede de lesão corporal, é
preciso que, inicialmente, apontemos os requisitos indispensáveis à
sua caracterização, a saber:
a)
que o bem seja disponível;
b)
c)
que a vítima tenha capacidade para consentir, sendo hoje
corrente preponderante no sentido de que essa capacidade
é adquirida aos 18 anos, ou seja, quando a vítima adquire
sua capacidade penal e civil;
que o consentimento tenha sido prévio ou, no mínimo,
concomitante ao comportamento do agente.
Nesta oportunidade, interessa-nos mais de perto a análise do
primeiro requisito necessário ao reconhecimento do consentimento
do ofendido, vale dizer, a disponibilidade do bem.
Para que possamos saber se o consentimento do ofendido terá
o condão de afastar, em tese, o delito de lesão corporal, a pergunta,
mesmo que inicial, que devemos nos fazer é a seguinte: a
integridade corporal e a saúde são bens disponíveis ou
indisponíveis? A resposta correta aqui, é, depende. Depende, na
verdade, da intensidade da lesão corporal sofrida.
Se a lesão corporal, outrossim, for de natureza leve,
entendemos como perfeitamente disponível a integridade física.
Caso contrário, se for grave ou gravíssima, já não terá repercussão
o consentimento.
Vejamos as situações, a fim de esclarecer nosso ponto de vista.
É muito comum dispormos de nossa integridade corporal. São
hipóteses que acabam passando despercebidas em nosso dia a dia,
mesmo porque a teoria do consentimento do ofendido, em muitas
situações, se confunde, ou mesmo se mistura, com respostas
fornecidas pela causa legal de exclusão da ilicitude relativa ao
exercício regular de um direito. Como não existe definição legal para
este último, como acontece com as hipóteses de legítima defesa e
de estado de necessidade, alguns exemplos servem para justificar
uma ou outra situação.
Imagine-se, portanto, aquele que vai a um tatuador e solicita
que lhe seja feita uma tatuagem nas costas. À primeira vista,
quando o tatuador, com seu aparelho contendo várias agulhas,
começa a contornar e a pintar a figura escolhida pela vítima, vai, aos
poucos, produzindo-lhe lesões corporais, que, todavia, não são de
natureza grave. Nem se poderia aqui, por exemplo, cogitar de
deformidade permanente porque, na verdade, em vez de um dano
estético, vexatório, o que a vítima pretende é se exibir com o novo
desenho estampado no corpo. Não lhe causa vergonha a marca que
lhe foi perpetuamente impregnada, mas sim orgulho.
Da mesma forma se raciocina com cortes de cabelo, depilações
etc.
Contudo, se a lesão corporal for de natureza grave ou
gravíssima, o consentimento, segundo entendemos, já não será
válido. Poderá a própria vítima mutilar-se, mas não solicitar a
terceiro que pratique esse comportamento. Se alguém, v.g., pede a
terceira pessoa que pratique a amputação de seu antebraço, esse
terceiro, que agiu atendendo ao pedido da própria vítima, deverá ser
responsabilizado pelas lesões corporais.
Assim, concluindo, o consentimento do ofendido poderá afastar
a ilicitude, sendo considerado uma causa supralegal, desde que a
lesão corporal praticada seja de natureza leve.
1.19.3
Prioridade de tramitação do processo lesão corporal dolosa
de natura gravíssima e de lesão corporal seguida de morte,
nas hipóteses do art. 129, § 12, do CP
A Lei nº 13.285, de 10 de maio de 2016, acrescentou o art. 394A ao Código de Processo Penal, determinando, verbis:
Art. 394-A. Os processos que apurem a
prática de crime hediondo terão prioridade de
tramitação em todas as instâncias.
1.19.4
Destituição do poder familiar
O parágrafo único do art. 1.638 do Código Civil, com a redação
que lhe foi conferida pela Lei nº 13.715, de 24 de setembro de 2018,
assevera que, verbis:
Art. 1.638. Perderá por ato judicial o
poder familiar o pai ou a mãe que: [...]
Parágrafo único. Perderá também
por ato judicial o poder familiar aquele
que:
I – praticar contra outrem igualmente
titular do mesmo poder familiar:
a) homicídio, feminicídio ou lesão
corporal de natureza grave ou seguida
de morte, quando se tratar de crime
doloso
envolvendo
violência
doméstica e familiar ou menosprezo
ou discriminação à condição de
mulher;
b) [...]
II – praticar contra filho, filha ou outro
descendente:
a) homicídio, feminicídio ou lesão
corporal de natureza grave ou seguida
de morte, quando se tratar de crime
doloso
envolvendo
violência
doméstica e familiar ou menosprezo
ou discriminação à condição de
mulher;
b) [...]
1.20
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: qualquer pessoa.
Passivo: qualquer pessoa,
à exceção do inc. IV do §1º
e do inc. V do §2º do art.
129 (em ambos, o sujeito
passivo é a gestante) do
CP, bem como do §9º do
mesmo artigo (aquele que
seja
ascendente,
descendente,
irmão,
cônjuge ou companheiro,
ou com quem conviva ou
tenha convivido, ou, ainda,
quando se possui relações
domésticas, de coabitação
ou de hospitalidade, com o
agente, que se prevaleceu
de tal condição). “Quando a
ofensa recair sobre o ser
humano em formação,
sujeito
passivo
é
a
coletividade, a sociedade, o
Estado, o interesse estatal
na
preservação
da
integridade corporal ou da
saúde do ser humano em
formação” (TELES, 2004,
p. 194).
Objeto material
É a pessoa humana, mesmo
que com vida intrauterina.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
É a integridade corporal e a
saúde do ser humano.
Exame de corpo de delito
Há
necessidade
produzida
prova
de
ser
pericial,
comprovando-se a natureza das
lesões, isto é, se leve, grave ou
gravíssima (vide arts. 167, 168
e 564, III, alínea “b”, do CPP).
Elemento subjetivo
Na
modalidade
simples,
prevista no caput do artigo,
somente pode ser praticada a
título de dolo, seja ele direto ou
eventual. O dolo de causar
lesão
é
reconhecido
por
intermédio das expressões
latinas animus laedendi ou
animus vulnerandi.
Modalidades
omissiva
comissiva
e
O crime de lesões corporais
pode ser praticado comissiva ou
omissivamente, sendo que,
neste último caso, o agente
deverá gozar do status de
garantidor, amoldando-se a
qualquer uma das alíneas
previstas no § 2º do art. 13 do
CP.
Consumação e tentativa
»
Consuma-se o delito com a
efetiva produção da ofensa
à integridade corporal ou à
saúde da vítima, incluindose, também, os resultados
qualificadores
previstos
pelos §§ 1º, 2º e 3º do art.
129 do CP.
»
A tentativa é admissível na
hipótese de lesão corporal
de natureza leve. Sendo
graves ou gravíssimas as
lesões,
somente
se
admitirá a tentativa nos
casos em que o delito não
for
classificado
como
preterdoloso.
Assim,
portanto, não há falar em
tentativa nas hipóteses de
lesão corporal qualificada
pelo: 1) perigo de vida; 2)
aceleração de parto; 3)
aborto. Da mesma forma,
não se admitirá a tentativa
no delito de lesão corporal
seguida de morte, em face
da
sua
natureza
preterdolosa.
Crimes hediondos
A Lei 13.142, de 2015, incluiu o
inc. I-A ao art. 1º da Lei
8.072/1990,
passando
a
considerar
como
crime
hediondo a lesão corporal
dolosa de natureza gravíssima
(art. 129, § 2º) e lesão corporal
seguida de morte (art. 129, §
3º), quando praticadas contra
autoridade ou agente descrito
nos arts. 142 e 144 da
Constituição
Federal,
integrantes do sistema prisional
e da Força Nacional de
Segurança Pública, no exercício
da função ou em decorrência
dela, ou contra seu cônjuge,
companheiro
ou
parente
consanguíneo até terceiro grau,
em razão dessa condição.
1
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. V, p. 313.
2
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 121.
3
TELES, Ney Moura. Direito penal, v. II, p. 198-199.
4
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal, p. 92.
5
TELES, Ney Moura. Direito penal, v. II, p. 194.
6
HOLANDA, Aurélio Buarque de. Novo dicionário da língua portuguesa, p. 1.399.
7
COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal – Parte especial, p. 227.
8
FÁVERO, Flamínio. Medicina legal, v. 1, p. 212.
9
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 69.
10
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 132.
11
BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa, p. 207.
12
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado, p. 416.
13
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. V, p. 323.
14
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. V, p. 325-326.
15
JESUS, Damásio E. de. Direito penal, v. 2, p. 138.
16
COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal – Parte especial, p. 235.
17
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal – Parte especial, p. 192-193.
18
NUCCI, Guilherme de Souza, Código penal comentado, p. 417-418.
19
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 72.
20
CEREZO, Ángel Calderón; MONTALVO, José Antonio Choclán. Derecho penal, t. II, p.
70.
21
JESUS,
Damásio
E.
de.
Violência
doméstica.
Disponível
em:
<http://www.damasio.com.br/novo/html/frame_artigos.htm>.
HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción a la criminología, p.
190.
22
23
SANMARTÍN, Jose. La violencia y sus claves, p. 55.
24
CONDE, Francisco Muñoz. Teoría general do delito, p. 54.
25
O delito de violência doméstica não será da competência dos Juizados Especiais
Criminais, tendo em vista a alteração da pena a ele cominada, levada a efeito pela Lei
nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, que elevou a pena máxima para 3 (três) anos.
26
GRANDINETTI, Luiz Gustavo; BATISTA, Nilo; MELLO, Adriana Ramos de; PINHO,
Humberto Dalla Bernardina de; PRADO, Geraldo. Violência doméstica e familiar contra
a mulher, p. 172.
27
GRECO, Rogério. Direito penal do equilíbrio – uma visão minimalista do direito penal.
28
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal, p. 133.
29
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Tratado de derecho penal – Parte general, v. III, p. 236.
30
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 575.
Capítulo III
Da Periclitação da Vida e
da Saúde
1.
1.1
DA PERICLITAÇÃO DA VIDA E DA SAÚDE
Conceito e espécies de perigo – concreto e abstrato
No Capítulo III do Título I do Código Penal foram consignados
pelo legislador os denominados crimes de perigo, por meio da
expressão periclitação da vida e da saúde.
Para interpretar as várias figuras típicas constantes deste
capítulo, faz-se necessário proceder à distinção entre dois tipos de
delito que fazem parte de uma das divisões mais conhecidas pelo
Direito Penal.
Assim, de um lado, como regra, temos os chamados delitos de
dano ou de lesão; do outro, os reconhecidos como delitos de perigo.
Os delitos de perigo, a seu turno, podem ser subdivididos em crimes
de perigo abstrato e crimes de perigo concreto.
Os chamados delitos de dano são aqueles em que se exige,
para sua configuração, a efetiva lesão ou dano ao bem
juridicamente protegido pelo tipo penal. Ao contrário, os delitos
reconhecidos como de perigo não exigem a produção efetiva de
dano, mas, sim, a prática de um comportamento típico que produza
um perigo de lesão ao bem juridicamente protegido, vale dizer, uma
probabilidade de dano. O perigo seria, assim, entendido como
probabilidade de lesão a um bem jurídico-penal.
Dessa forma, quando o legislador cria uma figura típica de
perigo, o que procura, na verdade, é proibir ou impor
comportamentos que tenham probabilidade de causar danos aos
bens jurídico-penais.
Uma primeira questão surge quando tentamos classificar
determinado comportamento como perigoso. Devemos, a fim de
iniciar nosso raciocínio, responder à seguinte indagação: quando se
entende que uma situação é perigosa sob a perspectiva penal?
Respondendo a essa mesma indagação, Mirentxu Corcoy
Bidasolo explica:
“O juízo sobre se o perigo se deve considerar evitável ou não
pelo autor não afeta a existência da situação perigosa senão a
atribuição penal da situação perigosa ao autor. Em
consequência, a qualificação de uma conduta como perigosa
deverá ser colocada como um problema de probabilidade de
lesão no caso concreto, atendendo aos bens jurídico-penais
potencialmente postos em perigo e ao âmbito de atividade
donde se desenvolve essa situação, independentemente se o
autor pode evitar a lesão, seja através de meios normais ou
extraordinários.”1
De acordo com esse raciocínio, o crime de perigo seria um
degrau antecedente ao crime de dano. Consequentemente, pune-se
o comportamento perigoso a fim de que se possa, no futuro, evitar o
dano.
Ignácio Verdugo, Arroyo Zapatero, García Rivas, Ferre Olivé e
Serrano Piedecasas, com maestria, traçam a distinção entre as
duas espécies de perigo estudadas pela doutrina, vale dizer, os
crimes de perigo abstrato e concreto, asseverando:
“É importante distinguir os delitos de perigo concreto dos de
perigo abstrato. Estes constituem um grau prévio a respeito dos
delitos de perigo concreto. O legislador castiga aqui a
perigosidade da conduta em si mesma. Por exemplo, é um
delito de perigo abstrato conduzir um veículo a motor sob a
influência de bebidas alcoólicas, drogas tóxicas ou
estupefaciantes (art. 379, CP).2 A consumação de um delito de
perigo concreto requer a comprovação, por parte do juiz, da
proximidade do perigo ao bem jurídico e da capacidade lesiva
do risco. Por esta razão, estes delitos são sempre de resultado.
Os delitos de perigo abstrato são, ao contrário, delitos de mera
atividade; se consumam com a realização da conduta
supostamente perigosa, por isso, o juiz não tem que valorar se
o estado de embriaguez do condutor trouxe ou não concreto
perigo à vida de tal ou qual transeunte para entender
consumado o tipo.”3
Hoje em dia, de acordo com os postulados garantistas, atentos
aos princípios informadores do Direito Penal, temos de procurar
rechaçar os tipos penais que contenham, à primeira vista, previsão
de crimes de perigo abstrato, pois, por meio dessa modalidade de
perigo, a lei penal presume a colocação em perigo do bem
juridicamente protegido pelo tipo.
Isso significa que, uma vez determinado pela lei penal que o
comportamento
previsto
no
tipo
penal
é
perigoso,
independentemente do risco que venha a sofrer o bem juridicamente
protegido por ele, tem-se como configurada a infração penal.
Basta, outrossim, nos crimes de perigo abstrato, a
comprovação da prática da conduta – comissiva ou omissiva –
prevista pelo tipo penal, para que a infração penal se consubstancie,
independentemente de se averiguar, no caso concreto, se aquele
comportamento praticado tinha ou não alguma possibilidade de
causar dano ao bem jurídico que se queria proteger.
A punição dos crimes de perigo abstrato, como regra, contraria
o princípio da lesividade. Conforme destaca Ferrajoli:
“Nas situações em que, de fato, nenhum perigo subsista, o que
se castiga é a mera desobediência ou a violação formal da lei
por parte de uma ação inócua em si mesma. Também estes
tipos deveriam ser reestruturados, sobre a base do princípio da
lesividade, como delitos de lesão, ou, pelo menos, de perigo
concreto, segundo mereça o bem em questão uma tutela
limitada ao prejuízo ou antecipada à mera colocação em
perigo.”4
Dessa forma, temos que procurar reinterpretar todas as figuras
típicas, de modo que possamos visualizar, no comportamento
perigoso do agente, uma probabilidade concreta de dano ao bem
jurídico.
Ultimamente, o legislador penal, preocupado com a
arbitrariedade antigarantista dos tipos penais que preveem delitos
de perigo abstrato, tem começado a se sensibilizar e a exigir a
efetiva constatação, no caso concreto, de que o comportamento
entendido pelo tipo penal como perigoso trouxe, efetivamente,
perigo de produção de dano a algum bem juridicamente protegido.
Tome-se como exemplo o art. 309 do Código de Trânsito
Brasileiro, que diz:
Art. 309. Dirigir veículo automotor, em
via pública, sem a devida Permissão
para Dirigir ou Habilitação ou, ainda,
se cassado o direito de dirigir,
gerando perigo de dano:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a
1 (um) ano, ou multa.
Veja-se que, nesse caso, o legislador determinou
expressamente que o fato de dirigir sem habilitação somente se
configuraria em infração penal se trouxesse, efetivamente, perigo de
dano para os bens jurídicos.
Assim, imagine-se a hipótese daquele que, sem a devida
habilitação, seja surpreendido em uma blitz policial. No caso em
estudo, o agente dirigia em velocidade compatível com o local,
atendendo a todas as regras básicas do trânsito, quando foi
solicitado a parar em um posto policial. Pergunta-se: embora não
tendo a necessária carteira de habilitação, que permitiria a
condução de veículos automotores, a conduta do agente, por si só,
poderia ser taxada como perigosa, simplesmente pelo fato de não
possuir a mencionada habilitação? Entendemos que não, pois a lei
penal exigiu que o comportamento do agente importasse, realmente,
numa criação de perigo concreto para os bens que procuram ser por
ele salvaguardados, a exemplo da integridade corporal e da vida
das pessoas que circulem próximas a ele.
Nossa proposta de estudo, de acordo com um ponto de vista
garantista, será a de reinterpretar os tipos penais de perigo contidos
na parte especial do Código Penal, partindo do pressuposto de que
deverão ser tratados, na medida do possível, como infrações de
perigo concreto, e não de perigo abstrato.
Como a posição assumida contraria grande parte da doutrina,
para que o leitor não seja induzido por nossos pensamentos,
teremos o cuidado de, a cada tipo penal estudado, colocar as
posições prevalentes, deixando que o leitor assuma aquela que
melhor lhe agrade, nunca se esquecendo de que, em um Estado
Constitucional e Democrático de Direito, para usarmos a expressão
de Ferrajoli, os princípios penais fundamentais são ferramentas
indispensáveis a uma perfeita ilação das leis penais.
Assim, os crimes de perigo abstrato não resistem a uma
depuração principiológica, a exemplo do que ocorre quando
utilizamos o princípio da lesividade.
Conforme preleciona Diego-Manuel Luzón Peña, princípio da
lesividade é aquele:
“Segundo o qual o Direito penal somente deve intervir se
houver ameaça de lesão ou perigo para concretos bens
jurídicos e ao legislador não está facultado em absoluto castigar
somente por sua imoralidade ou seu desvio ou marginalidade
condutas que não afetem a bens jurídicos.”
E continua o renomado Catedrático de Direito Penal da
Universidade de Alcalá:
“O princípio pode fundamentar-se desde a perspectiva do
moderno Estado social e democrático considerando que os
bens jurídicos são condições básicas para o funcionamento
social e para o desenvolvimento e a participação dos cidadãos
na vida social. Mas também este limite ao ius puniendi se
depreende do fundamento funcional do princípio geral de
necessidade da pena para a proteção da sociedade; pois
recorrer a algo tão grave como a sanção penal frente a
condutas
que
não
ataquem
bens
jurídicos
seria
5
desnecessário.”
Como se percebe com clareza, com relação aos chamados
crimes de perigo abstrato, a simples presunção de perigo, em face
do comportamento comissivo ou omissivo do agente, não pode
conduzi-lo a uma condenação de natureza penal. Será preciso, a fim
de se comprovar a efetiva colocação em perigo de algum bem
juridicamente protegido, que se leve a efeito essa prova no caso
concreto, razão pela qual, segundo nosso posicionamento, os
crimes de perigo abstrato devem ser reinterpretados no sentido de
se exigir a efetiva comprovação do perigo.
1.2
Momento de avaliação do perigo: ex ante ou ex post
Para que cheguemos à conclusão de que o tipo penal a ser
analisado traduz comportamentos que se amoldam à definição de
crimes de perigo abstrato ou concreto, devemos fazer sua ilação de
acordo com o momento em que satisfaça ao legislador o
reconhecimento da colocação em perigo – abstrata ou concreta.
A regra é de que, nos crimes de perigo abstrato, o observador
deverá concluir pela situação de perigo ex ante, ou seja, pela
simples verificação do comportamento que está sendo proibido ou
imposto pelo tipo penal já caracteriza a situação de perigo por ele
prevista.
Basta, portanto, que se comprove a prática da conduta –
comissiva ou omissiva – prevista no tipo penal, no momento de sua
realização, independentemente da necessidade de se comprovar se
com aquele comportamento foi criada ou não uma efetiva situação
de perigo a um bem juridicamente protegido.
Ao contrário, nos crimes de perigo concreto, de acordo com o
princípio da lesividade, a análise deverá ser realizada ex post, isto é,
uma vez levado a efeito o comportamento comissivo ou omissivo,
deverá o observador concluir se com aquela ação ou omissão a
vítima correu, efetivamente, risco de ter lesionado o seu bem
jurídico.
Suponhamos, para fins de esclarecimentos, que, no Brasil, o
agente tenha sido surpreendido por dirigir em velocidade excessiva.
Imagine-se que o agente havia acabado de comprar um automóvel
e, a fim de testá-lo, durante a madrugada, colocou-o na estrada e
passou a dirigir, sem qualquer pessoa a seu lado, a 180km/h. Nessa
autoestrada, que possuía as condições ideais para uma velocidade
acima da permitida para o local, não havia qualquer movimento de
circulação de outros veículos e também de pessoas. Imagine-se
que, apanhado por um moderno radar, o agente seja interceptado
por policiais rodoviários a dois quilômetros do local onde imprimiu a
velocidade excessiva, que fora detectada pelo aparelho delator.
Pergunta-se: numa perspectiva ex ante, a conduta do agente,
ou seja, dirigir em velocidade acima da permitida, poderia
configurar-se como situação de perigo? Se olharmos por essa
perspectiva, a resposta só poderá ser afirmativa, razão pela qual
estaríamos afirmando a natureza abstrata do perigo consignada na
norma que proíbe a velocidade excessiva.
Por outro lado, se analisarmos numa perspectiva ex post, ou
seja, vislumbrados todos os detalhes que envolviam o agente no
caso concreto, poderemos dizer que algum bem, além da própria
vida do agente, foi, efetivamente, colocado numa situação de
perigo? Aqui, em razão dos dados que fornecemos, a resposta só
pode ser negativa.
Dessa forma, se não houver, no caso concreto, perigo para
qualquer bem juridicamente protegido, o Direito Penal não poderá
ser aplicado, sob pena de infringir seus princípios informadores, a
exemplo do princípio da lesividade.
1.3
Consumação do crime de perigo
Partindo dos raciocínios levados a efeito anteriormente,
teremos que nos indagar: a partir de quando podemos considerar
como consumada uma infração penal de perigo?
A resposta, na verdade, deverá ser fragmentada. Isso porque o
crime de perigo pode ser, como vimos, abstrato ou concreto. Assim,
nos crimes de perigo abstrato, sua consumação ocorre no momento
em que o agente pratica, ou se abstém de praticar, a conduta
proibida ou imposta no tipo penal, presumidamente perigosa. Ao
contrário, nos crimes de perigo concreto, além da necessária
comprovação da conduta por parte do agente, deverá ser afirmado
que, no caso concreto, aquele comportamento – positivo ou
negativo – trouxe, efetivamente, perigo de dano a um bem
juridicamente protegido.
1.4
Perigo individual e perigo coletivo (ou transindividual)
Considera-se individual o perigo quando a conduta do agente
atinge uma pessoa ou, pelo menos, um grupo determinado de
pessoas. Coletivo é o perigo provocado pelo agente que atinge a
coletividade, ou seja, um número indeterminado de pessoas.
Conforme esclarece James Tubenchlack:
“Na legislação penal básica (CP), os delitos de perigo individual,
que atingem uma só pessoa ou um número reduzido ou
determinado de pessoas, encontram-se, v.g., nos arts. 130
(perigo de contágio venéreo), 132 (perigo para a vida ou a
saúde), 133 (abandono de incapaz), 134 (exposição ou
abandono de recém-nascido), 136 (maus-tratos) e 137 (rixa).
Quanto aos crimes de perigo coletivo ou comum, avistam-se
nos arts. 250 e segs. (incêndio, explosão, uso de gás tóxico ou
asfixiante, inundação etc.).”6
1.5
Natureza subsidiária dos crimes de perigo
Como afirmamos, a lei penal cria a infração penal de perigo a
fim de evitar, com a punição do agente pela sua prática, o mal maior,
que é o dano.
A infração penal de perigo, portanto, possui natureza
subsidiária ao crime de dano. A regra determina, outrossim, seja
afastada a punição pela infração penal de perigo sempre que o dano
vier a ocorrer.
Dessa forma, o crime de dano absorve o delito de perigo.
Damásio de Jesus, com precisão, esclarece:
“Os crimes de periclitação da vida e da saúde, descritos nos
arts. 130 a 136 do CP, constituem infrações subsidiárias em
face dos delitos de dano. Existe relação de primariedade e
subsidiariedade entre delitos quando dois ou mais tipos
descrevem graus de violação da mesma objetividade jurídica. A
subsidiariedade pode ser expressa ou tácita. No primeiro caso,
a norma penal incriminadora, que descreve a infração penal de
menor gravidade, expressamente afirma a sua não aplicação
quando a conduta constitui delito de maior porte. Assim, o
preceito secundário do crime de perigo para a vida ou a saúde
de outrem impõe pena de detenção, de 3 meses a um ano, se o
fato não constitui crime mais grave. Trata-se de subsidiariedade
expressa, uma vez que explicitamente a norma de incriminação
ressalva a sua não incidência na hipótese de o fato constituir
crime mais grave, como, por exemplo, tentativa de homicídio.
Existe subsidiariedade implícita quando um tipo penal se
encontra descrito em outro. Neste caso, o delito de menor
gravidade funciona como elementar ou circunstância de outra
figura típica. Assim, o delito de perigo para a vida ou a saúde de
outrem (CP, art. 132) funciona como infração subsidiária em
relação aos delitos descritos nos arts. 130, caput, 131, 133, 134
e 136 do CP.”7
Imagine-se a hipótese daquele que conduza veículo automotor,
em via pública, estando com capacidade psicomotora alterada em
razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que
determine dependência. Caso o agente não atropele ninguém, não
vindo a causar qualquer lesão ou mesmo morte a qualquer pessoa,
deverá ser responsabilizado pela infração penal tipificada no art. 306
do Código de Trânsito Brasileiro, com a redação que lhe foi
conferida pela Lei nº 12.760, de 20 de dezembro de 2012. Contudo,
suponha-se, agora, que o agente, após ter ingerido grande
quantidade de bebida alcoólica, na direção de seu veículo
automotor, atropele e mate um pedestre, dada sua falta de reflexo.
Neste último caso, o crime de dano, vale dizer, o homicídio culposo
praticado na direção de veículo automotor, absorverá a infração
penal de perigo (conduzir veículo automotor com capacidade
psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra
substância psicoativa que determine dependência).
Verifica-se, portanto, ser a infração penal de perigo subsidiária,
em geral, àquela de dano.
Essa regra, no entanto, sofre exceções, a exemplo do que
ocorre nos §§ 1º e 2º do art. 308 do Código de Trânsito Brasileiro.
Isso porque, no caput do mencionado art. 308, com a redação que
lhe foi conferida pela Lei nº 13.546, de 19 de dezembro de 2017,
temos a previsão da conduta de participar, na direção de veículo
automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição
automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em
manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade
competente, gerando situação de risco à incolumidade pública ou
privada. Cuida-se, portanto, de um crime de perigo concreto. No
entanto, seus §§ 1º e 2º previram, também de acordo com a
redação que lhe foi dada pela Lei nº 12.971, de 9 de maio de 2014,
respectivamente, que:
Art. 308. [...]
§ 1º Se da prática do crime previsto no caput resultar
lesão corporal de natureza grave, e as circunstâncias
demonstrarem que o agente não quis o resultado
nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa
de liberdade é de reclusão, de 3 (três) a 6 (seis)
anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste
artigo
§ 2º Se da prática do crime previsto no caput resultar
morte, e as circunstâncias demonstrarem que o
agente não quis o resultado nem assumiu o risco de
produzi-lo, a pena privativa de liberdade é de
reclusão de 5 (cinco) a 10 (dez) anos, sem prejuízo
das outras penas previstas neste artigo.
Assim, embora tenha ocorrido um dano advindo do
comportamento perigoso praticado pelo agente, tal fato não
importará no reconhecimento de outra figura típica, mas, sim terá o
condão de qualificar o crime de perigo, tendo em vista a disposição
legal expressa nesse sentido. Caso não houvesse, a regra restaria
mantida, ou seja, o crime de dano absorveria a infração penal de
perigo.
1.6
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: pessoa contaminada
por uma doença venérea.
Passivo: qualquer pessoa.
Objeto material
É a pessoa com quem o sujeito
ativo mantém relação sexual ou
pratica qualquer ato libidinoso.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
A vida e a saúde.
Prova pericial
É
fundamental
que
se
comprove,
mediante
prova
pericial, que o agente se
encontrava, no momento da
ação, contaminado por uma
moléstia venérea.
Elemento subjetivo
»
»
Dolo direto ou eventual.
Não há previsão para a
modalidade culposa.
Consumação e tentativa
»
Crime de perigo concreto,
consuma-se no momento
em que, por meio de
relação sexual ou qualquer
»
ato libidinoso, a vítima
tenha se encontrado numa
situação
de
possível
contaminação da doença
venérea da qual o agente
era portador.
É admissível a tentativa.
2.
PERIGO DE CONTÁGIO VENÉREO
Perigo de contágio venéreo Art.
130. Expor alguém, por meio de
relações sexuais ou qualquer ato
libidinoso, a contágio de moléstia
venérea, de que sabe ou deve saber
que está contaminado:
Pena – detenção, de três meses a um
ano, ou multa.
§ 1º Se é intenção do agente
transmitir a moléstia:
Pena – reclusão, de um a quatro
anos, e multa.
§ 2º Somente se procede mediante
representação.
2.1
Introdução
Embora extensa, vale a transcrição parcial do item 44 da
Exposição de Motivos da Parte Especial do Código Penal (DecretoLei nº 2.848/40), em que se verificam, com clareza, os motivos pelos
quais o legislador, naquela oportunidade, fez inserir tal figura típica
em nosso ordenamento jurídico-penal:
44. Entre as novas entidades
prefiguradas no capítulo em questão,
depara-se em primeiro lugar, com o
‘contágio venéreo’. Já há mais de
meio século, o médico francês
Desprès postulava que se incluísse tal
fato entre as species do ilícito penal,
como já fazia, aliás, desde 1866, a lei
dinamarquesa. Tendo o assunto
provocado amplo debate, ninguém
mais
duvida,
atualmente,
da
legitimidade dessa incriminação. A
doença venérea é uma lesão corporal
e de consequências gravíssimas,
notadamente quando se trata da
sífilis. O mal da contaminação (evento
lesivo) não fica circunscrito a uma
pessoa determinada. O indivíduo que,
sabendo-se portador de moléstia
venérea, não se priva do ato sexual,
cria conscientemente a possibilidade
de um contágio extensivo. Justificase, portanto, plenamente, não só a
incriminação do fato, como critério de
declarar-se
suficiente
para
a
consumação do crime a produção do
perigo de contaminação. Não há
dizer-se que, em grande número de
casos, será difícil, senão impossível, a
prova da autoria. Quando esta não
possa ser averiguada, não haverá
ação penal (como acontece, aliás, em
relação a qualquer crime); mas a
dificuldade de prova não é razão para
deixar-se de incriminar um fato
gravemente
atentatório
de
um
relevante bem jurídico [...].
Na época em que proliferavam os bordéis no Brasil, justificavase a preocupação do legislador, principalmente diante da escassez
de medidas preventivas, para evitar a propagação das doenças
venéreas.
O tipo penal do art. 130 do Código Penal traz em seu corpo um
elemento normativo que precisa ser esclarecido pela Medicina, vale
dizer, a chamada moléstia venérea. Conforme ressalta Cezar
Roberto Bitencourt:
“O texto legal fala, genericamente, em moléstia venérea, sem
qualquer outra definição ou limitação. Ante a omissão do texto
legal, a definição de moléstia venérea compete à medicina.
Assim, a exemplo do que ocorre com as substâncias
entorpecentes (que causam dependência física ou psíquica),
são admitidas como moléstias venéreas, para efeitos penais,
somente aquelas que o Ministério da Saúde catalogar como
tais, e esse rol deve variar ao longo do tempo, acompanhando
não só a evolução dos costumes, mas, particularmente, os
avanços da própria ciência médica”.
O núcleo expor, contido no art. 130 do Código Penal,
demonstra a natureza da infração penal em estudo, tratando-se,
portanto, de crime de perigo, pois não exige o dano ao bem
juridicamente tutelado, que ocorreria com a efetiva transmissão da
moléstia venérea. Assim, basta que a vítima tenha sido exposta ao
perigo de contágio, mediante a prática de relações sexuais ou
qualquer ato de libidinagem, de moléstia venérea de que o agente
sabia, ou pelo menos devia saber estar contaminado, para que se
caracterize a infração penal em exame.
Rogério Sanches Cunha ressalta:
“Se o agente se relaciona com a intenção de transmitir a
doença – dolo de dano –, mas vê frustrado seu intento,
estaremos diante da forma qualificada prevista no § 1º (a
ausência desta qualificadora faria a presente ação subsumir-se
ao disposto no art. 129, tentado). Agora se, querendo,
efetivamente consegue contaminar o ofendido, produzindo
neste ferimentos graves à saúde, responderá o agente pelo
crime do art. 129, §§ 1º e 2º, ou do art. 129, § 3º, este último em
caso de morte.”8
2.2
Classificação doutrinária
Crime próprio quanto ao sujeito ativo (uma vez que somente a
pessoa contaminada é que poderá praticá-lo), sendo comum quanto
ao sujeito passivo (pois qualquer pessoa pode figurar como vítima
deste crime); de forma vinculada (pois a lei penal exige, para fins de
reconhecimento de sua configuração, a prática de relações sexuais
ou atos libidinosos); de perigo concreto (podendo ocorrer a hipótese
de crime de dano, prevista no § 1º do art. 130 do CP); doloso (sendo
o dolo direto ou mesmo eventual); comissivo; instantâneo;
transeunte (quando a vítima não se contaminar); não transeunte
(quando houver o efetivo contágio da vítima); unissubjetivo;
plurissubsistente; condicionado à representação.
2.3
Sujeito ativo e sujeito passivo
O delito pode ser praticado por qualquer pessoa, sendo
condição exigida pelo tipo, contudo, que essa pessoa esteja
efetivamente contaminada por uma doença venérea, razão pela
qual, dada essa limitação, é que o entendemos como um delito
próprio.
Sujeito passivo pode ser qualquer pessoa, em face da
inexistência de qualquer exigência típica, pois a lei penal utiliza a
palavra alguém, eliminando, assim, qualquer restrição, podendo
tanto ser sujeito passivo do crime de perigo de contágio venéreo o
homem ou a mulher, a criança ou o adulto, enfim, qualquer pessoa,
na conotação que lhe propõe também o art. 121 do Código Penal.
2.4
Objeto material e bem juridicamente protegido
Objeto material do crime de perigo de contágio venéreo é a
pessoa com quem o sujeito ativo mantém relação sexual ou pratica
qualquer ato libidinoso, podendo ser, como já o dissemos, o homem
ou a mulher.
Bem juridicamente protegido pelo tipo é a vida e a saúde,
conforme nos informa o Capítulo III do Título I do Código Penal, em
que está inserido o art. 130.
2.5
Elemento subjetivo
O art. 130 do Código Penal exige, para a configuração do delito
de perigo de contágio venéreo, que o agente, no momento do
contato sexual, saiba – ou pelo menos deva saber – que está
contaminado.
A expressão contida no mencionado artigo – sabe ou deve
saber que está contaminado – é motivo de intensa controvérsia
doutrinária e jurisprudencial. Discute-se se tal expressão é indicativa
tão somente de dolo ou pode permitir, também, o raciocínio com a
modalidade culposa.
A Exposição de Motivos da parte especial do Código Penal
consigna expressamente que o delito em estudo admite a
modalidade culposa, conforme se verifica da leitura do item 44:
44. O crime é punido não só a título
de dolo de perigo, como a título de
culpa (isto é, não só quando o agente
sabia achar-se infeccionado, como
quando
devia
circunstâncias).
sabê-lo
pelas
Apesar da orientação do legislador, aflorada na exposição de
motivos da Parte Especial do Código Penal, não podemos
interpretar a expressão de que sabe ou deve saber estar
contaminado como permissiva do raciocínio correspondente ao dolo
e à culpa. Isso porque a regra constante do parágrafo único do art.
18 do Código Penal é clara no sentido de que, salvo os casos
expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como
crime, senão quando o pratica dolosamente.
Assim, para que pudéssemos permitir a possibilidade de
punição a título de culpa, o artigo deveria tê-la mencionado
expressamente, como o fizeram, por exemplo, os arts. 121 e 129 do
Código Penal, respectivamente, em seus §§ 3º e 6º.
Na verdade, com a devida vênia das posições em contrário,
devemos entender com a expressão de que sabe ou deve saber que
o agente poderá ter agido, no caso concreto, com dolo direto ou
mesmo com dolo eventual, mas não com culpa.
Quando a lei menciona que o agente sabia ou devia saber estar
contaminado com uma doença venérea está se referindo,
especificamente, a esse fato, ou seja, ao conhecimento efetivo ou
possível da contaminação, e não ao seu elemento subjetivo no
momento do ato sexual, após ter certeza (sabe) ou presumir (dever
saber) que estava contaminado.
Imaginemos as seguintes hipóteses: o agente, casado, depois
de discutir com a sua esposa, vai a uma casa de prostituição e
convida uma garota de programa para um ato sexual. Nesse
momento, ela lhe explica que está contaminada por uma doença
venérea e que, fatalmente, se mantiverem relações sexuais, ele
será contaminado, convidando-o a voltar em outra oportunidade,
quando estiver curada. O agente diz não se importar com esse fato
e com ela insiste no ato sexual. A garota de programa, após a
insistência do agente, com ele mantém relação sexual sem usar
preservativo. Poucos dias depois, a doença demonstrou seus sinais
no agente. Mesmo assim, depois de ter resolvido seu problema
familiar que o havia feito sair de casa, o agente decide, sabendo da
sua contaminação, ter relação sexual também com sua esposa, que,
para a felicidade dela, não se contamina. Nesse primeiro caso,
sabendo o agente da sua contaminação e, ainda assim, insistindo
no ato sexual, conhecia as possibilidades efetivas de transmissão
da doença, mas não ocorreu o contágio.
Em um segundo caso, imaginemos o seguinte: o agente, na
mesma situação anterior, depois de discutir com sua esposa, vai a
uma casa de prostituição. Assim que chega no prostíbulo, convida
uma das garotas de programa para uma relação sexual. Quando
está no quarto, começa a observar vários detalhes que lhe parecem
suspeitos. Inicialmente, percebe, sobre a mesa de cabeceira, uma
medicação, que ele também já havia usado algum tempo atrás,
destinada a combater doenças venéreas. A garota de programa, ao
se despir, retira uma espécie de absorvente genital que, ao ser
jogado no lixo, parecia conter uma secreção. Envergonhado de
perguntar-lhe se estava contaminada por alguma doença venérea, o
agente, ainda assim, mantém com ela relação sexual sem o uso de
preservativo. Resumindo, todos os detalhes levavam a crer, embora
o agente não tivesse certeza, que a garota de programa estivesse
contaminada. Um pouco antes de a doença manifestar seus sinais,
o agente retorna ao convívio familiar e, mesmo sabendo da
possibilidade de estar contaminado com uma doença venérea,
mantém relação sexual com sua esposa, que, também, por sorte,
não se contamina.
Devemos salientar, entretanto, que o dolo direto e o dolo
eventual podem existir quando o agente sabia efetivamente da
contaminação ou devia saber. O saber ou dever saber diz respeito
exclusivamente à contaminação da doença, e não ao elemento
subjetivo do agente. O elemento subjetivo deve ser analisado no
momento do ato sexual praticado por aquele que sabia, ou pelo
menos devia saber, estar contaminado.
O agente, portanto, pode ter relação sexual com alguém
sabendo que tal fato importará em efetivo perigo de contaminação a
outra pessoa, agindo, assim, com dolo direto, ou poderá com seu
ato sexual saber que poderá ocorrer esse perigo e não se importar
com essa situação, quando, então, agirá com dolo eventual.
Importante frisar que, independentemente da espécie de dolo –
se direto ou eventual –, o agente, para que seja responsabilizado
pelo caput do art. 130 do Código Penal, não poderá almejar a
transmissão da doença venérea, agindo, pois, com dolo de dano,
uma vez que a infração penal tipificada na sua modalidade
fundamental prevê um delito de perigo.
Devemos, ainda, saber se o ato sexual praticado pelo agente
trouxe, efetivamente, situação de perigo de contágio para a vítima,
raciocinando com o chamado crime de perigo concreto, já explicado.
Caso contrário, o fato será atípico, não se admitindo, dessa forma, a
possibilidade de responsabilidade penal, levando-se em
consideração a mera colocação abstrata em perigo.
Concluindo, o delito previsto no caput do art. 130 do Código
Penal somente pode ser praticado, segundo nossa posição, a título
de dolo, não se permitindo a responsabilidade penal a título de
culpa, frisando-se, ainda, a sua natureza jurídica de crime de perigo
concreto.
2.6
Consumação e tentativa
O crime de perigo concreto consuma-se no momento em que,
por meio de relação sexual ou qualquer ato libidinoso, a vítima tenha
se encontrado numa situação de possível contaminação da doença
venérea da qual o agente era portador.
Entendemos
perfeitamente
admissível
a
tentativa,
independentemente de se cuidar, na espécie, de crime de perigo.
Imagine-se a hipótese, mesmo que de laboratório, em que alguém,
sabendo-se portador de uma doença venérea, vá até um bordel com
a finalidade de manter relação sexual com uma prostituta. Quando
está no quarto, já despido, ao deitar-se na cama com a vítima, ainda
não iniciado o ato, uma colega de profissão da prostituta ingressa no
quarto e impede a prática do ato sexual, revelando que o agente
está contaminado por uma moléstia venérea.
Podemos entender, dessa forma, como início da execução,
aqueles instantes que antecederam, por exemplo, à conjunção
carnal, quando o agente já havia retirado a roupa, bem como a
roupa da vítima, pois o bem jurídico saúde, naquele instante, já
estava sendo objetiva e imediatamente atacado.
2.7
Modalidade qualificada
O § 1º do art. 130 do Código Penal diz que se for intenção do
agente transmitir a moléstia, a pena será de reclusão, de 1 (um) a 4
(quatro) anos, e multa.
Como se percebe pela redação do mencionado parágrafo, o
agente atua com dolo de dano, ou seja, o dolo de, efetivamente,
transmitir a moléstia de que é portador, produzindo, dessa forma,
lesão à integridade corporal ou à saúde da vítima.
No item 45 da Exposição de Motivos da parte especial do
Código Penal encontra-se a seguinte justificativa para a inserção no
capítulo correspondente à periclitação da vida e da saúde de um
comportamento que é dirigido, especificamente, à produção de um
resultado lesivo:
45. É especialmente prefigurado, para
o efeito de majoração da pena, o caso
em que o agente tenha procedido com
intenção de transmitir a moléstia
venérea. É possível que o rigor
técnico exigisse a inclusão de tal
hipótese no capítulo das lesões
corporais, desde que seu elemento
subjetivo é o dolo de dano, mas como
se trata, ainda nessa modalidade, de
um crime para cuja consumação
basta o dano potencial, pareceu à
Comissão revisora que não havia
despropósito em classificar o fato
entre os crimes de perigo contra a
pessoa. No caso de dolo de dano, a
incriminação é extensiva à criação do
perigo de contágio
moléstia grave.
de
qualquer
Merece ser ressaltado que, na hipótese em estudo, o que se
exige à configuração da qualificadora é tão somente o dolo do
agente em transmitir a doença, e não a efetiva transmissão. Assim,
o agente deverá responder pelo delito em sua modalidade
qualificada se tiver, por exemplo, mantido relação sexual com a
vítima, com a intenção de transmitir-lhe a moléstia venérea, mesmo
que essa não venha a se contaminar.
Ressalte-se, ainda, que a simples exposição a perigo de
transmissão da doença venérea consuma o delito em questão, na
sua modalidade qualificada. O que estamos querendo esclarecer é
que, embora o agente atue com dolo de dano, não se exige a efetiva
contaminação para que o delito qualificado reste consumado. Basta,
de acordo com ilação que se faz da expressão se é intenção do
agente transmitir a moléstia, que o agente atue com dolo de dano,
tão somente. Contudo, mesmo que a vítima não se contamine, mas
se era essa a intenção do agente, ou seja, fazer com que fosse
contaminada, o simples contato sexual, capaz de transmitir a
moléstia venérea, já será suficiente para fins de configuração da
qualificadora.
Se a vítima se contamina, poderemos raciocinar com esse
resultado de duas formas distintas: ou entendendo-o como mero
exaurimento da figura típica qualificada do art. 130 do Código Penal,
ou desclassificando-o para o delito de lesões corporais, conforme
veremos quando da discussão das questões que se seguirão.
2.8
Pena, ação penal, competência para julgamento e
suspensão condicional do processo
A pena cominada para a modalidade simples é a de detenção,
de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa, e para a modalidade
qualificada é de reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Na modalidade simples, a multa pode ser aplicada como pena
alternativa à privação da liberdade; na modalidade qualificada, a
multa é aplicada com a pena de privação da liberdade.
Como regra, a modalidade fundamental de perigo de contágio
venéreo se amolda ao conceito de infração penal de menor
potencial ofensivo, sendo-lhe aplicados todos os institutos previstos
pela Lei nº 9.099/95, a exemplo da suspensão condicional do
processo.
Na modalidade qualificada, há possibilidade de concessão de
suspensão condicional do processo em decorrência da pena mínima
cominada ao § 1º, vale dizer, 1 (um) ano de reclusão.
A ação penal, em ambas as modalidades – simples e
qualificada –, é de iniciativa pública condicionada à representação
do ofendido, ou seja, daquele que foi efetivamente exposto à
situação de perigo, conforme se dessume do § 2º do art. 130 do
diploma repressivo.
2.9
Prova pericial
Para que se possa reconhecer o delito de perigo de contágio
venéreo, tipificado no caput do art. 130 do Código Penal, é
fundamental que se comprove, mediante prova pericial, que o
agente se encontrava, no momento da ação, contaminado por uma
moléstia venérea.
Dessa forma, será muito difícil a configuração do mencionado
tipo penal, uma vez que, como se percebe sem muito esforço, o
agente não poderá ser obrigado a se submeter a exame pericial, a
fim de que, nele, seja apontada a doença venérea de que era
portador, uma vez que ninguém é obrigado a fazer prova contra si
mesmo.
Se não houver contaminação da vítima, tendo ocorrido,
simplesmente, uma exposição a perigo concreto de contaminação,
restará quase que impossível a condenação do agente.
Os próprios redatores do art. 130 do Código Penal, no item 44
da exposição de motivos da parte especial do Código Penal, após
justificarem a sua criação, confessam:
44. O indivíduo que, sabendo-se
portador de moléstia venérea, não se
priva
do
ato
sexual,
cria
conscientemente a possibilidade de
um contágio extensivo. Justifica-se,
portanto, plenamente, não só a
incriminação do fato, como o critério
de declarar-se suficiente para a
consumação do crime a produção do
perigo de contaminação. Não há
dizer-se que, em grande número de
casos, será difícil, senão impossível, a
prova da autoria. Quando esta não
possa ser averiguada, não haverá
ação penal (como acontece, aliás, em
relação a qualquer crime); mas a
dificuldade de prova não é razão para
deixar-se de incriminar um fato
gravemente
atentatório
de
um
relevante bem jurídico.
Vale ressalvar que, embora muito valioso, o exame de corpo de
delito não é indispensável à caracterização da infração penal em
estudo. Outras provas conforme determinam os arts. 158 (com a
nova redação que lhe foi conferida pela Lei nº 13.721, de 2 de
outubro de 2018) e 167 do Código de Processo Penal, verbis:
Art. 158. Quando a infração deixar
vestígios, será indispensável o exame
de corpo de delito, direto ou indireto,
não podendo supri-lo a confissão do
acusado.
Parágrafo único. Dar-se-á prioridade à
realização do exame de corpo de
delito quando se tratar de crime que
envolva:
I – violência doméstica e familiar
contra mulher;
II – violência contra criança,
adolescente, idoso ou pessoa com
deficiência.
Art. 167. Não sendo possível o exame
de corpo de delito, por haverem
desaparecido os vestígios, a prova
testemunhal poderá suprir-lhe a falta.
Percebe-se, com clareza, que a infração penal de que estamos
cuidando, ou seja, a mera exposição a perigo de contágio de
moléstia venérea, encontra-se no rol daquelas que não deixam
vestígios. Se houver tão somente a exposição, e não a
contaminação da vítima, não haverá vestígio a ser demonstrado no
caso concreto. O que se exige, sim, sem qualquer sombra de
dúvida, é a demonstração do efetivo perigo de contágio a que se
expôs a vítima ao ter relações sexuais com o agente.
Poderá a parte acusadora, por exemplo, na hipótese quase
absoluta de recusa por parte do agente em submeter-se ao exame
pericial, a fim de comprovar sua moléstia venérea, valer-se de
outros meios, quando, por exemplo, conseguir trazer a juízo outra
vítima, que fora contaminada pelo agente, que com ela manteve
relações sexuais no mesmo dia em que também praticou os atos de
libidinagem com a vítima daqueles autos; ou, ainda, a prova
testemunhal de alguém que aplicou no agente uma injeção
contendo substância destinada especificamente à cura de moléstias
venéreas etc. Enfim, o que estamos querendo afirmar é que não
necessariamente a prova pericial, comprovando a moléstia venérea,
é que permitirá a condenação do agente que, dela sendo portador,
praticou ato sexual com alguém, expondo essa pessoa a perigo de
contaminação.
Se a vítima foi efetivamente contaminada, independentemente
da discussão que se tenha no que diz respeito à nova definição
típica, como veremos mais adiante, a comprovação dos fatos ficará
facilitada, uma vez que a infração já entrará no catálogo daquelas
que deixam vestígios, aplicando-se, portanto, o mencionado art. 158
do Código de Processo Penal.
2.10
2.10.1
Destaques
Consentimento do ofendido
Poderá a vítima, permitindo o ato sexual com alguém que,
sabidamente, encontrava-se contaminado por uma doença venérea,
com o seu consentimento, afastar a infração penal tipificada no art.
130 do Código Penal?
Já tivemos oportunidade de manifestar (ver comentários ao art.
129 do Código Penal) que, para que o consentimento do ofendido
seja válido, inicialmente, o bem jurídico em questão deve encontrarse no rol daqueles entendidos como disponíveis, a vítima deve ter
capacidade para consentir e, finalmente, o consentimento deve ser
prévio ou, no mínimo, concomitante à conduta do agente.
Para nós, a integridade corporal e a saúde são disponíveis,
desde que a lesão sofrida seja de natureza leve. Caso contrário,
como regra geral, o consentimento não terá o condão de afastar a
ocorrência da infração penal.
Assim, no caso em exame, se a moléstia venérea de que o
agente é portador se encontra no rol daquelas que causam
perturbação orgânica de natureza leve, poderá a vítima, sabendo
dessa
situação,
consentir
no
ato
sexual,
afastando,
consequentemente, a ocorrência do delito. Em sentido contrário, se
a doença venérea produz lesão corporal de natureza grave, ou
mesmo pode conduzir à morte, o consentimento não será válido.
Manifestando-se contrariamente à possibilidade de o
consentimento do ofendido afastar o delito em tela, Cezar Roberto
Bitencourt, com apoio em Nélson Hungria, afirma:
“Trata-se, com efeito, de interesse público e, portanto,
indisponível. O eventual consentimento do ofendido não afasta
o interesse público em impedir a progressão dessas moléstias,
que, se não forem combatidas com eficácia, podem adquirir
dimensões preocupantes ou, quem sabe, até atingir o nível de
epidemia. Nesse sentido, pontificava Nélson Hungria: ‘é
irrelevante o consentimento do ofendido, isto é, o seu
assentimento ao ato sexual, apesar de conhecer o risco do
contágio’.”9
Com a devida vênia das posições dos renomados autores, não
creditamos tanta importância ao salientado interesse público, pois,
fosse esse fundamental à sua proteção, não teria a lei penal
condicionado a ação penal à confecção de representação pelo
ofendido. Mesmo tendo havido contaminação, se não for do
interesse da vítima dar início à persecutio criminis, o Estado nada
poderá fazer, pois condicionou a ação penal à sua manifestação de
vontade.
2.10.2
Necessidade de contato pessoal
O art. 130 do Código Penal determina os meios em virtude dos
quais poderá ser praticado o comportamento que se traduza em
perigo de contágio de moléstia venérea, a saber: relações sexuais
ou qualquer ato libidinoso.
Por relações sexuais podemos entender qualquer tipo de coito.
Guilherme de Souza Nucci esclarece que relação sexual:
“É o coito, ou seja, a união estabelecida entre duas pessoas
através da prática sexual. Trata-se de expressão mais
abrangente do que conjunção carnal, que se limita a cópula
pênis-vagina. Abrange, pois, o sexo anal ou oral.”10
Qualquer outro ato que permita aflorar a libido do agente,
mesmo não havendo coito, poderá se configurar como atos de
libidinagem, a exemplo daquele que, embora não realizando a
penetração, passa o pênis por entre as pernas da vítima. Nesse
caso, imagine-se a hipótese em que tenha havido ejaculação, sendo
o agente portador de moléstia venérea. Embora não tendo havido
coito, anal ou vaginal, a vítima foi exposta a perigo de contaminação
da doença de que era portador o agente.
A discussão, na verdade, reside na seguinte situação: exige a
lei penal o contato pessoal entre a vítima e o agente, no sentido de
permitir a sua responsabilidade penal pelo delito em questão?
Tem-se entendido majoritariamente pela necessidade do
contato pessoal, não se configurando o delito, por exemplo, na
hipótese daquele que envia esperma pelos correios, trazendo perigo
de contaminação para a vítima que com ele mantém contato.
Da mesma forma, para que se caracterize o delito os atos
devem ser eminentemente sexuais, ou seja, aqueles atos que têm
por finalidade deixar aflorar a libido, o desejo sexual do agente.
Assim, comportamentos como apertar a mão não se configuram no
delito em estudo.
Nesse sentido, esclarece Noronha:
“Atos libidinosos são a fellatio in ore, o cunnilingus, o
pennilingus, o annilingus, o coito anal, inter femora etc. Não se
exclui o beijo voluptuoso que pode levar até ao espasmo.
O âmbito do elemento material do art. 130 é menos amplo que
o do art. 544 do Código Penal italiano, que fala genericamente
em atos. Consequentemente, não se lhe aplicam
entendimentos como o exposto por Pannain: o contágio pela
amamentação ou pelo aperto de mãos. Todavia, é mister o
contato corpóreo entre os sujeitos ativo e passivo. Deve o
primeiro transmitir diretamente ao segundo a moléstia venérea;
é necessário ser agente imediato. Se o amante transmite o mal
à sua amante, que, por sua vez, contagia o marido, só é
responsável pelo crime relativamente à adúltera. Somente esta
é que, conforme a hipótese, praticará o delito em relação ao
esposo.”11
Concluindo, além de se exigir o contato pessoal, outros meios
que não os tipicamente sexuais não caracterizam o delito.
2.10.3
Efetiva contaminação da vítima
Questão que se coloca por demais interessante diz respeito à
efetiva contaminação da vítima. Sabemos que estamos diante de
um crime de perigo que, como já afirmamos, configura-se como
degrau antecedente ao crime de dano.
Em muitas situações, o legislador cria a infração penal de
perigo para que o dano, que é, o mal maior, seja evitado. Caso a
infração de perigo tenha sido ineficiente no sentido de evitar a
produção do dano, ocorrendo este último, será afastada a punição
pelo perigo, que restará por ele consumida. Simplificando: como
regra, o crime de dano absorve o crime de perigo.
A título de raciocínio, imagine-se a hipótese daquele que,
dirigindo em velocidade excessiva, querendo chegar em casa mais
cedo para assistir à final da Copa do Mundo, ultrapasse vários sinais
vermelhos, passando muito próximo aos pedestres que tentavam
efetuar a travessia da avenida, chegando, contudo, são e salvo em
casa, sem que tivesse atropelado qualquer pessoa. Nesse caso,
qual seria a infração penal cometida pelo agente? Poderíamos
concluir que o agente teria praticado o delito previsto no art. 311 do
Código de Trânsito Brasileiro, que diz:
Art. 311. Trafegar em velocidade
incompatível com a segurança nas
proximidades de escolas, hospitais,
estações
de
embarque
e
desembarque
de
passageiros,
logradouros estreitos, ou onde haja
grande
movimentação
ou
concentração de pessoas, gerando
perigo de dano:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a
1 (um) ano, ou multa.
Imagine-se, agora, que esse mesmo agente, imprimindo
velocidade excessiva em seu veículo, não conseguisse desviar-se
de um pedestre que fazia a travessia normal em um cruzamento,
atropelando-o e, consequentemente, produzindo-lhe lesões
corporais. Pergunta-se: neste caso específico, o agente deverá
responder pelo crime de perigo previsto pelo art. 311 do Código de
Trânsito Brasileiro, transcrito acima, bem como pelas lesões
corporais por ele produzidas enquanto se encontrava na direção de
veículo automotor, tipificadas pelo art. 303 do mencionado Código?
A resposta só pode ser negativa, uma vez que, ocorrendo o
dano, o perigo será por ele absorvido, devendo o agente, pois, ser
responsabilizado tão somente pelo delito de lesão corporal culposa
praticada na direção de veículo automotor.
Esclarecido esse ponto, voltemos à análise do art. 130, bem como
de seu § 1º. Se, em decorrência do ato sexual praticado pelo
agente, a vítima vier a se contaminar com uma moléstia venérea por
ele transmitida, qual será a classificação jurídica da infração penal?
Respondendo a essa indagação, afirma Damásio:
“Contágio venéreo constitui lesão corporal. Pareceu ao
legislador melhor definir o fato no capítulo dos crimes da
periclitação da vida e da saúde, e não no art. 129, que define o
delito de lesão corporal. Assim, se há transmissão da moléstia,
permanece a responsabilidade em termos de crime de perigo
de contágio venéreo.”12
Ney Moura Teles, a seu turno, complementa o raciocínio
dizendo:
“Se do contágio resultarem apenas lesões corporais leves,
prevalece o crime do art. 130. Se resultarem lesões corporais
graves ou gravíssimas, responderá o agente pelo crime do art.
129, § 1º ou § 2º. Se resultar morte, responderá por lesão
corporal seguida de morte.”13
2.10.4
Crime impossível – vítima já contaminada pela mesma
doença, ou, ainda, a hipótese do agente já curado
Pode ocorrer a hipótese de crime impossível tanto em virtude
da absoluta ineficácia do meio, quanto devido à absoluta
impropriedade do objeto.
Raciocinemos com o exemplo daquele que, acreditando ser
portador de moléstia venérea, tem relação sexual com a vítima com
o intuito de transmiti-la, quando, na verdade, se encontra
perfeitamente saudável, já estando completamente curado; ou ainda
daquele que, sabendo-se portador de doença venérea, silencia com
relação a isso para que a vítima não o rejeite, quando esta última
também é portadora da mesma doença venérea de que está
acometido o agente, desde que, com o ato praticado pelo agente,
não haja qualquer possibilidade de se agravar sua situação anterior.
Dessa forma, podemos raciocinar em ambas as hipóteses com
o chamado crime impossível, seja pela ineficácia absoluta do meio,
seja pela absoluta impropriedade do objeto.
2.10.5
I.S.T.
(Infecções
Sexualmente
transmissão do vírus HIV
Transmissíveis)
e
De acordo com o Departamento de Condições Crônicas e
Infecções Sexualmente Transmissíveis, são consideradas como
infecções sexualmente transmissíveis: a) Aids; b) cancro mole; c)
clamídia e gonorreia; d) condiloma acuminado (HPV); e) doença
inflamatória pélvica (DIP); f) donovanose; g) hepatites virais; h)
herpes; i) infecção pelo vírus T-linfotrópico humano (HTLV); j)
linfogranuloma venéreo; k) sífilis; l) tricomoníase.
Como se percebe pela relação acima transcrita, a infeção por
HIV pode ser considerada como uma doença sexualmente
transmissível. No entanto, embora a infecção por HIV possa ser
transmitida por meio de relação sexual, ela não pode ser
considerada simplesmente uma moléstia venérea, razão pela qual,
caso ocorra sua transmissão por esse meio, o fato não poderá se
amoldar ao tipo penal do art. 130 do diploma repressivo.
2.10.6
Morte da vítima quando era intenção do agente transmitirlhe a doença
Se houver a morte da vítima quando era intenção do agente
apenas transmitir-lhe a doença, deverá este ser responsabilizado
pelo crime de lesão corporal seguida de morte, uma vez que o seu
dolo era de dano (transmissão da moléstia venérea de que era
portador), sendo-lhe imputado o resultado morte a título de culpa (já
que esse resultado não fazia parte do seu dolo, mas lhe era
previsível), aplicando-se a regra do art. 19 do Código Penal.
2.11
Quadro-resumo
Sujeitos
»
Ativo: pessoa contaminada
por uma doença venérea.
»
Passivo: qualquer pessoa.
Objeto material
É a pessoa com quem o sujeito
ativo mantém relação sexual ou
pratica qualquer ato libidinoso.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
A vida e a saúde.
Prova pericial
É
fundamental
que
se
comprove,
mediante
prova
pericial, que o agente se
encontrava, no momento da
ação, contaminado por uma
moléstia venérea.
Elemento subjetivo
»
»
Dolo direto ou eventual.
Não há previsão para a
modalidade culposa.
Consumação e tentativa
»
Crime de perigo concreto,
consuma-se no momento
em que, por meio de
relação sexual ou qualquer
ato libidinoso, a vítima
tenha se encontrado numa
situação
de
possível
»
contaminação da doença
venérea da qual o agente
era portador.
É admissível a tentativa.
3.
PERIGO DE CONTÁGIO DE MOLÉSTIA GRAVE
Perigo de contágio de moléstia
grave
Art. 131. Praticar, com o fim de
transmitir a outrem moléstia grave de
que está contaminado, ato capaz de
produzir o contágio:
Pena – reclusão, de um a quatro
anos, e multa.
3.1
Introdução
Apesar de sua localização no capítulo correspondente aos
crimes de perigo (da periclitação da vida e da saúde), o art. 131 do
Código Penal, da mesma forma que o § 1º do art. 130 do mesmo
diploma repressivo, narra um delito de dano.
Na verdade, a conduta do agente é dirigida finalisticamente à
produção de um dano, qual seja, a transmissão de moléstia grave
de que está contaminado. Contudo, como veremos em tópico
próprio, a lei penal se satisfaz simplesmente com a exteriorização
do comportamento dirigido a esse fim, independentemente da
efetiva produção desse resultado.
Levando-se a efeito uma análise do tipo, podemos concluir que
o legislador se satisfaz com a prática do comportamento destinado à
transmissão de moléstia grave, mesmo que esta não ocorra
efetivamente, tratando-se, pois, de crime de natureza formal.
Ao contrário do que determina o art. 130 do Código Penal, que
somente se configura se houver a prática de atos de natureza
sexual, o delito do art. 131 pode ser considerado como de forma
livre, podendo o agente praticar atos de qualquer natureza que
possuam eficácia para a transmissão da moléstia de que está
contaminado.
Dessa forma, pode o agente valer-se de meios diretos ou
indiretos à consecução da transmissão da moléstia grave. Meios
diretos dizem respeito àqueles em que houver um contato pessoal
do agente, a exemplo do aperto de mão, beijo, abraço etc. Indiretos
são aqueles que decorrem da utilização de quaisquer instrumentos
capazes de transmitir a moléstia grave, a exemplo de seringas,
bebidas etc.
Pode, inclusive, valer-se de atos sexuais para o fim de
transmitir doença que não seja de natureza venérea.
O conceito de moléstia grave deve ser fornecido pela medicina.
Segundo Hungria:
“A gravidade da moléstia, bem como a sua contagiosidade e a
relação de causalidade entre a conduta do agente e o perigo
concreto de contágio, tem de ser pericialmente averiguada. São
moléstias transmissíveis, entre outras, as que o Regulamento
de Saúde Pública declara de notificação compulsória, como
sejam a febre amarela, a peste, o cólera e doenças
coleriformes, o tifo exantemático, a varíola, o alastrim, a difteria,
a infecção puerperal, a infecção do grupo tífico-paratífico, a
lepra, a tuberculose aberta, o impaludismo, o sarampo e outros
exantemas febris, as disenterias, a meningite cérebro-espinhal,
a paralisia infantil ou moléstia de HEINE--MEDIN, o tracoma, a
leishmaniose. As moléstias venéreas, sem dúvida alguma,
estão incluídas entre as moléstias graves transmissíveis,
configurando-se o crime de que ora se trata, e não o do art.
130, § 1º, se o meio ocasionante do perigo de contágio é
extragenital ou extrassexual.”14
Trata-se, portanto, de norma penal em branco, havendo
necessidade de se buscar o elenco das moléstias consideradas
graves no órgão competente (Ministério da Saúde).
3.2
Classificação doutrinária
Crime próprio quanto ao sujeito ativo (pois somente aquele que
está contaminado por uma moléstia grave pode praticá-lo) e comum
quanto ao sujeito passivo; doloso; formal (uma vez que o tipo penal
não exige a efetiva contaminação, mas, sim, a conduta dirigida
finalisticamente a transmitir a moléstia grave); comissivo, podendo
também ser comissivo por omissão (nos casos em que o agente
goze do status de garantidor); de forma livre; instantâneo;
monossubjetivo; plurissubsistente; de dano (embora previsto no
capítulo correspondente aos crimes de perigo).
3.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
Objeto material no art. 131 do Código Penal seria a pessoa
contra a qual é dirigida a conduta que tem por finalidade contagiá-la
com a moléstia grave.
Bem juridicamente protegido pelo tipo penal é a integridade
corporal ou a saúde da vítima, merecendo destaque o raciocínio de
Cezar Roberto Bitencourt quando afirma:
“Não nos parece que a ‘vida’ também integre o bem jurídico
protegido pelo art. 131, como alguns autores chegam a
sustentar. Tanto é verdade que, se sobrevier a morte da vítima,
eventual punição por esse dano deslocará a tipificação da
conduta para outro dispositivo que poderá ser o 121 ou 129, §
3º, numa clara demonstração de que a vida não está protegida
por este artigo legal, pelo menos imediatamente.”15
Significa, portanto, que se o agente atua no sentido de
contagiar a vítima não somente com uma moléstia grave, mas, sim,
mortal, a doença transmitida, na verdade, será considerada um meio
para a prática do delito de homicídio, conforme já afirmamos
anteriormente.
3.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
Somente a pessoa contaminada por uma moléstia grave poderá
ser sujeito ativo do delito tipificado no art. 131 do Código Penal,
razão pela qual, dada essa especificação típica, consideramos como
próprio o delito de perigo de contágio de moléstia grave.
Não existe, com relação ao sujeito passivo, nenhuma exigência
constante no tipo penal do art. 131 do diploma repressivo, podendo,
outrossim, o delito ser praticado contra qualquer pessoa,
independentemente do sexo, idade etc., demonstrando, assim, a
sua natureza de infração penal comum.
Dessa forma, deverá ser entendido como próprio com relação
ao sujeito ativo e comum no que diz respeito ao sujeito passivo.
3.5
Elemento subjetivo
Trata-se de infração eminentemente dolosa, cujo tipo penal
exige um especial fim de agir, vale dizer, a prática de ato com o fim
de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado.
Poderá ser praticado com dolo eventual? Entendemos que não,
pois a existência do especial fim de agir demonstra que o tipo penal
somente pode ser cometido com dolo direto. A conduta do agente,
portanto, deve ser dirigida finalisticamente no sentido de transmitir a
moléstia grave de que está contaminado. O agente, dessa forma,
busca alcançar esse resultado – transmissão da moléstia grave –
que, no entanto, não precisa ser produzido para efeito de
configuração típica.
Não há possibilidade, ainda, de punição a título de culpa,
podendo o agente ser responsabilizado, se houver o efetivo
contágio da vítima, pelas lesões corporais de natureza culposa nela
produzidas por meio da doença por ele transmitida, ou homicídio
culposo se ela, em razão da doença pela qual fora contaminada,
vier a morrer.
3.6
Consumação e tentativa
Consuma-se o delito com a prática dos atos destinados à
transmissão da moléstia grave, independentemente do fato de ter
sido a vítima contaminada ou não. Sendo um crime de natureza
formal, o legislador se contenta com a prática da conduta núcleo do
tipo, ou seja, a prática dos atos tendentes à transmissão da moléstia
grave que, se efetivamente vier a ocorrer, será considerada mero
exaurimento do crime, sendo de observância obrigatória no
momento da aplicação da pena-base, quando da análise das
circunstâncias judiciais, especificamente no que diz respeito às
consequências do crime.
Admite-se a tentativa, uma vez que podemos fracionar o iter
criminis, tratando-se, portanto, de um delito plurissubsistente.
3.7
Modalidades comissiva e omissiva
O núcleo praticar, constante do art. 131 do Código Penal,
pressupõe um comportamento comissivo, vale dizer, um fazer algo
dirigido à transmissão da moléstia grave.
Entretanto, pode o agente, que goze do status de garantidor,
ser responsabilizado pelo tipo penal em estudo caso a sua omissão
(imprópria) tenha sido levada a efeito no sentido de fazer com que o
garantido viesse a contrair a moléstia grave de que está
contaminado.
Assim, imagine-se a hipótese em que o agente, portador de
tuberculose, percebendo que seu filho menor pegaria um objeto
contaminado pela sua doença, nada faz para impedi-lo, almejando
seu efetivo contágio. Seu dever, na qualidade de garantidor, era
impedir que a vítima viesse a se contaminar. Entretanto, a vontade
do agente, no exemplo fornecido, era a de, permitindo a utilização,
pela vítima, do objeto contaminado, transmitir-lhe a moléstia grave
de que era portador, razão pela qual sua omissão será considerada
relevante, a ponto de fazer com que seja responsabilizado pelo
delito em estudo.
3.8
Exame de corpo de delito
O raciocínio levado a efeito quando do estudo do art. 130 do
Código Penal poderá ser transportado para o delito de perigo de
contágio de moléstia grave, para onde remetemos o leitor, a fim de
não sermos repetitivos, merecendo destaque as anotações
correspondentes ao fato de ter havido ou não contaminação pela
vítima para fins de aferição de necessidade de exame de corpo de
delito.
3.9
Pena, ação penal, suspensão condicional do processo
A pena cominada no preceito secundário do art. 131 do Código
Penal é de reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Em virtude da pena mínima cominada, torna-se perfeitamente
admissível a suspensão condicional do processo, presentes os
requisitos exigidos pelo art. 89 da Lei nº 9.099/95.
A ação penal é de iniciativa pública incondicionada.
3.10
3.10.1
Destaques
Utilização de objeto contaminado que não diga respeito ao
agente
O agente que, embora não sendo portador de qualquer doença,
se vale de um instrumento contaminado por moléstia grave, a fim de
transmiti-la à vítima, pratica o delito tipificado no art. 131 do Código
Penal?
A resposta só pode ser negativa, uma vez que o tipo exige,
como um dos elementos necessários à sua configuração, que o
agente esteja contaminado por moléstia grave e que atue no sentido
de transmiti-la a alguém.
Se o agente utilizar um instrumento contaminado por moléstia
grave de terceiro, por exemplo, poderá ser responsabilizado a título
de lesões corporais, consumadas ou tentadas, se o seu dolo era o
de ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem, podendo
variar, inclusive, a natureza das lesões (leve, grave ou gravíssima),
nos termos do art. 129 do Código Penal.
3.10.2
Crime impossível
Pode-se raciocinar também com a hipótese de crime impossível
quando o agente supõe estar contaminado com moléstia grave,
quando na verdade não é portador de qualquer doença, ou ainda
quando o agente tenta transmitir à vítima moléstia pela qual ela
também já estava contaminada, desde que com o ato praticado pelo
agente não tenha qualquer possibilidade de agravar a sua situação
anterior.
Portanto, podemos raciocinar com a hipótese de crime
impossível tanto pela ineficácia absoluta do meio (agente que não é
portador de qualquer doença), como pela absoluta impropriedade do
objeto (vítima já contaminada com a doença grave que o agente
pretende transmitir-lhe).
3.10.3
Vítima que morre em virtude da doença grave
Como o bem juridicamente protegido, in casu, é a integridade
corporal ou a saúde da vítima, caso o agente atue no sentido de
transmitir-lhe moléstia grave com o fim de causar-lhe a morte,
deverá ser responsabilizado, caso esta sobrevenha, pelo delito de
homicídio. Caso a vítima sobreviva, deverá o agente responder pela
tentativa de homicídio, se a doença de natureza grave por ele
transmitida tinha capacidade letal.
Se o dolo era de lesão, ou seja, o de ofender a integridade
corporal ou a saúde da vítima, e se esta vem a morrer em
decorrência de seu organismo não resistir à moléstia grave que lhe
fora transmitida, o caso deverá ser resolvido como hipótese de lesão
corporal seguida de morte, devendo, aqui, ser observada a regra
contida no art. 19 do Código Penal.
3.10.4
Transmissão do vírus HIV
Pode ocorrer a hipótese, não incomum, de que o agente,
revoltado com a sua doença, queira transmitir a outras pessoas o
vírus HIV, de que é portador.
Assim, no caso de querer o agente transmitir o vírus HIV,
entendemos que o seu dolo o do delito tipificado no art. 131 do
Código Penal.
Nesse sentido, entendendo pela configuração do art. 131 do
Código Penal, já decidiu o STF:
“Moléstia Grave. Transmissão. HIV. Crime doloso contra a vida
versus o de transmitir doença grave. Descabe, ante previsão
expressa quanto ao tipo penal, partir-se para o enquadramento
de ato relativo à transmissão de doença grave como a
configurar crime doloso contra a vida” (HC 98.712/SP, Rel. Min.
Marco Aurélio, 1ª T., julg. 05/10/2010).
3.11
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: pessoa contaminada
por moléstia grave.
Passivo: qualquer pessoa.
Objeto material
É pessoa contra a qual é
dirigida a conduta que tem por
finalidade contagiá-la com a
moléstia grave.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
Integridade corporal ou a saúde
da vítima.
Prova pericial
Vide art. 130 do CP.
Elemento subjetivo
»
»
Dolo. O tipo penal exige um
especial fim de agir.
Não há possibilidade de
punição a título de culpa.
Meios de execução
O delito do art. 131 do CP pode
ser considerado como de forma
livre, podendo o agente praticar
atos de qualquer natureza, por
meios diretos ou indiretos, que
possuam eficácia para a
transmissão da moléstia de que
está contaminado.
Consumação e tentativa
»
»
Consuma-se o delito com a
prática dos atos destinados
à transmissão da moléstia
grave, independentemente
de ter sido a vítima
contaminada ou não.
Admite-se a tentativa.
4.
PERIGO PARA A VIDA OU SAÚDE DE OUTREM
Perigo para a vida ou saúde de
outrem
Art. 132. Expor a vida ou a saúde de
outrem a perigo direto e iminente:
Pena – detenção, de três meses a um
ano, se o fato não constitui crime mais
grave.
Parágrafo
único.
A
pena
é
aumentada de um sexto a um terço se
a exposição da vida ou da saúde de
outrem a perigo decorre do transporte
de pessoas para a prestação de
serviços em estabelecimentos de
qualquer natureza, em desacordo com
as normas legais.
4.1
Introdução
Conforme explicações constantes do item 46 da Exposição de
Motivos da Parte Especial do Código Penal:
46. Trata-se de um crime de caráter
eminentemente subsidiário. Não o
informa o animus necandi ou o
animus laedendi, mas apenas a
consciência e vontade de expor a
vítima a grave perigo. O perigo
concreto, que constitui o seu elemento
objetivo, é limitado a determinada
pessoa, não se confundindo, portanto,
o crime em questão com os de perigo
comum ou contra a incolumidade
pública. O exemplo frequente e típico
dessa species criminal é o caso do
empreiteiro que, para poupar-se ao
dispêndio com medidas técnicas de
prudência, na execução da obra,
expõe o operário ao risco de grave
acidente. Vem daí que Zürcher, ao
defender, na espécie, quando da
elaboração do Código Penal suíço um
dispositivo incriminador, dizia que este
seria um complemento da legislação
trabalhista [...]. Este pensamento
muito contribuiu para que se
formulasse o art. 132; mas este não
visa somente proteger a indenidade
do operário, quando em trabalho,
senão também a de qualquer outra
pessoa. Assim, o crime de que ora se
trata não pode deixar de ser
reconhecido na ação, por exemplo, de
quem dispara uma arma de fogo
contra alguém, não sendo atingido o
alvo, nem constituindo o fato tentativa
de homicídio.
Cuida-se, portanto, de um crime de perigo concreto, no qual
deve ser comprovado que o comportamento do agente trouxe,
efetivamente, perigo para o bem jurídico por ele protegido.
O crime tipificado no art. 132 do Código Penal assume,
verdadeiramente, as características próprias das infrações penais
de perigo. Ab initio, jamais poderá haver dolo de dano, pois, caso
contrário, ocorreria a desclassificação da infração penal. Conforme
ressaltado no item 46 da citada Exposição de Motivos, no exemplo
em que o agente atira contra a vítima, jamais poderá atuar com dolo
de matar (animus necandi) ou mesmo com dolo de ferir (animus
laedendi), uma vez que, nesses casos, se errar o alvo, ocorrerá
aquilo que se denomina tentativa branca, devendo responder por
tentativa de homicídio ou tentativa de lesão corporal.
Não poderá, dessa forma, pretender a produção de qualquer
resultado lesivo, mas tão somente criar a situação de perigo. Vejase o exemplo clássico do atirador de facas. Quando ele faz o
arremesso das facas em direção a um painel onde se encontra a
vítima, ao atirar, sabe que o seu comportamento traz perigo para a
vida ou para a saúde da vítima. Contudo, não atua querendo acertála, pois, nesse caso, agiria com dolo de dano.
Também merece ser frisada a natureza subsidiária dos crimes
de perigo. Na hipótese do art. 132 do Código Penal foi consignado
no tipo penal aquilo que a doutrina denomina subsidiariedade
expressa, haja vista que a própria lei se preocupou em alertar para o
fato de que a infração penal de perigo somente será punida se não
houver a produção de um resultado mais grave, ou seja, o dano.
Já tivemos oportunidade de esclarecer, quando do estudo da
Parte Geral do Código Penal,16 o significado do princípio da
subsidiariedade, destinado a resolver o chamado conflito ou
concurso aparente de normas.
Pelo princípio da subsidiariedade, a norma dita subsidiária é
considerada, na expressão de Hungria, um “soldado de reserva”,
isto é, na ausência ou impossibilidade de aplicação da norma
principal mais grave, aplica-se a norma subsidiária menos grave. É
a aplicação do brocardo lex primaria derrogat legi subsidiariae.
A subsidiariedade pode ser expressa ou tácita.
Diz-se expressa a subsidiariedade quando a própria lei faz a
sua ressalva, deixando transparecer seu caráter subsidiário. Assim,
nos termos do preceito secundário do art. 132 do Código Penal,
somente se aplica a pena prevista para o delito de perigo para a
vida ou saúde de outrem se o fato não constituir crime mais grave.
Crime de perigo é aquele em que há probabilidade de dano. Se
houver o dano, que não foi possível ser evitado com a punição do
crime de perigo, não se fala em cometimento deste último. São
também exemplos de subsidiariedade expressa os delitos tipificados
nos arts. 238, 239, 249 e 307, todos do Código Penal.
Fala-se em subsidiariedade tácita ou implícita quando o artigo,
embora não se referindo expressamente ao seu caráter subsidiário,
somente terá aplicação nas hipóteses de não ocorrência de um
delito mais grave, que, neste caso, afastará a aplicação da norma
subsidiária. Como exemplo, podemos citar o art. 311 do Código de
Trânsito Brasileiro, que proíbe a conduta de trafegar em velocidade
incompatível com a segurança nas proximidades de escolas,
hospitais, estações de embarque e desembarque de passageiros,
logradouros estreitos, ou onde haja grande movimentação ou
concentração de pessoas, gerando perigo de dano. Se o agente,
deixando de observar o seu exigido dever de cuidado, imprimindo
velocidade excessiva a seu veículo, próximo a um dos lugares
acima referidos, vier a atropelar alguém causando-lhe a morte, não
será responsabilizado pelo citado art. 311, mas, sim, pelo art. 302 do
mesmo Código, que prevê o delito de homicídio culposo na direção
de veículo automotor. O crime de dano afastará, como regra, o
crime de perigo.
Na lição de Hungria:
“A diferença que existe entre especialidade e subsidiariedade é
que, nesta, ao contrário do que ocorre naquela, os fatos
previstos em uma e outra norma não estão em relação de
espécie a gênero, e se a pena do tipo principal (sempre mais
grave que a do tipo subsidiário) é excluída por qualquer causa,
a pena do tipo subsidiário pode apresentar-se como ‘soldado de
reserva’ e aplicar-se pelo residuum.”17
Na verdade, não possui utilidade o princípio da subsidiariedade,
haja vista que problemas dessa ordem podem perfeitamente ser
resolvidos pelo princípio da especialidade. Se uma norma for
especial em relação a outra, como vimos, ela terá aplicação ao caso
concreto. Se a norma dita subsidiária foi aplicada, é sinal de que
nenhuma outra mais gravosa poderia ter aplicação. Isso não deixa
de ser especialidade.
Conforme também destacado na Exposição de Motivos, para
que se caracterize o delito previsto no art. 132 do diploma penal,
será preciso que ele seja cometido contra pessoa ou, pelo menos,
pessoas individualizáveis, pois não se cuida na espécie de crime de
perigo comum, ou seja, aquele que atinge um número
indeterminado de pessoas, sendo, portanto, um crime de perigo
individual ou, pelo menos, individualizável.
Se o delito for cometido contra um número indeterminado de
pessoas, a hipótese será cuidada no Capítulo I (Dos Crimes de
Perigo Comum), do Título VIII (Dos Crimes contra a Incolumidade
Pública) do Código Penal.
Determina o tipo do art. 132 do Código Penal, ainda, que o
perigo seja direto e iminente. Guilherme de Souza Nucci esclarece
ser este:
“O risco palpável de dano voltado a pessoa determinada. A
conduta do sujeito exige, para configurar este delito, a inserção
de uma vítima certa numa situação de risco real – e não
presumido –, experimentando uma circunstância muito próxima
ao dano. Entendemos, respeitadas as doutas opiniões em
contrário, que o legislador teria sido mais feliz ao usar o termo
‘atual’, em lugar de ‘iminente’. Ora, o que se busca coibir,
exigindo o perigo concreto, é a exposição da vida ou da saúde
de alguém a um risco de dano determinado, palpável e
iminente, ou seja, que está para acontecer. O dano é iminente,
mas o perigo é atual, de modo que melhor teria sido dizer
‘perigo direto e atual’. O perigo iminente é uma situação quase
impalpável e imperceptível (poderíamos dizer, penalmente
irrelevante), pois falar em perigo já é cuidar de uma situação de
risco, que é imaterial, fluida, sem estar claramente definida.”18
4.2
Classificação doutrinária
Crime comum quanto ao sujeito ativo, bem como quanto ao
sujeito passivo; de perigo concreto (pois há necessidade inafastável
de ser demonstrado que o comportamento do agente criou,
efetivamente, a situação de perigo para a vida ou saúde de outrem);
doloso; comissivo ou omissivo impróprio; de forma livre; subsidiário
(conforme determinado expressamente no art. 132 do Código
Penal); instantâneo; transeunte (ou, em algumas situações em que
seja possível a prova pericial, não transeunte); monossubjetivo;
plurissubsistente.
4.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
Objeto material do delito de perigo tipificado pelo art. 132 do
Código Penal é a pessoa, ou as pessoas, contra a(as) qual(ais)
recai a conduta praticada pelo sujeito ativo.
Bens juridicamente protegidos pelo tipo, como está a indicar
não somente a rubrica ao tipo do art. 132 do diploma repressivo –
perigo para a vida ou saúde de outrem –, mas também o próprio
Capítulo III, são a vida e a integridade corporal ou saúde de outrem.
4.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
O crime de perigo para a vida ou saúde de outrem pode ser
praticado por qualquer pessoa, sendo, portanto, comum no que diz
respeito ao sujeito ativo.
Da mesma forma, pode ser considerado comum também com
relação ao sujeito passivo, uma vez que o tipo não delimita o
cometimento da infração penal contra alguém que goze de
qualidades especiais, valendo, contudo, mais uma vez, o alerta de
que, embora não qualificando o sujeito passivo, o delito deve ser
praticado contra pessoa determinada, ou mesmo um grupo
determinado, individualizável, de pessoas.
4.5
Modalidades comissiva e omissiva
O núcleo expor, constante do art. 132 do Código Penal,
pressupõe um comportamento comissivo, isto é, o agente faz
alguma coisa que traz perigo direto e iminente à vida ou à saúde de
outrem.
No entanto, pode a infração penal ser praticada omissivamente,
desde que o agente se encontre na posição de garantidor. Assim,
por exemplo, o guia turístico permite que alguém, que estava sob
seus cuidados, leve a efeito, sem qualquer ajuda, a travessia de
uma ponte de cordas, que estava prestes a se romper, querendo,
com isso, trazer perigo para a vida daquela pessoa.
4.6
Consumação e tentativa
Consuma-se o delito com a prática do comportamento que,
efetivamente, trouxe perigo para a vida ou para a saúde da vítima.
A tentativa é admissível, desde que, no caso concreto, se possa
visualizar o fracionamento do iter criminis, chegando-se à
conclusão, por exemplo, de que o agente já havia iniciado os atos
de execução que, entretanto, foram interrompidos antes que os
bens juridicamente protegidos pelo tipo (vida e saúde) tivessem sido
expostos, efetivamente, a uma situação de perigo, pois, caso
contrário, o delito já estaria consumado.
4.7
Elemento subjetivo
O delito de perigo para a vida ou saúde de outrem somente
pode ser praticado dolosamente, seja o dolo direto ou eventual.
Assim, se o agente, culposamente, produz situação de perigo
contra determinada vítima, se não houver, efetivamente, a produção
de um resultado lesivo – morte ou lesões – originária de seu
comportamento, o fato será considerado um indiferente penal.
Portanto, não tendo o tipo penal do art. 132 do diploma
repressivo feito previsão expressa da modalidade culposa, conforme
a regra insculpida no parágrafo único do art. 18 do Código Penal,
somente se pune a conduta dolosa – direta ou eventual – destinada
a produzir perigo para a vida ou saúde de outrem.
4.8
Causa especial de aumento de pena
Determina o parágrafo único do art. 132 do Código Penal que a
pena é aumentada de 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço) se a
exposição da vida ou da saúde de outrem a perigo decorre do
transporte de pessoas para a prestação de serviços em
estabelecimentos de qualquer natureza, em desacordo com as
normas legais.
A mencionada majorante foi inserida no Código Penal por
intermédio da Lei nº 9.777, de 29 de dezembro de 1998.
Entretanto, tal criação típica foi dirigida a coibir comportamentos
muito comuns, principalmente nas zonas rurais, de transporte
clandestino e perigoso de trabalhadores, a exemplo do que ocorre,
inclusive, em propriedades privadas, com os chamados “boias-frias.”
O aumento de 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço) deverá ser
levado a efeito considerando-se a probabilidade de dano decorrente
do transporte ilegal, ou seja, quanto mais perigoso for o transporte,
quanto mais se aproximar da probabilidade de dano às pessoas
transportadas, maior será o percentual de aumento.
4.9
Pena, ação penal, competência para julgamento e
suspensão condicional do processo
A pena cominada ao crime previsto no art. 132 do Código Penal
é de detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, sendo que o preceito
secundário do mencionado artigo ressalta sua natureza subsidiária,
determinando sua aplicação somente se o fato praticado pelo
agente não constitui crime mais grave.
A ação penal é de iniciativa pública incondicionada.
Compete, pelo menos inicialmente, ao Juizado Especial
Criminal o processo e julgamento do delito tipificado no art. 132 do
Código Penal, tendo em vista que a pena máxima cominada em
abstrato não ultrapassa o limite de 2 (dois) anos, determinado pelo
art. 61 da Lei nº 9.099/95, com a nova redação que lhe foi dada pela
Lei nº 11.313, de 28 de junho de 2006.
Será possível a confecção de proposta de suspensão
condicional do processo, nos termos do art. 89 da Lei nº 9.099/95.
4.10
4.10.1
Destaques
Quando o agente produz perigo a um número determinado
de pessoas
Pode ocorrer que, com o comportamento perigoso do agente,
se produza uma situação de perigo, por exemplo, a um grupo
determinado de pessoas. Cada uma delas, individualmente
considerada, se encontrou numa situação de perigo em virtude da
conduta levada a efeito pelo agente.
Nesses casos, ou seja, quando for evidenciada a colocação em
perigo de grupos de pessoas ou de, pelo menos, mais de uma
pessoa, a regra a ser considerada será a do concurso formal ou
ideal de crimes, aplicando-se, portanto, o art. 70 do Código Penal.
4.10.2
Consentimento do ofendido
No que diz respeito ao consentimento do ofendido, como
esclarecemos, se o bem jurídico que sofre perigo de lesão for a
integridade corporal ou a saúde da vítima, entendemos que o seu
consentimento terá o condão de afastar a ilicitude da conduta levada
a efeito pelo agente. Contudo, como também afirmamos, se o
comportamento perigoso trouxer em si a probabilidade de
ocorrência de lesão corporal de natureza grave ou gravíssima,
nesse caso entendemos que o consentimento não terá a força
suficiente para afastar o delito de perigo.
Da mesma forma, se com a conduta perigosa do agente se
concluir que houve perigo para a vida da vítima, consequentemente
ao raciocínio anterior, também acreditamos que o consentimento
não poderá eliminar a infração penal, não podendo ser considerado
como causa supralegal de exclusão da ilicitude.
Isso porque a vida, a integridade corporal e a saúde da vítima,
quando expostas a um perigo de dano de natureza grave, não são
bens considerados disponíveis, ficando ausente, portanto, um dos
requisitos necessários à validade do consentimento do ofendido.
4.10.3
Resultado morte ou lesões corporais
Se o comportamento do agente resultar em morte da vítima,
devido ao princípio da subsidiariedade expressa, contido no preceito
secundário do art. 132 do Código Penal, o agente deverá responder
pelo delito de homicídio culposo.
Ocorrendo lesões corporais, em virtude também da
determinação contida no mencionado preceito secundário, que diz
que a pena cominada é a de detenção, de 3 (três) meses a 1 (um)
ano, se o fato não constitui crime mais grave, como a pena da lesão
corporal de natureza culposa, que seria a aplicável às lesões
sofridas pela vítima, é menor do que a do crime de perigo em
estudo, de acordo com a própria determinação contida no tipo, o
crime de perigo deve ser imputado ao agente, mesmo tendo havido
lesão, pois, caso contrário, havendo dano, ou seja, lesões corporais,
estaríamos atribuindo uma pena menor do que se tivesse ocorrido
tão somente o perigo.
Como é a pena que dita a gravidade da infração penal, ou seja,
quanto maior a pena mais grave a infração penal, temos de concluir
que, nesse caso, a colocação dolosa em perigo deve ser tratada
mais severamente do que a produção culposa de um resultado
lesivo. Nesse sentido, afirma Cezar Roberto Bitencourt:
“Sobrevindo lesão corporal, o agente não responderá pela
modalidade culposa, cuja sanção penal é inferior, desde que
tenha sido demonstrada a existência do dolo de perigo. No
entanto, se a exposição a perigo ocorrer na condução de
veículo automotor, sobrevindo a lesão corporal, o agente
responderá por lesão corporal culposa (sanção mais grave), ou
se se tratar de lesão corporal majorada, nos termos do art. 129,
§ 7º, do CP.”19
4.10.4
Possibilidade de desclassificação para o delito de lesão
corporal seguida de morte
Inadmissível o raciocínio, quando vier a ocorrer a morte da
vítima, correspondente à possibilidade de se atribuir ao agente o
delito de lesão corporal seguida de morte.
Isso pela simples razão de que, para a configuração do delito
tipificado no § 3º do art. 129 do Código Penal, o agente deverá agir,
inicialmente, com dolo de lesão, sendo-lhe previsível o ulterior
resultado morte.
Como tivemos oportunidade de salientar, no crime tipificado no
art. 132 do Código Penal, o agente não atua com dolo de dano,
mas, sim, com dolo de perigo. Dessa forma, afastado o dolo inicial
de dano, ou seja, afastado, aqui, o animus laedendi (dolo de lesão),
torna-se impossível a classificação do fato como lesão corporal
seguida de morte; caso a morte ocorra em consequência da conduta
perigosa levada a efeito pelo agente, este deverá ser
responsabilizado, como afirmamos, pelo delito de homicídio culposo.
4.10.5
Disparo de arma de fogo em via pública
Pode alguém ser responsabilizado pelo delito do art. 132 do
Código Penal, efetuando um disparo com sua arma em direção à
vítima?
Para que possamos responder a essa indagação, faz-se mister
ressaltar que a Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003, criou o
tipo penal de disparo de arma de fogo, dizendo, em seu art. 15,
verbis:
Art. 15. Disparar arma de fogo ou
acionar munição em lugar habitado ou
em suas adjacências, em via pública
ou em direção a ela, desde que essa
conduta não tenha como finalidade a
prática de outro crime:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4
(quatro) anos, e multa.
De acordo com nossa proposta inicial, temos de procurar
interpretar as infrações penais de perigo no sentido de apontar,
efetivamente, a sua probabilidade de dano. Isso significa que, na
medida do possível, temos de trabalhar com a proposta contida nos
chamados crimes de perigo concreto.
Assim, segundo nosso entendimento, somente se configurará a
infração penal prevista pelo art. 15 da Lei nº 10.826/2003 se, no
caso concreto, for demonstrado que o disparo, por exemplo, sendo
realizado em lugar habitado ou em suas adjacências, trouxe perigo
para a vida ou saúde de terceiros. Caso contrário, entendemos que
o fato será atípico. Imagine-se a hipótese daquele fazendeiro que,
almejando testar sua arma recém--adquirida, espera a saída de
todas as pessoas que se encontravam na sua fazenda para,
sozinho, sem a presença de qualquer pessoa, efetuar um disparo
com ela.
Não havendo, como se percebe, qualquer possibilidade de
dano à vida ou à saúde das pessoas, temos de entender o fato
como atípico.
Comparando os tipos penais em estudo, Guilherme de Souza
Nucci, mesmo tecendo comentários sobre o art. 10, § 1º, III, da
revogada Lei nº 9.437/98, cuja redação em muito se assemelhava
ao atual art. 15 da Lei nº 10.826/2003, afirma:
“Caso o disparo seja efetuado em lugar não habitado
normalmente, mas que naquela ocasião possuía alguma
pessoa, que correu perigo efetivo, o delito configurado é o do
art. 132. Portanto, são raras as hipóteses de, existindo disparo
de arma de fogo, incidir a regra do Código Penal em lugar da
regra especial da Lei das Armas de Fogo.”20
Assim, somente se configurará o delito do art. 132 do Código
Penal mediante disparo de arma de fogo, quando: a) o disparo for
efetuado em lugar não habitado; b) não for em via pública ou em
direção a ela; c) quando o dolo não for de dano, vale dizer, quando o
agente não teve a intenção de ferir ou causar a morte da vítima.
4.11
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: qualquer pessoa.
Passivo: qualquer pessoa.
Objeto material
É a pessoa, ou as pessoas,
contra a(as) qual(ais) recai a
conduta praticada pelo sujeito
ativo.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
A vida e a integridade corporal
ou saúde de outrem.
Elemento subjetivo
»
»
Dolo direto ou eventual.
Não há previsão para a
modalidade culposa.
Modalidades
omissiva
comissiva
e
O núcleo “expor” pressupõe um
comportamento comissivo. No
entanto, pode a infração penal
ser praticada omissivamente,
quando o agente se encontrar
na posição de garantidor.
Consumação e tentativa
»
»
Consuma-se o delito com a
prática do comportamento
que, efetivamente, trouxe
perigo para a vida ou para
a saúde da vítima.
A tentativa é admissível,
desde que se possa
visualizar o fracionamento
do iter criminis.
5.
ABANDONO DE INCAPAZ
Abandono de incapaz Art. 133.
Abandonar pessoa que está sob seu
cuidado,
guarda,
vigilância
ou
autoridade, e, por qualquer motivo,
incapaz de defender-se dos riscos
resultantes do abandono:
Pena – detenção, de seis meses a
três anos.
§ 1º Se do abandono resulta lesão
corporal de natureza grave:
Pena – reclusão, de um a cinco anos.
§ 2º Se resulta a morte:
Pena – reclusão, de quatro a doze
anos.
Aumento de pena
§ 3º As penas cominadas neste artigo
aumentam-se de um terço:
I – se o abandono ocorre em lugar
ermo;
II – se o agente é ascendente ou
descendente, cônjuge, irmão, tutor ou
curador da vítima;
III – se a vítima é maior de 60
(sessenta) anos.
5.1
Introdução
O delito de abandono de incapaz encontra-se no rol das
infrações penais de perigo, previstas no Capítulo III do Título I do
Código Penal.
Considerando esse fato, a primeira conclusão a que devemos
chegar, quando do estudo do mencionado delito, é de que o agente,
com a conduta de abandonar, não poderá ter por finalidade causar a
morte ou mesmo lesão corporal na vítima, pois seu dolo,
necessariamente, deverá ser o dolo de perigo, e não o dolo de
dano.
Assim, se o abandono, por exemplo, é dirigido finalisticamente
a causar a morte da vítima, o agente, gozando do status de
garantidor, deverá responder pelo homicídio, consumado ou
tentado.
Em segundo lugar, temos de interpretar o art. 133 do Código
Penal de modo que se possa visualizar o comportamento do agente
como um produtor concreto da situação de perigo, ou seja, não se
poderá presumir que o abandono, por si, já se configura na infração
penal em estudo, mas, sim, que o ato de abandonar, nas condições
em que foi levado a efeito, trouxe, efetivamente, perigo para a vida
ou saúde da vítima. Assim, o abandono de incapaz deverá ser
entendido como um delito de perigo concreto, a ser demonstrado
caso a caso, sob pena de conduzir à atipicidade do fato.
O tipo do art. 133 do diploma repressivo aduz o comportamento
de abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância
ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos
riscos resultantes do abandono.
Dessa forma, podemos destacar os seguintes elementos
constantes da redação típica: a) o ato de abandonar; b) pessoa que
está sob o cuidado, guarda, vigilância ou autoridade do agente; c)
incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono.
O núcleo abandonar pressupõe o comportamento de deixar à
própria sorte, desamparar, deixar só, ou seja, o agente afasta-se da
pessoa que estava sob sua guarda, proteção, vigilância ou
autoridade, permitindo que ela venha a correr os riscos do
abandono, face à sua incapacidade de defesa.
A lei penal especificou, ainda, aqueles que poderiam ser
responsabilizados criminalmente pelo abandono, em razão de sua
particular relação com a vítima do delito. Segundo Hungria, o texto
legal:
“Fala, minudentemente, em relação de cuidado, guarda,
vigilância e autoridade. Cuidado significa a assistência a
pessoas que, de regra, são capazes de valer a si mesmas, mas
que, acidentalmente, venham a perder essa capacidade (ex.: o
marido é obrigado a cuidar da esposa enferma, e vice-versa).
Guarda é a assistência a pessoas que não prescindem dela, e
compreende necessariamente a vigilância. Esta importa em
zelo pela segurança pessoal, mas sem o rigor que caracteriza a
guarda, a que pode ser alheia (ex.: o guia alpino vigia pela
segurança de seus companheiros de ascensão, mas não os
tem sob sua guarda). Finalmente, a assistência decorrente da
relação de autoridade é a inerente ao vínculo de poder de uma
pessoa sobre outra, quer a potestas seja de direito público, quer
de direito privado. Se a violação do dever de assistência é
praticada por ascendente, descendente, cônjuge, irmão, tutor
ou curador, dá-se uma agravante especial (§ 3º, n. II, do art.
133).”21
A vítima, ainda, deve ser incapaz de defender-se dos riscos
resultantes do abandono, incapacidade esta que pode ser absoluta,
relativa (ou acidental), durável ou, ainda, temporária. Incapacidade
absoluta, conforme esclarece Mirabete, é “inerente à condição da
vítima (crianças de tenra idade, p. ex.) [...] relativa ou acidental (pelo
modo, lugar ou tempo de abandono)[...] durável (menores e
paralíticos) ou temporária (enfermidade aguda, ebriedade etc.).”22
Além da incapacidade da vítima de se defender dos riscos
resultantes do abandono, há necessidade de se comprovar a efetiva
e concreta situação de perigo em que se viu envolvida.
Vale, por mais uma vez, a ressalva de que estamos diante de
um crime de perigo, de natureza concreta, e não de um crime de
dano. Assim, não poderá o agente querer, com o seu abandono,
causar a morte ou mesmo ofender a saúde da vítima, pois, caso
contrário, responderá por esses resultados, conforme já afirmamos.
5.2
Classificação doutrinária
Crime próprio (pois o tipo penal aponta quem pode ser
considerado como sujeito ativo, bem como aqueles que poderão
figurar como sujeito passivo); de perigo concreto (não basta
demonstrar o ato de abandono, mas sim que esse comportamento
trouxe perigo para a vida ou saúde da vítima); doloso; de forma livre;
comissivo ou omissivo impróprio; monossubjetivo; plurissubsistente;
transeunte (como regra); instantâneo.
5.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
O delito de abandono de incapaz tem por finalidade proteger a
vida e a saúde daquela pessoa que se encontra sob os cuidados,
guarda, vigilância ou autoridade de outrem. Nesse sentido, ainda
acrescenta Noronha: “Objetividade jurídica, portanto, é o interesse
relativo à segurança do indivíduo que, por si, não se pode defender
ou proteger, preservando sua incolumidade física”.23
Objeto material do delito é a pessoa que sofre com o abandono,
isto é, aquela que se encontra sob os cuidados, guarda, vigilância
ou autoridade do agente.
5.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
O tipo do art. 133 do Código Penal aponta aqueles que, em
virtude de uma particular relação com a vítima, podem ser autores
do delito em questão. Assim, sujeito ativo do crime de abandono de
incapaz somente pode ser aquele que, de acordo com uma
obrigação legal ou contratual, está obrigado a cuidar da vítima, a
guardá-la, vigiá-la ou tê-la sob sua autoridade.
Assim, imagine-se a hipótese em que a vítima se encontre sob
os cuidados de determinada enfermeira que, irritada pela falta de
pagamento dos seus serviços, durante a madrugada, a abandone,
deixando-a à própria sorte, quando eram necessários os seus
cuidados no sentido de trocar, por exemplo, o balão de oxigênio,
bem como a ministração de medicamentos necessários à
estabilização de sua saúde.
Como se percebe pelo exemplo fornecido, a lei penal, na
verdade, apontou aquelas pessoas consideradas garantidoras,
alertando-as, por intermédio do mencionado tipo penal, sobre a
necessidade de serem diligentes no sentido de não poderem
abandonar as funções que lhes competem, pois, assim agindo,
trarão perigo para a vida ou a saúde daquelas pessoas que se
encontram numa relação de dependência para com elas e que, por
isso, são incapazes de se autodefenderem dos riscos desse
abandono.
Sujeito passivo é aquela pessoa que se encontra sob os
cuidados, guarda, vigilância ou autoridade do sujeito ativo.
5.5
Consumação e tentativa
Consuma-se o delito de abandono de incapaz no instante em
que o abandono produz efetiva situação de perigo concreto para a
vítima.
Isso significa que o perigo deve ser demonstrado caso a caso.
Por outro lado, a prática da conduta prevista no núcleo do tipo,
ou seja, o ato de abandonar, quando não se configura na hipótese
de consumação, poderá dar ensejo à responsabilização penal do
agente a título de tentativa.
Aníbal Bruno, discorrendo sobre a possibilidade do raciocínio
correspondente à tentativa de abandono de incapaz, diz:
“A consumação realiza-se num só momento, embora a situação
criada pelo abandono ou qualquer das suas consequências
possa prolongar-se no tempo. Isso, porém, não impede que
haja um curso no processo do crime, que pode parar em
qualquer momento da execução e dar lugar à tentativa. Assim
acontece, por exemplo, se o agente é surpreendido quando vai
realizar a situação em que é provável que surja o dano, como é
o caso da mulher que vai expor o filho ao desamparo, mas no
seu caminho é apanhada e impedida de realizar o seu
intento.”24
Nosso raciocínio inicial, contudo, já pressupõe que tenha havido
o efetivo ato de abandonar, sendo que esse comportamento,
naquele momento, ainda não criava uma situação de perigo
concreto para a vítima.
Assim, aproveitando o exemplo de Aníbal Bruno, imagine-se a
hipótese em que a mãe já houvesse, efetivamente, abandonado seu
filho, mas, poucos minutos depois, a criança é encontrada, sem que
o tempo em que permaneceu sozinha, sem os cuidados da mãe,
tenha sido suficiente para criar uma situação de perigo para a vida
ou mesmo para a saúde dela.
Nesse caso, embora a mãe já tivesse esgotado o seu
comportamento praticando a conduta de abandonar, a infração
penal, ainda assim, permaneceria na fase da tentativa, em face da
inexistência de perigo concreto.
5.6
Elemento subjetivo
O dolo é o elemento subjetivo exigido pelo tipo de abandono de
incapaz. Assim, o agente deve dirigir finalisticamente sua conduta
no sentido de abandonar aquele que se encontra sob seus
cuidados, guarda, vigilância ou autoridade, fazendo com que se veja
inserido numa situação que venha causar perigo concreto à sua vida
ou saúde.
Não se exige, para fins de configuração do dolo referente à
figura típica do art. 133 do Código Penal, que o abandono tenha
caráter definitivo. Pode ser mesmo até temporário, mas desde que
por tempo suficiente para fins de colocação em perigo da vida ou da
saúde daquele que é incapaz de se defender dos riscos do
abandono.
Não se admite a responsabilização criminal do agente a título
de culpa. Dessa forma, aquele que, negligentemente, por exemplo,
se esquece de que havia levado seu filho a determinado local, onde
permanece por tempo suficiente para a configuração da situação de
risco, somente responderá por algum delito se desse
comportamento culposo advier algum resultado danoso para a
vítima, vale dizer, morte ou lesões corporais.
5.7
Modalidades comissiva e omissiva
O núcleo abandonar, previsto pelo art. 133 do Código Penal,
permite que o agente pratique o delito tanto comissiva quanto
omissivamente.
É possível, por exemplo, que o agente transporte a vítima de
um lugar para outro, com o intuito de abandoná-la, ou pode, ele
mesmo, deixar a vítima no lugar em que esta já se encontrava,
abandonando-a à própria sorte.
Nesse sentido, esclarece Fragoso:
“A ação envolverá, todavia, em regra, um deslocamento no
espaço, podendo o crime ser praticado por ação (levar a vítima
a determinado lugar e dela afastar-se) ou por omissão (deixar a
vítima no lugar onde se encontra).”25
5.8
Modalidades qualificadas
Os §§ 1º e 2º do art. 133 do Código Penal preveem as
modalidades qualificadas do abandono de incapaz, verbis:
§ 1º Se do abandono resulta lesão
corporal de natureza grave:
Pena – reclusão, de um a cinco anos.
§ 2º Se resulta morte:
Pena – reclusão, de quatro a doze
anos.
Os parágrafos acima transcritos traduzem hipóteses de crimes
eminentemente preterdolosos. Isso significa que o agente que criou
a situação de perigo concreto para a vida ou saúde da vítima não
pode, em qualquer situação, ter querido a produção do resultado
morte ou lesão corporal.
Assim, o dolo diz respeito à efetiva colocação em perigo, ou
seja, o agente não pretende, com seu comportamento, causar a
morte ou mesmo lesão corporal na vítima. Entretanto, dada a
situação de perigo a que foi exposta, era previsível que tais
resultados pudessem acontecer.
Dessa forma, existe dolo no antecedente – quando o agente
abandona a vítima, ex-pondo-a a uma situação de perigo concreto –
e culpa no consequente – quando do abandono à que foi submetida
a vítima resulta lesão corporal de natureza grave ou morte.
Faz-se mister ressalvar que, para fins de aplicação dos
mencionados parágrafos, que, como dissemos, preveem delitos de
natureza preterdolosa, é fundamental que os resultados narrados
tenham sido previstos ou, ao menos, sejam previsíveis para o
agente, pois, caso contrário, por eles não poderá ser
responsabilizado criminalmente, conforme a regra contida no art. 19
do Código Penal, que diz:
Art. 19. Pelo resultado que agrava
especialmente a pena, só responde o
agente que o houver causado ao
menos culposamente.
5.9
Causas de aumento de pena
Os incisos I, II e III do § 3º do art. 133 do Código Penal elencam
as seguintes majorantes, que têm por finalidade aumentar em um
terço as penas nele cominadas, a saber:
I – se o abandono ocorre em lugar
ermo;
II – se o agente é ascendente ou
descendente, cônjuge, irmão, tutor ou
curador da vítima;
III – se a vítima é maior de 60
(sessenta) anos.
Inicialmente, deve ser frisado que as causas de aumento de
pena apontadas são aplicadas a todas as modalidades de abandono
de incapaz, vale dizer, para os delitos tipificados no caput e §§ 1º e
2º do art. 133 do Código Penal.
Isso porque as majorantes foram previstas no § 3º do art. 133
do Código Penal, razão pela qual se aplicam a tudo aquilo que as
anteceder, isto é, às modalidades simples e qualificadas do
abandono de incapaz.
A primeira das causas de aumento de pena diz respeito ao fato
de o abandono ter sido levado a efeito em lugar ermo. Por lugar
ermo tem-se entendido aquele por onde passam poucas pessoas,
normalmente abandonado, deserto, tendo o abandono, realizado
nessas condições, maior probabilidade de resultar em dano para a
vida ou saúde da vítima. O lugar, no entanto, não pode ser
considerado abandonado a ponto de que ninguém tenha acesso, ou
pelo menos seja quase impossível que alguém vá até ele, pois,
nesse caso, o dolo do agente não seria o de simplesmente
abandonar a vítima em lugar ermo, mas, sim, o de causar-lhe a
morte em virtude do local do abandono.
A segunda causa especial de aumento de pena diz respeito ao
fato de o agente ser ascendente ou descendente, cônjuge, irmão,
tutor ou curador da vítima. Essa especial relação entre eles faz com
que o abandono seja mais reprovável, isto é, requeira maior juízo de
censura. Há necessidade, para a aplicação da mencionada
majorante, que seja demonstrada essa qualidade nos autos, por
meio dos documentos que lhe são próprios, a exemplo da carteira
de identidade, certidão de nascimento, sentença que impôs o munus
de curador etc. No que diz respeito à relação entre ascendentes ou
descendentes, não há limite de grau, sendo suficiente que a vítima
se encontre sob os cuidados do agente e que seja, por qualquer
motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono.
A última causa especial de aumento de pena foi inserida no § 3º
do art. 133 do Código Penal por meio da Lei nº 10.741, de 1º de
outubro de 2003, que dispõe sobre o Estatuto do Idoso. Vale
ressaltar que, à primeira vista, não há qualquer incompatibilidade
em serem conjugadas mais de uma causa de aumento de pena,
como pode acontecer na hipótese em que a vítima seja ascendente
do agente, além de contar com mais de 60 (sessenta) anos. De
qualquer forma, o § 3º do art. 133 do Código Penal não permite
qualquer margem ao julgador, determinando que o aumento será de
um terço, não importando aqui a existência de mais de uma
majorante, podendo, inclusive, estarem consignadas as três, como
acontece na hipótese em que a vítima é ascendente do agente,
possui mais de 60 (sessenta) anos e é abandonada em local ermo.
5.10
Pena, ação penal e suspensão condicional do processo
Em sua modalidade fundamental, o art. 133 do Código Penal
prevê uma pena de detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos; se
do abandono resultar lesão corporal de natureza grave, a pena será
de reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos; e se resultar a morte, será
de reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos.
A ação penal, em todas as modalidades do delito de abandono
de incapaz, vale dizer, simples ou qualificadas, é de iniciativa
pública incondicionada.
Na sua modalidade fundamental, bem como na forma
qualificada pela lesão corporal de natureza grave, será possível a
proposta de suspensão condicional do processo, exceto, nessa
última hipótese, se houver a aplicação da majorante prevista no § 3º
do art. 133 do Código Penal.
5.11
5.11.1
Destaques
Quando do abandono sobrevém lesão corporal de natureza
leve
Vimos que as lesões corporais de natureza grave e a morte da
vítima qualificam o delito de abandono de incapaz. Afirmamos
também que tais resultados somente poderiam ser atribuídos ao
agente a título de culpa, tratando-se, portanto, de crimes
eminentemente preterdolosos.
Quando o § 1º do art. 133 do Código Penal faz menção ao
resultado lesão corporal de natureza grave, devemos entendê-lo de
forma objetiva, ou seja, analisando as lesões corporais sofridas pela
vítima, devemos concluir se elas se amoldam aos conceitos de
lesão corporal grave ou gravíssima previstos nos §§ 1º e 2º do art.
129 do Código Penal. Entretanto, não podem ter sido queridos pelo
agente, pois, caso contrário, como afirmamos, teria o agente que
por eles responder a título de dolo.
Portanto, embora objetivamente as lesões corporais sejam
graves, foram produzidas culposamente pelo agente, daí a natureza
preterdolosa da qualificadora contida no § 1º do art. 133 do Código
Penal.
Pode, entretanto, a vítima sofrer também lesões corporais de
natureza leve. Nesse caso, tais lesões estariam abrangidas pelo
delito de abandono de incapaz, ou teria o agente que responder por
elas a título de culpa?
Entendemos que as lesões leves não fazem parte do delito em
estudo, razão pela qual haveria concurso de crimes entre o
abandono de incapaz e as lesões corporais advindas da situação do
abandono.
Assim, deve-se fazer outra pergunta: havendo duas infrações
penais, qual a regra do concurso de crimes a ser aplicada?
No caso do abandono de incapaz, conseguindo-se visualizar
uma conduta única, produtora de dois resultados, pode-se aplicar a
regra do concurso formal.
5.11.2
Aplicação da majorante em razão da união estável
O § 3º do art. 133 do Código Penal determina o aumento em
um terço da pena se o agente é ascendente ou descendente,
cônjuge, irmão, tutor ou curador da vítima.
O Código Penal não fez menção à união estável para fins de
aplicação da majorante, sendo certo, também, que o Código Civil
não denomina cônjuges aqueles que se encontram nessa situação,
valendo-se do termo companheiros, conforme se verifica na redação
dos arts. 1.723 e 1.724, verbis:
Art. 1.723. É reconhecida como
entidade familiar a união estável entre
o homem e a mulher, configurada na
convivência pública, contínua e
duradoura e estabelecida com o
objetivo de constituição de família.
Art. 1.724. As relações pessoais entre
os companheiros obedecerão aos
deveres de lealdade, respeito e
assistência, e de guarda, sustento e
educação dos filhos.
Assim, pergunta-se: o companheiro que abandona sua
companheira, que necessita de sua assistência, tendo em vista a
sua particular condição que a torna incapaz de defender-se dos
riscos resultantes do abandono, deverá responder pelo delito
tipificado no art. 133 do Código Penal, com a aplicação da
majorante prevista em seu § 3º?
Inicialmente, conforme se verifica na redação do art. 1.724 do
Código Civil, conclui-se que há o dever de assistência entre os
companheiros, razão pela qual seria possível a configuração do
delito de abandono de incapaz. Entretanto, como há distinção entre
os termos cônjuge e companheiro denotando situações diferentes,
não podemos, via analogia in malam partem, entender que na
redação do inciso II do § 3º do Código Penal também esteja prevista
essa figura.
Dessa forma, para que seja preservado o princípio da
legalidade, cuja vertente contida no brocardo nullum crimen nulla
poena sine lege stricta proíbe o emprego da analogia in malam
partem, temos de rechaçar a possibilidade de ser aplicada ao
companheiro a mencionada causa especial de aumento de pena,
devendo o legislador rever tal posicionamento a fim de incluí-lo,
expressamente, no inciso agravador, sob pena de cuidar de forma
diferente, de situações similares, em gritante ofensa ao princípio da
isonomia.
Isso porque, se é essa relação familiar que faz com que o
abandono pelo cônjuge seja mais censurável, qual a diferença de
ser levado a efeito por aquele que, tendo uma relação reconhecida
legalmente como entidade familiar, não goza do status de cônjuge?
Hoje, infelizmente, em decorrência do aludido princípio da
legalidade, não podemos compreender o companheiro no termo
cônjuge, utilizado pelo inciso II do § 3º do art. 133 do Código Penal.
Em 17 de junho de 2004, entretanto, surgiu a Lei nº 10.886, que
acrescentou parágrafos ao art. 129 do Código Penal, criando o
delito de violência doméstica, fazendo menção expressa ao fato de
ser a lesão praticada contra companheiro. Isso foi um avanço em
termos de previsão legal, o que impede, como afirmado, a quebra
do princípio da isonomia.
De lege ferenda, seria de bom alvitre a revisão do Código Penal
para inserir, expressamente, a palavra companheiro em todas as
hipóteses em que haja previsão expressa de crime praticado pelo
cônjuge, bem como nas situações em que este figure como vítima,
eliminando, de uma vez por todas, o tratamento desigual entre
ambos.
5.12
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: somente pode ser
aquele que, de acordo com
uma obrigação legal ou
contratual, está obrigado a
cuidar da vítima, a guardála, vigiá-la ou tê-la sob sua
autoridade.
Passivo: é aquela pessoa
que se encontra sob os
cuidados, guarda, vigilância
ou autoridade do sujeito
ativo.
Objeto material
É a pessoa que sofre com o
abandono.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
Esclarece Noronha que “é o
interesse relativo à segurança
do indivíduo que, por si, não se
pode defender ou proteger,
preservando sua incolumidade
física” (NORONHA, 1980, p.
87).
Elemento subjetivo
»
»
É o dolo.
Não
se
admite
a
responsabilização criminal
do agente a título de culpa.
Modalidades
omissiva
comissiva
e
O núcleo abandonar permite
que o agente pratique o delito
tanto
comissiva
quanto
omissivamente.
Consumação e tentativa
»
»
Consuma-se o delito no
instante
em
que
o
abandono produz efetiva
situação de perigo concreto
para a vítima.
Será possível a tentativa.
6.
EXPOSIÇÃO OU ABANDONO DE RECÉM-NASCIDO
Exposição ou abandono de recémnascido
Art. 134. Expor ou abandonar recémnascido, para ocultar desonra própria:
Pena – detenção, de seis meses a
dois anos.
§ 1º Se do fato resulta lesão corporal
de natureza grave:
Pena – detenção de um a três anos.
§ 2º Se resulta a morte:
Pena – detenção, de dois a seis anos.
6.1
Introdução
O art. 134 do Código Penal, ao definir o crime de exposição ou
abandono de recém-nascido, cria, na verdade, uma modalidade
especial de abandono de incapaz, uma vez que, não se pode negar,
o recém-nascido goza do status de incapaz exigido pelo art. 133 do
mesmo estatuto repressivo.
No entanto, preferiu a lei penal dar tratamento diferenciado a
esse tipo de abandono, levando em consideração alguns dados que
o tornam especial comparativamente ao abandono de incapaz.
Assim, o art. 134 do Código Penal pune aquele que expõe ou
abandona recém-nascido para ocultar desonra própria.
Podemos destacar, por meio da redação típica, os seguintes
elementos: a) a situação de exposição ou abandono; b) a condição
de recém-nascido; c) o especial fim de agir com que atua a agente,
que procura, com o seu comportamento, ocultar desonra própria.
Nélson Hungria, com a argúcia que lhe é peculiar, critica a
redação típica no que diz respeito aos núcleos expor e abandonar,
pois, segundo o renomado autor, não há diferença entre eles.
Assim, esclarece:
“No art. 134, o Código destaca, como delictum exceptum, a
hipótese de ser o sujeito passivo um recém-nascido e proceder
o agente para ocultar desonra própria. É de indagar-se, porém,
qual a razão por que, no art. 133, só se fala em abandonar,
enquanto, no art. 134, já se fala em expor ou abandonar. Será
que a exposição difere do abandono? Se assim fosse, teria o
Código incidido no absurdo de deixar impune a exposição de
recém-nascido quando não praticada honoris causa, isto é, uma
hipótese mais grave do que a prevista no art. 134. Tal, porém,
não acontece.
Os verbos ‘expor’ e ‘abandonar’ são empregados, sob ponto de
vista jurídico-penal, com idêntico sentido. Atualmente, está
desacreditada a ambígua distinção que se fazia entre exposição
e abandono.”26
Diferentemente do que ocorre com o incapaz, como
mencionado pelo art. 133 do Código Penal, no art. 134 a lei exige a
qualidade de recém-nascido, ou seja, aquele que acabou de nascer,
vale dizer, o neonato, bem como aquele que possui poucas horas ou
mesmo alguns dias de vida. Não se pode conceber como recém-
nascido aquele que, com alguns meses de vida, é abandonado pela
mãe, que tinha por finalidade ocultar desonra própria. Nesse caso,
acreditamos, o delito será aquele previsto no art. 133 do Código
Penal, isto é, abandono de incapaz, mesmo que a mãe atue com
essa finalidade especial, uma vez que todos os elementos da figura
típica devem estar presentes no momento da aferição da tipicidade
do comportamento praticado pelo agente.
O último elemento exigido pelo tipo penal do art. 134 do Código
Penal, traduzido pela expressão para ocultar desonra própria, revela
o especial fim de agir com que atua a mãe. É o crime praticado
honoris causa, ou seja, por uma questão de honra. A mãe deseja
ocultar a gravidez para que sua honra não se veja maculada.
Várias são as hipóteses em que a mãe resolve esconder a
gravidez e, consequentemente, o fruto da concepção, a exemplo da
gravidez resultante de estupro, em que o marido da mulher que foi
violentada é estéril (mesmo que nessa hipótese seja difícil esconder
a gravidez do próprio marido, a não ser nos casos em que a pessoa
é portadora, por exemplo, de obesidade mórbida, em que os quilos
excedentes, provenientes da gestação, não farão diferença estética
perceptível).
Hoje em dia, o estigma, por exemplo, sobre a mãe solteira tem
se reduzido significativamente. No passado, a gravidez extra
matrimonium era motivo, até mesmo, da segregação das mulheres
em conventos e outros lugares do gênero.
Noronha ainda adverte que não podem invocar o delito honoris
causa:
“A meretriz, a mulher seduzida que casou com o sedutor ou que
o está processando (caso em que o fato já é do domínio
público), a solteira, quando sua gravidez é notória ou patente, a
mulher que sabidamente já tem prole ilegítima etc. A honra que
aqui se tem em vista é a sexual. Pode invocá-la, v.g., a mulher
má pagadora que tem um filho extra matrimonium. É, pois, a
causa da honra a razão da mitigação penal, circunstância que,
fora dos casos já apontados, há de ser apreciada no fato
concreto.”27
Cuida-se, no entanto, da mesma forma que o delito de
abandono de incapaz, de infração penal em que se necessita
demonstrar o perigo concreto trazido pela situação de exposição ou
abandono.
6.2
Classificação doutrinária
Crime próprio no que diz respeito ao sujeito ativo e ao sujeito
passivo; de perigo concreto; doloso; de forma livre; comissivo ou
omissivo impróprio; instantâneo; monossubjetivo; plurissubsistente;
transeunte (como regra, a não ser nas hipóteses qualificadas, em
que se verifica a lesão corporal de natureza grave ou a morte do
recém-nascido).
6.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
Os bens juridicamente protegidos pelo art. 134 do Código Penal
são a vida e a saúde do recém-nascido, haja vista que o
mencionado delito se encontra previsto no capítulo correspondente
à periclitação da vida e da saúde.
Busca-se, portanto, mediante proteção penal, resguardar a vida
e a saúde do recém-nascido exposto ou abandonado.
Objeto material é o recém-nascido, sobre o qual recai o
abandono.
6.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
Somente a mãe pode ser considerada sujeito ativo do delito de
abandono de recém-nascido, uma vez que, conforme adverte
Hungria, “não gozará do privilegium nem mesmo o marido da mulher
infiel que abandonar o neonato adulterino, pois a desonra, em tal
caso, não é dele, mas da esposa.”28
Sujeito passivo é o recém-nascido.
6.5
Consumação e tentativa
Consuma-se o delito no momento em que a exposição ou o
abandono resultar em perigo concreto para a vida ou para a saúde
do recém-nascido.
Cita-se como exemplo a hipótese da mãe que, querendo ocultar
desonra própria, deixa seu filho embrulhado em um cobertor
próximo a uma creche, oportunidade em que, instantes depois de
sua saída do local, a criança é descoberta e acolhida pelas pessoas
que trabalham naquela instituição. Nesse caso, podemos visualizar
a possibilidade de ser a mãe responsabilizada pela tentativa do
delito em estudo, uma vez que havia, segundo sua concepção,
esgotado tudo aquilo que era necessário a fim de realizar o
abandono, que não resultou em perigo concreto para a vida ou para
a saúde do recém-nascido.
6.6
Elemento subjetivo
O dolo é o elemento subjetivo característico do delito de
exposição ou abandono de recém-nascido, devendo-se, ainda,
segundo a doutrina majoritária, apontar outro elemento subjetivo,
caracterizado pelo chamado especial fim de agir, que, no caso da
infração penal em exame seria a finalidade de ocultar desonra
própria.
Conforme preleciona Luiz Regis Prado:
“Faz parte do tipo de injusto uma finalidade transcendente, isto
é, um especial fim de agir (elemento subjetivo do injusto ou
elemento subjetivo especial do tipo). Trata-se, portanto, de um
delito de tendência interna transcendente, no sentido de que o
autor busca um resultado (ocultar a própria desonra)
compreendido no tipo, mas que não precisa necessariamente
alcançar (delito de resultado cortado). Assim, além do dolo, o
tipo em estudo requer, para a sua realização, um especial fim
de agir, pertencente ao campo psíquico-espiritual ou subjetivo
do autor.”29
Por ausência de previsão expressa no tipo, não se admite a
modalidade culposa.
6.7
Modalidades comissiva e omissiva
O delito de exposição ou abandono de recém-nascido pode ser
praticado comissiva ou omissivamente.
Assim, a mãe, ao parir o seu filho, pode deixá-lo no lugar onde
ocorreu o parto oculto, bem como pode levá-lo a outro lugar, a fim
de abandoná-lo para ocultar desonra própria.
6.8
Modalidades qualificadas
Os §§ 1º e 2º do art. 134 do Código Penal preveem as
modalidades qualificadas do crime de exposição ou abandono de
recém-nascido, verbis:
§ 1º Se do fato resulta lesão corporal
de natureza grave:
Pena – detenção, de um a três anos.
§ 2º Se resulta a morte:
Pena – detenção, de dois a seis anos.
Percebe-se, numa comparação com o delito de abandono de
incapaz, que a lei penal tratou mais brandamente as formas
qualificadas de exposição ou abandono de recém-nascido.
Esse fato se deve ao especial fim de agir com que atua a mãe,
ou seja, sua especial motivação, que é a de ocultar desonra própria.
Tal como ocorre com os parágrafos do art. 133 do Código
Penal, as modalidades qualificadas do delito de exposição ou
abandono de recém-nascido somente podem ser imputadas ao
agente a título de culpa, tratando-se, portanto, de crimes de
natureza preterdolosa.
Caso a mãe, por exemplo, tenha querido abandonar o recémnascido com a finalidade de causar-lhe a morte, tal fato será
considerado meio de execução do crime de homicídio. O resultado
morte, outrossim, somente poderá qualificar o delito de exposição
ou abandono de recém-nascido se tiver ocorrido culposamente. Isso
quer dizer que o dolo da agente diz respeito tão somente ao
abandono do recém-nascido, com o fim de ocultar desonra própria,
ou seja, dolo de perigo. Caso tenha agido com dolo de dano,
responderá pelo resultado pretendido – lesão corporal de natureza
grave ou morte (tentado ou consumado).
6.9
Pena, ação penal, competência para julgamento e
suspensão condicional do processo
A pena prevista no caput do art. 134 do Código Penal é de
detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos; se do fato resultar
lesão corporal de natureza grave, nos termos do § 1º do art. 134 do
diploma repressivo, a pena será de detenção, de 1 (um) a 3 (três)
anos; sendo que, se advier a morte do recém-nascido, conforme
determina o § 2º do mesmo artigo, a pena será de detenção, de 2
(dois) a 6 (seis) anos.
Na modalidade fundamental, a competência para julgamento do
delito em exame será do Juizado Especial Criminal, sendo possível
a proposta de suspensão condicional do processo não somente
nesse caso, mas também na forma qualificada prevista pelo § 1º do
art. 134 do Código Penal.
Em todas as modalidades – simples ou qualificadas –, a ação
penal será de iniciativa pública incondicionada.
6.10
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: mãe do recémnascido.
Passivo: o recém-nascido.
Objeto material
É o recém-nascido, sobre o
qual recai o abandono.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
A vida e a saúde do recémnascido.
Elemento subjetivo
»
É o dolo, devendo-se,
ainda, segundo a doutrina
majoritária, apontar outro
elemento
subjetivo,
caracterizado
pelo
chamado especial fim de
»
agir, que seria a finalidade
de ocultar desonra própria.
Não
se
admite
a
modalidade culposa por
ausência de previsão legal.
Modalidades
omissiva
comissiva
e
O delito pode ser praticado
comissiva ou omissivamente.
Consumação e tentativa
»
Consuma-se o delito no
momento
em
que
a
exposição ou o abandono
resultar em perigo concreto
»
para a vida ou para a
saúde do recém-nascido.
A tentativa é admissível.
7.
OMISSÃO DE SOCORRO
Omissão de socorro Art. 135. Deixar
de prestar assistência, quando
possível fazê-lo sem risco pessoal, à
criança abandonada ou extraviada, ou
à pessoa inválida ou ferida, ao
desamparo ou em grave e iminente
perigo; ou não pedir, nesses casos, o
socorro da autoridade pública:
Pena – detenção, de um a seis
meses, ou multa.
Parágrafo
único.
A
pena
é
aumentada de metade, se da omissão
resulta lesão corporal de natureza
grave, e triplicada, se resulta a morte.
7.1
Introdução
O fato de vivermos em sociedade implica uma série de direitos
e deveres de uns para com os outros. É melhor que seja assim.
Mesmo que pensemos egoisticamente somente em nossos direitos,
o fato é que, em determinadas situações, seremos chamados a agir
até mesmo contra nossa vontade. Existe um dever maior,
necessário não somente ao convívio social, mas à manutenção da
própria sociedade em si, que é o dever de solidariedade.
Como não podemos contar com a boa vontade de todos, faz-se
necessário normatizar esse dever de solidariedade esclarecendo,
em algumas situações, quando devemos agir sob pena de sermos
responsabilizados criminalmente por nossa inação. O fato de
virarmos as costas ao nosso semelhante, que vive um momento de
perigo não criado por nós, será objeto de reprimenda penal.
Assim é o caso do delito de omissão de socorro.
A omissão de socorro encontra-se no rol dos crimes omissivos
denominados próprios. Nessa oportunidade, faz-se mister ressaltar
a diferença existente entre as omissões próprias e as omissões
impróprias.
Os crimes omissivos próprios são aqueles cuja omissão vem
narrada expressamente pelo tipo penal incriminador. O caso da
omissão de socorro trata-se de vala comum, ou seja, um lugar onde
se amoldarão os comportamentos, como regra, de todos aqueles
que não gozarem do status de garantidores.
Ao contrário, os crimes omissivos impróprios não se encontram
tipificados expressamente na lei penal. Na verdade, somente
podemos visualizar o comportamento omissivo do agente no tipo
penal em razão do fato de que a norma que transforma o agente em
garantidor é considerada como norma de extensão, vale dizer,
aquela que tem por finalidade ampliar a figura típica, a fim de que
nela sejam abrangidos casos que ela não previu expressamente.
O legislador penal brasileiro entendeu por bem apontar
expressamente aqueles que, em razão de determinadas situações,
deveriam gozar desse status de garantidor, dizendo em seu art. 13,
§ 2º, alíneas a, b, e c, o seguinte:
§ 2º A omissão é penalmente
relevante quando o omitente devia e
podia agir para evitar o resultado. O
dever de agir incumbe a quem:
a) tenha por lei obrigação de cuidado,
proteção ou vigilância;
b) de outra forma, assumiu a
responsabilidade
de
impedir
o
resultado;
c) com seu comportamento anterior,
criou o risco da ocorrência do
resultado.
Já tivemos oportunidade de salientar, quando do estudo da
Parte Geral do Código Penal,30 que pela redação inicial do artigo
podemos observar que a lei penal exige a conjugação de duas
situações: o dever de agir (elencado nas alíneas a, b e c) com o
poder agir.
O dever de agir, apontado nas alíneas do § 2º do art. 13 do
código penal, é considerado, na definição de Sheila de Albuquerque
Bierrenbach, um dever especial de proteção:
“Dever específico, imposto apenas ao garante. Diverso daquele
outro dever nascido, de forma imediata, da norma preceptiva,
contida na parte especial do Código, que obriga a todos
indistintamente. Deste modo, à luz do art. 135 do estatuto
penal, que tipifica a ‘omissão de socorro’, cabe a todos cumprir
o mandamento legal, agindo para evitar ou tentar evitar que o
perigo que ronda o bem jurídico protegido pela norma efetivese, transformando-se em dano. Trata-se, pois, de dever
genérico de proteção.”31
Merece ser frisado que a lei, quando elenca as situações nas
quais surge o dever de agir, fazendo nascer daí a posição de
garantidor, não exige que o garante evite, a qualquer custo, o
resultado. O que a lei faz é despertar o agente para a sua
obrigação, e se ele realiza tudo o que estava ao seu alcance, a fim
de evitar o resultado lesivo que, mesmo com seu esforço, vem a se
produzir, este não lhe poderá ser imputado. Assim, por exemplo, se
um salva-vidas, percebendo que alguém está se afogando,
prontamente lhe presta socorro, valendo-se de todos os recursos
que tinha à sua disposição, mas, ainda assim, ocorre o resultado
morte, não poderemos atribuí-lo ao agente garantidor, visto que, no
caso concreto, ele tentou, nos seus limites, evitar sua produção.
Concluindo, a lei exige que o garantidor atue a fim de tentar evitar o
resultado. Se não conseguir, mesmo depois de ter realizado tudo o
que estava ao seu alcance, não poderá ser responsabilizado.
Mas o dever de agir não é suficiente para que se possa imputar
o resultado lesivo ao garante. É preciso ainda que, nas condições
em que se encontra, possa atuar fisicamente, uma vez que o
mencionado § 2º do art. 13 do Código Penal obriga a conjugação do
dever de agir com o poder agir. Ainda na lição de Sheila de
Albuquerque Bierrenbach:
“O dever de agir, que deflui das posições de garantia elencadas
nas alíneas do art. 13, § 2º, não prescinde da possibilidade real,
física, de atuar do garante. Vale dizer, sua presença física,
quando o perigo se instala ou está na iminência de instalar-se
sobre o bem jurídico, bem como a possibilidade de salvá-lo,
convenientemente.”32
A impossibilidade física afasta a responsabilidade penal do
garantidor por não ter atuado no caso concreto quando, em tese,
tinha o dever de agir.
Conforme assevera Juarez Tavares:
“Integra também o tipo dos delitos omissivos a real
possibilidade de atuar, que é, por sua vez, condição da posição
de garantidor. Não se pode obrigar ninguém a agir sem que
tenha a possibilidade pessoal de fazê-lo. A norma não pode
simplesmente obrigar a todos, incondicionalmente, traçando,
por exemplo, a seguinte sentença: ‘Jogue-se na água para
salvar quem está se afogando’. Bem, se a pessoa não sabe
nadar, como irá se atirar na água para salvar quem está se
afogando? Essa exigência incondicional é totalmente absurda e
deve ser considerada como inexistente ou incompatível com os
fundamentos da ordem jurídica.”33
Isso significa que somente podem praticar o delito de omissão
de socorro aqueles que não gozem desse especial status de
garantidor, pois este último terá que responder pelo resultado,
quando devia e podia agir a fim de evitá-lo, e não o fez.
Podemos concluir a diferença entre as omissões próprias e
impróprias seguindo as lições de Calderón Cerezo e Choclán
Montalvo:
“Os delitos próprios de omissão se esgotam na não realização
da ação requerida pela lei; ao contrário, nos delitos ‘impróprios’
ao garante se impõe o dever de evitar o resultado, pertencendo
ao tipo a produção do mesmo.”34
À medida que as discussões, que são muitas, forem
acontecendo, teremos oportunidade de identificar quando estaremos
diante de uma omissão própria ou de uma de natureza imprópria.
Com o objetivo de que todos os raciocínios que serão levados a
efeito mais adiante sejam bem compreendidos, é preciso alertar,
ainda, para o fato de que nas chamadas omissões impróprias a
norma constante do tipo penal incriminador é de natureza proibitiva,
a exemplo do que ocorre com o art. 121 do Código Penal, que
proíbe a conduta de matar alguém.
Assim, para que não reste dúvida quando uma omissão poderá
ser considerada própria ou imprópria, teremos de aferir o
comportamento previsto no tipo penal. Se a conduta for comissiva, a
exemplo do mencionado art. 121 do diploma repressivo, que prevê o
comportamento de matar alguém, e isso pressupõe um fazer, uma
conduta positiva, a infração penal poderá ser praticada via omissão,
desde que o agente seja apontado como garantidor. Nesse caso, a
norma de extensão prevista no § 2º do art. 13 do Código Penal,
ampliará a conduta constante no tipo do mencionado art. 121, a fim
de que nele seja previsto não só a comissão de matar, mas também
entendendo que da omissão do agente, quando devia e podia agir,
poderá ocasionar esse mesmo resultado.
Ao contrário, as normas existentes nas omissões próprias são
sempre de natureza mandamental. Ou seja, o tipo penal prevê um
comportamento omissivo, impondo ao agente um fazer algo a fim de
evitar o resultado por ele previsto (dano ou perigo).
Sintetizando, as normas proibitivas, como o próprio nome
indica, proíbem um determinado comportamento (no art. 121 do
Código Penal, por exemplo, se proíbe a conduta de matar alguém),
enquanto as normas mandamentais impõem a prática de certo
comportamento (v.g., no art. 135 do Código Penal, quando a lei
penal usa a expressão deixar de prestar assistência [...], o que o tipo
penal está exigindo, na verdade, é que o agente faça alguma coisa,
sob pena de ser responsabilizado pelo resultado por ele previsto).
No caso específico do art. 135 em estudo, quando a lei penal
fala em deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo, sem
risco pessoal [...], o que ela está querendo, na verdade, é que o
agente faça alguma coisa quando, não havendo risco para a sua
pessoa, se deparar com aquelas situações previstas pelo tipo
incriminador. A norma, neste caso, está mandando o agente fazer
alguma coisa, ou seja, assumir uma postura positiva no sentido de
evitar a probabilidade de dano existente para aquelas pessoas
constantes da narração típica.
O núcleo deixar está colocado no texto no sentido de não fazer
algo, ou seja, não prestar assistência, não assistir, não ajudar,
quando possível fazê-lo, sem risco pessoal, à criança abandonada
ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em
grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da
autoridade pública.
Por criança abandonada ou extraviada devemos entender
aquela que, de acordo com o art. 2º do Estatuto da Criança e do
Adolescente (Lei nº 8.069/90) não tenha, ainda, completado 12 anos
de idade e que tenha, por algum motivo, sido abandonada à própria
sorte por aqueles que eram seus responsáveis ou, no caso da
criança extraviada, que tenha com eles perdido o contato ou a
vigilância, não sabendo retornar ao seu encontro.
Pessoa inválida, segundo a concepção de Hungria, “é toda
aquela que, entregue a si mesma, não pode prover a própria
segurança, seja isto por suas próprias condições normais ou por
acidente (velhos, enfermos, aleijados, paralíticos, cegos etc.).”35
Pessoa ferida é aquela que teve ofendida sua integridade
corporal ou saúde, seja por ação de terceiros, caso fortuito ou até
mesmo por vontade própria, como no caso daquele que tentou
contra a própria vida e conseguiu sobreviver, sendo incapaz de, por
si mesmo, buscar auxílio a fim de evitar a produção de um dano
maior à sua pessoa.
Em ambas as hipóteses, ou seja, pessoa inválida ou ferida, a
vítima deve encontrar-se ao desamparo, isto é, abandonada, sem os
cuidados exigidos à manutenção da sua integridade corporal ou
saúde, bem como da sua vida.
Hungria asseverava ser “grave e iminente o perigo que ameaça
atualmente a vida da pessoa ou, de modo notável, a sua
incolumidade física ou fisiológica.”36
A segunda parte do caput do art. 135 do Código Penal traduz
um comportamento alternativo, assim redigido: ou não pedir, nesses
casos, o socorro da autoridade pública.
Isso significa que o agente tem uma escolha, vale dizer, ou
presta, ele próprio, o socorro, quando possível fazê-lo sem risco
pessoal, ou, mesmo não havendo o mencionado risco, pode optar
por pedir o socorro da autoridade pública?
A resposta só pode ser negativa, segundo entendemos. O
socorro deve ser prestado imediatamente por aquele que, nas
condições em que se encontra, tenha plenas condições de fazê-lo.
Quanto mais rápido o socorro, dependendo da hipótese, melhores
serão as possibilidades de serem minimizados os riscos para a
saúde ou para a vida da vítima.
Entretanto, não sendo possível para o agente prestar, ele
próprio, o socorro, aí, sim, deverá pedir o auxílio das autoridades
competentes. Nesse sentido, são as lições de Luiz Regis Prado,
quando aduz:
“Ao encontrar o sujeito passivo, fica o agente adstrito a uma
assistência direta (deve prestar assistência pessoalmente) ou
indireta (deve solicitar o socorro da autoridade pública). Não
cabe, porém, ao sujeito ativo optar, ao seu talante, por uma ou
outra alternativa. Em determinadas hipóteses, a situação de
perigo em que se acha a vítima impede a demora na prestação
do socorro, de forma que a simples comunicação daquela à
autoridade pública resulta inoperante. Diante de casos de
urgência, a intervenção posterior da autoridade será fatalmente
inútil, o que compele o agente a prestar assistência
diretamente, desde que possa fazê-lo sem risco pessoal. O
socorro, aqui, deve ser imediato, equivalendo a demora do
agente ao descumprimento do comando de agir.
Logo, o recurso à autoridade pública (assistência mediata) é
antes supletivo ou subsidiário, ou seja, é cabível apenas
quando se revelar capaz de arrostar tempestivamente o perigo
ou quando a assistência direta oferecer riscos à incolumidade
do agente.”37
Imagine-se a hipótese daquele que, numa lagoa, percebendo
que a vítima estava se afogando porque não sabia nadar, deixe de
prestar o socorro, pois, nesse caso, corria risco pessoal. Contudo,
deverá socorrer-se da autoridade pública competente.
Como a própria lei penal esclarece, somente responderá pelo
delito de omissão de socorro o agente que podia prestar a
assistência sem risco pessoal. Havendo risco para o agente, o fato
será atípico no que diz respeito à sua assistência direta, mas não o
exime de responsabilidade se também, podendo, não procura o
socorro da autoridade pública.
Não havendo possibilidade de assunção de qualquer dos
comportamentos, vale dizer, prestar diretamente a assistência, ou
buscar o socorro da autoridade pública competente, o fato será
atípico.
Questão que deve ser esclarecida diz respeito a quem se
amolda ao conceito de autoridade pública. Juízes, Promotores de
Justiça, por exemplo, gozam do status de autoridade pública. Mas
será essa a autoridade a que se refere a lei penal? Obviamente que
não, mas, sim, aquelas que, por definição legal, tenham o dever de
afastar o perigo, como acontece com os bombeiros e policiais.
Nesse sentido, Guilherme de Souza Nucci preleciona que
autoridade pública:
“Não é qualquer ‘autoridade pública’, ou seja, funcionário do
Estado que tem a obrigação de atender aos pedidos de socorro.
Por outro lado é dever de quem aciona a autoridade buscar
quem realmente pode prestar assistência. Muito fácil seria, para
alguém se desvincular do dever de buscar ajuda concreta, ligar,
por exemplo, para a casa de um Promotor de Justiça – que não
tem essa função pública – dizendo que há um ferido no meio da
rua, aguardando socorro. É curial que o indivíduo acione os
órgãos competentes, como a polícia ou os bombeiros.”38
Pode ser, contudo, que esse dever recaia sobre juízes e
promotores quando estivermos diante de situações, por exemplo,
envolvendo crianças abandonadas ou extraviadas. Tudo, na
verdade, vai depender da situação.
Como bem ressalvado por Guilherme de Souza Nucci, não tem
sentido socorrer-se a um Promotor de Justiça, por exemplo, para
que ele faça um resgate de uma pessoa que está se afogando. Não
é função do Ministério Público, e do Promotor de Justiça
especificamente, esse tipo de atividade. A autoridade competente,
aqui, seria, v.g. alguém pertencente ao Corpo de Bombeiros, salvavidas etc.
Entretanto, pode ser encarada como autoridade competente a
prestar auxílio o Promotor de Justiça que atua em uma Promotoria
Especializada na Proteção de Crianças e Adolescentes, na hipótese
acima mencionada, envolvendo crianças abandonadas.
Concluindo, devemos apontar, no caso concreto, a autoridade
que seria a competente a fim de prestar, subsidiariamente, o socorro
exigido.
7.2
Classificação doutrinária
Crime comum quanto ao sujeito ativo e próprio com relação ao
sujeito passivo, nas hipóteses em que a lei exige dele uma
qualidade especial; de perigo concreto (devendo ser demonstrado
que a omissão do agente trouxe, efetivamente, uma situação de
perigo para a vítima); doloso; de forma livre; omissivo próprio;
instantâneo;
monossubjetivo;
podendo
ser
considerado,
dependendo da situação, unissubsistente ou plurissubsistente;
transeunte (como regra).
7.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
O crime de omissão de socorro, como nos induz o Capítulo III
do Título I da Parte Especial do Código Penal, tem como bens
juridicamente protegidos a vida e a saúde. Dessa forma, somente se
constituirá em omissão de socorro quando o agente deixar de
prestar assistência, quando possível fazê-lo, sem risco pessoal, à
criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida,
ao desamparo ou em grave e iminente perigo para a sua vida ou
para a sua saúde.
Assim, não haverá omissão de socorro quando alguém, por
exemplo, percebendo que uma senhora, dentro de um ônibus
coletivo, está sendo vítima de um delito de furto nada faz para evitálo.
Sua inércia em evitar a subtração dos bens pertencentes à
vítima não importará na sua responsabilização penal pelo delito de
omissão de socorro, uma vez que o bem em questão não é a vida
ou a saúde, mas, sim, o seu patrimônio.
Objeto material do delito de omissão de socorro é a criança
abandonada ou extraviada, ou a pessoa inválida ou ferida, ao
desamparo, que se encontra na situação de grave e iminente perigo.
7.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
O delito de omissão de socorro é comum com relação ao sujeito
ativo, podendo, portanto, ser praticado por qualquer pessoa que não
goze do status de garantidora, uma vez que, nesse caso, o agente
teria de responder pelo resultado que devia e podia ter evitado.
O art. 135 do Código Penal aponta como um de seus sujeitos
passivos a criança abandonada ou extraviada. Nesse caso, o delito
deve ser entendido como próprio, uma vez que o tipo delimita o
sujeito passivo àqueles que se amoldem a essa definição de
criança. Caso não seja uma criança que esteja, por exemplo,
extraviada, perdida, o fato será atípico, pois o sujeito, em tese, não
se amoldará na exigência contida no tipo penal.
Conforme afirmamos, entendemos como criança aquela que,
nos termos do art. 2º do ECA, não completou, ainda, 12 anos de
idade. Em sentido contrário, Cezar Roberto Bitencourt afirma:
“Por longo período discutiu-se sobre qual o limite de idade que,
para efeitos penais, deve-se entender como criança, ante a
omissão do Código Penal. O advento do Estatuto da Criança e
do Adolescente – ECA – não resolveu essa desinteligência, ao
considerar criança quem tiver menos de 12 anos (art. 2º).
Sustentamos, porém, que a solução deverá continuar sendo
casuística e que será criança, para efeitos penais, toda aquela
que, concretamente, for incapaz de autodefesa.”39
Apesar da afirmação do renomado professor gaúcho,
entendemos, permissa vênia, como melhor a posição que adota o
conceito de criança traduzido pelo Estatuto que lhe é próprio, por
questões de segurança. Há situações em que, sem qualquer dúvida,
o dado de natureza objetiva auxilia a aplicação da lei penal, como
acontece, hoje, com o conceito de idoso, traduzido pela Lei nº
10.741/2003, que o definiu como aquela pessoa com idade igual ou
superior a 60 anos.
Antes da edição do Estatuto do Idoso, havia no Código Penal
uma circunstância agravante, prevista na alínea h do inciso II do art.
61, que determinava um aumento na pena-base aplicada ao agente
quando o crime tivesse sido cometido contra velho. Naquela época,
o conceito de velho, além de pejorativo, não traduzia a segurança
que o Direito Penal exigia. Não havia um tempo certo para se
concluir se aquela pessoa já podia ser considerada velha, uma vez
que se levava em conta, tão somente, suas condições pessoais,
suas debilidades etc. Isso trazia, segundo entendemos, uma enorme
insegurança jurídica. Hoje, como dissemos, o dado é de natureza
objetiva, o que facilita enormemente a aplicação da lei penal.
Veja-se, por exemplo, a hipótese de aplicação do chamado erro
de tipo. Com muito mais facilidade podemos concluir se o agente
errou ou não sobre a idade da vítima, a fim de aplicar-lhe o art. 20
do Código Penal.
Imagine-se a hipótese em que o agente perceba que uma
pessoa se encontra extraviada. Contudo, o agente supõe que, em
decorrência de seu físico, a vítima tenha, segundo ele,
aproximadamente 16 anos de idade. Tal raciocínio afastaria a sua
responsabilidade penal pelo delito de omissão de socorro, pelo
menos no que diz respeito à sua primeira parte, ou seja, quanto ao
sujeito passivo ser uma criança abandonada ou extraviada.
Se para o agente, de acordo com a avaliação equivocada que
cometeu, a vítima tinha mais de 12 anos de idade, não podia mais
ser considerada criança, razão pela qual seu comportamento seria
atípico.
Pode ser que o fato se adapte à segunda parte do art. 135, ou
seja, que diga respeito à pessoa inválida ou ferida, mas não mais ao
fato de ter deixado de socorrer uma criança, uma vez que ela não se
amoldava, segundo a concepção do agente, a esse conceito.
Enfim, o que estamos querendo ressaltar é o fato de que,
quando trabalhamos com dados de natureza objetiva, a aplicação e
a interpretação da lei penal ficam, sobremaneira, facilitadas.
Também poderá ser sujeito passivo do delito de omissão de
socorro qualquer pessoa que se encontre inválida ou ferida, não
importando, aqui, a sua idade ou sexo.
Pode acontecer que uma criança ferida, que não esteja
abandonada ou extraviada, necessite de socorro. Assim, qualquer
pessoa poderá ser considerada sujeito passivo do delito em estudo,
desde que se encontre numa situação de invalidez, ou mesmo
ferida, fatos esses que a colocam em grave e iminente perigo.
7.5
Consumação e tentativa
Questão extremamente interessante e controvertida diz respeito
ao momento em que se tem por consumado o delito de omissão de
socorro.
Noronha afirma que o delito de omissão de socorro consuma-se
“no momento e no lugar em que o sujeito ativo não cumpre o ato
devido.”40 Hungria, numa definição em muito assemelhada à de
Magalhães Noronha, diz que a omissão de socorro “consuma-se no
momento e no lugar em que se verifica o inadimplemento do dever
de assistência.”41 Aníbal Bruno, a seu turno, afirma: “Consuma-se o
crime no momento em que o omitente toma conhecimento da
necessidade de socorro e deixa de prestá-lo. A consumação é
instantânea. Excepcionalmente, porém, poderá a situação de perigo
prolongar-se e o omitente cônscio da sua duração, continuar a
omitir-se, estendendo assim, o momento consumativo.”42 Segundo
Luiz Regis Prado, “no crime de omissão de socorro, a consumação
se verifica quando o sujeito ativo não presta o socorro, ainda que
outro o tenha feito posteriormente e, de consequência, impedido a
efetiva lesão da vida ou da saúde da vítima (delito instantâneo).”43
Cezar Roberto Bitencourt preleciona: “Consuma-se a omissão de
socorro no lugar e no momento em que a atividade devida tinha de
ser realizada, isto é, onde e quando o sujeito ativo deveria agir e
não o fez.”44
Como se percebe pelos textos colacionados, não há muita
diferença entre as conclusões a que chegaram renomados autores.
Na verdade, devemos apontar o momento no qual a inação, ou seja,
a negação da prestação do socorro já pode ser entendida como o
momento da consumação do delito em estudo.
Na introdução que fizemos ao iniciarmos o estudo dos crimes
de perigo, dissemos que, em um enfoque de cunho garantista, não
podíamos admitir os denominados crimes de perigo abstrato, nos
quais o simples comportamento – positivo ou negativo – previsto no
tipo penal já seria o suficiente à configuração do delito. Dissemos,
naquela oportunidade, que nos crimes de perigo deveríamos
visualizar o momento em que o comportamento do agente trouxe,
efetivamente, perigo de dano para o bem juridicamente protegido.
A omissão de socorro, como crime de perigo que é, não poderá
também fugir a esse raciocínio.
Assim, devemos apontar, para fins de reconhecimento da
consumação do delito de omissão de socorro, quando a inação do
agente trouxe efetivo perigo para a vida ou para a saúde da vítima.
Caso isso não tenha ocorrido, ou seja, se a negação do agente em
socorrer a vítima, por exemplo, não puder ser apontada como
perigosa em sentido concreto, conclui-se que o delito não foi
consumado.
Imagine-se a hipótese, obviamente que de laboratório, como é
da característica do Direito Penal, em que o agente perceba que
alguém esteja se afogando. Sendo um exímio nadador, não corre
risco pessoal na prestação do salvamento, podendo, portanto, fazêlo. Quando vai adentrar no mar, o agente percebe que a vítima é
sua maior inimiga. Nesse instante, interrompe sua ação e diz a si
mesmo: “Não vou socorrer. Se fosse outra pessoa, com certeza,
tentaria o resgate. Mas essa aí, a pessoa que mais odeio na vida,
não vou socorrer.” Para fins de raciocínio, suponha-se que, nesse
mesmo instante em que o agente decida não prestar o socorro, para
a felicidade da vítima, passe por ali um surfista que, percebendo que
ela estava prestes a se afogar, efetue o resgate.
A pergunta que devemos nos fazer aqui é a seguinte: embora o
agente tenha se recusado a prestar o socorro, podendo fazê-lo sem
risco pessoal, pelo fato de ter sido a vítima resgatada basicamente
no mesmo instante em que se deu a resolução de não prestar o
socorro, deveria ele, ainda assim, ser responsabilizado pelo delito
em exame? Resumindo a indagação: a omissão do agente trouxe,
efetivamente, perigo concreto para a vida ou a saúde da vítima?
Se respondermos negativamente, teremos de concluir, em
sintonia com a natureza dos crimes de perigo concreto, que o
comportamento do agente é atípico, não havendo que se falar em
consumação, mesmo que tenha havido, em tese, omissão por parte
do agente em prestar o socorro.
Dessa forma, não é a simples omissão em socorrer, ou seja, a
negativa em prestar o socorro, que consuma o delito em exame,
mas, sim, a negação do socorro que importa, concretamente, em
risco para a vida ou para a saúde da vítima.
Nesse sentido, adverte Fernando Galvão, com precisão, que:
“Tratando-se de crime omissivo próprio para o qual a conduta
pode prolongar-se no tempo, deve-se entender que a
consumação ocorre quando o omitente deixar passar a última
oportunidade de realizar a ação de salvamento esperada antes
que ocorra o aumento do perigo, a diminuição das chances de
salvamento ou a ocorrência do dano.”45
O segundo raciocínio diz respeito à possibilidade de tentativa
no delito de omissão de socorro. A doutrina, majoritariamente,
entende não ser possível o conatus, uma vez que, conforme
assevera Juarez Tavares:
“Nos crimes omissivos próprios não se admite tentativa, porque,
uma vez que a omissão esteja tipificada na lei como tal, se o
sujeito se omite, o crime já se consuma; se o sujeito não se
omite, realiza ele o que lhe foi mandado.”46
No mesmo sentido, asseveram Paulo César Busato que “como
se trata de crime omissivo próprio, sua estrutura é absolutamente
incompatível com a tentativa”47, e Yuri Carneiro Coêlho que “na
medida em que se configura em crime omissivo próprio, não cabe a
tentativa.”48
No entanto, estamos com Fernando Galvão quando aduz que a
tentativa será possível “quando a omissão puder prolongar-se no
tempo sem que ocorra alteração na situação de perigo.”
Em reforço a esse raciocínio, são precisas as lições de
Zaffaroni e Pierangelli quando, sustentando a possibilidade de
tentativa no delito de omissão de socorro, esclarecem sua posição
dizendo que se o agente “encontra alguém que se acha dentro de
um poço e não se lhe presta auxílio quando já se passara meia
hora, estando o acidentado ileso e sendo o único perigo que possa
morrer de sede se no poço ficar vários dias (o que pode suceder se
é um lugar isolado), veremos que não se consuma, ainda, a
omissão de socorro. O ato é de tentativa, pois já estarão presentes
todos os requisitos típicos e o perigo para o bem jurídico (se o
agente segue em frente, talvez outro não o veja senão depois de
muitos dias). Acreditamos que o caso constitui uma tentativa
inacabada de omissão de socorro.”49
Assim, concluindo, embora majoritariamente a doutrina se
posicione no sentido de não reconhecer a tentativa no delito de
omissão de socorro, entendemos como perfeitamente possível a
hipótese, conforme demonstrado acima.
7.6
Elemento subjetivo
O delito de omissão de socorro somente admite a modalidade
dolosa, seja o dolo direto ou eventual, não se punindo, portanto, a
omissão de socorro a título de culpa.
Imagine-se a hipótese em que o agente, surfista profissional,
perceba que a vítima esteja se afogando. Não correndo qualquer
risco pessoal, decide prestar o socorro. Contudo, antes de entrar no
mar, resolve fazer uma rápida ligação para sua namorada, dizendolhe que se demoraria um pouco mais para encontrá-la, pois teria de
voltar a entrar imediatamente no mar, a fim de prestar o socorro.
O tempo que o agente levou para concluir a ligação, ou seja,
menos de 30 segundos, seria suficiente para que, quando
alcançasse a vítima, esta se afogasse. Pergunta-se: Deverá o
surfista ser responsabilizado pelo delito de omissão de socorro?
Não, uma vez que, em nenhum momento, houve qualquer
recusa da sua parte em levar a efeito o socorro. Deveria, no caso
concreto, ter ingressado no mar imediatamente, sem se preocupar
em avisar sua namorada do seu inevitável atraso para o encontro
marcado entre eles.
Podemos visualizar, talvez, uma negligência no socorro, que foi,
enfim, prestado.
Se não houve recusa, característica do elemento subjetivo
exigido pelo tipo, ou seja, o dolo, o fato não poderá ser atribuído ao
agente a título de omissão de socorro, não se admitindo, pois, sua
responsabilidade penal a título de culpa.
Não concordamos, ainda, permissa vênia, com o raciocínio de
Cezar Roberto Bitencourt, quando diz:
“É necessário que o dolo abranja somente a situação de perigo;
o dolo de dano exclui o dolo de perigo e altera a natureza do
crime. Assim, se o agente quiser a morte da vítima, responderá
por homicídio. Elucidativo, nesse sentido, o exemplo de
Damásio de Jesus, que reflexiona: ‘Suponha-se que o agente,
sem culpa, atropele a vítima. Verificando tratar-se de seu
desafeto, foge do local, querendo a sua morte ou assumindo o
risco de que ocorra em face da omissão de assistência.
Responde pelo delito de homicídio’.”50
Inicialmente discordamos, porque o agente, mesmo querendo a
morte da vítima que se encontrava numa situação de perigo grave e
iminente, somente poderia responder pelo resultado morte a título
de homicídio se gozasse o status de garantidor. Não se pode atribuir
o delito de homicídio ao agente que nada fez no sentido de criar o
risco da ocorrência desse resultado, ao contrário do garantidor que,
em razão de seu dever originário das alíneas a, b e c do § 2º do art.
13 do Código Penal, responde pelo resultado que devia e podia
evitar.
Assim, entendemos que não há qualquer diferença entre o
agente não querer prestar o socorro, por exemplo, criando tão
somente perigo para a vida ou para a saúde da vítima, daquele que
não presta o socorro, não tendo criado a situação de perigo,
almejando, com sua inação, um resultado de dano, como é o caso
proposto pelo renomado autor gaúcho, em que o agente, com a sua
omissão, pretendia a morte da vítima.
Da mesma forma, entendemos não ser pertinente o exemplo
criado por Damásio, referido por Cezar Bitencourt, em que o agente
atropela a vítima sem culpa e foge, sem prestar-lhe socorro,
querendo sua morte, por tratar-se de seu desafeto.
Nesse caso, devemos aplicar o raciocínio do chamado dolo
subsequente, que não tem qualquer repercussão na esfera penal.
Raciocinemos quadro a quadro, a fim de que os fatos sejam
melhor compreendidos.
Em um primeiro momento, o agente, sem culpa, atropela a
vítima. Se fugisse do local do evento, deixando tão somente de
prestar o socorro, o crime por ele cometido seria o previsto no art.
304 do Código de Trânsito Brasileiro, que diz:
Art. 304. Deixar o condutor do
veículo, na ocasião do acidente, de
prestar imediato socorro à vítima, ou,
não podendo fazê-lo diretamente, por
justa causa, deixar de solicitar auxílio
da autoridade pública;
É entendimento pacificado na doutrina que tal omissão somente
poderá ser atribuída ao motorista que atropelou o pedestre sem que
tenha agido culposamente, pois, em caso de ter agido, por exemplo,
de forma imprudente, causando lesões ou morte na vítima, sua
omissão em prestar o socorro seria considerada como causa
especial de aumento de pena, prevista nos parágrafos únicos dos
arts. 302 e 303 do Código de Trânsito Brasileiro.
Voltando ao exemplo proposto por Damásio, se o agente,
depois de atropelar sem culpa a vítima, perceber que se trata de um
desafeto e, aproveitando-se da oportunidade, não lhe presta o
socorro almejando a morte dela, também, nesse caso, deverá
responder tão somente pelo delito de omissão de socorro, previsto
no art. 304 acima transcrito.
Isso porque, para que o agente pudesse responder pelo
resultado morte a título de homicídio doloso, deveria, como
afirmamos, ser considerado como garante.
À primeira vista, poderíamos pensar que pelo fato de o agente
ter atropelado a vítima, mesmo que sem culpa, passaria a gozar do
status de garantidor. Contudo, quando a alínea c do § 2º do art. 13
usa a expressão com seu comportamento anterior, criou o risco da
ocorrência do resultado, traduzindo uma situação em que a doutrina
denomina ingerência, é preciso que o comportamento anterior tenha
sido culposo, o que não ocorreu no exemplo fornecido.
Por amor à verdade, não podemos deixar de ressaltar que a
questão é controvertida. Dissertando sobre o tema, Sheila
Bierrenbach alerta:
“Na verdade, a doutrina e a práxis não se entendem sequer
acerca dos requisitos de que se deve revestir o atuar prévio
para transformar o ingerente em garante. ‘Imprudente’,
‘antijurídico’, ‘despido de culpa’, ‘objetivamente injusto’, ‘ainda
que sem culpa’, ‘objetivamente contrário ao dever’, ‘culposo’ ou
mesmo não culposo e inconsciente são, apenas, alguns dos
atributos que juristas de renome apontam no atuar precedente,
que dá origem à posição de garante sob exame.”51
Embora, conforme salientado por Sheila Bierrenbach, a doutrina
não tenha ainda pacificado o entendimento no sentido de apontar a
situação na qual o ingerente é transformado em garantidor, nossa
posição, ancorada no princípio da culpabilidade, é no sentido de
somente transformá-lo em garante quando for culposo o
comportamento precedente, causador da situação de perigo, razão
pela qual não podemos concordar com a solução proposta por
Damásio, ratificada por Cezar Roberto Bitencourt.
7.7
Causas de aumento de pena
Determina o parágrafo único do art. 135:
Parágrafo
único.
A
pena
é
aumentada de metade, se da omissão
resulta lesão corporal de natureza
grave, e triplicada, se resulta a morte.
A doutrina, majoritariamente, aduz que as causas de aumento
de pena previstas no transcrito parágrafo único somente poderão
ser atribuídas ao agente a título de culpa, tratando-se, portanto, de
um crime preterdoloso, ou seja, dolo com relação à omissão, e culpa
no que diz respeito ao resultado: lesão corporal de natureza grave
ou morte.
Nesse sentido, Ney Moura Teles preconiza:
“No parágrafo único estão previstos dois crimes preterdolosos,
o primeiro qualificado por lesões corporais de natureza grave,
com pena aumentada de metade, e o outro pela morte da
vítima, quando a pena será triplicada.”52
Também Guilherme de Souza Nucci afirma que:
“Somente se admite a presença de culpa no resultado mais
gravoso; pois o dolo de perigo – existente na conduta original –
é incompatível com o dolo de dano.”53
Como dissemos, não vemos qualquer obstáculo no fato de
querer o agente o resultado morte da vítima se a situação de perigo
em que esta se encontra não foi provocada por ele, caso em que o
transformaria em agente garantidor, fazendo com que seja
responsabilizado pelo seu dolo.
No caso em exame, a conduta do agente diz respeito à omissão
de um comportamento que, possivelmente, teria o condão de
preservar a saúde ou a vida da vítima. Embora sendo cuidado como
um crime de perigo, nada impede que o não fazer produza um
resultado até mesmo querido pelo agente, que não foi o seu
propulsionador inicial.
Ou seja, o agente atua finalisticamente no sentido de omitir um
comportamento, criando uma situação de risco para a saúde ou
para a vida da vítima, mesmo que fosse da sua vontade a produção
de tais resultados.
7.8
Pena, ação penal, competência para julgamento e
suspensão condicional do processo
O preceito secundário do art. 135 do Código Penal prevê uma
pena de detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa.
Para a hipótese do caput do art. 135 do Código Penal, em
decorrência da quantidade máxima de pena prevista em abstrato, a
competência para o julgamento do delito de omissão de socorro,
pelo menos ab initio, será do Juizado Especial Criminal, sendo
possível a aplicação de todos os institutos que lhe são inerentes.
Ocorrendo lesão corporal de natureza grave, aumentando-se a
pena de metade, ou morte, caso em que a pena será triplicada,
ainda assim persiste a competência do Juizado Especial Criminal,
haja vista que, mesmo triplicando a pena máxima cominada em
abstrato, seu limite não ultrapassa os dois anos.
Existe a possibilidade alternativa de aplicação da pena privativa
de liberdade ou da pena de multa, devendo o juiz, no caso concreto,
determinar aquela que seja, nos termos da parte final do art. 59 do
Código Penal, necessária e suficiente para reprovação e prevenção
do crime.
A ação penal é de iniciativa pública incondicionada.
7.9
7.9.1
Destaques
Agente que não socorre vítima atropelada temendo agravar
a situação
Os programas jornalísticos, frequentemente, informam que, em
situações que envolvam acidentes, é melhor que a vítima não seja
removida do local, a não ser que essa remoção seja realizada por
pessoal qualificado para tanto, uma vez que se corre o risco de
agravar seu estado de saúde, principalmente no que diz respeito a
problemas na coluna cervical.
Imagine-se a hipótese em que o agente, percebendo que a
vítima esteja precisando de socorro, logo após uma colisão de
veículos, não o efetue pessoalmente sob o argumento de não ser
preparado para socorrer pessoas que se encontram no estado como
o da vítima.
Teria ele de ser responsabilizado pelo delito de omissão de
socorro?
Na verdade, a questão merece ser analisada sob dois enfoques
diferentes. Inicialmente, o agente não se negou simplesmente a
socorrer. Havia uma motivação justa que permite afastar a
censurabilidade de seu comportamento, sob o argumento da
inexigibilidade de conduta diversa.
Contudo, se segundo sua concepção, não pudesse prestar
diretamente o socorro à vítima, obrigatoriamente deveria socorrer-se
de autoridade competente, sob pena de ser responsabilizado pelo
delito de omissão de socorro.
7.9.2
Concurso de pessoas nos delitos omissivos
Se várias pessoas, em comum acordo, deixam de prestar o
necessário socorro à vítima, poderíamos falar em concurso de
pessoas em crimes omissivos?
A questão não é pacífica, pelo contrário, sendo que a doutrina
se divide nesse ponto.
Juarez Tavares, entendendo pela impossibilidade do concurso
de pessoas em crimes omissivos, explica:
“Embora a norma mandamental possa se destinar a todos,
como na omissão de socorro, o preenchimento do dever é
pessoal, de modo que não é qualquer pessoa que pode ser
colocada na posição do omitente. Somente podem ser sujeitos
ativos dos delitos omissivos, primeiramente, aqueles que se
encontrem aptos a agir e se situem diante da chamada situação
típica; depois, aqueles que, estando em condições reais de
impedir a concretização do perigo, tenham uma vinculação
especial para com a vítima ou para com a fonte produtora do
perigo, de forma que se vejam submetidos a um dever especial
de impedir o resultado.
Consoante esse dado, podemos afirmar que nos crimes
omissivos não há concurso de pessoas, isto é, não há coautoria
nem participação. Cada qual responde pela omissão
individualmente, com base no dever que lhe é imposto, diante
da situação típica de perigo ou diante de sua posição de
garantidor. Trata-se, na verdade, como expõe Armin Kaufmann,
de uma forma especial de autoria colateral. São estas suas
palavras: Se 50 nadadores assistem impassíveis ao
afogamento de uma criança, todos ter-se-ão omitido de prestarlhe salvamento, mas não comunitariamente. Cada um será
autor do fato omissivo, ou melhor, autor colateral de omissão.”54
No mesmo sentido, Luiz Regis Prado afirma que “o crime de
omissão de socorro não dá lugar ao concurso de pessoas (nem
coautoria, nem participação).”55
Numa posição diametralmente oposta, Cezar Roberto
Bitencourt assevera:
“Os crimes omissivos próprios, na nossa concepção, admitem
tanto a coautoria quanto a participação em sentido estrito. A
distinção entre coautoria e participação deve ser encontrada na
definição desses dois institutos e não na natureza do crime,
omissivo ou comissivo. Se, por exemplo, duas ou mais pessoas
presentes recusam-se a prestar socorro ao periclitante,
respondem todas pelo mesmo crime, individualmente, segundo
a regra geral. No entanto, se deliberarem, umas anuindo à
vontade das outras, todas responderão pelo mesmo crime, mas
em coautoria, em razão do vínculo subjetivo. Se alguém,
porém, que não está no local, mas por telefone, sugere, ou
instiga a quem está em condições de socorrer para que não o
faça, responderá também pelo crime, mas na condição de
partícipe.”56
Entendemos,
com
Cezar
Roberto
Bitencourt,
pela
admissibilidade de concurso de pessoas em sede de crimes
omissivos, sejam eles próprios, como é o caso do delito de omissão
de socorro, ou mesmo impróprios.
Com a devida vênia, não podemos radicalizar nesse ponto,
como o fazem Juarez Tavares e Luiz Regis Prado, pois, em
inúmeras situações, não se poderá negar a existência do concurso.
Imagine-se a hipótese do agente que, pelo fato de ser paraplégico,
induz seu colega, surfista profissional, a não entrar no mar a fim de
levar a efeito o salvamento de um banhista que se afogava. O
sujeito portador de paraplegia não podia entrar no mar, pois correria
risco pessoal, não tendo, outrossim, condições de prestar o
salvamento. O surfista, ao contrário, tinha plenas condições, sem
qualquer risco, de efetuar o resgate, oportunidade em que é
convencido pelo agente portador de paraplegia a não fazê-lo. Como
o surfista não goza do status de garantidor, o delito que lhe poderia
ser atribuído seria o de omissão de socorro. E quanto ao agente
paraplégico que corria risco pessoal caso tentasse efetuar o resgate
do banhista que se afogava? Analisando isoladamente sua situação,
esquecendo-se momentaneamente, de que induzira o surfista a não
efetuar o resgate, o fato para ele seria atípico, se não tivesse,
também, condições de pedir o socorro das autoridades
competentes. Entretanto, podemos deixar de lado o fato de que, se
não fosse por seu induzimento, o surfista teria socorrido o banhista
que necessitava de seu auxílio? Claro que não. Aqui, como se
percebe sem muito esforço, o agente paraplégico deverá, também,
responder pelo delito de omissão de socorro na qualidade de
partícipe.
Portanto, acreditamos ser perfeitamente possível a aplicação
das regras do concurso de pessoas – coautoria ou participação – ao
delito de omissão de socorro.
7.9.3
Agente que imagina que corre risco, quando na verdade
este não existe
Pode ocorrer a hipótese em que o agente, acreditando correr
risco pessoal, deixe de prestar o necessário socorro à vítima
quando, na realidade, não havia qualquer risco.
Para fins de raciocínio, imagine-se o exemplo em que o agente,
à beira de uma lagoa, perceba que uma criança está se afogando e,
pelo fato de não saber nadar, não entra na água para retirá-la.
Contudo, algum tempo depois, um terceiro que passava pelo
local, relativamente deserto, percebe o corpo da criança boiando na
lagoa e, imediatamente, procura salvar-lhe a vida, entrando na
água.
O agente, que a tudo assistia, verificou que quando esse
terceiro entrou na lagoa a água não lhe ultrapassava a altura da
cintura. Dessa forma, ele, mesmo não sabendo nadar, poderia ter
feito o resgate da criança, que acabou morrendo.
Pergunta-se: poderá o agente ser responsabilizado pelo delito
de omissão de socorro? A resposta só pode ser negativa, aplicandose, in casu, as regras relativas ao erro de tipo, uma vez que, para o
agente, segundo sua concepção, havia risco pessoal. Como o
agente incorreu em erro sobre uma elementar existente no tipo do
art. 135 do Código Penal – sem risco pessoal –, o fato não lhe
poderá ser imputado a título de omissão de socorro.
De acordo com a regra do art. 20, caput, do Código Penal, se o
erro for escusável, afasta-se o dolo e a culpa; sendo inescusável o
erro, o dolo continua a ser afastado, mantendo-se, contudo, a
responsabilidade penal a título de culpa, se houver previsão legal.
Como não há previsão expressa para a omissão de socorro
culposa, e não sendo o agente garantidor, o fato deverá ser
considerado atípico.
7.9.4
Obrigação solidária e necessidade de ser evitado o
resultado
O delito de omissão de socorro traduz um dever solidário,
dirigido a todos nós. Assim, se várias pessoas podem, em
determinada situação, prestar o socorro, tal obrigação é atribuída a
todas elas, indistintamente.
Na qualidade de obrigação solidária, se algum dos sujeitos se
habilita a prestar o socorro, não se exige que os demais pratiquem o
mesmo comportamento.
O que a lei penal exige, na verdade, é que façamos alguma
coisa. Se alguém, dentre as pessoas que podiam prestar o socorro,
se habilita, podendo fazê-lo por si mesmo, sem o auxílio dos
demais, não há falar em omissão de socorro com relação àquelas
pessoas que nada fizeram.
Contudo, se o agente que tentou levar a efeito o socorro não
podia fazê- lo a contento sem a ajuda dos demais, os que
permaneceram inertes serão responsabilizados pela omissão de
socorro. Caso mais alguém se habilite, conforme raciocínio anterior,
isentos estarão de responsabilidade aqueles outros que somente
assistiram ao resgate.
Merece ser destacado, ainda, o fato de que a lei penal somente
exige um comportamento positivo, ou seja, a realização de uma
ação dirigida finalisticamente a evitar a produção de um resultado
danoso na vítima, vale dizer, lesões corporais ou morte.
Caso tenha feito de tudo o que estava ao seu alcance a fim de
evitar a produção desses resultados que, infelizmente, sobrevieram,
o agente não poderá ser responsabilizado penalmente, pois,
conforme esclarece Muñoz Conde, “a lei não lhe impõe nenhum
dever de evitá-lo, senão meramente o dever de socorrer.”57
7.9.5
Omissão de socorro no Estatuto do Idoso
Diz o art. 97 da Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003
(Estatuto do Idoso):
Art. 97. Deixar de prestar assistência
ao idoso, quando possível fazê-lo sem
risco pessoal, em situação de
iminente perigo, ou recusar, retardar
ou dificultar sua assistência à saúde,
sem justa causa, ou não pedir, nesses
casos, o socorro da autoridade
pública:
Pena – detenção de 6 (seis) meses a
1 (um) ano e multa.
Parágrafo
único.
A
pena
é
aumentada de metade, se da omissão
resulta lesão corporal de natureza
grave, e triplicada, se resulta morte.
Em virtude do princípio da especialidade, quando se tratar de
pessoa com idade igual ou superior a 60 anos, aplica-se o tipo penal
de omissão previsto no art. 97 do Estatuto do Idoso.
Dessa forma, a segunda parte contida no art. 135 do Código
Penal, que se refere à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou
em grave e iminente perigo, está abrangida pela redação mais
ampla do art. 97, que aponta para qualquer situação de iminente
perigo em que se encontre o idoso.
7.9.6
Omissão de socorro no Código de Trânsito Brasileiro
O art. 304 da Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997 (Código
de Trânsito Brasileiro), possui a seguinte redação:
Art. 304. Deixar o condutor do
veículo, na ocasião do acidente, de
prestar imediato socorro à vítima, ou,
não podendo fazê-lo diretamente, por
justa causa, deixar de solicitar auxílio
da autoridade pública: Penas –
detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um)
ano, ou multa, se o fato não constituir
elemento de crime mais grave.
Parágrafo único. Incide nas penas
previstas neste artigo o condutor do
veículo, ainda que a sua omissão seja
suprida por terceiros ou que se trate
de vítima com morte instantânea ou
com ferimentos leves.
Também aqui houve especialização da omissão de socorro.
O art. 304 do Código de Trânsito Brasileiro somente se aplica
aos condutores de veículos que, de alguma forma, estiverem
envolvidos em acidentes de trânsito, cujos resultados não lhes
possam ser atribuídos culposamente.
Isso porque, havendo culpa do motorista envolvido no acidente
que produziu lesão ou morte da vítima, sua omissão de socorro será
considerada causa de aumento de pena, conforme determinam os
parágrafos únicos dos arts. 302 e 303 da mencionada lei.
Assim, somente será possível a aplicação do aludido art. 304
aos condutores de veículos que não agiram com culpa no acidente
em que foram envolvidos. Imagine-se a hipótese da vítima que,
inadvertidamente, tente efetuar a travessia de uma autoestrada,
começando a correr sem que alguém possa antever esse seu
comportamento. Não havendo tempo para se desviar, o motorista de
um veículo a atropela, causando-lhe lesões. Nessa hipótese, ou
seja, de culpa exclusiva da vítima, o motorista deverá permanecer
no local do acidente a fim de prestar-lhe o necessário socorro, pois,
caso contrário, será responsabilizado pelo citado art. 304.
Nesse sentido, é a lição de Ariosvaldo de Campos Pires e
Sheila Selim:
“Sujeito ativo do crime é o condutor do veículo envolvido em
acidente de trânsito do qual resulte vítima (homicídio ou lesão
corporal), sem que se lhe possa atribuir culpa pelo resultado.
Tratando-se de acidente de trânsito no qual se envolva mais de
um motorista, a todos incumbe o dever de agir.
Não importa tenha sido o acidente provocado pela vítima ou por
terceiro, como também não importa se a terceira pessoa
ocupava o veículo do omitente ou da vítima.”58
Verdadeira aberração foi a previsão contida no parágrafo único
do art. 304 do Código de Trânsito Brasileiro, caracterizando como
omissão de socorro a hipótese de fuga do agente, mesmo tratandose de vítima com morte instantânea.
Se os bens juridicamente protegidos pelo delito de omissão de
socorro, seja no Código Penal, no Estatuto do Idoso, ou mesmo no
Código de Trânsito Brasileiro, são a saúde e a vida e se, no caso
concreto, não existe sequer pessoa a ser protegida, como se pode
responsabilizar criminalmente o agente pelo delito de omissão de
socorro?
Ariosvaldo de Campos Pires e Sheila Selim, criticando o
dispositivo em estudo, asseveram:
“Causa perplexidade a incriminação do fato de não prestação
de socorro caso a vítima tenha morte instantânea. Sem
embargo dos bons propósitos do dispositivo, não se poderá
imputar omissão de socorro a quem não poderia prestá-lo, e.g.,
verificada a morte antes que possível qualquer medida de
assistência, de tal sorte que, a haver socorro, seria ele prestado
ao cadáver e não ao ferido. A hipótese é de crime impossível
(art. 17, CP). A não ser que a norma penal tenha sido posta à
tutela de impreciso dever de solidariedade, o que é inaceitável,
tanto pelas dificuldades em delimitar tal conceito, como pelas
questões de constitucionalidade que podem ser suscitadas.”59
7.9.7
Omissão de socorro e Código Penal Militar
Diz o art. 201 do Código Penal Militar:
“Art. 201. Deixar o comandante de socorrer, sem justa causa,
navio de guerra ou mercante, nacional ou estrangeiro, ou
aeronave, em perigo, ou náufragos que hajam pedido socorro:
Pena – suspensão do exercício do posto, de um a três anos ou
reforma”.
7.9.8
Recusa da vítima em deixar-se socorrer
O fato de a própria vítima não querer ser socorrida afasta a
obrigação que tem o agente em lhe prestar o socorro?
Absolutamente não. Se o agente verificar, no caso concreto, que se
trata de criança abandonada ou extraviada, ou pessoa inválida ou
ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo, deverá,
mesmo contra a vontade expressa da vítima, prestar-lhe o
necessário socorro, sob pena de ser responsabilizado pelo delito
tipificado no art. 135 do Código Penal.
Isso porque os bens juridicamente protegidos pelo tipo penal,
que define a omissão de socorro, são indisponíveis. Não estamos
nos referindo, por exemplo, a qualquer lesão que a vítima pudesse
sofrer se não fosse socorrida a tempo, mas, sim, como esclarece a
própria lei penal, ao perigo grave e iminente para a sua saúde, para
sua integridade física, único bem, in casu, que se poderia cogitar de
disposição, já que a vida, em qualquer situação, é um bem de
natureza indisponível.
Como a situação de perigo é grave, ou seja, causará um dano
considerável à vítima, sua integridade física e sua saúde passam a
ser consideradas indisponíveis, razão pela qual, mesmo contra sua
vontade, deverá o agente prestar-lhe socorro.
Somente ficará isento de responsabilidade o agente que, dada
a resistência da vítima em ser socorrida, se encontrar numa
situação em que corra risco pessoal. Nessa hipótese, caso deixe,
efetivamente, de prestar o socorro, seu comportamento será atípico.
7.10
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: qualquer pessoa.
Passivo: é a criança
abandonada ou extraviada,
a pessoa inválida ou ferida,
ou que se encontre ao
desamparo ou em grave e
iminente perigo.
Objeto material
A criança abandonada ou
extraviada, ou a pessoa inválida
ou ferida, ao desamparo, que
se encontra na situação de
grave e iminente perigo.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
A vida e a saúde.
Elemento subjetivo
»
»
Dolo direto ou eventual.
Não se pune a omissão de
socorro a título de culpa.
Consumação e tentativa
»
»
A negação do socorro que
importa,
concretamente,
em risco para a vida ou
para a saúde da vítima,
consuma o delito.
Não
é
admissível
a
tentativa (crime omissivo
próprio).
8.
CONDICIONAMENTO
DE
HOSPITALAR EMERGENCIAL
ATENDIMENTO
MÉDICO-
Condicionamento de atendimento
médico-hospitalar emergencial Art.
135-A. Exigir cheque-caução, nota
promissória ou qualquer garantia, bem
como o preenchimento prévio de
formulários administrativos, como
condição para o atendimento médicohospitalar emergencial:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a
1 (um) ano, e multa.
Parágrafo
único.
A
pena
é
aumentada até o dobro se da negativa
de atendimento resulta lesão corporal
de natureza grave, e até o triplo se
resulta a morte.
8.1
Introdução
Já faz muito tempo que se transformou em um comportamentopadrão, praticado por hospitais, clínicas médicas e outros
estabelecimentos de saúde, a exigência de cheque-caução, nota
promissória ou outra garantia para que alguém, em situação de
emergência, possa receber o necessário socorro.
No afã de se resguardarem de uma eventual inadimplência do
paciente, ou mesmo de seus familiares, em caso de morte daquele,
as instituições de saúde adotaram esse procedimento,
burocratizando, sobremaneira, o atendimento daquele que
necessitava de imediato socorro, ocasionando, muitas vezes, uma
piora do quadro de saúde ou mesmo a morte do paciente.
Merece ser ressaltado que tal proibição de exigência já se
encontrava prevista na Resolução Normativa nº 44, de 24 de julho
de 2003, da Agência Nacional de Saúde, que dispõe sobre a
proibição da exigência de caução por parte dos prestadores de
serviços contratados, credenciados, cooperados ou referenciados
das Operadoras de Planos de Assistência à Saúde, cujo art. 1º diz,
verbis:
Art. 1º Fica vedada, em qualquer situação, a exigência, por
parte dos prestadores de serviços contratados, credenciados,
cooperados ou referenciados das Operadoras de Planos de
Assistência à Saúde e Seguradoras Especializadas em Saúde,
de caução, depósito de qualquer natureza, nota promissória ou
quaisquer outros títulos de crédito, no ato ou anteriormente à
prestação do serviço.
O Código Civil e também o Código de Defesa do Consumidor, à
sua maneira, ou seja, mesmo que não enfrentando casuisticamente
a situação prevista pelo artigo em estudo, já vedavam essa prática.
Concluindo que as determinações contidas nos diplomas
citados (Código Civil, Código de Defesa do Consumidor, Resolução
Normativa) não eram fortes o suficiente a fim de inibir o
comportamento por elas proibido, entendeu por bem o legislador
fazer editar a Lei nº 12.653, de 28 de maio de 2012, criando uma
nova figura típica e encerrando, com isso, também, uma discussão
já existente, quando parte de nossos doutrinadores se posicionava
pela possibilidade de configuração do delito de extorsão indireta,
tipificado no art. 160 do Código Penal, ou ainda pelo delito de
omissão de socorro, previsto no art. 135 do mesmo diploma
repressivo.
A numeração recebida pelo tipo penal em estudo, vale dizer,
135-A, é significativa no sentido de apontar que o condicionamento
de atendimento médico-hospitalar emergencial pode ser
considerado uma espécie de omissão de socorro, já que o art. 135
do Código Penal cuida desta última figura típica, ambas inseridas no
capítulo III do Título I do Código Penal, que diz respeito à
periclitação da vida e da saúde.
Nesse sentido, assevera Paulo César Busato que o art. 135-A
do Código Penal:
“Nada mais é do que uma especialização do crime de omissão
de socorro, que só veio à tona como nova criação jurídica em
virtude de ser uma situação concreta de comum ocorrência.
Não obstante, todos os casos aqui abrangidos já se
encontravam sob tutela jurídica do art. 135, anteriormente.
Daí que esta seja claramente uma forma de uso simbólico do
Direito penal, que visa não mais do que à produção de um
‘efeito placebo’ na sociedade, anestesiando-a contra a falta de
prestação de atendimento médico de qualidade.”60
Para efeitos de reconhecimento da infração penal tipificada no
art. 135-A do Código Penal, que recebeu o nomen juris de
condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial,
são necessários os seguintes elementos, a saber: a) o núcleo exigir;
b) a entrega de cheque-caução, nota promissória ou qualquer
garantia, bem como o preenchimento prévio de formulários
administrativos; c) como condição para o atendimento médicohospitalar emergencial.
Exigir, no delito sub examen, tem o significado de tornar
necessário, impor, ordenar, ou seja, a conduta do agente é dirigida
finalisticamente no sentido de fazer com que alguém cumpra, como
requisito para o seu socorro, uma das exigências impostas pelo
estabelecimento de saúde, que supostamente garantirá o
pagamento pelos serviços prestados ao paciente.
A referida exigência diz respeito à confecção e entrega, pelo
próprio paciente, quando possível, ou por alguém por ele
responsável (normalmente uma pessoa que tenha com ele relação
de amizade ou parentesco), de cheque-caução (cheque dado como
garantia de um pagamento futuro), nota promissória ou qualquer
garantia, ou mesmo um cartão de crédito; vale dizer, qualquer
documento que se traduza em um reconhecimento de dívida, que
poderá importar, posteriormente, em uma ação de cobrança ou
mesmo em uma ação de execução, a exemplo do que ocorre com
os contratos.
Da mesma forma, configura-se na infração penal em estudo a
exigência de preenchimento prévio de formulários administrativos.
Aqui, devemos ressalvar que a instituição de saúde não está
proibida de levar a efeito o preenchimento de tais formulários, que,
na verdade, deverão ser produzidos para que os dados
fundamentais dos pacientes sejam por ela conhecido. O que se
proíbe, na verdade, é que se priorize esse ato burocrático em
detrimento do socorro que deve ser imediatamente prestado. Uma
vez atendido o paciente, ele próprio – ou as pessoas que lhe são
próximas (amigos e familiares) – deve cumprir essa obrigação
administrativa. Percebe-se, com clareza, que o que se procura evitar
é o agravamento da situação do paciente, que não pode esperar o
cumprimento de exigências burocráticas para que venha,
efetivamente, a ser atendido.
Tais exigências devem servir como condição para que seja
realizado o atendimento médico-hospitalar emergencial. Assim,
deverão ocorrer anteriormente ao atendimento de que necessitava a
vítima/paciente, que não pode ser socorrida em virtude daquelas
exigências.
O tipo penal faz menção a atendimento médico-hospitalar
emergencial. Existe diferença terminológica entre urgência e
emergência médica.
A Resolução nº 1.451, de 10 de março de 1995, do Conselho
Federal de Medicina, estabelece, nos §§ 1º e 2º do seu art. 1º, as
definições para os conceitos de urgência e emergência:
Art. 1º Os estabelecimentos de
Prontos Socorros Públicos e Privados
deverão ser estruturados para prestar
atendimento a situações de urgênciaemergência, devendo garantir todas
as manobras de sustentação da vida
e com condições de dar continuidade
à assistência no local ou em outro
nível de atendimento referenciado.
Parágrafo Primeiro. Define-se por
URGÊNCIA a ocorrência imprevista
de agravo à saúde com ou sem risco
potencial de vida, cujo portador
necessita de assistência médica
imediata.
Parágrafo Segundo. Define-se por
EMERGÊNCIA a constatação médica
de condições de agravo à saúde que
impliquem em risco iminente de vida
ou sofrimento intenso, exigindo,
portanto, tratamento médico imediato.
Como se percebe, em ambas as hipóteses existe a
necessidade de tratamento médico imediato, razão pela qual,
embora o tipo penal do art. 135-A faça menção tão somente ao
atendimento médico-hospitalar emergencial, devemos nele também
compreender o atendimento médico de urgência.
Corroborando nosso raciocínio, mister ressaltar as orientações
contidas no Manual de Regulação Médica das Urgências, que faz
menção à necessidade de um conceito ampliado de urgência:
“Segundo Le Coutour, o conceito de urgência difere em função
de quem a percebe ou sente: Para os usuários e seus
familiares, pode estar associada a uma ruptura de ordem do
curso da vida. É do imprevisto que tende a vir a urgência: ‘eu
não posso esperar’.
Para o médico, a noção de urgência repousa não sobre a
ruptura, mas sobre o tempo, relacionado com o prognóstico vital
em certo intervalo: ‘ele não pode esperar’.
Para as instituições, a urgência corresponde a uma perturbação
de sua organização, é ‘o que não pode ser previsto’61.
Emergência é relativo a emergir, ou seja, alguma coisa que não
existia, ou que não era vista, e que passa a existir ou ser
manifesta, representando, dessa forma, qualquer queixa ou
novo sintoma que um paciente passe a apresentar. Assim, tanto
um acidente quanto uma virose respiratória, uma dor de dente
ou uma hemorragia digestiva podem ser consideradas
emergências.
Esse entendimento da emergência difere do conceito
americano, que tem permanentemente influenciado nossas
mentes e entende que uma situação de ‘emergência’ não pode
esperar e tem de ser atendida com rapidez, como incorporado
pelo próprio CFM.
Inversamente, de acordo com a nossa língua, urgência significa
aquilo que não pode esperar (tanto que o Aurélio apresenta a
expressão jurídica ‘urgência urgentíssima’62).
Assim, dado o grande número de julgamentos e dúvidas que
esta ambivalência de terminologia suscita no meio médico e no
sistema de saúde, optamos por não mais fazer esse tipo de
diferenciação. Passamos a utilizar apenas o termo ‘urgência’,
para todos os casos que necessitem de cuidados agudos,
tratando de definir o ‘grau de urgência’, a fim de clas-sificá-las
em níveis, tomando como marco ético de avaliação o
‘imperativo da necessidade humana.’”63
Em sentido contrário, Rogério Sanches Cunha, erigindo a tese
da legalidade estrita, aduz que:
“Somente a emergência é elementar do novel tipo incriminador,
ajustando-se a indevida exigência, no caso de urgência, ao
delito de omissão de socorro previsto no art. 135 do CP.”64
Merece ser ressaltado, por oportuno, que o estabelecimento de
saúde, após o efetivo socorro prestado àquele que necessitava de
atendimento médico-hospitalar emergencial pode confeccionar, por
exemplo, um contrato de prestação de serviços, a fim de garantir a
cobrança futura de seus serviços prestados, caso não ocorra o
pagamento pelo paciente ou por aqueles que por ele são
responsáveis.
O tipo penal não tem a função de instituir o “calote” nas
instituições médicas, mas, sim, preservar a vida e a saúde daqueles
que necessitam de imediato atendimento, sem que sejam
priorizadas as preocupações financeiras com o futuro pagamento do
tratamento utilizado. Nada impede que, no futuro, em caso de
inadimplemento, seja procedida a cobrança dos gastos efetuados. O
que não se pode é sobrepor os interesses financeiros à vida ou à
saúde daquele que necessitava de imediato atendimento.
Embora o tipo penal não faça menção expressa, é dirigido
especificamente à rede privada, uma vez que não é possível
qualquer tipo de cobrança na rede pública, sob pena de incorrerem
os responsáveis pela cobrança indevida, por exemplo, nos delitos
de corrupção passiva, concussão etc.
8.2
Classificação doutrinária
Crime próprio (tanto com relação ao sujeito ativo como ao
sujeito passivo); de perigo concreto (devendo ser demonstrado que
a conduta do agente trouxe, efetivamente, uma situação de perigo
para a vítima); doloso; de forma vinculada (uma vez que o
comportamento deve ser dirigido no sentido de exigir chequecaução, nota promissória, ou qualquer garantia, bem como o
preenchimento prévio de formulários administrativos, como condição
para o atendimento médico-hospitalar emergencial); comissivo
(podendo, no entanto, ser praticado via omissão imprópria, nos
termos do art. 13, § 2º, do Código Penal); instantâneo;
monossubjetivo; unissubsistente; transeunte (como regra).
8.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
Objeto material é a pessoa de quem é exigida a confecção do
cheque-caução, nota promissória ou qualquer garantia, bem como o
preenchimento prévio de formulários administrativos, como condição
para o atendimento médico-hospitalar emergencial, como também o
próprio paciente/vítima, que necessita do imediato atendimento.
Bens juridicamente protegidos, de acordo com o Capítulo III do
Título I do Código Penal são a vida e a saúde.
8.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
Sujeito ativo é aquele que determina que o atendimento
médico-hospitalar emergencial somente poderá ser realizado se
houver a entrega do cheque-caução, da nota promissória ou
qualquer garantia, bem como o preenchimento prévio de formulários
administrativos como condição para o atendimento médicohospitalar emergencial. Normalmente, quem estipula essas
condições para efeitos de atendimento é o diretor do
estabelecimento de saúde ou qualquer outro gestor que esteja à
frente da administração.
O problema surge quando o empregado, que trabalha no setor
de admissão de pacientes, cumpre as ordens emanadas da direção
e não permite o atendimento daquele que se encontrava em
situação de emergência. Nesse caso, entendemos que haverá o
concurso de pessoas, devendo, ambos (diretor e empregado)
responder pela infração penal em estudo.
Sujeito passivo será tanto a vítima/paciente, que necessita do
imediato atendimento médico-hospitalar, quanto aquele de quem,
em virtude de alguma impossibilidade da vítima/paciente, foi exigida
a entrega do cheque-caução, nota promissória ou qualquer garantia,
bem como o preenchimento prévio de formulários administrativos
como condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial.
8.5
Consumação e tentativa
O delito se consuma no instante em que a exigência de chequecaução, nota promissória ou qualquer garantia, bem como o
preenchimento prévio de formulários administrativos, é levada a
efeito como condição para o atendimento médico-hospitalar
emergencial, antes, portanto, do efetivo e necessário atendimento.
Tratando-se de um crime formal, a consumação ocorrerá
mesmo que no momento em que é feita a exigência, a vítima não
tenha sua situação agravada. Não há necessidade, assim, de
qualquer produção naturalística de resultado (agravamento da
situação da vítima/paciente ou mesmo a sua morte) para que o
crime reste consumado. Basta, portanto, que o comportamento
praticado tenha, efetivamente, criado uma situação de perigo para a
vida ou a saúde daquele que necessitava do atendimento médicohospitalar emergencial.
Entendemos, in casu, que não é admissível a tentativa, haja
vista que não conseguimos visualizar, ao contrário do que ocorre
com o delito de concussão, que contém o mesmo núcleo, ou seja, o
verbo exigir, a possibilidade de fracionamento do iter criminis.
8.6
Elemento subjetivo
O dolo é o elemento subjetivo exigido pelo tipo penal que prevê
o delito de condicionamento de atendimento médico-hospitalar
emergencial, não havendo previsão legal para a modalidade de
natureza culposa.
8.7
Modalidades comissiva e omissiva
O núcleo exigir pressupõe um comportamento comissivo por
parte do agente. No entanto, o delito poderá ser praticado via
omissão imprópria quando o agente, garantidor, dolosamente,
podendo, nada fizer para impedir a prática do delito em estudo, por
ele devendo responder nos termos preconizados pelo art. 13, § 2º,
do Código Penal.
8.8
Causa especial de aumento de pena
Determina o parágrafo único do art. 135-A do Código Penal,
verbis:
Parágrafo
único.
A
pena
é
aumentada até o dobro se da negativa
de atendimento resulta lesão corporal
de natureza grave, e até o triplo se
resulta a morte.
As causas de aumento de pena previstas no parágrafo único
acima transcrito somente poderão ser atribuídas ao agente a título
de culpa, tratando-se, portanto, de um crime preterdoloso, ou seja,
dolo com relação à exigência de cheque-caução, nota promissória
ou qualquer garantia, bem como o preenchimento prévio de
formulários administrativos, como condição para o atendimento
médico-hospitalar emergencial, e culpa no que diz respeito ao
resultado: lesão corporal de natureza grave ou morte.
8.9
Pena, ação penal, competência para julgamento e
suspensão condicional do processo
A pena cominada no preceito secundário do art. 135-A do
Código Penal é de detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e
multa.
A pena é aumentada até o dobro se da negativa de
atendimento resulta lesão corporal de natureza grave e até o triplo
se resulta a morte.
Tendo em vista a pena máxima cominada em abstrato, se não
houver o resultado morte, a competência será, ab initio, do Juizado
Especial Criminal.
Em qualquer situação, mesmo se houver o resultado morte,
como a pena mínima não ultrapassará o limite previsto pelo art. 89
da Lei nº 9.099/95, será possível a realização de proposta de
suspensão condicional do processo.
A ação penal é de iniciativa pública incondicionada.
8.10
8.10.1
Destaques
Estatuto do Idoso e recusa de outorga de procuração à
entidade de atendimento
Diz o art. 103 da Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003:
Art. 103. Negar o acolhimento ou a
permanência
do
idoso,
como
abrigado, por recusa deste em
outorgar procuração à entidade de
atendimento:
Pena – detenção de 6 (seis) meses a
1 (um) ano e multa.
8.10.2
Obrigação da afixação de cartaz
Obrigação da afixação de cartaz ou equivalente em
estabelecimentos de saúde que realizem atendimento médicohospitalar emergencial
O art. 2º da Lei nº 12.653, de 28 de maio de 2012, determina a
afixação de cartaz ou equivalente em estabelecimentos de saúde
que realizem atendimento médico-hospitalar emergencial, com a
informação do tipo penal em estudo, dizendo:
Art. 2º O estabelecimento de saúde
que realize atendimento médicohospitalar emergencial fica obrigado a
afixar, em local visível, cartaz ou
equivalente,
com
a
seguinte
informação:
“Constitui
crime
a
exigência de cheque-caução, de nota
promissória ou de qualquer garantia,
bem como do preenchimento prévio
de formulários administrativos, como
condição para o atendimento médicohospitalar emergencial, nos termos do
art. 135-A do Decreto-Lei nº 2.848, de
7 de dezembro de 1940 – Código
Penal.”
8.11
Quadro-resumo
Sujeitos
»
Ativo:
é
aquele
que
determina
que
o
atendimento
médicohospitalar
emergencial
somente
poderá
ser
realizado ser houver a
entrega do cheque-caução,
da nota promissória ou
qualquer garantia, bem
como o preenchimento
prévio
de
formulários
administrativos
como
condição
para
o
atendimento
médicohospitalar
emergencial.
Normalmente,
quem
estipula essas condições
para
efeitos
de
atendimento é o diretor do
estabelecimento de saúde,
ou qualquer outro gestor
que esteja à frente da
administração. O problema
surge
quando
o
empregado, que trabalha
no setor de admissão de
»
pacientes,
cumpre
as
ordens
emanadas
da
direção e não permite o
atendimento daquele que
se encontra em situação de
emergência. Nesse caso,
entendemos que haverá o
concurso
de
pessoas,
devendo, ambos (diretor e
empregado),
responder
pela infração penal em
estudo.
Passivo: será tanto a
vítima/paciente,
que
necessita
do
imediato
atendimento
médicohospitalar, quanto aquele
de quem, em virtude de
alguma impossibilidade da
vítima/paciente, foi exigida
a entrega do chequecaução, nota promissória
ou qualquer garantia, bem
como o preenchimento
prévio
de
formulários
administrativos
como
condição
para
o
atendimento
médicohospitalar emergencial.
Objeto material
Objeto material é a pessoa de
quem é exigida a confecção do
cheque-caução,
nota
promissória
ou
qualquer
garantia,
bem
como
o
preenchimento
prévio
de
formulários
administrativos,
como
condição
para
o
atendimento médico-hospitalar
emergencial, como também o
próprio paciente/ vítima, que
necessita
do
imediato
atendimento.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
Bens juridicamente protegidos,
de acordo com o Capítulo III, do
Título I do CP são a vida e a
saúde.
Elemento subjetivo
»
»
É o dolo.
Não há previsão legal para
a modalidade de natureza
culposa.
Modalidades
omissiva
»
»
comissiva
e
O núcleo exigir pressupõe
um
comportamento
comissivo por parte do
agente.
No entanto, o delito poderá
ser praticado via omissão
imprópria,
nos
termos
preconizados pelo art. 13, §
2º, do CP
Consumação e tentativa
»
O delito se consuma no
instante
em
que
a
exigência
de
chequecaução, nota promissória
»
ou qualquer garantia, bem
como o preenchimento
prévio
de
formulários
administrativos são levados
a efeito como condição
para
o
atendimento
médico-hospitalar
emergencial,
antes,
portanto, do efetivo e
necessário atendimento.
A
tentativa
não
é
admissível.
9.
MAUS-TRATOS
Maus-tratos Art. 136. Expor a perigo
a vida ou a saúde de pessoa sob sua
autoridade, guarda ou vigilância, para
fins de educação, ensino, tratamento
ou custódia, quer privando-a de
alimentação
ou
cuidados
indispensáveis, quer sujeitando-a a
trabalho excessivo ou inadequado,
quer abusando de meios de correção
ou disciplina:
Pena – detenção, de dois meses a um
ano, ou multa.
§ 1º Se do fato resulta lesão corporal
de natureza grave:
Pena – reclusão de um a quatro anos.
§ 2º Se resulta a morte:
Pena – reclusão, de quatro a doze
anos.
§ 3º Aumenta-se a pena de um terço,
se o crime é praticado contra pessoa
menor de 14 (catorze) anos.
9.1
Introdução
Procurando evitar os excessos, o Código Penal fez previsão da
figura típica do delito de maus-tratos.
Crime próprio, o delito de maus-tratos só pode ser cometido por
quem tenha autoridade, guarda, ou exerça vigilância sobre a vítima.
Hungria esclarece:
“Guarda é a assistência a pessoas que não prescindem dela, e
compreende necessariamente a vigilância. Esta importa zelo
pela segurança pessoal, mas sem o rigor que caracterizaria a
guarda, a que pode ser alheia (ex.: o guia alpino vigia pela
segurança de seus companheiros de ascensão, mas não os
tem sob sua guarda). Finalmente, a assistência decorrente da
relação de autoridade é a inerente ao vínculo de poder de uma
pessoa sobre outra, quer a potestas seja de direito público, quer
de direito privado.”65
Contudo, além dessa particular condição que especializa o
delito de maus-tratos, aquele que se encontra numa dessas
situações deve agir para fim de educação, ensino, tratamento ou
custódia. Ou seja, o delito de maus-tratos é caracterizado por esse
especial fim de agir com que atua o agente. Caso contrário, ou seja,
se não houver essa motivação especial, o fato poderá ser
desclassificado para outra modalidade típica.
Assim, a finalidade especial com que atua o agente –
educação, ensino, tratamento ou custódia – se traduz, na verdade,
na sua motivação.
Frederico Marques afirma:
“Educação é conceito empregado, no tipo, com o sentido de
atividade para infundir hábitos a fim de aperfeiçoar, sob o
aspecto moral ou cultural, a personalidade humana. Ensino
significa o estrito trabalho docente de ministrar conhecimentos.
Tratamento compreende não só o cuidado clínico e assistência
ao doente, como ainda ação de prover à subsistência de uma
pessoa. Custódia é a detenção de alguém em virtude de
motivos que a lei autoriza.”66
Além de indicar essa finalidade especial que deve conter o
comportamento do agente, o tipo penal que define o delito de maustratos ainda aponta os meios utilizados pelo agente à consecução
desses fins. Crime de ação múltipla, os maus-tratos podem se dar
por meio de:
a)
b)
c)
d)
e)
privação de alimentação;
privação dos cuidados indispensáveis;
sujeição a trabalhos excessivos;
sujeição a trabalhos inadequados;
abuso nos meios de correção ou disciplina.
Privar de alimentação significa suprimir os alimentos
necessários e indispensáveis à manutenção da vida ou à
preservação da saúde da vítima. Como frisamos, os crimes de
perigo devem ser interpretados tendo o enfoque da efetiva criação
de perigo para o bem juridicamente protegido, não se podendo,
pois, presumi-los, mas sim demonstrá-los em cada caso concreto.
Da mesma forma, devemos interpretar os tipos tendo em mira essa
natureza concreta do perigo, deixando de lado interpretações
literais, que fogem à real finalidade do dispositivo legal em estudo.
Tomemos o exemplo da privação de alimentação. Pode um pai,
querendo corrigir seu filho, privá-lo, por exemplo, de jantar naquele
dia? Será que já teria incorrido no delito em estudo? Obviamente
que não. Aqui, buscando a finalidade da norma, somente
poderíamos visualizar o delito em questão quando a privação da
alimentação fosse por tempo suficiente que pudesse causar perigo
para a vida ou para a saúde da vítima. Diferentemente é o caso
daquele que, por exemplo, querendo educar seu filho, uma criança
com apenas 4 anos de idade, o priva de alimentar-se durante uma
semana seguida, para que ele entenda o valor dos alimentos, já
que, como qualquer pessoa, tinha restrições a alguns deles (como
acontece com as crianças em relação às verduras e legumes de
forma geral). Como se percebe, o fato de uma criança permanecer
sete dias em jejum pode causar sequelas graves em seu organismo,
razão pela qual, nessa hipótese, se poderia cogitar do crime de
maus-tratos, lembrando sempre que se faz necessária, no caso
concreto, a prova de que o comportamento do agente trouxe,
efetivamente, situação de perigo para a vida ou para a saúde da
vítima.
A segunda modalidade de comissão do delito diz respeito à
privação dos cuidados indispensáveis. O termo “cuidados”, aqui,
tem um sentido amplo, conforme adverte Ney Moura Teles:
“Cuidados indispensáveis são aqueles mínimos relativos ao
vestuário, acomodação, higiene, assistência médica e
odontológica. Não se trata de obrigar o agente a fazer aquilo
que fugir de suas possibilidades, mas, dentro dessas, não privar
a vítima sem qualquer razão justificada.”67
Sujeitar a vítima a trabalhos excessivos é fazer com que atue
além das suas forças, além do padrão de normalidade atribuído às
pessoas, a exemplo do pai que obriga o filho a varrer
ininterruptamente a casa por mais de 10 horas consecutivas.
Inadequado é o trabalho que não se conforma com as particulares
condições da vítima, como no exemplo também daquele que, sob o
argumento de educar o filho de apenas 10 anos de idade, determina
que este o ajude na construção de sua casa, carregando sacos de
cimento de 50kg. Apesar do exagero do exemplo, a diferença que
podemos fazer entre trabalho excessivo e inadequado reside no fato
de que o trabalho excessivo está para o tempo, assim como o
trabalho inadequado está para a sua qualidade.
A última das modalidades de cometimento do delito de maustratos talvez seja a mais utilizada, vale dizer, o abuso de meios de
correção ou disciplina. O agente atua com o chamado animus
corrigendi ou disciplinandi. Contudo, abusa do seu direito de corrigir
ou disciplinar.
Abusar tem o significado de ir além do permitido. Muito se
discute, hoje em dia, se os pais devem ou não corrigir os filhos,
aplicando-lhes, em algumas ocasiões, castigos corporais. Mesmo
correndo o risco de ser criticado, acredito que algumas correções
moderadas não traumatizam a criança. Quantas vezes deparamos
com crianças em shopping centers que são verdadeiras
dominadoras. Obrigam os pais a fazer exatamente aquilo que
desejam. Caso contrário, aprontam escândalos insuportáveis.
Creio, firmemente, que a Bíblia é a Palavra de Deus, e ela nos
mostra, em várias passagens, o que devemos fazer para educar
nossos filhos e as consequências dessa educação. Vejamos no
Livro de Provérbios:
•
•
•
•
•
•
Capítulo 3, versículo 12: “Porque o Senhor repreende a
quem ama, assim como o pai, ao filho a quem quer bem.”
Capítulo 13, versículo 24: “O que retém a vara aborrece a
seu filho, mas o que o ama, cedo, o disciplina.”
Capítulo 19, versículo 19, primeira parte: “Castiga o teu
filho, enquanto há esperança [...]”
Capítulo 22, versículo 6: “Ensina a criança no caminho em
que deve andar e, ainda quando for velho, não se desviará
dele.”
Capítulo 29, versículo 15: “A vara e a disciplina dão
sabedoria, mas a criança entregue a si mesma vem a
envergonhar a sua mãe.”
Capítulo 29, versículo 17: “Corrige o teu filho, e te dará
descanso, dará delícias à tua alma.”
Não pretendo ser mal compreendido. O que estou afirmando é
que a palavra utilizada pelo tipo penal do art. 136, vale dizer, abuso,
diz respeito ao excesso nos meios de correção ou disciplina.
Em 26 de junho de 2014, no entanto, foi publicada a Lei nº
13.010, conhecida inicialmente como “lei da palmada”, que alterou a
Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do
Adolescente), para, segundo ela, no art. 18-A, “estabelecer o direito
da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o
uso de castigos físicos ou de tratamento cruel ou degradante.”
O art. 18-A, inserido no Estatuto da Criança e do Adolescente
pela mencionada Lei nº 13.010, de 26 de junho de 2014, diz, verbis:
Art. 18-A. A criança e o adolescente
têm o direito de ser educados e
cuidados sem o uso de castigo físico
ou de tratamento cruel ou degradante,
como formas de correção, disciplina,
educação ou qualquer outro pretexto,
pelos pais, pelos integrantes da
família ampliada, pelos responsáveis,
pelos agentes públicos executores de
medidas socioeducativas ou por
qualquer pessoa encarregada de
cuidar deles, tratá-los, educá-los ou
protegê-los.
Parágrafo único. Para os fins desta
Lei, considera-se:
I – castigo físico: ação de natureza
disciplinar ou punitiva aplicada com o
uso da força física sobre a criança ou
o adolescente que resulte em:
a) sofrimento físico; ou
b) lesão;
II – tratamento cruel ou degradante:
conduta ou forma cruel de tratamento
em relação à criança
adolescente que:
a) humilhe; ou
b) ameace gravemente; ou
c) ridicularize.
ou
ao
A pergunta que nos fazemos, após a modificação do Estatuto
da Criança e do Adolescente, é a seguinte: se um pai, agindo
animus corrigendi, ou seja, com a finalidade de corrigir seu filho, lhe
der uma palmada, não abusando, assim, desse meio de correção ou
disciplina, por causa da inovação legislativa, já terá incorrido no
crime de maus-tratos? Obviamente que a resposta só pode ser
negativa.
Na verdade, a inovação trazida pela Lei nº 13.010, de 26 de
junho de 2014, não modificou o raciocínio levado a efeito quando da
interpretação da última parte, constante do caput do art. 136 do
Código Penal. Com isso queremos afirmar que somente incorrerá no
delito de maus-tratos o agente que expuser a perigo a vida ou a
saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fins
de educação, ensino, tratamento ou custódia.
Por outro lado, a consequência de uma das práticas dos
comportamentos previstos no art. 18-A do Estatuto da Criança e do
Adolescente, de acordo com a inovação trazida pela Lei nº 13.010,
de 26 de junho de 2014, será uma daquelas previstas no art. 18-B
do citado diploma legal, que diz textualmente:
Art. 18-B. Os pais, os integrantes da
família ampliada, os responsáveis, os
agentes públicos executores de
medidas socioeducativas ou qualquer
pessoa encarregada de cuidar de
crianças e de adolescentes, tratá-los,
educá-los
ou
protegê-los
que
utilizarem castigo físico ou tratamento
cruel ou degradante como formas de
correção, disciplina, educação ou
qualquer outro pretexto estarão
sujeitos, sem prejuízo de outras
sanções cabíveis, às seguintes
medidas, que serão aplicadas de
acordo com a gravidade do caso:
I – encaminhamento a programa
oficial ou comunitário de proteção à
família;
II – encaminhamento a tratamento
psicológico ou psiquiátrico;
III – encaminhamento a cursos ou
programas de orientação;
IV – obrigação de encaminhar a
criança a tratamento especializado;
V – advertência.
Parágrafo
único.
As
medidas
previstas neste artigo serão aplicadas
pelo Conselho Tutelar, sem prejuízo
de outras providências legais.
Concluindo, a correção ou a disciplina, mesmo que cause um
sofrimento físico a uma criança ou adolescente, ainda não importará
no cometimento do delito de maus-tratos. Para que reste
configurada a figura típica em estudo, haverá necessidade de que
seja identificada, além do abuso dos meios de correção, a efetiva
exposição de perigo da vida ou da saúde da criança ou do
adolescente que estava sob sua autoridade, guarda ou vigilância.
Não se aplicam ao crime de maus-tratos as circunstâncias
agravantes previstas nas alíneas e, f e h do inciso II do art. 61 do
Código Penal, haja vista serem elementares do delito tipificado no
art. 136 do Código Penal.
9.2
Classificação doutrinária
Crime próprio (o delito de maus-tratos somente pode ser
cometido por quem tenha autoridade, guarda ou vigilância sobre a
vítima, que é o seu sujeito passivo); de perigo concreto; doloso; de
forma vinculada (pois o tipo penal aponta os meios em virtude dos
quais pode ser cometido, por exemplo, privando a vítima de
alimentação ou cuidados indispensáveis); comissivo ou omissivo;
instantâneo, podendo ocorrer, também, a hipótese de permanência
(quando a vítima permanece privada de alimentação, por exemplo);
monossubjetivo; plurissubsistente; não transeunte (pois, em geral,
deixa vestígios passíveis de aferir mediante perícia); de ação
múltipla ou conteúdo variado (podendo o agente praticar os vários
comportamentos previstos pelo tipo, a exemplo de sujeitar a vítima a
trabalho excessivo, bem como abusar dos meios de correção,
somente sendo responsabilizado por uma única infração penal).
9.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
Os bens juridicamente protegidos pelo tipo penal que prevê o
delito de maus-tratos são a vida e a saúde, conforme determina a
redação inicial contida no tipo do art. 136 do Código Penal, que diz:
“Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa [...].”
Objeto material do delito em estudo é a pessoa contra quem é
dirigida a conduta perigosa praticada pelo agente, ou seja, aquele
que estiver sob sua autoridade, guarda ou vigilância.
9.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
Crime próprio, o tipo incriminador do art. 136 do Código Penal
aponta quem pode ser considerado sujeito ativo do delito de maustratos. Assim, nos termos da parte inicial do mencionado artigo,
somente aquele que detém autoridade, guarda ou vigilância sobre a
vítima.
Por outro lado, o delito também é considerado como próprio
com relação ao sujeito passivo, pois somente aquele que está sob a
autoridade, a guarda ou a vigilância do agente é que poderá figurar
nessa condição.
Merece destaque o fato de que a esposa não pode ser sujeito
passivo do delito de maus-tratos, haja vista não existir entre ela e o
marido qualquer relação de sujeição, ou seja, não há o vínculo
jurídico de subordinação exigido pelo tipo penal.
Da mesma forma, também não poderá figurar entre os sujeitos
passivos do delito de maus-tratos os filhos que já tiverem atingido a
maioridade civil, isto é, aqueles que já tiverem completado 18 anos,
nos termos do art. 5º do Código Civil.
9.5
Consumação e tentativa
Consuma-se o delito com a efetiva criação de perigo para a
vida ou para a saúde do sujeito passivo. A criação efetiva do perigo
deve ficar demonstrada no caso concreto. Conforme adverte Cezar
Roberto Bitencourt:
“Trata-se de crime de perigo concreto, cuja ocorrência deve ser
comprovada, sendo inadmissível mera presunção. A conduta
descrita no art. 136 do CP pretende punir quem coloca em risco
a vida ou a saúde de alguém subordinado nas condições ali
especificadas para uma daquelas finalidades.”68
A tentativa é admissível desde que se possa visualizar o
fracionamento do iter criminis. Assim, por exemplo, pode um pai ser
impedido de espancar o filho com um instrumento que, com certeza,
causaria danos de grande proporção, abusando, dessa forma, dos
meios de correção. Imagine-se, no exemplo referido, que um pai,
agindo com animus corrigendi, fosse agredir o filho valendo-se de
uma barra de ferro. Obviamente que tal instrumento, por si mesmo,
já demonstra o excesso nos meios de correção. No exato instante
em que ia desferir o golpe, antes, contudo, de acertar a vítima, o
agente foi interrompido por terceiros, que a tudo assistiam.
Nesse caso podemos concluir que o agente deu início aos atos
de execução de um delito de maus-tratos, cuja consumação não
sobreveio por circunstâncias alheias à sua vontade.
9.6
Elemento subjetivo
O tipo do art. 136 do Código Penal somente admite a
modalidade dolosa, seja o dolo direto ou eventual. Embora
localizado no Capítulo III do Título I do Código Penal, que prevê os
chamados crimes de perigo (Da periclitação da vida e da saúde), a
parte final do mencionado artigo nos permite também raciocinar em
termos de dolo de dano.
Assim, quem abusa de meios de correção ou disciplina, por
exemplo, agredindo violentamente aquele que está sob sua
autoridade, guarda ou vigilância, atua com a finalidade de causarlhe lesões corporais. Contudo, essas lesões corporais são
especializadas pela motivação do agente, vale dizer, a conduta do
agente que atua com excessivo animus corrigendi é praticada para
fins de educação, ensino, tratamento ou custódia.
Podemos, portanto, visualizar no crime de maus-tratos tanto um
dolo de perigo, quando o agente expõe a perigo a vida ou a saúde
de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, privando-a de
alimentação ou cuidados indispensáveis, sujeitando-a a trabalho
excessivo ou inadequado, quanto um dolo de dano (lesões corporais
de natureza leve), quando atua abusando de meios de correção ou
disciplina.
É importante frisar que, em decorrência das modalidades
qualificadas previstas nos §§ 1º e 2º do art. 136 do Código Penal,
conforme veremos mais adiante, quando o agente atua com dolo de
dano, ou seja, de produzir lesões corporais na vítima, para fins de
educação, ensino, tratamento ou custódia, abusando dos meios de
correção ou disciplina, sua finalidade poderá ser, no máximo, de
produzir lesões corporais de natureza leve, uma vez que as
modalidades qualificadas – lesão corporal de natureza grave e
morte – somente poderão ser a ele atribuídas a título de culpa,
tratando-se, portanto, de crimes preterdolosos.
Tal situação será analisada mais detidamente em tópico próprio.
O delito de maus-tratos não admite a modalidade culposa, por
ausência de determinação expressa nesse sentido.
9.7
Modalidades comissiva e omissiva
Conforme se verifica pela redação típica, por se tratar de crime
de ação múltipla ou de conteúdo variado, o delito de maus-tratos
admite tanto a modalidade comissiva quanto a omissiva.
Assim, por exemplo, pode alguém praticar o delito em estudo
abusando de meios de correção ou disciplina, isto é, fazendo
alguma coisa contra a vítima que está sob sua autoridade, guarda
ou vigilância, como pode também cometê-lo deixando de fazer
aquilo a que estava obrigado, como é a hipótese prevista na
primeira parte do artigo, que prevê a privação de alimentação.
9.8
Modalidades qualificadas
Os §§ 1º e 2º do art. 136 preveem as modalidades qualificadas
do delito de maus-tratos, verbis:
§ 1º Se do fato resulta lesão corporal
de natureza grave:
Pena – reclusão, de um a quatro
anos.
§ 2º Se resulta a morte:
Pena – reclusão, de quatro a doze
anos.
Do fato, ou seja, da privação de alimentação ou dos cuidados
indispensáveis, da sujeição a trabalho excessivo ou inadequado ou
mesmo do abuso de meios de correção ou disciplina, pode resultar
lesão corporal de natureza grave ou a morte da vítima.
Importante frisar, como já deixamos antever, que todas as
modalidades qualificadas somente podem ser atribuídas ao agente
a título de culpa. Cuida-se, portanto, de crimes eminentemente
preterdolosos.
Caso o agente atue com dolo de produzir lesões corporais de
natureza grave o delito, mesmo que motivado pelo fim de educação,
ensino, tratamento ou custódia da vítima, será desclassificado para
o crime de lesões corporais, graves ou gravíssimas, cujas penas
cominadas são superiores àquelas previstas para o delito de maustratos.
Também não se poderá cogitar em dolo de matar, uma vez que,
assim agindo o agente, não se poderia visualizar o especial fim de
agir exigido pelo tipo. Como se poderia conciliar a morte da vítima
com as finalidades previstas pelo preceito primário do delito de
maus-tratos – educação, ensino, tratamento ou custódia?
Portanto, todas os resultados que qualificam o delito de maustratos somente podem ser atribuídos ao agente a título de culpa.
Deverá, ainda, ser observada a regra contida no art. 19 do
Código Penal, somente podendo qualificar o delito em estudo o
resultado que era previsível para o agente, não se podendo aceitar,
portanto, qualquer raciocínio que importe em responsabilidade penal
objetiva, pois o mencionado art. 19 determina que pelo resultado
que agrava especialmente a pena – nesse caso, a lesão corporal de
natureza grave e a morte – só responde o agente que o houver
causado ao menos culposamente.
9.9
Causa de aumento de pena
O § 3º foi acrescentado ao art. 136 do Código Penal por
intermédio da Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do
Adolescente), com a finalidade de punir mais severamente, de
acordo com a sua regra geral, aqueles que viessem a praticar o
delito em estudo contra vítimas menores de 14 anos, dizendo:
§ 3º Aumenta-se a pena de um terço,
se o crime é praticado contra pessoa
menor de 14 (catorze) anos.
Para que haja a incidência da mencionada causa especial de
aumento de pena será preciso anexar aos autos cópia do
documento de identidade da vítima, conforme determina o parágrafo
único do art. 155 do Código de Processo Penal, de acordo com a
nova redação que lhe foi dada pela Lei nº 11.690, de 9 de junho de
2008, que diz:
Parágrafo único. Somente quanto ao
estado das pessoas serão observadas
as restrições estabelecidas na lei civil.
9.10
Pena, ação penal, competência para julgamento e
suspensão condicional do processo
O crime de maus-tratos, em sua modalidade fundamental, é
punido com uma pena de detenção, de 2 (dois) meses a 1(um) ano,
ou multa, sendo, pelo menos inicialmente, de competência do
Juizado Especial Criminal, uma vez que, de acordo com a pena
cominada ao caput do mencionado artigo, essa modalidade de
infração penal se encontra no rol daquelas consideradas como
sendo
de
menor
potencial
ofensivo,
aplicando-se,
consequentemente, os institutos que lhe são inerentes (transação
penal e suspensão condicional do processo), mesmo que cometido
contra vítima menor de 14 anos, uma vez que a pena máxima em
abstrato não superará os dois anos, bem como a pena mínima não
será superior a 1 (um) ano, fazendo com que, ainda assim,
permaneça a competência do aludido Juizado e continue a permitir
a proposta de suspensão condicional do processo.
Poderá o juiz, no entanto, optar entre a aplicação da pena
privativa de liberdade e a multa, atendendo ao disposto na parte
final do art. 59 do Código Penal, que diz que a pena deve ser
necessária e suficiente para reprovação e prevenção do crime. No
caso concreto, o juiz, fundamentadamente, deverá optar por uma
delas, demonstrando que sua escolha é a que melhor se adapta ao
agente.
Se do fato resultar lesão corporal de natureza grave, a pena
será de reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.
Se o crime não for cometido contra vítima menor de 14 anos,
permite-se a confecção de proposta de suspensão condicional do
processo, tendo em vista a pena mínima cominada.
Se resulta a morte, a pena será de reclusão, de 4 (quatro) a 12
(doze) anos.
A ação penal, em qualquer das modalidades do crime de maustratos – simples ou qualificado –, é de iniciativa pública
incondicionada.
9.11
9.11.1
Destaques
Maus-tratos contra idoso – art. 99 da Lei nº 10.741/2003
A Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso),
criou uma modalidade especial de maus-tratos praticados contra
vítima com idade igual ou superior a 60 anos, dizendo, em seu art.
99:
Art. 99. Expor a perigo a integridade e
a saúde, física ou psíquica, do idoso,
submetendo-o
a
condições
desumanas ou degradantes ou
privando-o de alimentos e cuidados
indispensáveis, quando obrigado a
fazê-lo, ou sujeitando-o a trabalho
excessivo ou inadequado:
Pena – detenção, de 2 (dois) meses a
1 (um) ano e multa.
§ 1º Se do fato resulta lesão corporal
de natureza grave:
Pena – reclusão de 1 (um) a 4
(quatro) anos.
§ 2º Se resulta a morte:
Pena – reclusão de 4 (quatro) a 12
(doze) anos.
Fazendo um estudo comparado com o art. 136 do Código
Penal, percebemos, ab initio, serem idênticas as penas cominadas
no mencionado artigo àquelas previstas pelo Estatuto do Idoso.
Esse conflito aparente de normas, entretanto, deve ser
resolvido por intermédio do princípio da especialidade.
A idade da vítima, ou seja, igual ou superior a 60 anos, é fator
importante para determinar o tipo penal a ser aplicado.
Contudo, o art. 136, que não restringe a sua aplicação
considerando a idade da vítima, pode ser aplicado em detrimento do
art. 99 do Estatuto do Idoso, desde que o agente, embora
praticando o delito contra vítima com idade igual ou superior a 60
anos, o faça para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia.
Portanto, podemos concluir que, se o agente expõe um idoso a
perigo para a sua integridade e saúde, sem qualquer das
motivações previstas no art. 136 do Código Penal, aplica-se o tipo
penal do art. 99 da Lei nº 10.741/2003. Contudo, se atua com
aquele especial fim de agir – educação, ensino, tratamento ou
custódia –, mesmo tratando-se de vítima com idade igual ou
superior a 60 anos, aplica-se o art. 136 do Código Penal.
9.11.2
Maus-tratos e crime de tortura
O inciso II do art. 1º da Lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997, diz:
Art. 1º Constitui crime de tortura:
I – [...];
a) [...];
b) [...];
c) [...];
II – submeter alguém, sob sua guarda,
poder ou autoridade, com emprego de
violência ou grave ameaça, a intenso
sofrimento físico ou mental, como
forma de aplicar castigo pessoal ou
medida de caráter preventivo.
Pena – reclusão, de dois a oito anos.
Como se percebe da redação do mencionado inciso, o agente
que pratica o delito de tortura age, sempre, com dolo de dano, ou
seja, sua finalidade, ab initio, é a de causar intenso sofrimento físico
ou mental à vítima.
Não existe, ainda, coincidência de motivação entre o delito de
tortura e o crime de maus-tratos. Neste, o agente atua para fins de
educação, ensino, tratamento ou custódia; naquele, como forma de
aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.
9.11.3
Maus-tratos à criança e ao adolescente
A Lei nº 8.069/90 prevê medidas de proteção às crianças e
adolescentes vítimas de maus-tratos, nos seguintes dispositivos:
Art. 13. Os casos de suspeita ou
confirmação de castigo físico, de
tratamento cruel ou degradante e de
maus-tratos
contra
criança
ou
adolescente serão, obrigatoriamente,
comunicados ao Conselho Tutelar da
respectiva localidade, sem prejuízo de
outras providências legais.
Art.
56.
Os
dirigentes
de
estabelecimentos
de
ensino
fundamental
comunicarão
ao
Conselho Tutelar os casos de:
I – maus-tratos envolvendo seus
alunos;
[...].
Art. 87. São linhas de ação da política
de atendimento: [...] III – serviços
especiais de prevenção e atendimento
médico e psicossocial às vítimas de
negligência, maus-tratos, exploração,
abuso, crueldade e opressão;
Art. 101. Verificada qualquer das
hipóteses previstas no art. 98, a
autoridade
competente
poderá
determinar,
dentre
outras,
as
seguintes medidas: [...] § 2º Sem
prejuízo da tomada de medidas
emergenciais para proteção de
vítimas de violência ou abuso sexual e
das providências a que alude o art.
130 desta Lei, o afastamento da
criança ou adolescente do convívio
familiar é de competência exclusiva
da autoridade judiciária e importará na
deflagração, a pedido do Ministério
Público ou de quem tenha legítimo
interesse, de procedimento judicial
contencioso, no qual se garanta aos
pais ou ao responsável legal o
exercício do contraditório e da ampla
defesa.
Art. 130. Verificada a hipótese de
maus-tratos, opressão ou abuso
sexual impostos pelos pais ou
responsável, a autoridade judiciária
poderá determinar, como medida
cautelar, o afastamento do agressor
da moradia comum.
9.11.4
Maus-tratos e Código Penal Militar
O crime de maus-tratos foi previsto também pelo art. 213 do
Código Penal Militar (Decreto-Lei nº 1001, de 21 de outubro de
1969).
9.12
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: é aquele que detém
autoridade,
guarda
ou
vigilância sobre a vítima.
Passivo: é aquele que está
sob a autoridade, a guarda
ou a vigilância do agente.
Objeto material
É a pessoa contra quem é
dirigida a conduta perigosa
praticada pelo agente, ou seja,
aquele que estiver sob sua
autoridade,
guarda
ou
vigilância.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
A vida e a saúde.
Elemento subjetivo
»
»
É o dolo, seja ele direto ou
mesmo eventual.
Não
se
admite
a
modalidade culposa.
Modalidades
omissiva
comissiva
e
Admite tanto a modalidade
comissiva quanto a omissiva.
Meios de execução
»
a)
b)
Crime de ação múltipla, os
maus-tratos podem se dar
por meio da:
privação de alimentação:
significa
suprimir
os
alimentos necessários e
indispensáveis
à
manutenção da vida ou à
preservação da saúde da
vítima;
privação dos cuidados
indispensáveis: que “são
aqueles mínimos relativos
ao vestuário, acomodação,
higiene, assistência médica
e odontológica” (TELES,
2004, p. 250), dentro das
possibilidades do agente;
c)
d)
sujeição
a
trabalhos
excessivos, nos quais a
vítima atua além das suas
forças;
sujeição
a
trabalhos
inadequados, ou seja, que
não se conforma com as
particulares condições da
vítima.
Consumação e tentativa
»
»
1
Consuma-se o delito com a
efetiva criação de perigo
para a vida ou para a
saúde do sujeito passivo.
A tentativa é admissível.
BIDASOLO, Mirentxu Corcoy. Delitos de peligro y protección de bienes jurídicospenales supraindividuales, p. 47.
2
No Brasil, após a edição da Lei nº 11.705, de 19 de junho de 2008, com as posteriores
modificações levadas a efeito pela Lei nº 12.760, de 20 de dezembro de 2012, no art.
306 do Código de Trânsito Brasileiro, também foi criado um delito de perigo abstrato
para aquele que conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em
razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine
dependência. Nesse caso, após as mencionadas modificações legislativas, não é mais
necessária a efetiva comprovação da situação de perigo, que, dessa forma, se
considera presumida. O art. 306 do CTB também foi alterado pelas Leis 12.971/2014 e
13.940/2019.
3
TORRE, Ignácio Verdugo Gómez de la et al. Lecciones de derecho penal – Parte
general, p. 156.
4
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 383.
5
LUZON PEÑA, Diego-Manuel. Princípio da levisidade. In: ENCICLOPÉDIA Penal
Básica, p. 860.
6
TUBENCHLACK, James. Teoria do crime, p. 153.
7
JESUS, Damásio E. de. Direito penal, v. 2, p. 145.
8
CUNHA, Rogério Sanches. Direito penal – Parte especial, p. 58.
9
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 2, p. 206.
10
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado, p. 424.
11
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 81.
12
JESUS, Damásio E. de. Direito penal, v. 2, p. 150.
13
TELES, Ney Moura. Direito penal, v. 2, p. 226.
14
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. V, p. 401.
15
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 2, p. 226.
16
GRECO, Rogério. Curso de direito penal – Parte geral.
17
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. I, t. I, p. 139.
18
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado, p. 429.
19
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 2, p. 247.
20
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado, p. 429-430.
21
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. V, p. 418-419.
22
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal, v. 2, p. 131.
23
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 87.
24
BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa, p. 229.
25
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal – Parte especial (arts. 121 a 160
CP), p. 159.
26
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. V, p. 416.
27
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 91.
28
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. V, p. 426.
29
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 176-177.
30
GRECO, Rogério. Curso de direito penal – Parte geral.
31
BIERRENBACH, Sheila de Albuquerque. Crimes omissivos impróprios, p. 91.
32
BIERRENBACH, Sheila de Albuquerque. Crimes omissivos impróprios, p. 92-93.
33
TAVARES, Juarez. As controvérsias em torno dos crimes omissivos, p. 75.
34
CEREZO, Ángel Calderón; MONTALVO, José Antonio Choclán. Derecho penal – Parte
especial, t. II, p. 134.
35
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. V, p. 431.
36
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. V, p. 431.
37
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 188.
38
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado, p. 436.
39
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 2, p. 293.
40
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 96.
41
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. V, p. 430.
42
BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa, p. 242.
43
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 189.
44
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 2, p. 301.
45
GALVÃO, Fernando. Direito penal – crimes contra a pessoa, p. 212.
46
TAVARES, Juarez. As controvérsias em torno dos crimes omissivos, p. 89.
47
BUSATO, Paulo César. Direito penal – parte especial 1, p. 182.
48
COÊLHO, Yuri Carneiro. Curso de direito penal didático, p. 530.
49
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELLI, José Henrique. Da tentativa – doutrina e
jurisprudência, p. 123.
50
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 2, p. 299.
51
BIERRENBACH, Sheila de Albuquerque. Crimes omissivos impróprios, p. 81.
52
TELES, Ney Moura. Direito penal, v. 2, p. 245.
53
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado, p. 436.
54
TAVARES, Juarez. As controvérsias em torno dos crimes omissivos, p. 85-86.
55
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 185.
56
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 2, p. 299.
57
MUÑOZ CONDE, Francisco. Derecho penal – Parte especial, p. 321.
58
PIRES, Ariosvaldo de Campos; SALES, Sheila Jorge Selim de. Crimes de trânsito, p.
203.
59
PIRES, Ariosvaldo de Campos; SALES, Sheila Jorge Selim de. Crimes de trânsito, p.
207.
60
BUSATO, Paulo César. Direito penal – parte especial 1, p. 183/184.
61
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de
Atenção Especializada. Regulação médica das urgências, Módulo II.
62
Cf. URGÊNCIA. In: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio
da língua portuguesa, p.2.023.
63
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de
Atenção Especializada. Regulação médica das urgências, Módulo II, p. 47-48.
64
CUNHA, Sanches Rogério. Manual de direito penal – parte especial, volume único, p.
173.
65
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. V, p. 419.
66
MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal, v. IV, p. 365.
67
TELES, Ney Moura. Direito penal, v. 2, p. 250.
68
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 2, p. 312.
Capítulo IV Da Rixa
1.
RIXA
Rixa
Art. 137. Participar de rixa, salvo para
separar os contendores:
Pena – detenção, de quinze dias a
dois meses, ou multa.
Parágrafo único. Se ocorre morte ou
lesão corporal de natureza grave,
aplica-se, pelo fato da participação na
rixa, a pena de detenção, de seis
meses a dois anos.
1.1
Introdução
O preceito primário do art. 137 do Código Penal, ao fazer a
narração dos elementos que compõem o delito de rixa, diz somente:
Participar de rixa, salvo para separar os contendores.
Como a redação típica é muito singela, primeiramente devemos
traduzir o conceito de rixa, a fim de apontar-lhe os elementos
caracterizadores.
Para Hungria, rixa é “uma briga entre mais de duas pessoas,
acompanhada de vias de fato ou violências recíprocas, pouco
importando que se forme ex improviso ou ex propósito.”1 Queiroz de
Moraes define a rixa como:
“O conflito que, surgindo de improviso entre três ou mais
pessoas, cria para estas uma situação de perigo imediato à
integridade corporal ou a saúde. Existe a situação de perigo
mencionada, quando os rixantes lutam confusamente entre si,
empregando vias de fato, ou outros meios quaisquer, como
pedradas, tiros etc., que ponham em risco a integridade
corporal ou a saúde tanto dos contendores como de outras
pessoas que se encontrem no local ou longe, mas ao alcance
dos instrumentos usados. Caracteriza-se a confusão pelo
tumulto que se verifica e é demonstrada pela impossibilidade ou
dificuldade de conhecer-se bem a ação de todos os partícipes.
O emprego dos referidos meios põe em risco a pessoa visada e
a confusão estende o perigo aos demais.”2
Percebe-se, portanto, que para a configuração do delito de rixa
exige-se a presença de, pelo menos, 3 (três) pessoas, que brigam
indiscriminadamente entre si. O que caracteriza a rixa, na verdade,
é a confusão existente no entrevero. Não é, assim, pelo fato de três
pessoas estarem envolvidas numa briga que já devemos raciocinar
em termos do delito de rixa. Isso porque pode acontecer, por
exemplo, que duas pessoas, unidas entre si, lutem contra uma
outra, e aí não teremos o delito de rixa, mas o de lesões corporais.
A finalidade da criação do delito de rixa foi evitar a impunidade
que reinaria em muitas situações, onde não se pudesse apontar,
com precisão, o autor inicial das agressões, bem como aqueles que
agiram em legítima defesa. Por isso, pune-se a simples participação
na rixa, de modo que todos aqueles que dela tomaram parte serão
responsabilizados por esse delito.
Maggiore, com precisão, esclarece que não teria sentido a lei:
“Criar um delito a parte, como a rixa, para castigar uma luta
entre
somente
duas
pessoas,
cujas
respectivas
responsabilidades podem ser individualizadas. Quando duas
pessoas contendem, ou querem injuriar-se, ameaçar-se ou ferirse, e por tanto podem responder eventualmente por suas
injúrias, ameaças ou lesões (consumadas ou tentadas), com a
situação precisa da parte culpável ou da parte lesionada, uma a
respeito da outra, a lei não tem necessidade de criar um delito
especial para castigá-las. Se se configura ad hoc o delito de
participação na rixa, é porque na incerteza da responsabilidade
de cada pessoa, indiscernível a causa da contenda, lhe parece
conforme a justiça castigá-las somente pelo fato de haver
tomado parte na rixa.”3
Assim, o fato de existir o delito de rixa impede que, nas muitas
oportunidades em que houver uma agressão tumultuária, na qual
várias pessoas se agridam reciprocamente, ocorra a impunidade de
todos os participantes.
Imagine-se a hipótese, diferentemente do delito de rixa, em que
duas pessoas tenham se agredido no interior de um restaurante.
Nesse caso, o que normalmente ocorre é que um dos agentes deu
início às agressões, tendo o outro se defendido. Dessa forma,
teríamos um agente agressor e outro que teria agido em legítima
defesa própria.
A fim de apurar as graves agressões ocorridas no interior desse
restaurante, um inquérito policial foi instaurado. Contudo, durante as
investigações, como acontece com frequência, algumas
testemunhas afirmaram que foi o agente A que havia começado as
agressões; da mesma forma, outras testemunhas, também ouvidas
no inquérito policial, disseram que o agente B iniciara o entrevero.
Como deve agir o delegado de polícia nessa situação?
Segundo entendemos, deve a autoridade policial, existindo a dúvida,
indiciar os dois contendores.
O Ministério Público, ao receber os autos de inquérito policial,
também verificará que existe dúvida quanto ao autor inicial das
agressões, razão pela qual, erigindo o princípio do in dubio pro
societate, denunciará os dois, a fim de que, em juízo, tente elucidar
a questão com os recursos do contraditório etc.
Suponha-se que, também durante a instrução do processo, o
Ministério Público não tenha conseguido apontar, com precisão, o
autor inicial das agressões. Ressalte-se, como já o fizemos, que um
deles foi o agressor inicial, tendo o outro se defendido
legitimamente, ou seja, um deles deve ser responsabilizado pelo
delito de lesões corporais, enquanto o outro deve ser absolvido, por
ausência de ilicitude em seu comportamento, em face da presença
de uma causa de justificação, vale dizer, a legítima defesa.
Se ao final da instrução processual ainda restar a dúvida, deve
o Ministério Público requerer a absolvição de ambos os acusados,
pois, ao final da ação penal, o princípio que deverá prevalecer será
o do in dubio pro reo. Isso significa que, na dúvida, os agentes
devem ser absolvidos, pois não se pode condenar aquele que não
praticou qualquer infração penal. Como não se sabe qual, para que
um deles não seja injustamente condenado, ambos devem ser
absolvidos.
Se isso acontece, e com frequência, quando somente duas
pessoas brigam entre si, imagine-se a hipótese na qual tenhamos,
por exemplo, cinco, dez, vinte pessoas ou mais brigando. Sempre,
nessas situações, haveria a sensação de impunidade. Seria uma
“porta aberta” a esse tipo de comportamento.
Daí a necessidade de ser criado um delito em que a participação na
rixa seja punida. O item 48 da Exposição de Motivos da parte
especial do Código Penal esclarece, ainda:
48. A ratio essendi da incriminação é
dupla: a rixa concretiza um perigo à
incolumidade pessoal (e nisto se
assemelha aos ‘crimes de perigo
contra a vida e a saúde’) e é uma
perturbação da ordem e disciplina da
convivência civil.
Como tal infração penal é repleta de peculiaridades, para que
sejam melhor visualizadas, destacaremos tópicos para cada uma
delas, no campo correspondente aos destaques.
Apesar da afirmação majoritária da doutrina no sentido de que a
rixa deve ser entendida como um delito de perigo de natureza
abstrata, ousamos discordar desse posicionamento, haja vista que,
quando da ocorrência do delito, o perigo a que estão expostas a
vida e a saúde será, na verdade, concreto, passível de demonstrar.
1.2
Classificação doutrinária
Crime comum com relação ao sujeito ativo, bem como quanto
ao sujeito passivo; de perigo concreto (pois a participação na rixa
importa numa efetiva criação de risco para a vida e para a saúde
das pessoas); doloso; de forma livre; comissivo e, caso o agente
goze do status de garantidor, também omissivo impróprio;
instantâneo; plurissubjetivo, havendo necessidade, para fins de sua
configuração, da presença de, pelo menos, três pessoas, sendo que
as condutas são consideradas contrapostas, vale dizer, umas contra
as outras; plurissubsistente (uma vez que se pode fracionar o iter
criminis); não transeunte, como regra, pois as lesões corporais
sofridas pelos contendores podem ser comprovadas mediante
exame pericial.
1.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
Os bens juridicamente protegidos pelo tipo penal que prevê o
delito de rixa são a integridade corporal e a saúde, bem como a
vida. Aníbal Bruno salienta:
“Alguns tiveram em vista o tumulto da rixa e a perturbação que
pode trazer à tranquilidade pública. Crime de perigo para a paz
pública, como diz GERLAND; conjuntamente de risco para a
incolumidade das pessoas e a tranquilidade da ordem pública,
pensa VANNINI.
É claro que a rixa ameaça ou perturba a ordem e a paz pública,
mas não é este o bem jurídico que o Código toma em
consideração para proteger com a criação desse tipo penal, ou
não é este que predomina ou orienta a incriminação. É a
incolumidade corpórea, e isso desde as primeiras legislações,
em que dominava a preocupação de como punir o homicídio ou
a lesão que ocorresse, e ainda na concepção moderna, que faz
da rixa, desde logo, crime de perigo para a vida ou a saúde,
com a definição do qual o Código completa a sua armadura de
proteção a esses bens.”4
Objeto material são os próprios contendores, ou seja, são os
rixosos que participam da agressão tumultuária, praticando
condutas contrapostas uns contra os outros.
1.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
Crime comum, o delito de rixa pode ser praticado por qualquer
pessoa, independentemente do sexo ou idade, não exigindo,
portanto, o tipo penal, qualquer qualidade ou condição especial.
Assim, na participação na rixa, os rixosos são, ao mesmo
tempo, sujeitos ativos e passivos. Aquele que, com o seu
comportamento, procura agredir o outro participante é considerado
sujeito ativo do delito em questão; da mesma forma, aquele que não
só agrediu, como da mesma forma foi agredido durante sua
participação na rixa, também é considerado sujeito passivo do
crime.
Luiz Regis Prado ressalva ainda o fato de que:
“Como a rixa é delito plurissubjetivo de condutas contrapostas,
que se caracterizam pela reciprocidade das vias de fato, a
situação de perigo desencadeada demonstra que todos os
rixosos são ofensores e ofendidos, isto é, sujeitos ativos e
passivos do delito. Não há falar de crime contra si próprio, já
que todos os participantes da rixa se ofendem mútua e
desordenadamente, expondo-se ao perigo gerado pela conduta
de todos.”5
1.5
Consumação e tentativa
Para que se caracterize o delito de rixa há necessidade de que
os agentes iniciem os atos de agressão, que podem se constituir em
vias de fato, lesões corporais, podendo, até mesmo, chegar ao
resultado morte.
Isso quer dizer que não há delito de rixa quando várias pessoas
se ofendem reciprocamente, com impropérios, palavras injuriosas
etc. O delito de rixa exige, portanto, atos de violência.
Contudo, não há necessidade de contato físico. Pode ocorrer o
delito de rixa com arremesso de objetos. É muito comum ocorrer a
rixa com arremesso de cadeiras, garrafas de cerveja etc.
Nesse sentido, afirma Hungria:
“É indispensável à configuração da rixa, a parte objecti, que
haja vias de fato, atos de militante hostilidade (socos,
empurrões, engalfinhamentos, pontapés, cambapés, safanões,
arremesso de objetos contundentes, eventualmente disparos de
tiros etc.). Não basta uma simples altercação, por mais
acalorada que seja. É preciso que os contendores venham às
mãos, formando-se o entrevero, ou que, embora sem o contato
dos brigadores, estes se acometam reciprocamente, por
exemplo, com pedradas ou disparos de arma de fogo.”6
Entendemos, portanto, que, quando os contendores dão início
às agressões recíprocas, seja por meio do contato pessoal ou de
arremesso de objetos, nesse momento, está consumado o delito de
rixa.
Em sentido contrário, Magalhães Noronha afirma:
“Consuma-se o delito no momento e no lugar onde cessou a
atividade dos contendores. Mesmo que ocorra morte ou lesão
corporal grave (parágrafo único), a consumação se opera com a
cessação da rixa, pois o delito é o mesmo, embora seja a pena
majorada, como bem se deduz dos termos do citado parágrafo:
‘[...] pelo fato da participação na rixa [...]’.”7
Apesar da autoridade do renomado autor, ousamos dele
discordar, uma vez que, nos termos do art. 4º do Código Penal,
considera-se praticado o crime no momento da ação ou omissão,
ainda que outro seja o momento do resultado.
Uma vez iniciada a ação, praticado o comportamento previsto
pelo tipo penal incriminador, mesmo que o agente não tenha
completamente esgotado seus atos, a infração já estará
consumada, pois, conforme afirma Damásio de Jesus, “consuma-se
a rixa com a prática de vias de fato ou violência recíprocas, instante
em que há a produção do resultado [...].”8
Partindo do pressuposto de que o delito de rixa se consuma
quando os contendores iniciam os atos de violência, será possível o
raciocínio relativo à tentativa?
Para que a resposta flua com mais facilidade, é preciso que
façamos a distinção entre as rixas ex improviso e ex proposito.
Chama-se ex improviso a rixa quando a agressão tumultuária
tem início repentinamente, ou seja, sem que tenha havido qualquer
combinação prévia. De repente, todos os contendores se veem
envolvidos numa situação de agressões recíprocas. Ex proposito, é
a rixa concebida antecipadamente pelos contendores. Todos
resolvem que, naquele dia e local, ocorrerão as agressões
tumultuárias.
Alguns autores, a exemplo de Carrara, exigem que a agressão,
para o fim de caracterização do delito de rixa, seja súbita.9 Para o
renomado autor, portanto, não há falar em rixa ex proposito, mas tão
somente em rixa ex improviso.
Na mesma linha de raciocínio de Carrara, Queiroz de Moraes
entende que:
“A natureza da rixa exige que não tenha sido preparada a luta.
Não deve ser esta resultado de cogitação anterior de seus
partícipes. Sem dúvida, pode prender-se a fato há muito
acontecido, a velha malquerença entre os rixantes. Não
importa. O ódio antigo ou a ira momentânea devem eclodir
naquele instante, repercutindo em sua consciência,
impulsionando-lhes a vontade e determinando-lhes a ação.”10
Hungria, a seu turno, contrariamente às posições acima
transcritas, esclarece:
“Não se pode dizer que a rixa seja sempre uma improvisa
certatio. As mais das vezes, deriva de uma subitânea exaltação
de ânimos; mas pode também ser ‘preordenada’ ou resultar ex
proposito.”11
Entendemos perfeitamente admissível a rixa ex proposito.
Imagine-se a hipótese em que gangues rivais marquem um encontro
a fim de “passar a limpo” qual delas, efetivamente, é superior às
demais. Sendo pelo menos em três grupos rivais distintos, nada
impede que se caracterize o delito de rixa.
E quanto à tentativa?
Fragoso assevera que “a tentativa deste crime, conquanto difícil
de configurar-se, é possível.”12
Já tivemos oportunidade de ressaltar que toda vez que
pudermos fracionar o iter criminis será possível o raciocínio da
tentativa,
como
acontece
com
os
chamados
crimes
plurissubsistentes. A rixa amolda-se ao conceito de crime
plurissubsistente, razão pela qual, dependendo da hipótese concreta
a ser analisada, poderá ser possível o raciocínio da tentativa.
Imagine-se o caso da rixa ex proposito, em que os contendores,
ao chegarem ao local por eles determinado, são interrompidos, por
policiais que tomaram conhecimento da convenção criminosa
quando já estavam dando início aos atos de execução. É hipótese
difícil de acontecer, porque, para que se possa falar em tentativa de
rixa, temos de concluir que os atos praticados pelos contendores já
podiam ser considerados atos de execução, pois, caso contrário, se
entendermos os atos como mera preparação ao cometimento do
delito, não se poderá cogitar de tentativa punível.
1.6
Elemento subjetivo
O delito de rixa somente pode ser praticado dolosamente. Além
do mais, não se consegue visualizar outro dolo que não seja o dolo
direto.
Como bem ressaltado por Cezar Roberto Bitencourt:
“O elemento subjetivo desse crime é o dolo, representado pela
vontade e consciência de participar da rixa, isto é, consiste no
conhecimento de que se trata de uma rixa e na vontade
consciente de participar dela.”13
Por não haver previsão expressa no tipo penal, não se admite a
rixa de natureza culposa. Mesmo porque seria um contrassenso
esse tipo de previsão legal, pois se a rixa se configura quando os
contendores querem agredir-se reciprocamente, seria inimaginável
falar-se em rixa com comportamentos recíprocos culposos.
1.7
Modalidades comissiva e omissiva
A regra é que o delito de rixa seja praticado por meio de uma
conduta positiva por parte dos rixosos. Quando a lei penal usa a
expressão participar de rixa, está pressupondo um comportamento
ativo, ou seja, um fazer alguma coisa no sentido de, no mínimo,
praticar vias de fato.
Contudo, questão que demonstra interesse diz respeito ao fato
de ser possível ou não participação omissiva no delito de rixa.
Entendemos que somente será possível a modalidade omissiva
no delito de rixa quando o omitente gozar do status de garantidor.
Assim, por exemplo, suponhamos que no interior da cela de uma
delegacia de polícia os cincos detentos que ali se encontravam
comecem a se agredir reciprocamente, gerando uma pancadaria
indiscriminada. O carcereiro, que tinha obrigação legal de evitar ou,
pelo menos, interromper as agressões, apartando os contendores, a
tudo assiste passivamente, divertindo-se, inclusive, com o ocorrido.
Nesse caso, poderá o carcereiro, na qualidade de garantidor,
ser responsabilizado pelo delito de rixa, por omissão.
1.8
Modalidade qualificada
O parágrafo único do art. 137 do Código Penal determina:
Parágrafo único. Se ocorre morte ou
lesão corporal de natureza grave,
aplica-se, pelo fato da participação na
rixa, a pena de detenção, de seis
meses a dois anos.
Como se percebe pela comparação entre a modalidade
qualificada, prevista no transcrito parágrafo único, e o tipo
fundamental, quando ocorrer lesão corporal de natureza grave ou
morte, o simples fato de ter participado na rixa fará com que o
agente tenha sua pena aumentada 12 vezes.
A rixa será considerada qualificada quando ocorrer a morte ou a
lesão corporal de natureza grave, não importando, pois, se esses
resultados foram finalisticamente queridos pelos rixosos ou se
ocorreram culposamente. Assim, se houver morte ou lesão corporal
de natureza grave, não importando a que título tenham ocorrido – se
dolosa ou culposamente –, a rixa já será considerada qualificada.
Contudo, se tais infrações penais – homicídio e lesão corporal
de natureza grave – não chegarem a se consumar, não terão o
condão de qualificar o delito. Dessa forma, se houver, durante a rixa,
tentativa de lesão corporal de natureza grave, tal fato, embora possa
ser punido isoladamente, não poderá fazer com que os demais
contendores respondam por rixa qualificada, sendo necessário,
portanto, ao reconhecimento da qualificadora, que a morte e a lesão
grave sejam consumadas.
Pode ser que, por exemplo, algum dos rixosos morra durante a
contenda, como também uma pessoa estranha ao entrevero, mas
em razão dele. Em ambas as hipóteses, os contendores
responderão pelo delito de rixa qualificada.
No item correspondente aos destaques, analisaremos todas as
situações que digam respeito à rixa qualificada, tais como o ingresso
do agente após a produção dos resultados qualificadores, bem
como a sua saída antes que tivessem acontecido etc.
1.9
Pena, ação penal, competência para julgamento e
suspensão condicional do processo
A pena cominada ao delito de rixa simples é de detenção, de 15
(quinze) dias a 2 (dois) meses, ou multa, sendo que para a rixa
qualificada a pena é de detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos.
Tanto a rixa simples como a qualificada são de competência,
pelo menos inicialmente, do Juizado Especial Criminal, uma vez
que, em ambos os casos, a pena máxima cominada em abstrato
não ultrapassa o limite de 2 (dois) anos, determinado pelo art. 61 da
Lei nº 9.099/95, com a nova redação que lhe foi dada pela Lei nº
11.313, de 28 de junho de 2006, sendo possível, ainda, a aplicação
dos institutos da transação penal, bem como da suspensão
condicional do processo.
No que diz respeito à rixa simples, poderá o julgador,
observando a parte final do art. 59 do Código Penal, determinar a
aplicação de uma pena privativa de liberdade ou uma pena de
multa, apontando, fundamentadamente, qual delas melhor atenderá
às funções que lhe são reservadas, vale dizer, reprovação e
prevenção do crime.
A ação penal é de iniciativa pública incondicionada, seja a rixa
simples ou qualificada.
1.10
1.10.1
Destaques
Inimputáveis e desconhecidos integrantes da rixa
Como afirmamos em nossa introdução, o delito de rixa
pressupõe um número mínimo de três pessoas que se agridem
reciprocamente.
Podemos computar nesse número mínimo os contendores
inimputáveis, bem como aqueles que, embora participantes do
delito, não foram identificados na fase de inquérito policial, ou de
confecção do termo circunstanciado, em caso de competência do
Juizado Especial Criminal.
Assim, o importante é que três pessoas, no mínimo, participem
da contenda, não importando a presença, nesse cômputo, de
inimputáveis. Dessa forma, ainda responderá pelo delito de rixa o
agente que, juntamente com dois inimputáveis, menores de 18
anos, se agredirem reciprocamente. Embora os menores não
possam ser denunciados por esse delito, o único imputável poderá
ser por ele responsabilizado.
Da mesma forma, se houver a comprovação de que em
determinado lugar várias pessoas (mais de duas) agrediam-se
reciprocamente, sendo que a autoridade policial somente logrou
êxito em identificar apenas uma delas, o agente identificado também
poderá ser responsabilizado pelo delito de rixa, mesmo que figure
sozinho na peça inicial de acusação.
O importante, aqui, é a comprovação do número de pessoas
participantes, no sentido de verificar se eram, no mínimo, três.
Haverá casos, inclusive, em que não se poderá afirmar, com
segurança, o número de contendores. Imagine-se, por exemplo,
uma rixa ocorrida no interior de uma boate, onde dezenas de
pessoas se agrediram. Embora não se podendo apontar o número
exato daqueles que participaram do delito em questão, caberá ao
Ministério Público, caso somente um deles tenha sido identificado,
para o fim de responsabilidade penal pela rixa, comprovar, pelo
menos, a participação dos demais, mesmo que de identidades
ignoradas.
Conforme determina a parte final do art. 137 do Código Penal,
somente aquele que ingressa na rixa para separar os contendores
não poderá fazer parte do número mínimo exigido para o seu
cômputo.
1.10.2
Meios de cometimento do delito de rixa
A rixa, conforme temos ressaltado, pressupõe, pelo menos, o
animus dos agentes em ofender a integridade corporal ou a saúde
dos demais contendores.
Dessa forma, não há que se falar em crime de rixa quando
estivermos diante de comportamentos que não tenham essa
finalidade, a exemplo dos xingamentos, ameaças, injúrias
recíprocas etc.
Há
necessidade,
portanto,
dessa
vontade
dirigida
finalisticamente a ofender a integridade corporal ou a saúde dos
demais contendores. Assim, para que se caracterize o delito de rixa
é preciso que ocorram ofensas corporais.
Não é imprescindível, contudo, como já dissemos, que os
agentes tenham contato pessoal entre si, podendo a rixa ocorrer por
meio de arremessos de objetos.
Dos meios utilizados, poderemos visualizar na rixa a ocorrência
de vias de fato, lesão corporal ou morte dos contendores, cada qual
repercutindo de forma diferente no que diz respeito à aplicação da
pena.
1.10.3
Vias de fato e lesão corporal de natureza leve
É comum a modalidade de rixa em que os contendores, embora
se agredindo reciprocamente, não produzam mais do que resultados
que correspondam à contravenção penal de vias de fato, prevista no
art. 21 da Lei de Contravenções Penais.
Se os únicos resultados produzidos forem aqueles que dizem
respeito às vias de fato, ou seja, que importam em empurrões, tapas
etc., que não se traduzem em lesões corporais, os contendores
somente deverão responder pelo delito de rixa, ficando as
contravenções penais de vias de fato por ele absorvidas.
Pode ocorrer também, e na verdade é a hipótese mais
frequente, que a participação na rixa produza lesões corporais nos
contendores. Nesse caso, se as lesões corporais forem de natureza
leve, o contendor que a praticou deverá, além do delito de rixa
simples, responder também por elas.
Não fosse assim, chegaríamos ao absurdo de entender que se
dois agentes, querendo resolver “no braço” uma contenda anterior,
após marcarem data para uma luta entre eles, praticarem,
reciprocamente, lesões corporais de natureza leve, cada um seria
responsável pelas suas lesões, punidas, de acordo com o art. 129,
caput, do Código Penal, com uma pena de detenção, de 3 (três)
meses a 1 (um) ano.
Agora, se várias pessoas, que se agridem reciprocamente
numa pancadaria indiscriminada, que resulta também em lesões
corporais leves em todos os rixosos, respondessem tão somente
pelo delito de rixa simples, seriam responsabilizadas, nos termos do
caput do art. 137, com uma pena de detenção, de 15 (quinze) dias a
2 (dois) meses.
Dessa forma, uma situação que, pelo menos em tese, é mais
grave, pois envolve um número maior de pessoas, seria punida
menos severamente.
Portanto, entendemos que o delito de rixa somente absorve as
vias de fato, devendo o agente ser responsabilizado, no entanto,
pelas lesões corporais, em concurso de crimes.
1.10.4
Lesão corporal de natureza grave e morte resultantes da
rixa
O parágrafo único do art. 137 do Código Penal, prevendo a
modalidade qualificada do delito de rixa, utiliza a seguinte
expressão: se ocorre morte ou lesão corporal de natureza grave,
aplica-se, pelo fato da participação na rixa, a pena de detenção, de
6 (seis) meses a 2 (dois) anos.
Isso significa que, pelo simples fato de ter participado na rixa,
ocorrendo morte ou lesão corporal de natureza grave, a pena a ser
aplicada será a da modalidade qualificada.
Contudo, devemos analisar as várias hipóteses que podem
ocorrer, a saber:
a)
contendor que ingressa na rixa após ter ocorrido a morte
ou a lesão corporal de natureza grave;
b)
contendor que sai da rixa antes da ocorrência da morte ou
da lesão corporal de natureza grave.
No primeiro caso, ou seja, quando o agente ingressa na rixa
após ter ocorrido a morte ou a lesão corporal de natureza grave, não
poderá ser responsabilizado pelo delito qualificado, pois sua
participação em nada contribuiu para a ocorrência daqueles
resultados.
Por outro lado, tem-se entendido que, mesmo o agente tendo
se retirado da contenda antes da ocorrência do resultado morte ou
lesão corporal de natureza grave, deverá responder pela rixa
qualificada. Queiroz de Moraes, nesse sentido, ressalta:
“Deve-se ter sempre presente que a rixa é uma situação de
perigo da qual podem originar-se consequências mais ou
menos graves. Se a maior ou menor gravidade das lesões
dependesse, no momento em que estas se verificam, do
número de participantes da rixa, sem dúvida a anterior retirada
de um dos contendores importaria em modificação dos
resultados. Porém, tal não acontece. Um corrixante que se
afasta nem sempre atenua o perigo existente e, se vem a
suceder morte ou lesão, isso prova até que a situação se
agravou na sua ausência. O evento, sendo uma resultante do
perigo, promana também da atuação daquele que, tendo
participado da contenda, ajudou a criá-lo.”14
1.10.5
Concurso de crimes entre a rixa (simples ou qualificada) e
as lesões corporais leves ou graves, e o homicídio
Também são vários os aspectos que devem ser analisados
quando estivermos diante do delito de rixa em que sobrevenha
lesões corporais (leves ou graves) ou a morte de um dos rixosos,
desde que identificado o autor desses resultados.
Assim, podemos visualizar as seguintes hipóteses:
a)
b)
c)
rixa e lesões corporais simples;
rixa e lesões corporais graves;
rixa e homicídio.
A primeira discussão pertinente diz respeito à modalidade de
concurso de crimes a ser aplicado, vale dizer, o concurso material
ou concurso formal de crimes. A doutrina majoritária se inclina pela
tese do concurso material de crimes.
No item 48, § 2º, da Exposição de Motivos da Parte Especial do
Código Penal, verificamos a posição do Ministro Francisco Campos:
48. [...]
§ 2º A participação na rixa é punida
independentemente
das
consequências desta. Se ocorre a
morte ou lesão corporal grave de
algum dos contendores, dá-se uma
condição de maior punibilidade, isto é,
a pena cominada ao simples fato de
participação na rixa é especialmente
agravada. A pena cominada à rixa em
si mesma é aplicável separadamente
da pena correspondente ao resultado
lesivo (homicídio ou lesão corporal),
mas
serão
ambas
aplicadas
cumulativamente (como no caso de
concurso material) em relação aos
contendores que concorrerem para a
produção desse resultado.
No mesmo sentido, Álvaro Mayrink da Costa, quando diz:
“Na hipótese da identificação do autor da morte ou da lesão
corporal de natureza grave, aplica-se o concurso real de tipos
penais, respondendo pelo homicídio ou lesão corporal de
natureza grave e participação em rixa simples.”15
Apesar de a posição majoritária adotar a tese do concurso
material de crimes, permissa vênia, entendemos, no caso de
concurso entre a rixa e outra infração (lesões leves, graves ou
mesmo homicídio), que a regra do concurso formal é que deverá ser
aplicada, uma vez que, se analisarmos detidamente os fatos,
veremos que, na verdade, o que existe é tão somente uma situação
de rixa, quer dizer, o agente está envolvido numa situação de
agressão tumultuária, na qual sua vontade é dirigida finalisticamente
a causar lesões ou mesmo a morte do outro contendor. O dolo, aqui,
é o de produzir um dano à vítima, também contendora.
Assim, entendemos que seria melhor o raciocínio
correspondente ao concurso formal de crimes, em que podemos
visualizar uma única conduta, produtora de dois ou mais resultados,
ou seja, com seu comportamento o agente não só se integra ao
grupo dos rixosos, como também produz um resultado lesivo a outro
contendor.
A segunda discussão que merece destaque diz respeito ao fato
de que, uma vez identificado o contendor que causou as lesões
graves ou a morte da vítima, por quais infrações penais deverá ser
responsabilizado. Aqui, também, a doutrina se divide em:
a)
b)
rixa qualificada, mais as lesões graves ou morte;
rixa simples, mais as lesões graves ou morte.
Hungria é taxativo ao afirmar:
“Se averiguado quais os contendores que praticaram o
homicídio ou lesão grave, ou concorreram diretamente para tais
crimes, responderão eles individualmente por estes, em
concurso material com o de rixa qualificada.”16
Em sentido contrário, preconiza Luiz Regis Prado:
“Determinados o autor (ou autores) ou partícipes do homicídio
ou da lesão corporal grave, aqueles responderão por tais delitos
em concurso material com a rixa simples.”17
Entendemos ser melhor a segunda posição, uma vez que,
sendo permitida a responsabilização do agente que praticou o
homicídio ou as lesões corporais de natureza grave em concurso
(seja ele formal ou material) com o delito de rixa qualificada,
estaríamos permitindo a adoção do repudiado bis in idem, ou seja,
um mesmo fato – lesão corporal grave ou morte – repercutindo duas
vezes sobre o comportamento do agente.
O terceiro raciocínio gira em torno daquele que sofreu lesão
corporal de natureza grave. Deveria ele, pelo fato de ter participado
da rixa, responder pelo delito de rixa qualificada, mesmo tendo sido
ele próprio a vítima das lesões corporais de natureza grave que
tiveram o condão de qualificar o delito?
Entendemos que não, embora exista posição em contrário.
Magalhães Noronha, concluindo pela responsabilidade do
contendor que se feriu gravemente por rixa qualificada, explica:
“Responde também por delito qualificado o rixoso ferido
gravemente. Não há dizer ter sido ele já punido mais que os
outros pois a lei não considera essa espécie de punição, como
também não distingue. Como quer que seja, é justamente a
ofensa que lhe foi produzida que torna real a rixa qualificada.
Nada impede, entretanto, que o juiz tenha a circunstância em
consideração, ao aplicar a pena.”18
Rogério Sanches Cunha sintetiza as discussões dizendo, com a
clareza que lhe é peculiar, que existem três sistemas de punição, a
saber:
“a) da solidariedade absoluta: se da rixa resultar lesão corporal
grave ou morte, todos os participantes respondem pelo evento
(lesão corporal grave ou homicídio), independentemente de se
apurar quem foi o seu real autor. Essa posição conduz à
injustiça, punindo-se inocentes com severidade desnecessária;
b) da cumplicidade correspectiva: havendo morte ou lesão
grave, e não sendo apurado o seu autor, todos os participantes
respondem por esse resultado, sofrendo, entretanto, sanção
correspondente à média da sanção do autor e do partícipe
(estabelece-se uma pena determinada para todos, porém mais
leve que a das lesões ou homicídio);
c) autonomia: a rixa é punida por si mesma,
independentemente do resultado agravador (morte ou lesão
grave), o qual, se ocorrer, somente qualificará o crime. Apenas
o causador dos graves ferimentos ou morte (se identificado) é
que responderá também pelos crimes de lesão corporal dolosa,
de natureza grave, ou homicídio. Este é o critério adotado pelo
nosso CP.”19
1.10.6
Grupos opostos
Discute-se, ainda, a respeito da possibilidade de se falar em
rixa quando estivermos diante de grupos opostos bem definidos.
Por exemplo, imagine-se que a gangue de determinada rua
resolva atacar a gangue rival. Cada grupo contém,
aproximadamente, 20 pessoas. Portanto, teremos 40 pessoas
brigando entre si. Haveria rixa?
Não. Visto que, majoritariamente, embora tenhamos mais de
três pessoas no entrevero, se os grupos são bens distintos e
visualizáveis, o que teremos, na verdade, será a prática de lesões
corporais recíprocas, e não o delito de rixa.
Como já afirmamos, a rixa pressupõe uma pancadaria
indiscriminada: A que bate em B, que apanha de C etc.
1.10.7
Rixa simulada
Não se configura no tipo do art. 137 do Código Penal a
chamada rixa simulada. A rixa coloca em risco a integridade
corporal e a saúde, bem como a vida das pessoas.
Aqueles que a simulam não atuam, na verdade, com a finalidade de
agredir os demais participantes, agindo, pois, com o chamado
animus jocandi.
Cezar Roberto Bitencourt alerta:
“A rixa simulada não constitui crime, ainda que, eventualmente,
resulte alguma lesão. Nessa hipótese, quem produziu a lesão
ou concorreu para ela deverá responder a título de culpa, não
havendo qualquer outra responsabilidade.”20
1.10.8
Participação na rixa e participação no crime de rixa
Existe diferença entre participar na rixa e participar no crime de
rixa.
Participar da rixa é fazer parte dela como um dos contendores.
Essa participação pode ocorrer desde o início da contenda, ou
mesmo depois de já iniciada, mas enquanto durar a rixa.
A participação no crime de rixa diz respeito a uma das
modalidades de concurso de pessoas e pode acontecer mediante:
a)
b)
participação moral;
participação material.
Ocorre a participação moral quando o agente induz ou instiga o
autor à prática da infração penal. Assim, aquele que convence
alguém a entrar na rixa ou, mesmo de fora, incita, estimula os
contendores, será considerado partícipe no crime de rixa.
Já na chamada participação material, existe uma prestação de
auxílios materiais, ou seja, o agente, como no caso de fornecimento
de instrumentos que serão utilizados no delito, facilita de alguma
forma a prática da infração penal. No caso da rixa, imagine-se a
hipótese em que o agente, sabendo da intenção de um dos
contendores, forneça-lhe um taco de baseball, para que seja usado
durante o entrevero. Teríamos, aqui, uma participação no delito de
rixa, na modalidade prestação de auxílios materiais.
1.10.9
Possibilidade de legítima defesa no delito de rixa
Para que todos os participantes da rixa sejam condenados por
esse delito, parte-se do pressuposto de que as agressões por eles
praticadas sejam injustas.
Assim, na verdade, todos os que participam da contenda
atuam, ilicitamente, uns contra os outros.
Nesse caso, poderia haver alguma situação em que fosse
possível o raciocínio da legítima defesa?
A doutrina seleciona algumas hipóteses, sobre as quais
dissertaremos.
A)
B)
A primeira delas diz respeito à modificação dos meios com
base nos quais a rixa era travada. Assim, por exemplo, se
todos estavam se agredindo reciprocamente com socos e
pontapés e um dos rixosos, de repente, saca um revólver
e, com ele, pretende atirar em outro contendor, este poderá
se
defender
legitimamente,
podendo,
inclusive,
dependendo da situação, chegar até mesmo a produzir o
resultado morte do rixoso que, certamente, o mataria.
Nesse caso, embora um dos contendores tenha agido em
legítima defesa, causando a morte do outro rixoso, não
poderá ser responsabilizado, como se percebe, pelo delito
de homicídio, somente devendo responder pelo delito de
rixa qualificada pelo resultado morte, pois o parágrafo único
do art. 137 do Código Penal exige tão somente que a morte
ocorra pelo fato da participação na rixa.
Assim, não somente o rixoso que agiu em legítima defesa
responderá por rixa qualificada, como também todos os
demais participantes.
Pode ocorrer, também, que um terceiro, que ingresse na
rixa a fim de separar os contendores, seja injustamente
agredido e, agindo em legítima defesa, venha a produzir a
morte de um dos rixosos.
Aqui, nenhum problema existe para que seja feito o
raciocínio da legítima defesa, uma vez que, aquele que
intervém na rixa com o fim de acabar com ela, separando
os contendores, não pratica qualquer agressão injusta. Se
vem a ser repelido, agredido injustamente por um dos
rixosos, poderá, naturalmente, atuar em legítima defesa.
Contudo, se ocorrer a morte de seu agressor, um dos
rixosos, todos os demais deverão responder pelo delito de
rixa qualificada, pois a morte também adveio em virtude da
participação na rixa.
C) Também poderá ocorrer a hipótese em que ocorra a
intervenção de um terceiro, estranho à rixa, que venha em
defesa de um corrixante.
Nesse caso, a própria Exposição de Motivos à Parte
Especial do Código Penal esclarece, no último parágrafo
do item 48:
48. Segundo se vê do art. 137, in fine,
a participação na rixa deixará de ser
crime se o participante visa apenas
separar os contendores. É claro que
também não haverá crime se a
intervenção constituir legítima defesa,
própria ou de terceiro.
Portanto, se alguém intervém não com a finalidade de também
participar da rixa, mas, sim, com o propósito de defender um
terceiro, como no caso daquele que percebe que seu irmão está
sendo duramente espancado por um dos contendores e atua
querendo salvá-lo, poderá ser beneficiado com o raciocínio da
legítima defesa de terceiros.
1.10.10 Rixa e Código Penal Militar
O delito de participação em rixa está previsto no art. 211 do
Código Penal Militar (Decreto-Lei nº 1001, de 21 de outubro de
1969).
1.10.11 Estatuto do Torcedor
Infelizmente, temos assistido, com muita frequência, tumultos e
violências provocados por torcidas organizadas. Muitas vezes,
esses confrontos entre torcidas são orquestrados através das redes
sociais. Nesse caso, se duas torcidas rivais, após marcarem
antecipadamente um local, ou mesmo improvisadamente, se
digladiarem, agredindo-se reciprocamente, teríamos, in casu, a
ocorrência do delito de rixa? Já expusemos anteriormente que não,
ou seja, quando houver dois grupos distintos estaremos diante da
hipótese de lesões corporais recíprocas.
No entanto, existe previsão expressa para a punição desse
comportamento na Lei nº 10.671, de 15 de maio de 2003, que
dispõe sobre o Estatuto de Defesa do Torcedor, cujo art. 41-B, nele
incluído pela Lei nº 12.299, de 27 de julho de 2010, diz,
textualmente:
Art. 41-B. Promover tumulto, praticar
ou incitar a violência, ou invadir local
restrito aos competidores em eventos
esportivos:
Pena – reclusão de 1 (um) a 2 (dois)
anos e multa. § 1º Incorrerá nas
mesmas penas o torcedor que:
I – promover tumulto, praticar ou
incitar a violência num raio de 5.000
(cinco mil) metros ao redor do local de
realização do evento esportivo, ou
durante o trajeto de ida e volta do
local da realização do evento;
II – portar, deter ou transportar, no
interior do estádio, em suas
imediações ou no seu trajeto, em dia
de realização de evento esportivo,
quaisquer instrumentos que possam
servir para a prática de violência.
1.11
Quadro-resumo
Sujeitos
Ativo e passivo: os rixosos são,
ao mesmo tempo, sujeitos
ativos e passivos.
Objeto material
São os próprios contendores.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
A integridade corporal
saúde, bem como a vida.
e
a
Elemento subjetivo
»
»
É o dolo.
Não se admite a rixa de
natureza culposa.
Modalidades
omissiva
comissiva
e
A regra é de que o delito de rixa
seja praticado por meio de uma
conduta positiva por parte dos
rixosos. Somente será possível
a modalidade omissiva no delito
quando o omitente gozar do
status de garantidor.
Participação
Pune-se a simples participação
na rixa, de modo que todos
aqueles que dela tomaram
parte serão responsabilizados
por esse delito.
Consumação e tentativa
»
»
Quando os contendores
dão início às agressões
recíprocas, seja por meio
do contato pessoal ou de
arremesso de objetos,
nesse
momento,
está
consumado o delito de rixa.
É possível o raciocínio
relativo à tentativa, embora
de difícil configuração.
1
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VI, p. 14.
2
MORAES, Flávio Queiroz de. Delito de rixa, p. 35-36.
3
MAGGIORE, Giuseppe. Derecho penal, v. IV, p. 368.
4
BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa, p. 256.
5
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 209.
6
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VI, p. 20-21.
7
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 105.
8
JESUS, Damásio E. de. Direito penal, v. 2, p. 192.
9
CARRARA, Francesco. Programa de derecho criminal, v. I, p. 408.
10
MORAES, Flávio Queiroz de. Delito de rixa, p. 53.
11
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VI, p. 19.
12
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal – Parte especial (arts. 121 a 160),
p. 178.
13
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 2, p. 320.
14
MORAES, Flávio Queiroz de. Delito de rixa, p. 155-156.
15
COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal – Parte especial, p. 359.
16
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VI, p. 24.
17
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 214.
18
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 109.
19
CUNHA, Sanches Rogério. Manual de direito penal – parte especial, volume único, p.
185.
20
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 2, p. 320.
Capítulo V
Dos Crimes contra a Honra
1.
DOS CRIMES CONTRA A HONRA
Calúnia
Art. 138. Caluniar alguém, imputandolhe falsamente fato definido como
crime:
Pena – detenção, de seis meses a
dois anos, e multa.
§ 1º Na mesma pena incorre quem,
sabendo falsa a imputação, a propala
ou divulga.
§ 2º É punível a calúnia contra os
mortos.
Exceção da verdade
§ 3º Admite-se a prova da verdade,
salvo:
I – se, constituindo o fato imputado
crime de ação privada, o ofendido não
foi
condenado
por
sentença
irrecorrível;
II – se o fato é imputado a qualquer
das pessoas indicadas no nºI do art.
141;
III – se do crime imputado, embora de
ação pública, o ofendido foi absolvido
por sentença irrecorrível.
Difamação
Art. 139. Difamar alguém, imputandolhe fato ofensivo à sua reputação:
Pena – detenção, de três meses a um
ano, e multa.
Exceção da verdade
Parágrafo único. A exceção da
verdade somente se admite se o
ofendido é funcionário público e a
ofensa é relativa ao exercício de suas
funções.
Injúria
Art. 140. Injuriar alguém, ofendendolhe a dignidade ou o decoro:
Pena – detenção, de um a seis
meses, ou multa.
§ 1º O juiz pode deixar de aplicar a
pena:
I – quando o ofendido, de forma
reprovável, provocou diretamente a
injúria;
II – no caso de retorsão imediata, que
consista em outra injúria;
§ 2º Se a injúria consiste em violência
ou vias de fato, que, por sua natureza
ou pelo meio empregado, se
considerem aviltantes:
Pena – detenção, de três meses a um
ano, e multa, além da pena
correspondente à violência.
§ 3º Se a injúria consiste na utilização
de elementos referentes a raça, cor,
etnia, religião, origem ou a condição
de pessoa idosa ou portadora de
deficiência:
Pena – reclusão de um a três anos, e
multa.
Disposições comuns
Art. 141. As penas cominadas neste
Capítulo aumentam-se de um terço,
se qualquer dos crimes é cometido:
I – contra o Presidente da República,
ou
contra
chefe
de
governo
estrangeiro;
II – contra funcionário público, em
razão de suas funções, ou contra os
Presidentes do Senado Federal, da
Câmara dos Deputados ou do
Supremo Tribunal Federal;
III – na presença de várias pessoas,
ou por meio que facilite a divulgação
da calúnia, da difamação ou da injúria;
IV – contra pessoa maior de 60
(sessenta) anos ou portadora de
deficiência, exceto no caso de injúria.
§ 1º Se o crime é cometido mediante
paga ou promessa de recompensa,
aplica-se a pena em dobro. § 2º Se o
crime é cometido ou divulgado em
quaisquer modalidades das redes
sociais
da
rede
mundial
de
computadores, aplica-se em triplo a
pena.
Exclusão do crime Art. 142. Não
constituem injúria ou difamação
punível:
I – a ofensa irrogada em juízo, na
discussão da causa, pela parte ou por
seu procurador;
II – a opinião desfavorável da crítica
literária, artística ou científica, salvo
quando inequívoca a intenção de
injuriar ou difamar;
III – o conceito desfavorável emitido
por
funcionário
público,
em
apreciação ou informação que preste
no cumprimento de dever do ofício.
Parágrafo único. Nos casos dos nºs I
e III, responde pela injúria ou pela
difamação quem lhe dá publicidade.
Retratação Art. 143. O querelado
que, antes da sentença, se retrata
cabalmente da calúnia ou da
difamação, fica isento de pena.
Parágrafo único. Nos casos em que
o querelado tenha praticado a calúnia
ou a difamação utilizando-se de meios
de comunicação, a retratação dar-seá, se assim desejar o ofendido, pelos
mesmos meios em que se praticou a
ofensa.
Art. 144. Se, de referências, alusões
ou frases, se infere calúnia, difamação
ou injúria, quem se julga ofendido
pode pedir explicações em juízo.
Aquele que se recusa a dá-las ou, a
critério do juiz, não as dá satisfatórias,
responde pela ofensa.
Art. 145. Nos crimes previstos neste
Capítulo
somente
se
procede
mediante queixa, salvo quando, no
caso do art. 140, § 2º, da violência
resulta lesão corporal.
Parágrafo
único.
Procede-se
mediante requisição do Ministro da
Justiça, no caso do inciso I do caput
do art. 141 deste Código, e mediante
representação do ofendido, no caso
do inciso do mesmo artigo, bem como
no caso do § 3º do art. 140 deste
Código.
1.1
Introdução
A honra é um bem considerado constitucionalmente inviolável.
O inciso X do art. 5º da Constituição Federal preconiza
expressamente:
X – são invioláveis a intimidade, a
vida privada, a honra e a imagem das
pessoas, assegurado o direito a
indenização pelo dano material e
moral decorrente da sua violação.
Sabemos que a honra é um conceito que se constrói durante
toda uma vida e que pode, em virtude de apenas uma única
acusação leviana, ruir imediatamente. Por essa razão, embora a
menção constitucional diga respeito tão somente à necessidade de
reparação dos danos de natureza civil, tradicionalmente, os Códigos
Penais têm evidenciado a importância que esse bem merece,
criando figuras típicas correspondentes aos crimes contra a honra.1
Muñoz Conde ressalta:
“A honra é um dos bens jurídicos mais sutis e mais difíceis de
apreender desde o ponto de vista jurídico-penal. Isso se deve,
sobretudo, a sua relativização. A existência de um ataque a
honra depende das mais diversas situações, da sensibilidade,
do grau de formação, da situação tanto do sujeito passivo como
do ativo, e também das relações recíprocas entre ambos, assim
como das circunstâncias do fato.”2
Costuma-se entender a honra e, consequentemente, sua
agressão sob os aspectos objetivo e subjetivo.
A chamada honra objetiva diz respeito ao conceito que o sujeito
acredita que goza no seu meio social. Segundo Carlos Fontán
Balestra, “a honra objetiva é o juízo que os demais formam de nossa
personalidade, e através do qual a valoram.”3
Já a honra subjetiva cuida do conceito que a pessoa tem de si
mesma, dos valores que ela se autoatribui e que são maculados
com o comportamento levado a efeito pelo agente.
A distinção tem repercussão prática, uma vez que, por
intermédio dela, se poderá visualizar o momento consumativo de
cada infração penal prevista pela lei, que atinge a honra da vítima,
conforme veremos mais adiante.
Fragoso, contudo, repudiando a diferença proposta pela
doutrina entre honra objetiva e subjetiva, diz:
“Na identificação do que se deva entender por honra, a doutrina
tradicionalmente distingue dois diferentes aspectos: um
subjetivo, outro, objetivo. Subjetivamente, honra seria o
sentimento da própria dignidade; objetivamente, reputação,
bom nome e estima no grupo social. Essa distinção conduz a
equívocos quando aplicada ao sistema punitivo dos crimes
contra a honra: não proporciona conceituação unitária e supõe
que a honra, em seu aspecto sentimental, possa ser objeto de
lesão. Como ensina Welzel, § 42, I, 1, o conceito de honra é
normativo e não fático. Ela não consiste na fatual opinião que o
mundo circundante tenha do sujeito (boa fama), nem na fatual
opinião que o indivíduo tenha de si mesmo (sentimento da
própria dignidade).”4
Na verdade, embora sirva a distinção, como afirmamos, para
melhor visualizarmos o momento de consumação de cada crime
contra a honra previsto no Código Penal, não podemos com ela
radicalizar. Isso porque honra subjetiva e honra objetiva são
conceitos que se interligam, gerando, na verdade, um conceito
único. Embora possamos identificá-los levando em consideração a
relação de precipuidade, ou seja, em que a honra subjetiva,
precipuamente, afeta o conceito que o agente faz de si mesmo, e a
honra objetiva, também precipuamente, atinge a reputação do
agente em seu meio social, não podemos considerá-las de forma
estanque, completamente compartimentadas.
Uma palavra que pode ofender a honra subjetiva do agente
também poderá atingi--lo perante a sociedade da qual faz parte.
Chamar alguém de mau-caráter, por exemplo, além de atingir a
dignidade do agente, macula sua imagem no meio social. Dessa
forma, somente podemos considerar a distinção entre honra objetiva
e honra subjetiva para identificar a classificação da figura típica,
bem como para poder apontar, com mais segurança, o momento de
consumação da infração penal pretendida pelo agente.
O Código Penal catalogou três delitos contra a honra, a saber:
calúnia (art. 138), difamação (art. 139) e injúria (art. 140).
Os dois primeiros, calúnia e difamação, na divisão acima
proposta, maculam a honra objetiva do agente, sendo que o último,
a injúria, atinge sua honra de natureza subjetiva.
1.2
Meios de execução nos crimes contra a honra
Hungria esclarece que o crime contra a honra:
“É praticado mediante a linguagem falada (emitida diretamente
ou reproduzida por meio mecânico), escrita (manuscrito,
datilografado ou impresso) ou mímica, ou por meio simbólico ou
figurativo. Verbis, scriptis, nutu et facto.”5
Importante salientar as formas pelas quais se pode cometer um
delito contra a honra, pois, dependendo do meio utilizado pelo
agente, poderá ser eliminada ou afirmada a possibilidade de
tentativa.
Uma vez escolhido o meio a ser utilizado na prática da infração
penal, estaremos, consequentemente, diante do raciocínio da
unissubsistência ou da plurissubsistência do crime. Sendo
unissubsistente, não se admitirá a tentativa; ao contrário, afirmandose a plurissubsistência do delito, em virtude dos meios
selecionados, será permitido o raciocínio correspondente ao
conatus.
Pode um agente, por exemplo, praticar um delito de injúria
somente com um simples assobio, que coloca em xeque a
masculinidade da vítima, ou mesmo escrevendo-lhe uma carta que
ofenda diretamente sua honra subjetiva.
O meio selecionado ao cometimento de qualquer um dos
crimes contra a honra será fundamental ao raciocínio pertinente ao
iter criminis.
1.3
Imunidades dos Senadores, Deputados e Vereadores6
Determina o art. 53 da Constituição Federal:
Art. 53. Os Deputados e Senadores
são invioláveis, civil e penalmente, por
quaisquer de suas opiniões, palavras
e votos.
Houve, portanto, previsão da chamada imunidade material para
os deputados e senadores que, na defesa de seu mandato,
poderão, sem temer qualquer retaliação civil ou penal, emitir
livremente opiniões e votar de acordo com a sua consciência.
Deve ser frisado que a aludida imunidade material não permite
que o parlamentar, fora de discussões que tenham interesse de
natureza política, agrida a honra das demais pessoas, sem que com
isso possa ser processado criminalmente. Não pode ser
responsabilizado pelo chamado delito de opinião. Ao contrário, pode
e deve ser responsabilizado quando agredir gratuitamente a honra
de outras pessoas sem que haja qualquer ligação com o exercício
do mandato.
Se um Deputado Federal, por exemplo, ao defender o projeto
de lei por ele criado, critica o Presidente da República
argumentando que o diploma legal que ele editou favoreceu a
corrupção, razão pela qual determinado tema deve ser
regulamentado rapidamente pelo Congresso, sob pena de se lesar o
erário, não poderá ser responsabilizado por qualquer infração contra
a honra do Presidente da República, pois seus argumentos e
críticas estão ligados diretamente a um interesse político, inerente
ao seu mandato.
Agora, imagine-se que, durante um discurso na Tribuna, o
mesmo Deputado diga que, além de lesar o erário, o Presidente da
República devia “cuidar melhor da sua mulher, pois todos em
Brasília têm conhecimento de suas traições.” Ora, pergunta-se, qual
a ligação política que existe entre difamar o Presidente da
República, apontando-o como um passivo marido traído, e o
exercício do mandato? Obviamente que nenhuma, razão pela qual
poderá o parlamentar ser processado pelo delito que cometeu.
Damásio conclui pela necessidade de dois requisitos para que
se reconheça a imunidade material:
“1º) que a ofensa seja cometida no exercício do mandato;
2º) que haja nexo de necessidade entre tal exercício e o fato
cometido.”7
Além da imunidade material dos deputados e senadores, a
Constituição Federal também entendeu por bem conceder-lhes a
imunidade formal, conforme se verifica pela redação contida nos §§
3º, 4º e 5º do art. 53, verbis:
§ 3º Recebida a denúncia contra
Senador ou Deputado, por crime
ocorrido após a diplomação, o
Supremo Tribunal Federal dará
ciência à Casa respectiva, que, por
iniciativa de partido político nela
representado e pelo voto da maioria
de seus membros, poderá, até a
decisão final, sustar o andamento da
ação.
§ 4º O pedido de sustação será
apreciado pela Casa respectiva no
prazo improrrogável de quarenta e
cinco dias do seu recebimento pela
Mesa Diretora.
§ 5º A sustação do processo
suspende a prescrição, enquanto
durar o mandato.
No que diz respeito aos vereadores, a Constituição Federal
limitou a imunidade àquela de natureza material, mesmo assim com
certas restrições, conforme se percebe da leitura do inciso VIII do
art. 29, que resguardou-lhes a inviolabilidade por opiniões, palavras
e votos no exercício do mandato e na circunscrição do Município.
Isso significa que, enquanto o Vereador estiver no exercício do
mandato e nos limites de seu Município, gozará da imunidade
material, com as ressalvas feitas acima quando discorremos sobre
os deputados e senadores, ou seja, deverá ser preservado para que
defenda, à altura, os interesses dos munícipes, sem que, para tanto,
possa agredir a honra de terceiros, imputando-lhes fatos ou
atributos pejorativos que fujam à natureza política, ou seja, que não
digam respeito ao bom e fiel cumprimento do mandato para o qual
fora eleito.
Entretanto, mesmo que na defesa do mandato, se o Vereador,
fora da circunscrição do seu Município, proferir palavras que, em
tese, configurem calúnia, difamação ou injúria, não poderá alegar a
imunidade material, em face da limitação contida na Constituição
Federal.
Para os vereadores não houve previsão constitucional da
imunidade formal, tampouco foro por prerrogativa de função, razão
pela qual poderão ser processados a qualquer tempo, sem que haja
possibilidade de suspensão da ação penal por seus pares, não se
podendo aplicar-lhes, por simetria, o § 3º do art. 53 da Constituição
Federal, dirigido tão somente aos deputados e senadores.
1.4
Do processo e do julgamento dos crimes de calúnia e
injúria, de competência do juiz singular
Os arts. 519 a 523 do Código de Processo Penal dispõem
sobre o processo e julgamento dos crimes de calúnia e injúria,
prevendo a possibilidade de reconciliação entre as partes, bem
como a arguição de exceção da verdade ou da notoriedade do fato.
1.5
Concurso de crimes
Pode ocorrer, e não é incomum que aconteça, que o agente, de
uma só vez venha a cometer alguns, ou mesmo todos, os delitos
contra a honra, numa relação de contexto. Assim, podemos
raciocinar com a hipótese em que o agente, v.g., durante uma
discussão que era presenciada por várias pessoas, impute
falsamente um fato criminoso à vítima, bem como profira
expressões injuriosas contra ela. Nesse caso, seria possível o
concurso de crimes? Entendemos que sim, desde que do
comportamento praticado pelo agente se possa deduzir a prática de
vários crimes contra a honra, seja ela objetiva ou subjetiva.
Em sendo possível o concurso de crimes, qual deles seria
aplicável, vale dizer, o concurso material, o concurso formal ou o
crime continuado? Rogério Sanches Cunha, analisando o tema,
aponta TRÊS posições, dizendo:
“a) temos decisões reconhecendo, na hipótese, a continuidade
delitiva, pois ofendem o mesmo bem jurídico (RT 545/344);
b) há corrente preferindo aplicar ao caso o princípio da
consunção, isto é, o crime mais leve é absorvido pelo mais
grave, não importando a espécie de honra ofendida (RT
682/363); c) pensamos possível o concurso de delitos somente
quando da(s) conduta(s) são atingidas honras diferentes.
Assim, admitimos o concurso, material ou formal, a depender
do caso, entre calúnia (difamação) e injúria.”8
Na verdade, somente a hipótese concreta nos permitirá apontar
a espécie de concurso de crimes a ser aplicada, pois, como bem
observado por Paulo Queiroz, “nesse assunto – conflito aparente de
tipos penais – não é possível, porém, avançar muito, pois tantas são
as variáveis envolvidas que a solução definitiva quase sempre
dependerá de como o caso concreto se apresentará.”9
2.
CALÚNIA
Calúnia Art. 138. Caluniar alguém,
imputando-lhe
falsamente
fato
definido como crime:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a
2 (dois) anos, e multa.
§ 1º Na mesma pena incorre quem,
sabendo falsa a imputação, a propala
ou divulga.
§ 2º É punível a calúnia contra os
mortos.
Exceção da verdade § 3º Admite-se
a prova da verdade, salvo:
I – se, constituindo o fato imputado
crime de ação privada, o ofendido não
foi
condenado
por
sentença
irrecorrível;
II – se o fato é imputado a qualquer
das pessoas indicadas no nº I do art.
141;
III – se do crime imputado, embora de
ação pública, o ofendido foi absolvido
por sentença irrecorrível.
2.1
Introdução
A calúnia é o mais grave de todos os crimes contra a honra
previstos pelo Código Penal.
Na narração da conduta típica, a lei penal aduz expressamente
à imputação falsa de um fato definido como crime.
Assim, podemos indicar os três pontos principais que
especializam a calúnia com relação às demais infrações penais
contra a honra, a saber:
a)
b)
c)
a imputação de um fato;
esse fato imputado à vítima deve, obrigatoriamente, ser
falso;
além de falso, o fato deve ser definido como crime.
Dessa forma, qualquer imputação de atributos pejorativos à
pessoa da vítima que não se consubstancie em fatos poderá
configurar o delito de injúria, mas não o de calúnia. Imagine-se, por
exemplo, a hipótese daquele que chama a vítima de ladrão. Dizer
que a vítima é um ladrão não se lhe está imputando a prática de
qualquer fato, mas, sim, atribuindo-lhe pejorativamente uma
qualidade negativa. Portanto, nesse caso, o crime cometido seria o
de injúria, e não o de calúnia.
Além do mais, esse fato deve ser falso, devendo o agente,
obrigatoriamente, ter o conhecimento dessa falsidade. Aquele que,
por exemplo, em conversa com um amigo, afirma, crendo no que
está falando, que a vítima, em decorrência do movimento intenso de
carros na porta de sua residência, bem como da diversidade de
horários em que isso acontece, conjugados com o seu rápido
enriquecimento, está praticando o tráfico ilícito de entorpecentes,
não poderá ser responsabilizado pelo crime de calúnia, uma vez
que, para o agente, o fato que imputava à vítima era verdadeiro,
ocorrendo aqui o chamado erro de tipo, que tem o condão de afastar
o dolo.
Também ocorrerá o delito de calúnia quando o fato em si for
verdadeiro, ou seja, quando houver, realmente, a prática de um fato
definido como crime, sendo que o agente imputa falsamente a sua
autoria à vítima.
Dessa forma, tanto ocorrerá a calúnia quando houver a
imputação falsa de fato definido como crime, como na hipótese de o
fato ser verdadeiro, mas falsa sua atribuição à vítima.
Finalmente, além de falso o fato, deve ser definido como crime.
O art. 1º da Lei de Introdução ao Código Penal nos fornece o critério
em virtude do qual podemos identificar quando estamos diante de
um crime, dizendo:
Art. 1º Considera-se crime a infração
penal a que a lei comina pena de
reclusão ou de detenção, quer
isoladamente, quer alternativa ou
cumulativamente com a pena de
multa; contravenção, a infração penal
a que a lei comina, isoladamente,
pena de prisão simples ou de multa,
ou
ambas,
alternativa
ou
cumulativamente.
Como se percebe, o Código Penal não nos forneceu um
conceito legal de crime, mas tão somente um critério para sua
identificação, mediante a análise da pena cominada no preceito
secundário de cada tipo penal incriminador.
Assim, a infração penal é o gênero, do qual são suas espécies
os crimes (ou delitos) e as contravenções penais.
Como o Código Penal se referiu expressamente, em seu art.
138, como elemento do crime de calúnia, à imputação de um fato
definido como crime, não podemos adotar, aqui, o conceito amplo
de infração penal, a fim de abranger no mencionado tipo tanto os
crimes/delitos como as contravenções penais.
Dessa forma, toda vez que o fato imputado falsamente à vítima
for classificado como contravenção penal, em respeito ao princípio
da legalidade, não poderemos sub-sumi-lo ao crime de calúnia,
devendo ser entendido como delito de difamação.
Imagine-se a hipótese em que o agente atribui à vítima o fato
de estar “bancando o jogo de bicho.” Estar atuando como banqueiro
do jogo do bicho configura-se na contravenção penal tipificada no
art. 58 do Decreto-Lei nº 6.259, de 10 de fevereiro de 1944, que diz:
Art. 58. Realizar o denominado “jogo
do bicho”, em que um dos
participantes, considerado comprador
ou ponto, entrega certa quantia com a
indicação
de
combinações
de
algarismos ou nome de animais, a
que correspondem números, ao outro
participante, considerado o vendedor
ou banqueiro, que se obriga mediante
qualquer sorteio ao pagamento de
prêmios em dinheiro.
Não poderia o agente, portanto, ser responsabilizado pelo delito
de calúnia, mas tão somente, como dissemos, pelo delito de
difamação.
Portanto, para que haja calúnia, deve existir sempre uma
imputação falsa de um fato, definido como crime. Caso não seja um
fato, mas, sim, um atributo negativo quanto à pessoa da vítima, o
crime será de injúria; sendo um fato que não se configure em crime,
podendo até mesmo ser uma contravenção penal, o delito será o de
difamação; acreditando o agente que o fato definido como crime é
verdadeiro, incorrerá em erro de tipo, afastando-se o dolo do art.
138, podendo, contudo, ainda ser responsabilizado pelo delito de
difamação, embora possa ser discutível essa classificação,
conforme veremos mais detidamente adiante.
Merece ser ressaltado, ainda, que o fato imputado pelo agente
à vítima deve ser determinado. Conforme salienta Aníbal Bruno:
“Não basta, por exemplo, dizer que a vítima furtou. É
necessário particularizar as circunstâncias bastantes para
identificar o acontecido, embora sem as precisões e minúcias
que, muitas vezes, só poderiam resultar de investigações que
não estariam ao alcance do acusador realizar.”10
Também não poderá configurar-se como calúnia a imputação
de fatos inverossímeis, como no exemplo daquele que atribui a
alguém a subtração da estátua do Cristo Redentor, afixada no morro
do Corcovado, na cidade do Rio de Janeiro.
2.2
Classificação doutrinária
Crime comum (uma vez que o tipo penal não exige qualquer
qualidade ou condição especial tanto para o sujeito ativo como para
o sujeito passivo); formal (uma vez que a sua consumação ocorre
mesmo que a vítima não tenha sido, efetivamente, maculada em
sua honra objetiva, bastando que o agente divulgue, falsamente, a
terceiro, fato definido como crime); doloso; de forma livre;
instantâneo; comissivo (podendo ser, também, omissivo impróprio,
desde que o agente goze do status de garantidor); monossubjetivo;
unissubsistente ou plurissubsistente (pois o ato de caluniar pode ser
concentrado ou, ainda, fracionado, oportunidade em que se poderá
visualizar a tentativa); transeunte (sendo que, em algumas
situações, poderá ser considerado não transeunte, a exemplo do
agente que divulga a terceito, por meio de carta, um fato definido
como crime falsamente atribuído à vítima); de conteúdo variado
(podendo o agente não somente caluniar a vítima, como também se
esforçar no sentido de divulgá-la a mais pessoas, devendo
responder, portanto, por uma só infração penal).
2.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
Bem juridicamente protegido pelo tipo penal que prevê o delito
de calúnia é a honra, aqui concebida objetivamente. Ou seja,
protege-se o conceito que o agente entende que goza em seu meio
social, ou, conforme assevera Cezar Roberto Bitencourt, “neste
dispositivo, o bem jurídico protegido, pela tipificação do crime de
calúnia, para aqueles que adotam essa divisão, é a honra objetiva,
isto é, a reputação do indivíduo, ou seja, é o conceito que os demais
membros da sociedade têm a respeito do indivíduo, relativamente a
seus atributos morais, éticos, culturais, intelectuais, físicos ou
profissionais.”11
Objeto material é a pessoa contra a qual são dirigidas as
imputações ofensivas à sua honra objetiva.
2.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
O art. 138 inicia a narração da figura típica dizendo: Caluniar
alguém [...]. Entende-se, outrossim, que qualquer pessoa pode
figurar como sujeito ativo ou como sujeito passivo do crime de
calúnia.
Entretanto, discute-se a possibilidade de inimputáveis, bem
como de pessoas jurídicas figurarem como sujeitos passivos do
delito em estudo.
No que diz respeito aos inimputáveis, seja a inimputabilidade
proveniente de doença mental ou de menoridade do agente, partese do pressuposto de que pelo fato de não praticarem crime, em
face da ausência de uma das características necessárias ao
reconhecimento da infração penal, vale dizer, a culpabilidade, não
poderiam ser considerados sujeitos passivos do delito de calúnia.
Hungria afasta essa possibilidade e conclui que os inimputáveis
somente podem ser sujeitos passivos dos crimes de difamação e
injúria:
“Quando a ofensa diz com a honra subjetiva (sentimento da
própria dignidade), a existência do crime deve ser condicionada
à capacidade de perceber a injúria por parte do sujeito passivo;
quando, porém, a ofensa diz com a honra objetiva, o crime
existe sempre, pois não se pode deixar de reconhecer que os
incapazes em geral têm ou conservam uma certa reputação,
que a lei deve proteger. Pouco importa, em qualquer caso, a
inimputabilidade do sujeito passivo. Apesar de inimputáveis, os
incapazes podem ser expostos à aversão ou irrisão pública, e
seria iníquo deixar-se impune o injuriador ou difamador, como
se a inimputabilidade, no dizer de ALTAVILA, fosse uma culpa
que se tivesse de expiar com a perda da tutela penal. Convém
observar que as ofensas aos penalmente irresponsáveis
(enfermos ou deficientes mentais, ou menores de 18 anos)
somente como injúria ou difamação podem ser classificadas,
excluídas a configuração de calúnia, pois esta é a falsa
imputação de prática responsável de um crime.”12
Apesar da força do argumento e da envergadura do seu
subscritor, somos forçados a discordar do renomado penalista.
Na verdade, quando buscamos saber se um inimputável pode
ser sujeito passivo do crime de calúnia, seja essa inimputabilidade
originária de doença mental, seja de menoridade penal, devemos,
inicialmente, interpretar a expressão contida na última parte do art.
138 do Código Penal, que afirma que a calúnia diz respeito à
imputação falsa de um fato definido como crime.
Entendemos que o diploma repressivo tão somente exige a
imputação a alguém de um fato definido como crime, mesmo que
essa pessoa, dada sua incapacidade de culpabilidade, não possa,
tecnicamente, cometer o crime que se lhe imputa, para efeitos de
responsabilidade penal. O que se exige, frise-se, é a imputação de
um fato que se encontra na lei penal definido como crime.
A partir dessa ilação, devemos trabalhar com o princípio da
razoabilidade.
Raciocinemos: pode-se imputar falsamente a um adolescente,
com 17 anos de idade, a prática de um fato definido como um crime
de furto? Imagine-se que o agente, autor do delito contra a honra,
tenha afirmado falsamente a um terceiro que o mencionado
adolescente levara a efeito a subtração de um aparelho de DVD.
Pode-se, razoavelmente, acreditar que uma pessoa com 17 anos de
idade tenha praticado a subtração do mencionado aparelho? A
resposta só pode ser afirmativa. O que se está atribuindo ao
adolescente é tão somente a prática de um fato, ou seja, a
subtração de coisa alheia móvel, definido como crime (no caso
aquele previsto pelo art. 155 do Código Penal).
Agora, imagine-se a hipótese em que o agente tenha atribuído
a um recém-nascido, ou seja, uma criança com poucos meses de
vida, a prática do mencionado delito de furto (só que agora de uma
mamadeira, obviamente...). Seria razoável acreditar que uma
criança de seis meses de idade, ou até mesmo de um ano de vida,
tenha praticado um fato definido como crime? Nessa hipótese,
cairíamos naquilo que discutimos no que diz respeito à ausência de
verossimilhança da imputação.
Portanto, concluindo, nada impede que, de acordo com o
princípio da razoabilidade, se entenda que um inimputável possa,
em tese, praticar um fato descrito como crime na lei penal, mesmo
que por ele não possa ser responsabilizado criminalmente.
Também se discute sobre a possibilidade que tem a pessoa
jurídica de figurar como sujeito passivo do crime de calúnia.
Antes do advento da Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998,
que dispôs sobre as sanções penais e administrativas derivadas de
condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, tinha-se por
absoluta a impossibilidade de se imputar à pessoa jurídica a prática
de fato definido como crime, pois, conforme afirma Muñoz Conde
analisando o art. 205 do Código Penal Espanhol, “sujeito passivo da
calúnia só pode ser a pessoa física, já que não cabe imputar a uma
pessoa jurídica a comissão de um delito: societas delinquere non
potest.”13
Luiz Regis Prado, enfaticamente, afirma:
“Sujeito passivo é tão somente a pessoa física. A ofensa
irrogada à pessoa jurídica reputa-se feita aos que a
representam ou dirigem. Não há falar em calúnia contra pessoa
jurídica, já que o ordenamento jurídico-penal pátrio, fundado em
um Direito Penal da conduta, da culpabilidade e da
personalidade da pena, veda a responsabilização dos entes
morais.”14
Na verdade, não se pode negar que a pessoa jurídica possua
honra objetiva, sendo esta, até mesmo, a razão do seu sucesso
perante a população em geral. Quando se começa a desconfiar das
atividades de determinada empresa, colocando-se em “xeque” a sua
lisura, o seu comportamento perante os consumidores etc., em geral
tal empresa está fadada ao fechamento. Ao contrário, quando se
escuta na sociedade que determinada empresa goza de um bom
conceito, a tendência natural é a de crescimento.
Assim, existe honra objetiva a ser preservada, mesmo tratandose de pessoa jurídica.
Até o advento da Lei nº 9.605/98, quando se atribuía a uma
pessoa jurídica a prática de um fato definido como crime, ante a
absoluta impossibilidade de cometê-lo, des-classificava-se o fato
para o delito de difamação. Assim, qualquer fato ofensivo à honra
objetiva da pessoa jurídica era entendido como difamação, e nunca
como calúnia.
Contudo, com o surgimento da mencionada Lei nº 9.605/98,
que criou tipos penais específicos para as pessoas morais, hoje em
dia tal impossibilidade absoluta foi afastada, permitindo-se o
raciocínio com relação ao crime de calúnia toda vez que o fato
falsamente atribuído à pessoa jurídica disser respeito a um crime de
natureza ambiental.
Alguém, por exemplo, que divulgue uma notícia falsa, no
sentido de que determinada pessoa jurídica está poluindo o meio
ambiente em proporções tais que possa resultar em danos à saúde
humana, poderá ser responsabilizado pelo delito de calúnia, uma
vez que esse fato está descrito no art. 54 da Lei Ambiental como
crime.
Assim, poderá a pessoa jurídica figurar como sujeito passivo do
crime de calúnia desde que o crime a ela atribuído falsamente seja
tipificado na Lei nº 9.605/98. Nas demais hipóteses, ou seja, fora da
Lei Ambiental, o fato deverá ser considerado crime de difamação,
em face da impossibilidade de as demais infrações penais serem
praticadas pelas pessoas morais.
Paulo Queiroz, no entanto, não limita a possibilidade de poder
figurar a pessoa jurídica como vítima do delito de calúnia somente
nos crimes ambientais, dizendo:
“Que a empresa é passível, sim, de sofrer imputação de fato ou
qualidade desonrosa, atribuição de delito, inclusive, e não
necessariamente delito ambiental.
Primeiro, porque o Código fala de atribuição de ‘fato definido
como crime’ e não de ‘prática de crime’. Segundo, porque o
sucesso empresarial depende grandemente da sua reputação
social (fama) no mercado em que atua. O bom nome da
empresa é, portanto, tão ou mais importante do que o nome da
pessoa física. Terceiro, porque, se a pessoa jurídica é passível
de sofrer ‘dano moral’ (Súmula 227 do STJ), é perfeitamente
possível que esse dano moral assuma também caráter
criminoso.”15
2.5
Consumação e tentativa
A calúnia se consuma quando um terceiro, que não o sujeito
passivo, toma conhecimento da imputação falsa de fato definido
como crime.
Dependendo do meio pelo qual é executado o delito, há
possibilidade de se reconhecer a tentativa.
Magalhães Noronha preleciona:
“Em regra, opinam os autores pela inadmissibilidade da calúnia
oral: ou a imputação é proferida ou não; melhor se diria: ou é
conhecida ou não. No caso de alguém imputar oralmente um
crime a outrem e não ser ouvido é como se não o tivesse feito,
perdendo interesse a questão pela impossibilidade de prova.
Na calúnia por escrito não ocorre o mesmo. Já agora existe um
iter – não mais se trata de crime de único ato (unico actu
perficiuntur) – que pode ser fracionado ou dividido. Se uma
pessoa, v.g., prepara folhetos caluniosos contra outra e está
prestes a distribuí-los, quando é interrompida por esta, há, por
certo, tentativa. Houve início de realização do tipo. Este não se
integralizou, por circunstâncias alheias à vontade do agente.”16
É fundamental, a fim de se verificar a possibilidade de tentativa
no delito de calúnia, como em geral em qualquer outra infração
penal, que se aponte, com segurança, os atos iniciais de execução.
Modificando um pouco o exemplo fornecido por Noronha,
imagine-se a hipótese em que o agente seja surpreendido, ainda em
sua residência, preparando-se para levar a efeito a distribuição dos
folhetos que continham falsas imputações definidas como crime,
que eram atribuídas à futura vítima. Nesse caso, entendemos que
não se pode falar em tentativa, tratando-se, portanto, de atos
meramente preparatórios.
Vale frisar, por oportuno, apesar da impossibilidade de se cuidar
de forma estanque da divisão entre honra objetiva e honra subjetiva,
que no caso da calúnia podemos chegar à conclusão de que o delito
se consuma quando terceiro, que não a vítima, toma conhecimento
da imputação falsa de fato definido como crime, justamente porque
por intermédio do tipo penal de calúnia se procura assegurar a
reputação do agente no seu meio social.
Dessa forma, possui utilidade prática a divisão entre honra
objetiva e honra subjetiva, uma vez que nos auxilia a apontar o
momento de consumação de cada delito – calúnia, difamação e
injúria – levando em consideração o que se quer proteger em cada
um deles.
Merece destaque, ainda, o fato de que para a consumação do
delito de calúnia a vítima não precisa sentir-se atingida em sua
honra objetiva, bastando que o agente atue com essa finalidade.
2.6
Elemento subjetivo
O delito de calúnia somente admite a modalidade dolosa, ou
seja, o chamado animus calumniandi, a vontade de ofender a honra
do sujeito passivo, sendo admitidas, entretanto, quaisquer
modalidades de dolo, seja ele direto ou mesmo eventual.
Pode ocorrer que, embora não tendo certeza da veracidade do
fato definido como crime que atribui à vítima, o agente, ainda assim,
mesmo correndo o risco de ser falsa a informação que divulga, a
profere do mesmo jeito, agindo, pois, com dolo eventual.
Não atuando o agente com a finalidade de agredir a honra da
vítima, mas tão somente com o chamado animus jocandi, não
restará configurada a infração penal.
Hungria esclarece:
“Uma palavra ou asserção flagrantemente injuriosa ou
difamatória na sua objetividade pode ser proferida sem vontade
de injuriar ou difamar, sem o propósito de denegrir a honra
alheia. Se, por exemplo, jocandi animo, chamo ‘velhaco’ a um
amigo íntimo ou lhe atribuo a paternidade de uma criança
abandonada, o fato, na sua objetividade, constitui uma injúria
ou uma difamação; mas, subjetivamente, não passa de um
gracejo. Não me faltou a consciência do caráter lesivo da
afirmação (nem a vontade de fazer a afirmação) e, no entanto,
seria rematado despautério reconhecer-se, no caso, um crime
contra a honra, por isso mesmo que inexistente o pravus
animus, o animus delinquenti, o animus injuriandi vel
diffamandi.”17
O mesmo seja dito com relação à calúnia.
Vale lembrar que dolo significa consciência e vontade de
praticar a conduta descrita no tipo penal. Significa, no caso em
estudo, ter vontade, efetivamente, de ofender a vítima, maculando a
sua honra em meio à sociedade em que vive. Se não há essa
intenção, restará, certamente, afastado o necessário elemento
subjetivo do crime.
Não há previsão de modalidade culposa para o delito de
calúnia.
2.7
Agente que propala ou divulga a calúnia
Diz o § 1º do art. 138 do Código Penal:
§ 1º Na mesma pena incorre quem,
sabendo falsa a imputação, a propala
ou divulga.
Ao contrário do que ocorre com a previsão contida no caput do
art. 138 do Código Penal, em que o autor da calúnia pode também
atuar com dolo eventual, no parágrafo transcrito somente se admite
o dolo direto, uma vez que o agente que propala ou divulga a
calúnia da qual teve ciência deve conhecer da falsidade da
imputação.
A dúvida com relação à veracidade dos fatos definidos como
crime que se imputam à vítima poderá desclassificar a infração
penal para aquela prevista pelo art. 139 do Código Penal, vale dizer,
a difamação.
Damásio, levando a efeito inicialmente a distinção entre
propalar e divulgar, preleciona:
“Propalar é relatar verbalmente. Divulgar é relatar por qualquer
outro meio. Nesses subtipos de calúnia é necessário que o
sujeito pratique o fato com dolo direto de dano. O dolo eventual
não é suficiente. O tipo exige que conheça a falsidade da
imputação. Enquanto no tipo fundamental, previsto no caput,
admite-se o dolo direto ou eventual, este quando o sujeito tem
dúvida sobre a imputação, nos subtipos é imprescindível que
tenha vontade direta de causar dano à honra alheia,
conhecendo perfeitamente a falsidade da imputação.”18
2.8
Calúnia contra os mortos
O § 2º do art. 138 do Código Penal diz ser punível a calúnia
contra os mortos.
Inicialmente, vale a observação de que o Capítulo V, onde estão
consignados os crimes contra a honra, está contido no Título I do
Código Penal, que prevê os chamados “crimes contra a pessoa.”
Certo é que o morto não goza mais do status de pessoa, como
também é certo que não mais se subsume ao conceito de alguém,
previsto no caput do art. 138 do diploma repressivo.
Contudo, sua memória merece ser preservada, impedindo-se,
com a ressalva feita no § 2º acima mencionado, que também seus
parentes sejam, mesmo que indiretamente, atingidos pela força da
falsidade do fato definido como crime, que lhe é imputado.
O Código Penal somente ressalvou a possibilidade de calúnia
contra os mortos, não admitindo as demais modalidades de crimes
contra a honra, vale dizer, a difamação e a injúria.
2.9
Exceção da verdade
Chama-se exceção da verdade a faculdade atribuída ao
suposto autor do crime de calúnia de demonstrar que, efetivamente,
os fatos por ele narrados são verdadeiros, afastando-se, portanto,
com essa comprovação, a infração penal a ele atribuída.
O momento oportuno para se erigir a exceptio veritatis é o da
resposta do réu, que poderá ser o previsto pelo art. 396 do Código
de Processo Penal, com a nova redação que lhe foi dada pela Lei nº
11.719, de 20 de junho de 2008, ou o constante do art. 81 da Lei nº
9.099/95.
O art. 523 do Código de Processo Penal estabelece, ainda,
que, quando for oferecida a exceção da verdade, o querelante
poderá contestá-la no prazo de 2 (dois) dias, podendo ser inquiridas
as testemunhas arroladas na queixa, ou outras indicadas naquele
prazo, em substituição às primeiras, ou para completar o máximo
legal.
O § 3º do art. 138 do Código Penal, contudo, ressalva as
situações em virtude das quais se torna impossível a arguição da
exceção da verdade, dizendo:
§ 3º Admite-se a prova da verdade,
salvo:
I – se, constituindo o fato imputado
crime de ação privada, o ofendido não
foi
condenado
por
sentença
irrecorrível;
II – se o fato é imputado a qualquer
das pessoas indicadas no nº I do art.
141;
III – se do crime imputado, embora de
ação pública, o ofendido foi absolvido
por sentença irrecorrível.
Na primeira hipótese capitulada, não há possibilidade de
arguição da exceptio veritatis quando se tratar de crime cuja ação
penal seja de iniciativa privada – propriamente dita ou
personalíssima – se o ofendido não foi definitivamente condenado,
quer dizer, se a sentença penal condenatória não houver transitado
em julgado. Enquanto estiver pendente de julgamento a ação penal,
seja em primeiro grau ou em grau de recurso, não poderá ser
erigida a exceção da verdade. Segundo a opinião dominante,
tampouco poderá ser arguida a exceptio veritatis caso o ofendido
não tenha sequer sido processado criminalmente pelo fato definido
como crime que lhe imputa o agente.
Hungria, esclarecendo a posição assumida pela lei penal, diz:
“A primeira exceção explica-se pelo raciocínio de que é um
simples corolário do próprio critério de política criminal que
informa o instituto da ação privada. Se, no tocante a certos
crimes, a lei, para evitar ao ofendido maior escândalo ou
desassossego com o strepitus judicii, ou para ensejar sua
reconciliação com o ofensor, deixa ao seu exclusivo arbítrio a
iniciativa ou prosseguimento da ação penal, não se
compreenderia que fosse outorgada a terceiros a faculdade de
proclamar o fato coram populo e comprová-lo coram judice.
Incidiria a lei em flagrante contradição, se tal permitisse. A ratio
essendi da proibição da exceptio veritatis, aqui, somente cessa
quando já sobreveio condenação irrecorrível do sujeito passivo.
Não há falar-se, no caso, em cerceamento de defesa. Se,
contrabalançando os interesses em jogo, a lei entendeu em
vedar a demonstratio veri, não era dado ao réu ignorar a
ressalva legal e, se não se abstém de formular a acusação,
incorrendo na sanção penal, imputet sibi.”19
No mesmo sentido, Luiz Regis Prado afirma:
“A impossibilidade de arguição da exceção da verdade, in casu,
é justificada pelo princípio da disponibilidade da ação penal
privada. Caberá ao ofendido ou a quem tenha qualidade para
representá-lo intentá-la mediante queixa (arts. 100, § 2º, CP;
30, CPP).”20
Apesar da autoridade dos mencionados autores, bem como da
força dos raciocínios por eles expendidos, ousamos discordar da
posição a que chegaram, uma vez que, analisando o fato sob um
enfoque garantista, não seria razoável permitir a condenação de
alguém que está sendo processado por ter, supostamente, praticado
o crime de calúnia, imputando a outrem um fato verdadeiro definido
como crime, não importando se a ação é ou não de iniciativa privada
propriamente dita ou mesmo personalíssima.
É que a Constituição da República, promulgada em 5 de
outubro de 1988, no Capítulo correspondente aos Direitos e
Garantias Fundamentais, determinou, no inciso LV do seu art. 5º:
LV – aos litigantes, em processo
judicial ou administrativo, e aos
acusados em geral são assegurados
o contraditório e ampla defesa, com
os meios e recursos a ela inerentes.
Como se percebe sem muito esforço, o inciso I do § 3º do art.
138 do Código Penal, ao proibir a exceção da verdade quando o
ofendido não tenha sido condenado por sentença irrecorrível, deve
ser reinterpretado de acordo com o enfoque constitucional do
princípio da ampla defesa.
Segundo nosso raciocínio, caso exista uma ação penal em
curso, visando à apuração de um delito que se atribui à suposta
vítima da calúnia, deverá o julgador suspender o curso da ação
penal que apura o delito de calúnia, aguardando-se a confirmação
da existência ou não do fato, que se entende como falso, definido
como crime.
O que não se pode, contudo, é simplesmente impedir a defesa
do querelado, ou seja, daquele que está sendo submetido a um
processo penal, simplesmente pelo fato de não ter havido, ainda,
trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Seria um enorme contrassenso impedir a sua defesa,
condenando-o pela prática do delito de calúnia para, ao final,
quando já tivesse transitado a sentença penal condenatória que teve
o condão de apontar a prática do delito que se atribuía à suposta
vítima, obrigá-lo a ingressar novamente em juízo com uma ação de
revisão criminal, uma vez que, sendo comprovado o cometimento do
delito que imputou à suposta vítima, afastada estará a elementar
falsamente, exigida pelo tipo penal do art. 138 do Código Penal.
Dessa forma, a primeira conclusão a que chegamos é que
quando existe uma ação penal de iniciativa privada em andamento,
que busca apurar a infração penal que é atribuída à suposta vítima
do delito de calúnia, deveria o julgador, que se encontra à frente do
processo que apura o delito contra honra, suspender o andamento
da ação penal, admitindo a exceptio veritatis, a fim de que sua
decisão sobre a existência ou não do delito de calúnia fique
dependendo da conclusão a que se chegar nos autos em que se
apura o crime atribuído pelo agente à suposta vítima.
E quando sequer existir ação penal?
A lei penal prevê a impossibilidade de arguição da exceção da
verdade quando, constituindo o fato imputado crime de ação
privada, o ofendido não foi condenado por sentença irrecorrível.
E claro que quando a suposta vítima do crime de calúnia não
tiver sido processada criminalmente não haverá decisão
condenatória transitada em julgado. Contudo, isso impediria a
arguição da exceção da verdade, com a finalidade de demonstrar
que os fatos a ele imputados são verdadeiros, o que conduziria à
atipicidade com relação ao delito de calúnia?
Por mais uma vez temos de erigir a bandeira do princípio da
ampla defesa, ao contrário do que aduz a doutrina amplamente
majoritária, conforme podemos constatar acima através das
posições de Hungria e Luiz Regis Prado.
Contudo, não seria lógico, razoável, condenar uma pessoa pela
prática de um delito que não cometeu simplesmente por presumi-lo
como ocorrido, em face da impossibilidade que tem de levar a efeito
a prova de sua alegação.
É claro que aquele que é vítima de um crime, cuja persecução
penal depende de sua iniciativa, não pode ser obrigado a ingressar
em juízo a fim de apurar a prática de uma infração penal de que foi
vítima e da qual, na verdade, pretende esquecer-se, não se
submetendo ao constrangimento de uma ação penal.
Entretanto, outra coisa é condenar alguém pelo simples fato de
ter divulgado a prática de um delito que, efetivamente, ocorreu, mas
que, por razões particulares, não foi objeto de investigação.
Estaríamos, aqui, violando não somente o princípio da ampla
defesa, mas também o da presunção de inocência. Na verdade, ao
impedirmos o agente de demonstrar que o fato por ele atribuído à
suposta vítima, definido como crime, é verdadeiro, estamos
presumindo que ele seja culpado.
O inciso II do § 3º do art. 138 do Código Penal também não
admite a exceção da verdade se o fato é imputado a qualquer das
pessoas indicadas no nº I do art. 141, vale dizer, o Presidente da
República ou chefe de governo estrangeiro.
Na verdade, também temos de reinterpretar tal dispositivo de
acordo com os novos enfoques constitucionais.
Quando se argui a exceptio veritatis, os sujeitos da ação penal
mudam de posição. O querelante passa a ser chamado de excepto
e o querelado, ou seja, o réu da ação penal que visa a apurar seu
suposto crime contra a honra, passa a ser o excipiente.
No caso de crime atribuído ao Presidente da República, bem
como ao chefe de governo estrangeiro, não seria razoável, dadas as
posições que ocupam, colocá-los como réus em acusações
propostas por quem não possui legitimidade constitucional para
tanto.
Conforme esclarecimentos de Cezar Roberto Bitencourt:
“Aqui, com essa ressalva, pretende-se somente proteger o
cargo e a função do mais alto mandatário da Nação e dos
chefes de governos estrangeiros. A importância e a dignidade
da função de chefe da Nação asseguram-lhe uma espécie sui
generis de ‘imunidade’, garantindo que somente poderá ser
acusado de ações criminosas pelas autoridades que tenham
atribuições para tanto e perante a autoridade competente.
Estende-se o mesmo tratamento ao chefe do governo
estrangeiro, abrangendo não apenas o chefe de Estado, mas
também o chefe de governo (primeiro-ministro, presidente de
conselho, presidente de governo etc.). A imputação da prática
de fato criminoso, mesmo verdadeiro, vilipendiaria a autoridade
que desempenha e exporia ao ridículo o presidente da
República, além de levá-lo a um vexame incompatível com a
grandeza de seu cargo. Na verdade, o chefe de Estado ou o
chefe de governo de um país, de certa forma, personifica o
Estado que representa, e as boas relações internacionais não
admitem que qualquer cidadão de um país possa impunemente
atacar a honra de um chefe de governo estrangeiro, mesmo
que os fatos sejam verdadeiros, coisa que deve ser resolvida
nos altos escalões diplomáticos; em caso contrário, pode
sobrevir até mesmo o rompimento de relações diplomáticas.”21
Embora o raciocínio do ilustre penalista gaúcho seja brilhante,
ousamos dele discordar, ao menos parcialmente.
Certo é que aquele que não tem legitimidade para tanto não
poderá levar o Presidente da República, por exemplo, ao banco dos
réus, invertendo os polos da relação processual anteriormente
formada com o início da ação penal relativa ao delito de calúnia no
qual o Presidente figurava como vítima.
Outra coisa, contudo, é condenar um inocente que divulgou um
fato verdadeiro, sendo, portanto, atípico o seu comportamento,
simplesmente porque o autor do crime é o Presidente da República.
Nesse caso, embora não possamos admitir a exceptio veritatis,
com inversão dos papéis anteriores, não podemos aceitar
passivamente a condenação de um inocente, pre-sumindo-se
verdadeiros os fatos contra ele imputados na ação penal que busca
apurar o delito de calúnia.
Tal posição também colidiria com os princípios constitucionais
da ampla defesa e da presunção de inocência.
Nesse caso, a solução seria permitir, mesmo que tão somente
em sede de defesa, a comprovação do crime que se atribui ao
Presidente da República ou ao chefe de governo estrangeiro. Uma
vez comprovada a prática do delito, o agente deverá ser absolvido
na ação penal relativa ao crime de calúnia; não tendo sucesso
nessa comprovação, a condenação será imposta, se ficar
comprovado que sabia da falsidade dos fatos por ele imputados à
vítima, tidos como criminosos.
O que não se pode, portanto, é impedir-lhe a defesa, mesmo
que no seu exercício venha a se comprovar a prática de um crime
levado a efeito pelo chefe supremo do Poder Executivo. Sendo
comprovado o delito praticado pelo Presidente da República, deverá
o julgador, ou mesmo o representante do Ministério Público, enviar
cópia dos autos àquele que tem atribuições para, junto ao Tribunal
Competente, dar início a uma outra ação penal.
Nesse sentido, Paulo Queiroz, em reforço ao nosso raciocínio,
aduz, corretamente a nosso ver, que:
“Os incisos I e II não foram recepcionados pela Constituição de
1988, por afrontarem, em especial, o direito ao contraditório e à
ampla defesa e, pois, possibilitarem a condenação de pessoa
inocente e por fato que, a rigor, não configura crime algum.”22
No inciso III do § 3º do art. 138 do Código Penal, proíbe-se a
prova da verdade quando o ofendido tiver sido absolvido em
sentença irrecorrível do crime que lhe atribuiu o agente.
Aqui, embora o inciso III faça menção à ação de iniciativa
pública, havendo absolvição, por sentença irrecorrível, não
importando a natureza da ação penal – se pública ou privada a sua
iniciativa –, não poderá ser arguida a exceção da verdade, uma vez
que o fato já fora decidido judicialmente.
Como bem ressalvado por Fragoso, “trata-se de respeitar o
pronunciamento judicial (res judicata pro veritate habetur), cuja
veracidade está protegida por presunção absoluta, que não admite
prova em contrário.”23
2.10
Pena, ação penal, competência para julgamento e
suspensão condicional do processo
A pena cominada ao delito de calúnia é a de detenção, de 6
(seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, aplicando-a também àquele
que, sabendo falsa a imputação, a propala ou divulga, conforme
determina o § 1º do art. 138 do Código Penal.
A pena será aumentada de um terço, nos termos do caput do
art. 141 do Código Penal, se a calúnia for cometida:
I – contra o Presidente da República,
ou
contra
chefe
de
governo
estrangeiro;
II – contra funcionário público, em
razão de suas funções, ou contra os
Presidentes do Senado Federal, da
Câmara dos Deputados ou do
Supremo Tribunal Federal;
III – na presença de várias pessoas,
ou por meio que facilite a sua
divulgação;
IV – contra pessoa maior de 60 anos
ou portadora de deficiência.
Poderá, ainda, vir a ser dobrada, se a calúnia for cometida
mediante paga ou promessa de recompensa, conforme determina o
§ 1º do art. 141 do diploma repressivo.
Nos termos do § 2º do referido artigo, se o crime é cometido ou
divulgado em quaisquer modalidades das redes sociais da rede
mundial de computadores, aplica-se em triplo a pena.
A ação penal será de iniciativa privada, conforme determina o
art. 145 do Código Penal, sendo, contudo, de iniciativa pública
condicionada à requisição do Ministro da Justiça, quando o delito for
praticado contra o Presidente da República ou chefe de governo
estrangeiro, ou de iniciativa pública condicionada à representação
do ofendido, quando o crime for cometido contra funcionário público,
em razão de suas funções.
O STF, por meio da Súmula nº 714, assim se posicionou:
Súmula nº 714. É concorrente a legitimidade do ofendido,
mediante queixa, e do Ministério Público, condicionada à
representação do ofendido, para a ação penal por crime contra
a honra de servidor público em razão do exercício de suas
funções.
Compete, pelo menos inicialmente, ao Juizado Especial
Criminal o processo e julgamento do delito tipificado no art. 138 do
Código Penal, desde que não seja aplicado o art. 141 do mesmo
diploma legal, tendo em vista que a pena máxima cominada em
abstrato não ultrapassa o limite de 2 (dois) anos.
Será possível a confecção de proposta de suspensão
condicional do processo, nos termos do art. 89 da Lei nº 9.099/95.
2.11
Destaques
2.11.1
Pessoas desonradas e crime impossível
Temos tido notícias, principalmente nos últimos tempos em que
a liberdade de imprensa atingiu o seu ponto máximo, da grande
quantidade de pessoas, até então fora de “qualquer suspeita”,
acusadas de incontáveis infrações penais, principalmente contra a
Administração Pública, que sofre com aqueles que, ao invés de gerir
a coisa pública para o povo, a transformam em “coisa particular”,
dela extraindo tudo o que seja possível para o seu interesse egoísta.
Há casos de pessoas que já ficaram estigmatizadas em razão
da quantidade enorme de infrações penais de que são acusadas.
Assim, pergunta-se: seria possível a arguição, mesmo que
exagerada, da tese do crime impossível, quando tais pessoas se
dissessem vítimas de crime de calúnia, por exemplo, ao argumento
de que sua honra já fora completamente aniquilada, dada a
quantidade de fatos a ela lesivos que lhes são imputados, havendo,
dessa forma, absoluta impropriedade do objeto?
Obviamente que não. Por mais que no nosso íntimo
quiséssemos que a resposta fosse sim, Aníbal Bruno explica que:
“Também se tem de reconhecer a possibilidade de crimes
dessa natureza em relação a quem perdeu a estima pública.
Ninguém é privado completamente da honra.
Medidas punitivas como a declaração de infâmia ou a morte
civil, com a desonra e a perda total da capacidade jurídica, não
se conciliam com o espírito do Direito moderno. Por mais baixo
que tenha caído o indivíduo, haverá sempre em algum recanto
do seu mundo moral um resto de dignidade, que a calúnia, a
difamação ou a injúria poderão ofender e que o Direito não
deve deixar ao desamparo. Ninguém ficará ligado a uma
espécie de pelourinho, onde seja exposto sem defesa ao
vilipêndio de qualquer um.”24
2.11.2
Calúnia implícita ou equívoca e reflexa
É possível que o agente, ao atribuir a alguém falsamente a
prática de um fato definido como crime, não o faça de forma
expressa, podendo ser a calúnia, assim, considerada implícita ou
equívoca e reflexa.
Implícita ou equívoca seria a calúnia quando o agente, embora
não expressamente, permitisse que o interlocutor entendesse a
mensagem dada, que contém a imputação falsa de um fato definido
como crime, como no exemplo daquele que diz: “Eu, pelo menos,
nunca tive relações sexuais à força com nenhuma mulher”, dando a
entender que o agente havia praticado um crime de estupro.
Reflexa, no exemplo de Hungria, pode ocorrer quando o agente
diz, por exemplo, que um juiz decidiu o fato dessa forma porque foi
subornado.25 Com relação ao juiz, a calúnia é entendida como
expressa, uma vez que o agente está a ele atribuindo falsamente
um fato definido como delito de corrupção passiva, e reflexa no que
diz respeito àquele beneficiado com a decisão, uma vez que teria
praticado, a seu turno, o delito de corrupção ativa.
2.11.3
Exceção de notoriedade
Diz o art. 523 do Código de Processo Penal:
Art. 523. Quando for oferecida a exceção da verdade ou da
notoriedade do fato imputado, o querelante poderá contestar a
exceção no prazo de 2 (dois) dias, podendo ser inquiridas as
testemunhas arroladas na queixa, ou outras indicadas naquele
prazo, em substituição às primeiras, ou para completar o
máximo legal.
A finalidade da exceção da notoriedade do fato é demonstrar
que, para o agente, o fato que atribuía à vítima era verdadeiro,
segundo foi induzido a crer. Atua, portanto, em erro de tipo,
afastando-se o dolo e, consequentemente, eliminando a infração
penal.
2.11.4
Calúnia proferida no calor de uma discussão
Vimos que para que se possa caracterizar o delito de calúnia é
preciso que o agente atue com o chamado animus diffamandi vel
injuriandi, ou seja, o animus calumniandi, a vontade de caluniar, de
imputar a alguém falsamente um fato definido como crime.
Pode ser que isso ocorra no calor de uma discussão. Esse fato,
ou seja, a exaltação do agente no momento em que profere
falsamente o fato definido como crime, terá o condão de eliminar o
seu dolo, afastando, consequentemente, a infração penal?
Embora tenha discussão a respeito, entendemos que não. Não
importa se os fatos foram mencionados quando o agente se
encontrava calmo ou se os proferiu no calor de alguma discussão. O
que importa, de acordo com a exigência típica, é que tenha atuado
com o elemento subjetivo exigido pelo delito de calúnia, ou seja,
agiu com o fim de macular a honra objetiva da vítima, imputando-lhe
falsamente um fato definido como crime.
2.11.5
Presença do ofendido
Exige-se a presença do ofendido para fins de configuração do
delito de calúnia? Não, uma vez que, conforme dissemos, a calúnia
atinge a chamada honra objetiva da vítima, isto é, o conceito que ela
goza no seu meio social.
Em razão disso, o delito se consuma quando terceiro, que não
a vítima, toma conhecimento dos fatos falsos a ela atribuídos,
definidos como crime.
É claro que, por razões óbvias, tais fatos devem chegar ao
conhecimento da vítima para que ela proponha, caso seja de seu
interesse, a ação penal.
Pode acontecer, entretanto, que a ação penal tenha sido
iniciada, sendo que a vítima sequer tenha tido conhecimento da
calúnia, como acontece nos casos em que é considerada incapaz, a
exemplo do menor de 18 anos, e a queixa é oferecida por seu
representante legal, amparado no art. 30 do Código de Processo
Penal, que diz:
Art. 30. Ao ofendido ou a quem tenha
qualidade para representá-lo caberá
intentar a ação privada.
2.11.6
Diferença entre calúnia e denunciação caluniosa
A denunciação caluniosa está prevista no art. 339 do Código
Penal, com a nova redação que lhe foi conferida pela Lei nº 14.110,
de 18 de dezembro de 2020, assim redigido:
Art. 339. Dar causa à instauração de
inquérito policial, de procedimento
investigatório criminal, de processo
judicial, de processo administrativo
disciplinar, de inquérito civil ou de
ação de improbidade administrativa
contra alguém, imputando-lhe crime,
infração ético-disciplinar ou ato
ímprobo de que o sabe inocente:
Pena – reclusão, de dois a oito anos,
e multa.
A primeira diferença fundamental entre o crime de calúnia e o
de denunciação caluniosa diz respeito ao bem jurídico por eles
protegido. Na calúnia, protege-se a honra objetiva; na denunciação
caluniosa, a correta administração da justiça.
Percebe-se a gravidade do crime de denunciação caluniosa
mediante a análise da pena a ele cominada, ou seja, reclusão, de 2
(dois) a 8 (oito) anos, e multa, enquanto no crime de calúnia a pena
é de detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Na calúnia, macula-se, em virtude da afirmação falsa de fato
definido como crime, a honra da vítima perante a sociedade; com a
denunciação caluniosa, pode-se colocar em risco até mesmo o
direito de liberdade daquele que é denunciado falsamente.
Para que ocorra a calúnia, basta que ocorra a imputação falsa
de um fato definido como crime; para fins de configuração da
denunciação caluniosa, deve ocorrer uma imputação de crime a
alguém que o agente sabe inocente, sendo fundamental que o seu
comportamento dê causa à instauração de inquérito policial, de
procedimento investigatório criminal, de processo judicial, de
processo administrativo disciplinar, de inquérito civil ou de ação de
improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime,
infração ético-disciplinar ou ato ímprobo de que o sabe inocente.
A diferença fundamental entre eles reside, como já deixamos
antever, no elemento subjetivo de cada infração penal. Na calúnia, o
animus calumniandi, tão somente; na denunciação caluniosa, a
finalidade de prejudicar a vítima atribuindo-lhe a prática de crime
que pode ter consequências graves com a Justiça.
2.11.7
Consentimento do ofendido
Tem-se entendido que a honra é um bem disponível, razão pela
qual, se presentes os demais requisitos necessários à validade do
consentimento – capacidade para consentir e antecedência ou
concomitância do consentimento –, poderá ser afastado o delito de
calúnia.
Imagine-se a hipótese daquele que, convidado a fazer parte de
uma sociedade na qual não tenha o menor interesse, constrangido
pelo convite que lhe fora formulado, peça a um amigo que, em
conversa com aqueles que seriam seus futuros sócios, diga--lhes
que, numa outra sociedade da qual fazia parte, foi descoberto um
desfalque, a ele atribuído, que levou à ruína a empresa, querendo,
assim, livrar-se do inconveniente de ter de rejeitar o convite, em face
dos laços de amizade, por exemplo, que o envolviam.
O consentimento, aqui, será entendido como causa supralegal
de exclusão da ilicitude, tendo o condão de afastar o delito de
calúnia.
2.11.8
Calúnia contra o Presidente da República, o Presidente do
Senado Federal, o Presidente da Câmara dos Deputados e
o Presidente do STF
Na hipótese do crime de calúnia ter sido cometido contra o
Presidente da República, o Presidente do Senado Federal, o
Presidente da Câmara dos Deputados e o Presidente do STF, a
pena será aumentada de um terço, nos termos dos incisos I e II do
art. 141 do Código Penal.
2.11.9
Diferença entre calúnia e difamação
A calúnia possui pontos em comum com a difamação, pois em
ambas as infrações penais há a imputação da prática de um fato
pela vítima, além de atingir a chamada honra objetiva.
Contudo, podem ser diferenciadas pelas seguintes situações:
a)
b)
na calúnia, a imputação do fato deve ser falsa, ao contrário
da difamação que não exige a sua falsidade;
na calúnia, além de falso o fato, deve ser definido como
crime; na difamação, há somente a imputação de um fato
ofensivo à reputação da vítima, não podendo ser um fato
definido como crime, podendo, contudo, consubstanciar-se
em uma contravenção penal.
2.11.10 Diferença entre calúnia e injúria
A primeira diferença entre a calúnia e a injúria reside em que
naquela existe uma imputação de fato e nesta o que se atribui à
vítima é uma qualidade pejorativa à sua dignidade ou decoro.
Com a calúnia, atinge-se a honra objetiva, isto é, o conceito que
o agente presume gozar em seu meio social; já a injúria atinge a
chamada honra subjetiva, quer dizer, o conceito ou atributos que o
agente tem ou acredita ter de si mesmo.
Assim, por exemplo, imputar falsamente a alguém a prática do
tráfico de entorpecentes configura-se calúnia; chamar alguém de
traficante de drogas caracteriza o crime de injúria.
2.11.11 Foro por prerrogativa de função na exceção da verdade
Pode acontecer, e não é incomum, que alguém que possua foro
por prerrogativa de função venha a ser caluniado. Imagine-se a
hipótese em que o agente divulgue o fato de que um Promotor de
Justiça se corrompeu para que não oferecesse denúncia contra uma
pessoa envolvida com tráfico de entorpecentes.
Assim que tomou conhecimento dos fatos, o Promotor de
Justiça,
sentindo-se
caluniado,
ofereceu
a
necessária
representação, nos termos do parágrafo único do art. 145 do Código
Penal, para que fosse iniciada a ação penal contra o suposto
caluniador.
Contudo, em sua resposta, o agente que havia imputado ao
Promotor de Justiça a prática do delito de corrupção passiva opõe a
exceção da verdade.
Pergunta-se: Quem será competente para o julgamento da
exceptio veritatis?
O art. 85 do Código de Processo Penal responde a essa
indagação:
Art. 85. Nos processos por crime contra a honra, em que forem
querelantes as pessoas que a Constituição sujeita à jurisdição
do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais de Apelação,
àquele ou a estes caberá o julgamento, quando oposta e
admitida exceção da verdade.
Nos termos do inciso III do art. 96 da Constituição Federal,
compete ao Tribunal de Justiça julgar os membros do Ministério
Público nos crimes comuns e de responsabilidade, ressalvada a
competência da Justiça Eleitoral.
Assim, figurando um Promotor de Justiça, por exemplo, como
réu em determinada ação penal, a competência para o seu
julgamento será do Tribunal de Justiça do Estado a que pertence.
O STF já se posicionou no sentido de que:
“Exceção da verdade, quando deduzida nos crimes contra a
honra que autorizam a sua oposição, deve ser admitida,
processada e julgada, ordinariamente, pelo juízo competente
para apreciar a ação penal condenatória.
Tratando-se, no entanto, de exceptio veritatis deduzida contra
pessoa que dispõe, ratione muneris, de prerrogativa de foro
perante o STF (CF, art. 102, I, ‘b’ e ‘c’), a atribuição da Suprema
Corte restringir-se-á, unicamente, ao julgamento da referida
exceção, não assistindo, a este Tribunal, competência para
admiti-la, para processá-la ou, sequer, para instruí-la, razão
pela qual os atos de dilação probatória pertinentes a esse
procedimento incidental deverão ser promovidos na instância
ordinária competente para apreciar a causa principal (ação
penal condenatória). Precedentes. Doutrina” (STF, AP 602/SC,
Rel. Min. Celso de Mello, Informativo 637, 1º/9/2011).
2.11.12 Calúnia e Código Penal Militar
O delito de calúnia, e a possibilidade de exceção da verdade,
vieram previstos também no Código Penal Militar (Decreto-Lei nº
1.001, de 21 de outubro de 1969), conforme se verifica pela redação
do seu art. 214 e parágrafos.
2.11.13 Calúnia e Código Eleitoral
Se a calúnia for proferida na propaganda eleitoral, ou com fins
eleitorais, o fato se amoldará, em virtude do princípio da
especialidade, ao art. 324 do Código Eleitoral (Lei nº 4.737, de 15
de julho de 1965), verbis:
Art. 324. Caluniar alguém, na
propaganda eleitoral, ou visando fins
de
propaganda,
imputando-lhe
falsamente fato definido como crime:
Pena – detenção de seis meses a
dois anos, e pagamento de 10 a 40
dias-multa.
§ 1º Nas mesmas penas incorre
quem, sabendo falsa a imputação, a
propala ou divulga.
§ 2º A prova da verdade do fato
imputado exclui o crime, mas não é
admitida:
I – se, constituindo o fato imputado
crime de ação privada, o ofendido,
não foi condenado por sentença
irrecorrível;
II – se o fato é imputado ao
Presidente da República ou chefe de
governo estrangeiro;
III – se do crime imputado, embora de
ação pública, o ofendido foi absolvido
por sentença irrecorrível.
2.12
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: qualquer pessoa.
Passivo: qualquer pessoa
(inclusive pessoa jurídica,
se o crime imputado estiver
previsto
na
Lei
9.605/1998).
Objeto material
É a pessoa contra a qual são
dirigidas
as
imputações
ofensivas à sua honra objetiva.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
É a honra, aqui concebida
objetivamente.
Elemento subjetivo
»
»
É o dolo, direto
eventual.
Não
há
previsão
modalidade culposa.
Consumação e tentativa
ou
de
»
»
A calúnia se consuma
quando um terceiro, que
não o sujeito passivo, toma
conhecimento
da
imputação falsa de fato
definido como crime.
Dependendo do meio pelo
qual é executado o delito,
há possibilidade de se
reconhecer a tentativa.
3.
DIFAMAÇÃO
Difamação
Art. 139. Difamar alguém, imputandolhe fato ofensivo à sua reputação:
Pena – detenção, de três meses a um
ano, e multa.
Exceção da verdade Parágrafo
único. A exceção da verdade
somente se admite se o ofendido é
funcionário público e a ofensa é
relativa ao exercício de suas funções.
3.1
Introdução
Para que exista a difamação é preciso que o agente impute
fatos à vítima que sejam ofensivos à sua reputação.
A difamação difere do delito de calúnia em vários aspectos.
Inicialmente, os fatos considerados ofensivos à reputação da
vítima não podem ser definidos como crime, fazendo, assim, com
que se entenda a difamação como um delito de menor gravidade,
comparativamente ao crime de calúnia. Contudo, se tais fatos
disserem respeito à imputação de uma contravenção penal, poderão
configurar o delito de difamação, uma vez que, para a existência do
delito de calúnia, obrigatoriamente, deve existir uma imputação falsa
de fato definido como crime.
Além de tão somente ser exigida a imputação de fato ofensivo à
reputação da vítima, na configuração da difamação não se discute
se tal fato é ou não verdadeiro. Isso significa que, mesmo sendo
verdadeiro o fato, o que se quer impedir com a previsão típica da
difamação é que a reputação da vítima seja maculada no seu meio
social, uma vez que o que se protege, aqui, é a sua honra
considerada objetivamente, ou seja, como já frisamos, o conceito
que o agente presume que goza perante a sociedade.
Nesse sentido, disserta Hungria que a difamação:
“Consiste na imputação de fato que, embora sem revestir
caráter criminoso, incide na reprovação ético-social e é,
portanto, ofensivo à reputação da pessoa a quem se atribui.
Segundo já foi acentuado, é estreita a sua afinidade com a
calúnia. Como esta, é lesiva da honra objetiva (reputação, boa
fama, valor social da pessoa) e por isto mesmo, supõe
necessariamente a comunicação a terceiro. Ainda mais: a
difamação, do mesmo modo que a calúnia, está subordinada à
condição de que o fato atribuído seja determinado. Há, porém,
diferenças essenciais entre uma e outra dessas modalidades de
crime contra a honra: na calúnia, o fato imputado é definido
como crime e a imputação deve apresentar-se objetiva e
subjetivamente falsa; enquanto na difamação o fato imputado
incorre apenas na reprovação moral, e pouco importa que a
imputação seja falsa ou verdadeira.”26
Na verdade, com a difamação pune-se, tão somente, aquilo que
popularmente é chamado de “fofoca.” É, outrossim, o crime daquele
que, sendo falso ou verdadeiro o fato, o imputa a alguém com o fim
de denegrir sua reputação.
Concluindo, para que se configure a difamação deve existir uma
imputação de fatos determinados, sejam eles falsos ou verdadeiros,
à pessoa determinada ou mesmo a pessoas também determinadas,
que tenha por finalidade macular sua reputação, vale dizer, sua
honra objetiva.
3.2
Classificação doutrinária
Crime comum com relação ao sujeito ativo, bem como quanto
ao sujeito passivo; formal; doloso; de forma livre; comissivo
(podendo, sendo garantidor o agente, ser praticado via omissão
imprópria); instantâneo; monossubjetivo; unissubsistente ou
plurissubsistente (dependendo do meio de execução de que se vale
o agente na sua prática, podendo haver uma concentração dos atos,
ou mesmo um fracionamento do iter criminis, cabendo a tentativa
nessa última hipótese); transeunte (como regra, pois pode ser
praticado por meios que permitam a prova pericial, a exemplo da
difamação escrita).
3.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
A honra objetiva é o bem juridicamente protegido pelo tipo
penal que prevê o delito de difamação, sendo nesse caso
visualizada por meio da reputação da vítima no seu meio social.
A honra, aqui entendida como reputação, deve ser tratada em
seu sentido amplo, abrangendo todos os atributos que tornam o
cidadão respeitável perante seus pares. Dessa forma, mesmo que
sejam verdadeiros os fatos imputados à vítima, o reforço às ideias
que, em tese, maculam a sua reputação deve ser proibido pela lei
penal.
Dessa forma, entende-se que, por meio do tipo penal de
difamação, evita-se a divulgação de fatos desonrosos à vítima.
Traduzindo o conceito de fato desonroso, Aníbal Bruno diz ser
aquele que possa “inspirar a outrem um sentimento de reprovação e
desprezo em relação à vítima e, assim, capaz de afetar a boa fama
do ofendido.”27
Objeto material é a pessoa contra a qual são dirigidos os fatos
ofensivos à sua honra objetiva.
3.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
Crime comum quanto ao sujeito ativo, a difamação pode ser
praticada por qualquer pessoa.
Da mesma forma, qualquer pessoa pode ser considerada
sujeito passivo do delito em estudo, não importando se física ou
jurídica.
Merece destaque, portanto, o fato de a lei penal iniciar sua
redação dizendo difamar alguém, sendo que não está se referindo,
especificamente, à pessoa física. Assim, devemos interpretar a
elementar típica alguém diferentemente do modo que a
interpretamos quando da análise do art. 121 do Código Penal.
Pode, portanto, ser perfeitamente possível que uma pessoa
jurídica se veja atingida em sua reputação com fatos divulgados
pelo agente que denigrem a sua imagem perante a população,
fazendo, inclusive, com que, em virtude disso, sofra prejuízos
materiais.
O crime de difamação, no que diz respeito às pessoas jurídicas,
serve, também, como “vala comum” com relação àqueles fatos que
lhe são imputados, definidos como crime, mas que não se
encontram no rol das infrações ambientais, previstas pela Lei nº
9.605/98.
Da mesma forma que no delito de calúnia, entendemos que os
inimputáveis, seja por doença mental ou mesmo por menoridade,
podem figurar como sujeitos passivos do delito de difamação.
Hungria afirma, ao discutir sobre a possibilidade de figurarem
os inimputáveis como sujeitos passivos da difamação, que, como a
ofensa:
“Diz com a honra objetiva, o crime existe sempre, pois não se
pode deixar de reconhecer que os incapazes em geral têm ou
conservam uma certa reputação, que a lei deve proteger. Pouco
importa, em qualquer caso, a inimputabilidade do sujeito
passivo. Apesar de inimputáveis, os incapazes podem ser
expostos à aversão ou irrisão pública, e seria iníquo deixar-se
impune o injuriador ou difamador, como se a inimputabilidade,
no dizer de Altavila, fosse uma culpa que se tivesse de expiar
com a perda da tutela penal.”28
Cezar Roberto Bitencourt, embora aceitando a possibilidade de
serem os inimputáveis considerados sujeitos passivos da
difamação, ressalva:
“Os inimputáveis também podem ser sujeitos passivos do crime
de difamação, isto é, podem ser difamados, desde que tenham
capacidade suficiente para entender que estão sendo ofendidos
em sua honra pessoal. Essa capacidade, evidentemente, não
se confunde nem com a capacidade civil, nem com a
capacidade penal, uma vez que o próprio imputável pode tê-la.
Honra é um valor social e moral do ser humano, bem jurídico
imaterial inerente à personalidade e, por isso, qualquer
indivíduo é titular desse bem, imputável ou inimputável.”29
Aqui, da mesma forma que no delito de calúnia, devemos
trabalhar com o princípio da razoabilidade. O fato que se atribui à
vítima deve se amoldar a esse conceito de razoabilidade para que
possa
se
consubstanciar
no
delito
de
difamação,
independentemente de ser ou não o sujeito passivo inimputável.
3.5
Consumação e tentativa
Entendendo-se a honra objetiva como o bem juridicamente
protegido pelo delito de difamação, consequentemente, tem-se por
consumada a infração penal quando terceiro, que não a vítima, toma
conhecimento dos fatos ofensivos à reputação desta última.
Às vezes nos soa um pouco ilógico entender que a
consumação se dá quando terceiro toma conhecimento dos fatos
ofensivos à reputação da vítima, mas exigimos, em geral, que esses
mesmos fatos cheguem ao conhecimento dela para que, se for da
sua vontade, possa ser proposta ação penal contra o agente
difamador, no prazo de 6 (seis) meses, sob pena de ocorrer a
decadência do seu direito de ação.
Deve ser frisado, por oportuno, que, embora o prazo
decadencial de 6 (seis) meses seja contado do dia em que a vítima
vem a saber quem é o autor do crime, conforme determina o art. 38
do Código de Processo Penal, a afirmação do momento de
consumação do delito possui outros efeitos, a exemplo da contagem
do prazo prescricional.
Assim, o art. 111 do Código Penal assevera:
Art. 111. A prescrição, antes de
transitar em julgado a sentença final,
começa a correr:
I – do dia em que o crime se
consumou;
Dessa forma, no caso dos crimes de calúnia e difamação, em
que se protege a honra objetiva da vítima, teremos contagens de
prazos diferentes. A primeira, destinada ao reconhecimento da
prescrição, ou pelo menos a fim de indicar o primeiro marco para
sua contagem, vale dizer, a data em que o crime se consumou, isto
é, quando o terceiro, que não a vítima, tomou conhecimento dos
fatos, com as características que lhe são peculiares na calúnia e na
difamação; a segunda, quando a vítima deles toma conhecimento,
tem por finalidade o início da contagem do prazo decadencial,
quando já se conhece sua autoria, destinada, por exemplo, ao
oferecimento da queixa-crime.
Discute-se, ainda, sobre a possibilidade de tentativa no crime
de difamação. O mesmo raciocínio que levamos a efeito quando
estudamos o delito de calúnia aplica-se à difamação. O fundamental
será apontar os meios utilizados na prática do delito, o que fará com
que visualizemos se estamos diante de um crime monossubsistente
ou plurissubsistente.
Se monossubsistente, não se admite tentativa, pois os atos que
integram o iter criminis não podem ser fracionados. Se
plurissubsistentes, torna-se perfeitamente admissível a tentativa.
Assim, se a difamação for verbal, proferida por meio de palavras,
não se admite o conatus, pois, ou os fatos ofensivos à reputação da
vítima são verbalizados com terceiros, consumando a infração
penal, ou o agente se cala e sequer ultrapassa a fase da cogitação;
ao contrário, pode ser que na difamação escrita os fatos somente
não cheguem ao conhecimento de terceiro por circunstâncias
alheias à vontade do agente, como no exemplo em que o agente vai
até a agência dos correios e envia a carta ao seu destinatário,
contendo a exposição de fatos ofensivos à reputação da vítima, que
acaba se extraviando ou mesmo se perdendo, dada a ocorrência de
um incêndio na agência dos correios ou coisa parecida.
Não podemos deixar de reconhecer, nessa hipótese, que o
agente, ao postar a carta na agência dos correios, deu início à
execução de um crime de difamação que só não se consumou por
circunstâncias alheias à sua vontade.
É claro que a hipótese é acadêmica, pois que, se a carta se
perdeu no incêndio da agência dos Correios, a vítima jamais tomará
conhecimento do seu conteúdo e, consequentemente, não saberá
da ofensa à sua honra objetiva. Assim, se não souber da difamação,
não dará início, obviamente, à ação penal.
3.6
Elemento subjetivo
O delito de difamação somente admite a modalidade dolosa,
seja o dolo direto ou mesmo eventual.
Exige-se, aqui, que o comportamento do agente seja dirigido
finalisticamente a divulgar fatos que atingirão a honra objetiva da
vítima, maculando-lhe a reputação.
Afasta-se o dolo quando o agente atua com animus jocandi, ou
seja, quando imputa fatos que, à primeira vista, seriam desonrosos
para a vítima, mas que, na verdade, são divulgados, por exemplo,
em tom de brincadeira.
Por não haver previsão legal, não é punível a difamação
culposa.
3.7
Exceção da verdade
Como regra, não é admitida a exceção da verdade no delito de
difamação, pois, mesmo sendo verdadeiros os fatos ofensivos à
reputação da vítima, ainda assim se concluirá pela tipicidade da
conduta levada a efeito pelo agente.
Dessa forma, de nada adiantaria comprovar que os fatos
divulgados pelo agente são verdadeiros, uma vez que, ainda assim,
se consubstanciariam na infração penal tipificada no art. 139 do
Código Penal.
Contudo, o parágrafo único do mencionado art. 139 ressalvou
admitir a exceptio veritatis se o ofendido é funcionário público e se a
ofensa é relativa ao exercício de suas funções.
Damásio explica a ressalva legal, prelecionando:
“O fundamento reside no resguardo da honorabilidade do
exercício da função pública. É imprescindível, para que se
admita a prova da verdade, que haja relação causal entre a
imputação e o exercício da função. Assim, se o sujeito atribui ao
funcionário público a prática de atos indecorosos quando em
serviço, é admissível a demonstração da veracidade de seu
comportamento. Se entretanto, a imputação diz respeito à
prática de atos indecorosos fora do exercício do cargo, é
inadmissível a prova da verdade.”30
É de interesse da Administração Pública apurar possíveis faltas
de seus funcionários quando no exercício das suas funções
públicas. Entretanto, tem-se entendido não ser admissível a
exceptio veritatis quando a vítima não mais ostenta o cargo de
funcionário público, mesmo que os fatos tenham relação com o
exercício da função pública.
Cezar Roberto Bitencourt procura fazer distinção entre duas
situações que, para o renomado autor, devem ser entendidas
diferentemente, assim se manifestando:
“A dicção do texto legal, ‘se o ofendido é funcionário público e a
ofensa é relativa ao exercício de suas funções’, [...] exige a
presença de dois fatores, simultaneamente: que a ofensa
relacionada ao exercício das funções públicas seja
contemporânea à condição de funcionário público. Assim, se o
ofendido deixar o cargo após a consumação do fato imputado, o
sujeito ativo mantém o direito à demonstratio veri; se, no
entanto, quando proferida a ofensa relativa à função pública, o
ofendido não se encontrava mais no cargo, a exceptio veritatis
será inadmissível, ante a ausência da qualidade de funcionário
público que é uma elementar típica que deve estar presente no
momento da imputação.”31
3.8
Pena, ação penal, competência para julgamento e
suspensão condicional do processo
A pena cominada ao delito de difamação é de detenção, de 3
(três) meses a 1 (um) ano, e multa.
A pena será aumentada de um terço, nos termos do caput do
art. 141 do Código Penal, se a difamação for cometida:
I – contra o Presidente da República,
ou
contra
chefe
de
governo
estrangeiro;
II – contra funcionário público, em
razão de suas funções, ou contra os
Presidentes do Senado Federal, da
Câmara dos Deputados ou do
Supremo Tribunal Federal;
III – na presença de várias pessoas,
ou por meio que facilite a divulgação
da calúnia, da difamação ou da injúria;
IV – contra pessoa maior de 60
(sessenta) anos ou portadora de
deficiência, exceto no caso de injúria.
Poderá a pena, ainda, vir a ser dobrada se a difamação for
cometida mediante paga ou promessa de recompensa, conforme
preconiza o § 1º do art. 141 do diploma repressivo.
Nos termos do § 2º do referido artigo, se o crime é cometido ou
divulgado em quaisquer modalidades das redes sociais da rede
mundial de computadores, aplica-se em triplo a pena.
A ação penal será de iniciativa privada, de acordo com o art.
145 do Código Penal, sendo, contudo, de iniciativa pública
condicionada à requisição do Ministro da Justiça quando o delito for
praticado contra o Presidente da República ou chefe de governo
estrangeiro, ou de iniciativa pública condicionada à representação
do ofendido quando o crime for cometido contra funcionário público,
em razão de suas funções.
O STF, por intermédio da Súmula nº 714, assim se posicionou:
Súmula nº 714. É concorrente a legitimidade do ofendido,
mediante queixa, e do Ministério Público, condicionada à
representação do ofendido, para a ação penal por crime contra
a honra de servidor público em razão do exercício de suas
funções.
Compete, pelo menos inicialmente, ao Juizado Especial
Criminal o processo e julgamento do delito tipificado no art. 139 do
Código Penal, tendo em vista que a pena máxima cominada em
abstrato não ultrapassa o limite de 2 (dois) anos, nos termos do art.
61 da Lei nº 9.099/95, com a nova redação que lhe foi dada pela Lei
nº 11.313, de 28 de junho de 2006.
Será possível a confecção de proposta de suspensão
condicional do processo, de acordo com o art. 89 da Lei nº 9.099/95.
3.9
3.9.1
Destaques
Consentimento do ofendido
Aplica-se à difamação o mesmo raciocínio levado a efeito
quando abordamos o consentimento do ofendido no delito de
calúnia.
Sendo a honra um bem de natureza disponível, nada impede
que a suposta vítima, desde que capaz, consinta em ser difamada
pelo agente. Pode, inclusive, solicitar ao agente que divulgue os
fatos difamatórios, como no conhecido exemplo daquele que,
almejando romper seu noivado, não tendo coragem para fazê-lo
pessoalmente, pede ao agente que divulgue, perante a família de
sua noiva, fatos ofensivos à sua reputação.
3.9.2
Presença do ofendido
Considerando o fato de que a difamação atinge a honra objetiva
da vítima, não há necessidade da presença do ofendido para que o
delito se consume, sendo, como afirmamos, importante apontar o
momento exato da consumação, para fins de cálculos penais, a
exemplo do que ocorre com a contagem do prazo de prescrição.
3.9.3
Difamador sem credibilidade
Da mesma forma como ocorre com o delito de calúnia, não
importa à configuração da difamação a falta de credibilidade do
agente. Aquele que, costumeiramente, tem o hábito de falar mal das
pessoas, imputando-lhes fatos ofensivos à sua reputação, deverá
ser responsabilizado pelo delito de difamação, a partir do instante
em que terceira pessoa, que não a vítima, toma conhecimento dos
fatos.
3.9.4
Divulgação ou propalação da difamação
O § 1º do art. 138 do Código Penal fez previsão expressa no
sentido de que incorreria nas mesmas penas previstas no preceito
secundário do caput do mencionado artigo aquele que propalasse
ou divulgasse a calúnia.
Não houve, contudo, tal previsão para o delito de difamação,
razão pela qual devemos nos perguntar: será punível a título de
difamação, aquele que, tomando conhecimento, por meio de
terceiros, de fatos ofensivos à reputação da vítima, os divulgue ou
propale?
Obviamente que quem propala ou divulga uma difamação deve
responder por esse delito, uma vez que tanto o propalador quanto o
divulgador são, da mesma forma, difamadores. Aquele que toma
conhecimento, por meio de terceiros, de fatos ofensivos à reputação
da vítima e, por sua vez, leva adiante a notícia difamatória também
deve ser considerado um agente difamador.
Corroborando esse raciocínio, o § 2º do art. 141 do Código
Penal, com a redação que lhe foi conferida pela Lei nº 13.964/2019,
aduz que se o crime é cometido ou divulgado em quaisquer
modalidades das redes sociais da rede mundial de computadores,
aplica-se em triplo a pena.
3.9.5
Difamação dirigida à vítima
Considerando que o tipo penal que prevê a difamação protege
a honra objetiva da vítima, ou seja, o conceito que ela entende
gozar em seu meio social, se os fatos ofensivos à sua reputação
forem dirigidos diretamente a ela, poderia, nesta hipótese, também
configurar-se o crime de difamação?
Luiz Regis Prado responde a essa indagação afirmando: “Caso
a imputação seja dirigida diretamente à pessoa visada, sem que
seja ouvida, lida ou percebida por terceiro, não configura a
difamação, mesmo que aquela a revele a outrem.”32
Contudo, isso não quer dizer, segundo entendemos, que o
agente não deva ser responsabilizado por qualquer infração penal.
Se das imputações difamatórias a vítima puder extrair fatos que,
mesmo que indiretamente, venham atingir sua honra subjetiva,
poderá o agente responder pelo delito de injúria.
Se, por exemplo, almejando agredir a honra da vítima o agente
a acusa de estar “bancando o jogo do bicho”, a isso atribuindo o seu
súbito enriquecimento, se tal fato não for proferido na presença de
terceira pessoa que não a vítima, poderemos dele extrair o
cometimento do delito de injúria, pois, mesmo que por vias oblíquas,
imputar a alguém a prática do jogo do bicho é o mesmo que chamálo de bicheiro.
Seria um raciocínio sem sentido, permissa vênia, entender que
se o ofendido fosse chamado de bicheiro o agente deveria
responder pela injúria; agora, se lhe imputasse o cometimento da
contravenção penal do jogo do bicho, o fato seria atípico.
O que não se pode é imputar as duas infrações penais, sendo
uma originária da outra.
Caso o fato ofensivo à reputação da vítima tenha sido proferido
na presença de terceiros, restará caracterizada a difamação,
infração penal mais grave comparativamente à injúria; ao contrário,
mesmo se forem imputados fatos ofensivos à reputação da vítima
que não se traduzam, diretamente, em qualidades pejorativas à sua
pessoa, mas que possam ser inferidas do contexto da imputação, se
for levada a efeito na presença tão somente da vítima, a hipótese
será a de reconhecimento do delito de injúria.
3.9.6
Vítima que conta os fatos a terceira pessoa
Para que se configure a difamação, o agente deve atuar no
sentido de levar os fatos ofensivos à reputação da vítima ao
conhecimento de terceira pessoa. O seu dolo, portanto, é dirigido no
sentido de atingir sua honra objetiva.
Entretanto, se a própria vítima é quem se encarrega de contar a
terceiros a imputação ofensiva que lhe foi feita pelo agente, não
restará caracterizada a difamação, mas tão somente, como
afirmamos acima, o delito de injúria, de menor gravidade
comparativamente ao crime de difamação, pois a pena cominada à
injúria é a de detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa,
enquanto aquela prevista para o delito de difamação é de detenção,
de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.
3.9.7
Agente que escreve fatos ofensivos à honra da vítima em
seu diário
Imagine-se a hipótese daquele que, por acaso, percebe que no
diário do agente existe a narração de fatos ofensivos à sua
reputação. Seria possível reconhecer, nesse caso, o delito de
difamação?
A resposta só pode ser negativa, pois, para a caracterização da
difamação, exige-se o dolo, ou seja, o animus diffamandi, a vontade
de ofender a honra objetiva da vítima, o que não acontece no
exemplo fornecido.
Mas pode acontecer, também, que o agente, de forma
negligente, deixe o seu diário aberto de modo que as pessoas
possam tomar, facilmente, conhecimento dos fatos ofensivos à
reputação da vítima. Nesse caso, poderia configurar-se a
difamação?
Também a resposta aqui deverá ser negativa, uma vez que no
tipo penal do art. 139 do estatuto repressivo não existe previsão
para a modalidade culposa, não se podendo responsabilizar
criminalmente o agente que, deixando de observar o seu dever
objetivo de cuidado, permite que terceiros tomem conhecimento dos
fatos difamatórios por ele escritos.
3.9.8
Exceção de notoriedade
Dissemos, quando do estudo do crime de calúnia, que a
exceção de notoriedade servia para demonstrar a ausência de dolo
do agente no que dizia respeito à falsidade do fato definido como
crime por ele atribuído à vítima.
Dessa forma, pergunta-se: Seria possível, no delito de
difamação, o oferecimento da exceção de notoriedade, com a
finalidade de comprovar que os fatos imputados pelo agente à
vítima, além de verdadeiros, são de conhecimento público e notório,
afastando-se, em virtude disso, o delito de difamação?
Ao contrário do que ocorre com o delito de calúnia, a exceção
de notoriedade não tem qualquer efeito no que diz respeito ao
reconhecimento da difamação, uma vez que, nesta última, não há
necessidade que o fato atribuído seja falso, podendo ser verdadeiro,
e mais, de conhecimento público.
Nesse sentido, esclarece Cezar Roberto Bitencourt,
confrontando as posições em contrário:
“Determinado segmento doutrinário tem sustentado que não se
justifica punir alguém porque repetiu o que todo mundo sabe e
todo mundo diz, pois está caracterizada sua notoriedade.
Segundo Tourinho Filho, ‘se o fato ofensivo à honra é notório,
não pode o pretenso ofendido pretender defender o que ele já
perdeu, e cuja perda caiu no domínio público, ingressando no
rol dos fatos notórios’.
No entanto, não nos convence esse entendimento, por algumas
razões que procuraremos sintetizar. Em primeiro lugar, quando
o Código Penal proíbe a exceção da verdade para o crime de
difamação, está englobando a exceção da notoriedade; em
segundo lugar, a notoriedade é inócua, pois é irrelevante que o
fato difamatório imputado seja falso ou verdadeiro; em terceiro
lugar, ninguém tem o direito de vilipendiar ninguém.”33
3.9.9
Difamação contra o Presidente da República, o Presidente
do Senado Federal, o Presidente da Câmara dos
Deputados e o Presidente do STF
Vide item correspondente ao crime de calúnia, para onde
remetemos o leitor, a fim de não sermos repetitivos.
3.9.10
Difamação e Código Penal Militar
O crime de difamação também encontra-se previsto no art. 215
do Código Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de
1969.
3.9.11
Difamação e Código Eleitoral
Se a difamação for proferida na propaganda eleitoral, ou com
fins eleitorais, o fato se amoldará, em virtude do princípio da
especialidade, ao art. 325 do Código Eleitoral (Lei nº 4.737, de 15
de julho de 1965), verbis:
Art. 325. Difamar alguém, na
propaganda eleitoral, ou visando a
fins de propaganda, imputando-lhe
fato ofensivo à sua reputação:
Pena – detenção de três meses a um
ano, e pagamento de 5 a 30 diasmulta.
Parágrafo único. A exceção da
verdade somente se admite se
ofendido é funcionário público e a
ofensa é relativa ao exercício de suas
funções.
3.10
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: qualquer pessoa.
Passivo: qualquer pessoa
(inclusive
a
pessoa
jurídica).
Objeto material
É a pessoa contra a qual são
dirigidos os fatos ofensivos à
sua honra objetiva.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
A honra objetiva.
Elemento subjetivo
»
»
Dolo direto ou eventual.
Não é punível a difamação
culposa, por ausência de
previsão legal.
Consumação e tentativa
»
»
Tem-se por consumada a
infração penal quando
terceiro, que não a vítima,
toma conhecimento dos
fatos ofensivos à reputação
desta última.
Em relação à tentativa, o
fundamental será apontar
os meios utilizados na
prática do delito, o que
define se é um crime
monossubsistente
(não
admite
tentativa)
ou
plurissubsistente (admite a
tentativa
por
poder
fracionar o iter criminis).
4.
INJÚRIA
Injúria Art. 140. Injuriar alguém,
ofendendo-lhe a dignidade ou o
decoro:
Pena – detenção, de um a seis
meses, ou multa.
§ 1º O juiz pode deixar de aplicar a
pena:
I – quando o ofendido, de forma
reprovável, provocou diretamente a
injúria;
II – no caso de retorsão imediata, que
consista em outra injúria.
§ 2º Se a injúria consiste em violência
ou vias de fato, que, por sua natureza
ou pelo meio empregado, se
considerem aviltantes:
Pena – detenção, de três meses a um
ano, e multa, além da pena
correspondente à violência.
§ 3º Se a injúria consiste na utilização
de elementos referentes a raça, cor,
etnia, religião, origem ou a condição
de pessoa idosa ou portadora de
deficiência:
Pena – reclusão, de um a três anos, e
multa.
4.1
Introdução
De todas as infrações penais tipificadas no Código Penal que
visam a proteger a honra, a injúria, na sua modalidade fundamental,
é a considerada menos grave. Entretanto, por mais paradoxal que
possa parecer, a injúria se transforma na mais grave infração penal
contra a honra quando consiste na utilização de elementos
referentes à raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de
pessoa idosa ou portadora de deficiência, sendo denominada, aqui,
de injúria preconceituosa, cuja pena a ela cominada se compara
àquela prevista para o delito de homicídio culposo, sendo, inclusive,
mais severa, pois ao homicídio culposo se comina uma pena de
detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e na injúria preconceituosa uma
pena de reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos e multa, sendo discutida
sua proporcionalidade comparativamente às demais infrações
penais.
Numa posição intermediária, situa-se a injúria real, prevista no §
2º do art. 140 do Código Penal, cuja pena se compara à do delito de
difamação.
Portanto, resumindo, o Código Penal trabalha com três
espécies de injúria:
a)
b)
c)
injúria simples, prevista no caput do art. 140;
injúria real, consignada no § 2º do art. 140;
injúria preconceituosa, tipificada no § 3º do art. 140.
Ao contrário da calúnia e da difamação, com a tipificação do
delito de injúria busca-se proteger a chamada honra subjetiva, ou
seja, o conceito, em sentido amplo, que o agente tem de si mesmo.
Esclarece Aníbal Bruno:
“Injúria é a palavra ou gesto ultrajante com que o agente ofende
o sentimento de dignidade da vítima. O Código distingue, um
pouco ociosamente, dignidade e decoro. A diferença entre
esses dois elementos do tipo é tênue e imprecisa, o termo
dignidade podendo compreender o decoro. Entre nós
costumava-se definir a dignidade como o sentimento que tem o
indivíduo do seu próprio valor social e moral; o decoro como a
sua respeitabilidade. Naquela estariam contidos os valores
morais que integram a personalidade do indivíduo; neste as
qualidades de ordem física e social que conduzem o indivíduo à
estima de si mesmo e o impõem ao respeito dos que com ele
convivem. Dizer de um sujeito que ele é trapaceiro seria
ofender sua dignidade. Chamá-lo de burro, ou de coxo seria
atingir seu decoro.”34
Assim, portanto, de acordo com uma eleição não muito clara
das situações, como bem destacado por Aníbal Bruno, o Código
Penal faz distinção entre o ataque à honra/ dignidade e à
honra/decoro do ofendido.
Como regra, na injúria não existe imputação de fatos, mas, sim,
de atributos pejorativos à pessoa do agente. Dessa forma, chamá-lo
de bicheiro configura-se como injúria; dizer à terceira pessoa que a
vítima está “bancando o jogo do bicho” caracteriza difamação.
Importante destacar a impossibilidade de se punir o agente por
fatos que traduzem, no fundo, a mesma ofensa. No exemplo citado,
mesmo tendo o agente falado com terceira pessoa, na presença da
vítima, que esta se enriqueceu à custa de ter explorado o jogo do
bicho, afirmando, logo em seguida, ser o ofendido bicheiro, não
podemos considerar uma mesma situação fática para imputar duas
infrações penais diferentes ao agente, que nesse caso são a
difamação e a injúria. Aqui, a infração mais grave, a difamação,
absorverá a infração penal menos grave, a injúria.
4.2
Classificação doutrinária
Crime comum com relação ao sujeito ativo, bem como quanto
ao sujeito passivo; doloso; formal; de forma livre; comissivo
(podendo ser praticado omissivamente, se o agente gozar do status
de garantidor); instantâneo; monossubjetivo; unissubsistente ou
plurissubsistente (dependendo do meio utilizado na prática do
delito); transeunte (como regra, ressalvada a possibilidade de se
proceder a perícia nos meios utilizados pelo agente ao cometimento
da infração penal).
4.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
A honra subjetiva é o bem juridicamente protegido pelo tipo
penal que prevê o delito de injúria, o qual, segundo Muñoz Conde,
se traduz “na consciência e no sentimento que tem a pessoa de sua
própria valia e prestígio, quer dizer, a autoestima.”35
Com a tipificação do delito de injúria, busca-se proteger,
precipuamente, as qualidades, os sentimentos, enfim, os conceitos
que o agente faz de si próprio.
Objeto material do delito de injúria é a pessoa contra a qual é
dirigida a conduta praticada pelo agente.
4.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
Tendo em vista tratar-se de crime comum, qualquer pessoa
física pode ser sujeito ativo do delito de injúria.
No que diz respeito ao sujeito passivo, algumas ressalvas
devem ser observadas. É regra geral que qualquer pessoa física
possa ser considerada como sujeito passivo da mencionada
infração penal, sendo de todo impossível que a pessoa jurídica
ocupe também essa posição, haja vista que a pessoa moral não
possui honra subjetiva a ser protegida, mas tão somente honra
objetiva.
Conforme observa Fernando Galvão:
“Como a injúria ofende a honra subjetiva da vítima, não podem
ser sujeitos passivos do crime em exame a pessoa morta e a
pessoa jurídica, pois estas não possuem a capacidade para o
sentimento da própria honorabilidade ou respeitabilidade.”36
Contudo, embora somente as pessoas físicas possam ser
vítimas do delito de injúria, podemos entender que a mencionada
infração penal também ofende a honra subjetiva dos inimputáveis,
seja por doença mental, seja em virtude da menoridade?
Trabalhando com o critério da razoabilidade, não há qualquer
problema em se afirmar que os inimputáveis podem ser
considerados sujeitos passivos da injúria. Alertamos para o critério
da razoabilidade para que as interpretações não caiam no ridículo, a
exemplo daquele que chama de corrupta uma criança com apenas
um ano de idade. Alguns autores, a exemplo de Noronha, afirmam
que o sujeito passivo, para se considerar nessa condição, deveria
ter consciência das palavras ofensivas, em tese, à sua dignidade ou
decoro. Afirma o autor:
“A injúria é ofensa à honra subjetiva, de modo que a pessoa
deve ter consciência da dignidade ou decoro. Dizer, v.g., de
uma criança de dois ou três anos que é um ladrão, de menina
de quatro anos que é mentirosa são coisas risíveis e que não
podem configurar injúria. Não assim se se disser de um menino
de quinze anos que é um invertido, ou de menina da mesma
idade que é uma rameira. Idêntica é a situação do enfermo
mental.”37
4.5
Consumação e tentativa
Considerando que o delito atinge a honra subjetiva, consumase a injúria no momento em que a vítima toma conhecimento das
palavras ofensivas à sua dignidade ou decoro.
Entretanto, não se faz necessária a presença da vítima no
momento em que o agente profere, por exemplo, as palavras que
são ofensivas à sua honra subjetiva. Assim, se alguém, em
conversa com terceiro, chama a vítima de mau-caráter e esta vem a
saber disso pouco tempo depois, o delito de injúria se consuma
quando ela toma conhecimento, mas não exige a sua presença no
momento em que a agressão à sua honra é proferida.
Dependendo do meio utilizado na execução do crime de injúria,
será perfeitamente possível o reconhecimento da tentativa,
entendendo-se como plurissubsistente a infração penal. Nesse
sentido, Ney Moura Teles afirma ser possível a tentativa:
“Quando a injúria se faz por meio de carta escrita interceptada,
ou na forma de colocação de símbolos ou desenhos à frente da
casa do ofendido, para que ele, ao sair, perceba a ofensa,
sendo, entretanto, retirada por terceira pessoa.”38
4.6
Elemento subjetivo
Elemento subjetivo do delito de injúria é o dolo, seja ele direto
ou mesmo eventual. Há necessidade, aqui, de ter o agente a
intenção de atingir a honra subjetiva da vítima, ofendendo-lhe a
dignidade ou o decoro. Deve o agente agir, portanto, com o
chamado animus injuriandi, pois, caso contrário, o fato será atípico.
Muñoz Conde, com a precisão que lhe é peculiar, esclarece:
“É necessário que se tenha consciência do caráter injurioso da
ação ou expressão e vontade, em que pese isso, de realizá-la.
Esta vontade se pode entender como uma intenção específica
de injuriar, o chamado animus iniuriandi. Não basta, pois, com
que a expressão seja objetivamente injuriosa e o sujeito tenha
conhecimento disto, senão que se requer um ânimo especial de
injuriar.”39
E continua o renomado catedrático:
“Assim, ações objetivamente injuriosas, mas realizadas sem
ânimo de injuriar, senão de brincar, criticar, narrar etc., não são
delitos de injúria. Este elemento subjetivo se deduz às vezes do
próprio contexto, mas outras vezes pode ficar confundido ou
solapar-se com outros propósitos ou ânimos (informativos, de
crítica etc.) que dificultam a sua prova.”40
Assim, as palavras, por exemplo, ditas com animus jocandi, ou
seja, com a intenção de brincar com a vítima, mesmo que essa
última seja extremamente sensível, não poderão configurar o delito
de injúria.
A injúria não admite a modalidade culposa, em face da
inexistência de previsão legal.
4.7
Meios de execução e formas de expressão da injúria
São inigualáveis as linhas escritas por Hungria, nas quais ele
procura demonstrar a diversidade dos meios e formas que podem
ser utilizados no cometimento do delito de injúria, razão pela qual
nos permitimos transcrevê-las integralmente:
“Variadíssimos são os meios pelos quais se pode cometer a
injúria. São, afinal, todos os meios de expressão do
pensamento: a palavra oral, escrita, impressa ou reproduzida
mecanicamente, o desenho, a imagem, a caricatura, a pintura,
a escultura, a alegoria ou símbolo, gestos, sinais, atitudes, atos.
Há toda uma série de atos reputados injuriosos, ainda que não
compreendidos na órbita especial do § 2º do art. 140: a
esputação sobre alguém, ainda que sem atingir o alvo; o beijo
dado contra a vontade de quem o recebe e sem fim libidinoso
(pois, do contrário, será crime contra os costumes41); afixar rabo
em alguém; apresentar capim ou milho a uma pessoa, dizendolhe: ‘come’; promover um funeral fictício etc. Um caso
interessante pode ser figurado: certo indivíduo, para vingar-se
de um seu desafeto, ensina a um papagaio a insultá-lo. A
solução deve ser idêntica à do caso do mandatário
irresponsável: a palavra do papagaio é como se fora a própria
palavra do seu dono. Até mesmo simples sons podem ser
insultantes. Exemplos: imitar o uivo do cão, o ornejo do asno ou
o ruído de gases intestinais, para vexar uma cantora ou um
orador.
Multifária é, igualmente, a forma da injúria. Pode esta ser direta
ou oblíqua (mediata); direta, quando se refere a qualidades
desonrosas inerentes ao ofendido; oblíqua quando atinge uma
pessoa particularmente cara ao ofendido (exemplo: ‘teu filho é
um canalha’) ...
Da injúria oblíqua distingue-se a injúria reflexa, isto é, a que
atinge também alguém em ricochete. Exemplo: quando se diz
de um homem casado que é ‘cornudo’, injuria-se também a sua
esposa.
A injúria pode ser também:
a) explícita (expressa de modo franco e positivo) ou equívoca
(ambígua, velada, fugidia);
b) implícita ou per argumentum a contrario (exemplo: ‘não vou à
festa em sua casa porque não sou um desclassificado’; ‘não
posso deixar-me ver em tua companhia, porque não sou um
ladrão’);
c) por exclusão (como quando declaro honestas determinadas
pessoas de um grupo, omitindo referência às demais);
d) interrogativa (‘será você um gatuno?’);
e) dubitativa ou suspeitosa (‘talvez seja Fulano um intrujão’);
f) irônica (quando alguém, como dizia Farinácio, ‘alteri dicit
aliquid bonum, sed ironice etc um animo injuriandi’);
g) reticente ou elíptica (‘a senhora X, formosa e... modelar’);
h) por fingido quiprocó (‘o meretríssimo, digo, meritíssimo juiz’);
i) condicionada ou por hipótese (quando se diz de alguém que
seria um canalha, se tivesse praticado tal ou qual ação,
sabendo-se que ele realmente a praticou);
j) truncada (‘a senhora X não passa de uma p...’);
k) simbólica (dar-se o nome de alguém a um cão ou asno;
imprimir o retrato de alguém em folhas de papel higiênico;
pendurar chifres à porta de um homem casado).”42
Realmente, a capacidade de imaginação e a precisão no
raciocínio são características marcantes em Hungria, que
conseguiu, como nenhum outro, esgotar as possibilidades de meios
de execução e formas no cometimento do delito de injúria.
4.8
Perdão judicial
Dizem os incisos I e II do § 1º do art. 140 do Código Penal:
§ 1º O juiz pode deixar de aplicar a
pena:
I – quando o ofendido, de forma
reprovável, provocou diretamente a
injúria;
II – no caso de retorsão imediata, que
consista em outra injúria.
Trata-se, in casu, de possibilidade de concessão de perdão
judicial nas hipóteses previstas.
A primeira delas diz respeito ao fato de ter a própria vítima da
injúria provocado, de forma reprovável, o agente.
Estudos de vitimologia comprovam que, em determinadas
situações, o comportamento da vítima é fundamental como fator
estimulador ao delito por ela sofrido.
Há pessoas que, efetivamente, conseguem perturbar aqueles
que estão à sua volta. São, apesar das palavras chulas, “chatos
profissionais”, pessoas que têm o dom de irritar as outras com seu
comportamento e suas palavras.
Conhecendo a natureza do ser humano, que em muitas
ocasiões não consegue conter seus impulsos, o Código Penal,
sabiamente, trouxe essa possibilidade de aplicação do perdão
judicial ao agente que, provocado pela vítima, não resiste a essas
provocações e acaba por praticar contra ela o delito de injúria.
Conforme salienta Luiz Regis Prado:
“A ratio essendi do benefício legal reside na justa causa irae, ou
seja, o legislador reconhece que a palavra ou gesto ultrajante
decorreu de irrefreável impulso defensivo, por ocasião de
justificável irritação.”43
A segunda hipótese diz respeito à chamada retorsão imediata,
que resulta no fato de que o agente, injuriado inicialmente, no
momento imediatamente seguinte à injúria sofrida, pratica outra.
Tal situação é extremamente comum. Imagine-se a hipótese
daquele que, após discutir com a vítima, a chama de ignorante. No
calor da discussão, a vítima inicial devolve a agressão à sua honra,
chamando o primeiro agressor de analfabeto.
O que parece soar estranho com essa possibilidade de
aplicação de perdão judicial é que se o agente tivesse se defendido,
por exemplo, desferindo um tapa naquele que o ofendera
injustamente, interrompendo a agressão contra a sua pessoa, agiria
em legítima defesa.
Entretanto, caso venha a tão somente devolver a agressão
cometida contra sua honra, injuriando, também, o agressor inicial,
poderá, caso não lhe seja concedido o perdão judicial, responder
pelo delito contra a honra.
O raciocínio que podemos fazer, nesse caso, no sentido de dar
melhor ilação ao inciso II do § 1º do art. 140 do Código Penal, seria
compreender a retorsão como forma que tem o agente, uma vez
encerrada a agressão de que fora vítima, mas numa relação de
contexto, de continuidade com o anterior comportamento do
agressor inicial, que já esgotou sua conduta, de praticar,
imediatamente, outra injúria.
A distinção seria a seguinte:
1.
2.
Se o agente ainda estivesse praticando o delito contra a
honra da vítima, proferindo, incessantemente, palavras
ofensivas à sua dignidade ou decoro, esta poderia
interrompê-lo, inclusive com o uso moderado de violência
física, oportunidade na qual seria reconhecida a legítima
defesa;
Pode, no entanto, a agressão contra a honra da vítima terse esgotado, amoldando-se, outrossim, ao conceito de
agressão passada, o que inviabilizaria a legítima defesa.
Contudo, imediatamente após o término da agressão
contra a sua honra, a vítima, agora transformada em
agente, comete também, e de forma imediata à agressão
anterior, um delito contra a honra.
Registre-se, por oportuno, que o perdão judicial, nos casos
acima catalogados, não constitui direito subjetivo do agente, mas,
sim, mera faculdade atribuída ao julgador, que deverá ter a
sensibilidade de saber quando deverá ser aplicado ao caso
concreto, ou seja, as situações nas quais qualquer pessoa teria
agido da forma como atuou o agente.
Em sentido contrário, Yuri Carneiro Coêlho assevera que:
“Se o juízo reconhecer as hipóteses aqui previstas, trata-se de
direito público subjetivo do réu, que entendemos não pode ser
negado, ou seja, com o reconhecimento na sentença da
situação geradora da possibilidade de concessão do perdão
judicial, deve o magistrado concedê-la.”44
4.9
Modalidades qualificadas
O art. 140 do Código Penal prevê, em seus §§ 2º e 3º, duas
modalidades qualificadas de injúria.
A primeira delas, denominada injúria real, ocorre quando a
injúria consiste em violência ou vias de fato, que, por sua natureza
ou pelo meio empregado, são consideradas aviltantes.
A segunda, reconhecida como injúria preconceituosa, diz
respeito à injúria praticada com a utilização de elementos referentes
a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou
portadora de deficiência.
Em virtude das especificidades correspondentes a cada uma
delas,
analisaremos
as
duas
modalidades
qualificadas
isoladamente.
4.9.1
Injúria real
Na injúria real, a violência ou as vias de fato são utilizadas não
com a finalidade precípua de ofender a integridade corporal ou a
saúde de outrem, mas, sim, no sentido de humilhar, desprezar,
ridicularizar a vítima, atingindo-a em sua honra subjetiva.
Como regra, a injúria real cria na vítima uma sensação de
impotência e inferioridade diante do agente agressor.
Fragoso afirma que o Código Penal:
“Classifica a injúria real entre os crimes contra a honra, dando,
assim, prevalência ao bem jurídico que o agente visa ofender.
Há injúria real sempre que a ofensa à dignidade ou ao decoro
se faz por vias de fato ou violência pessoal, desde que sejam
aviltantes por sua própria natureza ou pelo meio empregado.”45
Podem ser caracterizados como injúria real o tapa no rosto que
tenha por finalidade humilhar a vítima, o puxão de orelha, o fato de o
agente ser expulso de algum lugar recebendo chutes em suas
nádegas, o cortar a barba ou o cabelo do agente. Nesse último
caso, a Bíblia nos conta uma passagem que retrata bem a finalidade
de humilhar, que reside no ato de, forçosamente, cortar a barba ou
os cabelos da vítima, quando os servos de Davi tiveram a barba
raspada pela metade, bem como as roupas também cortadas pela
metade até as nádegas.46
A pena prevista para o delito de injúria real é a de detenção, de
3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa, além da pena correspondente
à violência.
Isso significa que o agente, além de ser responsabilizado pela
injúria real, também deverá responder pela prática do delito de lesão
corporal – leve, grave ou gravíssima – por ele levado a efeito como
meio de execução da injúria.
Discute-se, aqui, a natureza do concurso de crimes a ser
adotado, vale dizer, se o concurso material, previsto no art. 69 do
Código Penal, ou o concurso ideal de crimes, que encontra previsão
no art. 70 do mesmo diploma repressivo.
Somos partidários da posição que entende ser aplicável o
concurso formal. Entretanto, como o agente atuou com desígnios
autônomos, será cabível a regra do cúmulo material, prevista na
parte final do referido art. 70, assim redigido:
Art. 70. Quando o agente, mediante
uma só ação ou omissão, pratica dois
ou mais crimes, idênticos ou não,
aplica-se-lhe a mais grave das penas
cabíveis ou, se iguais, somente uma
delas, mas aumentada, em qualquer
caso, de um sexto até a metade. As
penas
aplicam-se,
entretanto,
cumulativamente, se a ação ou
omissão é dolosa e os crimes
concorrentes resultam de desígnios
autônomos, consoante o disposto no
artigo anterior.
Por último, merece ser destacado o fato de que somente a
violência que se configure em lesões corporais deverá ser punida
juntamente com o crime de injúria real, ficando afastada a
responsabilidade penal do agente que, na prática desse delito, se
valeu das vias de fato.
4.9.2
Injúria preconceituosa
O § 3º do art. 140 do Código Penal, com a nova redação
determinada pela Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003, comina
uma pena de reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos e multa, se a injúria
consiste na utilização de elementos referentes à raça, cor, etnia,
religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de
deficiência.
Não se deve confundir a injúria preconceituosa com os crimes
resultantes de preconceitos de raça ou de cor, tipificados na Lei nº
7.716, de 5 de janeiro de 1989.
O crime de injúria preconceituosa pune o agente que, na prática
do delito, usa elementos ligados à raça, cor, etnia etc. A finalidade
do agente, com a utilização desses meios, é atingir a honra
subjetiva da vítima, bem juridicamente protegido pelo delito em
questão.
Ao contrário, por intermédio da legislação que definiu os crimes
resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia,
religião ou procedência nacional, são proibidos comportamentos
discriminatórios, em regra mais graves do que a simples agressão à
honra subjetiva da vítima, mas que, por outro lado, também não
deixam de humilhá-la, a exemplo do que acontece quando alguém
recusa, nega ou impede a inscrição ou ingresso de aluno em
estabelecimento de ensino público ou privado de qualquer grau,
tendo o legislador cominado para essa infração penal, tipificada no
art. 6º da Lei nº 7.716/89, uma pena de reclusão de 3 (três) a 5
(cinco) anos.
Merece ser frisado, ainda, que, quando a Constituição Federal,
no inciso XLII do art. 5º, assevera que a prática do racismo47
constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de
reclusão, nos termos da lei, não está se referindo à injúria
preconceituosa, mas, sim, às infrações penais catalogadas pela
referida Lei nº 7.716/89.
Finalmente, apesar da maior reprovabilidade do comportamento
que se subsume ao conceito de injúria preconceituosa, vale o
registro, aqui, da desproporcionalidade das penas a ela cominadas,
que foram sensivelmente aumentadas por intermédio da Lei nº
9.459, de 13 de maio de 1997, se comparadas àquelas previstas
para o delito de homicídio culposo, ou mesmo para o crime de
autoaborto, tipificado no art. 124 do Código Penal.
4.10
Pena, ação penal, competência para julgamento e
suspensão condicional do processo
O preceito secundário do art. 140, caput, do Código Penal
comina ao crime de injúria simples a pena de detenção, de 1 (um) a
6 (seis) meses, ou multa; para a injúria real foi prevista a pena de
detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa, além da pena
correspondente à violência; finalmente, ao delito de injúria
preconceituosa, entendeu por bem o legislador cominar uma pena
de reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos e multa.
A pena será aumentada de um terço, nos termos do caput do
art. 141 do Código Penal, se a injúria for cometida:
I – contra o Presidente da República,
ou
contra
chefe
de
governo
estrangeiro;
II – contra funcionário público, em
razão de suas funções, ou contra os
Presidentes do Senado Federal, da
Câmara dos Deputados ou do
Supremo Tribunal Federal;
III – na presença de várias pessoas,
ou por meio que facilite a divulgação
da calúnia, da difamação ou da injúria.
O inciso IV do art. 141 não se aplica à injúria em virtude do art.
140, § 3º.
Poderá, ainda, vir a ser dobrada se a injúria for cometida
mediante paga ou promessa de recompensa, conforme determina o
§ 1º do art. 141 do diploma repressivo.
Nos termos do § 2º do referido artigo, se o crime é cometido ou
divulgado em quaisquer modalidades das redes sociais da rede
mundial de computadores, aplica-se em triplo a pena.
A ação penal será de iniciativa privada, conforme determina o
caput do art. 145 do Código Penal, sendo, contudo, de iniciativa
pública condicionada à requisição do Ministro da Justiça, quando o
delito for praticado contra o Presidente da República ou chefe de
Governo estrangeiro, ou de iniciativa pública condicionada à
representação do ofendido quando o crime for cometido contra
funcionário público, em razão de suas funções, como também na
hipótese de injúria preconceituosa, prevista no § 3º do art. 140 do
Código Penal, nos termos do parágrafo único do art. 145 do mesmo
diploma repressivo, com a nova redação que lhe foi conferida pela
Lei nº 12.033, de 29 de setembro de 2009.
O STF, por intermédio da Súmula nº 714, assim se posicionou:
Súmula nº 714. É concorrente a legitimidade do ofendido,
mediante queixa, e do Ministério Público, condicionada à
representação do ofendido, para a ação penal por crime contra
a honra de servidor público em razão do exercício de suas
funções.
No caso de injúria real, se da violência empregada resultar
lesão corporal, a ação penal será de iniciativa pública
incondicionada, nos termos do art. 145 do Código Penal.
Compete, pelo menos inicialmente, ao Juizado Especial
Criminal o processo e julgamento do delito tipificado no art. 140 do
Código Penal, tendo em vista que a pena máxima cominada em
abstrato não ultrapassa o limite de 2 (dois) anos, nos termos do art.
61 da Lei nº 9.099/95, com a nova redação que lhe foi dada pela Lei
nº 11.313, de 28 de junho de 2006, excepcionando-se a chamada
injúria preconceituosa, prevista no § 3º do art. 140 do Código Penal,
cuja pena máxima cominada é de 03 (três) anos.
Será possível a confecção de proposta de suspensão
condicional do processo nas três modalidades de injúria – simples,
real e preconceituosa –, desde que, neste último caso, não incida a
majorante prevista no art. 141 do Código Penal.
4.11
4.11.1
Destaques
Injúria contra pessoa morta
Ao contrário do delito de calúnia, não encontra previsão
expressa no Código Penal a injúria proferida contra os mortos.
Noronha afirma que “o morto não pode ser injuriado, como
irretorquivelmente deixa dito o art. 138, § 2º: a lei vigente ab-rogou a
anterior (art. 324). Nada impede, entretanto, que se injurie o vivo,
denegrindo o morto”,48 exemplificando com a hipótese daquele que
diz que o falecido era um rufião, pois vivia à custa da esposa.
Entendemos não ser cabível a injúria contra os mortos. Isso
porque, como não existe exceção à regra constante do caput do art.
140, tal como acontece com o § 2º do art. 138 ambos do Código
Penal, não podemos interpretar a expressão injuriar alguém no
sentido de nela abranger também a memória dos mortos, ou
mesmo, por extensão, as pessoas que lhe são próximas, pois, caso
contrário, estaríamos levando a efeito o emprego da analogia in
malam partem.
Como é cediço, o morto já não mais se amolda ao conceito de
alguém, razão pela qual, por ausência de permissão legal expressa,
não poderá sua memória ser protegida pela norma do art. 140 do
estatuto repressivo.
4.11.2
Contexto da injúria
Para que se possa concluir pelo delito de injúria, devemos levar
em consideração uma série de circunstâncias fundamentais à sua
caracterização.
Muitas vezes, à primeira vista, achamos que duas pessoas
estão quase para chegar às vias de fato quando, na verdade, são
dois amigos que possuem um modo diferente de demonstrar sua
estima um pelo outro. Gritam, proferem palavrões, empurram, enfim,
praticam toda sorte de comportamentos que, para quem não os
conhece, dão a impressão de que estão prestes a se engalfinhar.
Assim também devemos levar em consideração aquelas
palavras que, extraídas do contexto em que foram proferidas, com
certeza se consubstanciariam em agressão à honra da vítima.
Imagine-se a hipótese daquele que, ao encontrar um amigo de
muitos anos, proclama o seguinte: “Seu ordinário irresponsável,
você sumiu deixando todo mundo aflito, querendo notícias suas!”
Chamar alguém de ordinário e, ainda, de irresponsável pode
denegrir a honra subjetiva daquele contra quem são dirigidas essas
afirmações. Contudo, no contexto em que as colocamos, não
passam de palavras que demonstram o quanto aquela pessoa era
querida, ou seja, o quanto fez falta sua presença.
Também é muito comum a situação em que namorados
colocam apelidos estranhos uns nos outros, e somente eles acham
lindo ser chamados daquela forma. A sociedade vem mudando com
frequência e, com isso, novos costumes e conceitos vão sendo
introduzidos. Não faz muito tempo, chamar uma mulher de cachorra
era altamente humilhante. Hoje em dia, como se percebe pelos sons
e imagens de bailes funk divulgados a toda hora, muitas meninas
gostam de ser chamadas dessa forma, razão pela qual, pelo menos
com relação a elas, não se poderia configurar a injúria.
Há palavras que, em algumas situações, até enaltecem a
pessoa da suposta vítima. Muitos atletas, por exemplo, gostam
quando são reconhecidos pela torcida como um “animal.”
Enfim, o contexto em que a “injúria” é cometida é fundamental
para sua configuração, oportunidade em que se verificará o dolo do
agente, ou seja, a finalidade que tem de ultrajar a honra subjetiva da
vítima, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, ou se, na verdade,
busca dar sentido completamente diferente ao de uma agressão à
honra daquela pessoa contra a qual são dirigidas as palavras ou
atitudes aparentemente injuriosas.
4.11.3
Discussão acalorada
Da mesma forma que nos delitos de calúnia e difamação,
discute-se a possibilidade de ser afastada a injúria quando proferida
durante o calor de uma discussão.
Conforme já nos posicionamos, não vemos por que afastar o
delito de injúria justamente nas situações em que ele é cometido
com mais frequência. Não nos convence o argumento de que a ira
do agente que profere, por exemplo, as palavras injuriosas durante
uma acirrada discussão, tenha o condão de afastar o seu dolo.
Tinha, como se percebe sem muito esforço, consciência e
vontade de ofender a vítima, elementos integrantes do conceito de
dolo.
4.11.4
Caracterização da injúria mesmo diante da veracidade das
imputações
Não se exige à caracterização da injúria que as imputações
ofensivas à honra subjetiva da vítima sejam falsas. As verdadeiras,
tal como acontece no delito de difamação, são puníveis pela norma
do art. 140 do Código Penal.
Assim, chamar de “burro” alguém que, notoriamente, possui
pouca sabedoria configura-se como injúria, não importando a
veracidade da imputação.
4.11.5
Injúria coletiva
Darcy Arruda Miranda, citando Nelson Hungria, menciona que
injúria coletiva é:
“A ofensa à honra dirigida a um grupo, classe ou categoria de
pessoas ligadas por algum atributo comum ou formando
coletividade homogênea, embora não vinculada organicamente.
Ainda que vários os ofendidos, não deve ser identificado um
crime múltiplo, mas único, pois, como diz Manzini, cada qual
dos membros da coletividade é atingido, não na sua distinta
individualidade, mas como parcela de um todo, não por sua
ação ou omissão individual, mas por ação ou omissão
associada; não na sua particular esfera jurídica, mas como
elemento de cooperação na esfera jurídica comum da
coletividade. Cada um dos componentes desta pode exercer o
direito de queixa, mas a pena aplicável é uma só.”49
4.11.6
Injúria e Código Penal Militar
O crime de injúria também encontra-se previsto nos arts. 216 e
217 do Código Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro
de 1969).
4.11.7
Injúria e Código Eleitoral
Se a injúria for proferida na propaganda eleitoral, ou com fins
eleitorais, o fato se amoldará, em virtude do princípio da
especialidade, aos arts. 326 e 327 do Código Eleitoral (Lei nº 4.737,
de 15 de julho de 1965), verbis:
Art. 326. Injuriar alguém, na
propaganda eleitoral, ou visando a
fins de propaganda, ofendendo-lhe a
dignidade ou o decoro:
Pena – detenção até seis meses, ou
pagamento de 30 a 60 dias-multa.
§ 1º O juiz pode deixar de aplicar a
pena:
I – se o ofendido, de forma reprovável,
provocou diretamente a injúria;
II – no caso de retorsão imediata, que
consista em outra injúria.
§ 2º Se a injúria consiste em violência
ou vias de fato, que, por sua natureza
ou meio empregado, se considerem
aviltantes:
Pena – detenção de três meses a um
ano e pagamento de 5 a 20 diasmulta,
além
das
penas
correspondentes à violência prevista
no Código Penal.
Art. 327. As penas cominadas nos
artigos. 324, 325 e 326, aumentam-se
de um terço, se qualquer dos crimes é
cometido:
I – contra o Presidente da República
ou chefe de governo estrangeiro;
II – contra funcionário público, em
razão de suas funções;
III – na presença de várias pessoas,
ou por meio que facilite a divulgação
da ofensa.
4.11.8
Divulgação de imagens depreciativas ou injuriosas à
pessoa do idoso
O art. 105 da Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003, que
dispõe sobre o Estatuto do Idoso, prevê uma pena de detenção de 1
(um) a 3 (três) anos e multa para aquele que exibe ou veicula, por
qualquer meio de comunicação, informações ou imagens
depreciativas ou injuriosas à pessoa do idoso, ou seja, aquele que,
de acordo com o art. 1º do mencionado estatuto, tem idade igual ou
superior a 60 (sessenta) anos.
4.12
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: qualquer pessoa.
Passivo: qualquer pessoa
(exceto a pessoa jurídica).
Objeto material
É a pessoa contra a qual é
dirigida a conduta praticada
pelo agente.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
A honra subjetiva.
Elemento subjetivo
»
»
É o dolo, seja ele direto ou
mesmo
eventual.
Há
necessidade do chamado
animus injuriandi.
A injúria não admite a
modalidade culposa.
Meios de execução
Todos os meios de expressão
do pensamento são hábeis à
execução do delito.
Consumação e tentativa
»
»
Consuma-se a injúria no
momento em que a vítima
toma conhecimento das
palavras ofensivas à sua
dignidade
ou
decoro.
Entretanto, não se faz
necessária a presença da
vítima no momento em que
o agente profere, por
exemplo, as palavras que
são ofensivas à sua honra
subjetiva.
Dependendo
do
meio
utilizado na execução do
crime, será possível o
reconhecimento
da
tentativa.
5.
5.1
DISPOSIÇÕES COMUNS AOS CRIMES CONTRA A HONRA
Causas de aumento de pena
O art. 141 e seu parágrafo único do Código Penal elencam
algumas causas que fazem com que a pena aplicada ao agente seja
especialmente aumentada, verbis:
Art. 141. As penas cominadas neste
Capítulo aumentam-se de um terço,
se qualquer dos crimes é cometido:
I – contra o Presidente da República,
ou
contra
chefe
de
governo
estrangeiro;
II – contra funcionário público, em
razão de suas funções, ou contra os
Presidentes do Senado Federal, da
Câmara dos Deputados ou do
Supremo Tribunal Federal;
III – na presença de várias pessoas,
ou por meio que facilite a divulgação
da calúnia, da difamação ou da injúria;
IV – contra pessoa maior de 60
(sessenta) anos ou portadora de
deficiência, exceto no caso de injúria.
§ 1º Se o crime é cometido mediante
paga ou promessa de recompensa,
aplica-se a pena em dobro.
§ 2º Se o crime é cometido ou
divulgado em quaisquer modalidades
das redes sociais da rede mundial de
computadores, aplica-se em triplo a
pena.
Como se verificou da leitura do art. 141, são três os aumentos
que devem ser aplicados: o primeiro, de um terço, quando
verificadas quaisquer das hipóteses catalogadas em seus incisos; o
segundo, que faz com que a pena seja dobrada, previsto no seu §
1º; e o terceiro se o crime é cometido ou divulgado em quaisquer
modalidades das redes sociais da rede mundial de computadores.
Para melhor compreensão, faremos a análise de cada uma das
causas de aumento de pena isoladamente.
5.1.1
Calúnia, difamação e injúria praticadas contra o Presidente
da República, ou contra chefe de governo estrangeiro,
contra funcionário público, em razão de suas funções, ou
contra os Presidentes do Senado Federal, da Câmara dos
Deputados ou do Supremo Tribunal Federal
A importância do cargo ocupado por determinadas pessoas faz
com que o Estado tente preservá-las ao máximo possível.
O conceito de um Presidente da República, por exemplo, tem
repercussão não somente interna, ou seja, no próprio país, como
também fora dele, tendo o condão, inclusive, de alavancar a
economia nacional, ou, por outro lado, atrapalhar as relações com
outros países.
Não faz muito tempo, a imprensa nacional noticiou o fato de
que um repórter estrangeiro havia divulgado uma notícia imputando
ao ex-Presidente Luís Inácio Lula da Silva a pecha de alcoólatra.
Larry Rohter, correspondente do New York Times no Brasil,
veiculou, naquele jornal, na edição de 9 de maio de 2004, a
informação de que “o Brasil era governado por um alcoólatra”,
gerando grave repercussão.
Esse fato, como se soube, repercutiu nacional e
internacionalmente, causando, até mesmo, uma pequena crise
diplomática.
O Código Penal, portanto, fez inserir uma causa especial de
aumento de pena ligada ao cargo ou à função exercida pela pessoa.
Entendeu que qualquer um dos crimes contra a honra – calúnia,
difamação e injúria –, se praticados contra funcionário público em
razão de suas funções, macula, mesmo que mediatamente, a
própria Administração Pública.
A Lei nº 14.197, de 1º de setembro de 2021 alterou o inciso II
do art. 141 do Código Penal, incluindo, expressamente, os
Presidentes do Senado Federal, da Câmara dos Deputados ou do
Supremo Tribunal Federal.
Assim, se a calúnia, difamação ou injúria for dirigida a qualquer
um deles, haverá o aumento de um terço, conforme determinado
pelo caput do art. 141 do diploma repressivo.
Deve-se ressaltar, contudo, que os crimes devem dizer respeito
à atuação de cada um deles na qualidade de Presidentes do
Senado Federal, da Câmara dos Deputados ou do Supremo
Tribunal Federal.
Dessa forma, se o presidente do Supremo Tribunal Federal,
durante uma discussão em família, é chamado de “corno” por seu
cunhado, o fato não diz respeito à sua atuação como Presidente
daquela Corte, razão pela qual não incidirá a majorante. Ao
contrário, imagine-se agora a hipótese de que alguém impute ao
referido Presidente a qualidade de corrupto, dizendo que “vende”
suas decisões a preço de ouro. Aqui, como se percebe, os crimes
estão ligados diretamente às suas funções como Presidente,
passando a incidir a causa especial de aumento de pena.
Noronha diz que o Código Penal majora:
“A pena contra a ofensa que se relaciona ao exercício de suas
funções; cogita-se, portanto, da vida funcional, que deve ser
mais fortemente defendida, pois, também, a dignidade da
função é aqui atingida. Devem, por isso, a injúria, a difamação
ou a calúnia assacadas contra o funcionário relacionar-se ao
exercício do cargo que exerce. Se se diz, v.g., que o tesoureiro
de certa repartição não passa de vil peculatário, a injúria é
qualificada; não assim se se afirma que, em certo dia, ele
seduziu determinada donzela: já agora não há qualificação da
calúnia, não há aumento de pena.”50
Isso significa que a honra maculada deve estar ligada
diretamente à função pública exercida pela vítima. Imputar a um
funcionário público o fato de que está envolvido com determinada
prática de corrupção configura-se como calúnia, com a majorante do
art. 141, II. Ao contrário, divulgar que o funcionário público que atua
em determinado setor da Administração não se importa que sua
esposa se relacione sexualmente com todos os seus colegas de
trabalho já não diz respeito às suas funções, razão pela qual fica
impossibilitado o aumento de pena.
Também merece ser destacada a diferença entre uma injúria
majorada e o crime de desacato. Hungria preleciona:
“Cumpre advertir que, se a ofensa é inflingida, oralmente ou por
atos, na presença do funcionário, o fato deixa de ser forma
qualificada do crime contra a honra, para configurar o crime de
desacato (art. 331), que, aliás, se apresenta ainda quando a
ofensa não se refira ao exercício da função, uma vez que atinja
o funcionário in officio, isto é, durante a sua específica atuação
funcional.”51
Dessa forma, ausente o funcionário público, o crime será o de
injúria, majorada ou não, dependendo de as palavras injuriosas, por
exemplo, dizerem respeito diretamente às funções da vítima. Ao
contrário, se o funcionário público estiver presente quando da
ofensa à sua honra subjetiva, no exercício de suas funções, o crime
será o de desacato.
Assim, imagine-se a hipótese em que o agente afirme que o
funcionário que trabalha no setor de compras seja corrupto. Como
ele não estava presente quando dessa imputação pejorativa à sua
honra subjetiva, que também atinge, mediatamente, a Administração
Pública, o crime será o de injúria, com a pena aumentada de um
terço, nos termos do art. 141, II, do Código Penal. Agora, suponha-
se que o agente diga ao próprio funcionário que ele é corrupto.
Nesse caso, restaria configurado o desacato.
A Lei nº 14.197, de 1º de setembro de 2021 alterou o inciso II
do art. 141 do Código Penal, incluindo, expressamente, os
Presidentes do Senado Federal, da Câmara dos Deputados ou do
Supremo Tribunal Federal.
Assim, se a calúnia, difamação ou injúria for dirigida a qualquer
um deles, haverá o aumento de um terço, conforme determinado
pelo caput do art. 141 do diploma repressivo.
Deve-se ressaltar, contudo, que os crimes devem dizer respeito
à atuação de cada um deles na qualidade de Presidentes do
Senado Federal, da Câmara dos Deputados ou do Supremo
Tribunal Federal.
Dessa forma, se o presidente do Supremo Tribunal Federal,
durante uma discussão em família, é chamado de “corno” por seu
cunhado, o fato não diz respeito à sua atuação como Presidente
daquela Corte, razão pela qual não incidirá a majorante. Ao
contrário, imagine-se agora a hipótese de que alguém impute ao
referido Presidente a qualidade de corrupto, dizendo que “vende”
suas decisões a preço de ouro. Aqui, como se percebe, os crimes
estão ligados diretamente às suas funções como Presidente,
passando a incidir a causa especial de aumento de pena.
5.1.2
Se qualquer um dos crimes contra a honra é cometido na
presença de várias pessoas, ou por meio que facilite a
divulgação da calúnia, da difamação ou da injúria
Os crimes de calúnia, difamação e injúria terão suas penas
aumentadas também em um terço se forem cometidos na presença
de várias pessoas. A primeira pergunta que deve ser feita é:
Quantas são essas várias pessoas? No caso do inciso III do art. 141
do Código Penal, devemos levar a efeito a chamada interpretação
declaratória, a fim de descobrir o real sentido da expressão várias
pessoas.
Mediante a interpretação declaratória, o intérprete não amplia
nem restringe o alcance da lei, pois apenas declara sua vontade,
seu real sentido.
Interpretando a palavra várias, chegamos à conclusão de que o
Código Penal exige, pelo menos, três pessoas. Isso porque, quando
a lei se contenta com apenas duas, ela o diz expressamente, como
no caso do art. 155, § 4º, IV, da mesma forma que quando exige um
mínimo de quatro pessoas, a exemplo do art. 146, § 1º, utiliza a
expressão mais de três pessoas.
Além do fato de ter sido cometido na presença de várias
pessoas, o inciso III do art. 141 do Código Penal também aumenta
especialmente a pena quando o crime for praticado por meio que
facilite a divulgação da calúnia, da difamação ou da injúria.
São exemplos desses meios que facilitam a divulgação dos
crimes contra a honra o uso de alto-falantes, a distribuição de
prospectos (folders), escrever os fatos ou as palavras injuriosas em
lugares de fácil acesso, como em muros, viadutos, afixação de
outdoors etc.
5.1.3
Se a calúnia e a difamação forem proferidas contra pessoa
maior de 60 (sessenta) anos ou portadora de deficiência
O Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003)
acrescentou o inciso IV do art. 141 do Código Penal.
O mencionado inciso, ao contrário das hipóteses anteriores de
aumento de pena, ressalvou o delito de injúria excluindo a
possibilidade de alguém ter sua pena majorada em virtude de ter
cometido o crime contra pessoa maior de 60 (sessenta) anos ou
portadora de deficiência, fatos esses que importam na aplicação do
§ 3º do art. 140 do Código Penal, que prevê a hipótese de injúria
qualificada, denominada preconceituosa.
Para que a pena seja majorada, é preciso que o agente
conheça a idade da vítima, bem como a deficiência de que é
portadora, pois, caso contrário, poderá ser alegado o erro de tipo.
Assim, se o agente atribui falsamente um fato definido como
crime a uma pessoa que, aparentemente, possui bem menos do que
60 (sessenta) anos, o erro sobre a idade da vítima terá o condão de
afastar a causa especial de aumento de pena prevista pelo inciso IV
do art. 141 do Código Penal.
O fato de a vítima ser portadora de deficiência também permite
a majoração da pena. termos do art. 2º da Lei nº 13.146, de 6 de
julho de 2015, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem
impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual
ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode
obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade
de condições com as demais pessoas.
Assim, qualquer pessoa que se amolde à definição contida no
mencionado dispositivo legal será considerada portadora de
deficiência, para fins de aplicação da causa de aumento de pena
prevista pelo inciso IV do art. 141 do Código Penal.
Tal como a idade, o agente deverá conhecer a deficiência da
vítima, sob pena de ser arguido o erro de tipo.
Deverá ser demonstrada nos autos a idade da vítima por meio
de documento hábil (certidão de nascimento, documento de
identidade etc.), conforme determinação contida no parágrafo único
do art. 155 do Código de Processo Penal, bem como deverá haver
prova pericial para fins de aferição da deficiência da vítima.
Se a calúnia, a difamação ou a injúria são cometidas
mediante paga ou promessa de recompensa
No caso em exame, alguém é contratado para denegrir a honra
da vítima (objetiva ou subjetiva), havendo aumento na pena, nos
termos do § 1º do art. 141 do Código Penal, em virtude da torpeza
dos motivos por meio dos quais o agente pratica a infração penal.
Conforme salienta Cezar Roberto Bitencourt:
“Nos crimes contra a honra, a paga ou a promessa de
recompensa é excepcionalmente elevada à condição de causa
de aumento de pena. Trata-se do chamado crime mercenário,
que sempre revela maior torpeza do agente, tornando-o
merecedor de maior reprovação penal. Nesse caso, em que a
pena aplicada deve ser dobrada, mandante e executor
respondem igualmente pelo crime com pena majorada.
Fundamenta a majoração da pena a vileza do comportamento
mercenário dos agentes.”52
No mesmo sentido, afirma Hungria que no crime mercenário
contra a honra deveriam responder com a pena duplicada tanto o
executor quanto o mandante.53
Entretanto, tal como no inciso I do § 2º do art. 121 do Código
Penal, entendemos que a majorante da paga e da promessa de
recompensa somente se aplica ao executor mercenário. Pode, até
mesmo, aquele que o contratou ter atuado impelido por um motivo
de relevante valor social, sendo-lhe aplicada a circunstância
atenuante prevista na alínea a do inciso III do art. 65 do Código
Penal.
Imagine-se a hipótese daquele que, impedido de participar de
determinada solenidade, na qual estaria presente um político
corrupto, contrate alguém para que expresse sua indignação,
ofendendo-lhe a honra subjetiva. Embora incomum, não podemos
dizer que o mandante tenha agido impelido por um motivo torpe,
característica da paga ou da promessa de recompensa, mas, sim,
desejando que fosse exteriorizado um sentimento nacional, em que
a nação, indignada com os atos praticados pelo mencionado político
corrupto, iria até mesmo se solidarizar com o agente.
Se o crime é cometido ou divulgado em quaisquer
modalidades das redes sociais da rede mundial de
computadores
O § 2º foi inserido no art. 141 do Código Penal através da Lei nº
13.964/2019, dizendo que se o crime é cometido ou divulgado em
quaisquer modalidades das redes sociais da rede mundial de
computadores, aplica-se em triplo a pena.
Aqui, faz-se necessária a aplicação dessa majorante em virtude
do alcance de uma quantidade incalculável de pessoas que poderão
tomar conhecimento dos crimes praticados pelo agente,
potencializando os danos causados à honra da vítima.
Por rede de computadores podemos entender um conjunto de
equipamentos interligados, que possibilitam a troca de dados, de
informações entre si. Existem vários tipos de rede, a exemplo da
Internet, das redes de área local (LAN), das redes de área pessoal
(PAN), das redes de campus, das redes globais (GAN), das
Internetworks, das metropolitan área network (MAN) etc.
A rede social é uma plataforma cuja finalidade principal é
conectar pessoas e compartilhar informações entre elas, e pode
possuir tanto um caráter pessoal quanto de natureza comercial ou
profissional. Podem se configurar através de diversas formas, a
exemplo de sites ou mesmo aplicativos. Hoje em dia, existem
diversas redes sociais, a exemplo do Facebook, Instagram,
Linkedin, Twitter, YouTube, TikTok, Snapchat etc.
5.2
Exclusão do crime e da punibilidade
O art. 142 e seus incisos determinam:
Art. 142. Não constituem injúria ou
difamação punível:
I – a ofensa irrogada em juízo, na
discussão da causa, pela parte ou por
seu procurador;
II – a opinião desfavorável da crítica
literária, artística ou científica, salvo
quando inequívoca a intenção de
injuriar ou difamar;
III – o conceito desfavorável emitido
por
funcionário
público,
em
apreciação ou informação que preste
no cumprimento de dever de ofício.
Parágrafo único. Nos casos dos
incisos nºs I e III, responde pela injúria
ou pela difamação quem lhe dá
publicidade.
A primeira indagação que nos devemos fazer diz respeito à
natureza jurídica dos incisos catalogados pelo art. 142 do Código
Penal. Damásio afirma serem causas especiais de exclusão da
antijuridicidade.54 No mesmo sentido, Cezar Roberto Bitencourt,
embora reconhecendo a divergência doutrinária a respeito da
natureza jurídica das mencionadas causas, preferindo denominá-las
causas especiais de exclusão de crime, esclarece:
“Há grande divergência na doutrina sobre a natureza jurídica
das hipóteses relacionadas neste dispositivo sobre a imunidade
penal ou excludente de crime. A doutrina tem-se referido à
natureza dessas excludentes ora como causas de exclusão de
pena, subsistindo, portanto, a estrutura criminosa da conduta;
ora como causas de exclusão da antijuridicidade, quando
subsistiria a tipicidade do fato, sendo, excepcionalmente,
afastada somente a contrariedade ao direito em razão dessas
circunstâncias que legitimariam a ação; e, finalmente, como
causas de exclusão da tipicidade, ante a ausência do animus
vel diffamandi, que não ignora, porém, a possibilidade da
exclusão da ilicitude do fato. Na verdade, as duas últimas
acepções praticamente se confundem ou se complementam.”55
Na verdade, podemos visualizar naturezas jurídicas diferentes
em cada um dos incisos previstos no art. 142 do Código Penal. Em
determinadas situações, como na hipótese do inciso I, pode o
agente, na discussão da causa, ter proferido palavras que tenham
por finalidade macular a honra subjetiva da vítima, não se podendo
falar, aqui, em exclusão do dolo, eliminando a tipicidade do fato,
mas, sim, em causas que afastam a punibilidade do agente, por
questões de política criminal.
Em outras, a exemplo do que ocorre com os incisos II e III,
pode o agente não ter atuado com o animus injuriandi vel
diffamandi,
afastando-se,
outrossim,
o
seu
dolo
e,
consequentemente, a própria tipicidade.
Merece ser frisado, por oportuno, que a lei penal somente
ressalva a injúria e a difamação, não incluindo em suas disposições
o crime de calúnia.
Entendemos que, nos casos de ofensa irrogada em juízo, na
discussão da causa, pela parte ou por seu procurador, o fato é
típico, ilícito e culpável, possuindo o inciso I do art. 142 do Código
Penal a natureza jurídica de causa que afasta a punibilidade.
Faremos, em seguida, a análise de cada uma das situações
enumeradas acima, para melhor compreensão do tema.
5.2.1
Ofensa irrogada em juízo, na discussão da causa, pela
parte ou por seu procurador
O inciso I do art. 142 do Código Penal cuida da chamada
imunidade judiciária. Para que possamos compreendê-la melhor, é
preciso dissecar o inciso I, com o objetivo de analisar cada uma das
situações por ele exigidas, vale dizer: a) que a ofensa tenha sido
levada a efeito em juízo; b) que tenha relação com a discussão da
causa; c) deve ter sido proferida pela parte ou por seu procurador.
Ofensa irrogada em juízo é aquela produzida perante qualquer
autoridade judiciária, logo após aberta a audiência ou sessão. Pode,
portanto, a ofensa, de acordo com o que deixamos antever, ser
proferida perante um juízo monocrático ou mesmo colegiado, a
exemplo do que ocorre com as sessões realizadas nos tribunais. O
fundamental é que a audiência ou sessão tenha tido início. Assim,
se alguém, no corredor do Fórum, antes de iniciada a audiência
para a qual todos estavam convocados, chama o autor da ação
penal de aproveitador e desonesto, pois, segundo o agente, a vítima
buscava uma vantagem, por meio da ação judicial, que não lhe era
devida, tal fato não será acobertado pela imunidade judiciária.
Pode ser realizada, também, intra-autos, ou seja, por escrito,
nos autos de um processo qualquer.
Nesse sentido, Luiz Regis Prado afirma:
“É imperioso que a ofensa irrogada em juízo, oralmente (v.g.
debates, interrogatórios, sustentação de recurso etc.) ou por
escrito (v.g., petição, alegações finais, memorial, razões de
recurso etc.), tenha conexão com o objeto do litígio ou
controvérsia.”56
Além de a obrigatoriedade da ofensa ser irrogada em juízo,
deve estar ligada à defesa da causa, ou seja, deve ter ligação com
os fatos que estão sendo discutidos em juízo. Assim, o fato de
chamar alguém de aproveitador e desonesto, na defesa que se faz
por conta de uma ação de cobrança que o agente entende como
indevida, pode estar acobertado pela imunidade judiciária, haja vista
sua ligação com a causa em litígio; ao contrário, dizer que a vítima é
“corno”, pois sua mulher tem o hábito de sair com qualquer pessoa
que conhece, não tem a menor ligação com a ação de cobrança,
razão pela qual o agente deverá responder pelo crime contra a
honra.
Finalmente, a última exigência legal é que a ofensa seja
proferida pela parte ou por seu procurador. Fragoso esclarece os
conceitos de parte e de procurador afirmando:
“Por parte entende-se qualquer dos sujeitos da relação
processual (autor, réu, assistente, opoente, litisconsorte e
inclusive os interessados em falência e inventário e o Ministério
Público). Procuradores são os profissionais que recebem
mandato para representação judicial das partes.
A ofensa pode ser praticada impunemente contra qualquer
pessoa, mesmo estranha ao litígio, desde que tenha alguma
relação com os fatos que constituem o objeto da ação.”57
O § 2º do art. 7º do Estatuto da Advocacia, indo mais além do
que o inciso I do art. 142 do Código Penal, assevera:
§ 2º O advogado tem imunidade profissional, não constituindo
injúria, difamação ou desacato puníveis qualquer manifestação
de sua parte, no exercício de sua atividade, em juízo ou fora
dele, sem prejuízo das sanções disciplinares perante a OAB,
pelos excessos que cometer.
O fato de ter estendido a imunidade profissional ao delito de
desacato trouxe sérias críticas ao mencionado parágrafo, fazendo
com que fosse proposta ação direta de inconstitucionalidade perante
o STF (ADI nº 1.127-8), tendo essa Corte, concedendo o pedido de
liminar, suspendido a eficácia do termo desacato em 6 de outubro
de 1994.
Há quatro situações que merecem análise mais detida, no que
diz respeito àquele que profere as ofensas ou contra quem elas são
irrogadas:
a)
b)
c)
d)
5.2.2
ofensa irrogada contra o juiz da causa;
ofensa irrogada contra o Ministério Público;
ofensa irrogada pelo juiz da causa;
ofensa irrogada pelo Ministério Público, que atua na
qualidade de custos legis.
Ofensa irrogada contra o juiz da causa
Podem as partes ou seus procuradores, na defesa da causa,
discutir entre si ou, ainda, o que não é incomum, ser o juiz da causa
também envolvido nessa discussão. Não podemos negar que,
infelizmente, existem juízes arrogantes que mais parecem ditadores
do que magistrados. Pode ocorrer que, na defesa da causa, a parte
ou seu procurador ofenda o julgador, praticando os crimes de
difamação e/ou injúria. Poderá, nesses casos, ser erigida em favor
da parte ou de seu procurador a imunidade judiciária?
Entendemos que sim, uma vez que a lei penal não faz qualquer
distinção, exigindo tão somente que seja na discussão da causa,
pela parte ou por seu procurador. Pode-se, como é cediço, discutir a
causa não somente com a parte adversa ou seu procurador, como
também com o juiz. Poderá estar ocorrendo uma arbitrariedade
gritante praticada pelo julgador, podendo a parte ou seu procurador,
na defesa da causa, tentar impedir o ato abusivo. No calor da
discussão, se vier, em tese, a praticar difamação ou injúria contra o
magistrado que tenha relação com a causa, o fato estará abrangido
pela imunidade judiciária.
Assim, por exemplo, se o julgador impede que uma testemunha
fundamental à elucidação dos fatos seja ouvida em juízo sem que
tenha, para tanto, qualquer motivo razoável, se a parte ou seu
procurador, tentando demover o juiz dessa ideia, depois de
esgotados todos os argumentos, chamar o juiz de arbitrário e
ditador, não poderá responder pelo delito de injúria.
Embora aduzindo a regra de que a imunidade não cobre a
ofensa dirigida ao magistrado, com a qual não concordamos, Heleno
Fragoso preleciona:
“É fácil compreender os excessos de linguagem que os
advogados acaso utilizem, ao profligar graves desvios
praticados pelas autoridades judiciárias, no cumprimento de seu
dever. E isso poderá chegar ao ponto máximo, se todo o juízo
se transforma num jogo de cartas marcadas, em que de nada
vale a prova, nem o direito, nem a justiça, julgando e
condenando os juízes a penas iníquas, os justos e os
inocentes, sem qualquer pudor, para atender a interesses que
nada têm a ver com os valores supremos que todos
perseguimos na realização da justiça.
Somos, os advogados, em tais circunstâncias, os sacerdotes de
um culto profanado. E é compreensível que não consigamos
sopitar a justa ira, que atingiu ao próprio Cristo ao expulsar os
vendilhões do templo. O dever de respeito, de lealdade e de
exatidão que temos para com os juízes é o respeito mesmo que
devemos à obra da justiça e à grande instituição de que os
magistrados são os representantes [...]. Não dispensa, portanto,
a retidão, a honestidade de propósitos, a compostura e a
seriedade dos magistrados, no exercício de suas funções quase
divinas. Não merece respeito o juiz corrupto e venal; o juiz
covarde ou pusilânime; o juiz que recebe ordens e
determinações ou atende aos peditórios e solicitações,
abandonando a independência e a imparcialidade, que
caracterizam a judicatura.”58
Hungria não aceitava qualquer ofensa dirigida à autoridade
judiciária, mesmo que na discussão da causa, dizendo:
“As partes ou respectivos patronos não podem ofender
impunemente a autoridade judiciária ou aqueles que intervêm
na atividade processual em desempenho de função pública.
Acima do interesse da indefinida amplitude de defesa de
direitos em juízo está o respeito devido à função pública, pois,
de outro modo, estaria implantada a indisciplina no foro e
subvertido o próprio decoro da justiça.”59
Entendemos a preocupação de Hungria, contudo, não podemos
deixar de encarar a realidade dos fatos no que diz respeito à
existência de abusos, de arbitrariedades, enfim, de todo tipo de
comportamento humano de que são acometidos os magistrados e
que causam, como bem destacou Fragoso, um sentimento de
revolta nas pessoas que lhe estão sendo submetidas.
É certo que a imunidade judiciária não pode, também, acobertar
abusos e indisciplinas sem sentido. O advogado que ofender o juiz,
por exemplo, pelo simples fato de ele ter feito uma pergunta que não
tinha a menor relevância para o desfecho da causa não pode estar
acobertado pela imunidade. A imunidade judiciária, quando erigida
contra o julgador, é tomada como um escudo de que a parte e/ou o
seu procurador se utilizam para que tenham a liberdade de trazer à
luz os atos abusivos, como gênero, do julgador. Caso isso não
ocorra, não poderá alegá-la pelo simples fato de arguir que as
ofensas foram irrogadas na discussão da causa.
5.2.3
Ofensa irrogada contra o Ministério Público
O Ministério Público pode ocupar a posição de parte na relação
processual ou assumir a postura de fiscal da lei (custos legis).
Entendemos que a parte e/ou seu procurador poderão arguir a
imunidade judiciária se, na discussão da causa, vierem a difamar ou
a injuriar o representante do Ministério Público, não importando a
posição que este ocupe, isto é, se parte ou fiscal da lei.
Deve ser levado a efeito, aqui, o mesmo raciocínio que fizemos
quando analisamos a possibilidade de ofensa irrogada contra o juiz
da causa, com o mesmo alerta de que a imunidade judiciária não
significa impunidade pelos abusos cometidos pela parte ou por seu
procurador.
Se, por exemplo, do nada, o procurador da parte, durante a
defesa da causa, chamar de preguiçoso o representante do
Ministério Público simplesmente com a finalidade de ofendê-lo, sem
que para tanto tenha tido qualquer motivo justificado, entendemos
que não poderá ser beneficiado com a imunidade judiciária.
Isso porque, conforme já salientamos acima, a ofensa deve ter
uma ligação direta com a causa que está sub judice, não abrigando
meros impropérios gratuitos e sem sentido.
A própria imunidade, por exemplo, do advogado, ou seja, do
procurador da parte, aquele que é encarregado de sua defesa
técnica, encontra limites na Constituição Federal, pois o seu art. 133
diz o seguinte:
Art. 133. O advogado é indispensável
à administração da justiça, sendo
inviolável
por
seus
atos
e
manifestações no exercício da
profissão, nos limites da lei.
É no Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906/1994) que o advogado
encontrará os limites que está obrigado a respeitar.
5.2.4
Ofensa irrogada pelo juiz da causa
O art. 360 do Código de Processo Civil (Lei nº 13.105, de 16 de
março de 2015) traduz os poderes, e também alguns deveres,
dirigidos aos magistrados para que possam conduzir com ordem,
segurança e urbanidade necessários ao bom andamento das
audiências, dizendo:
Art. 360. O juiz exerce o poder de
polícia, incumbindo-lhe:
I – manter a ordem e o decoro na
audiência;
II – ordenar que se retirem da sala de
audiência os que se comportarem
inconvenientemente;
III – requisitar, quando necessário,
força policial;
IV – tratar com urbanidade as partes,
os advogados, os membros do
Ministério Público e da Defensoria
Pública e qualquer pessoa que
participe do processo;
V – registrar em ata, com exatidão,
todos os requerimentos apresentados
em audiência.
Pode, outrossim, aquele que possui o dever de tratar com
urbanidade as partes, os advogados, os membros do Ministério
Público e da Defensoria Pública e qualquer pessoa que participe do
processo, abusar do seu próprio poder na condução dos trabalhos,
e ofender a parte ou seu procurador, proferindo palavras ou frases
das quais se extraiam os crimes de difamação ou/injúria. Estaria o
julgador também acobertado pela imunidade judiciária?
A resposta só pode ser negativa. Não poderá o juiz, justamente
aquele que tem o dever/poder de conduzir os trabalhos na
audiência, ignorar essa sua função, de extrema importância, para se
deixar influenciar pelo calor das discussões. Sua condição de
julgador o afasta da imunidade prevista no inciso I do art. 142 do
Código Penal, que é tão somente dirigida àqueles que gozam do
status de parte ou de seu procurador, razão pela qual deverá
eventualmente responder pelos delitos contra a honra praticados
durante os seus atos.
5.2.5
Ofensa irrogada pelo Ministério Público, que atua na
qualidade de custos legis
Se o representante do Ministério Público atua como parte na
relação processual, seja ela civil ou penal, estará abrigado pela
imunidade judiciária.
Contudo, se atuar no feito na qualidade de fiscal da lei, não
mais poderá arguir a mencionada imunidade, pois, nessa condição,
foge aos conceitos de parte e de seu procurador, determinados pelo
inciso I do art. 142 do Código Penal.
Guilherme de Souza Nucci, nesse sentido, afirma:
“O representante do Ministério Público somente pode ser
inserido no contexto da imunidade judiciária (como autor ou
como vítima da ofensa) quando atuar no processo como parte.
Assim é o caso do Promotor de Justiça que promove a ação
penal na esfera criminal. Se ele ofende a parte contrária ou for
por ela ofendido, não há crime. Entretanto, não se considera
parte, no sentido da excludente de ilicitude, que se refere com
nitidez à ‘discussão da causa’, o representante do Ministério
Público quando atua como fiscal da lei. Neste caso, conduz-se
no processo imparcialmente, tal como deve fazer sempre o
magistrado, não devendo ‘debater’ a sua posição, mas apenas
sustentá-la, sem qualquer ofensa ou desequilíbrio.”60
5.2.6
A opinião desfavorável da crítica literária, artística ou
científica, salvo quando inequívoca a intenção de injuriar ou
difamar
A crítica é algo que, se não for favorável, quase sempre
desagrada às pessoas, chegando, muitas vezes, em razão da sua
contundência, a ser considerada uma ofensa contra aquele em
virtude do qual é proferida.
Entretanto, o Código Penal, por intermédio do inciso II do art.
142, ressalva a possibilidade de ocorrer uma opinião desfavorável
da crítica literária, artística ou científica, sem que isso possa se
configurar difamação ou injúria, a não ser nos casos em que for
evidente a intenção do agente de macular a honra da vítima,
praticando, outrossim, os delitos de difamação e/ou injúria.
Ultimamente, por intermédio dos meios de comunicação de
massa, tem surgido uma avalanche de programas cuja finalidade,
quase única e exclusiva, é falar (mal) das pessoas. Para ser mais
claro, todos os programas falam sobre alguém. Contudo, esses
programas a que estou me referindo são feitos para especular a
vida íntima das pessoas, procurar os seus defeitos, em detrimento
das suas qualidades, enfim, são produzidos para atrair a multidão
de seus expectadores, que aguardam as últimas “fofocas”, sempre
na esperança de que alguma coisa de ruim ocorra com as pessoas
que são alvo de suas inadequadas investigações.
Também como regra, seus apresentadores se deliciam em
criticar as pessoas, apontando seus defeitos, o que, aliás, todos nós
temos.
Não foi para proteger esse tipo de situação que foi criado o
inciso II do art. 142 do Código Penal. Ele não foi feito para acobertar
abusos, insensibilidades, irresponsabilidades, mas, sim, para dar
segurança àqueles que, por profissão, têm o dever de comparar,
criticar, expor os defeitos ligados à literatura, arte ou ciência.
A crítica construtiva empurra a evolução. A crítica destrutiva
conduz a vítima à depressão. São fatos diferentes, que devem
receber tratamentos diferentes. Ao primeiro, o escudo legal; ao
segundo, o cárcere penal.
Nesses casos, somos da opinião de que o inciso II do art. 142
do Código Penal possui a natureza de causa que exclui a tipicidade
penal, uma vez que o agente, que atua na condição de crítico
literário, artístico ou científico não atua com animus injuriandi vel
diffamandi.
5.2.7
O conceito desfavorável emitido por funcionário público, em
apreciação ou informação que preste no cumprimento de
dever do ofício
O inciso III do art. 142 do Código Penal, ao se referir ao
conceito desfavorável emitido por funcionário público em suas
apreciações ou informações, ressalva que tudo isso é levado a
efeito no cumprimento de dever do ofício.
Dessa forma, quando o funcionário relata fatos, mesmo que
emitindo conceitos desfavoráveis, o faz em benefício da
Administração Pública, sendo seu dever de ofício relatar tudo com a
maior fidelidade possível, não deixando de informar tudo aquilo que
seja do interesse da Administração Pública, mesmo que com seus
conceitos venha a, aparentemente, macular a honra objetiva, ou
mesmo a honra subjetiva das pessoas.
Trata-se, portanto, de causa de justificação, que exclui a
ilicitude do fato, em razão do estrito cumprimento do dever legal.
Nesse sentido, afirma Fragoso:
“Também não há crime se o funcionário público emite conceito
injurioso ou difamatório sobre alguém, em apreciação ou
informação que preste no cumprimento de dever de ofício. A
hipótese é de cumprimento de dever legal, que exclui a
antijuridicidade da ação.
Deve o funcionário, no desempenho de sua função pública,
estar acobertado com a imunidade penal, para que possa
livremente emitir opiniões e prestar informações do interesse
público, sem o risco de sujeitar-se a processo penal. A
concorrência do animus infamandi é irrelevante. É
indispensável que se trate de ato praticado no cumprimento de
dever funcional, ou seja, no desempenho de suas funções
legais, dentro das atribuições do funcionário.”61
Possuindo a natureza de causa que afasta a ilicitude do fato,
não haverá crime, portanto, por parte do funcionário público que
atue nessa condição.
5.3
Agente que dá publicidade à difamação ou à injúria, nos
casos dos incisos I e III do art. 142 do Código Penal
O parágrafo único do art. 142 do Código Penal determina:
Parágrafo único. Nos casos dos nºs I e III, responde pela
injúria ou pela difamação quem lhe dá publicidade.
Isso significa que não está acobertado pelas imunidades
catalogadas nos mencionados incisos aquele que, tomando
conhecimento da difamação e/ou da injúria, dá publicidade a elas.
Na verdade, o agente que dá publicidade à difamação ou à
injúria pratica um delito autônomo de difamação ou injúria.
5.4
Retratação
Diz o art. 143 do Código Penal:
Art. 143. O querelado que, antes da sentença, se retrata
cabalmente da calúnia ou da difamação, fica isento de pena.
Parágrafo único. Nos casos em que o querelado tenha
praticado a calúnia ou a difamação utilizando-se de meios de
comunicação, a retratação dar-se-á, se assim desejar o
ofendido, pelos mesmos meios em que se praticou a ofensa.
Cuida-se, in casu, de causa de extinção da punibilidade,
prevista expressamente no art. 107, VI, do Código Penal.
Da redação do caput do mencionado artigo, destacamos dois
pontos fundamentais. Inicialmente, a retratação somente pode ser
levada a efeito nos delitos de calúnia e difamação, não sendo
possível no tocante à injúria.
Isso porque, neste caso, a retratação pode ter um efeito mais
devastador do que a própria injúria. A retratação sarcástica, por
exemplo, pode ter uma repercussão muito mais humilhante do que a
injúria inicial.
Assim, imagine-se a hipótese o agente ter afirmado que a
vítima era um analfabeto inculto e, em sede de retratação, desdizerse, afirmando, agora, que se cuida da pessoa com conhecimento e
cultura equiparáveis a Rui Barbosa.
O segundo detalhe importante do mencionado artigo diz
respeito ao fato de que somente pode haver retratação até antes da
publicação da sentença. Estando ainda os autos conclusos com o
julgador para que possa proferir sua decisão, não tendo esta sido,
ainda, publicada em cartório, poderá o querelado retratar-se
cabalmente da calúnia e da difamação, ficando, assim, isento de
pena.
Se for considerada extemporânea a retratação, na hipótese, por
exemplo, de já ter sido publicada a sentença condenatória, poderá o
querelado, ainda, retratar-se em grau de recurso, permitindo, assim,
que com esse seu comportamento possa ser aplicada a
circunstância atenuante prevista pela alínea b do inciso III do art. 65
do Código Penal.
Ao contrário da discussão travada em torno do que ocorre no
delito previsto no art. 342, § 2º, do Código Penal, no caso de
concurso de pessoas na prática dos crimes contra a honra, a
retratação realizada somente por um dos agentes não se comunica
aos demais. Segue-se a regra de que a retratação é pessoal
(incomunicável).
Em 11 de novembro de 2015, foi publicada a Lei nº 13.188, que
dispôs sobre o direito de resposta ou retificação do ofendido em
matéria divulgada, publicada ou transmitida por veículo de
comunicação social, inserindo um parágrafo único ao art. 143 do
Código Penal, que diz que nos casos em que o querelado tenha
praticado a calúnia ou a difamação utilizando-se de meios de
comunicação, a retratação dar-se-á, se assim desejar o ofendido,
pelos mesmos meios em que se praticou a ofensa.
Aqui, portanto, caso a calúnia ou a difamação tenham sido
cometidas através de meios de comunicação, para que a retratação
do querelado produza os efeitos previstos no caput do art. 143 do
diploma repressivo, ou seja, para que conduza à isenção de pena,
com a consequente extinção da punibilidade, nos termos do art.
107, VI, do mesmo estatuto penal, se for da vontade do ofendido,
deverá ser levada a efeito pelos mesmos meios em que se praticou
a ofensa.
Assim, por exemplo, se a calúnia ou a difamação foi publicada
em um jornal impresso, de circulação nacional, ou mesmo em um
programa de televisão, a retratação deverá ser neles veiculada.
Nesse sentido, determinam os arts. 2º e 4º da Lei nº 13.188, de
11 de novembro de 2015, verbis:
Art. 2º Ao ofendido em matéria
divulgada, publicada ou transmitida
por veículo de comunicação social é
assegurado o direito de resposta ou
retificação, gratuito e proporcional ao
agravo.
§ 1º Para os efeitos desta Lei,
considera-se
matéria
qualquer
reportagem, nota ou notícia divulgada
por veículo de comunicação social,
independentemente do meio ou da
plataforma de distribuição, publicação
ou transmissão que utilize, cujo
conteúdo atente, ainda que por
equívoco de informação, contra a
honra, a intimidade, a reputação, o
conceito, o nome, a marca ou a
imagem de pessoa física ou jurídica
identificada
ou
passível
de
identificação.
§ 2º São excluídos da definição de
matéria estabelecida no § 1º deste
artigo os comentários realizados por
usuários da internet nas páginas
eletrônicas
dos
veículos
de
comunicação social.
§ 3º A retratação ou retificação
espontânea, ainda que a elas sejam
conferidos os mesmos destaque,
publicidade, periodicidade e dimensão
do agravo, não impedem o exercício
do direito de resposta pelo ofendido
nem prejudicam a ação de reparação
por dano moral.
Art. 3º [...] Art. 4º A resposta ou
retificação atenderá, quanto à forma e
à duração, ao seguinte:
I − praticado o agravo em mídia
escrita ou na internet, terá a resposta
ou retificação o destaque, a
publicidade, a periodicidade e a
dimensão da matéria que a ensejou;
II − praticado o agravo em mídia
televisiva, terá a resposta ou
retificação o destaque, a publicidade,
a periodicidade e a duração da
matéria que a ensejou;
III − praticado o agravo em mídia
radiofônica, terá a resposta ou
retificação o destaque, a publicidade,
a periodicidade e a duração da
matéria que a ensejou.
§ 1º Se o agravo tiver sido divulgado,
publicado, republicado, transmitido ou
retransmitido em mídia escrita ou em
cadeia de rádio ou televisão para mais
de um Município ou Estado, será
conferido proporcional alcance à
divulgação da resposta ou retificação.
§ 2º O ofendido poderá requerer que a
resposta ou retificação seja divulgada,
publicada ou transmitida nos mesmos
espaço, dia da semana e horário do
agravo.
§ 3º A resposta ou retificação cuja
divulgação,
publicação
ou
transmissão não obedeça ao disposto
nesta Lei é considerada inexistente.
§ 4º Na delimitação do agravo, deverá
ser considerado o contexto da
informação ou matéria que gerou a
ofensa.
5.5
Pedido de explicações
O art. 144 do Código Penal aduz que se de referências, alusões
ou frases, se infere calúnia, difamação ou injúria, quem se julga
ofendido pode pedir explicações em juízo. Aquele que se recusa a
dá-las ou, a critério do juiz, não as dá satisfatórias, responde pela
ofensa.
Na verdade, o pedido de explicações diz respeito a um
procedimento anterior ao início da ação penal de iniciativa privada.
Pode ocorrer que o agente, embora não afirmando fatos ofensivos à
honra da vítima, deixe pairar no ar alguma dúvida, valendo-se de
expressões equívocas, com duplo sentido etc.
Diz Aníbal Bruno:
“Pode a ofensa dissimular-se na dubiedade de certos termos ou
na significação equívoca das expressões empregadas, ficando
incerto, assim, o próprio conteúdo da ofensa ou a indicação do
seu destinatário. Age o agressor perfidamente, encobrindo o
que procurava exprimir, ou envolvendo-o em frases duvidosas,
para excitar a atenção dos outros e dar mais efeito ao seu
significado injurioso.
Sendo assim ambígua a expressão da ofensa, pode quem se
julga por ela atingido pedir explicações em juízo. Se o acusado
se recusa a dá-las ou as dá de maneira não satisfatória,
responde pela ofensa.”62
Dessa forma, antes mesmo de ingressar em juízo com a
queixa-crime, o Código Penal faculta à vítima, como medida
preliminar, vir a juízo pedir explicações.
Pode ser que o agente, supostamente autor de um crime contra
a honra, não queira se explicar nessa medida preliminar. Embora,
pela redação do art. 143 do Código Penal, pareça que o agente será
condenado pela ofensa que praticou, caso não se explique em juízo,
ou mesmo se explicando, não o fazendo satisfatoriamente, na
verdade isso não importará em confissão ou mesmo em uma
condenação antecipada.
Caso a vítima ingresse em juízo com a queixa, deverá ser
procedida a normal instrução processual, com todos os princípios
inerentes ao devido processo legal, para que, ao final, comprovado
que a expressão dúbia tinha por finalidade macular a honra da
vítima, o agente seja condenado pelo delito cometido – calúnia,
difamação ou injúria.
Poderá, da mesma forma, ser absolvido, se restar demonstrado
que nada fez com a finalidade de atingir a honra da vítima.
Se, ao contrário, o agente resolve explicar-se em juízo e, em
virtude disso, dissipa a dúvida com relação aos termos e expressões
dúbias por ele utilizados que, em tese, maculariam a honra da
vítima,
restará
afastado
o
seu
dolo,
eliminando-se,
consequentemente, a infração penal a ele atribuída.
Cezar Roberto Bitencourt ainda alerta para o fato de que:
“O juízo de equivocidade é do próprio ofendido e não do juiz
que processa o pedido de explicações. Aliás, o juiz não julga
nem a equivocidade das palavras que podem ter caráter
ofensivo nem a recusa ou a natureza das explicações
apresentadas. A competência para avaliar (julgar, neste caso,
parece-nos uma expressão muito forte) a eficácia ou
prestabilidade das explicações será do juiz da eventual ação
penal, quando esta for proposta e se for. Na realidade, o juiz
não julga a natureza das explicações ou a sua recusa, mas,
havendo o oferecimento da peça preambular da ação penal
(denúncia ou queixa), num exame prévio sobre a (in)existência
de justa causa, avaliará se as explicações atendem os
postulados do art. 144. Concebendo-as como satisfatórias,
rejeitará a queixa ou a denúncia; o mesmo deverá ocorrer com
eventual recusa do interpelado, que silencia.”63
Finalmente, não existe procedimento específico para o pedido
de explicações que venha determinado pelo Código de Processo
Penal ou mesmo pelo Código Penal, razão pela qual se tem
entendido que o pedido deve ser encaminhado a uma das Varas
Criminais que seria a competente para o julgamento da ação penal,
adotando-se aqui, segundo o magistério de Cezar Roberto
Bitencourt,64 o procedimento previsto no Código de Processo Civil
(Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015), relativo à notificação e à
interpelação, nos termos dos arts. 726 a 729.
5.6
Lei de imprensa não foi recepcionada pela nova ordem
constitucional
No que diz respeito ao fato de não ter sido a Lei de Imprensa
recepcionada pela nova ordem constitucional, assim decidiu o STF:
“Arguição de descumprimento de preceito fundamental (adpf).
Lei de imprensa. Adequação da ação. Regime constitucional da
‘liberdade de informação jornalística’, expressão sinônima de
liberdade de imprensa. A ‘plena’ liberdade de imprensa como
categoria jurídica proibitiva de qualquer tipo de censura prévia.
A plenitude da liberdade de imprensa como reforço ou
sobretutela das liberdades de manifestação do pensamento, de
informação e de expressão artística, científica, intelectual e
comunicacional. Liberdades que dão conteúdo às relações de
imprensa e que se põem como superiores bens de
personalidade e mais direta emanação do princípio da
dignidade da pessoa humana. O capítulo constitucional da
comunicação social como segmento prolongador das liberdades
de manifestação do pensamento, de informação e de expressão
artística, científica, intelectual e comunicacional. Transpasse da
fundamentalidade dos direitos prolongados ao capítulo
prolongador. Ponderação diretamente constitucional entre
blocos de bens de personalidade: o bloco dos direitos que dão
conteúdo à liberdade de imprensa e o bloco dos direitos à
imagem, honra, intimidade e vida privada. Precedência do
primeiro bloco. Incidência a posteriori do segundo bloco de
direitos, para o efeito de assegurar o direito de resposta e
assentar responsabilidades penal, civil e administrativa, entre
outras consequências do pleno gozo da liberdade de imprensa.
Peculiar fórmula constitucional de proteção a interesses
privados que, mesmo incidindo a posteriori, atua sobre as
causas para inibir abusos por parte da imprensa.
Proporcionalidade
entre
liberdade
de
imprensa
e
responsabilidade civil por danos morais e materiais a terceiros.
Relação de mútua causalidade entre liberdade de imprensa e
democracia. Relação de inerência entre pensamento crítico e
imprensa livre. A imprensa como instância natural de formação
da opinião pública e como alternativa à versão oficial dos fatos.
Proibição de monopolizar ou oligopolizar órgãos de imprensa
como novo e autônomo fator de inibição de abusos. Núcleo da
liberdade de imprensa e matérias apenas perifericamente de
imprensa. Autorregulação e regulação social da atividade de
imprensa. Não recepção em bloco da Lei nº 5.250/1967 pela
nova ordem constitucional. Efeitos jurídicos da decisão.
Procedência da ação” (STF. ADPF 130/DF. Rel. Min. Ayres
Britto, Tribunal Pleno, julg. 30/4/2009, DJe 208, div. 5/11/2009,
pub. 6/11/2009, Ement. 02381-01 PP-00001).
1
Conforme esclarece Emiliano Borja Jiménez, “a pessoa humana se caracteriza tanto
por sua individualidade como por sua sociabilidade. Como ente social, o ser humano
se integra na comunidade, se relaciona com seus semelhantes na família, na escola,
no trabalho, nos centros de lazer etc. Essa abertura do sujeito até os demais leva
acompanhado não somente seu reconhecimento pessoal pelo grupo, senão também
que cada um dos indivíduos fique identificado por nosso trabalho, nossa capacidade,
nossa bondade ou maldade, por nossa cultura etc. Quer dizer, junto a nossa imagem
física, que constitui o primeiro dado de nossa identidade que oferecemos à
comunidade, se encontra nossa imagem social, que vem constituída por um conjunto
de valorações sobre distintos aspectos de nossa personalidade e nosso
comportamento. Quanto mais positiva seja essa imagem social, maiores condições
terá o indivíduo para desenvolver livremente sua personalidade e ser mais feliz. E,
vice-versa, quanto mais negativa seja dita imagem, maiores problemas encontrará o
sujeito para levar a cabo sua vida em comum com seus semelhantes, e possivelmente
seja mais desgraçado” (Curso de política criminal, p. 163-164).
2
MUÑOZ CONDE, Francisco. Derecho penal – Parte especial, p. 274.
3
FONTÁN BALESTRA, Carlos. Tratado de derecho penal, v. IV, p. 398.
4
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal – Parte especial (arts. 121 a 160,
CP), p. 184.
5
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VI, p. 38.
6
Dissertando sobre as origens históricas das imunidades parlamentares, Juan Carlos
Carbonell Mateu esclarece: “Foi precisamente a necessidade de proteger os primeiros
parlamentos frente às intromissões de outros poderes e especialmente de evitar as
atuações do monarca contra os representantes da soberania que fizeram nascer essas
inviolabilidades. Hoje, continua resultando necessária a tutela absoluta da função
parlamentar. A natureza de tal função requer uma absoluta liberdade que resulta
incompatível com o submetimento do Poder Legislativo ao controle absoluto de outros
poderes do Estado. Desde essa perspectiva, é evidente que a inviolabilidade
parlamentar não é um privilégio pessoal; daí que sua natureza não seja, a meu juízo, a
de causa pessoal de exclusão da responsabilidade criminal. No meu entender estamos
diante de uma autêntica causa de justificação [...]: cumprimento de um dever, exercício
legítimo de um direito, ofício ou cargo (Derecho penal – Concepto y principios
constitucionales, p. 190).
7
JESUS, Damásio E. de. Direito penal, v. 2, p. 207.
8
CUNHA, Sanches Rogério. Manual de direito penal – parte especial, volume único, p.
188.
9
QUEIROZ, Paulo; e outros. Curso de direito penal – parte especial, v. 2, p. 157.
10
BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa, p. 289.
11
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 2, p. 327.
12
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VI, p. 49-50.
13
MUÑOZ CONDE, Francisco. Derecho penal – Parte especial, p. 285.
14
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 223.
15
QUEIROZ, Paulo; e outros. Curso de direito penal – parte especial, v. 2, p. 153.
16
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 115-116.
17
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VI, p. 51-52.
18
JESUS, Damásio E. de. Direito penal, v. 2, p. 212.
19
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VI, p. 82.
20
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 228.
21
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 2, p. 343-344.
22
QUEIROZ, Paulo; e outros. Curso de direito penal – parte especial, v. 2, p. 164.
23
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal – Parte especial (arts. 121 a 160
CP), p. 195.
24
BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa, p. 273-274.
25
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VI, p. 67.
26
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VI, p. 84-85.
27
BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa, p. 297.
28
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VI, p. 49-50.
29
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 2, p. 354.
30
JESUS, Damásio E. de. Direito penal, v. 2, p. 219.
31
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 2, p. 361.
32
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 239.
33
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 2, p. 362.
34
BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa, p. 300.
35
MUÑOZ CONDE, Francisco. Derecho penal – Parte especial, p. 274.
36
GALVÃO, Fernando. Direito penal – crimes contra a pessoa, p. 298.
37
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 127.
38
TELES, Ney Moura. Direito penal, v. 2, p.279.
39
MUÑOZ CONDE, Francisco. Derecho penal – Parte especial, p. 278-279.
35
MUÑOZ CONDE, Francisco. Derecho penal – Parte especial, p. 278-279.
41
Atualmente, após a alteração levada a efeito pela Lei nº 12.015, de 7 de agosto de
2009, a denominação crimes contra os costumes deixou de existir, figurando em seu
lugar os crimes contra a dignidade sexual.
42
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VI, p. 95-96.
35
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 251.
44
COÊLHO, Yuri Carneiro. Curso de direito penal didático, p. 548/549.
45
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal – Parte especial (arts. 121 a 160
CP), p. 200.
46
No segundo livro de Samuel, Cap. 10, versículos 1 a 5, da Bíblia Sagrada consta a
seguinte passagem: “Depois disto, morreu o rei dos filhos de Amon, e seu filho Hanum
reinou em seu lugar. Então, disse Davi: Usarei de bondade para com Hanum, filho de
Naás, como seu pai usou de bondade para comigo. E enviou Davi servos seus para o
consolar acerca de seu pai; e vieram os servos de Davi à terra dos filhos de Amom.
Mas os príncipes dos filhos de Amom disseram ao seu senhor, Hanum: Pensas que,
por Davi te haver mandado consoladores, está honrando a teu pai? Porventura, não te
enviou ele os seus servos para reconhecerem a cidade, espiá-la e destruí-la? Tomou,
então, Hanum os servos de Davi, e lhes rapou metade da barba, e lhes cortou metade
das vestes até às nádegas, e os despediu. Sabedor disso, enviou Davi mensageiros a
encontrá-los, porque estavam sobremaneira envergonhados. Mandou o rei dizer-lhes:
Deixai-vos estar em Jericó, até que vos torne a crescer a barba; e, então, vinde.”
47
OBS.: Vide Decreto 10.932/2022, que promulgou a Convenção Interamericana contra
o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, firmada pelo
Brasil, na Guatemala, em 5 de junho de 2013.
48
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 127.
49
MIRANDA, Darcy Arruda. Comentários à lei de imprensa, p. 361.
50
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 133.
51
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VI, p. 112.
52
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 2, p. 397-398.
53
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VI, p. 116.
54
JESUS, Damásio E. de. Direito penal, v. 2, p. 229.
55
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 2, p. 399.
56
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 255.
57
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal – Parte especial (arts. 121 a 160,
CP), p. 206.
58
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal – Parte especial (arts. 121 a 160,
CP), p. 207.
59
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VI, p. 119-120.
60
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado, p. 457.
61
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal – Parte especial (arts. 121 a 160,
CP), p. 208.
62
BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa, p. 323-324.
63
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 2, p. 416.
64
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 2, p. 416.
Capítulo VI
Dos Crimes contra a
Liberdade Individual
1.
CONSTRANGIMENTO ILEGAL
Constrangimento ilegal
Art. 146. Constranger alguém,
mediante violência ou grave ameaça,
ou depois de lhe haver reduzido, por
qualquer outro meio, a capacidade de
resistência, a não fazer o que a lei
permite, ou a fazer o que ela não
manda:
Pena – detenção, de três meses a um
ano, ou multa.
Aumento de pena § 1º As penas
aplicam-se cumulativamente e em
dobro, quando, para a execução do
crime, se reúnem mais de três
pessoas, ou há emprego de armas.
§ 2º Além das penas cominadas,
aplicam-se as correspondentes à
violência.
§ 3º Não se compreendem na
disposição deste artigo:
I – a intervenção médica ou cirúrgica,
sem o consentimento do paciente ou
de seu representante legal, se
justificada por iminente perigo de vida;
II – a coação exercida para impedir
suicídio.
1.1
Introdução
O crime de constrangimento ilegal está inserido na Seção I do
Capítulo VI do Título I do Código Penal. Tem por finalidade,
portanto, como veremos mais adiante, proteger a liberdade pessoal,
seja ela física ou psicológica.
A liberdade é um direito que deve ser resguardado, tendo sido,
até mesmo, mencionada no preâmbulo de nossa Constituição
Federal, que diz:
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em
Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado
Demo crático, destinado a assegurar o exercício dos direitos
sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o
desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores
supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na
ordem interna e internacional, com a solução pacífica das
controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a
seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.”
Da mesma forma, no caput do seu art. 5º afirma:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei,
sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e
à propriedade, nos termos seguintes:
E no inciso II do mencionado art. 5º ficou consignado que:
II – ninguém será obrigado a fazer ou
deixar de fazer alguma coisa senão
em virtude da lei;
A figura típica do constrangimento ilegal, portanto, vem ao
encontro dos ditames constitucionais, punindo aquele que
constrange alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois
de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de
resistência, a não fazer o que a lei permite ou a fazer o que ela não
manda.
O tipo penal, outrossim, é composto pelo núcleo constranger,
que tem o sentido de impedir, limitar ou mesmo dificultar a liberdade
de alguém.
Para tanto, o agente atua com violência ou grave ameaça. A
violência de que cuida o texto é a chamada vis corporalis¸ ou seja,
aquela empreendida contra o próprio corpo da vítima; ao contrário, a
grave ameaça se consubstancia na vis compulsiva, exercendo
influência precipuamente sobre o espírito da vítima, impedindo-a de
atuar segundo a sua vontade.
Também prevê o art. 146 do Código Penal uma violência
entendida como imprópria, vale dizer, quando o agente, por
qualquer outro meio que não a violência ou a grave ameaça, reduz a
capacidade de resistência da vítima.
Aníbal Bruno, analisando essa modalidade de violência, afirma:
“Como outro qualquer meio que reduza a capacidade de
resistência, conforme o Código menciona, devemos
compreender ações químicas ou mesmo puramente psíquicas,
fora da ameaça, que restrinjam ou anulem a consciência, como
o uso de inebriantes, entorpecentes, ou a sugestão hipnótica,
ou o emprego das chamadas drogas da verdade ou da
confissão, destinadas a violentar o querer do paciente e dele
obter declarações sobre fatos que ele pretendia calar. Aliás,
com esses processos é que se pode anular de maneira mais
eficaz a vontade da vítima.”1
O constrangimento praticado pelo agente deve ser dirigido no
sentido de obrigar a vítima a não fazer aquilo que a lei permite ou
mesmo a fazer o que ela não manda.
Merece ser frisado que o delito de constrangimento ilegal
possui natureza subsidiária, ou seja, somente será considerado se o
constrangimento não for elemento típico de outra infração penal.
Assim, por exemplo, imagine-se a hipótese daquele que constrange
a vítima, mediante violência ou grave ameaça, a entregar-lhe
determinada importância em dinheiro. Como se percebe, a vítima
não tinha qualquer obrigação legal de entregar ao agente os valores
a ela pertencentes. Houve, portanto, um constrangimento nesse
sentido. Contudo, tal constrangimento veio tipificado no art. 158 do
Código Penal, que prevê o delito de extorsão.
Dessa forma, a extorsão é um delito especial em relação ao
constrangimento ilegal. Existe um dado a mais no delito de extorsão
que o especializa quanto ao mero constrangimento. Na extorsão,
deve o agente constranger a vítima no sentido de obter, para si ou
para outrem, indevida vantagem econômica. Essa indevida
vantagem econômica, isto é, essa motivação do agente é que torna
a extorsão especial comparativamente ao crime de constrangimento
ilegal.
Devemos ressaltar, ainda, o fato de que a subsidiariedade do
crime de constrangimento ilegal não é expressa, tal como ocorre
com o crime de perigo para a vida ou saúde de outrem, tipificado no
art. 132 do Código Penal, no qual se afirma que somente terá
aplicação se o fato não constituir crime mais grave, sendo, portanto,
implícita.
1.2
Classificação doutrinária
Crime comum com relação ao sujeito ativo, bem como quanto
ao sujeito passivo; doloso; material (pois a sua consumação
somente ocorre quando a vítima não faz o que a lei permite ou faz
aquilo que ela não manda); de forma livre, podendo ser praticado
comissiva ou omissivamente (desde que, nesta última hipótese, o
agente goze do status de garantidor); instantâneo; subsidiário
(somente se configurando a infração penal do art. 146 do Código
Penal se o constrangimento não for elemento de outra infração
penal mais grave); monossubjetivo; plurissubsistente; de dano;
transeunte.
1.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
A liberdade é o bem juridicamente protegido pelo tipo do art.
146 do Código Penal. Como afirmamos em nossa introdução, a lei
penal protege não somente a liberdade física, mas também a
liberdade psíquica. Nesse sentido, afirma Fragoso:
“O objeto da tutela jurídica é a liberdade individual, ou seja, a
livre autodeterminação da vontade e da ação. Trata-se de
liberdade psíquica (livre formação da vontade, sem coação), e
também da liberdade física (liberdade de movimento).”2
Objeto material do constrangimento ilegal é a pessoa que, em
razão dos meios utilizados pelo agente – violência, grave ameaça
ou qualquer outro que lhe reduza a capacidade de resistência –, é
obrigada a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não
manda.
1.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
Crime comum com relação ao sujeito ativo, o constrangimento
ilegal pode ser praticado por qualquer pessoa física, seja homem ou
mulher.
Da mesma forma, entende-se que qualquer pessoa pode figurar
como sujeito passivo do crime de constrangimento ilegal, desde que
tenha capacidade de discernimento, a fim de poder entender que
está sendo constrangida a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o
que ela não manda.
1.5
Consumação e tentativa
Consuma-se o delito quando a vítima deixa de fazer o que a lei
permite ou faz aquilo que ela não manda. Trata-se, portanto, de
crime material, que exige a produção do resultado naturalístico para
que se possa entender por consumado.
Merece registro a observação feita por Luiz Regis Prado,
quando aduz: “Ainda que o comportamento desejado seja parcial, e
não integralmente realizado pela vítima, tem-se como consumado o
delito.”3
No mesmo sentido, preleciona Magalhães Noronha:
“Não cremos necessário que o sujeito passivo tenha praticado
ou omitido integralmente a ação desejada pelo ativo ou, noutras
palavras, que tenha padecido todo o mal que esse tinha em
mira. A ação ou a inação parciais já constituem o evento.”4
Na qualidade de crime material e plurissubsistente, o
constrangimento ilegal admite a tentativa, podendo esta ocorrer, por
exemplo, quando a vítima, mesmo intimidada pelo agente, não deixa
de fazer aquilo que a lei permite, ou deixa de fazer aquilo que ela
não manda.
1.6
Elemento subjetivo
O dolo é o elemento subjetivo do delito de constrangimento
ilegal, seja ele direto ou, mesmo, eventual.
A conduta do agente deve ser dirigida finalisticamente a
constranger a vítima a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o
que ela não manda, identificando, aí, segundo a doutrina dominante,
aquilo que chamamos de especial fim de agir.
Portanto, para que se configure o tipo do constrangimento
ilegal, o constrangimento deve ser dirigido a alguma coisa, e essa
coisa, de acordo com a redação típica, é impedir que a vítima faça
aquilo que a lei permite, ou obrigá-la a fazer aquilo que a lei não
manda.
Não há previsão legal para a modalidade culposa.
1.7
Modalidades comissiva e omissiva
O tipo penal do art. 146 retrata um modelo comissivo de
comportamento. O ato “constranger”, previsto expressamente pela
figura típica, tem o sentido de agir, fazer alguma coisa para impedir
que a vítima faça aquilo que a lei permite, ou obrigá-la a fazer aquilo
que ela não manda.
Entretanto, seria possível o raciocínio do constrangimento ilegal
mediante uma conduta omissiva por parte do agente?
Acreditamos que sim, desde que o agente goze do status de
garantidor.
Imagine-se a hipótese daquela que, na qualidade de
enfermeira, obrigue um famoso ator, que está internado na
enfermaria em que ela trabalha, a dar-lhe um autógrafo com
palavras amorosas, sob pena de não aplicar-lhe a medicação
destinada a fazer com que seja aliviada sua dor.
Com isso queremos esclarecer que somente poderá haver o
constrangimento ilegal por omissão se o agente gozar do status de
garantidor, ou seja, desde que se amolde a qualquer uma das
alíneas previstas no § 2º do art. 13 do Código Penal.
1.8
Causas de aumento de pena
O § 1º do art. 146 do Código Penal determina:
§
1º
As
penas
aplicam-se
cumulativamente e em dobro, quando,
para a execução do crime, se reúnem
mais de três pessoas, ou há emprego
de armas.
Inicialmente, devemos dizer o que significa aplicar
cumulativamente, para depois saber quais serão as penas que
deverão ser duplicadas.
A palavra cumulativamente quer traduzir o fato de que, havendo
a reunião de mais de três pessoas, ou seja, no mínimo quatro, para
a prática do constrangimento, ou a utilização do emprego de armas,
as penas que, inicialmente, eram alternativas, ou seja, privativa de
liberdade ou multa, passam a ser cumulativas, quer dizer, privação
de liberdade mais a pena pecuniária. Além disso, as penas
respectivas serão dobradas, aplicando-se essa causa especial de
aumento somente no terceiro momento do critério trifásico de
aplicação da pena.
No que diz respeito à expressão emprego de armas, a lei penal
não faz qualquer distinção entre as chamadas armas próprias e
armas consideradas impróprias.
Esclarece Hungria:
“O texto legal fala em armas, no plural, mas apenas para
designar o genus, e não porque exija, necessariamente, a
multiplicidade delas. As armas podem ser próprias ou
impróprias: próprios são todos os instrumentos normalmente
destinados ao ataque ou a defesa, especificamente apropriados
a causar ofensas físicas [...]; impróprios são todos os
instrumentos que, embora não destinados aos ditos fins, têm
aptidão ofensiva e costumam ser usados para o ataque e a
defesa.”5
Na verdade, na identificação da arma como própria ou
imprópria, devemos levar em consideração a precipuidade do seu
uso, pois podem ter diversas finalidades que não as de ataque e
defesa. Assim, um revólver, por exemplo, tem o uso precípuo de
ataque e defesa, mas pode ser utilizado, eventualmente, para
quebrar nozes com a sua coronha. Ao contrário, uma faca de
cozinha serve, precipuamente, para cortar os alimentos, mas,
eventualmente, pode ser utilizada por alguém para atacar pessoas,
ou, mesmo, se defender.
Dessa forma, como já ressaltado por Hungria, a expressão
emprego de armas abrange qualquer de suas espécies, ou seja,
próprias e impróprias.
1.9
Concurso de crimes
Determina o § 2º do art. 146:
§ 2º Além das penas cominadas,
aplicam-se as correspondentes à
violência.
Embora um dos elementos integrantes do tipo do
constrangimento ilegal seja a violência, entendeu por bem a lei
penal puni-la de forma distinta. Assim, serão aplicadas também as
penas correspondentes ao delito de lesão corporal utilizado como
meio para a prática do constrangimento, seja a lesão leve, seja
grave ou gravíssima.
O entendimento doutrinário predominante é de que no § 2º do
art. 146 do Código Penal houve a previsão do chamado concurso
material de crimes, uma vez que, segundo sua redação, além das
penas cominadas ao constrangimento ilegal serão aplicadas,
também, aquelas que dizem respeito à violência praticada.
Esta a posição de Fragoso, quando afirma:
“Tal disposição significa que haverá concurso material de
crimes sempre que da violência empregada no constrangimento
resultarem lesões. Em todos os outros casos em que o
constrangimento ilegal é meio para a prática de outro crime
praticado contra a vítima, será ele sempre absorvido, ainda que
a pena seja mais leve.”6
Entretanto, permissa vênia, não acreditamos ser essa a melhor
posição. Isso porque, como é cediço, para que se possa falar em
concurso material ou real de crimes é preciso, de acordo com o art.
69 do Código Penal, que o agente, mediante mais de uma ação ou
omissão, pratique dois ou mais crimes, idênticos ou não.
Dessa forma, embora a regra a ser aplicada, conforme a
determinação legal, seja a do cúmulo material, tecnicamente,
estaremos diante do chamado concurso formal impróprio ou
imperfeito, previsto na segunda parte do art. 70 do Código Penal,
assim redigido:
Art. 70. Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão,
pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a
mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma
delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até
metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se
a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam
de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo
anterior.
Assim, se o agente, mediante o emprego de violência,
característica do crime de lesão corporal, vier a constranger a vítima
a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda, não
podemos deixar de visualizar, aqui, uma conduta única, que, por
disposição expressa nesse sentido (§ 2º do art. 146 do CP), se
consubstanciará em duas infrações penais, vale dizer,
constrangimento ilegal e lesão corporal.
Cezar Roberto Bitencourt assume posição no sentido de que,
embora não se tratando de concurso material, a lei penal adota tão
somente o critério do cúmulo material de penas, tampouco havendo
necessidade, mesmo sendo uma conduta única, produtora de duas
infrações penais, que o agente tenha atuado com desígnios
autônomos, assim se manifestando:
“O § 2º do art. 146 não criou uma espécie sui generis de
concurso material, mas adotou tão somente o sistema do
cúmulo material de aplicação de pena, a exemplo do que fez
em relação ao concurso formal impróprio (art. 70, 2a parte).
Assim, quando a violência empregada na prática do crime de
constrangimento ilegal constituir em si mesma outro crime,
havendo unidade de ação e pluralidade de crimes, estaremos
diante do concurso formal de crimes. Aplica-se, nesse caso, por
expressa determinação legal, o sistema de aplicação de pena
do cúmulo material, independentemente da existência ou não
de ‘desígnios autônomos’. A aplicação cumulativa de penas,
mesmo sem a presença de ‘desígnios autônomos’, constitui
uma exceção da aplicação de penas prevista para o concurso
formal impróprio.”7
1.10
Causas que conduzem à atipicidade do fato
O § 3º do art. 146 do Código Penal dispõe:
§ 3º Não se compreendem na
disposição deste artigo:
I – a intervenção médica ou cirúrgica,
sem o consentimento do paciente ou
de seu representante legal, se
justificada por iminente perigo de vida;
II – a coação exercida para impedir
suicídio.
Inicialmente, deve ser frisado que, embora exista controvérsia
doutrinária sobre a natureza jurídica das causas elencadas no § 3º
do art. 146, em virtude da redação contida no mencionado
parágrafo, não podemos deixar de compreender que se trata de
situações que conduzem à atipicidade do fato praticado pelo agente.
O referido parágrafo, de forma expressa, afirma que não se
compreendem, na disposição do art. 146, a intervenção médica ou
cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante
legal, se justificada por iminente perigo de vida, e a coação exercida
para impedir suicídio, afirmando, outrossim, serem atípicos esses
comportamentos, já que excluídos do tipo penal que prevê o
constrangimento ilegal.
Aníbal Bruno, entendendo contrariamente ao raciocínio acima
exposto, aduz:
“O Código menciona expressamente dois casos em que se
elimina a ilicitude do constrangimento. Em ambos, o agente
encontra-se em situação de necessidade, imposta para a
salvação da vida de outrem.”8
Apesar da autoridade do renomado autor, não entendemos ser
essa a melhor posição. Isso porque, para que se pudesse chegar à
conclusão de que os comportamentos previstos nos incisos I e II do
§ 3º do art. 146 são causas de justificação, excluindo a
antijuridicidade, seria preciso, primeiro, superar a barreira da
tipicidade, o que não se consegue no caso em exame, dada a
redação constante do mencionado parágrafo.
Dessa forma, é atípica a intervenção médica ou cirúrgica, sem o
consentimento do paciente ou de seu representante legal, se
justificada por iminente perigo de vida, bem como a coação exercida
para impedir suicídio. Na verdade, tal conduta não é antinormativa,
ou seja, não contraria a norma prevista no art. 146 do Código Penal,
por disposição expressa nesse sentido. Não houvesse tal
disposição, ainda assim poderíamos concluir pela atipicidade dos
fatos, caso aplicássemos o raciocínio correspondente à tipicidade
conglobante que, somada à tipicidade formal, faz surgir a chamada
tipicidade penal.
1.11
Pena, ação penal, competência para julgamento e
suspensão condicional do processo
O preceito secundário do art. 146 do Código Penal prevê uma
pena de detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa, sendo o
seu julgamento de competência do Juizado Especial Criminal,
levando-se em consideração a pena máxima cominada em abstrato,
aplicando-se todos os institutos que lhe são inerentes (transação
penal e suspensão condicional do processo).
A ação penal é de iniciativa pública incondicionada.
1.12
1.12.1
Destaques
Vítima que é constrangida a praticar uma infração penal
Quando analisamos os elementos que caracterizam as
hipóteses de constrangimento ilegal, verificamos duas situações: 1)
a vítima não faz o que a lei permite e 2) a vítima faz o que a lei não
a obriga a fazer.
Isso significa que o comportamento que a vítima foi
constrangida a praticar é um indiferente penal, ou seja, embora
forçada, física ou psicologicamente, a fazer ou a deixar de fazer
alguma coisa, esses fatos praticados pela vítima não se
consubstanciam em qualquer infração penal.
Assim, por exemplo, em um lugar aberto ao público, no qual
seja permitido fumar, um frequentador fisicamente mais forte do que
a vítima, incomodado com o cheiro da fumaça do cigarro, impede
que a vítima continue a fumá-lo. Naquele local era permitido fumar,
entretanto, a vítima foi impedida de fazê-lo. Fumar ou não fumar não
se configura como qualquer infração penal. Essa é a ideia do delito
de constrangimento ilegal.
Entretanto, pode ser que a vítima, por exemplo, seja
constrangida a praticar algum crime, dada a coação moral exercida
pelo agente, que ameaça matá-la caso não cumpra suas
determinações. Imagine-se o caso daquele que é obrigado, em
virtude das ameaças sofridas, a matar alguém, pois, caso contrário,
ele é quem seria morto. Não podendo socorrer-se às autoridades,
que não dão crédito à sua palavra, não tendo outro recurso, pois
não tem condições de se esconder do agente, a vítima cede à
pressão, à coação moral que recaía sobre a sua pessoa e,
finalmente, termina por matar alguém.
Pergunta-se: o agente que obrigou o coato a matar uma outra
pessoa deverá responder pelo constrangimento ilegal?
Inicialmente, devemos destacar o fato de que o Código Penal,
em seu art. 22, sob a rubrica da coação irresistível e obediência
hierárquica, determina:
Art. 22. Se o fato é cometido sob
coação irresistível ou em estrita
obediência
a
ordem,
não
manifestamente ilegal, de superior
hierárquico, só é punível o autor da
coação ou da ordem.
Assim, somente o coator, no exemplo fornecido, é quem deveria
responder pelo delito de homicídio. O coato, na verdade, não passa
de mero instrumento nas mãos do coator, tratando-se, portanto, de
situação que traduz a hipótese da chamada autoria mediata.
A pergunta que devemos responder agora é a seguinte: O
coator, ou seja, aquele que constrangeu alguém a matar a vítima,
além do delito de homicídio, também deverá ser responsabilizado
pelo constrangimento ilegal?
A doutrina se posiciona nesse sentido, conforme lições de
Aníbal Bruno:
“Se a força é irresistível e o resultado obtido constitui crime, por
ele responde não o coagido, a quem falta, na ação, vontade
juridicamente válida e, portanto, culpabilidade, mas o coator,
que sofrerá a agravação da pena e responderá
concorrentemente pelo constrangimento ilegal.”9
1.12.2
Vítima submetida a tortura a fim de praticar um fato
definido como crime
A alínea b do inciso I do art. 1º da Lei nº 9.455, de 7 de abril de
1997, que definiu os crimes de tortura, diz o seguinte:
Art. 1º Constitui crime de tortura:
I – constranger alguém com emprego
de violência ou grave ameaça,
causando-lhe sofrimento físico ou
mental:
a) [...];
b) para provocar ação ou omissão de
natureza criminosa;
[...].
Existe, na mencionada lei, um constrangimento ilegal
específico, destinado a causar um sofrimento físico ou mental, a fim
de que a vítima pratique uma ação ou omissão de natureza
criminosa.
Nesse caso, pergunta-se: Caso aquele que foi torturado venha,
efetivamente, a praticar uma ação ou omissão de natureza
criminosa, o agente torturador deverá responder pelas duas
infrações penais, ou seja, pelo delito de tortura, além do fato
definido como crime praticado pelo torturado?
Da mesma forma que no delito de constrangimento ilegal,
entende-se pelo concurso material de crimes, devendo responder
por ambas as infrações penais.
Vale o registro, entretanto, do alerta levado a efeito por
Fernando Capez, quando diz:
“Compartilhamos também desse posicionamento, contudo,
levando em conta que nem toda violência ou grave ameaça é
apta a causar intenso sofrimento físico ou mental, importa
distinguir as seguintes situações: a) se o emprego de violência
ou grave ameaça causar intenso sofrimento físico ou mental, o
coator responderá pelo crime de tortura em concurso material
com a ação ou omissão criminosa realizada pela vítima (autoria
mediata); o coagido não responderá por crime algum; b) se o
emprego de violência ou grave ameaça não causar intenso
sofrimento físico ou mental, restando à vítima liberdade de
escolha, responderá o coator pelo crime de constrangimento
ilegal em concurso material com o crime praticado pelo coagido.
É que, ausente o intenso sofrimento físico ou mental, o crime de
tortura não se configura, restando a aplicação subsidiária do
crime de constrangimento ilegal. O coagido também responderá
pelo crime praticado, com incidência da atenuante prevista no
art. 65, III, c, do Código Penal.”10
1.12.3
Suicídio como comportamento ilícito, porém atípico
O inciso II do § 3º do art. 146 do Código Penal permite
expressamente a coação exercida para impedir suicídio.
Já afirmamos que, ao contrário da doutrina dominante,
entendemos que esse fato não se amolda à figura típica do
constrangimento ilegal, uma vez que a própria lei penal diz que ele
não se compreende na disposição do art. 146.
Isso porque, embora o autoextermínio seja uma conduta
atípica, tem-se entendido pela sua ilicitude, abrindo-se, pois, a
possibilidade de ser praticada coação no sentido de evitar que o
resultado morte se consume.
Há uma diferença que devemos ressaltar entre atos imorais e
atos ilícitos.
Para os atos entendidos como imorais, a lei penal não fez
qualquer ressalva. Caso alguém, por exemplo, seja impedido de
praticá-los, o agente que o impediu deverá ser responsabilizado
pelo constrangimento ilegal.
Imagine-se a hipótese daquele que, percebendo que sua amiga
está se enveredando pelo caminho da prostituição, até mesmo com
o fim de ajudá-la, não permite que, em determinado dia, ela vá para
as ruas se prostituir. A prostituição, como se sabe, não é proibida
pelo nosso ordenamento jurídico-penal. Não existe ilicitude no
comportamento do que se prostitui, mas, sim, daquele que explora a
prostituição alheia, como é o caso do rufião, cuja conduta se
encontra tipificada no art. 230 do Código Penal. Dessa forma,
impedir alguém de se prostituir pode configurar o delito de
constrangimento ilegal.
Há atos, entretanto, que são ilícitos, ou seja, contrários ao
ordenamento jurídico, que não se limitam à esfera penal. Existe,
portanto, um ordenamento jurídico em sentido amplo, traduzido
como gênero, que abrange todas as suas espécies (ordenamento
jurídico-civil, jurídico-administrativo etc.).
A tentativa de causar o autoextermínio, embora atípica, como
dissemos, é entendida como comportamento ilícito, razão pela qual
se abre a oportunidade para que alguém impeça a consumação do
ato extremo, sem que com isso incorra nas sanções previstas no art.
146 do Código Penal.
Explica Hungria sobre o tema:
“Embora não constitua crime, o suicídio não deixa de ser um
fato antijurídico [...]. Não há o direito de morrer. O pretenso
direito absoluto do indivíduo sobre si mesmo é uma concepção
aberrante. O indivíduo não pertence somente a si próprio,
senão também à sua família e à sociedade. É um elemento de
sinergia e cooperação no processus do todo social. A
autoeliminação é, portanto, contrária à ordem jurídica, e o
impedi-la, ainda que violentamente, não pode incorrer na
reprovação do direito.”11
1.12.4
Consentimento do ofendido
A liberdade, seja física, seja psíquica, é um bem disponível.
Assim
considerada,
torna-se
perfeitamente
possível
o
consentimento do ofendido no sentido de afastar a ilicitude do
comportamento praticado pelo agente, desde que presentes todos
os requisitos indispensáveis à sua validade, vale dizer novamente:
a) disponibilidade do bem; b) capacidade para consentir; c) que o
consentimento tenha sido prévio ou, pelo menos, concedido numa
relação de simultaneidade com a conduta do agente.
Assim, imagine-se a hipótese daquele que, almejando parar de
fumar, mas não tendo força de vontade suficiente para isso, pede a
um amigo que, toda vez que o vir fumando, lhe arranque o cigarro
das mãos e o jogue fora. Da mesma forma aquele que quer se
libertar do vício da bebida pede a um amigo que, da mesma forma
que no exemplo anterior, deite fora a bebida de seu copo.
1.12.5
Vias de fato em concurso com o constrangimento ilegal
O § 2º do art. 146 do Código Penal ressalvou que além das
penas cominadas ao constrangimento ilegal seriam aplicadas
também aquelas correspondentes à violência utilizada pelo agente.
Concluímos anteriormente que, in casu, seria aplicada a regra
do cúmulo material, sob o enfoque do concurso formal de crimes.
Ou seja, com uma conduta única, o agente pratica os crimes de
constrangimento ilegal e lesão corporal.
Agora a indagação é a seguinte: Da mesma forma que a lesão
corporal, também ocorrerá concurso de infrações penais entre o
constrangimento ilegal e a contravenção penal de vias de fato?
Não. Isso porque o termo violência, utilizado pelo § 2º do art.
146 do Código Penal, abrange tão somente as lesões corporais
sofridas pelas vítimas, ficando absorvidas as vias de fato.
1.12.6
Constrangimento exercido para impedir a prática de um
crime
Imagine-se a hipótese em que uma pessoa esteja cometendo
uma infração penal, quando é surpreendida por outra que não tenha
o dever de agir a fim de evitar a produção do resultado, como seria
o caso de um policial.
O particular, almejando evitar a consumação da infração penal,
prende o agente. Nesse caso, estaria ele cometendo o delito de
constrangimento ilegal? Obviamente que não, uma vez que o
próprio Código de Processo Penal, ao cuidar da prisão em flagrante,
diz em seu art. 301:
Art. 301. Qualquer do povo poderá e
as autoridades policiais e seus
agentes deverão prender quem quer
que seja encontrado em flagrante
delito.
Dessa forma, o particular que prende alguém em flagrante
delito atua no exercício regular de um direito, não podendo,
portanto, ser responsabilizado penalmente pelo constrangimento
ilegal.
Antes mesmo, poderíamos concluir pela atipicidade do fato
daquele que impede uma pessoa de praticar determinada infração
penal, pois não estaria impedindo alguém de fazer o que a lei
permite.
1.12.7
Constrangimento exercido para satisfazer uma pretensão
legítima
Pode ocorrer o caso, e não é incomum, em que determinada
pessoa se sinta injustiçada ou mesmo traída por promessas que,
efetivamente, não se cumpriram. Depositou sua confiança em certos
profissionais que, ao final, a decepcionou.
Sem querer criticar a classe dos carpinteiros e marceneiros,
principalmente porque Jesus Cristo foi também um carpinteiro, são
muitos os profissionais nessa área que não cumprem a palavra
dada no início do contrato.
Quem já teve a experiência de construir uma casa, durante a
obra, e mesmo depois, na fase de construção dos móveis, teve de
contar com serviços de marcenaria, acredito que tenha tido algumas
dores de cabeça.
Imagine-se, portanto, a hipótese daquele que, irritado com o
descumprimento do contrato, necessitando que o serviço de
marcenaria ficasse pronto, uma vez que já deveria ter sido entregue
há dois anos, revoltado, procura o marceneiro contratado e, com
uma arma em punho, o obriga a deixar de lado todos os outros
serviços e, agora sob a mira do revólver, determina-lhe que faça a
entrega de seus produtos imediatamente.
Aquele que obrigou o marceneiro, sob a mira de uma arma, a
entregar o serviço contratado e não cumprido poderá ser
responsabilizado pelo delito de constrangimento ilegal? A resposta,
aqui, só pode ser negativa, uma vez que o fato se amolda ao delito
tipificado no art. 345 do Código Penal, que prevê o exercício
arbitrário das próprias razões, assim redigido:
Art. 345. Fazer justiça pelas próprias
mãos, para satisfazer pretensão,
embora legítima, salvo quando a lei o
permite:
Pena – detenção, de 15 (quinze) dias
a 1 (um) mês, ou multa, além da pena
correspondente à violência.
Embora tendo havido um constrangimento para que a vítima, no
exemplo fornecido, cumprisse o contrato, como a pretensão do
agente era legítima, entendeu a lei penal que seu comportamento
seria menos censurável do que nas hipóteses previstas pelo art. 146
do Código Penal, razão pela qual as penas cominadas ao delito de
exercício arbitrário das próprias razões são bem menores do que as
previstas para o crime de constrangimento ilegal.
1.12.8
Revista pessoal em empregados e constrangimento ilegal
Não é incomum ter-se notícias de que, em determinadas
empresas, ao final do expediente de trabalho, alguns empregadores
determinam revistas pessoais em seus empregados, com a
finalidade de surpreendê-los na prática de alguma subtração
patrimonial. Muitos deles, inclusive, determinam que as pessoas
revistadas retirem suas roupas, total ou parcialmente. Nesse caso,
haveria constrangimento ilegal? Fernando Galvão, acertadamente,
assevera que:
“A revista pessoal é prevista no art. 244 do Código de Processo
Penal como medida excepcional, que embora independa de
mandado judicial somente é possível no caso de prisão ou
quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na
posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam
corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso
de busca domiciliar. Assim, a rotineira revista em empregados
ao final da jornada de trabalho constitui manifesto abuso na
relação de trabalho e, se for baseada na ameaça de despedir o
empregado que não se submete a revista pessoal, pode
viabilizar a imputação objetiva do crime de constrangimento
ilegal.”12
1.12.9
Constrangimento ilegal e Código Penal Militar
O crime de constrangimento ilegal também veio previsto no
Código Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de
1969), conforme se verifica pela leitura do seu art. 222.
1.12.10 Constrangimento ilegal e Código de Defesa do Consumidor
O Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078, de 11 de
setembro de 1990) criou uma modalidade especial de
constrangimento ilegal, cominando, em seu art. 71, uma pena de
detenção de três meses a um ano e multa, para aquele que se
utiliza, na cobrança de dívidas, de ameaça, coação,
constrangimento físico ou moral, afirmações falsas incorretas ou
enganosas ou de qualquer outro procedimento que exponha o
consumidor, injustificadamente, a ridículo ou interfira com seu
trabalho, descanso ou lazer.
1.12.11 Constrangimento ilegal e Estatuto do Idoso
O Estatuto do Idoso criou uma modalidade especial de
constrangimento onde a vítima (pessoa com idade igual ou superior
a 60 anos) é coagida, de qualquer modo, a doar, contratar, testar ou
outorgar procuração, punindo o agente com uma pena de reclusão
de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.
1.12.12 Constrangimento ilegal e abuso de autoridade
Em várias passagens, a Lei nº 13.869, de 5 de setembro de
2019, especializou o constrangimento ilegal, considerando-o como
abuso de autoridade, quando praticado, conforme o disposto em seu
art. 2º, por agente público, servidor ou não, da administração direta,
indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos
Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de Território,
reputando como agente público, nos termos do parágrafo único do
mencionado artigo, todo aquele que exerce, ainda que
transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação,
designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou
vínculo, mandato, cargo, emprego ou função em órgão ou entidade
abrangido pelo caput do citado art. 2º.
Assim, podemos apontar como abuso de autoridade, na
modalidade de constrangimento ilegal, os delitos tipificados nos arts.
13, 15 e 24 da Lei nº 13.869, de 5 de setembro de 2019, que dizem,
verbis:
Art. 13. Constranger o preso ou o
detento, mediante violência, grave
ameaça
ou
redução
de
sua
capacidade de resistência, a:
I – exibir-se ou ter seu corpo ou parte
dele exibido à curiosidade pública;
II – submeter-se à situação vexatória
ou a constrangimento não autorizado
em lei;
III – produzir prova contra si mesmo
ou contra terceiro:
Pena – detenção, de 1 (um) a 4
(quatro) anos, e multa, sem prejuízo
da pena cominada à violência. Art.
15. Constranger a depor, sob ameaça
de prisão, pessoa que, em razão de
função, ministério, ofício ou profissão,
deva guardar segredo ou resguardar
sigilo:
Pena – detenção, de 1 (um) a 4
(quatro) anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma
pena quem prossegue com o
interrogatório:
I – de pessoa que tenha decidido
exercer o direito ao silêncio; ou II – de
pessoa que tenha optado por ser
assistida por advogado ou defensor
público, sem a presença de seu
patrono.
Art. 24. Constranger, sob violência ou
grave
ameaça,
funcionário
ou
empregado de instituição hospitalar
pública ou privada a admitir para
tratamento pessoa cujo óbito já tenha
ocorrido, com o fim de alterar local ou
momento de crime, prejudicando sua
apuração:
Pena – detenção, de 1 (um) a 4
(quatro) anos, e multa, além da pena
correspondente à violência.
1.13
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: qualquer pessoa.
Passivo: qualquer pessoa,
desde
que
possua
capacidade
discernimento.
de
Objeto material
É a pessoa que, em razão dos
meios utilizados pelo agente –
violência, grave ameaça ou
qualquer outro que lhe reduza a
capacidade de resistência –, é
obrigada a não fazer o que a lei
permite ou a fazer o que ela
não manda.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
“O objeto da tutela jurídica é a
liberdade individual, ou seja, a
livre
autodeterminação
da
vontade e da ação. Trata-se de
liberdade
psíquica
(livre
formação da vontade, sem
coação), e também da liberdade
física (liberdade de movimento)”
(FRAGOSO, 1981, p. 215).
Elemento subjetivo
»
»
O dolo direto ou eventual.
Não há previsão legal para
a modalidade culposa.
Modalidades
omissiva
comissiva
e
O tipo penal do art. 146 do CP
retrata um modelo comissivo de
comportamento, podendo, no
entanto, ser praticado via
omissão imprópria se o agente
gozar do status de garantidor.
Consumação e tentativa
»
»
Consuma-se
o
delito
quando a vítima deixa de
fazer o que a lei permite ou
faz aquilo que ela não
manda.
Na qualidade de crime
material
e
plurissubsistente,
o
constrangimento
ilegal
admite a tentativa. »
Configura-se o delito de
constrangimento ilegal na
forma
tentada
se
o
acusado foi perseguido
desde o momento em que
subjugou
a
vítima,
impedindo-lhe a liberdade
de ação ou inação e
tolhendo-a na capacidade
de fazer ou deixar de fazer
(RT 577, p. 384).
2.
AMEAÇA
Ameaça Art. 147. Ameaçar alguém,
por palavra, escrito ou gesto, ou
qualquer outro meio simbólico, de
causar-lhe mal injusto e grave:
Pena – detenção, de um a seis
meses, ou multa.
Parágrafo único. Somente se
procede mediante representação.
2.1
Introdução
O delito de ameaça talvez seja, à primeira vista, de pouca
importância, principalmente levando em consideração as penas a
ele cominadas. Entretanto, a experiência demonstra que, na
verdade, a ameaça é o primeiro degrau para o cometimento de
infrações penais efetivamente graves, a exemplo do homicídio.
Deve merecer especial importância porque, em decorrência do
pavor infundido na vítima pelo autor da ameaça, gera, em muitas
situações, a hipótese de legítima defesa putativa por parte daquele
que foi ameaçado; por outro lado, se não contida pelas autoridades
competentes, geralmente, a promessa do mal é cumprida, e a vítima
acaba sofrendo os danos que tanto temia.
O art. 147 do Código Penal aponta os meios pelos quais o autor
pode levar a efeito o delito de ameaça. Segundo o diploma
repressivo, a ameaça pode ser praticada por meio de palavras,
escritos ou gestos. Como regra, o delito de ameaça é mais
comumente praticado por meio de palavras. O autor, por exemplo,
diz à vítima que irá matá-la quando ela menos esperar. Entretanto,
também não é incomum a ameaça feita por escritos, a exemplo de
cartas ou mesmo bilhetes que prenunciam um mal injusto que
recairá sobre a vítima. Da mesma forma, o gesto traz com ele o
recado necessário para que a vítima entenda o que lhe está sendo
prometido. Assim, aquele que, olhando para a vítima, passa a “faca”
da mão no pescoço, dando-lhe a ideia de que será degolada,
consegue, com esse comportamento, transmitir a mensagem de
morte.
Como a imaginação das pessoas é fértil, e não tendo o
legislador condições de catalogar todos os meios possíveis ao
cometimento do delito de ameaça, o art. 147 do Código Penal
determinou que fosse realizada uma interpretação analógica, ou
seja, após apontar, casuisticamente, alguns meios em virtude dos
quais poderia ser cometido o delito de ameaça, vale dizer, após uma
fórmula exemplificativa – palavra, escrito ou gesto –, a lei penal
trouxe uma fórmula genérica – ou qualquer outro meio simbólico.
Imagine-se a hipótese daquele que, almejando ameaçar o seu
vizinho, envia-lhe, dentro de uma caixa de sapatos, um passarinho
com o pescoço quebrado. Simbolicamente, o passarinho traduz
aquilo que se pretende fazer com a vítima. Portanto, a entrega de
objetos sinistros, por exemplo, pode configurar-se como delito de
ameaça, amoldando-se à formula genérica prevista no art. 147 do
Código Penal.
Por isso, diz Hungria:
“A ameaça pode traduzir-se por qualquer meio de manifestação
de pensamento: verbalmente, por escrito, por gestos, sinais,
atos simbólicos, procedendo o agente indissimulada ou
encobertamente (escopelismo) e posto que a compreenda o
ameaçado. Vem daí a qualificação da ameaça em oral, escrita
real ou simbólica. Exemplos desta última forma: colocar um
ataúde à porta de alguém, enviar-lhe uma caveira ou o desenho
de um punhal atravessando um corpo humano. A ameaça pode
ser direta (quando o mal anunciado se refere à pessoa ou
patrimônio do sujeito passivo) ou indireta (ameaça de dano a
uma pessoa vinculada ao sujeito passivo por especiais relações
de afeto). Pode ainda ser explícita ou implícita (exemplo desta
segunda espécie: um indivíduo escreve a outro que, para
resolver a dissenção entre ambos, ‘não tem medo de ir para a
cadeia’).”13
Assim de acordo com as lições de Hungria, podemos concluir
que a ameaça pode ser:
a)
b)
c)
d)
direta;
indireta;
explícita;
implícita.
Poderíamos, ainda, acrescentar a essas modalidades a
chamada ameaça condicional, quando, segundo Cezar Roberto
Bitencourt, “dependente de um fato do sujeito passivo ou de outrem:
‘Se repetir o que disse, eu lhe parto a cara’; ‘Se fulano me
denunciar, eu matarei você’ etc.”14
Contudo, devemos ter cuidado no que diz respeito à ameaça
condicional, quando a realização do mal prometido depender da
prática de algum comportamento – positivo ou negativo – da vítima,
uma vez que poderá se configurar, nessa hipótese, no delito de
constrangimento ilegal, sendo a ameaça, nesse caso, considerada
tão somente um elemento que integra aquela figura típica. Assim,
por exemplo, se o agente disser à vítima: Se voltar amanhã à escola
eu acabo com você!, não estará praticando o delito de ameaça,
mas, sim, o de constrangimento ilegal, pois estará, por meio da
ameaça, constrangendo a vítima a não fazer o que a lei permite, isto
é, estudar normalmente no local onde se encontra regularmente
matriculada.
Exige a lei penal, para fins de configuração do delito de
ameaça, que o mal prenunciado pelo agente seja injusto e grave.
Dessa forma, não há que se falar em ameaça quando
estivermos diante da presença da promessa de um mal justo.
Assim, aquele que ameaça o seu devedor dizendo que irá executar
o seu título extrajudicial, caso não seja quitado no prazo por ele
indicado, está prometendo um mal. Entretanto, esse mal prometido
é justo, razão pela qual restaria afastado o delito de ameaça.
Além de injusto, o mal deve ser grave, ou seja, deve ser capaz
de infundir temor à vítima, caso venha a ser efetivamente cumprida
a promessa. Não há gravidade no mal prometido, por exemplo,
quando o agente diz que irá cortá-la do seu círculo de amizades,
que não a convidará para sua festa de casamento etc.
2.2
Classificação doutrinária
Crime comum quanto ao sujeito ativo, bem como quanto ao
sujeito passivo, devendo ser ressalvado, neste último caso, que a
vítima deve possuir capacidade de discernimento; doloso; formal
(pois a infração penal se consuma mesmo que a vítima não se sinta
intimidada); de forma livre (uma vez que o tipo penal somente
exemplifica alguns meios em virtude dos quais o delito poderá ser
praticado); comissivo (podendo ser praticado omissivamente, desde
que o agente goze do status de garantidor); instantâneo;
monossubjetivo; unissubsistente ou plurissubsistente (dependendo
da forma como é praticada a infração penal); transeunte ou não
transeunte (dependendo do fato de a infração penal deixar ou não
vestígios).
2.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
O delito de ameaça está inserido na Seção I do Capítulo VI do
Título I do Código Penal, que prevê os crimes contra a liberdade
pessoal. Assim, o bem juridicamente protegido pelo tipo penal de
ameaça é a liberdade pessoal, entendida aqui, mesmo que não
pacificamente, como liberdade de natureza psíquica.
Fragoso aponta a controvérsia existente sobre o tema dizendo:
“O objeto da tutela penal é neste crime a liberdade individual,
sob o aspecto da livre autodeterminação da vontade segundo
os próprios motivos. A matéria não é pacífica. Alguns autores
veem na ameaça ofensa ao sentimento de segurança na ordem
jurídica.
A ameaça envolve, sem dúvida, ofensa ao sentimento de
segurança na ordem jurídica, com a intranquilidade que gera no
espírito do cidadão. Não é esse, porém, o aspecto que a lei
penal especialmente protege, mas, sim, o da liberdade
psíquica, que será prejudicada pelo sujeito e pelo temor
infundido pela ameaça.”15
Qualquer um de nós já deve ter conhecido o efeito devastador
do delito de ameaça, que consegue, como regra, abalar nossa
estrutura psicológica. Quem não se recorda de pelo menos um caso
na escola, em que um sujeito infinitamente mais forte do que a
vítima dizia que a pegaria “lá fora”, na saída do colégio. Os
segundos, os minutos e as horas são angustiantes. O fato de
aguardar, a expectativa do cumprimento do mal prometido abala
nossa estrutura psicológica, razão pela qual entendemos que o
delito de ameaça visa proteger a liberdade psíquica da vítima.
Podemos, com isso, por via reflexa, reafirmar a segurança na
ordem jurídica, como expôs Fragoso. Entretanto, não é esse bem
jurídico que se pretende proteger, principalmente se levarmos em
consideração uma interpretação de natureza sistêmica, pois, como
vimos, o delito de ameaça está inserido na seção que prevê os
delitos contra a liberdade pessoal, sendo este, portanto, como
aponta a lei penal, o bem que se pretende proteger com o catálogo
de figuras típicas nela previstos.
Como bem observado por Carrara, adotam uma posição
equivocada:
“Aqueles que enumeram a ameaça entre os delitos contra a
tranquilidade pública; o erro consiste em confundir as funções
do dano mediato com as do dano imediato; pelo aspecto do
dano mediato, todos os delitos podem considerar-se contra a
tranquilidade pública, porque todos eles perturbam a
tranquilidade de ânimo dos cidadãos, ao diminuir neles a
opinião de sua própria segurança.”16
E continua o renomado Professor da Universidade de Pisa:
“Com respeito ao dano imediato, está claro que a ameaça não
perturba a tranquilidade pública, senão unicamente a do
indivíduo ameaçado.”17
Não podemos negar, entretanto, que, quando estamos
perturbados psicologicamente em razão de uma ameaça sofrida,
consequentemente, ficamos limitados em nossa liberdade de
locomoção. O receio de que a promessa do mal seja efetivamente
cumprida impede, ou pelo menos restringe, nossa liberdade física,
razão pela qual podemos concluir que, embora o delito de ameaça
tenha como bem juridicamente protegido nossa liberdade psíquica,
também protege nossa liberdade física. Portanto, precipuamente, o
delito de ameaça tem a liberdade como bem juridicamente
protegido, seja ela psíquica ou física e, de forma mediata, reflexa, a
tranquilidade pública, mencionada por Carrara, ou o sentimento de
segurança na ordem jurídica, abordado por Fragoso.
2.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
Em sendo um crime comum, qualquer pessoa pode ser sujeito
ativo do delito de ameaça.
À primeira vista, qualquer pessoa também pode ser sujeito
passivo do crime de ameaça. Entretanto, para que possa gozar
desse status, o sujeito passivo deve ter capacidade para discernir a
promessa de mal injusto que é proferida contra a sua pessoa, uma
vez que com o delito de ameaça se busca proteger sua liberdade
psíquica. Por essa razão, afirma Maggiore que qualquer pessoa
pode ser sujeito passivo, “contanto que seja capaz de sentir a
intimidação.”18
Rogério Sanches Cunha, com precisão preleciona que:
“A individualidade da vítima deve ser tomada em consideração.
Assim, a idade, sexo, grau de instrução etc. são fatores que não
podem ser desconsiderados na análise do caso concreto. Não
se duvida de que uma expressão que aterroriza um analfabeto
pode nem sequer assustar um universitário; uma promessa de
mal injusto pode ser grave para uma moça de pouca idade e
não o ser para um senhor de meia-idade. Logo, as
circunstâncias do caso concreto demonstrarão se houve ou não
o crime.”19
É importante ressaltar que há diferença entre aquele capaz de
sentir a intimidação, para usarmos a expressão de Maggiore,
daquele que, embora tendo essa possibilidade, dada sua
capacidade de discernimento, não se sente intimidado.
Não é necessário, portanto, que a vítima se intimide, mas, sim,
que tão somente tenha essa possibilidade.
Assim, as crianças, até certa idade, os doentes mentais, as
pessoas jurídicas, por exemplo, não possuem o discernimento para
entender a promessa de mal injusto que lhes é proferida.
No que diz respeito à pessoa jurídica, Cezar Roberto Bitencourt
ainda adverte:
“A pessoa jurídica não é dotada de capacidade de entender e
não é portadora de liberdade psíquica. Ademais, não é
intimidável e é incapaz de qualquer sentimento, como, por
exemplo, de insegurança, medo etc. Assim, quando a
ameaçada for uma pessoa jurídica, recairá sobre as pessoas
que a compõem, e estas, se sentirem-se atemorizadas,
poderão ser os sujeitos passivos da ameaça. Nesse caso,
haverá somente um crime, o de ameaça contra os
representantes do ente jurídico; logicamente, se forem mais de
um os ofendidos, a conduta unitária constituirá concurso formal,
em razão da pluralidade de crimes.”20
Além da capacidade de discernimento exigida para que o
sujeito passivo possa ser assim considerado, é preciso, também,
nos termos da redação do art. 147, como regra, que a ameaça seja
proferida contra pessoa ou pessoas determinadas, pois somente
estas podem abalar-se com o mal prometido.
2.5
Consumação e tentativa
Crime formal, a ameaça se consuma ainda que, analisada
concretamente, a vítima não tenha se intimidado ou mesmo ficado
receosa do cumprimento da promessa do mal injusto e grave. Basta,
para fins de sua caracterização, que a ameaça tenha a possibilidade
de infundir temor em um homem comum e que tenha chegado ao
conhecimento deste, não havendo necessidade, inclusive, da
presença da vítima no momento em que as ameaças foram
proferidas.
No que diz respeito à possibilidade de tentativa no delito de
ameaça, há controvérsia doutrinária. Noronha, com precisão, afirma:
“Não obstante delito formal, admite ela doutrinariamente a
tentativa, por ser fracionável, por apresentar um iter. É
perfeitamente configurável a tentativa de ameaça por carta, ao
contrário do que parece ao douto Hungria, ao refutar Carrara,
que alude à carta ameaçadora extraviada, dizendo que só se
ficou em atos preparatórios. Cita em seu abono Longo, porém
não procede a opinião. O envio, remessa ou expedição de uma
carta não é ato preparatório. Se assim fosse, onde estaria a
execução do delito? Quando ela fosse aberta pelo destinatário
(ação executada pelo sujeito passivo) ou ele a lesse
(consumação)? Atos preparatórios, no caso, serão, v.g., a
aquisição do papel, da tinta etc. A remessa é pleno ato de
execução. O recebimento por outrem caracteriza a
circunstância alheia à vontade do agente.”21
E mais, diríamos que a ameaça por carta se configura como
uma modalidade de tentativa perfeita, isto é, quando o agente,
segundo sua concepção, esgota tudo aquilo que estava ao seu
alcance, a fim de chegar à consumação da infração penal, que só
não ocorre por circunstâncias alheias à sua vontade.
Assim, quando o agente, por exemplo, vai até a agência dos
correios e efetua a postagem da sua correspondência ameaçadora,
naquele momento ele esgotou tudo aquilo que estava ao seu
alcance, considerando-se a utilização do meio escolhido, a fim de
consumar a infração penal.
Portanto, apesar da posição de Hungria, corroborada por parte
de nossa doutrina22 que se coloca contrariamente à possibilidade de
reconhecimento da tentativa no delito de ameaça, somos partidários
da tese que, teoricamente, permite sua configuração.
2.6
Elemento subjetivo
O delito de ameaça somente pode ser cometido dolosamente,
seja o dolo direto, seja eventual.
Aquele que, por exemplo, querendo tão somente assustar,
agindo com animus jocandi, vier a entregar à vítima uma publicação
em um jornal, veiculando um aviso fúnebre, no qual constava,
justamente, o seu nome, não comete o delito em estudo.
Mesmo que o agente não pretenda, efetivamente, levar a efeito
o mal prometido, no momento em que profere a ameaça, deve agir
como se fosse realizá-lo, infundindo temor na vítima, ou, pelo
menos, mesmo que ela não fique atemorizada, que tenha a
possibilidade de perturbar psicologicamente alguém em condições
normais.
Nesse sentido, afirma Luiz Regis Prado:
“O tipo subjetivo é composto pelo dolo, isto é, pela consciência
e vontade de ameaçar alguém de mal injusto e grave.
Indispensável a seriedade da ameaça, reveladora do propósito
de intimidar (elemento subjetivo especial do tipo). Cumpre frisar
que não importa a decisão do agente de cumprir ou não o mal
prenunciado. É suficiente que seja idônea a provocar na vítima
um estado de intranquilidade, com a restrição de sua liberdade
psíquica.”23
Não há previsão para a modalidade culposa. Assim, por
exemplo, se alguém, negligentemente, deixar seu diário à vista,
sendo que, nele, a título de desabafo, havia escrito que faria
“picadinho” da vítima assim que estivesse a sós com ela, caso esta
última, em razão do descuido do agente, venha a tomar
conhecimento do escrito e fique abalada psicologicamente, não
haverá o delito em questão, pois o crime tipificado no art. 147 do
Código Penal exige que a vontade do agente seja dirigida
finalisticamente a perturbar a tranquilidade psíquica da vítima.
2.7
Pena, ação penal, competência para julgamento e
suspensão condicional do processo
O preceito secundário do art. 147 do Código Penal comina uma
pena de detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa.
Dessa forma, pelo menos inicialmente, a competência para o
julgamento do delito de ameaça é do Juizado Especial Criminal,
uma vez que mencionada infração penal se amolda ao conceito de
menor potencial ofensivo, aplicando-se, outrossim, todos os
institutos que lhe são inerentes (transação penal e suspensão
condicional do processo).
A ação penal é de iniciativa pública condicionada à
representação, conforme previsão contida no parágrafo único do art.
147 do diploma repressivo.
2.8
Destaques
2.8.1
O mal deve ser futuro?
Ao narrar o comportamento que se quer proibir, o art. 147 do
Código Penal, depois de mencionar os meios em virtude dos quais o
delito pode ser cometido, acrescenta que o mal prometido pelo
agente deve ser injusto e grave.
A pergunta que devemos nos fazer, agora, é a seguinte: Além
de injusto e grave, o mal prometido deverá ser futuro, ou poderá ser
imediato?
Entendemos que, especificamente no delito tipificado no art.
147 do Código Penal, quando a ameaça ganha vida autônoma, para
que possa ser entendida como tal, deverá, obrigatoriamente, cuidar
da promessa de um mal futuro, injusto e grave.
A ameaça constante do mencionado art. 147 deve ser cuidada
de forma distinta daquela que é prevista como elemento de diversos
tipos penais, a exemplo do constrangimento ilegal e do roubo.
Nesses crimes, o mal prometido poderá ser imediato. Assim, aquele
que determina que alguém “cale a boca”, sob pena de ser agredido,
em tese, pratica o delito de constrangimento ilegal. A promessa do
mal injusto e grave foi feita de modo a acontecer imediatamente. A
vítima foi impedida, em razão da ameaça sofrida, de fazer aquilo
que a lei permite, devendo o agente, portanto, ser responsabilizado
criminalmente por ter cometido o delito de constrangimento ilegal.
Da mesma forma, se o agente, armado com uma pistola, aponta a
arma para a cabeça da vítima dizendo-lhe para passar todo o
dinheiro senão irá morrer, também está utilizando a ameaça para
que possa ter sucesso na subtração.
Entretanto, as duas hipóteses mencionadas devem ser
cuidadas diferentemente daquela prevista especificamente para o
delito de ameaça.
Isso porque, como dissemos, a ameaça tem como bem
juridicamente protegido a liberdade psíquica da vítima e, em
algumas situações, a sua própria liberdade física, que fica inibida
quando a parte psicológica é abalada. Para que isso ocorra, a vítima
deve conviver com a angústia do cumprimento da promessa do mal
injusto e grave. Deve ter tido tempo suficiente para buscar socorro
junto às autoridades competentes, se for do seu interesse, uma vez
que também a instauração de inquérito policial ou mesmo do termo
circunstanciado, próprio dos Juizados Especiais Criminais, estará a
ela subordinado.
Por outro lado, quando há uma promessa de mal imediato, caso
este venha a ser concretizado, a ameaça ficará por ele absorvida.
Há controvérsia doutrinária sobre o tema.
Guilherme de Souza Nucci, entendendo que a ameaça somente
se configura quando a promessa do mal seja futura, esclarece:
“Há quem sustente ser irrelevante que o mal a ser praticado
seja atual ou futuro, vale dizer, quem ameaça outrem de
causar-lhe um mal imediato cometeria o mesmo crime de
alguém que ameace causar o mal no futuro. Preferimos a
posição daqueles que defendem somente a possibilidade do
mal ser futuro. O próprio núcleo do tipo assim exige. Ameaçar,
como se viu, é anunciar um mal futuro, ainda que próximo, não
tendo cabimento uma pessoa ser processada pelo delito de
ameaça quando diz que vai agredir a vítima de imediato, sendo
segura por terceiros que separam a contenda. Ou o agente
busca intimidar o seu oponente, prometendo-lhe a ocorrência
de um mal injusto e grave que vai acontecer, ou está prestes a
cometer um delito e avizinha-se dos atos executórios, portanto,
uma tentativa, caso não chegue à consumação. A preparação
de um crime não necessariamente constitui-se em crime
autônomo, ou seja, ameaça. Ex.: o sujeito diz que vai pegar a
arma para matar o seu rival, o que, de fato, está fazendo. Deve
ser considerado um ato preparatório ou até mesmo executório
do delito de homicídio. Se o objeto do crime é justamente a
tranquilidade de espírito da pessoa – que, de fato, não há
durante uma contenda –, como se pode chamar de ameaça o
anúncio de um mal imediato?”24
Em sentido contrário, afirma Damásio:
“A figura típica do art. 147 do CP não exige que o mal seja
futuro. Além disso, ‘futuro’ é tudo aquilo que ainda não
aconteceu, referindo-se ao fato que irá ocorrer em instantes ou
depois de algum tempo.”25
Quando dissemos que para a configuração da ameaça a
promessa deveria ser de um mal futuro, injusto e grave, queríamos
afirmar que a iminência, ou seja, a relação de proximidade entre a
promessa e o mal efetivamente praticado, ou, mesmo que seria
praticado, caso não tenha ocorrido, configura-se em outra infração
penal, como bem ressalvou Guilherme de Souza Nucci.
Não podemos confundir, portanto, a ameaça entendida como
elemento de determinada infração penal, ou mesmo como momento
antecedente à prática de um crime, com a ameaça em si, tipificada
no art. 147 do Código Penal, que afeta a tranquilidade psíquica da
vítima.
2.8.2
Legítima defesa e o crime de ameaça
O Estado, por intermédio de seus representantes, não pode
estar em todos os lugares ao mesmo tempo, razão pela qual permite
aos cidadãos a possibilidade de, em determinadas situações, agir
em sua própria defesa.
Contudo, tal permissão não é ilimitada, pois encontra suas
regras na própria lei penal. Para que se possa falar em legítima
defesa, que não pode jamais ser confundida com vingança privada,
é preciso que o agente se veja diante de uma situação de total
impossibilidade
de
recorrer
ao
Estado,
responsável
constitucionalmente por nossa segurança pública, e, só assim, uma
vez presentes os requisitos legais de ordem objetiva e subjetiva, agir
em sua defesa ou na defesa de terceiros. Este, também, o
pensamento de Grosso, citado por Miguel Reale Júnior, quando
aduz que “a natureza do instituto da legítima defesa é constituída
pela possibilidade de reação direta do agredido em defesa de um
interesse, dada a impossibilidade da intervenção tempestiva do
Estado, o qual tem igualmente por fim que interesses dignos de
tutela não sejam lesados.”26
O código penal preocupou-se em nos fornecer o conceito de
legítima defesa trazendo no tipo permissivo do art. 25 todos os seus
elementos caracterizadores, procurando evitar, mantendo a tradição,
que tal conceito nos fosse entregue pela doutrina e/ou mesmo pela
interpretação dos tribunais.
O legislador, portanto, com a modificação introduzida pela Lei nº
13.964, de 24 de dezembro de 2019, no art. 25 e parágrafo único do
Código Penal, emprestou o seguinte conceito à legítima defesa:
Art. 25. Entende-se em legítima
defesa
quem,
usando
moderadamente
dos
meios
necessários, repele injusta agressão,
atual ou iminente, a direito seu ou de
outrem.
Parágrafo único. Observados os
requisitos previstos no caput deste
artigo, considera-se também em
legítima defesa o agente de
segurança
pública
que
repele
agressão ou risco de agressão a
vítima mantida refém durante a prática
de crimes.
Uma vez esclarecido o conceito de legítima defesa, ou melhor,
os requisitos necessários à sua configuração, é preciso responder
às seguintes indagações: já que, em determinadas situações,
podemos agir por nós mesmos, quais são os bens passíveis de ser
defendidos? Será que a vida, a integridade física, o patrimônio, a
dignidade sexual, a liberdade, a honra etc., estão amparados pela
causa de justificação da legítima defesa se, efetivamente, estiverem
sofrendo ou mesmo prestes a sofrer qualquer agressão? Tem-se
entendido que o instituto da legítima defesa tem aplicação na
proteção de qualquer bem juridicamente tutelado pela lei. Assim,
pode-se, tranquilamente, desde que presentes seus requisitos,
alegar a legítima defesa no amparo daquelas condutas que
defendam seus bens, materiais ou não.
Zaffaroni e Pierangeli, dissertando sobre o tema, prelecionam:
“A defesa a direito seu ou de outrem, abarca a possibilidade de
defender legitimamente qualquer bem jurídico. O requisito da
moderação da defesa não exclui a possibilidade de defesa de
qualquer bem jurídico, apenas exigindo uma certa
proporcionalidade entre a ação defensiva e a agressiva, quando
tal seja possível, isto é, que o defensor deve utilizar o meio
menos lesivo que tiver ao seu alcance.”27
Contudo, deve ser frisado que o bem somente será passível de
defesa se não for possível socorrer-se do Estado para sua proteção.
Assim, suponhamos que alguém esteja sendo vítima de um
crime de ameaça em que existe a promessa de um mal futuro,
injusto e grave. Embora a liberdade pessoal esteja protegida pelo
nosso ordenamento jurídico (Seção I, Capítulo VI, Título I, do
Código Penal) e considerando, ainda, que o delito de ameaça a
tenha como objeto jurídico, poderá a vítima, no momento em que as
palavras ameaçadoras estão sendo proferidas, agredir o agente na
defesa dessa sua liberdade pessoal que fora ameaçada?
Nesse caso, especificamente, entendemos que não. Isso
porque o mal prenunciado à vítima não está ocorrendo (atual) e nem
prestes a acontecer (iminente), de modo que esta última tem plena
possibilidade de, em um Estado de Direito, pedir o socorro das
autoridades encarregadas da defesa da sociedade.
Não se pode raciocinar em termos de legítima defesa com
relação ao delito de ameaça, uma vez que a promessa do mal,
conforme afirmamos acima, deve ser futura, além de injusta e grave,
sendo que aquela causa de exclusão da ilicitude, nos termos do art.
25 do Código Penal, somente se presta a repelir agressões atuais
ou iminentes.
2.8.3
Verossimilhança do mal prometido
Quando a própria lei penal, ao definir o delito de ameaça, diz
que o mal prometido deve ser injusto e grave, implicitamente está
querendo traduzir a ideia, também, de mal verossímil, ou seja,
aquele que pode ser efetivamente produzido.
Ameaçar alguém, por exemplo, dizendo-lhe que fará com que
um raio caia sobre a sua cabeça está completamente fora das
possibilidades de ser realizado, afastando-se, outrossim, o crime.
Hungria ainda esclarece:
“O mal ameaçado deve caber dentro das possibilidades do
agente ou de pessoa ao seu dispor, pois, de outro modo, não
passará de jactância ridícula (exemplo de Carrara: ‘farei cair a
lua sobre a tua cabeça’). Não há confundir a ameaça com a
praga (exemplo: ‘a geada há de exterminar o teu cafezal’, ‘a
Deus suplico que te faça cair a língua’).”28
2.8.4
Ameaça supersticiosa
Há pessoas fragilizadas que acreditam em crendices, simpatias,
ou coisas parecidas.
Pode ser que o agente, conhecendo essa particularidade da
vítima, a ameace dizendo que fará um “feitiço” para que ela morra
em um desastre de automóvel ou seja atropelada por um veículo
qualquer.
Será que, nesse caso, como a possibilidade de ocorrência do
resultado não se encontra nas mãos do agente, poderia ele
responder pelo delito de ameaça, ou a ameaça supersticiosa
poderia se amoldar, também, à ameaça inverossímil, fazendo com
que o fato fosse considerado atípico?
Vimos a regra de que a ameaça, mesmo não tendo o poder, no
caso concreto, de atingir a liberdade psíquica do sujeito passivo,
deve ser punida se for, em tese, capaz de infundir temor em um
homem normal. Contudo, outra situação se coloca agora. Assim,
para o homem comum, a ameaça não tinha possibilidades de
infundir qualquer temor; entretanto, analisando-se especificamente o
sujeito passivo, de acordo com suas particularidades, foi mais do
que suficiente para perturbá-lo psicologicamente.
Nesse caso, poderia o agente responder pelo delito de ameaça,
entendida aqui como supersticiosa, ou seja, aquela suficientemente
capaz de infundir temor à vítima contra qual é dirigida?
Carrara respondeu a essas indagações dizendo:
“A noção do delito de ameaça é inteiramente objetiva, e sua
essência consiste: 1º) em haver querido infundir temor; 2º) em
haver realizado, com esse fim, algum ato que possa infundi-lo.
De modo que ainda que na realidade das coisas esse ato fosse
completamente inofensivo e não tivesse a possibilidade de
produzir o mal ameaçado, se teve potência para infundir temor,
há o suficiente para o elemento material do delito.”29
Dessa forma, entendemos que a ameaça que se vale de meios
supersticiosos é capaz de ofender o bem juridicamente protegido
pelo art. 147 do Código Penal, razão pela qual o agente deverá ser
responsabilizado penalmente pelo delito em questão.
2.8.5
Pluralidade de vítimas
Havendo um comportamento único, que tenha por finalidade
ameaçar mais de uma pessoa, aplica-se a regra do concurso formal
impróprio ou imperfeito, previsto na segunda parte do art. 70 do
Código Penal, que diz que as penas serão aplicadas
cumulativamente se a ação ou omissão é dolosa e os crimes
concorrentes resultam de desígnios autônomos.
Dessa forma, embora tecnicamente estejamos diante de um
concurso formal (quando o agente, mediante uma só ação ou
omissão, pratica dois ou mais crimes), aplica-se a regra do cúmulo
material, devido ao fato de ter agido com desígnios autônomos.
2.8.6
Ameaça proferida em estado de ira ou cólera
Não é incomum que, durante discussões acaloradas, um dos
contendores ameace o outro, prometendo causar-lhe um mal injusto
e grave. Nesse caso, poderíamos identificar o delito de ameaça ou,
ao contrário, para sua configuração a ameaça exigiria ânimo calmo
e refletido?
A questão não é pacífica. Parte da doutrina assume posição no
sentido de que o estado de ira ou cólera afasta o elemento subjetivo
do crime de ameaça. Nesse sentido, afirma Carrara: “As ameaças
proferidas no ímpeto da cólera não são politicamente imputáveis, e
devem ser consideradas como meras expressões jactanciosas.”30
Também assevera Fragoso que não há crime “se a ameaça
constituir apenas uma explosão de cólera, não revelando o
propósito de intimidar.”31
Apesar da autoridade dos renomados autores, acreditamos,
permissa vênia, não ser essa a melhor posição. Isso porque as
ameaças, em sua grande parte, são proferidas enquanto o agente
se encontra em estado colérico. Entretanto, isso não significa
afirmar que, em decorrência desse fato, o mal prometido não tenha
possibilidades de infundir temor à vítima.
Como vimos, para que se caracterize a ameaça, não há
necessidade de que o agente, efetivamente, ao prenunciar a prática
do mal injusto e grave, tenha a intenção real de cometê-lo, bastando
que seja capaz de infundir temor em um homem normal.
Na verdade, quando proferida em estado de ira ou cólera, a
ameaça se torna mais amedrontadora, pois o agente enfatiza sua
intenção em praticar o mal injusto e grave, fazendo com que a
vítima, em geral, se veja abalada em sua tranquilidade psíquica.
Noronha ressalva que, em algumas situações, a ameaça se
confundia, na verdade, com meras bravatas do agente, quando
praticada em estado de cólera, fazendo com que o fato deixasse de
ser típico, dada a ausência de dolo. Entretanto, esse fato não tem o
condão de sempre eliminar a infração penal, pois “realmente as
ameaças, em regra, são proferidas pelo indivíduo irado ou
exaltado.”32
2.8.7
Ameaça proferida em estado de embriaguez
Outra hipótese controvertida diz respeito à ameaça proferida
pelo agente que se encontra em estado de embriaguez.
Parte da doutrina afirma que, nesse caso, a embriaguez
afastaria o dolo do agente, a exemplo de Luiz Regis Prado que
esclarece não poder “ser havida como séria a ameaça realizada em
estado de embriaguez do agente.”33
Na verdade, a questão não pode ser cuidada em termos
absolutos. É claro que, se o agente estiver embriagado a ponto de
não saber o que diz, não teremos condições de identificar o dolo em
seu comportamento. Entretanto, se a embriaguez foi um fator que
teve o poder de soltar os freios inibidores do agente, permitindo que
proferisse a promessa de um mal injusto e grave, pois pretendia
infundir temor à vítima, não podemos descartar a caracterização do
delito.
Assim, somente aquele estado de embriaguez que torne
ridícula a ameaça feita pelo agente é que poderá afastar a infração
penal, em razão da evidente ausência de dolo; ao contrário, se o
agente, mesmo sob os efeitos do álcool ou de substâncias
análogas, tiver consciência do seu comportamento, deverá
responder pelas ameaças proferidas.
Assim, podemos concluir com Aldeleine Melhor Barbosa que:
“Não se pode imaginar que a ira/raiva, bem como o uso de
bebida alcoólica, inibam a vontade de intimidar. Pelo contrário,
muitas vezes tais sentimentos (ira/raiva) apenas potencializam
a ameaça, assim como acontece com o sujeito que fez uso do
álcool, aumentando o temor da vítima.”34
2.8.8
Possibilidade de ação penal por tentativa de ameaça
À primeira vista pareceria estranha a possibilidade de ação
penal por tentativa de ameaça, pois, seria o raciocínio, se a vítima
tomou conhecimento dos fatos mesmo não estando presente
quando a promessa de mal injusto e grave foi proferida pelo agente,
o crime já restaria consumado.
Entretanto, podemos visualizar a hipótese em que a vítima
ameaçada seja um adolescente com 16 anos de idade. A ameaça,
embora não tendo chegado ao seu conhecimento, foi descoberta
por seu representante legal, no caso, o seu próprio pai, que,
querendo a punição do agente, confecciona sua representação,
permitindo o início da persecutio criminis in judicio.
Sendo o delito de ameaça de competência, pelo menos
inicialmente, dos Juizados Especiais Criminais, será possível que o
agente aceite alguma proposta – transação penal ou suspensão
condicional do processo – sem que a própria vítima tenha tido
conhecimento dos fatos. Assim, em tese, estaria configurada a
tentativa de ameaça, mesmo que, nesse caso, não houvesse
discussão a respeito da efetiva prática da infração penal, em razão
de ter o agente aceitado qualquer das propostas constantes da Lei
nº 9.099/95.
2.8.9
Ameaça reflexa
Vimos que a ameaça pode ser direta ou indireta, explícita ou
implícita e, ainda, condicional.
Direta, quando dirigida imediatamente à pessoa do sujeito
passivo ou seu patrimônio; indireta quando, embora dirigida ao
sujeito passivo, o mal não recaia sobre a sua pessoa ou o seu
patrimônio, mas, sim, no de terceiros que lhe são próximos,
geralmente por uma relação de afeto; explícita quando o agente diz
exatamente qual o mal prometido; implícita quando deixa entrever,
pelo seu comportamento (palavras, escritos, gestos ou qualquer
outro meio simbólico), o mal a ser produzido; condicional, quando
depende de determinado comportamento para que possa se realizar
o mal prometido pelo agente.
Da ameaça indireta extrai-se a chamada ameaça reflexa,
podendo-se concluir, até mesmo, que se trata da mesma situação.
Assim, por exemplo, aquele que ameaça os pais de uma criança de
apenas um ano de idade dizendo que lhes matará o filho, na
verdade, o mal não recairá sobre o sujeito passivo, mas, sim,
reflexamente sobre terceiro a ele ligado por uma relação afetiva.
Portanto, ameaça reflexa e ameaça indireta querem traduzir a
mesma situação, com denominações diferentes.
2.8.10
Ameaça e Código Penal Militar
O crime de ameaça também veio previsto no Código Penal
Militar (Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969), conforme
se verifica pela leitura do seu art. 223.
2.8.11
Ameaça e Código de Defesa do Consumidor
O Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078, de 11 de
setembro de 1990) criou uma modalidade especial de ameaça,
cominando, em seu art. 71, uma pena de detenção de três meses a
um ano e multa, para aquele que se utiliza, na cobrança de dívidas,
de ameaça, coação, constrangimento físico ou moral, afirmações
falsas incorretas ou enganosas ou de qualquer outro procedimento
que exponha o consumidor, injustificadamente, a ridículo ou interfira
com seu trabalho, descanso ou lazer.
2.9
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: qualquer pessoa.
Passivo: qualquer pessoa,
desde
que
tenha
capacidade
para
ser
intimidada.
Objeto material
É a pessoa
ameaça.
que
sofre
a
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
É
a
liberdade
pessoal,
entendida aqui, mesmo que não
pacificamente, como liberdade
de natureza psíquica.
Elemento subjetivo
»
»
Dolo direto ou eventual.
Não há previsão para a
modalidade culposa.
Consumação e tentativa
»
Basta, para efeitos
reconhecimento
de
da
»
consumação,
que
a
ameaça
tenha
a
possibilidade de infundir
temor em um homem
comum e que tenha
chegado ao conhecimento
deste,
não
havendo
necessidade, até mesmo,
da presença da vítima no
momento em que as
ameaças foram proferidas.
No que diz respeito à
possibilidade de tentativa
no delito de ameaça, há
controvérsia
doutrinária.
Sendo possível fracionar o
iter
criminis,
haverá
tentativa.
3.
PERSEGUIÇÃO
Art.
147-A.
Perseguir
alguém,
reiteradamente e por qualquer meio,
ameaçando-lhe a integridade física ou
psicológica,
restringindo-lhe
a
capacidade de locomoção ou, de
qualquer
forma,
invadindo
ou
perturbando sua esfera de liberdade
ou privacidade.
Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a
2 (dois) anos, e multa.
§ 1º A pena é aumentada de metade
se o crime é cometido:
I – contra criança, adolescente ou
idoso;
II – contra mulher por razões da
condição de sexo feminino, nos
termos do § 2º-A do art. 121 deste
Código;
III – mediante concurso de 2 (duas) ou
mais pessoas ou com o emprego de
arma.
§ 2º As penas deste artigo são
aplicáveis
sem
prejuízo
das
correspondentes à violência.
§ 3º Somente se procede mediante
representação.
3.1
Introdução
O crime de perseguição, conhecido internacionalmente como
stalking, foi inserido no Código Penal (art. 147-A) através da Lei nº
14.132, de 31 de março de 2021. Não se cuida de um
comportamento novo, mas sim de uma conduta que se perde no
tempo, embora seu estudo tenha começado, com mais
profundidade, na década de 1990, principalmente nos EUA.
O núcleo perseguir nos dá a ideia de uma conduta praticada
pelo agente que denota insistência, obsessão, comportamento
repetitivo no que diz respeito à pessoa da vítima. Está muito ligado à
área psicológica do perseguidor, muitas vezes entendido como
sendo um caçador à espreita da sua vítima.
Exige a lei, para efeitos de configuração dessa perseguição,
que ela ocorra de forma reiterada, ou seja, constante, habitual. Isso
quer dizer que uma única abordagem, mesmo que inconveniente,
não se configurará no delito em estudo. Assim, imagine-se a
hipótese daquele que, durante uma festa, tenta, a todo custo, ficar
amorosamente com uma mulher que ali se encontrava junto com
outros amigos. Ela repele a abordagem, pois não se sentiu atraída
pelo sujeito. Contudo, o agente volta a insistir várias vezes durante a
mesma noite, sendo rejeitado em todas elas. Essa situação é
extremamente desconfortável para aquela mulher. No entanto, não
poderíamos falar, aqui, em crime de perseguição.
Agora, suponhamos que, inconformado com a rejeição, esse
mesmo agente passe a mandar mensagens para a mulher que o
havia rejeitado naquela noite. Isso acontece por inúmeras vezes,
mesmo tendo sido solicitado a ele que parasse de enviar essas
mensagens. Neste caso, já se poderia visualizar o stalking.
Há, portanto, uma necessidade de reiteração do
comportamento do agente, criando situação de incômodo,
desconforto e até mesmo medo para a vítima. Mas, o que significa,
realmente, um comportamento reiterado, vale dizer, habitual? Duas
condutas já seriam o suficiente para se configurar a perseguição?
Essa é uma questão onde somente o caso concreto poderá
demonstrar,
como
exemplificado
anteriormente,
se
os
comportamentos levados a efeito pelo agente poderão ou não se
configurar em stalking. Contudo, entendemos que se os fatos forem
praticados, por exemplo, por somente duas vezes, ou seja, se
houver uma primeira abordagem por parte do agente, que insistiu
em uma segunda, não poderemos falar no delito em estudo, uma
vez que isso não importa na reiteração exigida pelo tipo penal que
prevê o delito de perseguição. Fosse assim, haveria um sem
número de pessoas processadas por terem insistido, por poucas
vezes, em iniciar um relacionamento amoroso não correspondido. O
que se quer, na verdade, é evitar a situação de incômodo,
perturbação constante sofrida pela vítima, que perdeu a sua paz em
virtude dos reiterados comportamentos praticados pelo perseguidor.
É uma espécie de terrorismo psicológico, onde o autor cria na
vítima uma intensa ansiedade, medo, angústia, isolamento pelo fato
de não saber exatamente quando, mas ter a certeza de que a
perseguição acontecerá, abalando-a psicologicamente, impedindoa, muitas vezes, de exercer normalmente suas atividades.
Figurativamente, o comportamento do agente se equipara a um
gotejamento constante, criando uma situação de perturbação,
desconforto, medo, pânico.
Em sendo considerado um crime de forma livre, a perseguição
pode se dar de diversas maneiras, com a utilização de qualquer
meio. Conforme preleciona Luciana Gerbovic, trata-se “de
comportamento humano heterogêneo consistente com um tipo
particular de assédio, cometido por homens ou mulheres, que pode
se configurar por meio de diversas condutas, tais como
comunicação direta, física ou virtual, perseguição física e/ou
psicológica, contato indireto por meio de amigos, parentes e colegas
de trabalho ou qualquer outra forma de intromissão contínua e
indesejada na vida privada e/ou íntima de uma pessoa”.
E continua suas lições dizendo que:
“Stalker é o perseguidor, aquele que escolhe uma vítima, pelas
mais diversas razões, e a molesta insistentemente, por meio de
atos persecutórios – diretos ou indiretos, presenciais ou virtuais
– sempre contra a vontade da vítima. Em outras palavras,
stalker é quem promove uma ‘caçada’ física ou psicológica
contra alguém”.
A internet, de uma forma geral, e as redes sociais, mais
especificamente, fizeram com que essas perseguições se
potencializassem, dado à facilidade de acesso às vítimas, tal como
ocorre com o envio de e-mails, mensagens pelas mais diversas
formas (SMS, Messenger, WhatsApp, directs etc.). Em muitas
situações, e exposição contínua das vítimas traz a sensação de que
as pessoas às conhecem e que lhe são íntimas. Hoje, esse
fenômeno ocorre não somente com as pessoas consideradas como
públicas, tal como acontece com os artistas, como também com
todas as demais que estejam expostas nas redes sociais.
Podem se configurar como meios para a prática do stalking
telefonar e permanecer em silêncio, ligar continuamente e desligar
tão logo a vítima atenda, fazer ligações o tempo todo, tentando
conversar com a vítima, enviar presentes, mensagens por todas as
formas possíveis (a exemplo do SMS, directs, e-mails, WhatsApp,
bilhetes, cartas etc.) sejam elas amorosas ou mesmo agressivas,
acompanhar a vítima à distância, aparecer em lugares frequentados
comumente pela vítima ou pessoas que lhe são próximas,
estacionar o automóvel sempre ao lado do carro da vítima, a fim de
que ela saiba que o agente está por ali, à espreita, enviar fotos,
músicas, flores, instrumentos eróticos, roupas íntimas, animais
mortos, enfim, existe uma infinidade de meios que podem ser
utilizados pelo agente na prática da infração penal sub examen.
Embora a criminalização da perseguição seja necessária,
temos que tomar o máximo cuidado para que não sejam
confundidos comportamentos perfeitamente lícitos e aceitos em
nossa sociedade. Uma insistência amorosa, por exemplo, mesmo
que indesejada, não pode se configurar, automaticamente, em
crime. Por isso, somente a hipótese concreta nos trará elementos
para que possamos fazer essa distinção, tênue por sinal, entre um
comportamento natural do ser humano, em não aceitar,
imediatamente, uma negativa ao seu pedido, de uma conduta
considerada perseguidora, criminosa, que pode causar, na vítima,
danos à sua integridade física ou psicológica.
São, também, inúmeras as motivações que levam ao stalker a
praticar a perseguição, a exemplo do inconformismo pelo término de
um relacionamento, um amor não correspondido, paixão, ódio,
ciúmes, inveja, atração, fixação, frustração, decepção, rejeição,
ressentimento, baixa autoestima, vingança, sensação de perda,
necessidade de afeto, prazer em desestabilizar alguém, ou mesmo
pelo fato de saber que a vítima se abala com facilidade, enfim, são
incontáveis os motivos que podem conduzir o agente à prática do
comportamento tipificado no artigo em análise.
Conforme a narração típica, através dos meios utilizados, o
agente pode:
a)
b)
c)
ameaçar a integridade física ou psicológica da vítima;
restringir-lhe a capacidade de locomoção; ou
de qualquer forma, invadir ou perturbar sua esfera de
liberdade ou privacidade.
Muitos filmes retrataram perseguições obsessivas, a exemplo
do clássico “Atração Fatal”, de 1988, com Glenn Close e Michael
Douglas. A perseguidora transformou a vida da vítima em um
verdadeiro inferno. Isso pode ocorrer sob diversas formas, como no
caso daquele que, de acordo com o tipo penal em exame, ameaça a
integridade física ou mesmo psicológica da vítima, tal como ocorre
com o delito tipificado no art. 147 do Código Penal, com a diferença
de que a ameaça aqui proferida tem uma finalidade específica, vale
dizer, a perseguição da vítima.
Da mesma forma, pode o agente, através dos seus atos de
perseguição, fazer com que a vítima, amedrontada, veja restringida
sua capacidade de locomoção, uma vez que esta última prefere
isolar-se do mundo exterior, a ter que se encontrar com o stalker.
Por fim, o comportamento criminoso pode chegar a invadir ou
perturbar a esfera de liberdade ou privacidade da vítima.
3.2
Classificação doutrinária
Crime comum com relação ao sujeito ativo, bem como quanto
ao sujeito passivo; doloso; material (pois ocorrerá a consumação
quando evidenciado que a perseguição produziu os resultados
previsto no tipo penal); de forma livre; habitual; comissivo;
monossubjetivo; transeunte ou não transeunte (dependendo do fato
de a infração penal deixar ou não vestígios).
3.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
O delito de perseguição está inserido na Seção I do Capítulo VI
do Título I do Código Penal, que prevê os crimes contra a liberdade
pessoal. Assim, o bem juridicamente protegido pelo tipo penal em
estudo é a liberdade pessoal, entendida, aqui, tanto a de natureza
física quanto psíquica, bem como a integridade física da vítima.
A pessoa contra a qual recai a conduta praticada pelo stalker é
o objeto material do delito tipificado no art. 147-A do diploma
repressivo.
3.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
Crime comum, qualquer pessoa pode ser considerada como
sujeito ativo do delito de perseguição, seja ela do sexo masculino ou
feminino.
Da mesma forma, qualquer pessoa poderá também figurar,
diretamente, como sujeito passivo do delito em análise, além do
Estado como sujeito passivo mediato ou indireto. Contudo, como
bem alerta Luciana Gerbovic, “a mulher é tradicionalmente a maior
vítima nos casos de stalking. Por isso o stalking acaba sendo
tratado, nos países onde é estudado e pesquisado, como uma das
formas de violência contra as mulheres”.
3.5
Consumação e tentativa
Em se tratando de um delito habitual, a infração penal prevista
no art. 147-A do diploma repressivo se consuma quando da prática
reiterada da perseguição, e por qualquer meio, venha a ameaçar a
integridade física ou psicológica da vítima, restringindo-lhe a
capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou
perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade.
Nesse caso específico, não conseguimos visualizar a
possibilidade de tentativa, uma vez que, ou o agente pratica,
reiteradamente, os atos de perseguição e o delito se consuma, ou
os fatos praticados anteriores, não reiterados, são considerados
como um indiferente penal.
3.6
Elemento subjetivo
O dolo é o elemento exigido pelo tipo penal em estudo, não
havendo previsão para a modalidade de natureza culposa.
3.7
Modalidades comissiva e omissiva
O núcleo perseguir nos induz a concluir que o comportamento
deve ser praticado comissivamente, não havendo, outrossim,
previsão para a conduta omissiva.
3.8
Causas de aumento de pena
As alíneas a, b e c do §1º do art. 147-A do Código Penal
preveem as causas especiais de aumento de pena, a serem
aplicadas no terceiro momento do critério trifásico, previsto no art.
68 do mesmo diploma, dizendo, verbis:
§ 1º A pena é aumentada de metade
se o crime é cometido:
I – contra criança, adolescente ou
idoso;
II – contra mulher por razões da
condição de sexo feminino, nos
termos do § 2º-A do art. 121 deste
Código;
III – mediante concurso de 2 (duas) ou
mais pessoas ou com o emprego de
arma.
De acordo com o art. 2º da Lei nº 8.069/90, considera-se
criança a pessoa até doze anos de idade incompletos, e
adolescente, aquela entre doze e dezoito anos de idade. Idoso,
conforme o art. 1º, da Lei nº 10.741/2003, é a pessoa com idade
igual ou superior a 60 (sessenta) anos. Para que essa majorante
seja aplicada ao agente, faz-se necessário que ele conheça essas
condições, pois, caso contrário, deverá ser aplicado o raciocínio
correspondente ao erro de tipo. Assim, por exemplo, se um agente
pratica qualquer dos comportamentos previstos no art. 147-A do
Código Penal, acreditando ter a vítima 18 anos completos quando,
na verdade, ainda está prestes a completar essa idade, não poderá
ser aplicada a causa especial de aumento de pena prevista no
inciso I em análise.
Também haverá o aumento de metade da pena quando o
agente praticar o crime contra mulher por razões da condição de
sexo feminino, nos termos do § 2º-A do art. 121 do Código Penal,
isto é, quando houver violência doméstica e familiar ou menosprezo
ou discriminação à condição de mulher, conforme preconizado nos
incisos I e II, do § 2º do referido art. 121.
Da mesma forma, será aplicada a majorante quando houver o
concurso de 2 (duas) ou mais pessoas ou com o emprego de arma.
Aqui, vale destacar que, como a lei não fez distinção, a utilização de
qualquer arma no crime, seja ela própria (destinada ao ataque e à
defesa, a exemplo do que ocorre com os punhais e armas de fogo)
ou imprópria (como é o caso de objetos que, não sendo destinados
ao ataque e à defesa, podem exercer essa função, tal como ocorre
com cacos de vidro, pedaços de pau etc.), servirá para aplicar o
aumento de pena. Assim, tanto faz se o agente se vale de uma
arma de fogo ou de uma faca de cozinha para intimidar a vítima,
deverá ser aplicada a causa de aumento de pena em estudo.
3.9
Concurso de crimes
Determina o § 2º do art. 147-A do Código Penal:
§ 2º As penas deste artigo são
aplicáveis
sem
prejuízo
das
correspondentes à violência.
No referido § 2º foi previsto o concurso de crimes entre a
perseguição (art. 147-A) e o correspondente à violência (tal como
ocorre com o art. 129 do CP, em qualquer uma de suas modalidades
– leve, grave ou gravíssima).
Aqui, ao contrário do que ocorre com o crime de
constrangimento ilegal (art. 146 do CP), poderá se cogitar em
concurso material, uma vez que o agente pode, reiteradamente ou
não, usar de violência para efeitos de concretização do stalking,
pois, como já afirmamos anteriormente, cuida-se de um crime
habitual, que requer a prática retirada de comportamentos para que
reste consumada a infração penal.
Assim, imagine-se a hipótese onde o agente, com o objetivo de
abalar psicologicamente a vítima, passe a frequentar o lugar onde
esta última costumava almoçar, mos-trando-se ostensivamente.
Numa dessas aparições, o agente com ela discute e a agride. Como
se percebe, o crime de perseguição exigia uma cadeia de atos,
sendo que em todos os anteriores à agressão o agente somente
fazia questão de demonstrar a sua presença no local. Nesse caso,
entendemos que será perfeitamente possível o raciocínio
correspondente ao concurso material de crimes, vale dizer, o de
perseguição e o de lesões corporais (leve, grave ou gravíssima).
3.10
Pena, ação penal, competência para julgamento e
suspensão condicional do processo
A pena cominada no preceito secundário do art. 147-A do
Código Penal é de reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e
multa.
Assim, pelo menos inicialmente, se não houver a aplicação de
qualquer das causas especiais de aumento de pena previstas nas
alíneas do § 1º, do art. 147-A do diploma repressivo, e tampouco a
aplicação do concurso de crimes apontado pelo § 2º do referido
artigo, que diz que as penas são aplicáveis sem prejuízo das
correspondentes à violência, a competência será do Juizado
Especial Criminal, possibilitando-se a aplicação de todos os
institutos que lhe são inerentes (transação penal e suspensão
condicional do processo).
A ação penal é de iniciativa pública condicionada à
representação, nos termos do § 3º do art. 147-A do Código Penal.
3.11
Destaques
Revogação do art. 65 da LCP
Até o advento da Lei nº 14.132, de 31 de março de 2021, que
inseriu o delito de perseguição no Código Penal (art. 147-A),
entendia-se que esse comportamento (stalking) encontrava-se
previsto no art. 65 da Lei das Contravenções Penais, que dizia,
verbis:
Art. 65. Molestar alguém ou perturbarlhe a tranquilidade, por acinte ou por
motivo reprovável:
Pena – prisão simples, de quinze dias
a dois meses, ou multa.
A Lei nº 14.132, de 31 de março de 2021, no mesmo instante
em que criou o delito de perseguição, por outro lado, revogou
também, expressamente, o transcrito art. 65 da LCP, evitando-se,
dessa forma, interpretações conflitantes.
Cyberstalking
Hoje em dia, o chamado cyberstalking, ou seja, a perseguição
que é levada a efeito no mundo virtual, através da internet, ganhou
proporções assustadoras, dada a quantidade de ferramentas
disponíveis para a sua realização.
A cada momento surgem novos aplicativos que permitem a
interação entre as pessoas, o que facilita, sobremaneira, a
ocorrência do cyberstalking. A exposição constante na internet,
através de ferramentas como o Facebook ou o Instagram, onde a
pessoa posta fotos e vídeos pessoais, fez com que crescesse o
cyberstalking que, ao contrário do que muitos pensam, não tem
como foco somente pessoas conhecidas, famosas, artistas etc.,
mas, e principalmente, as demais pessoas ditas comuns, ou seja,
que não possuem essa projeção.
Como bem apontado por Luciana Gerbovic:
“Mesmo o cyberstalking ocorrendo no mundo virtual, seus
efeitos são sentidos no mundo físico e podem chegar a ser
mais devastadores do que aqueles provocados pelo stalking,
principalmente em razão da facilitação do anonimato neste
meio e da rapidez na divulgação de dados e imagens, que foge
ao controle de qualquer pessoa, inclusive das autoridades”.
Stalking na Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340, de 7 de agosto de
2006)
No inciso II, do art. 7º da Lei Maria da Penha, podemos
identificar dois comportamentos que se configuram em stalking, a
saber, a vigilância constante e também a perseguição contumaz,
conforme se verifica pela redação abaixo transcrita:
Art. 7º São formas de violência
doméstica e familiar contra a mulher,
entre outras:
I – (...) II – a violência psicológica,
entendida como qualquer conduta que
lhe cause dano emocional e
diminuição da autoestima ou que lhe
prejudique e perturbe o pleno
desenvolvimento
ou
que
vise
degradar ou controlar suas ações,
comportamentos, crenças e decisões,
mediante ameaça, constrangimento,
humilhação, manipulação, isolamento,
vigilância constante, perseguição
contumaz,
insulto,
chantagem,
violação
de
sua
intimidade,
ridicularização, exploração e limitação
do direito de ir e vir ou qualquer outro
meio que lhe cause prejuízo à saúde
psicológica e à autodeterminação;
3.12
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: qualquer pessoa
pode ser considerada como
sujeito ativo do delito de
perseguição, seja ela do
sexo
masculino
ou
feminino.
Passivo: qualquer pessoa.
Objeto material
A pessoa contra a qual recai a
conduta praticada pelo stalker.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
A liberdade pessoal, entendida,
aqui, tanto a de natureza física
quanto psíquica, bem como a
integridade física da vítima.
Elemento subjetivo
O dolo é o elemento exigido
pelo tipo penal em estudo, não
havendo previsão para a
modalidade
de
natureza
culposa.
Modalidades
omissiva
comissiva
e
O núcleo perseguir nos induz a
concluir que o comportamento
deve
ser
praticado
comissivamente, não havendo,
outrossim, previsão para a
conduta omissiva.
Consumação e tentativa
»
Em se tratando de um
delito habitual, a infração
penal prevista no art. 147-A
do diploma repressivo se
consuma quando da prática
reiterada da perseguição, e
por qualquer meio, venha a
ameaçar a integridade
física ou psicológica da
vítima, restringindo-lhe a
capacidade de locomoção
»
ou, de qualquer forma,
invadindo ou perturbando
sua esfera de liberdade ou
privacidade.
Nesse caso específico, não
conseguimos visualizar a
possibilidade de tentativa,
uma vez que, ou o agente
pratica, reiteradamente, os
atos de perseguição e o
delito se consuma, ou os
fatos praticados anteriores,
não
reiterados,
são
considerados como um
indiferente penal.
4.
VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA CONTRA A MULHER
Violência psicológica contra a
mulher Art. 147-B. Causar dano
emocional à mulher que a prejudique
e perturbe seu pleno desenvolvimento
ou que vise a degradar ou a controlar
suas ações, comportamentos, crenças
e decisões, mediante ameaça,
constrangimento,
humilhação,
manipulação, isolamento, chantagem,
ridicularização, limitação do direito de
ir e vir ou qualquer outro meio que
cause
prejuízo
à
sua
saúde
psicológica e autodeterminação:
Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a
2 (dois) anos, e multa, se a conduta
não constitui crime mais grave.
4.1
Introdução
O art. 147-B foi inserido no Código Penal através da Lei nº
14.188, de 28 de julho de 2021, criando o delito de violência
psicológica contra a mulher.
Cuida-se, outrossim, de um tipo penal que tem duas finalidades
específicas. Na sua primeira parte, o agente atua no sentido de
causar dano emocional à mulher, prejudicando e perturbando seu
pleno desenvolvimento. A mulher, aqui, por conta do dano sofrido,
se sente inferiorizada, menosprezada, incapaz de se desenvolver
plenamente.
Na segunda parte, a conduta do agente visa a degradar ou a
controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões,
mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação,
isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e
vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde
psicológica e autodeterminação.
Como se percebe, houve a criminalização da violência
psicológica, prevista no inciso II, do art. 7º, da Lei nº 11.340/2006,
com a redação que lhe foi conferido pela Lei nº 13.772/2018, que
diz, verbis:
Art. 7º São formas de violência
doméstica e familiar contra a mulher,
entre outras:
(...)
II – a violência psicológica, entendida
como qualquer conduta que lhe cause
dano emocional e diminuição da
autoestima ou que lhe prejudique e
perturbe o pleno desenvolvimento ou
que vise degradar ou controlar suas
ações, comportamentos, crenças e
decisões,
mediante
ameaça,
constrangimento,
humilhação,
manipulação, isolamento, vigilância
constante, perseguição contumaz,
insulto, chantagem, violação de sua
intimidade, ridicularização, exploração
e limitação do direito de ir e vir ou
qualquer outro meio que lhe cause
prejuízo à saúde psicológica e à
autodeterminação.
Gabriel Habib, com a precisão que lhe é peculiar, dissertando
sobre o tema, aduz que se trata:
“da ofensa que consiste na lesão causada por mecanismos não
violentos e consiste na perturbação das funções fisiológicas do
organismo, inclusive a alteração do psiquismo, a exemplo de
neuroses, depressão, entre outras, ainda que de forma
transitória.”
Como se percebe pela redação do tipo penal em análise, o
agente pode, sem encostar na vítima, ou seja, sem causar-lhe
qualquer tipo de lesão de natureza física, atingi-la psicologicamente
de tal forma, causando-lhe um dano emocional muitas vezes
irreparável. São comuns expressões que importam em ameaça,
constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem,
ridicularização, limitação do direito de ir e vir, a exemplo do agente
que, com frequência, diz que se a vítima o deixar, ele a matará,
juntamente com a sua família, ou quando diz que deve ou não usar
determinadas roupas, que ficará mal falada, que a vítima se
comporta como uma “vadia”, que não vale nada, que é mal amada,
louca, histérica, que ninguém a suporta, que o agente está fazendo
“um favor” de ficar com ela, que não permite que se relacione com
pessoas do sexo masculino, que a isola também de suas amigas,
pois que as considera como péssimas companhias, quando afirma
que mulher gosta de apanhar, quando atribui qualidades pejorativas
às vítimas, a chamando de burra, incapaz, feia, magra, gorda etc.
Enfim, são inúmeras as formas de se atingir psicologicamente a
mulher.
Embora o delito seja praticado, com mais frequência, pelo
homem contra a mulher, isso não impede que o tipo penal ocorra em
diversas situações, incluindo, por exemplo, relações homoafetivas.
Assim, uma mulher pode agir utilizando-se de violência psicológica,
a fim de subjugar sua companheira, causando-lhe prejuízo à sua
saúde psicológica.
O tipo penal permite a chamada interpretação extensiva,
quando se utiliza da fórmula ou qualquer outro meio que cause
prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação. Assim, não
somente o emprego da ameaça, constrangimento, humilhação,
manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do
direito de ir e vir se constituem em meios para a prática do delito,
sendo abrangidos pelo tipo penal em estudo quaisquer outros que
com eles se assemelhem e que se prestem a realizar a figura típica.
Trata-se, ainda, de tipo penal expressamente subsidiário, tendo
em vista que somente será aplicado se a conduta não se constituir
em crime mais grave, conforme preceitua a parte final do preceito
secundário do art. 147-B do Código Penal. Assim, por exemplo, se
um homem, com a finalidade de humilhar uma mulher, a estupra
publicamente, o fato não se amoldará ao tipo penal em estudo, mas
sim ao delito tipificado no art. 213 do diploma repressivo. Da mesma
forma, se o agente, querendo privar a vítima do seu direito de ir, vir
e permanecer onde bem entender, a trancar dentro de casa porque
a mulher havia dito que se encontraria com umas amigas em um
determinado bar, não responderá pelo crime de violência psicológica
contra a mulher, mas sim o de sequestro ou cárcere privado,
previsto no art. 148 do Código Penal.
4.2
Classificação doutrinária
Crime comum com relação sujeito ativo, e próprio no que diz
respeito ao sujeito passivo; doloso; comissivo (podendo ser
praticado via omissão imprópria, na hipótese em que o agente gozar
do status de garantidor); habitual; monossubjetivo; transeunte ou
não transeunte (dependendo do fato de a infração penal deixar ou
não vestígios).
4.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
A mulher sobre a qual recai o comportamento praticado pelo
agente é o objeto material do delito em análise.
Bens juridicamente protegidos são a liberdade pessoal,
entendida, aqui, tanto a de natureza física quanto psíquica, bem
como a integridade física da mulher, vítima do delito tipificado no art.
147-B do Código Penal.
4.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
Crime comum no que diz respeito ao sujeito ativo, o delito de
violência psicológica contra a mulher poderá ser praticado por
qualquer pessoa, mesmo que seja do sexo feminino.
Sujeito passivo somente poderá ser a mulher, tendo em vista a
disposição expressa contida no art. 147-B do Código Penal.
4.5
Consumação e tentativa
Ponto que merece atenção diz respeito à análise do momento
consumativo do delito de violência psicológica contra a mulher. A
primeira parte do art. 147-B do Código Penal exige que o
comportamento praticado pelo agente seja dirigido a causar dano
emocional à mulher que prejudique e perturbe seu pleno
desenvolvimento. Na segunda parte do tipo penal, o agente atua
visando a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos,
crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento,
humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização,
limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause
prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação.
Entendemos que para que ocorra a consumação, faz-se
necessária que a conduta seja habitual, isto é, que o agente,
reiteradamente, pratique determinado comportamento, visando
abalar psicologicamente a mulher. Importante frisar que a infração
penal restará consumada mesmo que a mulher não se tenha
deixado abalar com a conduta do agente. Assim, por exemplo,
imagine-se a hipótese em que um homem, com frequência, humilhe
sua esposa, fato esse presenciado diversas vezes pelos amigos que
conviviam com o casal, chamando-a de burra, dizendo que não
tinha capacidade para fazer absolutamente nada etc. Esse fato é
levado ao conhecimento da autoridade policial através dos amigos
que assistiam, constantemente, as cenas de humilhação. Aqui, por
mais que a própria mulher não se importasse com o comportamento
do marido, entendemos como consumada a infração penal.
Importante frisar, ainda, que um ato impulsivo, um xingamento,
uma falta de educação momentânea, não têm o condão de
configurar a infração penal em estudo, podendo-se falar,
dependendo da hipótese, em crime contra a honra.
Por se tratar de um crime habitual, será difícil o reconhecimento
da tentativa, mas não pode ser de todo descartada, dependendo do
caso concreto apresentado.
4.6
Elemento subjetivo
O dolo é o elemento subjetivo exigido pelo tipo penal que prevê
o delito de violência psicológica contra a mulher, não havendo
previsão para a modalidade de natureza culposa.
A análise do elemento subjetivo deve ser criteriosa, pois, caso
contrário, situações normais do dia a dia, mesmo que
desagradáveis, constrangedoras, podem conduzir a interpretações
equivocadas e acabar por tipificar comportamentos que seriam
considerados como indiferentes penais. Assim, por exemplo, o
rompimento de um relacionamento amoroso, por si só, não se
configura no delito em estudo, por mais que a mulher tenha a
sensação de ter sido humilhada ou mesmo enganada
emocionalmente. Por outro lado, se um homem a seduz tão
somente com o fim de, posteriormente, humilhá-la com o término do
relacionamento, em sua conduta já se poderá vislumbrar o dolo
exigido pelo tipo penal em análise.
Em resumo, somente o caso concreto, com a análise do
comportamento praticado, é que poderemos concluir se houve ou
não o dolo exigido pelo art. 147-B do Código Penal.
4.7
Modalidades comissiva e omissiva
As condutas previstas pelo art. 147-B do Código Penal somente
podem ser praticadas comissivamente.
No entanto, será possível o raciocínio correspondente à
omissão imprópria, quando o agente gozar do status de garantidor,
nos termos do § 2º do art. 13 do diploma repressivo. Assim,
imagine-se a hipótese em que uma mãe presencie, com a
habitualidade exigida pelo tipo penal, seu marido humilhando sua
filha, que contava com apenas 16 anos de idade, chamando-a
agressivamente de vadia toda vez que resolvia sair de casa a fim de
se encontrar com seus amigos.
A mãe, mesmo podendo, não somente nada faz para impedir
esse comportamento praticado pelo seu esposo, mas com ele
concorda, uma vez que entende que sua filha, ainda inimputável,
não poderia sair de casa aos finais de semana. Nesse caso, o pai
responderia pelo delito de violência psicológica contra a mulher
praticado comissivamente, e a mãe, por sua vez, na qualidade de
garantidora, seria responsabilizada a título de omissão imprópria
pelo mesmo crime.
4.8
Pena e ação penal
A pena é de reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e
multa, se a conduta não constitui crime mais grave.
A ação penal é de iniciativa pública incondicionada.
5.
SEQUESTRO E CÁRCERE PRIVADO
Sequestro e cárcere privado
Art. 148. Privar alguém de sua
liberdade, mediante sequestro ou
cárcere privado:
Pena – reclusão, de um a três anos.
§ 1º A pena é de reclusão, de dois a
cinco anos:
I – se a vítima é ascendente,
descendente,
cônjuge
ou
companheiro do agente ou maior de
60 (sessenta) anos;
II – se o crime é praticado mediante
internação da vítima em casa de
saúde ou hospital;
III – se a privação da liberdade dura
mais de quinze dias;
IV – se o crime é praticado contra
menor de 18 (dezoito) anos;
V – se o crime é praticado com fins
libidinosos.
§ 2º Se resulta à vítima, em razão de
maus-tratos ou da natureza da
detenção, grave sofrimento físico ou
moral:
Pena – reclusão, de dois a oito anos.
5.1
Introdução
O art. 148 do Código Penal inicia sua redação com a seguinte
expressão: privar alguém de sua liberdade. Liberdade, aqui, tem o
sentido de direito de ir, vir ou permanecer, ou seja, cuida-se da
liberdade ambulatorial, física.
Quando a lei penal usa o termo sequestro e a expressão
cárcere privado, à primeira vista temos a impressão de que se trata
de situações diferentes. No entanto, majoritariamente, entende-se
que sequestro e cárcere privado significam a mesma coisa. A única
diferença que se pode apontar entre eles, para que se possa
aproveitar todas as letras da lei, é no sentido de que, quando se
cuida de sequestro, existe maior liberdade ambulatorial; ao
contrário, quando a liberdade ambulatorial é menor, ou seja, o
espaço para que a vítima possa se locomover é pequeno, reduzido,
trata-se de cárcere privado.
Procurando traçar a diferença entre eles, Hungria diz que o
sequestro é o gênero, sendo sua espécie o cárcere privado, ou:
“Por outras palavras, o sequestro (arbitrária privação ou
compressão da liberdade de movimento no espaço) toma o
nome tradicional de cárcere privado quando exercido in domo
privata ou em qualquer recinto fechado, não destinado à prisão
pública. Tanto no sequestro, quanto no cárcere privado, é detida
ou retida a pessoa em determinado lugar; mas, no cárcere
privado, há a circunstância de clausura ou encerramento.
Abstraída esta acidentalidade, não há que distinguir entre as
duas modalidades criminais, de modo que não se justificaria
uma diferença de tratamento penal.”35
O Código Penal prevê duas modalidades qualificadas de
sequestro ou cárcere privado. A primeira delas, de acordo com o §
1º do art. 148, comina uma pena de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco)
anos, quando: I – a vítima é ascendente, descendente, cônjuge ou
companheiro do agente ou maior de 60 (sessenta) anos; II – se o
crime é praticado mediante internação da vítima em casa de saúde
ou hospital; III – se a privação da liberdade dura mais de 15 (quinze)
dias; IV – se o crime é praticado contra menor de 18 (dezoito) anos;
V – se o crime é praticado com fins libidinosos. A segunda
modalidade qualificada, prevista no § 2º do art. 148, comina pena de
reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, se resulta à vítima, em razão
dos maus-tratos ou da natureza da detenção, grave sofrimento físico
ou moral.
5.2
Classificação doutrinária
Crime comum com relação ao sujeito ativo, bem como quanto
ao sujeito passivo, à exceção das modalidades qualificadas
previstas nos incisos I e IV do § 1º do art. 148 do Código Penal, em
que os sujeitos passivos deverão ser as pessoas por ele
determinadas; doloso; comissivo ou omissivo impróprio; permanente
(uma vez que a consumação da infração penal se perpetua no
tempo); material (já que a conduta do agente produz um resultado
naturalístico, perceptível por meio dos sentidos, que é a privação da
liberdade
da
vítima);
de
forma
livre;
monossubjetivo;
plurissubsistente (como regra, uma vez que, dependendo da
hipótese, poderá haver concentração de atos, quando, então,
passará a ser entendido como unissubsistente).
5.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
Bem juridicamente protegido pelo tipo do art. 148 do Código
Penal é a liberdade pessoal, entendida aqui no sentido de liberdade
ambulatorial, liberdade física, ou seja, o direito que toda pessoa tem
de ir, vir ou permanecer, direito, inclusive, assegurado
constitucionalmente tanto no caput do art. 5º da Lei Maior, como
também, especificamente, em seu inciso XV, que determina:
XV – é livre a locomoção no território
nacional em tempo de paz, podendo
qualquer pessoa, nos termos da lei,
nele entrar, permanecer, ou dele sair
com seus bens;
Objeto material é a pessoa privada da liberdade, contra a qual
recai a conduta do agente.
5.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do crime tipificado no
art. 148 do Código Penal.
Da mesma forma, qualquer pessoa pode ser sujeito passivo do
delito em estudo, não havendo necessidade de gozar de uma
qualidade ou condição pessoal. Nesse sentido, preleciona Fragoso:
“Qualquer pessoa física pode ser sujeito passivo deste crime,
inclusive pessoa que não tenha consciência da privação de
liberdade a que é submetida, como o louco, o recém-nascido, o
bêbado, a pessoa sem sentidos [...]. É que, não obstante não
ter a vítima capacidade natural de querer e de exercer sua
liberdade, sua retenção tira-lhe a possibilidade de ser auxiliada,
restringindo-lhe ou eliminando-lhe a liberdade corporal.”36
5.5
Consumação e tentativa
Consuma-se o delito de sequestro ou cárcere privado com a
efetiva impossibilidade de locomoção da vítima, que fica impedida
de ir, vir ou mesmo de permanecer onde quer.
Conforme lições de Aníbal Bruno:
“Consuma-se quando o coagido é privado de sua liberdade.
Mas é um caso típico de crime permanente. Não se esgota num
acontecer instantâneo, como no homicídio; o seu momento
consumativo prolonga-se por tempo mais ou menos dilatado e
dura até que o próprio agente, ou qualquer circunstância lhe
ponha fim, recuperando a vítima a sua inteira liberdade. Como
se tem dito, se pretendêssemos dar a essa fase consumativa
expressão gráfica, não seria por um ponto que poderia ser
representada, como no crime instantâneo, mas por um traço
contínuo, e, enquanto persiste esse estado consumativo,
evidentemente o autor se encontra em situação de flagrante
delito.”37
Deve ser ressaltado que, para fins de caracterização do crime
em estudo, não há necessidade de remoção da vítima, podendo se
consumar a infração penal desde que esta, por exemplo, se veja
impedida de sair do local onde se encontra. Assim, aquele que
tranca a vítima dentro de sua própria casa, impedindo-a de sair,
pratica o crime de sequestro.
Tendo em vista ser perfeitamente fracionável o iter criminis,
entende-se que o delito de sequestro ou cárcere privado admite a
tentativa. Desde que o agente tenha dado início à execução, ou
seja, tenha colocado em marcha atos tendentes à privação da
liberdade ambulatorial da vítima, não conseguindo inibir o seu direito
de ir, vir e permanecer, restará tentado o delito em tela.
Entretanto, se a vítima, mesmo que por curto espaço de tempo,
se viu limitada no seu direito ambulatorial, o delito restará
consumado. Para que cheguemos a essa conclusão, devemos,
obrigatoriamente, trabalhar com o raciocínio do princípio da
razoabilidade, a fim de não chegarmos a respostas penais
absurdas.
Dessa forma, imagine-se a hipótese daquele que, querendo
praticar o crime de sequestro, segure a vítima pelo braço,
impedindo-a de se locomover, e ato contínuo, alguém perceba o
comportamento delitivo do agente e o prenda em flagrante delito.
Devemos nos perguntar, nesse caso: O crime de sequestro estaria
consumado pelo fato de o agente ter impedido, por alguns
segundos, a liberdade ambulatorial da vítima, ou seria mais razoável
o raciocínio correspondente ao conatus? Acreditamos que a
resposta pela tentativa seria a melhor. Isso porque, para que possa
restar consumado o sequestro, faz-se mister que a privação da
liberdade seja por um tempo razoável. Poucos segundos, de acordo
com o nosso entendimento, não têm o condão de consumar a
infração penal, razão pela qual deveria o agente ser
responsabilizado pela tentativa de sequestro.
Romeu de Almeida Salles Júnior arrola as posições doutrinárias
a esse respeito:
“Acerca da duração da privação da liberdade, a doutrina
apresenta três posições: 1a) é irrelevante para a consumação
do delito, devendo ser considerada somente na dosagem da
pena; 2a) exige-se que a privação da liberdade perdure por
tempo razoável, uma vez que, sendo momentânea, há apenas
tentativa; 3a) não há delito quando a vítima permanece à mercê
do sujeito por tempo inexpressivo.”38
Como deixamos antever, somos partidários da segunda
corrente, pois, se o agente deu início aos atos de execução,
tendentes à consumação do crime de sequestro, cuja privação da
liberdade foi de pouca significância temporal, não podemos concluir
que o crime se consumou, pois foge ao raciocínio da razoabilidade,
tampouco afirmar que o comportamento é atípico, uma vez que o
agente já havia exteriorizado o seu comportamento, somente não
consumando a privação da liberdade por tempo considerável em
razão de circunstâncias alheias à sua vontade.
5.6
Elemento subjetivo
O dolo, seja ele direto ou eventual, é o elemento subjetivo do
delito de sequestro e cárcere privado.
Assim, poderá o agente dirigir finalisticamente sua conduta no
sentido de privar a vítima da sua liberdade, ou, mesmo sabendo que
seu comportamento levaria a esse resultado, poderá não se
importar com a sua ocorrência.
Há pouco tempo a imprensa noticiou um fato que causou
revolta em algumas pessoas que foram visitar os túmulos de seus
entes queridos em um cemitério. Como o horário de saída já havia
se esgotado, os coveiros, impacientes, fecharam o cemitério ainda
com algumas pessoas em seu interior. Na verdade, ao que parece,
não tinham certeza de que ainda havia mais pessoas lá dentro;
contudo, mesmo diante dessa incerteza, não se importaram de
privá-las da oportunidade de sair daquele local sinistro. Como
resultado, algumas pessoas passaram a noite no cemitério, sendo
libertadas horas depois.
O dolo relativo ao delito de sequestro e cárcere privado diz
respeito a tão somente privar alguém de sua liberdade. Se houver
um dado que especialize a privação da liberdade, o fato terá outra
moldura típica.
Assim, por exemplo, aquele que sequestra alguém com o fim de
obter para si ou para outrem qualquer vantagem, como condição ou
preço do resgate, pratica o crime de extorsão mediante sequestro.
Com isso queremos esclarecer que o sequestro pode ser
considerado, também, um delito subsidiário, aplicando-se o art. 148
do Código Penal somente quando a privação da liberdade não se
configurar em elemento de outro tipo penal, considerado especial
em relação a ele.
Não foi prevista a modalidade culposa para o crime de
sequestro e cárcere privado. Portanto, aquele que, encarregado de
fechar as portas do escritório, por ser o último a sair, se esquece de
que, naquele dia excepcionalmente, alguém está fazendo hora
extra, negligentemente, deixa de verificar se todas as pessoas já
haviam saído e tranca a porta, impedindo a saída de alguém, não
responde por delito algum.
Devemos ressaltar a diferença entre esse exemplo com o dos
coveiros. Nesse último exemplo, o agente acreditava, por descuido,
que não havia mais ninguém no escritório; no primeiro, os coveiros
tinham dúvidas sobre a permanência de outras pessoas no interior
do cemitério e, mesmo assim, trancaram a porta de saída, não se
importando com a eventual privação da liberdade das pessoas que
ainda se encontravam lá dentro.
5.7
Modalidades comissiva e omissiva
O delito de sequestro e cárcere privado pode ser praticado
comissiva ou omissivamente, sendo, portanto, entendida a privação
da liberdade em forma de:
a)
b)
detenção, quando praticado comissivamente;
retenção, quando levado a efeito omissivamente.
Pode ocorrer que o agente tranque, por exemplo, a fechadura
de determinada sala, com a finalidade de impedir a saída das
pessoas que se encontrem lá dentro, ou que, por segurança, a sala
já se encontre fechada, sendo a função do agente abri-la quando
acionado por alguém, e ele deixe de atender aos pedidos de
abertura da porta, mantendo as pessoas presas naquele recinto.
No primeiro caso, estaríamos diante do sequestro na
modalidade detenção; no segundo, na modalidade retenção.
5.8
Modalidades qualificadas
Os §§ 1º e 2º do art. 148 do Código Penal trouxeram
modalidades qualificadas de sequestro e cárcere privado, sendo que
a hipótese prevista no § 2º pune mais severamente do que a do §
1º, verbis:
§ 1º A pena é de reclusão, de dois a
cinco anos:
I – se a vítima é ascendente,
descendente,
cônjuge
ou
companheiro do agente ou maior de
60 (sessenta) anos;
II – se o crime é praticado mediante
internação da vítima em casa de
saúde ou hospital;
III – se a privação da liberdade dura
mais de quinze dias;
IV – se o crime é praticado contra
menor de 18 (dezoito) anos;
V – se o crime é praticado com fins
libidinosos.
§ 2º Se resulta à vítima, em razão de
maus-tratos ou da natureza da
detenção, grave sofrimento físico ou
moral.
Pena – reclusão, de dois a oito anos.
Ab initio, merece destaque o fato de que se, por exemplo,
estivermos diante de uma situação que, aparentemente, se amolde
a ambos os parágrafos, deverá ter aplicação tão somente um deles,
vale dizer, o que tiver a maior pena cominada. Assim, se alguém
comete um crime de sequestro contra seu próprio cônjuge,
causando-lhe grave sofrimento físico em razão da detenção, a pena
a ser aplicada será a do § 2º do art. 148 do Código Penal, havendo,
portanto, um conflito aparente de normas a ser resolvido.
Em virtude das particularidades de cada uma das
qualificadoras, faremos o seu estudo isoladamente, uma a uma.
5.8.1
Vítima ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro
do agente ou maior de 60 (sessenta) anos
O inciso I do § 1º do art. 148 do Código Penal teve nova
redação determinada pela Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003
(Estatuto do Idoso), sendo, ainda, posteriormente modificado pela
Lei nº 11.106, de 28 de março de 2005, que incluiu a figura do
companheiro.
À exceção da hipótese em que a vítima é companheira do
agente, para que seja efetivamente aplicada a qualificadora faz-se
mister a comprovação nos autos, por meio dos documentos
necessários (certidão de nascimento, carteira de identidade,
certidão de casamento etc.), conforme determina o parágrafo único
do art. 155 do Código de Processo Penal, de acordo com a nova
redação que lhe foi dada pela Lei nº 11.690, de 9 de junho de 2008,
que diz:
Parágrafo único. Somente quanto ao
estado das pessoas serão observadas
as restrições estabelecidas na lei civil.
Importante frisar que, para o efetivo reconhecimento da
qualificadora, o agente deve saber que pratica o crime de sequestro
e cárcere privado contra ascendente, descendente, cônjuge,
companheiro ou maior de 60 (sessenta) anos, pois, caso contrário,
poderá incorrer no chamado erro de tipo, afastando a qualificadora.
No que diz respeito ao filho adotivo, Cezar Roberto Bitencourt
assim se posiciona:
“Ao contrário do que alguns sustentam, a previsão do art. 227, §
6º, da Constituição Federal não autoriza a inclusão do filho
adotivo como fundamento da qualificação da figura típica. O
Direito Penal orienta-se, fundamentalmente, pelo princípio da
tipicidade, e, enquanto não houver norma legal criminalizando
condutas e cominando as respectivas sanções, os enunciados
constitucionais funcionarão somente como matrizes orientadas
da futura política criminal, mas jamais poderão fundamentar a
responsabilidade penal, sem previsão legal expressa e
específica.”39
Apesar da autoridade do renomado professor gaúcho, ousamos
dele discordar. Isso porque a própria Constituição Federal
determinou, no mencionado § 6º do art. 227, que:
§ 6º Os filhos, havidos ou não da
relação do casamento, ou por adoção,
terão
os
mesmos
direitos
e
qualificações, proibidas quaisquer
designações discriminatórias relativas
à filiação.
Devemos observar a determinação constitucional quando
assevera que os filhos terão os mesmos direitos e qualificações.
Dessa forma, não podemos dizer que o filho adotivo, por exemplo,
não goza do status de descendente, razão pela qual se amolda ao
conceito do inciso I em exame.
O reconhecimento das qualificadoras em estudo afasta a
aplicação das circunstâncias agravantes previstas nas alíneas e e h
do inciso II do art. 61 do Código Penal.
5.8.2
Se o crime é praticado mediante internação da vítima em
casa de saúde ou hospital
Não são incomuns as internações desnecessárias cuja única
finalidade daqueles que internam as vítimas é, justamente, afastálas do convívio social no qual estavam inseridas.
A lei penal menciona casa de saúde ou hospital, querendo
denotar que a internação deverá ocorrer em locais destinados, como
regra, ao tratamento da saúde física e mental das pessoas.
Contudo, pode ser que a internação não passe de uma fraude
praticada pelo agente, no sentido de encobrir sua verdadeira
finalidade, que é a de privar a vítima de sua liberdade ambulatorial.
Nesse sentido, afirma Paulo José da Costa Júnior:
“Se o crime é praticado internando-se a vítima em casa de
saúde ou hospital, onde o agente consegue mascarar sua
intenção criminosa, revestindo de aparente legitimidade sua
conduta. O médico ou diretor do hospital, que consente na
internação criminosa, responde como coautor.”40
Como é cediço, ninguém tem autoridade suficiente para internar
qualquer pessoa em uma casa de saúde ou em um hospital sem
que, para tanto, haja determinação médica. Assim, como bem
ressaltou Paulo José da Costa Júnior, o médico poderá ser
considerado coautor se, com a sua colaboração, for levada a efeito
a internação daquele que dela não necessitava.
Deverá, portanto, ser apurada a responsabilidade de quem,
efetivamente, contribuiu para a internação criminosa, isto é, se foi o
médico quem fez a determinação, o diretor do hospital etc.
5.8.3
Se a privação da liberdade dura mais de quinze dias
A qualificadora do inciso III do § 1º do art. 148 do Código Penal
determina que a pena é de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, se
a privação da liberdade dura mais de 15 (quinze) dias.
A primeira observação a ser feita diz respeito à contagem do
prazo, aqui considerado de natureza penal.
Determina o art. 10 do Código Penal:
Art. 10. O dia do começo inclui-se no
cômputo do prazo. Contam-se os
dias, os meses e os anos pelo
calendário comum.
Nesse caso, conta-se o primeiro dia de privação de liberdade
da vítima, independentemente da hora em que ocorreu.
Além disso, a lei penal assevera que a privação da liberdade
deve durar mais de 15 (quinze) dias, ou seja, somente se o agente
mantiver a vítima por, no mínimo, 16 (dezesseis) dias em privação
de liberdade é que poderá incidir a qualificadora.
5.8.4
Se o crime é praticado contra menor de 18 (dezoito) anos
O inciso IV foi acrescentado ao § 1º do art. 148 do Código
Penal pela Lei nº 11.106, de 28 de março de 2005. Dessa forma, se
a vítima for menor de 18 (dezoito) anos, o agente deverá responder
pela modalidade qualificada de sequestro e cárcere privado.
Tal como ocorre com o inciso I do § 1º do art. 148 do Código
Penal, para que seja aplicada a qualificadora em estudo, faz-se
mister a comprovação nos autos da idade da vítima, por meio de
documento próprio, nos termos do parágrafo único do art. 155 do
diploma processual penal.
O agente deverá, ainda, ter conhecimento efetivo da idade da
vítima, pois, caso contrário, poderá ser alegado o erro de tipo, que
terá o condão de afastar a qualificadora.
5.8.5
Se o crime é praticado com fins libidinosos
O inciso V também foi acrescentado ao § 1º do art. 148 por
intermédio da Lei nº 11.106, de 28 de março de 2005, que, além de
alterar a redação de alguns tipos penais constantes do Código
Penal, aboliu algumas infrações penais, como os crimes de
sedução, rapto e adultério.
No que dizia respeito especificamente ao delito de rapto, o
revogado tipo penal do art. 219 exigia, para efeitos de sua
configuração, que o sujeito passivo fosse mulher honesta, bem
como que a finalidade especial fosse dirigida à prática de atos
libidinosos.
Hoje, com a nova redação constante do inciso V do § 1º do art.
148 do Código Penal, qualquer pessoa poderá figurar como sujeito
passivo se o agente dirigir seu comportamento com o fim de praticar
atos libidinosos com a vítima. Assim, poderá uma mulher, por
exemplo, privar um homem de sua liberdade, com o fim de praticar
qualquer ato de natureza libidinosa (conjunção carnal, relação anal,
sexo oral etc.). Não importará, ainda, para efeitos de aplicação da
qualificadora, que estejamos diante de uma relação hetero ou
homossexual, pois ambas se amoldam ao delito em estudo.
Assim, o que importará, na verdade, será a finalidade especial
com que atua o agente. O delito será qualificado pelo inciso V ainda
que o agente não pratique qualquer ato de natureza libidinosa com a
vítima. No entanto, se vier a praticá-lo, haverá o chamado concurso
de crimes, respondendo o agente pelo sequestro qualificado em
concurso material com o delito sexual, a exemplo do estupro.
5.8.6
Se resulta à vítima, em razão de maus-tratos ou da
natureza da detenção, grave sofrimento físico ou moral
O § 2º do art. 148 do Código Penal prevê outra modalidade
qualificada de sequestro ou cárcere privado, punindo com pena de
reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, se, em razão de maus-tratos ou
da natureza da detenção, resultar à vítima grave sofrimento físico ou
moral.
A qualificadora é composta por vários elementos de natureza
normativa que estão a exigir valoração. Hungria, fazendo um exame
sobre eles, disserta:
“Por maus-tratos se deve entender qualquer ação ou omissão
que cause ou possa causar dano ao corpo ou saúde da vítima
ou vexá-la moralmente (exercer contra ela violências, privá-la
de alimentos ou da possibilidade de asseio, sujeitá-la a
zombarias cruéis, não lhe dar agasalho contra o frio etc.). Se
dos maus-tratos resultar lesão corporal ou morte, haverá
concurso material de crimes, respondendo o agente na
conformidade do art. 51.41 A expressão natureza da detenção
refere-se ao modo e condições objetivas da detenção em si
mesma (meter a vítima a ferros ou no tronco, insalubridade do
local, forçada promiscuidade da vítima com gente de classe
muito inferior à sua, exposição da vítima a males ou perigos
que excedem aos da forma simples do crime).”42
Como alertamos, se houver um concurso ou conflito aparente
de normas entre o § 2º do art. 148 do Código Penal e o § 1º do
mesmo artigo, aquele deverá prevalecer em detrimento deste.
Assim, caso resulte grave sofrimento físico ou mental, mesmo tendo
sido o crime cometido contra ascendente, terá aplicação tão
somente o § 2º do art. 148, ficando impossibilitada a cumulação dos
mencionados parágrafos.
5.9
Pena, ação penal e suspensão condicional do processo
Na sua modalidade simples, o art. 148 do Código Penal prevê
uma pena de reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos. Na modalidade
qualificada do seu § 1º, comina pena de reclusão, de 2 (dois) a 5
(cinco) anos, sendo que no § 2º a pena é de reclusão, de 2 (dois) a
8 (oito) anos.
Em todas as suas modalidades – simples ou qualificadas –, a
ação penal no crime de sequestro e cárcere privado é de iniciativa
pública incondicionada.
Será possível a confecção de proposta de suspensão
condicional do processo para a infração penal prevista no caput do
art. 148 do Código Penal, nos termos do art. 89 da Lei nº 9.099/95.
5.10
5.10.1
Destaques
Consentimento do ofendido
A liberdade é um bem de natureza disponível. Dessa forma,
poderá a vítima dispor do seu direito de ir, vir e permanecer, desde
que presentes todos os requisitos necessários à validade do seu
consentimento, vale dizer: a) disponibilidade do bem; b) capacidade
para consentir; c) que o consentimento seja prévio, ou pelo menos
tenha sido fornecido numa relação de simultaneidade com a
conduta do agente.
Assim, imagine-se a hipótese daquele que, não tendo força de
vontade para estudar, pois está acostumado a sair de casa todos os
dias da semana, pretendendo fazer um concurso público, pede a
seu amigo que o tranque em sua casa todos os finais de semana,
fazendo, assim, com que a falta de opção o faça debruçar sobre os
livros.
O amigo que atende ao pedido não poderá ser responsabilizado
pelo delito de sequestro e cárcere privado, presentes os requisitos
citados acima, afastando-se, outrossim, a ilicitude do seu
comportamento, uma vez que o consentimento do ofendido será
cuidado, in casu, como uma causa supralegal de exclusão da
ilicitude.
Faz-se mister ressaltar que o consentimento do ofendido deve
durar o tempo todo em que estiver privado da sua liberdade, pois,
caso o revogue, o agente responderá pelo sequestro ou cárcere
privado.
5.10.2
Subtração de roupas da vítima
Imagine-se a hipótese daquele que, percebendo que uma
pessoa tomava banho completamente nua em um rio situado em
local não muito frequentado, esconda suas roupas, impedindo-a de
sair daquele lugar. Estaria o agente cometendo, no caso, o delito de
sequestro?
Nélson Hungria responde a essa indagação dizendo:
“Para que se integre o crime, em qualquer de suas variantes,
não é necessário que a vítima fique absolutamente impedida de
retirar-se do local em que a põe o agente: basta que não possa
afastar-se (transportar-se para outro lugar) sem grave perigo
pessoal, ou, como diz Florian, ‘sem um esforço de que não seja
normalmente capaz’.
É reconhecível o crime até mesmo no caso em que a vítima não
possa livrar-se por inexperiência ou ignorância das condições
do local, ou por estar sob vigilância, ou no caso, sempre
figurado, da mulher [...] que é deixada, sem as vestes, num
compartimento aberto ou à margem do rio em que se
banhava.”43
Dessa forma, esconder as roupas da pessoa que se banhava
no rio é considerado um meio para a prática do delito de sequestro,
considerando que ela não teria coragem para, completamente nua,
deixar aquele local a fim de procurar socorro. Aqui, portanto, o
sequestro seria praticado por meio da modalidade retenção, uma
vez que o fato de esconder as roupas da vítima impediu-a de sair de
onde se encontrava.
5.10.3
Participação ou coautoria sucessiva
O crime de sequestro e cárcere privado encontra-se no rol
daqueles considerados permanentes, cuja consumação se prolonga
no tempo, durando enquanto permanecer a privação da liberdade da
vítima.
Pode acontecer que, enquanto a vítima estiver cerceada de sua
liberdade ambulatorial, detida em determinado lugar, alguém
ingresse no plano criminoso, fazendo surgir, portanto, a hipótese de
coautoria sucessiva ou de participação sucessiva.
Já tivemos oportunidade de esclarecer, quando do estudo da
Parte Geral do Código Penal,44 que a regra é de que todos os
coautores iniciem, juntos, a empreitada criminosa. Mas pode
acontecer que alguém, ou mesmo o grupo, já tenha começado a
percorrer o iter criminis, ingressando na fase dos atos de execução,
quando outra pessoa adere à conduta criminosa daquele, e agora,
unidos pelo vínculo psicológico, passam, juntos, a praticar a infração
penal. Em casos como esse, quando o acordo de vontade vier a
ocorrer após o início da execução, fala-se em coautoria sucessiva
ou mesmo em participação sucessiva, dependendo da importância
do comportamento do agente para o sucesso da empreitada
criminosa, bem como de seu elemento de natureza subjetiva, ou
seja, se sua finalidade era ingressar no plano na qualidade de autor,
querendo o fato como próprio, ou se pretendia tão somente
colaborar, de alguma forma, mas não desejando fazer parte do
grupo, quando deverá ser considerado partícipe.
Assim, se alguém, sabendo que a vítima se encontrava
trancada em determinado lugar, ingressa no plano criminoso com o
fim de auxiliar o outro agente a vigiá-la, impedindo, assim, sua fuga,
porque também tinha contra ela um problema pessoal, responderá,
da mesma forma que aquele que a conduziu para aquele local, pelo
delito de sequestro e cárcere privado, na qualidade de coautor
sucessivo.
5.10.4
Sequestro e roubo com pena especialmente agravada pela
restrição da liberdade da vítima
Antes do advento da Lei nº 9.426, de 24 de dezembro de 1996,
que inseriu o inciso V no § 2º do art. 157 do Código Penal, entendiase que se, por exemplo, para fins de prática do delito de roubo, o
agente mantivesse a vítima detida com ele por um certo tempo,
estaríamos diante de duas infrações penais em concurso de crimes,
vale dizer, o crime de roubo, além do delito de sequestro e cárcere
privado.
Não era incomum, tal como nos dias de hoje, que o agente,
almejando subtrair o automóvel da vítima, depois de anunciar o
roubo, a colocasse deitada no porta-malas, passando, até mesmo, a
praticar outros delitos com ela presa dentro do veículo.
Após a inserção do mencionado inciso, surgiu a dúvida: O que
fazer, agora, quando a vítima de roubo fosse mantida em poder do
agente, que, assim agindo, restringia-lhe a liberdade?
Entenderíamos, tão somente, pelo delito de roubo, com a pena
especialmente agravada em virtude de ter o agente restringido a
liberdade da vítima, ou ainda poderíamos concluir pelo cometimento
do roubo em concurso com o crime de sequestro e cárcere privado?
Na verdade, a resposta a essa indagação vai depender do
tempo em que a vítima permanecer detida com o agente. Se for por
curto espaço de tempo, curto aqui entendido de acordo com as
determinações do princípio da razoabilidade, teremos tão somente o
crime de roubo com a pena especialmente aumentada em razão da
aplicação do inciso V do § 2º do art. 157 do Código Penal.
Se for por um período longo de privação de liberdade, podemos
raciocinar em termos de concurso material entre o delito de roubo e
o de sequestro ou cárcere privado, afastando-se, nesse caso, a
causa especial de aumento de pena prevista no inciso V do § 2º do
art. 157 do Código Penal, pois, caso contrário, estaríamos aplicando
o tão repudiado bis in idem.
Cezar Roberto Bitencourt ainda adverte:
“Para o crime de roubo foi previsto, como majorante, o agente
manter a vítima em seu poder, restringindo a sua liberdade (art.
157, § 2º, V, acrescentado pela Lei nº 9.426, de 24/12/1996).
Nesse dispositivo, a lei fala em restrição de liberdade, e,
naquele (art. 148), em privação; logo, há uma diferença de
intensidade, de duração: restrição significa a turbação da
liberdade, algo momentâneo, passageiro, com a finalidade de
assegurar a subtração da coisa, mediante violência, ou, quem
sabe, de garantir somente a própria fuga; privação da liberdade,
por sua vez, tem um sentido de algo mais duradouro, mais
intenso, mais abrangente, ou seja, suprime total ou
parcialmente o exercício da liberdade. Por isso, se a privação
da liberdade durar mais do que o tempo necessário para
garantir o êxito da subtração da coisa alheia ou da fuga, deixará
de constituir simples majorante, para configurar crime
autônomo, de sequestro, em concurso material com o crime
contra o patrimônio. Se a vítima, por exemplo, após despojada
de seu veículo, é obrigada a nele permanecer, do mesmo se
utilizando os acusados não para assegurar a impunidade do
crime cometido, mas para a prática de novos roubos contra
outras vítimas, haverá o crime de sequestro ou cárcere privado
(art. 148) em concurso material com o de roubo.”45
5.10.5
Sequestro e cárcere privado no Estatuto da Criança e do
Adolescente
A Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e
do Adolescente), criou uma modalidade especializada de sequestro
e cárcere privado, conforme se verifica da leitura do art. 230, verbis:
Art. 230. Privar a criança ou o adolescente de
sua liberdade, procedendo à sua apreensão
sem estar em flagrante de ato infracional ou
inexistindo ordem escrita da autoridade
judiciária competente: Pena – detenção, de
seis meses a dois anos.
Parágrafo único. Incide nas mesmas
penas aquele que procede à
apreensão sem observância das
formalidades legais.
Aqui, quando a lei menciona a apreensão, não está se referindo
a qualquer privação da liberdade, senão àquela praticada por
pessoas que, em tese, tinham autoridade para fazê-lo, a exemplo
das polícias civil e militar.
A restrição da liberdade da criança ou do adolescente é feita,
dessa forma, pelo próprio Estado, em tese, para uma das
finalidades previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Entretanto, como não havia flagrante de ato infracional, bem como
inexistia ordem escrita da autoridade judiciária, torna-se ilegal a
privação da liberdade, fazendo com que o autor seja
responsabilizado nos termos do art. 230 acima transcrito.
Merece ser ressaltado o fato de que, em outras situações, ou
seja, de privações de liberdade que não sejam levadas a efeito para
fins de aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente, o fato se
amoldará ao art. 148 do Código Penal, cujas penas nele previstas
são significativamente mais graves.
A autoridade competente para fins de liberação da criança ou
do adolescente ilegalmente privados da liberdade tem o dever de
colocá-los imediatamente em liberdade, sob pena de ser também
responsável por essa privação ilegal, agora na modalidade de
retenção, nos termos do art. 234 do Estatuto da Criança e do
Adolescente, assim redigido:
Art. 234. Deixar a autoridade
competente, sem justa causa, de
ordenar a imediata liberação de
criança ou adolescente, tão logo
tenha conhecimento da ilegalidade da
apreensão:
Pena – detenção de seis meses a
dois anos.
5.10.6
Sequestro e cárcere privado e a novatio legis in pejus
Imagine-se a hipótese em que o agente tenha privado a vítima
de sua liberdade ambulatorial. Ainda durante o período em que
permanecia privada da sua liberdade, entra em vigor uma lei nova,
aumentando, por exemplo, as penas cominadas ao delito de
sequestro ou cárcere privado.
Em sua sessão plenária de 24 de setembro de 2003, o
Supremo Tribunal Federal aprovou a Súmula nº 711, que diz:
Súmula nº 711. A lei penal mais grave
aplica-se ao crime continuado ou ao
crime permanente, se a sua vigência
é anterior à cessação da continuidade
ou da permanência.
De acordo com os termos da Súmula nº 711, que expressa o
entendimento já pacificado do Supremo Tribunal Federal, deverá ter
aplicação a chamada novatio legis in pejus, ou seja, a lei posterior,
mesmo que mais gravosa, dada a natureza permanente do delito
tipificado no art. 148 do Código Penal.
5.10.7
Sequestro e cárcere privado e Código Penal Militar
O crime de sequestro e cárcere privado também veio previsto
no Código Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de
1969), conforme se verifica pela leitura do seu art. 225 e parágrafos.
5.10.8
Vítima mantida como refém
A Lei nº13.964, de 24 de dezembro de 2019, inseriu o parágrafo
único ao art. 25 do Código Penal, dizendo:
Art. 25. (...) Parágrafo único.
Observados os requisitos previstos no
caput deste artigo, considera-se
também em legítima defesa o agente
de segurança pública que repele
agressão ou risco de agressão a
vítima mantida refém durante a prática
de crimes.
Embora fosse desnecessária essa inclusão, se o agente de
segurança pública agir nessas condições, fazendo cessar a situação
de agressão injusta que já existia tão somente com a privação de
liberdade da vítima, independentemente do fato de esta última estar
sendo agredida ou pelo menos com risco de ser agredida, estará
acobertado pela legítima defesa, resguardando-se, contudo, a
possibilidade de ser analisado o excesso, se houver.
5.11
Quadro-resumo
Sujeitos
»
Ativo: qualquer pessoa.
»
Passivo: qualquer pessoa
na modalidade simples.
Nas
modalidades
qualificadas previstas nos
incs. I e IV do § 1º do art.
148 do CP, os sujeitos
passivos deverão ser as
pessoas
por
eles
determinadas.
Objeto material
É a pessoa privada da
liberdade, contra a qual recai a
conduta do agente.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
É
a
liberdade
pessoal,
entendida aqui no sentido de
liberdade
ambulatorial,
liberdade física, ou seja, o
direito que toda pessoa tem de
ir, vir ou permanecer.
Elemento subjetivo
»
»
Dolo direto ou eventual.
Não há previsão para a
modalidade de natureza
culposa.
Modalidades
omissiva
comissiva
e
O delito pode ser praticado
comissiva ou omissivamente,
sendo, portanto, entendida a
privação da liberdade em forma
de:
a) detenção, quando praticado
comissivamente;
b) retenção, quando levado a
efeito omissivamente.
Consumação e tentativa
»
»
Consuma-se o delito de
sequestro
ou
cárcere
privado com a efetiva
impossibilidade
de
locomoção da vítima, que
fica impedida de ir, vir ou
mesmo de permanecer
onde quiser.
Deve ser ressaltado que,
para fins de caracterização
»
do crime em estudo, não
há
necessidade
de
remoção
da
vítima,
podendo se consumar a
infração penal desde que
esta, por exemplo, se veja
impedida de sair do local
onde se encontra. Assim,
aquele que tranca a vítima
dentro de sua própria casa,
impedindo-a de sair, pratica
o crime de sequestro.
A tentativa é admissível.
6.
REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO
Redução a condição análoga à de
escravo
Art. 149. Reduzir alguém a condição
análoga
à
de
escravo,
quer
submetendo-o a trabalhos forçados ou
a jornada exaustiva, quer sujeitando-o
a condições degradantes de trabalho,
quer restringindo, por qualquer meio,
sua locomoção em razão de dívida
contraída com o empregador ou
preposto: Pena – reclusão, de dois a
oito anos, e multa, além da pena
correspondente à violência.
§ 1º Nas mesmas penas incorre
quem:
I – cerceia o uso de qualquer meio de
transporte por parte do trabalhador,
com o fim de retê-lo no local de
trabalho;
II – mantém vigilância ostensiva no
local de trabalho ou se apodera de
documentos ou objetos pessoais do
trabalhador, com o fim de retê-lo no
local de trabalho.
§ 2º A pena é aumentada de metade,
se o crime é cometido:
I – contra criança ou adolescente;
II – por motivo de preconceito de raça,
cor, etnia, religião ou origem.
6.1
Introdução
O art. 149 do Código Penal cuida do delito de redução a
condição
análoga
à
de
escravo,
também
conhecido
doutrinariamente como “plágio.” Com a nova redação que lhe foi
dada pela Lei nº 10.803, de 11 de dezembro de 2003, procura-se
identificar as hipóteses em que se configura o mencionado delito.
A Exposição de Motivos da Parte Especial do Código Penal de
1940, no item 51, último parágrafo, dissertando sobre o crime de
redução a condição análoga à de escravo, dizia:
51. O fato de reduzir alguém, por qualquer
meio, à condição análoga à de escravo, isto
é, suprimir-lhe, de fato, o status libertatis,
sujeitando-o o agente ao seu completo e
discricionário poder. É o crime que os antigos
chamavam de plagium. Não é desconhecida
a sua prática entre nós, notadamente em
certos pontos remotos do nosso hinterland.
Hoje, após a modificação havida na redação original do tipo do
art. 149 do Código Penal, que dizia, tão somente, reduzir alguém a
condição análoga à de escravo, podemos identificar quando,
efetivamente, o delito se configura. Assim, são várias as maneiras
que, analogamente, fazem com que o trabalho seja comparado a
um regime de escravidão. A lei penal assevera que se reduz alguém
a condição análoga à de escravo, dentre outras circunstâncias,
quando:
a)
b)
c)
d)
o obriga a trabalhos forçados;
impõe-lhe jornada exaustiva de trabalho;
sujeita-o a condições degradantes de trabalho;
restringe, por qualquer meio, sua locomoção em razão de
dívida contraída com o empregador ou preposto.
Ao longo do século XX, foram realizadas várias conferências
pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), com o fim de
erradicar a escravidão, servidão e trabalhos forçados, culminando
com a edição de várias convenções, a exemplo da Convenção nº
29, adotada na 14a sessão da Conferência Geral da Organização
Internacional do Trabalho, em Genebra, a 28 de junho de 1930.
O art. 1º da mencionada Convenção determina:
Artigo 1º
1. Todos os Membros da Organização
Internacional
do
Trabalho
que
ratificam a presente convenção se
obrigam a suprimir o emprego do
trabalho forçado ou obrigatório sob
todas as suas formas no mais curto
prazo possível.
Da mesma forma, o art. 4º da Declaração Universal dos Direitos
do Homem e do Cidadão, de 1948, também determina:
Artigo 4º – Ninguém será mantido em
escravatura ou em servidão; a
escravatura e o trato dos escravos,
sob todas as formas, são proibidos.
E, especificamente com relação ao trabalho, diz o art. 23º:
Artigo 23º – [...]:
1. Toda a pessoa tem direito ao
trabalho, à livre escolha do trabalho, a
condições equitativas e satisfatórias
de trabalho e à proteção contra o
desemprego.
Dessa forma, o caput do art. 149 do Código Penal, com a nova
redação que lhe foi dada pela Lei nº 10.803/2003, atendendo às
exigências internacionais, responsabiliza criminalmente aquele que
reduz alguém a condição análoga à de escravo, praticando os
comportamentos acima destacados.
A Convenção nº 29, adotada pela Conferência Geral da
Organização Internacional do Trabalho, traduziu o conceito de
trabalhos forçados, dizendo, em seu art. 2º:
Artigo 2º
1. Para os fins da presente
convenção, a expressão “trabalho
forçado ou obrigatório” designará todo
trabalho ou serviço exigido de um
indivíduo sob ameaça de qualquer
penalidade e para o qual ele não se
ofereceu de espontânea vontade.
Assim, trabalho forçado diz respeito àquele para o qual a vítima
não se ofereceu volitivamente, sendo, portanto, a ele compelido por
meios capazes de inibir sua vontade.
José Cláudio Monteiro de Brito Filho, comentando o conceito
traduzido pela OIT, esclarece com precisão:
“A nota característica do conceito, então, é a liberdade. Quando
o trabalhador não pode decidir, espontaneamente, pela
aceitação do trabalho, ou então, a qualquer tempo, em relação
à sua permanência no trabalho, há trabalho forçado.
Não se deve dar, dessa forma, ao ‘e’ que une as duas
hipóteses, a condição de conjunção aditiva. É que o trabalho
forçado caracterizar-se-á tanto quando o trabalho é exigido
contra a vontade do trabalhador, durante sua execução, como
quando ele é imposto desde o seu início. O trabalho
inicialmente consentido, mas que depois se revela forçado, é
comum nessa forma de superexploração do trabalho no Brasil e
não pode deixar de ser considerado senão como forçado.”46
Não somente trabalhar forçosamente, mas também impor a um
trabalhador jornada exaustiva de trabalho, isto é, aquela que
culmina por esgotar completamente suas forças, minando-lhe a
saúde física e mental, configura-se no delito em estudo.
Da mesma forma, há trabalhos que sujeitam as vítimas a
condições degradantes, desumanas, ofensivas ao mínimo ético
exigido. José Cláudio Monteiro de Brito Filho, procurando esclarecer
o conceito de trabalho em condições degradantes, aduz ser aquele:
“Em que há a falta de garantias mínimas de saúde e segurança,
além da falta de condições mínimas de trabalho, de moradia,
higiene, respeito e alimentação. Tudo devendo ser garantido – o
que deve ser esclarecido, embora pareça claro – em conjunto;
ou seja, em contrário, a falta de um desses elementos impõe o
reconhecimento do trabalho em condições degradantes.
Assim, se o trabalhador presta serviços exposto à falta de
segurança e com riscos à sua saúde, temos o trabalho em
condições degradantes. Se as condições de trabalho mais
básicas são negadas ao trabalhador, como o direito de trabalhar
em jornada razoável e que proteja sua saúde, garanta-lhe
descanso e permita o convívio social, há trabalho em condições
degradantes. Se, para prestar o trabalho, o trabalhador tem
limitações na sua alimentação, na sua higiene, e na sua
moradia,
caracteriza-se
o
trabalho
em
condições
47
degradantes.”
Atividade que se tornou muito comum, principalmente na zona
rural, diz respeito ao fato de que o trabalhador, obrigado a comprar
sua cesta básica de alimentação de seu próprio empregador, quase
sempre por preços superiores aos praticados no mercado, acaba
por se transformar em um refém de sua própria dívida, passando a
trabalhar tão somente para pagá-la, uma vez que, à medida que o
tempo vai passando, dada a pequena remuneração que recebe,
conjugada com os preços extorsivos dos produtos que lhe são
vendidos, torna-se alguém que se vê impossibilitado de exercer seu
direito de ir e vir, em razão da dívida acumulada.
Merece destaque o fato de que a Portaria nº 265, de 6 de junho
de 2002, do Ministério do Trabalho e Emprego, estabeleceu normas
para a atuação dos Grupos Especiais de Fiscalização Móvel
(GEFM), compostos por Auditores Fiscais do Trabalho, que têm por
finalidade o combate ao trabalho escravo, forçado e infantil e tem
atuação em todo o território nacional.48
Em razão dessa fiscalização, em janeiro de 2004, o Brasil
assistiu, estarrecido, à notícia sobre o assassinato de três auditoresfiscais do trabalho que cumpriam as determinações que lhes foram
atribuídas, na cidade de Unaí, em Minas Gerais.
O § 1º do art. 149 ainda responsabiliza criminalmente, com as
mesmas penas cominadas ao caput do mencionado artigo, aquele
que: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do
trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II – mantém
vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de
documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retêlo no local de trabalho.
A pena será aumentada de metade, nos termos do § 2º do art.
149 do diploma repressivo, se o crime for cometido: a) contra
criança ou adolescente; b) por motivo de preconceito de raça, cor,
etnia, religião ou origem.
6.2
Classificação doutrinária
Crime próprio com relação ao sujeito ativo, bem como quanto
ao sujeito passivo (haja vista que somente quando houver uma
relação de trabalho entre o agente e a vítima é que o delito poderá
se configurar); doloso; comissivo ou omissivo impróprio; de forma
vinculada (pois o art. 149 do Código Penal aponta os meios
mediante os quais se reduz alguém a condição análoga à de
escravo); permanente (cuja consumação se prolonga no tempo,
enquanto permanecerem as situações narradas pelo tipo penal);
material; monossubjetivo; plurissubsistente.
6.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
Bem juridicamente protegido pelo tipo do art. 149 do Código
Penal é a liberdade da vítima, que se vê, dada sua redução a
condição análoga à de escravo, impedida do seu direito de ir, vir ou
mesmo permanecer onde queira.
Conforme o alerta proclamado pelo Ministério Público do
Trabalho:
“Quando se fala em escravidão, muitos lembram de correntes e
senzalas. Mas o trabalho escravo de hoje adquiriu novas
características, sendo a principal delas a proibição direta ou
indireta do direito de ir e vir.”49
Entretanto, quando a lei penal faz menção às chamadas
condições degradantes de trabalho, podemos visualizar também
como bens juridicamente protegidos pelo art. 149 do diploma
repressivo: a vida, a saúde, bem como a segurança do trabalhador,
além da sua liberdade.
Objeto material do delito em estudo é a pessoa contra a qual
recai a conduta do agente, que a reduz a condição análoga à de
escravo.
6.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
Após a nova redação do art. 149 do Código Penal, levada a
efeito pela Lei nº 10.803, de 11 de dezembro de 2003, foram
delimitados os sujeitos ativo e passivo do delito em estudo,
devendo, agora, segundo entendemos, existir entre eles relação de
trabalho.
Assim, sujeito ativo será o empregador que utiliza a mão de
obra escrava. Sujeito passivo, a seu turno, será o empregado que
se encontra numa condição análoga à de escravo.
6.5
Consumação e tentativa
Consuma-se o delito com a privação da liberdade da vítima,
mediante as formas previstas pelo tipo do art. 149 do Código Penal
ou com a sua sujeição a condições degradantes de trabalho.
Sendo um delito plurissubsistente, será possível a tentativa.
6.6
Elemento subjetivo
O dolo é o elemento subjetivo do delito tipificado pelo art. 149
do Código Penal, podendo ser direto ou, mesmo, eventual.
Não se admite a modalidade culposa de redução a condição
análoga à de escravo, por ausência de previsão legal no tipo em
estudo.
6.7
Causa de aumento de pena
O § 2º do art. 149 do Código Penal prevê o aumento de metade
da pena se o crime for cometido:
I – contra criança ou adolescente;
II – por motivo de preconceito de raça,
cor, etnia, religião ou origem.
Na primeira hipótese, vale dizer, quando o crime é cometido
contra criança ou adolescente, temos de trabalhar com os conceitos
fornecidos pelo art. 2º da Lei nº 8.069/1990, que diz, verbis:
Art. 2º Considera-se criança, para os
efeitos desta Lei, a pessoa até doze
anos de idade incompletos, e
adolescente aquela entre doze e
dezoito anos de idade.
Para que seja aplicada a mencionada causa especial de
aumento de pena deverá ser comprovada nos autos a idade da
vítima, por meio de documento hábil, conforme determina o
parágrafo único do art. 155 do Código de Processo Penal.
A segunda causa de aumento de pena, prevista no § 2º do art.
149 do Código Penal, diz respeito, diretamente, à motivação do
agente, ou seja, o que o impeliu a reduzir a vítima a condição
análoga à de escravo foi o seu preconceito relativo a raça, cor, etnia,
religião ou origem.
6.8
Pena, ação penal e competência para julgamento
O art. 149 do Código Penal prevê uma pena de reclusão, de 2
(dois) a 8 (oito) anos, e multa, além da pena correspondente à
violência, tanto para as hipóteses previstas em seu caput como
naquelas elencadas pelo § 1º, vale dizer, nos casos em que há o
cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do
trabalhador com o fim de retê-lo no local de trabalho, bem como
quando o agente mantém vigilância no local de trabalho ou se
apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador com o
fim de retê-lo no local de trabalho.
A lei penal ressalvou, ainda, a hipótese de concurso de crimes
entre a redução a condição análoga à de escravo e a infração penal
que disser respeito à violência praticada pelo agente.
A ação penal é de iniciativa pública incondicionada.
A apuração do crime em estudo sempre foi da competência da
Justiça Estadual. No entanto, após o julgamento do Recurso
Extraordinário nº 398.041/PA, em 30 de novembro de 2006, tendo
como Relator o Min. Joaquim Barbosa, o Supremo Tribunal Federal
passou a entender que a competência seria da Justiça Federal,
conforme se verifica pela ementa abaixo transcrita:
“A Constituição de 1988 traz um robusto conjunto normativo
que visa à proteção e efetivação dos direitos fundamentais do
ser humano. A existência de trabalhadores a laborar sob
escolta, alguns acorrentados, em situação de total violação da
liberdade e da autodeterminação de cada um, configura crime
contra a organização do trabalho. Quaisquer condutas que
possam ser tidas como violadoras não somente do sistema de
órgãos e instituições com atribuições para proteger os direitos e
deveres dos trabalhadores, mas também dos próprios
trabalhadores, atingindo-os em esferas que lhes são mais
caras, em que a Constituição lhes confere proteção máxima,
são enquadráveis na categoria dos crimes contra a organização
do trabalho, se praticadas no contexto das relações de trabalho.
Nesses casos, a prática do crime prevista no art. 149 do Código
Penal (Redução à condição análoga a de escravo) se
caracteriza como crime contra a organização do trabalho, de
modo a atrair a competência da Justiça federal (art. 109, VI, da
Constituição) para processá-lo e julgá-lo.”
6.9
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: será o empregador
que utiliza a mão de obra
escrava.
Passivo: será o empregado
que se encontra numa
condição análoga à de
escravo.
Objeto material
É a pessoa contra a qual recai a
conduta do agente, que a reduz
à condição análoga à de
escravo.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
É a liberdade de a vítima, que
se vê, dada sua redução à
condição análoga à de escravo,
impedida do seu direito de ir e
vir ou mesmo permanecer onde
queira.
Elemento subjetivo
»
»
O dolo direto ou eventual.
Não
se
admite
a
modalidade culposa.
Consumação e tentativa
»
Consuma-se o delito com a
privação da liberdade da
»
vítima, mediante as formas
previstas pelo tipo do art.
149 do CP ou com a sua
sujeição
a
condições
degradantes de trabalho.
Sendo
um
delito
plurissubsistente,
será
possível a tentativa.
7.
TRÁFICO DE PESSOAS
Tráfico de Pessoas Art. 149-A.
Agenciar, aliciar, recrutar, transportar,
transferir, comprar, alojar ou acolher
pessoa, mediante grave ameaça,
violência, coação, fraude ou abuso,
com a finalidade de:
I – remover-lhe órgãos, tecidos ou
partes do corpo;
II – submetê-la a trabalho em
condições análogas à de escravo;
III – submetê-la a qualquer tipo de
servidão;
IV – adoção ilegal; ou V – exploração
sexual.
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8
(oito) anos, e multa.
§ 1º A pena é aumentada de um terço
até a metade se:
I – o crime for cometido por
funcionário público no exercício de
suas funções ou a pretexto de exercêlas;
II – o crime for cometido contra
criança, adolescente ou pessoa idosa
ou com deficiência;
III – o agente se prevalecer de
relações de parentesco, domésticas,
de coabitação, de hospitalidade, de
dependência
econômica,
de
autoridade ou de superioridade
hierárquica inerente ao exercício de
emprego, cargo ou função; ou IV – a
vítima do tráfico de pessoas for
retirada do território nacional.
§ 2º A pena é reduzida de um a dois
terços se o agente for primário e não
integrar organização criminosa.
7.1
Introdução
O tráfico de pessoas não é um mal criado pela sociedade
contemporânea, pelo contrário. A história da humanidade nos
mostra que, já na antiguidade, principalmente nas sociedades grega
e, posteriormente, romana, a compra e venda de pessoas era
prática comum, principalmente para efeitos de exploração de sua
força laboral, ou seja, havia, desde aquela época, o comércio de
escravos, que eram tratados como meros objetos.
Esse comércio desumano foi recorrente e permanece,
infelizmente, nos dias atuais. O tráfico de seres humanos oriundos,
principalmente, da África permaneceu como uma prática regular,
que se valia dessa mão de obra escrava para todo tipo de trabalho.
No Brasil, em 13 de maio de 1888, através da Lei Áurea, foi
decretada a abolição da escravatura, o que não impediu que ainda
permanecesse o comércio ilegal de seres humanos, com a vinda de
negros africanos, transportados ilícita e cruelmente nos porões dos
chamados navios negreiros.
Da mesma forma, sempre foi frequente o comércio de mulheres
com o fim de serem exploradas sexualmente. Eram as chamadas
“escravas brancas” (White Slave Trade), termo que teria aparecido
pela primeira vez no ano de 1839, sendo derivado da expressão
francesa traite de blanches. Normalmente, essas chamadas
escravas brancas eram mulheres europeias que eram levadas de
seus países de origem, a fim de exercerem a prostituição,
principalmente nos bordéis localizados nos Estados Unidos e na
Ásia.
Traçando uma evolução sobre os diplomas internacionais que
procuraram regular essas temas, Ela Wiecko V. de Castilho
preleciona que:
“À preocupação inicial com o tráfico de negros da África, para
exploração laboral, agregou-se a do tráfico de mulheres
brancas, para prostituição. Em 1904, é firmado em Paris o
Acordo para a Repressão do Tráfico de Mulheres Brancas, no
ano seguinte convolado em Convenção. Durante as três
décadas seguintes foram assinados: a Convenção Internacional
para a Repressão do Tráfico de Mulheres Brancas (Paris,
1910), a Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico
de Mulheres e Crianças (Genebra, 1921), a Convenção
Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres Maiores
(Genebra, 1933), o Protocolo de Emenda à Convenção
Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres e
Crianças e a Convenção Internacional para a Repressão do
Tráfico de Mulheres Maiores (1947), e, por último, a Convenção
e Protocolo Final para a Repressão do Tráfico de Pessoas e do
Lenocínio (Lake Success, 1949).
Esta sucessão histórica pode ser dividida em duas fases: antes
e depois da Convenção de 1949, ou seja, no contexto da Liga
das Nações e no âmbito da ONU, com expressa anulação e
substituição das normas anteriores”50.
Embora o mundo tenha despertado para a prevenção e o
combate ao tráfico de pessoas, seu número, infelizmente, vem
crescendo assustadoramente ao longo dos anos, dizendo respeito
não somente ao tráfico para fins de trabalho em condições análogas
à de escravo, servidão ou exploração sexual, abrangendo outras
modalidades como para adoção ilegal ou mesmo para remoção de
órgãos, tecidos ou partes do corpo.
Como bem esclarecido por Guillermo Julio Fierro:
“Se bem a proteção internacional começou dedicando-se em
um primeiro momento ao tráfico de escravos, logo abarcou o
tráfico de brancas, posteriormente se ampliou ao tráfico de
mulheres, e culminou com o tráfico de pessoas, tal evolução na
extensão da cobertura da lei internacional não é senão o reflexo
da situação atual, na qual o tráfico de seres humanos e a sua
introdução e saída ilegal em diferentes países do mundo se
converteu em um negócio infame que gera enormes benefícios
a quem o explora, aproveitando-se dos altos níveis de pobreza,
desemprego, fatores sociais e culturais adversos, como a
violência contra a mulher e as crianças, os migrantes carentes
de recursos, de tal sorte que eles são vítimas de vendas,
exploração sexual, mendicância, pornografia infantil, trabalhos
forçados obtidos mediante o engano e a força”51.
De acordo com o relatório sobre tráfico de pessoas feito pela
Organização das Nações Unidas – ONU, no ano de 2014, foram
identificadas mais de 150 vítimas de diversas nacionalidades,
espalhadas por mais de 120 países no mundo. Dos aliciadores e
recrutadores, 72% eram homens, e 28% mulheres. No que diz
respeito às vítimas, 49% delas eram mulheres adultas, 18% eram
homens, 21% eram crianças e adolescentes do sexo feminino e os
12% restantes, crianças e adolescentes do sexo masculino52.
Conforme, ainda, com o aludido relatório, 53% das vítimas do
tráfico de pessoas são exploradas sexualmente, sendo 40%
destinadas ao trabalho escravo, 0,3% destinadas à remoção de
órgãos, dividindo-se o percentual restante entre as demais formas
dessa espécie de criminalidade.
Em 2012, as estimativas da Organização Internacional do
Trabalho (OIT)53 indicavam que, no mundo, haviam quase 21
milhões de vítimas de trabalho forçado ou exploradas sexualmente,
sendo, dentre elas, aproximadamente 5,5 milhões de crianças.
Realmente, são dados estarrecedores, que exigem uma resposta
imediata e efetiva por parte dos Estados.
São três os tipos de países onde se pode visualizar o tráfico de
pessoas, a saber: a) origem; b) passagem; e c) destino. São
reconhecidos como de origem aqueles países de onde provêm as
pessoas traficadas; de passagem, aqueles pelos quais as pessoas
traficadas passam, mas não permanecem; c) de destino aqueles
considerados como finalidade do tráfico, isto é, países nos quais as
pessoas traficadas são conduzidas para que neles permaneçam.
Atualmente, o tráfico de pessoas é a terceira atividade
criminosa mais lucrativa do mundo, somente perdendo para o tráfico
de armas e de drogas.
Em 12 de março de 2004, foi editado o Decreto nº 5.017,
promulgando o Protocolo Adicional à Convenção das Nações
Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à
Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em
Especial Mulheres e Crianças, adotado em Nova Iorque em 15 de
novembro de 2000.
Segundo o art. 3, alínea a, do mencionado Protocolo:
“A expressão ‘tráfico de pessoas’ significa o recrutamento, o
transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de
pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras
formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de
autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou
aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o
consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre
outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo,
a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de
exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura
ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de
órgãos;”
Percebe-se, portanto, através da definição acima transcrita, que
o tráfico de pessoas é considerado como um crime transnacional, a
ele se aplicando a Convenção das Nações Unidas contra o Crime
Organizado Transnacional e seus três protocolos suplementares54,
cujos temas centrais destinam-se ao tráfico de pessoas (em
especial mulheres e crianças), o tráfico ilícito de migrantes e a luta
contra a produção ilícita e o tráfico de armas de fogo.
O Brasil, portanto, ao promulgar o referido Protocolo,
considerando o que consta em seu art. 5, se comprometeu a criar
uma infração penal que tivesse por finalidade impedir a prática dos
comportamentos previstos no art. 3º acima transcrito.
Assim, aproximadamente 12 anos após a edição do Decreto nº
5.017, de 12 de março de 2004, foi editada a Lei nº 13.344, de 6 de
outubro de 2016, dispondo sobre a prevenção e repressão ao tráfico
interno e internacional de pessoas, criando, outrossim, o crime de
tráfico de pessoas, tipificado no art. 149-A do Código Penal, bem
como revogando as infrações penais previstas nos arts. 231 e 231-A
do mesmo diploma repressivo, que tipificavam, respectivamente, o
tráfico internacional de pessoa para fim de exploração sexual e o
tráfico interno de pessoa para fim de exploração sexual.
Dessa forma, como veremos adiante, o tipo penal em estudo
possui uma abrangência maior, prevendo a prática de
comportamentos criminosos não somente ligados à exploração
sexual.
Portanto, de acordo com a figura típica constante do art. 149-A
do estatuto repressivo, comete o crime de tráfico de pessoas,
aquele que vier a: agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir,
comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça,
violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de: I –
remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo; II – submetê-la a
trabalho em condições análogas à de escravo; III – submetê-la a
qualquer tipo de servidão; IV – adoção ilegal; ou V – exploração
sexual.
Previu a lei, portanto, um tipo misto alternativo, com os verbos
que compõem a figura típica, toda a cadeia que diz respeito ao
tráfico de pessoas, desde o seu começo, com o aliciamento da
vítima, passando pelo seu transporte, até o acolhimento no local de
destino.
Dessa forma, o art. 149-A do Código Penal atendeu às
normativas internacionais, principalmente ao art. 3 do Protocolo
Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime
Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e
Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças,
transcrito acima que, para efeitos de configuração do crime de
tráfico de pessoas exige três características indispensáveis,
devidamente apontadas no Manual sobre la lucha contra la trata de
personas para profesionales de la justicia penal, da Oficina de las
Naciones Unidas contra la droga y el delito – Unodc55, a saber:
1)
2)
3)
um ato (o que se faz);
os meios (como se faz);
a finalidade de exploração (porque se faz).
1) Quanto aos atos (o que se faz)
São esses, portanto, os atos (condutas, comportamentos)
praticados por aqueles que praticam o delito de tráfico de pessoas:
agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou
acolher pessoa.
Agenciar significa fazer negócios de agenciamento, servir de
agente ou intermediário.
Aliciar tem o sentido de atrair, convencer, incitar. De acordo com
o Conselho Nacional de Justiça – CNJ:
“Os aliciadores, homens e mulheres, são, na maioria das vezes,
pessoas que fazem parte do círculo de amizades da vítima ou
de membros da família. São pessoas com que as vítimas têm
laços afetivos. Normalmente apresentam bom nível de
escolaridade, são sedutores e têm alto poder de
convencimento. Alguns são empresários que trabalham ou se
dizem proprietários de casas de show, bares, falsas agências
de encontros, matrimônios e modelos. As propostas de
emprego que fazem geram na vítima perspectivas de futuro, de
melhoria da qualidade de vida.
No tráfico para trabalho escravo, os aliciadores, denominados
‘gatos’, geralmente fazem propostas de trabalho para pessoas
desenvolverem atividades laborais na agricultura ou pecuária,
na construção civil ou em oficinas de costura. Há casos notórios
de imigrantes peruanos, bolivianos e paraguaios aliciados para
trabalho análogo ao de escravo em confecções de São
Paulo”56.
Recrutar deve ser entendido no sentido de reunir as vítimas,
com a finalidade de serem traficadas. Não deixa, contudo, de ser
uma forma de aliciamento. Na verdade, o núcleo aliciar já seria
suficiente para entender e subsumir o comportamento criminoso
daquele que capta a vítima para o tráfico de pessoas.
Transportar diz respeito a conduzir de um lugar para outro, não
importando a modalidade do transporte, seja ele terrestre,
marítimo/pluvial, ou aéreo.
Transferir tem o sentido de passar de um lugar para outro.
Comprar significa adquirir alguém, como se fosse uma coisa,
mediante o pagamento em dinheiro ou qualquer outro tipo de
compensação financeira. A compra aqui referida, portanto, não
importa, obrigatoriamente, no pagamento de uma determinada
importância em dinheiro. Pode o agente comprar a vítima
comprometendo-se a cumprir uma determinada tarefa, entregando
um bem em troca etc. A compra aqui, portanto, significa que a vítima
é tratada, efetivamente, como um objeto, que possui um valor
financeiro.
Alojar importa em acomodar a vítima em algum imóvel, ou seja,
tem o sentido de hospedar.
Acolher tem o sentido de abrigar, mesmo que temporariamente,
admitindo a pessoa em seu convívio.
2) Quanto aos meios (como se faz)
No que diz respeito aos meios, todos esses comportamentos
devem ser praticados mediante: grave ameaça, violência, coação,
fraude ou abuso.
Grave ameaça é a chamada vis compulsiva, em que o agente
promete à vítima o cumprimento de um mal injusto, futuro e grave,
caso esta não leve a efeito aquilo que lhe é solicitado. Esse mal
pode recair sobre a própria vítima do tráfico, ou sobre alguém que
lhe seja próximo, com quem tenha alguma relação de afinidade,
fazendo com que se abale psicologicamente caso isso venha a
acontecer. Não é incomum que traficantes ameacem a vítima,
dizendo que matará seus familiares caso não cumpra exatamente
as ordens que lhe são determinadas, fazendo, assim, com que a
vítima ceda.
Violência é a vis corporalis, ou seja, a violência física, as
agressões que são praticadas contra a própria vítima do tráfico de
pessoas.
Coação é uma forma de intimidação, que pode ser praticada
através da violência (vis corporalis) ou da grave ameaça (vis
compulsiva).
Fraude, aqui, é todo ardil, engano, simulação no sentido de
fazer com que a vítima se iluda com as promessas levadas a efeito
pelo agente, acreditando serem verdadeiras quando, na realidade,
estará caindo em uma armadilha. Talvez esse seja um dos meios
mais utilizados para a prática do tráfico de pessoas, principalmente
quando diz respeito às finalidades de submissão ao trabalho em
condições análogas à de escravo ou exploração sexual. Isso
porque, normalmente, a vítima, nesses casos, se encontra numa
situação de vulnerabilidade, a exemplo daquela pessoa que vive em
situação de miséria, está desempregada há muito tempo, vive em
um meio promíscuo, vem de um lar destruído, tem baixa instrução,
vive na marginalidade etc. As falsas promessas de trabalho, por
exemplo, em um país de primeiro mundo, soam como um bálsamo
na vítima, que se deixa levar por falsas ilusões. Quando chegam em
seu local de destino, caem na realidade, e se veem obrigadas a se
prostituir, a trabalhar em regime de escravidão, sem recebimento de
salários ou mesmo com salários muito aquém das suas
necessidades etc.
Abuso diz respeito ao uso excessivo, ao desmando de alguém
que tem algum poder sobre a vítima, a exemplo do que ocorre com
os pais, tutores, curadores etc.
Se houver o consentimento da pessoa que está sendo
traficada, o fato deverá ser considerado como um indiferente penal,
atendendo-se, pois, ao que consta no art. 3, b, do Protocolo
Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime
Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e
Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças,
que diz, verbis:
b) O consentimento dado pela vítima de tráfico de pessoas
tendo em vista qualquer tipo de exploração descrito na alínea a)
do presente artigo será considerado irrelevante se tiver sido
utilizado qualquer um dos meios referidos na alínea a);
Isto significa que o consentimento somente será válido, no
sentido de afastar a prática da infração penal, se não tiver havido
recurso, no caso concreto, de acordo com a alínea a do art. 3 do
referido Protocolo: à ameaça ou uso da força ou a outras formas de
coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à
situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de
pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma
pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração.
3) Quanto à finalidade de exploração (porque se faz)
Merece ser frisado, ainda, que o tipo penal prevê o chamado
especial fim de agir, configurado nas finalidades de: I – remover-lhe
órgãos, tecidos ou partes do corpo; II – submetê-la a trabalho em
condições análogas à de escravo; III – submetê-la a qualquer tipo
de servidão; IV – adoção ilegal; ou V – exploração sexual.
I – Remoção de órgãos, tecidos ou partes do corpo: é a Lei
nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, que regula a remoção de
órgãos, tecidos ou partes do corpo humano para fins de transplante
e tratamento. Essa remoção pode ocorrer estando o doador vivo, ou
mesmo após a sua morte. O referido diploma legal regulamenta as
hipóteses onde isso é possível, dizendo, em seus arts. 3º e 9º e seu
§ 3º:
Art. 3º A retirada post mortem de
tecidos, órgãos ou partes do corpo
humano destinados a transplante ou
tratamento deverá ser precedida de
diagnóstico de morte encefálica,
constatada e registrada por dois
médicos não participantes das
equipes de remoção e transplante,
mediante a utilização de critérios
clínicos e tecnológicos definidos por
resolução do Conselho Federal de
Medicina.
Art. 9º É permitida à pessoa
juridicamente
capaz
dispor
gratuitamente de tecidos, órgãos e
partes do próprio corpo vivo, para fins
terapêuticos ou para transplantes em
cônjuge ou parentes consanguíneos
até o quarto grau, inclusive, na forma
do § 4º deste artigo, ou em qualquer
outra pessoa, mediante autorização
judicial, dispensada esta em relação à
medula óssea.
§ 1º (vetado)
§ 2º (vetado)
§ 3º Só é permitida a doação referida
neste artigo quando se tratar de
órgãos duplos, de partes de órgãos,
tecidos ou partes do corpo cuja
retirada não impeça o organismo do
doador de continuar vivendo sem
risco para a sua integridade e não
represente grave comprometimento
de suas aptidões vitais e saúde
mental e não cause mutilação ou
deformação
inaceitável,
e
corresponda a uma necessidade
terapêutica
comprovadamente
indispensável à pessoa receptora.
O delito de tráfico de pessoas não diz respeito à remoção de
órgãos, tecidos ou partes do corpo de pessoa morta, somente sendo
aplicado o art. 149-A do Código Penal quando a vítima, ainda viva, é
submetida ao tráfico mediante grave ameaça, violência, coação,
fraude ou abuso.
Essa conclusão se faz mister porque o art. 149-A do Código
Penal faz menção à pessoa, isto é, ao ser vivo, haja vista que o
cadáver já não goza mais desse status.
Conforme assevera Elena Florencia Onassis:
“O tráfico de órgãos constitui uma das mais monstruosas
atividades do comércio de pessoas, no qual participam
profissionais especializados nas áreas de saúde para extrair
uma parte do corpo humano e logo vendê-la e obter, por isso,
dinheiro. Muitos mais vezes do que se crê, os sequestros
ocultam o fim último que é a extração de órgãos, geralmente de
pessoas que vivem na marginalidade da pobreza e possuem
menos recursos para acessar a Justiça e iniciar uma
investigação”57.
E continua suas lições, dizendo:
“As causas pelas quais este fenômeno, impensável faz algumas
décadas, tem aumentado e se espalhado pelo mundo é pela
notável desigualdade que existe entre as pessoas para adquirir
legitimamente um órgão segundo sua posição econômica,
social e cultural. Entre os países que se destacam por operar
estas práticas está o Brasil, onde os esquadrões da morte têm
sido acusados de traficar órgãos obtidos dos jovens
delinquentes a quem eliminavam sem que ninguém
investigasse em quais circunstâncias”58.
Não é incomum, no Brasil, que a pessoa que necessite de um
órgão permaneça meses, ou mesmo alguns anos, até que chegue a
sua vez de recebê-lo de um doador compatível. Essa demora tem
estimulado esse sinistro mercado, onde traficantes inescrupulosos
(me perdoem o pleonasmo) vão à caça de suas vítimas, a fim de
vender seus órgãos a peso de ouro.
II – Submetê-la a trabalho em condições análogas à de
escravo: o art. 149 do Código Penal, com a nova redação que lhe
foi dada pela Lei nº 10.803, de 11 de dezembro de 2003, especificou
as hipóteses caracterizadoras daquele que é reduzido à condição
análoga de escravo, quando se submete:
a)
b)
c)
d)
a trabalhos forçados;
à jornada exaustiva de trabalho;
a condições degradantes de trabalho;
à restrição, por qualquer meio, de sua locomoção em
virtude de dívida contraída com o empregador ou preposto.
Depois da exploração sexual, como veremos mais adiante, a
submissão a trabalho em condições análogas à de escravo, de
acordo com o relatório da ONU, é a segunda maior causa de tráfico
de pessoas.
Como mencionado anteriormente pelo Conselho Nacional de
Justiça, no Brasil tem sido frequente o trabalho escravo em
pequenas fábricas de roupas, em comércios, na lavoura etc., seja
nos grandes centros urbanos, ou mesmo no interior do país. São
chineses, bolivianos, paraguaios, equatorianos, enfim, não somente
pessoas vindas da América do Sul fazem parte desse rol desumano.
Os jornais, com uma frequência assustadora, têm flagrado
essas pessoas vivendo em condições miseráveis, com pouca
comida, em locais insalubres, amontoadas com outras, sem a menor
privacidade, recebendo pouco e, às vezes, absolutamente nada pelo
seu trabalho.
Muitas pessoas têm se mobilizado no sentido de boicotar
produtos que são comercializados por grandes marcas de grife,
cujas fábricas encontram-se no continente asiático, ou até mesmo
no Brasil, pois se deduz que, grande parte desses empregados, é
vítima de um trabalho escravo.
O mais incrível é que muitos desses trabalhadores, ao contrário
do que se poderia imaginar, se conformam e até se alegram com
essa situação, pois não se sentem explorados, uma vez que em sua
terra natal viviam de forma mais miserável ainda e, ali, mesmo
diante das piores condições, ainda se sentem melhores do que
viviam anteriormente.
III – Submetê-la a qualquer tipo de servidão: o legislador
inovou o ordenamento jurídico-penal ao inserir a servidão como uma
das finalidades do tráfico de pessoas, haja vista que tal situação não
era prevista em termos penais.
Assim, para efeitos de reconhecimento da servidão, deverá ser
aplicada a Convenção Suplementar sobre a Abolição da
Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas
Análogas à Escravatura, adotada em Genebra, em 7 de setembro
de 1956, promulgada pelo Decreto nº 58.563, de 1º de junho de
1966, cujo arts. 1º, e 2º, da Seção I, que dispõem sobre as
Instituições e práticas análogas à escravidão, dizem, verbis:
Artigo 1º
Cada um dos Estados Partes a
presente Convenção tomará todas as
medidas, legislativas e de outra
natureza que sejam viáveis e
necessárias,
para
obter
progressivamente logo que possível a
abolição completa ou o abandono das
instituições e práticas seguintes onde
quer ainda subsistam, enqua-dram-se
ou não na definição de escravidão
que figura no artigo primeiro da
Convenção sobre a escravidão
assinada em Genebra, em 25 de
setembro de 1926:
a) A servidão por dividas, isto é, o
estado ou a condição resultante do
fato de que um devedor se haja
comprometido a fornecer, em garantia
de uma dívida, seus serviços pessoais
ou os de alguém sobre o qual tenha
autoridade, se o valor desses serviços
não for equitativamente avaliado no
ato da liquidação de dívida ou se a
duração desses serviços não for
limitada nem sua natureza definida; b)
a servidão isto é, a condição de
qualquer um que seja obrigado pela
lei, pelo costume ou por um acordo, a
viver e trabalhar numa terra
pertencente a outra pessoa e a
fornecer a essa outra pessoa, contra
remuneração
ou
gratuitamente,
determinados serviços, sem poder
mudar sua condição.
c) Toda instituição ou prática em
virtude da qual:
I, Uma mulher é, sem que tenha o
direito de recusa prometida ou dada
em
casamento,
mediante
remuneração em dinheiro ou espécie
entregue a seus país, tutor, família ou
a qualquer outra pessoa ou grupo de
pessoas;
II, O marido de uma mulher, a família
ou o clã deste tem o direito de cedê-la
a um terceiro, a título oneroso ou não;
III – A mulher pode, por morte do
marido ser transmitida por sucessão a
outra pessoa;
d) Toda instituição ou prática em
virtude da qual uma criança ou um
adolescente de menos de dezoito
anos é entregue, quer por seu pais ou
um deles, quer por seu tutor, a um
terceiro, mediante remuneração ou
sem ela, com o fim da exploração da
pessoa ou do trabalho da referida
criança ou adolescente.
Artigo 2º
Com o propósito de acabar com as
instituições e práticas visadas na
alíneas c do artigo primeiro da
presente Convenção, os Estados
Partes se comprometem a fixar, onde
couber idades mínimas adequadas
para o casamento, a estimular a
adoção de um processo que permitam
a ambos os futuros conjugues
exprimir
livremente
o
seu
consentimento ao matrimônio em
presença de uma autoridade civil ou
religiosa competente, e a fomentar o
registro dos casamentos.
A alínea b do artigo 7º da referida Convenção, a seu turno,
conceitua “pessoa de condição servil”, dizendo ser a que se
encontra no estado ou condição que resulta de alguma das
instituições ou práticas mencionadas no artigo 1º, transcrito acima.
Conforme as precisas lições de Rogério Sanches Cunha e
Ronaldo Batista Pinto:
“Se, todavia, cotejarmos as formas como o delito do art. 149
pode ser cometido com as definições de servidão acima
transcritas (art. 1º da Convenção), veremos que as hipóteses de
servidão estão inseridas no âmbito da redução a condição
análoga à de escravo. Apesar da Convenção, no art. 7º,
distinguir, para os seus próprios fins, a escravidão da servidão,
devemos ter em mente que suas disposições são destinadas
também a países que contemplem a escravidão como situação
de direito, ou seja, que admitam a existência efetiva de
escravos, tratados como propriedade alheia. Como já
destacamos, no entanto, não há no Brasil a condição de
escravo, razão pela qual pensamos não ser cabível a
distinção”59.
IV – Adoção ilegal: adotar é um dos gestos mais generosos
que o ser humano pode praticar. É um ato de amor. Na adoção, no
fundo, quem ganha não é o adotado, mas sim o adotante. A Bíblia
diz que Deus nos adotou também, e passamos a ser chamados de
filhos.
No entanto, muitas vezes, esse gesto de amor se transforma
em um negócio, um comércio ilícito, praticado, muitas vezes, por
ambas as partes, ou seja, pelos pais daquele que será adotado, que
vendem seu filho como se fosse um objeto qualquer, e pela família
adotante, que o compra, também, como se fosse uma mercadoria,
deixando, muitas vezes, de se submeter a todos os dispositivos
legais que regulam o tema, criados para a defesa daquele que tem
sua vida entregue nas mãos de uma outra pessoa.
Sabemos que inúmeras razões podem levar uma pessoa a
entregar seu filho à adoção. Não nos compete, aqui, julgar quem
quer que seja. Contudo, existem procedimentos a serem
obedecidos, que trarão garantias, segurança para aquele que deixa
sua família biológica.
O inciso IV do art. 149-A do Código Penal, faz menção somente
à expressão adoção ilegal, podendo haver o tráfico, com essa
finalidade, dentro e fora do território nacional, podendo o adotado ter
sido levado para o exterior, ou mesmo adotado no território nacional,
vítima do tráfico de pessoas.
A adoção vem prevista no ECA – Lei nº 8.069/1990, na
Subseção IV, dos arts. 39 a 52-D, sendo disciplinada, inclusive, a
adoção internacional. Ilegal é a adoção, portanto, que não atende às
exigências legais para sua efetivação.
O ECA criminaliza alguns comportamentos que, supostamente,
facilitariam uma adoção ilegal, a saber:
Art. 237. Subtrair criança ou
adolescente ao poder de quem o tem
sob sua guarda em virtude de lei ou
ordem judicial, com o fim de
colocação em lar substituto:
Pena – reclusão de dois a seis anos,
e multa.
Art. 238. Prometer ou efetivar a
entrega de filho ou pupilo a terceiro,
mediante paga ou recompensa: Pena
– reclusão de um a quatro anos, e
multa.
Parágrafo único. Incide nas mesmas
penas quem oferece ou efetiva a paga
ou recompensa.
Merece ser ressaltado, ainda, que o Brasil, por meio do Decreto
nº 99.710, de 21 de novembro de 1990, promulgou a Convenção
sobre os Direitos da Criança, cujo art. 21 e sua alíneas, no que diz
respeito especificamente sobre a adoção, dizem, verbis:
Artigo 21
Os Estados Partes que reconhecem
ou permitem o sistema de adoção
atentarão para o fato de que a
consideração primordial seja o
interesse maior da criança. Dessa
forma, atentarão para que:
a) a adoção da criança seja
autorizada apenas pelas autoridades
competentes, as quais determinarão,
consoante as leis e os procedimentos
cabíveis e com base em todas as
informações pertinentes e fidedignas,
que a adoção é admissível em vista
da situação jurídica da criança com
relação a seus pais, parentes e
representantes legais e que, caso
solicitado, as pessoas interessadas
tenham dado, com conhecimento de
causa, seu consentimento à adoção,
com base no assessoramento que
possa ser necessário;
b) a adoção efetuada em outro país
possa ser considerada como outro
meio de cuidar da criança, no caso
em que a mesma não possa ser
colocada em um lar de adoção ou
entregue a uma família adotiva ou não
logre atendimento adequado em seu
país de origem;
c) a criança adotada em outro país
goze de salvaguardas e normas
equivalentes às existentes em seu
país de origem com relação à adoção;
d) todas as medidas apropriadas
sejam adotadas, a fim de garantir que,
em caso de adoção em outro país, a
colocação não permita benefícios
financeiros indevidos aos que dela
participarem;
e) quando necessário, promover os
objetivos do presente artigo mediante
ajustes ou acordos bilaterais ou
multilaterais, e envidarão esforços,
nesse contexto, com vistas a
assegurar que a colocação da criança
em outro país seja levada a cabo por
intermédio
das
autoridades
ou
organismos competentes.
Vale destacar, ainda, a Declaração sobre os princípios sociais e
jurídicos relativos à proteção e ao bem-estar das crianças, com
particular referência à colocação em lares de guarda, nos planos
nacional e internacional – Adotada pela Assembleia Geral das
Nações Unidas de 3 de dezembro de 1986, cujo art. 19 determina:
Artigo 19
Deverão ser estabelecidas políticas e
promulgadas leis, quando seja
necessário, que proíbam o sequestro
ou qualquer outro ato encaminhado à
colocação ilícita de crianças.
Importante o alerta feito por Rogério Sanches Cunha e Ronaldo
Batista Pinto, quando dizem que:
“Destacamos novamente que o tipo não impede o tráfico de
maiores de idade com a finalidade de adoção ilegal. Como
exemplo, podemos citar a hipótese em que alguém, titular de
valioso patrimônio, seja pelo agente acolhido, mediante abuso,
para ser forçado a adotar o mesmo agente, que futuramente se
beneficiará da herança. Neste caso, a adoção – que
evidentemente deve ser voluntária – seria ilegal, bastante,
portanto para caracterizar a finalidade especial”60.
V – Exploração sexual: dados estatísticos comprovam que, de
todas as modalidades de tráfico de pessoas, aquele destinado à
exploração sexual, seja de mulheres, homens, ou mesmo crianças,
supera em mais de 50% o número de vítimas dessa espécie de
crime.
O comércio carnal não tem fronteiras. Temos tomado
conhecimento, com uma frequência assustadora, pelos meios de
comunicação de massa, sobre o grande número, principalmente de
mulheres, que partem do Brasil para o exterior, especialmente para
os países da Europa, iludidas com promessas de trabalho, ou, até
mesmo, com propostas de casamento para, na verdade, exercerem
a prostituição.
Há uma preocupação em nível internacional no que diz respeito
ao tráfico de pessoas com o fim de serem exploradas sexualmente,
mediante, principalmente, o exercício da prostituição. Em 21 de
março de 1950, foi concluída, em Nova Iorque, a Convenção das
Nações Unidas destinada à repressão do tráfico de pessoas e do
lenocínio, assinada pelo Brasil em 5 de outubro de 1951 e aprovada
pelo Decreto Legislativo nº 6, de 1958, tendo sido depositado o
instrumento de ratificação na ONU em 12 de setembro de 1958.61
A exploração sexual faz parte do chamado “mercado do sexo”
que funciona, conforme adverte Eva T. Silveira Faleiros:
“Como um ramo de negócios no qual há a produção e a
comercialização da mercadoria – serviços e produtos sexuais.
Trata-se de um produto subjetivo – o prazer, altamente
vendável, que tem valor de uso.
A oferta de serviços sexuais, restrita durante séculos quase que
exclusivamente à prostituição foi, historicamente, se ampliando
e diversificando. Com o desenvolvimento da tecnologia, dos
meios de comunicação de massa, da Internet, e da sociedade
de consumo, bem como a liberalização sexual, se diversificou o
comércio do sexo e se desenvolveu extraordinariamente a
indústria pornográfica, ou seja, a produção de mercadorias e
produtos sexuais. Atualmente encontram-se no mercado do
sexo produtos e serviços que se caracterizam por sua grande
variedade, níveis de qualidade, de consumidores, de
profissionais que empregam, de preços. São produzidos,
vendidos e comprados: corpos, pessoas, shows eróticos, fotos,
revistas, objetos, vídeos, filmes pornográficos.
Existe um enorme mercado consumidor de serviços sexuais,
sendo o sexo uma mercadoria altamente vendável e valorizada,
principalmente o sexo-jovem, de grande valor comercial.”62
A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, criada por meio do
Requerimento nº 2, de 2003, com a finalidade de investigar as
situações de violência e redes de exploração sexual de crianças e
adolescentes no Brasil, apontou que:
“Na questão do tráfico para fins sexuais, a globalização joga um
papel fundamental: ‘facilitado pela tecnologia, pela migração,
pelos
avanços
dos
sistemas
de
transporte,
pela
internacionalização da economia e pela desregulamentação dos
mercados, o tráfico, no contexto da globalização, articula-se
com redes de colaboração global, interconectando-se a
mercados e a atividades criminosas, movimentando enormes
somas de dinheiro. Os mercados locais e globais do crime
organizado, das drogas e do tráfico para fins sexuais, como por
exemplo, a Yakusa, as Tríades Chinesas, a Máfia Russa e os
Snake Heads, são responsáveis pela transação de quase um
bilhão de dólares no mercado internacional de tráfico
humano’.”63
Infelizmente, nos dias de hoje, tem sido muito comum o
chamado turismo sexual. Conforme esclarece Eva T. Silveira
Faleiros, o turismo sexual:
“É o comércio sexual, em cidades turísticas, envolvendo turistas
nacionais e estrangeiros e principalmente mulheres jovens, de
setores pobres e excluídos, de países de Terceiro Mundo. O
principal serviço sexual comercializado no turismo sexual é a
prostituição. Inclui-se neste comércio a pornografia (shows
eróticos); [...]O turismo sexual é, talvez, a forma de exploração
sexual mais articulada com atividades econômicas, no caso
com o desenvolvimento do turismo. Marcel Harzeu, pesquisador
da área, aponta as situações de trânsito como importante fator
de ruptura de limites e padrões culturais e de liberalização
sexual.
As redes de turismo sexual são as que promovem e ganham
com o turismo: agências de viagem, guias turísticos, hotéis,
restaurantes, bares, barracas de praia, boates, casas de show,
porteiros, garçons, taxistas. O turismo e as redes do turismo
sexual incluem-se numa economia globalizada.”64
7.2
Classificação doutrinária
Crime comum tanto com relação ao sujeito ativo quanto ao
sujeito passivo; doloso; formal (tendo em vista que os
comportamentos previstos no tipo – agenciar, aliciar, recrutar,
transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa – são
levados a efeito com alguma das finalidades previstas nos incisos I
a V do art. 149-A do Código Penal); comissivo (podendo ser
praticado via omissão imprópria na hipótese de o agente gozar do
status de garantidor); de forma livre; instantâneo (quanto às
condutas de agenciar, aliciar, recrutar, transferir e comprar);
permanente (no que diz respeito ao núcleos transportar, alojar e
acolher); monossubjetivo; plurissubsistente; transeunte (como
regra).
7.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
Bem juridicamente protegido pelo tipo penal em estudo é a
liberdade da vítima, bem como a sua vida ou integridade física,
dependendo da modalidade de tráfico de pessoas que seja levada a
efeito pelo agente.
Objeto material é a pessoa, sobre a qual recai a conduta do
agente, que remove seus órgãos, tecidos ou partes do corpo, que a
submete a trabalho em condições análogas à de escravo, que a
submete a qualquer tipo de servidão, que a adota ilegalmente ou
que a explora sexualmente.
7.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
Qualquer pessoa pode praticar a infração penal prevista no art.
149-A, sendo, portanto, considerado um delito comum, que não
exige qualquer qualidade especial do sujeito ativo.
Da mesma forma, qualquer pessoa também poderá figurar
como sujeito passivo do crime em estudo.
No que diz respeito ao sujeito passivo, vale ressaltar que, em
muitos casos, a vítima do tráfico de pessoas não se considera com
esse status, uma vez que, em muitos casos, por mais que seja
explorada, sua situação ainda é melhor do que aquela que vivia
anteriormente. Mesmo, por exemplo, trabalhando horas a fio, em
situação precária, recebendo pouco ou quase nada, ainda assim se
sentem privilegiadas, uma vez que, segundo alegam, de onde foram
trazidas, viviam na mais absoluta miséria, o que, obviamente, não
afasta a infração penal cometida pelo sujeito ativo.
7.5
Consumação e tentativa
Pelo que se depreende da redação típica, estamos diante de
um crime formal, de consumação antecipada, não havendo,
portanto, necessidade de que a vítima seja, efetivamente, traficada,
ou seja, removida ou levada para algum outro lugar para que o
crime se configure, bastando que o agente tão somente atue com
uma das finalidades exigidas pelo tipo penal do art. 149-A do Código
Penal, a saber: I – remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo; II
– submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo; III –
submetê-la a qualquer tipo de servidão; IV – adoção ilegal; ou V –
exploração sexual.
Assim, por exemplo, imagine-se a hipótese em que o agente
aborda a vítima e, com a finalidade de aliciá-la para a prática de
exploração sexual, venha a ameaçá-la, dizendo que caso não faça
aquilo que lhe é exigido, seus parentes (pais, filhos etc.) sofrerão as
consequências pela sua desobediência. Entendemos, aqui, como
consumado o delito, não havendo necessidade sequer de que a
vítima seja transportada para outro lugar, ou mesmo que pratique
um único caso onde venha a ser explorada sexualmente.
Isso não quer dizer, por outro lado, que o tipo penal não admita
a tentativa. Tratando-se de um delito plurissubsistente, em que é
possível fracionar o iter criminis, esse raciocínio é perfeitamente
admissível e dependerá da hipótese concreta. A título de exemplo,
imagine-se a hipótese daquele que havia sido encarregado de
transportar a vítima, levando-a para o local onde seria explorada
sexualmente. Suponhamos que, assim que a vítima ingressa no
veículo do agente, seu automóvel é interceptado pela polícia, antes
mesmo de começar a se dirigir para o mencionado local. Nesse
caso, podemos reconhecer a tentativa de “transporte”.
7.6
Elemento subjetivo
Os comportamentos previstos no tipo penal do art. 149-A do
Código Penal somente podem ser praticados dolosamente, não
havendo previsão para a modalidade de natureza culposa.
O delito sub examen, no entanto, prevê o chamado especial fim
de agir, pois que todos os comportamentos praticados dolosamente
devem, obrigatoriamente, ter uma das finalidades elencadas nos
incisos I a V do art. 149-A do Código Penal, vale dizer: I – remoção
de órgãos, tecidos ou partes do corpo; II – submissão a trabalho em
condições análogas à de escravo; III – submissão a qualquer tipo de
servidão; IV – adoção ilegal; ou V – exploração sexual.
7.7
Modalidades comissiva e omissiva
Os núcleos agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir,
comprar, alojar ou acolher, previstos no caput do art. 149-A do
Código Penal, pressupõem um comportamento comissivo por parte
do agente.
No entanto, dependendo da hipótese concreta, se o agente
gozar do status de garantidor, poderão ser praticados via omissão
imprópria.
7.8
Causas especiais de aumento de pena
Diz o § 1º do art. 149-A do diploma repressivo, que a pena é
aumentada de um terço até a metade se:
I – o crime for cometido por funcionário público no exercício de
suas funções ou a pretexto de exercê-las.
O conceito de funcionário público encontra-se previsto no art.
327 e § 1º do Código Penal.
Funcionário público, nos termos do mencionado art. 327, para
efeitos penais, não somente é aquele ocupante de um cargo, que
poderíamos denominar funcionário público em sentido estrito, mas
também aquele que exerce emprego ou função pública. Emprego
público é a expressão utilizada para efeitos de identificação de uma
relação funcional regida pela Consolidação das Leis do Trabalho,
geralmente para o exercício de atividades temporárias. Função, de
acordo com as precisas lições de José dos Santos Carvalho Filho,
“é a atividade em si mesma, ou seja, função é sinônimo de
atribuição e corresponde às inúmeras tarefas que constituem o
objeto dos serviços prestados pelos servidores públicos.”65
O exercício de uma função pública, ou seja, aquela inerente aos
serviços prestados pela Administração Pública, não pode ser
confundido com múnus público, entendido como encargo ou ônus
conferido pela lei e imposto pelo Estado em determinadas situações,
a exemplo do que ocorre com os tutores, curadores etc.
Exige o inciso I do art. 149-A do Código Penal, para efeitos de
aplicação da majorante, que o agente, funcionário público, esteja no
exercício de sua função, ou que pratique um dos comportamentos
incriminados com o pretexto, isto é, a desculpa, a justificativa de
exercê-la.
Aplica-se, aqui, o mesmo raciocínio ao chamado funcionário
público por equiparação, previsto pelo § 1º do art. 327 do Código
Penal, e também ao funcionário público estrangeiro, cujo conceito
encontra moldura no art. 337-D e parágrafo único, todos do mesmo
diploma repressivo.
Assim, por exemplo, pode um diplomata, no exercício de suas
funções, aliciar alguém com a finalidade de explorá-la sexualmente
em outro país.
II – o crime for cometido contra criança, adolescente ou pessoa
idosa ou com deficiência.
O art. 2º da Lei nº 8.069/9066 (Estatuto da Criança e do
Adolescente) estabeleceu que se considera criança a pessoa com
até 12 anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre 12 e
18 anos de idade.
Idoso é aquele, de acordo com o art. 1º da Lei nº 10.741, de 1º
de outubro de 2003, com idade igual ou superior a 60 (sessenta)
anos.
Para que essas majorantes possam ser aplicadas, é preciso
que o agente tenha conhecimento efetivo da idade das vítimas,
tomando conhecimento, assim, que se tratava de uma criança, um
adolescente ou uma pessoa idosa, pois, caso contrário, poderá ser
alegado o chamado erro de tipo
Nos termos do art. 2º da Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015,
considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento
de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o
qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua
participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de
condições com as demais pessoas.
Como o inciso II do art. 149-A do Código Penal não fez
qualquer distinção, entendemos que poderá ser aplicado a todas
essas hipóteses de deficiência.
Contudo, tal como ocorre com as situações anteriores, a
deficiência da vítima deve fazer parte do conhecimento do agente
que pratica a infração penal, a fim de que possa ser aplicada a
referida causa especial de aumento de pena.
III – o agente se prevalecer de relações de parentesco,
domésticas, de coabitação, de hospitalidade, de dependência
econômica, de autoridade ou de superioridade hierárquica
inerente ao exercício de emprego, cargo ou função.
Ao contrário do que ocorre normalmente, o inciso III do art. 149A do Código Penal, não indicou expressamente quais seriam as
pessoas consideradas nessa relação de parentesco, a exemplo do
que ocorre com a alínea e do art. 61 do citado diploma legal, que se
refere ao crime praticado contra ascendente, descendente, irmão ou
cônjuge, ou mesmo no inciso VII do § 2º do art. 121 do Código
Penal, quando, ao inserir o delito de homicídio qualificado quando
praticado contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144
da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força
Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em
decorrência dela, além do cônjuge e companheiro, se referiu
expressamente ao parente consanguíneo até terceiro grau, em
razão dessa condição.
Assim, quem está inserido no contexto da expressão relação de
parentesco? Entendemos que, como a lei não fez qualquer
distinção, apontando aqueles que poderiam se encontrar nesse
status, entendemos devam ser aplicados os arts. 1.591 a 1.595 do
Código Civil, que se encontram no Subtítulo II (Das Relações de
Parentesco), do Capítulo I (Disposições Gerais) que dizem:
Art. 1.591. São parentes em linha reta
as pessoas que estão umas para com
as outras na relação de ascendentes
e descendentes.
Art. 1.592. São parentes em linha
colateral ou transversal, até o quarto
grau, as pessoas provenientes de um
só tronco, sem descenderem uma da
outra.
Art. 1.593. O parentesco é natural ou
civil,
conforme
resulte
de
consanguinidade ou outra origem.
Art. 1.594. Contam-se, na linha reta,
os graus de parentesco pelo número
de gerações, e, na colateral, também
pelo número delas, subindo de um
dos parentes até ao ascendente
comum, e descendo até encontrar o
outro parente.
Art. 1.595. Cada cônjuge ou
companheiro é aliado aos parentes do
outro pelo vínculo da afinidade.
§ 1º O parentesco por afinidade limitase
aos
ascendentes,
aos
descendentes e aos irmãos do
cônjuge ou companheiro.
§ 2º Na linha reta, a afinidade não se
extingue com a dissolução do
casamento ou da união estável.
Assim, ampliou-se o espectro de abrangência a fim de
reconhecer essa relação de parentesco em suas três ordens, a
saber: a) vínculo conjugal; b) consanguinidade; e c) afinidade.
Entende-se por relações domésticas, de acordo com as lições
de Magalhães Noronha, aquelas “estabelecidas entre os
componentes de uma família, entre patrões e criados, empregados,
professores e amigos da casa.”67
Coabitar, no sentido do texto legal, quer dizer habitar ou morar
em lugar comum, diversamente da hospitalidade, que se traduz, em
regra, numa situação passageira ou momentânea, como as visitas.
No caso da dependência econômica, prelecionam Rogério
Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto, “o agente se aproveita do
fato de que, sem seu respaldo financeiro, a vítima tem limitada a
liberdade de dirigir sua vida da forma como lhe apraz”.68 Há uma
espécie de submissão, de vulnerabilidade pelo fato de não poder a
vítima se sustentar sem a ajuda econômica do agente.
Relação de autoridade pode ser de natureza pública ou privada.
Conforme lições de Fernando Galvão, esse conceito:
“‘Não compreende apenas o exercício de função pública, mas
sim todas as hipóteses em que um indivíduo esteja ligado a
outro por uma relação tal que lhe autorize obter o cumprimento
de um dever’69, e continua dizendo, acertadamente, que
também é reconhecida nas ‘hipóteses em que o executor
material é indivíduo penalmente incapaz ou não punível, em
virtude de condição ou qualidade pessoal’”70.
Superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego,
cargo ou função diz respeito a uma relação de Direito Público, a
exemplo do que ocorre entre o delegado de polícia e seus agentes,
com oficiais de patentes superiores com seus inferiores, entre o juiz
de direito e o oficial de justiça etc. Hierarquia, portanto, é relação de
Direito Público. Para que a máquina administrativa possa funcionar
com eficiência, é preciso que exista uma escala hierárquica entre
aqueles que detêm o poder de mando e seus subordinados. Nesse
sentido, Frederico Marques, quando aduz que para que se possa
falar em obediência hierárquica é preciso que “exista dependência
funcional do executor da ordem dentro do serviço público, em
relação a quem lhe ordenou a prática do ato delituoso.”71 Isso quer
dizer que não há relação hierárquica entre particulares, como no
caso do gerente de uma agência bancária e seus subordinados,
bem como tal relação inexiste nas hipóteses de temor reverencial
entre pais e filhos ou mesmo entre líderes religiosos e seus fiéis.
IV – a vítima do tráfico de pessoas for retirada do território
nacional.
Ocorre, aqui, o chamado tráfico internacional de pessoas,
quando a vítima do tráfico for retirada do território nacional.
Infelizmente, não há aumento de pena quando a vítima é
trazida do exterior, existindo, portanto, uma lacuna legal nesse
sentido, ferindo, consequentemente, o princípio da isonomia.
Nesse caso, indagam Rogério Sanches Cunha e Ronaldo
Batista Pinto:
“Como trabalhar o comportamento daquele que promove a
entrada da vítima no nosso país na condição de objeto traficado
(“importação”)?
Em respeito ao princípio da legalidade, certamente não
configura o crime majorado (art. 149-A, § 1º, IV, CP), mas não
deve ser tratado, obviamente, como um indiferente penal.
Responde o traficante, a depender da conduta praticada, pela
figura fundamental (art. 149-A do CP), mantendo, no entanto, o
rótulo de tráfico transnacional (pois extrapola as fronteiras do
nosso país), inclusive para fins de competência para o processo
e julgamento (que, no caso de transnacionalidade, é da Justiça
Federal)”72.
7.9
Causa especial de diminuição de pena
Diz o § 2º do art. 149-A do Código Penal:
§ 2º A pena é reduzida de um a dois
terços se o agente for primário e não
integrar organização criminosa.
Cuida-se, portanto, de uma causa especial de diminuição de
pena, que deverá ser obrigatoriamente aplicada desde que o agente
seja primário e, também, não integre organização criminosa.
São dois requisitos cumulativos, não basta somente a
primariedade, ou somente o fato de não integrar organização
criminosa, pois ambas as exigências devem estar preenchidas para
efeitos de aplicação da minorante.
A primariedade é um conceito encontrado por exclusão, ou
seja, aquele que não for considerado reincidente, nos termos do art.
63 do Código Penal, deverá ser reconhecido como primário.
O conceito de organização criminosa vem previsto no § 1º do
art. 1º da Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013, que diz:
§ 1º Considera-se organização
criminosa a associação de 4 (quatro)
ou mais pessoas estruturalmente
ordenada e caracterizada pela divisão
de tarefas, ainda que informalmente,
com objetivo de obter, direta ou
indiretamente, vantagem de qualquer
natureza, mediante a prática de
infrações
penais
cujas
penas
máximas sejam superiores a 4
(quatro) anos, ou que sejam de
caráter transnacional.
Prevê o § 2º do art. 149-A, outrossim, uma redução obrigatória
entre um a dois terços. Assim, como aplicar essa causa especial de
diminuição de pena, que terá consequências importantíssimas,
principalmente no que diz respeito ao regime inicial de cumprimento
da pena aplicada àquele que fora condenado pelo delito de tráfico
de pessoas?
Infelizmente, não existe um critério seguro para que o julgador
possa percorrer entre os limites mínimo e máximo de diminuição,
razão pela qual, como bem asseveram Rogério Sanches Cunha e
Ronaldo Batista Pinto:
“Na falta de um critério, podemos antever os juízes reduzindo a
pena sempre do máximo, lamentavelmente. Mesmo cientes de
que a questão será mais bem amadurecida pela jurisprudência,
sugerimos que o fator de análise seja o grau e o tempo de
submissão da vítima, ou mesmo a maior ou menor colaboração
do agente na apuração do crime e a libertação do ofendido”73.
7.10
Pena, ação penal, competência para julgamento
A pena cominada para o delito de tráfico de pessoas é de
reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.
De acordo com o § 1º do art. 149-A do Código Penal, a pena é
aumentada de um terço até a metade se:
I – o crime for cometido por
funcionário público no exercício de
suas funções ou a pretexto de exercêlas;
II – o crime for cometido contra
criança, adolescente ou pessoa idosa
ou com deficiência;
III – o agente se prevalecer de
relações de parentesco, domésticas,
de coabitação, de hospitalidade, de
dependência
econômica,
de
autoridade ou de superioridade
hierárquica inerente ao exercício de
emprego, cargo ou função; ou
IV – a vítima do tráfico de pessoas for
retirada do território nacional.
Nos termos do § 2º do art. 149-A do mesmo diploma legal, a
pena é reduzida de um a dois terços “se o agente for primário e não
integrar organização criminosa”.
A ação penal é de iniciativa pública incondicionada.
A competência para o processo e julgamento do tráfico de
pessoas será da Justiça Estadual, exceto quando houver o tráfico
transnacional, ou seja, quando o tráfico for para o exterior, ou se a
vítima for trazida do exterior para o território nacional, caso em que
a competência será da Justiça Federal.
7.11
Destaques
7.11.1
Livramento condicional
Embora o tráfico de pessoas não se encontre no rol das
infrações penais previstas pela Lei nº 8.072/90, tendo em vista a
modificação levada a efeito no inciso V do art. 83 do Código Penal
pela Lei nº 13.344, de 6 de outubro de 2016, somente após o
cumprimento de mais de dois terços da pena, se o apenado não for
reincidente específico em crimes dessa natureza, é que terá direito
ao livramento condicional.
Para que seja considerado como reincidente específico, o
agente deverá ser condenado pela mesma infração penal, vale
dizer, o tráfico de pessoas, cuja decisão condenatória anterior
atenda as determinações contidas nos arts. 63 e 64 do Código
Penal.
7.11.2
Concurso de crimes
Além da pena correspondente ao tráfico de pessoas, se houver
a efetiva remoção de órgãos, tecidos ou partes do corpo, haverá
concurso material entre os delitos tipificados no art. 149-A do
Código Penal e aquele previsto no art. 14, §§ 2º a 4º, da Lei nº
9.434, de 4 de fevereiro de 1997, que diz:
§ 2º Se o crime é praticado em
pessoa viva, e resulta para o
ofendido:
I – incapacidade para as ocupações
habituais, por mais de trinta dias;
II – perigo de vida;
III – debilidade permanente de
membro, sentido ou função;
IV – aceleração de parto.
Pena – reclusão, de três a dez anos, e
multa, de 100 a 200 dias-multa. § 3º
Se o crime é praticado em pessoa
viva e resulta para o ofendido:
I – Incapacidade para o trabalho;
II – Enfermidade incurável;
III – perda ou inutilização de membro,
sentido ou função;
IV – deformidade permanente;
V – aborto:
Pena – reclusão, de quatro a doze
anos, e multa, de 150 a 300 diasmulta.
§ 4º Se o crime é praticado em
pessoa viva e resulta morte:
Pena – reclusão, de oito a vinte anos,
e multa de 200 a 360 dias-multa.
7.11.3
Diferença entre tráfico de pessoas e contrabando de
migrantes
De acordo com a ONU, são as seguintes as diferenças
existentes entre o tráfico de pessoas e o contrabando de migrantes:
“Consentimento
O contrabando de migrantes, mesmo
em
condições
perigosas
e
degradantes, envolve o conhecimento
e o consentimento da pessoa
contrabandeada
sobre
o
ato
criminoso. No tráfico de pessoas, o
consentimento da vítima de tráfico é
irrelevante para que a ação seja
caracterizada
como
tráfico
ou
exploração de seres humanos, uma
vez que ele é, geralmente, obtido sob
malogro.
Exploração
O contrabando termina com a
chegada do migrante em seu destino,
enquanto o tráfico de pessoas
envolve,
após
a
chegada,
a
exploração da vítima pelos traficantes,
para obtenção de algum benefício ou
lucro, por meio da exploração. De um
ponto de vista prático, as vítimas do
tráfico humano tendem a ser afetadas
mais severamente e necessitam de
uma proteção maior.
Caráter Transnacional
Contrabando de migrantes é sempre
transnacional, enquanto o tráfico de
pessoas
pode
ocorrer
tanto
internacionalmente quanto dentro do
próprio país”74.
7.11.4
Tráfico internacional e interno de pessoas e continuidade
normativo típica
Embora os arts. 231 e 231-A, todos do Código Penal, tenham
sido expressamente revogados pela Lei nº 13.344, de 6 de outubro
de 2016, não podemos falar em abolitio criminis, tendo em vista que
o novo tipo penal, constante do art. 149-A, do mesmo diploma
repressivo, previu todas as hipóteses típicas anteriores, razão pela
qual devemos aplicar, in casu, o princípio da continuidade normativo
típica.
No entanto, aqueles que praticaram os delitos de tráfico
internacional de pessoa para fim de exploração sexual e tráfico
interno de pessoa para fim de exploração sexual, anteriormente à
vigência da Lei nº 13.344, de 6 de outubro de 2016, deverão
responder pelas penas cominadas nos arts. 231 e 231-A,
respectivamente, todos do Código Penal, tendo em vista que as
penas previstas para o crime de tráfico de pessoas são superiores
àquelas, aplicando-se, consequentemente, a lex mitior.
7.11.5
Política de Enfrentamento do Tráfico de Pessoas
Em 12 de junho de 2019, foi publicado o Decreto nº 9.833, que
instituiu a Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas
– CONATRAP para, nos termos de seu art. 2º:
I – propor estratégias para a gestão e
a implementação das ações da
Política Nacional de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas – PNETP,
aprovada pelo Decreto nº 5.948, de 26
de outubro de 2006, e dos planos
nacionais de enfrentamento ao tráfico
de pessoas;
II – propor a elaboração de estudos e
pesquisas e incentivar a realização de
campanhas
relacionadas
ao
enfrentamento ao tráfico de pessoas;
III – fomentar e fortalecer a expansão
da rede de enfrentamento ao tráfico
de pessoas, em especial dos Núcleos
de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas e dos Postos Avançados de
Atendimento
Humanizado
ao
Migrante;
IV – articular suas atividades àquelas
dos Conselhos Nacionais de Políticas
Públicas que tenham interface com o
enfretamento ao tráfico de pessoas,
para promover a intersetorialidade das
políticas;
V – articular e apoiar tecnicamente os
comitês
estaduais,
distrital
e
municipais de enfrentamento ao
tráfico de pessoas na definição de
diretrizes comuns de atuação, na
regulamentação e no cumprimento de
suas atribuições;
VI – elaborar relatórios de suas
atividades; e
VII – elaborar e aprovar o seu
regimento interno
O CONATRAP é composto pelos seguintes
elencados no art. 3º do referido Decreto Presidencial:
membros,
I – Secretário Nacional de Justiça do
Ministério da Justiça e Segurança
Pública, que o presidirá;
II – um representante dos seguintes
órgãos:
a) Ministério das Relações Exteriores;
b) Ministério da Cidadania; e
c) Ministério da Mulher, da Família e
dos Direitos Humanos; e
III
–
três
representantes
de
organizações da sociedade civil ou de
conselhos de políticas públicas, que
exerçam atividades relevantes e
relacionadas ao enfrentamento ao
tráfico de pessoas.
7.12
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: qualquer pessoa
pode praticar a infração
penal prevista no art. 149A,
sendo,
portanto,
considerado
um
delito
comum, que não exige
qualquer
qualidade
especial do sujeito ativo.
Passivo: da mesma forma,
qualquer pessoa também
poderá figurar como sujeito
passivo
estudo.
do
crime
em
Objeto material
Objeto material é a pessoa,
sobre a qual recai a conduta do
agente, que remove seus
órgãos, tecidos ou partes do
corpo, que a submete a
trabalho
em
condições
análogas à de escravo, que a
submete a qualquer tipo de
servidão,
que
a
adota
ilegalmente ou que a explora
sexualmente.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
Bem juridicamente protegido
pelo tipo penal em estudo é a
liberdade da vítima, bem como
a sua vida ou integridade física,
dependendo da modalidade de
tráfico de pessoas que seja
levada a efeito pelo agente.
Elemento subjetivo
Os comportamentos previstos
no tipo penal do art. 149-A do
Código Penal somente podem
ser praticados dolosamente,
não havendo previsão para a
modalidade
de
natureza
culposa. O delito sub examen,
no entanto, prevê o chamado
especial fim de agir, pois que
todos
os
comportamentos
praticados dolosamente devem,
obrigatoriamente, ter uma das
finalidades elencadas nos incs.
I a V do art. 149-A do Código
Penal.
Modalidades
omissiva
»
»
comissiva
e
Os
núcleos
agenciar,
aliciar, recrutar, transportar,
transferir, comprar, alojar
ou acolher, previstos no
caput do art. 149-A do
Código Penal, pressupõem
um
comportamento
comissivo por parte do
agente.
No entanto, dependendo
da hipótese concreta, se o
agente gozar do status de
garantidor,
praticados
imprópria.
poderão ser
via omissão
Consumação e tentativa
»
Estamos diante de um
crime
formal,
de
consumação
antecipada,
não havendo, portanto,
necessidade de que a
vítima seja, efetivamente,
traficada, ou seja, removida
ou levada para algum outro
lugar para que o crime se
configure, bastando que o
agente tão somente atue
com uma das finalidades
exigidas pelo tipo penal do
art. 149-A do Código Penal,
»
a saber: I – remover-lhe
órgãos, tecidos ou partes
do corpo; II – submetê-la a
trabalho em condições
análogas à de escravo; III –
submetê-la a qualquer tipo
de servidão; IV – adoção
ilegal; ou V – exploração
sexual.
Isso não quer dizer, por
outro lado, que o tipo penal
não admita a tentativa.
Tratando-se de um delito
plurissubsistente, em que é
possível fracionar o iter
criminis, esse raciocínio é
perfeitamente admissível e
dependerá da hipótese
concreta.
1
BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa, p. 344.
2
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal – Parte especial (arts. 121 a 160
CP), p. 215.
3
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 273.
4
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 153.
5
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VI, p. 161-163.
6
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal – Parte especial (arts. 121 a 160,
CP), p. 218.
7
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 2, p. 431.
8
BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa, p. 346.
9
BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa, p. 342-343.
10
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, v. 2, p. 283.
11
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VI, p. 179-180.
12
GALVÃO, Fernando. Direito penal – crimes contra a pessoa, p. 326.
13
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VI, p. 184.
14
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 2, p. 443.
15
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal – Parte especial (arts. 121 a 160
CP), p. 220-221.
16
CARRARA, Francesco. Programa de derecho criminal, v. 4, p. 352.
17
CARRARA, Francesco. Programa de derecho criminal, v. 4, p. 352.
18
MAGGIORE, Giuseppe. Derecho penal, v. IV, p. 476.
19
CUNHA, Sanches Rogério. Manual de direito penal – parte especial, volume único, p.
220/221.
20
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 2, p. 441.
21
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 159.
22
Nesse sentido, Cezar Roberto Bitencourt (Tratado de direito penal, v. 2, p. 447).
23
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 284.
24
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado, p. 466.
25
JESUS, Damásio E. de. Direito penal, v. 2, p. 250.
26
REALE JÚNIOR, Miguel. Teoria do delito, p. 76.
27
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal
brasileiro, p. 582.
28
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VI, p. 186.
29
CARRARA, Francesco. Programa de derecho criminal, v. 4, p. 356.
30
CARRARA, Francesco. Programa de derecho criminal, v. 4, p. 373.
31
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal – Parte especial (arts. 121 a 160,
CP), p. 223.
32
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 160.
33
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 284.
34
BARBOSA, Aldeleine Melhor e outros. Curso de direito penal – parte especial, v. 2, p.
186.
35
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VI, p. 192.
36
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal – Parte especial (arts. 121 a 160,
CP), p. 224-225.
37
BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa, p. 364.
38
SALLES JÚNIOR, Romeu de Almeida. Código penal interpretado, p. 417.
39
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 2, p. 456-457.
40
COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Direito penal objetivo, p. 261.
41
O citado art. 51 do Código Penal de 1940 diz respeito ao atual art. 69, depois da
reforma em 1984, e cuida do chamado concurso material.
42
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VI, p. 198.
43
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VI, p. 193.
44
GRECO, Rogério. Curso de direito penal – Parte geral.
45
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 2, p. 459.
46
BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de. Trabalho com redução do homem a
condição análoga à de escravo e dignidade da pessoa humana. Disponível em:
<http://www.pgt.mpt.gov.br/publicacoes>.
47
BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de. Trabalho com redução do homem a
condição análoga à de escravo e dignidade da pessoa humana. Disponível em:
<http://www.pgt.mpt.gov.br/publicacoes>.
48
De acordo com notícia veiculada no jornal O Globo, “o Brasil tem cerca de 20 mil
trabalhadores em condição análoga à escravidão” (O BRASIL tem 20 mil trabalhadores
em condição análoga à escravidão. O Globo, 27 mai. 2011. Disponível em:
<http://oglobo.globo.com/pais/mat/2011/05/27/brasil--tem-20-mil-trabalhadores-emcondicao-analoga-escravidao-924549388.asp>).
49
Disponível em: <http://www.mpt.gov.br>.
50
CASTILHO, Ela Wiecko V. de. Tráfico de pessoas: da Convenção de Genebra ao
Protocolo de Palermo. Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas,
Ministério da Justiça, p. 11.
51
FIERRO, Guillermo Julio. Ley penal y derecho internacional, p. 17.
52
Global Report on Trafficking in Persons, 2014, Undoc – United Nations Office on Drugs
and Crime, p. 5. Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/data-andanalysis/glotip/GLOTIP_2014_full_re port.pdf>. Acesso em: 9 out. 2016.
53
International Labour Organisation, ‘ILO 2012 Global estimates of forced labour’, jun.
2012 (covering the period 2002-2011).
54
Protocolo relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em
especial Mulheres e Crianças, que Suplementa a Convenção das Nações Unidas
contra a Criminalidade Organizada Transnacional (2000); Protocolo contra o Tráfico
Ilícito de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea, que Suplementa a Convenção
das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional (2000);
Protocolo contra a Produção Ilícita e o Tráfico de Armas de Fogo, suas Partes e
Componentes e Munição (2000).
55
Manual sobre la lucha contra la trata de personas para profesionales de la justicia
penal, da Oficina de las Naciones Unidas contra la droga y el delito – Unodc, p. 2.
56
Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/assuntos-fundiarios-trabalhoescravo--e-trafico-de-pessoas/trafico-de-pessoas>. Acesso em: 09 out. 2016.
57
ONASSIS, Elena Florencia. Trata de personas: la esclavitud del siglo XXI, p. 56.
58
ONASSIS, Elena Florencia. Trata de personas: la esclavitud del siglo XXI, p. 57.
59
CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Tráfico de pessoas – Lei
13.344/2016 comentada por artigos, p. 148.
60
CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Tráfico de pessoas – Lei
13.344/2016 comentada por artigos, p. 149.
61
Em 8 de outubro de 1959, foi promulgada pelo Decreto nº 46.981, publicado no Diário
Oficial de 13 de outubro de 1959.
62
FALEIROS, Eva. T. Silveira. A exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil:
reflexões teóricas, relatos de pesquisas e intervenções psicossociais, p. 83.
63
Diário do Senado Federal, relatório no 1, de 2004 – CN (final), p. 56.
64
FALEIROS, Eva. T. Silveira. A exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil:
reflexões teóricas, relatos de pesquisas e intervenções psicossociais, p. 79.
65
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo, p. 362.
66
Vide Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017, que estabeleceu o sistema de garantia de
direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e alterou a Lei
nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente).
67
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 1, p. 249.
68
CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Tráfico de pessoas – Lei
13.344/2016 comentada por artigos, p. 153.
69
GALVÃO, Fernando. Direito penal – parte geral, p. 776.
70
GALVÃO, Fernando. Direito penal – parte geral, p. 776.
71
MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal. v. II, p. 310.
72
CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Tráfico de pessoas – Lei
13.344/2016 comentada por artigos, p. 15.
73
CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Tráfico de pessoas – Lei
13.344/2016 comentada por artigos, p. 155.
74
Tráfico
de
Pessoas
e
Contrabando
de
Migrantes.
Disponível
em:
<https://www.unodc.org/lpo-brazil/pt/trafico-de-pessoas/index.html>. Acesso em: 15
out. 2016.
Capítulo VII
Dos Crimes contra a
Inviolabilidade do
Domicílio
1.
VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO
Violação de domicílio
Art. 150. Entrar ou permanecer,
clandestina ou astuciosamente, ou
contra a vontade expressa ou tácita
de quem de direito, em casa alheia ou
em suas dependências:
Pena – detenção, de um a três
meses, ou multa.
§ 1º Se o crime é cometido durante a
noite, ou em lugar ermo, ou com o
emprego de violência ou de arma, ou
por duas ou mais pessoas:
Pena – detenção, de seis meses a
dois
anos,
além
da
pena
correspondente à violência. § 2º
(Revogado pela Lei nº 13.869, de 5 de
setembro de 2019).
§ 3º Não constitui crime a entrada ou
permanência em casa alheia ou em
suas dependências:
I – durante o dia, com observância
das formalidades legais, para efetuar
a prisão ou outra diligência; II – a
qualquer hora do dia ou da noite,
quando algum crime está sendo ali
praticado ou na iminência de o ser.
§ 4º A expressão “casa” compreende:
I – qualquer compartimento habitado;
II – aposento ocupado de habitação
coletiva;
III – compartimento não aberto ao
público, onde alguém exerce profissão
ou atividade.
§ 5º Não se compreendem na
expressão “casa”:
I – hospedaria, estalagem ou qualquer
outra habitação coletiva, enquanto
aberta, salvo a restrição do nº II do
parágrafo anterior;
II – taverna, casa de jogo e outras do
mesmo gênero.
1.1
Introdução
O inciso XI do art. 5º da Constituição Federal proclama
expressamente:
XI – a casa é asilo inviolável do
indivíduo, ninguém nela podendo
penetrar sem consentimento do
morador, salvo em caso de flagrante
delito ou desastre, ou para prestar
socorro, ou, durante o dia, por
determinação judicial.
O caput do art. 150 do Código Penal traduz as hipóteses em
virtude das quais se poderá considerar como violado o domicílio de
alguém, perturbando-lhe a tranquilidade do lar.
A lei penal, portanto, trabalha com dois núcleos, vale dizer, os
verbos entrar e permanecer.
Entrar, aqui, no sentido empregado pelo texto, significa invadir,
ultrapassar os limites da casa ou suas dependências. Pressupõe um
comportamento positivo. Permanecer, ao contrário, deve ser
entendido no sentido de não querer sair. Só permanece, portanto,
quem já estava dentro licitamente, visualizando-se, assim, um
comportamento negativo.
Para que seja entendida como violação de domicílio a conduta
de entrar ou permanecer, é preciso que o agente a tenha realizado
clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou
tácita de quem de direito.
Aníbal Bruno esclarece os conceitos de ingresso clandestino ou
astucioso:
“Clandestina quando o agente entra ou permanece ocultandose, dissimulando-se para que ninguém o perceba.
Astuciosamente, quando se apresenta atribuindo-se, por
exemplo, condição que não possui, como a de guarda sanitário
ou de empregado da companhia de gás ou luz, tentando induzir
em erro os que tomam conta da casa, ou lançando mão de
outro ardil qualquer com que procure afastar ou iludir a
vigilância.”1
À primeira vista, poderíamos pensar que a violação de domicílio
somente poderia ser praticada quando o ingresso ou a permanência
em casa alheia ou em suas dependências fosse clandestino ou
astucioso. Na verdade, os ingressos clandestinos ou astuciosos
traduzem algumas modalidades de cometimento da violação de
domicílio, pois também se consideram típicos os ingressos forçado e
ostensivo. Assim, imagine-se a hipótese daquele que, inconformado
com o término do namoro, contra a vontade expressa de sua exnamorada, ingresse forçosamente na casa dela, almejando
convencê-la a manter o relacionamento amoroso.
Como se percebe pelo exemplo fornecido, o ingresso na
residência não foi clandestino, tampouco astucioso, mas, ainda
assim, configura-se na hipótese de violação de domicílio.
A entrada ou a permanência deverá, ainda, nos termos do
caput do art. 150 do Código Penal, ocorrer contra a vontade
expressa ou tácita de quem de direito. Vontade expressa é aquela
manifestada claramente por aquele que detém o poder de permitir
ou recusar o ingresso de alguém em sua residência. Vontade tácita
é aquela de natureza presumida, seja no sentido de permitir ou não
tolerar o ingresso de alguém em sua casa.
Somente pode recusar o ingresso ou a permanência de alguém
na casa ou em suas dependências, por exemplo, quem detém o
poder legal para tanto, vale dizer, aquele a quem a lei aponta por
meio da expressão de quem de direito.
Hungria, depois de esclarecer que a finalidade do tipo penal de
violação de domicílio não é proteger o patrimônio, mas, sim, a
liberdade doméstica, diz:
“É ao morador, seja a que título for (proprietário, locatário,
arrendatário, possuidor legítimo, usufrutuário, hóspede etc.),
que cabe a faculdade de excluir ou admitir os extranei. O jus
prohibendi pode ser exercido pelo ocupante more domestico até
mesmo contra o proprietário ou sublocador, pois ele é a pessoa
que a lei indica com a expressão quem de direito.”2
Para que seja melhor entendida a expressão de quem de
direito, utilizada pelo art. 150 do Código Penal, é preciso esclarecer
que existem dois regimes que devem ser observados, para fins de
identificação daquele que detém o poder de permitir ou negar o
ingresso de alguém em sua casa, vale dizer: a) regime de
subordinação; b) regime de igualdade.
O regime de subordinação é caracterizado pela relação de
hierarquia existente entre os diversos moradores. Assim, por
exemplo, os pais ocupam uma posição hierárquica superior em
relação aos filhos que são dependentes deles e que ainda vivem
sustentados por eles sob o mesmo teto. Em escolas,
estabelecimentos comerciais etc., devemos apontar aquele que,
hierarquicamente, possui autoridade para permitir ou impedir o
acesso de pessoas àqueles locais.
Ao contrário, quando estamos diante de um regime de
igualdade, compete a todos os moradores, igualmente, o poder de
permitir ou impedir o ingresso de pessoas no local onde elas se
encontram. Como bem observado por Luiz Regis Prado:
“Sob o regime de igualdade, pertence a todos os moradores o
direito de inclusão/exclusão. Assim, quando se trata de
habitação contendo vários cômodos independentes (v.g.,
república estudantil), materialmente reunidos, cada morador é
dono de seu aposento e pode nele admitir quem quer que seja.
Nos espaços comuns (v.g., corredores, saguões, escadas etc.)
a autorização para entrada ou permanência pode provir de
qualquer um dos moradores. Havendo conflito de vontades,
predomina a vontade da maioria ou, em caso de empate, a
negativa (melior est conditio prohibentis).”3
O caput do art. 150 do Código Penal diz que a violação de
domicílio poderá ocorrer quando o ingresso, seja ele clandestino,
astucioso ou ostensivo, vier a ocorrer contra a vontade expressa ou
tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências.
O § 4º do mencionado art. 150, explicando o conceito de casa
que deve ser compreendido para fins de tipificação do delito de
violação de domicílio, diz ser: I – qualquer compartimento habitado;
II – aposento ocupado de habitação coletiva, e III – compartimento
não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade.
Por outro lado, o § 5º do mesmo artigo assevera que não se
compreendem na expressão “casa”: I – hospedaria, estalagem ou
qualquer outra habitação coletiva, enquanto aberta, salvo a restrição
do nº II do § 4º; II – taverna, casa de jogo e outras do mesmo
gênero.
O artigo, além da expressão casa, tipifica como violação de
domicílio quando o ingresso e a permanência são levados a efeito
em suas dependências. Noronha esclarece que, por dependências:
“Devem entender-se os lugares acessórios ou complementares
da moradia ou habitação: jardim, quintal, garagem, pátio, adega
etc. Claro é que tais lugares não devem ser franqueados ao
público. Por vezes encontramos em bairro de ricas residências
jardins não cercados, que não serão, por isso, dependências,
mesmo porque neles não se entra. O que caracteriza a
dependência, além do que se disse, é o fato de se avizinhar da
moradia e corresponder as necessidades da atividade nesta
desenvolvida. Assim, Eusébio Gómez lembra um exemplo de
Marcora, de extensíssimo parque, pertencente a um plutocrata,
que tem a uma distância de cinco quilômetros da casa um
abrigo rústico qualquer; se alguém aí penetrar, não viola o
domicílio, por não perturbar a paz do proprietário.”4
Merece ser ressaltado, ainda, o fato de que, embora a rubrica
ao tipo penal do art. 150 do diploma repressivo dê o nomen iuris a
esse delito de violação de domicílio, não está se referindo,
tecnicamente, ao conceito de domicílio utilizado pelo Código Civil
(arts. 70 a 78), mas, sim, ao conceito de casa explicitado pelo
aludido § 4º do art. 150 do Código Penal.
1.2
Classificação doutrinária
Crime comum com relação ao sujeito ativo, bem como quanto
ao sujeito passivo; doloso; de mera conduta; de forma livre;
comissivo (na modalidade entrar) e omissivo (na modalidade
permanecer); instantâneo ou permanente (pois a sua consumação
se perpetua enquanto houver a violação do domicílio com a
permanência do agente em casa alheia ou em suas dependências);
monossubjetivo, podendo, também, ser visualizado como
unissubsistente (se houver concentração de ato, como ocorre com a
modalidade permanecer), ou plurissubsistente (como acontece,
como regra, com a modalidade entrar); de ação múltipla ou de
conteúdo variado (podendo o agente entrar e ainda permanecer em
casa alheia ou em suas dependências, devendo ser
responsabilizado por uma única infração penal).
1.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
A tranquilidade doméstica é o bem juridicamente protegido pelo
tipo de violação de domicílio. Como diz a primeira parte do inciso XI
do art. 5º da Constituição Federal, a casa é o asilo inviolável do
indivíduo, é o seu lugar de descanso, de prazer, de tranquilidade, e
deve ser preservada de intromissões, de comportamentos que
atinjam sua paz. Hungria esclarece que, com “a indébita ou
arbitrária incursão no domicílio alheio, é lesado o interesse da
tranquilidade e segurança de vida íntima ou privada do indivíduo, ou
seja, das condições indeclináveis à livre expansão da personalidade
humana.”5
A casa ou suas dependências são consideradas o objeto
material do delito em estudo. Isso porque, explica Aníbal Bruno,
segundo a moderna:
“Concepção dessa espécie punível, o que pretende o Direito
Penal ao reduzir a um tipo penal a violação de domicílio é
garantir a liberdade de querer do indivíduo na disposição do
espaço em que se desenvolve a sua atividade privada.
Definindo como objeto material do delito esse espaço em
relação ao qual se protege a liberdade da pessoa, o Código
refere-se a casa alheia ou suas dependências.”6
1.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
Por se tratar de crime comum, qualquer pessoa pode gozar do
status de sujeito ativo do delito de violação de domicílio, inclusive o
proprietário do imóvel, por exemplo, objeto material do delito. Assim,
imagine-se a hipótese do proprietário de um imóvel que, contra a
vontade do locatário, nele ingresse com o objetivo de levar a efeito
uma vistoria para identificar possíveis danos. Nesse caso, como é
cediço, se não houver o consentimento daquele para o qual o imóvel
fora alugado, poderá o proprietário responder pelo delito de violação
de domicílio.
Sujeito passivo é aquele identificado pelo tipo do art. 150 do
Código Penal por meio da expressão de quem de direito. Na
verdade, não somente a pessoa a quem a lei atribui a faculdade de
negar ou consentir o ingresso em sua casa pode ser considerado
sujeito passivo do crime de violação de domicílio. Isso porque, como
no delito em estudo se procura proteger a paz doméstica, a
tranquilidade no lar, a liberdade que todos nós temos o direito de
exercer dentro de nossa casa, qualquer morador poderá figurar
como sujeito passivo da referida infração penal, independentemente
do regime que se adote, ou seja, de subordinação ou de igualdade.
Imagine-se a hipótese daquele que, contra a vontade de quem
de direito, ingresse numa casa em que toda a família (pais e filhos)
esteja reunida, participando de uma confraternização íntima. Aqui,
não somente os pais, titulares do direito de impedir ou permitir o
acesso de pessoas àquele local, podem ser considerados sujeitos
passivos, como também seus filhos, que veem sua liberdade
abalada com o ingresso não permitido de pessoa naquele ambiente,
perturbando-lhes, também, a tranquilidade do lar.
1.5
Consumação e tentativa
O delito de violação de domicílio se consuma quando há o
efetivo ingresso do agente na casa da vítima ou em suas
dependências, ou no momento em que se recusa a sair, quando
nela havia ingressado inicialmente de forma lícita.
Imagine-se, por exemplo, a situação daquele que, sem ser
convidado, “penetre” em uma reunião íntima, produzida para um
número especial e reduzido de pessoas. No momento em que há o
ingresso do agente no recinto no qual estava ocorrendo a reunião,
considera-se consumado o delito de violação de domicílio. Da
mesma forma, consideremos a hipótese daquele que, inicialmente
convidado para participar da reunião, seja solicitado pelo dono da
casa, ou seja, aquele que tenha o poder para tanto, a se retirar, pois
seu comportamento inconveniente já estava incomodando a todos
os convidados. Quando o agente diz àquele de direito que não se
retirará daquele local, também nesse instante estará consumado o
delito.
Assim, resumindo, com a efetiva entrada em casa alheia ou em
suas dependências, contra a vontade expressa ou tácita de quem
de direito, ou com a determinação do agente de nela permanecer,
entendemos por consumado o delito de violação de domicílio.
Tendo em vista a possibilidade de fracionamento do iter
criminis, sendo um delito considerado plurissubsistente, é
perfeitamente admissível a tentativa de violação de domicílio.
Dessa forma, aquele que é surpreendido tentando pular o muro
da residência da vítima, antes de conseguir o seu intento, poderá
ser responsabilizado pela tentativa do delito em estudo.
A doutrina, de forma majoritária, aduz que a mera hesitação,
por exemplo, em sair de determinado local, quando convidado a
tanto, não se consubstancia no delito em questão, a não ser que
ocorra uma recalcitrância com certa duração.7
Entretanto, entendemos não ser possível cogitar de tentativa de
violação de domicílio na modalidade permanecer, ao contrário do
que aduz Cezar Roberto Bitencourt, quando diz:
“A tentativa, embora de difícil configuração, é, teoricamente,
admissível. Há tentativa quando o agente, pretendendo entrar
na casa da vítima, é impedido por esta; ou quando o agente,
convidado a retirar-se, pretendendo permanecer no interior da
casa alheia, é retirado para fora.”8
No mesmo sentido, afirma Damásio de Jesus:
“Entendemos também admissível a tentativa na modalidade de
permanência. Suponha-se que o sujeito pretenda permanecer
na casa da vítima, sendo colocado para fora depois de nela
ficar tempo insuficiente para configurar o fato consumado. Para
nós há tentativa.”9
Apesar das posições dos renomados professores, quando o
agente, já no interior da casa, por exemplo, convidado a se retirar,
diz, peremptoriamente, que dali não sairá, nesse instante, segundo
entendemos, já estará configurada a violação de domicílio, mesmo
que no momento imediatamente seguinte seja dali retirado por
pessoas que façam a segurança local.
Assim, será admissível, segundo nossa posição, a tentativa na
modalidade prevista por meio do núcleo entrar, não sendo possível
tal raciocínio, contudo, quanto ao núcleo permanecer.
1.6
Elemento subjetivo
O dolo é o elemento subjetivo característico do delito de
violação de domicílio, seja ele direto, seja eventual.
O agente, portanto, deve dirigir sua conduta finalisticamente a
entrar ou permanecer em casa alheia ou em suas dependências,
mesmo sabendo sobre o dissenso expresso ou tácito de quem de
direito.
Guilherme de Souza Nucci, entretanto, afasta a possibilidade de
cometimento do delito de violação de domicílio tendo o agente
atuado com dolo eventual, esclarecendo:
“Não há forma culposa, nem tampouco elemento subjetivo
específico. Entretanto, deve-se ressaltar que a existência no
tipo da expressão ‘contra a vontade de quem de direito’ faz com
que o dolo eventual torne-se figura incompatível. Não se pode
assumir o risco de estar ingressando no lar alheio contra a
vontade do morador: ou quem ingressa sabe que não pode
fazê-lo ou tem dúvida, o que é suficiente para afastar o dolo.”10
Apesar do brilhantismo do raciocínio do renomado autor,
entendemos, permissa vênia, ser perfeitamente admissível o dolo
eventual, que ocorrerá, justamente, na hipótese mencionada, vale
dizer, na dúvida sobre o consentimento. Dessa forma, se o agente,
ao ingressar na casa da vítima, tem dúvida com relação ao seu
consentimento para tanto e, ainda assim, diz para si mesmo que
isso não importa, pois entrará de qualquer modo, assumindo o risco
de produzir o resultado, que aqui se traduz na perturbação da
tranquilidade alheia, deverá ser responsabilizado pela violação de
domicílio, levando-se em consideração o seu dolo eventual.
Merece ser frisado que não estamos lidando com erro, mas,
sim, com dúvida com relação ao consentimento, o que é diferente. O
erro no que diz respeito ao consentimento será considerado erro de
tipo, tendo o condão de afastar o dolo, o que não acontece no
exemplo fornecido, quando o agente, mesmo na dúvida se pode ou
não ingressar livremente na casa da vítima, prefere arriscar, não se
importando com a possibilidade de estar agindo contra a vontade
expressa ou tácita de quem de direito.
Por não ter sido prevista a modalidade culposa, não haveria
violação de domicílio quando o agente, distraidamente, viesse a
entrar, por exemplo, no apartamento do seu vizinho, cuja porta se
encontrava aberta, por não ter observado que o elevador havia
parado em andar diferente do seu. Se o agente, logo ao tomar
conhecimento dessa situação, que é extremamente comum, sair
imediatamente do apartamento, o fato será considerado atípico.
1.7
Modalidades comissiva e omissiva
De acordo com os núcleos existentes no art. 150 do Código
Penal, o delito de violação de domicílio pode ser praticado comissiva
e omissivamente.
Assim, aquele que ingressa em casa alheia, ou em suas
dependências, contra a vontade expressa ou tácita de quem de
direito, pulando o muro ou mesmo entrando disfarçado pela porta
principal, pratica o delito comissivamente. Ao contrário, aquele que,
havendo ingressado licitamente na casa, dela se recusa a sair
quando convidado por quem de direito, permanecendo trancado em
um de seus cômodos, pratica o crime omissivamente, ou seja, deixa
de fazer aquilo que lhe era devido.
1.8
Modalidade qualificada
Diz o § 1º do art. 150 do Código Penal:
§ 1º Se o crime é cometido durante a
noite, ou em lugar ermo, ou com o
emprego de violência ou de arma, ou
por duas ou mais pessoas:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a
2 (dois) anos, além da pena
correspondente à violência.
Como pudemos observar, o § 1º do mencionado art. 150
enumera uma série de situações que fazem com que a pena para a
violação de domicílio seja excessivamente aumentada, quando o
crime é cometido:
a)
b)
c)
d)
e)
à noite;
em lugar ermo;
com o emprego de violência;
com o emprego de arma;
por duas ou mais pessoas.
A primeira indagação que se deve fazer diz respeito ao conceito
de noite. Na verdade, devemos entender que os motivos pelos quais
a lei penal qualificou a violação de domicílio quando praticada à
noite foi pela maior facilidade para a prática do delito, bem como
pela maior intensidade da tranquilidade doméstica, quando
estivermos numa situação de ausência de luz. Assim, para que
possa ser considerada a qualificadora, independentemente do
horário em que se realize o ingresso não consentido em casa alheia
ou em suas dependências, o fato deverá ocorrer depois do pôr do
sol, até a aurora, ou seja, quando o sol começar a nascer no
horizonte.
Lugar ermo, segundo a definição de Hungria, deve ser
entendido “no sentido material ou geográfico: é o lugar
habitualmente (quer de dia quer de noite), e não acidentalmente
solitário [...]. É o lugar normalmente privado de socorro”,11 a exemplo
de uma casa construída numa região ainda pouco explorada, em
que existe uma distância considerável entre os vizinhos mais
próximos, fazendo com que não possam contar uns com os outros.
O emprego de violência, que qualifica a violação de domicílio, é
aquele exercido contra a pessoa, ou seja, a chamada vis corporalis,
não qualificando a violação de domicílio a violência dirigida à
destruição da coisa para o ingresso do agente em casa alheia ou
em suas dependências, bem como a ameaça (vis compulsiva),
desde que não exercida com o emprego de arma. Assim,
entendemos que aquele que, com a finalidade de violar o domicílio
da vítima, arromba a porta de entrada de sua casa não comete o
delito na modalidade qualificada, ajustando-se o seu comportamento
ao caput do art. 150 do Código Penal.
Em sentido contrário, afirma Aníbal Bruno, com apoio
majoritário da doutrina: “Violência é a força física com que se anula
a oposição do morador, violência contra a pessoa ou contra coisas,
praticada pelo agente para entrar no domicílio ou nele
permanecer.”12
Apesar da posição adotada pela corrente majoritária,
entendemos, permissa vênia, ser melhor o entendimento no sentido
de não qualificar a violação de domicílio a violência dirigida contra a
coisa, por dois argumentos: inicialmente, seria ofensivo ao princípio
da proporcionalidade, pois apenas um vidro quebrado pelo agente,
para fins de ingresso em casa alheia, faria com que sua pena fosse
aumentada em mais de seis vezes; em segundo lugar, de acordo
com a interpretação de Guilherme de Souza Nucci, “a figura
qualificada menciona, em dupla, o emprego de violência ou arma,
demonstrando uma referência à pessoa, e não à coisa, pois a arma,
no contexto da coisa, não teria sentido.”13
O emprego de arma, que pode ser própria ou imprópria, deve
ser utilizado no sentido de intimidar a vítima, fazendo com que se
sinta ameaçada pelo agente. Segundo Fragoso, “bastará, todavia, a
intimidação tácita, que se verifica quando o agente porta a arma
ostensivamente. A ofensa à liberdade individual é, nestes casos,
maior, pela intranquilidade que gera o emprego da arma, não sendo
de se desprezar a circunstância do maior perigo que acarreta.”14
A última qualificadora diz respeito ao concurso de pessoas na
prática da violação de domicílio. Para que o delito se considere
qualificado, não basta o fato de que duas ou mais pessoas entrem
ou permaneçam, contra a vontade expressa ou tácita de quem de
direito, em casa alheia ou em suas dependências, sendo
fundamental que ajam unidas por esse propósito, ou seja, ligadas
pelo vínculo psicológico característico do concurso de pessoas.
Caso contrário, cada uma delas responderá pela sua violação de
domicílio sem a imposição da qualificadora.
1.9
Exclusão do crime
O § 3º do art. 150 do Código Penal diz textualmente:
§ 3º Não constitui crime a entrada ou
permanência em casa alheia ou em
suas dependências:
I – durante o dia, com observância
das formalidades legais, para efetuar
prisão ou outra diligência;
II – a qualquer hora do dia ou da
noite, quando algum crime está sendo
ali praticado ou na iminência de o ser.
A Constituição Federal ampliou as hipóteses previstas no
transcrito § 3º do art. 150 do Código Penal, dizendo, no inciso XI do
seu art. 5º:
XI – a casa é o asilo inviolável do
indivíduo, ninguém nela podendo
penetrar sem o consentimento do
morador, salvo em caso de flagrante
delito ou desastre, ou para prestar
socorro, ou durante o dia, por
determinação judicial;
A primeira hipótese diz respeito ao cumprimento de
determinação judicial, seja para efetuar a prisão de alguém ou
mesmo para realizar outra diligência, a exemplo do cumprimento de
mandado de busca e apreensão. Nesses casos, somente poderá
ser cumprida a ordem judicial durante o dia. Assim, por exemplo,
tendo sido expedido mandado de prisão, o oficial de justiça ou outra
autoridade encarregada de cumpri-lo somente poderá fazê-lo
durante o dia, entendendo-se aqui por dia o período normal no qual
são realizados os atos processuais, nos termos preconizados pelo
art. 212 do Código de Processo Civil (Lei nº 13.105, de 16 de março
de 2015), que diz:
Art. 212. Os atos processuais serão
realizados em dias úteis, das 6 (seis)
às 20 (vinte) horas.
A Constituição Federal menciona, também, as hipóteses de
flagrante delito, desastre ou prestação de socorro, não havendo,
nesses casos, qualquer limite temporal, ou seja, pode alguém
ingressar em casa alheia, mesmo contra a vontade de quem de
direito, seja de dia ou mesmo à noite.
Entretanto, comparando o dispositivo constitucional com a
norma penal constante do § 3º do art. 150, devemos fazer algumas
observações.
Inicialmente, a Constituição Federal menciona a situação de
flagrante delito, enquanto o Código Penal aduz o fato de que algum
crime esteja sendo praticado em casa alheia ou na iminência de o
ser. A fim de compatibilizarmos as duas regras, com proeminência
para aquela de natureza constitucional, que exige a ocorrência de
flagrante, devemos concluir que a expressão na iminência de o ser,
contida na lei penal, deve, obrigatoriamente, ser entendida no
sentido de que o agente, embora não houvesse ainda consumado o
crime, já havia dado início à sua execução, oportunidade em que
poderia ser interrompido com o ingresso de terceira pessoa em sua
casa, fazendo, com isso, que a infração penal permanecesse na
fase da tentativa.
Merece destaque, ainda, o fato de que a lei penal menciona, a
fim de permitir o ingresso forçado em casa alheia, a prática de
crime, não se referindo, outrossim, à contravenção. Nesse caso,
entendemos que a Constituição Federal aumentou as hipóteses de
ingresso em casa alheia contra a vontade de quem de direito, pois
mencionou tão somente a situação de flagrante delito, que poderá
ocorrer tanto nas hipóteses de cometimento de crimes quanto na
prática de contravenções penais.
Em caso de desastre, ou mesmo para prestar socorro, o
particular que invade casa alheia com uma dessas finalidades atua
em estado de necessidade, afastando-se, portanto, a ilicitude de seu
comportamento. Sendo um funcionário público que possua tal
obrigação de prestar socorro, a exemplo do que ocorre com os
bombeiros, atua acobertado pelo estrito cumprimento de dever legal.
Nas hipóteses de cumprimento de determinação judicial, seja
para efetuar prisão ou outra diligência, ou, mesmo, nos casos de
flagrante delito, se praticados por funcionário público, estaremos
diante da causa de justificação relativa ao estrito cumprimento de
dever legal.
Sendo a prisão em flagrante realizada por um particular, nos
termos da primeira parte do art. 301 do Código de Processo Penal,
estaremos diante da causa de exclusão da ilicitude correspondente
ao exercício regular de um direito.
Assim, concluindo, todas as situações elencadas tanto pela
Constituição Federal quanto pelo próprio Código Penal dizem
respeito a causas de justificação, que têm por finalidade excluir a
ilicitude do comportamento realizado pelo agente.
1.10
Conceito legal de casa
Visando a espancar qualquer dúvida existente com relação ao
conceito de casa, diz a norma penal explicativa, contida no § 4º do
art. 150 do Código Penal:
§ 4º A expressão “casa” compreende:
I – qualquer compartimento habitado;
II – aposento ocupado de habitação
coletiva;
III – compartimento não aberto ao
público, onde alguém exerce profissão
ou atividade.
A expressão qualquer compartimento habitado, conforme
esclarece Cezar Roberto Bitencourt:
“Tem a abrangência suficiente para evitar qualquer dúvida
relativamente a moradias eventuais ou transitórias.
Para configurar ‘casa’, no sentido de qualquer compartimento
habitado, não é necessário que esteja fixa ou afixada em
determinado local; pode ser móvel, flutuante, ‘errante’, como,
por exemplo, barco, trailer, motor-home, cabina de um trem
velho, vagão de metrô abandonado, abrigo embaixo de ponte
ou viaduto etc., além de abranger, evidentemente, quarto de
pensão, de pensionato etc.”15
A expressão aposento ocupado de habitação coletiva, embora
certamente abrangida pela situação precedente, pois pode ser
compreendida de acordo com o conceito de qualquer compartimento
habitado, traduz as hipóteses em que determinada pessoa reside
em lugares tais como pensionatos, hotéis, motéis etc.
Por compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce
profissão ou atividade, deve ser compreendido o lugar, segundo
Hungria:
“Que, embora sem conexão com a casa de moradia
propriamente dita, serve ao exercício da atividade individual
privada. Assim, o escritório do advogado, o consultório do
médico, o gabinete do dentista, o laboratório do químico, o
atelier do artista, a oficina do ourives etc. A atividade do
cidadão, nos tempos modernos, é múltipla e não se exerce
apenas no limite estrito da casa de moradia, e há necessidade
de tutelar essa atividade em todos os lugares onde ela se
abriga.”16
O § 5º do art. 150, a seu turno, diz que não se compreendem na
expressão “casa”:
I – hospedaria, estalagem ou qualquer
outra habitação coletiva, enquanto
aberta, salvo a restrição do inciso II,
do § 4º do mesmo diploma legal;
II – taverna, casa de jogo e outras do
mesmo gênero.
1.11
Pena, ação penal, competência para julgamento e
suspensão condicional do processo
O caput do art. 150 do Código Penal prevê a pena de detenção,
de 1 (um) a 3 (três) meses, ou multa, sendo que o seu § 1º comina,
para a violação de domicílio qualificada, a pena de detenção, de 6
(seis) meses a 2 (dois) anos, além da pena correspondente à
violência.
Dessa forma, a competência, pelo menos ab initio, para
julgamento da infração penal prevista pelo tipo fundamental da
violação de domicílio será do Juizado Especial Criminal, o mesmo
acontecendo com a sua modalidade qualificada, cuja pena máxima
cominada em abstrato não ultrapassa dois anos, aplicando-se,
outrossim, todos os institutos previstos pela Lei nº 9.099/95
(transação penal, suspensão condicional do processo).
A ação penal é de iniciativa pública incondicionada.
1.12
1.12.1
Destaques
Concurso de crimes
A modalidade qualificada de violação de domicílio, constante do
§ 1º do art. 150 do Código Penal, prevê uma pena de detenção, de
6 (seis) meses a 2 (dois) anos, além da pena correspondente à
violência.
Inicialmente, devemos destacar que a violência aqui referida é
tão somente aquela praticada contra a pessoa, e não também
contra a coisa, como entende a doutrina majoritária, pelos motivos já
expostos acima.
Nesse caso, teremos duas infrações penais, vale dizer, a
violação de domicílio e a lesão corporal ou homicídio, por exemplo.
Assim, havendo concurso de crimes, qual deles seria aplicado à
hipótese em estudo: o concurso material ou o concurso formal?
Devemos notar que a violência mencionada no § 1º é um meio
para a prática do crime-fim, que é a violação de domicílio, e não o
contrário, ou seja, a violação de domicílio como crime-meio para a
prática de outro crime-fim, a lesão corporal ou o homicídio, por
exemplo, uma vez que, no segundo caso, seria aplicada a regra do
concurso aparente de normas, ficando a violação de domicílio
absorvida pelo delito-fim.
Nesse sentido, esclarece Noronha que a violação de domicílio
é:
“Um crime eminentemente subsidiário: é absorvido quando, no
caso concreto, serve à execução de outro mais grave. De
acordo com essa opinião, o eminente Nelson Hungria escreve
que ‘a violação de domicílio só se apresenta como crime
autônomo quando: a) seja fim a si mesma; b) sirva a fim não
criminoso ou haja dúvida sobre o verdadeiro fim do agente; c)
seja simples ato preparatório de outro crime; d) haja desistência
do agente quanto ao crime-fim; e) seja o crime-fim menos
severamente punido (como, por ex., no caso da entrada à noite
na casa alheia para ameaçar o morador)’.
Mas, mesmo de acordo com a opinião prevalente, deve
entender-se não ser inadmissível o concurso. Se A, por
qualquer razão (v.g., para mostrar aos correligionários políticos
o pouco caso que faz do adversário), penetra a casa de B, e,
depois, por qualquer outro fato – protestos deste, gesto de
chamar a Polícia, discussão etc. – o agride, há dois crimes em
concurso material. Não há falar em prevalência, absorção e
quejandos, pois a entrada não foi meio para a agressão (fim).”17
Da mesma forma, responderá pelas duas infrações penais, em
concurso material, aquele que, com a finalidade de violar o
domicílio, agride a vítima para que possa entrar em sua residência,
havendo, no caso, pluralidade de condutas, razão pela qual deverá
ser aplicada a regra do art. 69 do Código Penal, atendendo-se,
outrossim, à segunda parte do preceito secundário do § 1º do art.
150 do Código Penal.
1.12.2
Casa vazia ou desabitada e casa habitada, com ausência
momentânea do morador
Considerando que o bem jurídico penalmente protegido pelo
art. 150 do Código Penal é a tranquilidade doméstica, poderia se
falar em violação de domicílio na hipótese de casa vazia ou
desabitada? Não, uma vez que não há possibilidade de agressão ao
bem jurídico mencionado, em face da sua inexistência.
Situação completamente diversa é a da casa que, embora
normalmente habitada, seus moradores dela se encontram
afastados quando do ingresso do agente. Aqui, existe bem jurídico a
ser protegido pelo Direito Penal, razão pela qual a prática da
violação de domicílio é perfeitamente admissível.
Conforme esclarece Aníbal Bruno:
“A entrada em casa vazia, ou construção em ruína, desabitada,
não constitui violação de domicílio. Mas se a casa está
ocupada, não é necessário para que se formalize o crime que o
morador esteja presente no momento da violação.”18
Caso contrário, não fosse esse o raciocínio dominante, sempre
que viajássemos, por exemplo, esse fato seria como que uma
“permissão tácita” para que outras pessoas utilizassem nossa casa,
o que não é razoável.
Assim, a ausência momentânea do morador não descaracteriza
a violação de domicílio levada a efeito pelo agente.
1.12.3
Abuso de autoridade, na modalidade de violação de imóvel
alheio ou suas dependências19
O art. 22 da Lei nº 13.869, de 05 de setembro de 2019, previu o
delito de abuso de autoridade, para o agente que, verbis:
Art. 22.
Invadir
ou
adentrar,
clandestina ou astuciosamente, ou à
revelia da vontade do ocupante,
imóvel alheio ou suas dependências,
ou nele permanecer nas mesmas
condições, sem determinação judicial
ou fora das condições estabelecidas
em lei:
Pena – detenção, de 1 (um) a 4
(quatro) anos, e multa.
§ 1º Incorre na mesma pena, na forma
prevista no caput deste artigo, quem:
I – coage alguém, mediante violência
ou grave ameaça, a franquear-lhe o
acesso
a
imóvel
ou
suas
dependências;
II – (vetado);
III – cumpre mandado de busca e
apreensão domiciliar após as 21h
(vinte e uma horas) ou antes das 5h
(cinco horas).
§ 2º Não haverá crime se o ingresso
for para prestar socorro, ou quando
houver
fundados
indícios
que
indiquem a necessidade do ingresso
em razão de situação de flagrante
delito ou de desastre.
1.12.4
A tecnologia como violadora da intimidade
Hoje em dia temos assistido, quase que diariamente, pelos
telejornais, a intimidade das pessoas sendo violada em virtude da
utilização de avançados recursos tecnológicos. Embora não ocorra
a situação de efetivo ingresso físico no domicílio alheio, nossos
olhos conseguem ultrapassar os muros divisórios, fazendo com que
as pessoas se sintam inseguras dentro de suas próprias casas,
abalando, sobremaneira, a tranquilidade doméstica.
Paulo José da Costa Júnior, fazendo uma análise aprofundada
sobre o tema, disserta:
“Tutelou-se, no art. 150, a inviolabilidade do domicílio, dentro de
cujos muros o cidadão é rei (domi suae qulibet rex). Se em
1940, quando se promulgou o Código, a domus poderia
constituir o asilo inviolável do indivíduo, não o será nos dias
hodiernos. A tecnologia moderna possibilitou a invasão do
domicílio sem que o agente nele penetrasse. E o preceito legal
mostrou-se incompleto e insuficiente, desatualizado e pobre,
para tutelar a intimidade. Restaram, pois, ao desamparo da
tutela jurídico-penal todas as invasões possibilitadas pela
técnica: a teleobjetiva que fotografa através das vidraças, à
distância, ou do helicóptero que sobrevoa o jardim secreto ou o
terraço do penthouse onde a dona de casa se banha ao sol; ou
mesmo a gravação de conversas íntimas, ou a filmagem de
cenas privadas, mantidas no sacrário do lar e obtidas de forma
fraudulenta, por meio de microfones ocultos ou de câmeras
minúsculas e poderosas, disfarçadas e recônditas em objetos
os mais diversos. Insuficiente, portanto, a tutela penal ofertada
pelo jus conditum, extensiva apenas à turbação da tranquilidade
doméstica pela introdução ou permanência non jure na
habitação alheia. Inclusive aquele que estiver no interior da
casa, com a empregada doméstica, a vasculhar gavetas e
escaninhos, violando a intimidade, estará igualmente a salvo da
sanção normativa.”20
1.12.5
Violação de domicílio e Código Penal Militar
O crime de violação de domicílio também veio previsto no
Código Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de
1969), conforme se verifica pela leitura do seu art. 226.
1.13
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: qualquer pessoa.
Passivo:
é
aquele
identificado pelo tipo do art.
150 do CP por meio da
expressão “de quem de
direito”.
Na
verdade,
qualquer morador poderá
figurar
como
sujeito
passivo da referida infração
penal, independentemente
do regime que se adote, ou
seja, de subordinação ou
de igualdade.
Objeto material
A casa ou suas dependências.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
A tranquilidade doméstica.
Elemento subjetivo
»
»
O dolo direto ou eventual.
Não há previsão para a
modalidade culposa.
Modalidades
omissiva
comissiva
e
O delito de violação de
domicílio pode ser praticado
comissiva e omissivamente.
Consumação e tentativa
»
»
O delito se consuma
quando há o efetivo
ingresso do agente na casa
da vítima ou em suas
dependências,
ou
no
momento em que se
recusa a sair, quando nela
havia
ingressado
inicialmente de forma lícita.
Tendo
em
vista
a
possibilidade
de
fracionamento
do
iter
criminis, sendo um delito
considerado
plurissubsistente,
é
perfeitamente admissível a
tentativa de violação de
domicílio na modalidade
entrar, não sendo possível
quando estivermos diante
do núcleo permanecer.
1
BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa, p. 380.
2
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VI, p. 218.
3
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 310.
4
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 173.
5
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VI, p. 207-208.
6
BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa, p. 374.
7
Conforme Nélson Hungria (Comentários ao código penal, v. VI, p. 212).
8
BITENCOURT, Cezar Roberto. Código penal comentado, p. 611.
9
JESUS, Damásio E. de. Código penal, v. 2, p. 267.
10
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado, p. 473.
11
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VI, p. 222.
12
BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa, p. 384.
13
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado, p. 474.
14
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal – Parte especial (arts. 121 a 160,
CP), p. 234.
15
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. II, p. 474.
16
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VI, p. 217.
17
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 177-178.
18
BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa, p. 375.
19
Uma análise aprofundada sobre o tema encontra-se no livro Abuso de Autoridade – Lei
13.869/2019 Comentada artigo por artigo, escrita em coautoria por Rogério Greco e
Rogério Sanches Cunha, editora JusPodivm.
20
COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Agressões à intimidade: o episódio Lady Di, p. 54.
Capítulo VIII
Dos Crimes contra a
Inviolabilidade de
Correspondência
1.
VIOLAÇÃO DE CORRESPONDÊNCIA
Violação de correspondência
Art. 151. Devassar indevidamente o
conteúdo
de
correspondência
fechada, dirigida a outrem:
Pena – detenção, de um a seis
meses, ou multa.
Sonegação ou destruição de
correspondência § 1º Na mesma
pena incorre:
I – quem se apossa indevidamente de
correspondência alheia, embora não
fechada e, no todo ou em parte, a
sonega ou destrói;
Violação
de
comunicação
telegráfica,
radioelétrica
ou
telefônica
II – quem indevidamente divulga,
transmite a outrem ou utiliza
abusivamente
comunicação
telegráfica ou radioelétrica dirigida a
terceiro, ou conversação telefônica
entre outras pessoas;
III – quem impede a comunicação ou
a conversação referidas no número
anterior;
IV – quem instala ou utiliza estação ou
aparelho
radioelétrico,
sem
observância de disposição legal. § 2º
As penas aumentam-se de metade,
se há dano para outrem.
§ 3º Se o agente comete o crime, com
abuso de função em serviço postal,
telegráfico, radioelétrico ou telefônico:
Pena – detenção, de um a três anos.
§ 4º Somente se procede mediante
representação, salvo nos casos do §
1º, IV, e do § 3º.
1.1
Notas explicativas
No capítulo correspondente aos direitos e garantias individuais
e coletivos, a Constituição Federal assevera, no inciso XII do seu
art. 5º:
XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das
comunicações telegráficas, de dados e das comunicações
telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas
hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de
investigação criminal ou instrução processual penal;
Percebe-se, portanto, ser um direito fundamental do ser
humano a liberdade de comunicação reservada, ou seja, não
destinada ao público em geral, por meio da qual o sujeito possa
exteriorizar seus sentimentos sem que, para tanto, qualquer pessoa,
que não aquela para qual é dirigida a correspondência, possa ter
conhecimento do seu conteúdo.
É preciso registrar, contudo, que o caput do art. 151 do Código
Penal foi revogado pela Lei nº 6.538, de 22 de junho de 1978, que
dispôs sobre os serviços postais. A doutrina, no entanto, analisa
essa revogação sob diversos aspectos.
Cezar Roberto Bitencourt, comentando o artigo em questão,
aduz:
“Em 1978, a Lei nº 6.538, de 22 de junho desse ano, que
disciplinou os serviços postais, revogou o caput do art. 151 e
seu § 1º, do CP, introduzindo o crime de quebra de segredo
profissional relativo a correspondência; revogou, parcialmente,
os arts. 293, I e II, e 303, ambos do CP. Finalmente, a Lei nº
6.538, de 22 de junho de 1978, passou a disciplinar o crime de
violação de correspondência e assemelhados, com o mesmo
conteúdo do preceito primário da redação anteriormente
revogada (art. 40), nos seguintes termos: ‘Devassar
indevidamente o conteúdo de correspondência fechada dirigida
a outrem’. Alterou, no entanto, a redação do § 1º, inciso I, do
mesmo artigo.
Equivocadamente, porém, os Códigos das principais editoras
do País, tais como Saraiva, Revista dos Tribunais, Forense,
entre outras, mantêm em seus textos, tanto nos Códigos
tradicionais quanto nos ‘anotados’, a redação do texto
revogado, induzindo gerações e gerações a erro. O crime antes
definido
como
de
‘sonegação
ou
destruição
de
correspondência’ deixou de ser um crime de conteúdo variado,
com a supressão das condutas ‘sonegar’ ou ‘destruir’,
passando a ser um crime de conduta única, ‘apossar-se’, as
outras duas condutas suprimidas constituem o elemento
subjetivo especial do tipo: ‘para sonegá-la ou destruí-la’ (art. 40,
§ 1º, I, da Lei nº 6.538/78). Assim, seria mais adequado definir
essa infração penal como crime de ‘apossamento de
correspondência’, terminologia que adotamos.”1
Luiz Regis Prado, tentando salvar aquele que já não pode mais
ser ajudado, procura identificar e separar as infrações penais por
diploma legal, afirmando:
“São as seguintes modalidades de delitos contra a
inviolabilidade de correspondência e das demais comunicações
previstos pelo Código Penal e pela legislação extravagante:
a) violação de correspondência fechada (art. 40, caput, Lei nº
6.538/78);
b) apossamento de correspondência para sonegação ou
destruição (art. 40, § 1º, Lei nº 6.538/78);
c) divulgação, transmissão ou utilização abusiva de
comunicação telegráfica, radioelétrica ou telefônica (art. 151, §
1º, II, CP);
d) impedimento de comunicação telegráfica, radioelétrica ou
telefônica (art. 151, § 1º, III, CP);
e) instalação ou utilização ilegal de estação ou aparelho
radioelétrico (art. 70, Lei nº 4.117/62);
f) desvio, sonegação, subtração, supressão ou revelação de
correspondência comercial (art.
152).”2
Apesar do esforço dos renomados autores para tentar aplicar
alguns incisos do § 1º do art. 151 do Código Penal, entendemos,
permissa vênia, equivocado tal sacrifício, uma vez que se o caput do
mencionado art. 151 foi revogado pelo art. 40 da Lei nº 6.538/78,
como é que poderiam subsistir, como se tivessem vida autônoma,
os seus parágrafos?
No caso em exame, podemos aplicar duas regras
fundamentais, trazidas a lume pela Lei Complementar nº 95, de 26
de fevereiro de 1998, que dispôs sobre a elaboração, a redação, a
alteração e a consolidação das leis, atendendo à determinação
contida no parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal.
A primeira delas, constante do art. 7º, inciso IV, da mencionada
lei complementar, determina:
Art. 7º O primeiro artigo do texto
indicará o objeto da lei e o respectivo
âmbito de aplicação, observados os
seguintes princípios:
I – [...];
II – [...];
III – [...];
IV – o mesmo assunto não poderá ser
disciplinado por mais de uma lei,
exceto quando a subsequente se
destine
a
complementar
lei
considerada básica, vinculando-se a
esta por remissão expressa.
A segunda regra, contida na Seção II do Capítulo II da referida
lei complementar, que cuida da articulação e da redação das leis,
determina, conforme se verifica nos incisos I e II do seu art. 10:
Art. 10. Os textos legais serão
articulados com observância dos
seguintes princípios:
I – a unidade básica de articulação
será
o
artigo,
indicado
pela
abreviatura
‘Art.’,
seguida
de
numeração ordinal até o nono e
cardinal a partir deste;
II – os artigos desdobrar-se-ão em
parágrafos ou em incisos; os
parágrafos em incisos, os incisos em
alíneas e as alíneas em itens.
E, ainda, a alínea c do inciso III do art. 11 da Lei Complementar
nº 95/98 completa o nosso raciocínio asseverando:
Art. 11. As disposições normativas
serão redigidas com clareza, precisão
e ordem lógica, observadas, para
esse propósito, as seguintes normas:
I – [...]; II – [...];
III – para obtenção de ordem lógica:
[...];
c) expressar por meio dos parágrafos
os aspectos complementares à norma
enunciada no caput do artigo e as
exceções
à
regra
por
este
estabelecida.
A aplicação dos parágrafos, além de estar completamente
inviabilizada pela ausência da norma principal, ou seja, o caput do
art. 151, ainda encontra outros problemas, a começar por não se
saber a pena cominada ao delito em estudo, quando praticado na
sua, em tese, modalidade fundamental.
Isso porque o § 1º do art. 151 do Código Penal inicia sua
redação dizendo: Na mesma pena incorre. Ora, pergunta-se: A que
pena se refere o mencionado parágrafo, uma vez que já não mais
existe aquela então prevista no preceito secundário do caput do
mencionado art. 151?
No que diz respeito à modalidade qualificada, prevista no § 3º
do art. 151 do Código Penal, ainda conseguimos descobrir a pena a
ela cominada, vale dizer, detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos.
Entretanto, a impossibilidade de aplicação do aludido parágrafo não
diz respeito à ausência de preceito secundário, mas, sim, à
impossibilidade de compreensão do preceito primário, que diz: Se o
agente comete o crime, com abuso de função em serviço postal,
telegráfico, radioelétrico ou telefônico.
A pergunta, agora, é a seguinte: A que crime se refere o § 3º,
uma vez que já não mais existe a infração penal até então tipificada
no caput do art. 151 do Código Penal?
Como se percebe sem muito esforço, é inútil qualquer tentativa
de aplicação dos parágrafos do art. 151 do Código Penal, em face
da ausência de definição do comportamento típico principal.
Assim, os comportamentos anteriormente previstos no art. 151
do diploma repressivo, para que possam ser considerados típicos,
deverão se amoldar a qualquer uma das figuras que lhes são
equivalentes, constantes da Lei nº 4.117, de 27 de agosto de 1962,
que institui o Código Brasileiro de Telecomunicações, ou da Lei nº
6.538, de 22 de junho de 1978, que dispõe sobre os serviços
postais, além da Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996, que
regulamenta o inciso XII, parte final, do art. 5º da Constituição
Federal.
Entretanto, faremos a análise dos elementos integrantes da
figura típica revogada juntamente com seus parágrafos, a fim de que
o leitor possa utilizá-la nas leis especiais que regularam a matéria.
1.2
Introdução
O preceito primário do art. 40 da Lei nº 6.538, de 22 de junho de
1978, possui redação idêntica ao revogado art. 151, verbis:
Art. 40. Devassar, indevidamente o
conteúdo de correspondência fechada
dirigida a outrem:
Pena – detenção, até 6 (seis) meses,
ou pagamento não excedente a 20
(vinte) dias-multa.
Embora seja idêntica à do art. 151 do Código Penal a conduta
narrada no preceito primário do art. 40 da Lei nº 6.538/78, essa
identidade, contudo, não ocorre no que diz respeito à pena a ele
cominada. O art. 151 do Código Penal, na sua extinta modalidade
fundamental, previa uma pena de detenção, de 1 (um) a 6 (seis)
meses, ou multa, enquanto o art. 40 da Lei que dispôs sobre os
serviços postais não indicou o limite mínimo, da mesma forma que
limitou a aplicação da pena pecuniária a, no máximo, 20 (vinte) diasmulta.
Analisando seus elementos típicos, a começar pelo seu núcleo,
concluímos que devassar significa tomar conhecimento total ou
parcialmente, expor a descoberto, tornar conhecido o conteúdo de
correspondência fechada, dirigida a outrem, não havendo
necessidade de que a correspondência seja aberta ou danificada.
Basta que o agente tenha tido conhecimento do seu conteúdo, a
exemplo daquele que a coloca sob um facho de luz, possibilitando a
leitura, mesmo que parcial, do seu conteúdo.
Cezar Roberto Bitencourt esclarece, ainda:
“Não é imprescindível que o sujeito leia, sendo escrita, a
correspondência alheia; é suficiente que tome conhecimento do
seu conteúdo, ou seja, o sujeito ativo comete o crime tanto
quando abre a correspondência como quando faz sua leitura
utilizando-se de aparelhagem técnica especial. Caso contrário,
lembra Damásio de Jesus, o cego e o analfabeto não poderiam
praticar esse crime, a despeito de, acrescentamos, abrirem e
terem ciência de seu conteúdo. A lei não estabelece os meios
ou formas pelos quais a correspondência pode ser violada;
logo, estamos diante de crime de forma livre, e, ante o avanço
tecnológico, a devassa de correspondência pode ser realizada
das mais diversas maneiras, inclusive sem abrir o invólucro
onde aquela se encontra (com raios de luz, raio laser etc.).”3
Por correspondência entende-se, conforme a tradução dada
pelo art. 47 da Lei nº 6.538/78, ser toda comunicação de pessoa a
pessoa, por meio de carta, através da via postal, ou por telegrama.
A correspondência a que alude o artigo é aquela fechada, cujo
conteúdo é preservado do conhecimento das demais pessoas que
não sejam o seu destinatário, não correspondência aberta, pois,
sendo assim enviada, presume-se que o seu conteúdo possa ser
conhecido por todos, a não ser que o fato se amolde, por exemplo, à
hipótese do inciso I, do § 1º do art. 151 do Código Penal, quando
então poderá o agente ser responsabilizado pela sonegação ou
destruição de correspondência. Caso o agente leve a efeito tão
somente a leitura de correspondência aberta, o fato será atípico, se
não sonegá-la a quem de direito ou, mesmo, destruí-la.
O devassamento deve ser efetuado indevidamente, vale dizer,
sem o consentimento de quem de direito, ou fora das hipóteses em
que o agente atua amparado por uma causa de justificação, uma
vez que o termo indevidamente nos fornece a ideia de
comportamento ilícito.
A correspondência deve ter sido dirigida a outrem, ou seja,
deve ter sido indicado o seu destinatário. Afirma Hungria: “Se não é
sobrescritada a pessoa alguma, ou o endereço não permite a
identificação de pessoa certa, não incide sob a tutela penal.”4
1.3
Classificação doutrinária
Crime comum em relação ao sujeito ativo, bem como quanto ao
sujeito passivo; doloso; de mera conduta; de forma livre; comissivo
ou comissivo por omissão (desde que o agente se encontre na
posição de garantidor); monossubjetivo; plurissubsistente;
instantâneo, podendo ser de efeitos permanentes na hipótese de
destruição; de dupla subjetividade passiva (pois tanto o remetente
quanto o destinatário são considerados sujeitos passivos do delito
em tela).
1.4
Objeto material e bem juridicamente protegido
Considerando a antiga localização do revogado art. 151 do
Código Penal, podemos concluir que o tipo de violação de
correspondência tem, em sentido amplo, como bem juridicamente
protegido a liberdade individual e, mais especificamente, a
inviolabilidade do sigilo da correspondência, conforme se verifica
pela redação contida no atual art. 40 da Lei nº 6.538/78. A própria
Constituição Federal, no seu capítulo correspondente aos direitos e
deveres individuais e coletivos, disse, na primeira parte do inciso XII
do seu art. 5º, ser inviolável o sigilo da correspondência.
A correspondência é o objeto material do delito em estudo, uma
vez que a conduta do agente é dirigida finalisticamente a devassála, ou seja, a tomar conhecimento total ou parcialmente do seu
conteúdo.
1.5
Sujeito ativo e sujeito passivo
Qualquer pessoa pode praticar o delito tipificado no art. 40 da
Lei nº 6.538/78, à exceção, obviamente, do remetente e do próprio
destinatário, pois não se pode, no caso do remetente, devassar o
conteúdo que ele próprio consignou, bem como o destinatário não o
faz indevidamente, como exige o tipo penal, uma vez que a
correspondência é a ele dirigida.
Contudo, tanto o remetente como o destinatário são
considerados sujeitos passivos do delito em estudo, uma vez que
ambos sofrem com a conduta levada a efeito pelo agente, quando
este devassa, indevidamente, conteúdo de correspondência fechada
confeccionada por um (remetente) e dirigida ao outro (destinatário).
Merece destaque o fato de que para aqueles que entendem
pela não revogação dos parágrafos constantes do art. 151 do
Código Penal, na modalidade qualificada de violação de
correspondência, sujeito ativo somente será aquele que exercer
função em serviço postal, telegráfico, radioelétrico ou telefônico,
sendo, dessa forma, considerado delito próprio.
De outro lado, para aqueles que entendem pela revogação de
todos os parágrafos do art. 151 do Código Penal, pois seria
impossível sua manutenção depois da revogação do caput do
mencionado artigo, sendo cometido o delito tipificado no art. 40 da
Lei nº 6.538/78 (violação de correspondência) por pessoa que tenha
se prevalecido do cargo, ou com abuso da função, a pena deverá
ser agravada nos termos do art. 43 da referida lei que dispôs sobre
os serviços postais.
1.6
Sonegação ou destruição de correspondência e violação
de comunicação telegráfica, radioelétrica ou telefônica
O § 1º do art. 151 do Código Penal disse que também incorreria
nas penas correspondentes à violação de correspondência:
I – quem se apossa indevidamente de
correspondência alheia, embora não
fechada e, no todo ou em parte, a
sonega ou destrói;
II – quem indevidamente divulga,
transmite a outrem ou utiliza
abusivamente
comunicação
telegráfica ou radioelétrica dirigida a
terceiro, ou conversação telefônica
entre outras pessoas;
III – quem impede a comunicação ou
a conversação referidas no número
anterior;
IV – quem instala ou utiliza estação ou
aparelho
radioelétrico,
sem
observância de disposição legal.
Para que o estudo de cada uma das hipóteses seja mais bem
compreendido, mesmo que sucintamente, elas serão analisadas em
seguida.
O § 1º do art. 40 da Lei nº 6.538/78 modificou a redação original
do inciso I do § 1º do art. 151 do Código Penal, dizendo, verbis:
§ 1º Incorre nas mesmas penas quem
se
apossa
indevidamente
de
correspondência alheia, embora não
fechada, para sonegá-la ou destruí-la,
no todo ou em parte.
Com a nova redação, basta que o agente tenha se apossado
indevidamente de correspondência alheia, mesmo aberta, com o fim
de sonegá-la ou destruí-la, no todo ou em parte. Como se percebe,
levando-se a efeito uma comparação entre os dois parágrafos, a
nova redação dada, com a inclusão do chamado especial fim de
agir, transformou o fato em delito de natureza formal. Assim, basta
que o agente tenha se apossado indevidamente de correspondência
alheia, mesmo não fechada, com o fim de sonegá-la ou destruí-la,
para que a infração penal reste caracterizada, não necessitando sua
configuração caso tenha ela sido efetivamente sonegada ou
destruída. Sonegar, no sentido empregado pela lei penal, deve ser
entendido como fazer com que a correspondência não chegue ao
conhecimento do destinatário; destruir deve ser compreendido como
inutilizar, total ou parcialmente, a correspondência.
Os incisos II e III do § 1º do art. 151 do Código Penal dizem
respeito à divulgação, transmissão a outrem, utilização ou
impedimento de comunicação telegráfica ou radioelétrica ou
conversação telefônica.
Prima facie, merece ser destacado que, tendo em vista a Lei nº
9.296/1996, que regulamentou o inciso XII, parte final, do art. 5º da
Constituição Federal, entende-se como revogada a última parte do
inciso II do § 1º do art. 151 do Código Penal, no que diz respeito às
conversações telefônicas, aplicando-se, outrossim, o art. 10 do
diploma penal especial, que diz:
Art. 10. Constitui crime realizar
interceptação
de
comunicações
telefônicas,
de
informática
ou
telemática, ou quebrar segredo de
Justiça, sem autorização judicial ou
com objetivos não autorizados em lei:
Pena: reclusão, de 2 (dois) a 4
(quatro) anos, e multa.
Ney Moura Teles, interpretando os incisos em estudo,
preleciona:
“São definidas as seguintes condutas proibidas: impedir,
divulgar e transmitir, ou utilizar abusivamente comunicação
telegráfica ou radioelétrica.
Impedir é interromper, obstar. Divulgar é dar conhecimento da
comunicação ao público. Transmitir é narrá-la a uma terceira
pessoa, determinada. Utilizar abusivamente é dela se servir
para qualquer fim indevido. Será sempre comissiva a conduta.
Comunicação telegráfica é aquela feita através de sinalização
elétrica ou radioelétrica a ser convertida, depois, em
comunicação escrita que será entregue ao destinatário.”5
A última hipótese, ou seja, a instalação ou a utilização de
aparelho radioelétrico sem observância de disposição legal, foi
prevista pelo art. 70 da Lei nº 4.117, de 27 de agosto de 1962, que
instituiu o Código Brasileiro de Telecomunicações, verbis:
Art. 70. Constitui crime punível com a
pena de detenção de 1 (um) a 2 (dois)
anos, aumentada da metade se
houver dano a terceiro, a instalação
ou utilização de telecomunicações,
sem observância do disposto nesta
Lei e nos regulamentos.
1.7
Consumação e tentativa
Cada uma das infrações penais previstas pelo art. 151 do
Código Penal, bem como pela legislação extravagante (Lei nº
6.538/78 e Lei nº 4.117/62), possui momentos consumativos
diferentes.
Assim, no que diz respeito à figura contida no caput do art. 151
do Código Penal, cuja redação é idêntica àquela contida no art. 40
da Lei nº 6.538/78, o delito se consuma quando, efetivamente, o
agente tomar conhecimento do conteúdo, total ou parcialmente, de
correspondência fechada dirigida a outrem. A tentativa é admissível
quando, por exemplo, o agente é impedido de tomar conhecimento
do conteúdo da correspondência fechada, quando já havia
posicionado o estilete para abri-la.
Quanto ao inciso I do § 1º do art. 151, considerando-se a nova
redação trazida pelo § 1º do art. 40 da Lei nº 6.538/78, entendemos
que basta que o agente tenha se apossado indevidamente de
correspondência alheia, embora não fechada, com o fim de sonegála ou destruí-la. É suficiente, portanto, o ato de se apossar com o
intuito de sonegar ou destruir a correspondência alheia. Caso
consiga efetivamente o seu intento, por exemplo, na hipótese de
destruição da correspondência, tal fato será visto como mero
exaurimento do crime, em face de sua natureza formal, sendo
considerado, de acordo com a redação típica, como um delito de
consumação antecipada, bastando a prática da conduta prevista no
núcleo do tipo para que a infração penal reste consumada. Apesar
da natureza formal do delito, também podemos raciocinar em
termos de tentativa, desde que, no caso concreto, se possa
fracionar o iter criminis. Assim, pode ser responsabilizado, a título de
tentativa, aquele que, dirigindo finalisticamente sua conduta no
sentido de se apossar de correspondência alheia com o fim de
sonegá-la ou destruí-la, é impedido por terceiros.
Nos incisos II e III do § 1º do art. 151 do Código Penal, a
consumação ocorre quando o agente, efetivamente, divulga,
transmite a outrem, utiliza abusivamente ou impede a comunicação
ou a conversação telefônica, telegráfica ou radioelétrica. Também é
admissível a tentativa, uma vez que se pode considerar todas as
hipóteses catalogadas como delitos plurissubsistentes, cujos atos
podem ser fracionados.
A última hipótese, prevista no art. 70 do Código Brasileiro de
Telecomunicações, que revogou o inciso IV do § 1º do art. 151 do
Código Penal, se consuma quando o agente instala ou utiliza
telecomunicações, sem observância do disposto na Lei nº 4117/62 e
nos regulamentos pertinentes. Também se pode raciocinar sobre a
possibilidade de tentativa.
1.8
Modalidade qualificada
Diz o § 3º do art. 151 do Código Penal:
§ 3º Se o agente comete o crime, com
abuso de função em serviço postal,
telegráfico, radioelétrico ou telefônico:
Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três)
anos.
Há controvérsia doutrinária sobre a possível revogação do § 3º
do art. 151 do Código Penal.
Luiz Regis Prado, posicionando-se pela revogação, afirma:
“A qualificadora ancorada no art. 151, § 3º, do Código Penal,
encontra-se inteiramente revogada. Havendo abuso por parte
de funcionário de telecomunicações, será aplicável o art. 58 da
Lei nº 4.117/62; nas demais hipóteses (art. 40, caput e § 1º, Lei
nº 6.538/78), o funcionário incorrerá no disposto no art. 43 da
Lei de Serviços Postais.”6
Em sentido contrário, concluindo pela vigência do artigo,
preleciona Mirabete:
“Decidiu-se que não foi extinto pelo crime de abuso de
autoridade, previsto no art. 3º, c, da Lei nº 4.898/657, que trata
do atentado ao sigilo de correspondência, o crime de violação
de correspondência previsto no art. 151, § 3º, do CP. Nem todo
funcionário pode ser considerado autoridade, no conceito penal,
pelo que é lícito distinguir o crime praticado com abuso de
função do de abuso de autoridade (RT 527/405, 439/405).
Necessário, porém, é verificar-se se não ocorrem os crimes
previstos no art. 41 e seus incisos, da Lei nº 6.538, ou no art. 58
e seus incisos, da Lei nº 4.117, com a redação determinada pelo
Decreto-Lei nº 236.”8
Pará nós, como já afirmamos em notas explicativas, o art. 151
do Código Penal está revogado, pois a falta de caput gera um
defeito irremediável com relação aos seus parágrafos.
1.9
Causa de aumento de pena
Preconiza o § 2º do art. 151 do Código Penal:
§ 2º As penas aumentam-se de
metade, se há dano para outrem.
Ab initio, para aqueles que entendem pela aplicação do art. 151
do Código Penal, a causa de aumento de pena nele prevista
somente poderá ter aplicação ao caput e às hipóteses elencadas no
§ 1º, em face da situação topográfica do § 2º.
Isso quer dizer que a majorante não terá aplicação no que
concerne à modalidade qualificada prevista pelo § 3º do
mencionado artigo.
O dano mencionado pelo parágrafo transcrito pode ser de
natureza material ou, mesmo, moral.
1.10
Elemento subjetivo
Tanto no Código Penal quanto na legislação extraordinária, o
dolo é o elemento subjetivo inerente a todas as infrações penais,
não se admitindo, aqui, a punição por qualquer comportamento
praticado a título de culpa.
Assim, por exemplo, aquele que, por descuido, toma
conhecimento do conteúdo de correspondência fechada dirigida a
outrem não pode ser responsabilizado criminalmente a qualquer
título.
1.11
Pena e ação penal
O art. 40 da Lei nº 6.538/78, que revogou o art. 151 do Código
Penal, comina uma pena de detenção, de até 6 (seis) meses, ou
pagamento não excedente a 20 (vinte) dias-multa. Deve ser frisado
que, pela redação original do art. 151 do Código Penal, a pena
cominada ao delito de violação de correspondência era de
detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa. Comparativamente,
a lei que dispôs sobre os serviços postais pode ser considerada
uma novatio legis in melius, pelo menos no que diz respeito ao
caput do art. 40.
Isso porque, ao contrário do Código Penal, a lei não especificou
a quantidade mínima de pena a ser aplicada, podendo, dessa forma,
ser até mesmo de um dia. Além disso, determinou a lei especial que
a pena pecuniária poderá ser aplicada no máximo em 20 (vinte)
dias-multa, limitação não existente no Código Penal.
Se entendermos pela revogação do caput do art. 151 do Código
Penal pelo art. 40 da Lei nº 6.538/78, bem como se levarmos em
consideração que, na verdade, a cabeça do artigo constante do
Código Penal fora substituída, para fins de aplicação do seu
parágrafo primeiro, teremos que raciocinar com as penas cominadas
ao art. 40 da Lei nº 6.538/78, no que diz respeito aos incisos I, II e III
do § 1º do art. 151 do Código Penal.
Excepcionam-se, aqui, ainda, as penas consignadas no art. 70
da Lei nº 4.117/62 (Código Brasileiro de Telecomunicações) –
detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos –, e art. 10 da Lei nº 9.296/96
(Interceptação telefônica) – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e
multa.
A ação penal nos crimes de violação de correspondência e de
sonegação ou destruição de correspondência (art. 40 e § 1º da Lei
nº 6.538/78) é de iniciativa pública incondicionada, haja vista que a
lei que dispôs sobre os serviços postais não exigiu, ao contrário do
Código Penal, a representação.
No que diz respeito à violação de comunicação telegráfica e
radioelétrica, que se encontra tipificada nos incisos II e III do § 1º do
art. 151 do Código Penal, a ação penal é de iniciativa pública
condicionada à representação, salvo a interceptação telefônica, cuja
ação é de iniciativa pública incondicionada.
A ação penal prevista para o crime tipificado no art. 70 da Lei nº
4.117/62, que revogou o inciso IV do § 2º do art. 151 do Código
Penal, é de iniciativa pública incondicionada.
Finalmente, no § 3º do art. 151 do Código Penal, que prevê a
modalidade qualificada, nos termos do § 4º do mesmo artigo, a ação
é de iniciativa pública incondicionada.
1.12
1.12.1
Destaques
Interceptação de correspondência de presos
A Constituição Federal, no Capítulo correspondente aos direitos
e deveres individuais e coletivos, inserido no Título II, que diz
respeito aos Direitos e Garantias Fundamentais, no inciso XII do seu
art. 5º, afirma:
XII – é inviolável o sigilo da
correspondência e das comunicações
telegráficas, de dados e das
comunicações telefônicas, salvo, no
último caso, por ordem judicial, nas
hipóteses e na forma que a lei
estabelecer para fins de investigação
criminal ou instrução processual
penal.
À primeira vista, poderíamos interpretar a redação
constitucional no sentido de somente ter havido ressalva para a
possibilidade de se quebrar o sigilo das comunicações telefônicas,
por meio de ordem judicial, nos casos apontados pelo texto
constante do mencionado inciso, ficando impossibilitada, entretanto,
qualquer quebra de sigilo nas demais situações, mantendo-se,
assim, regra absoluta para a inviolabilidade do sigilo da
correspondência e das comunicações telegráficas e de dados.
Dessa forma, como ficaria, por exemplo, o caso das
interceptações de correspondências de presos, e até mesmo na
hipótese em que o agente figurasse na condição de acusado em
uma ação penal?
O Código de Processo Penal, em várias passagens, menciona
a possibilidade de apreensão de cartas ou documentos. Assim,
asseveram os seus arts. 240, § 1º, f, e 243, § 2º, verbis:
Art. 240. A busca será domiciliar ou
pessoal.
§ 1º Proceder-se-á à busca domiciliar,
quando fundadas razões a autorizem,
para:
[...];
f) apreender cartas, abertas ou não,
destinadas ao acusado ou em seu
poder, quando haja suspeita de que o
conhecimento do seu conteúdo possa
ser útil à elucidação do fato.
Art. 243. [...].
§ 1º [...].
§ 2º Não será permitida a apreensão
de documento em poder do defensor
do acusado, salvo quando constituir
elemento do corpo de delito.
E, ainda, embora o inciso XV do art. 41 da Lei de Execução
Penal afirme ser direito do preso o contato com o mundo exterior por
meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de
informação que não comprometam a moral e os bons costumes,
ressalva, em seu parágrafo único, a possibilidade de suspensão ou
restrição desse direito mediante ato motivado do diretor do
estabelecimento.
Cezar Roberto Bitencourt, interpretando o dispositivo
constitucional que fundamenta e permite, segundo o renomado
autor, tão somente a quebra do sigilo telefônico, conclui:
“Todas as exceções ou autorizações legais relativas à
inviolabilidade
do
sigilo
de
correspondência
são
inconstitucionais.
Nesse
sentido,
são
absolutamente
inconstitucionais os arts. 240, § 1º, letra f, e 243, § 2º, do
Código de Processo Penal. Sob o império da nova ordem
constitucional, nenhuma espécie de ‘fundadas razões’ autoriza,
legitimamente, a ‘apreender cartas, abertas ou não, destinadas
ao acusado ou em seu poder’ (art. 240, § 1º, f), independente
da natureza suspeita (ou mesmo certeza) ou do conteúdo da
correspondência. Na verdade, esse dispositivo foi derrogado
pela Constituição Federal de 1988, art. 5º, inciso XII, 1a parte.
Assim, toda e qualquer apreensão de correspondência, com
fundamento nesse dispositivo, é inconstitucional e, como tal,
constitui prova ilícita, como ocorreu no famoso caso do exPresidente do Banco Central, Prof. Francisco Lopes,
independentemente de os poderes constituídos reconhecerem
essa aleivosia. Por outro lado, a previsão do art. 243, § 2º do
CPP é duplamente inconstitucional: primeiro porque fere o
princípio da ampla defesa (art. 5º, inciso LV), e segundo porque
afronta a inviolabilidade do advogado no exercício profissional
(art. 133).”9
Apesar da força do raciocínio do eminente professor gaúcho, a
doutrina majoritária, bem como os Tribunais Superiores, tem-se
posicionado favoravelmente à quebra também do sigilo da
correspondência, sob o argumento de que não existem direitos
absolutos. Dessa forma, mesmo que não tenha havido ressalva
constitucional no sentido de permitir a quebra do sigilo da
correspondência, tal comportamento poderá ser permitido e
motivado por interesses de ordem pública, que se sobrepõem aos
do sujeito que vê quebrado o direito de inviolabilidade da sua
correspondência.
Nesse sentido, afirma Capez:
“Com base no princípio de que nenhuma liberdade individual é
absoluta, conforme já mencionado, e observados os requisitos
constitucionais e legais, é possível a interceptação das
correspondências e das comunicações telegráficas e de dados,
sempre que as liberdades públicas forem utilizadas como
instrumento de salvaguarda de práticas ilícitas. Em tais casos,
não sendo indevida a violação da comunicação, não há que se
falar na configuração de um dos crimes contra a inviolabilidade
de correspondência.”10
Como se percebe, a questão é extremamente delicada. Por um
lado, temos o interesse público, que deve ser resguardado; por
outro, um direito entendido como fundamental pela própria
Constituição Federal.
No confronto entre a necessidade que o Estado tem de evitar
infrações penais que coloquem em risco a vida, a saúde, enfim, os
bens mais importantes e necessários à manutenção da própria
sociedade e o direito à privacidade inerente a todo cidadão,
acreditamos que o interesse particular deva ceder, a fim de que
sejam preservados os direitos de muitos.
Nesse sentido, a Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019,
modificando o art. 52 da LEP, disse expressamente em seu inciso
VI:
Art. 52. A prática de fato previsto
como crime doloso constitui falta
grave e, quando ocasionar subversão
da ordem ou disciplina internas,
sujeitará o preso provisório, ou
condenado, nacional ou estrangeiro,
sem prejuízo da sanção penal, ao
regime disciplinar diferenciado, com
as seguintes características:
(...)
VI – fiscalização do conteúdo da
correspondência;
1.12.2
Violação de correspondência entre marido e mulher
Questão que merece reflexão mais aprofundada diz respeito à
possibilidade de ocorrer o delito de violação de correspondência
entre marido e mulher, ou mesmo entre pessoas que, embora não
tenham, ainda, contraído matrimônio, vivem uma união estável.
Poderia o marido ou a mulher abrir a correspondência do outro,
até mesmo contra a vontade expressa daquele para o qual fora
enviada?
Nelson Hungria posiciona-se contrariamente à possibilidade de
incriminação da violação de correspondência entre marido e mulher
dizendo:
“A violação de correspondência, em tal hipótese, não constitui
crime algum, não passando o fato, num caso ou noutro, de
simples indelicadeza. A comunhão de vida que decorre do
casamento (art. 231, nº II, do Cód. Civ.)11 não permite,
evidentemente, que se considere alheia a um dos cônjuges a
correspondência do outro. Os cônjuges, na bela expressão do
direito canônico, são duo in carne uma. Há, entre eles,
incontestavelmente, uma faculdade de mútua sindicância. Não
podem eles vedar-se reciprocamente a abertura e leitura das
respectivas correspondências. Se isto não está dito com todas
as letras na lei civil, está inquestionavelmente implícito no seu
texto. Somente por motivos inconfessáveis (ilícitos ou imorais)
pode querer o cônjuge sonegar a própria correspondência ao
conhecimento do outro, e muito acima dessa pretendida
faculdade está o interesse de preservação do espírito de
unidade e segurança da vida conjugal ou da irrestrita intimidade
doméstica.”12
Em sentido contrário, afirma Bento de Faria, criticando a
posição assumida por Hungria, que a inviolabilidade da
correspondência é “um dogma absoluto que, por sua clareza, não
comporta nem interpretações, nem exceções, nem restrições.
Contra ele ninguém pode pretender direitos; nenhuma lei lhe pode
ser oposta.”13
Entendemos que a razão se encontra com Hungria. Entre o
casal não há segredos, ou pelo menos não pode haver. Não existe
fundamento para que um cônjuge se preserve com relação ao outro,
razão pela qual o seu comportamento não se amolda à figura típica
que pressupõe a conduta de devassar indevidamente o conteúdo de
correspondência fechada, pois, numa relação conjugal, tudo deve
ser compartilhado, não existindo a figura do meu, mas sim a do
nosso.
1.12.3
Crime impossível
Imagine-se a hipótese daquele que, almejando devassar
indevidamente o conteúdo de correspondência fechada dirigida a
outrem, ao abri-la, verifica que se trata de uma carta escrita em
língua estrangeira, sendo que o agente não tem a menor
possibilidade de tomar conhecimento do seu conteúdo.
Hungria discute essa hipótese concluindo que ao caso deveria
ser aplicado o raciocínio correspondente ao crime impossível:
“Se a correspondência é escrita em cifra ou em idioma
desconhecido do agente, e este não dispõe de quem possa
decifrá-la ou traduzi-la, o que ocorre é uma tentativa
inadequada
de
devassamento,
sem
prejuízo
da
responsabilidade por outro título (como quando haja sonegação
ou destruição da correspondência ininteligível para o agente). O
mesmo se deve dizer no caso de ser o agente cego ou
analfabeto, que não tenha a coparticipação de um vidente ou
letrado.”14
Aqui, vale a ressalva feita por Cezar Roberto Bitencourt no
tópico correspondente à introdução, quando afirma que não há
necessidade de que o agente leia a correspondência quando
escrita. Entretanto, mesmo que não a tenha lido, para que se possa
configurar a infração penal é preciso que, ao menos, tenha tido essa
possibilidade, pois, caso contrário, como no exemplo citado por
Hungria, se o agente não tinha a menor possibilidade de ter
conhecimento do conteúdo da correspondência, como no caso da
carta escrita, v.g., em árabe, para quem desconhece completamente
essa língua, o fato deverá ser tratado como crime impossível.
1.12.4
Violação de correspondência e Código Penal Militar
O crime de violação de correspondência também veio previsto
no Código Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de
1969), conforme se verifica pela leitura do seu art. 227.
1.13
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
»
Ativo: qualquer pessoa, à
exceção, obviamente, do
remetente e do próprio
destinatário.
Passivo:
remetente
e
destinatário.
OBS.: merece destaque o
fato de que para aqueles
que entendem pela não
revogação dos parágrafos
constantes do art. 151 do
CP,
na
modalidade
qualificada de violação de
correspondência,
sujeito
ativo somente será aquele
que exercer função em
serviço postal, telegráfico,
radioelétrico ou telefônico,
sendo,
dessa
forma,
considerado delito próprio.
»
De outro lado, para aqueles
que
entendem
pela
revogação de todos os
parágrafos do art. 151 do
CP, pois seria impossível
sua manutenção depois da
revogação do caput do
mencionado artigo, sendo
cometido o delito tipificado
no
art.
40
da
Lei
6.538/1978 (violação de
correspondência)
por
pessoa que tenha se
prevalecido do cargo, ou
com abuso da função, a
pena deverá ser agravada
nos termos do art. 43 da
referida lei que dispôs
sobre os serviços postais.
Objeto material
A correspondência.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
A liberdade individual e, mais
especificamente,
a
inviolabilidade do sigilo da
correspondência.
Elemento subjetivo
»
»
É o dolo direto ou eventual.
Não se admite, aqui, a
punição
por
qualquer
comportamento praticado a
título de culpa.
Consumação e tentativa
»
»
Cada uma das infrações
penais previstas pelo art.
151 do CP, bem como pela
legislação
extravagante
(Lei 6.538/1978 e Lei
4.117/1962),
possui
momentos
consumativos
diferentes.
No que diz respeito à figura
contida no caput do art.
151 do CP, cuja redação é
idêntica àquela contida no
art. 40 da Lei 6.538/1978, o
delito se consuma quando,
efetivamente, o agente
tomar conhecimento do
conteúdo,
total
ou
parcialmente,
de
»
correspondência fechada
dirigida
a
outrem.
A
tentativa é admissível.
Quanto ao inc. I do § 1º do
art.
151
do
CP,
considerando-se a nova
redação trazida pelo § 1º
do
art.
40
da
Lei
6.538/1978,
entendemos
que basta que o agente
tenha
se
apossado
indevidamente
de
correspondência
alheia,
embora não fechada, com
o fim de sonegá-la ou
destruí-la. Caso consiga
efetivamente o seu intento,
por exemplo, na hipótese
de
destruição
da
correspondência, tal fato
será visto como mero
exaurimento do crime, em
»
face de sua natureza
formal, sendo considerado,
de acordo com a redação
típica, como um delito de
consumação
antecipada,
bastando a prática da
conduta prevista no núcleo
do tipo para que a infração
penal reste consumada.
Apesar da natureza formal
do delito, também podemos
raciocinar em termos de
tentativa, desde que, no
caso concreto, se possa
fracionar o iter criminis.
Nos incs. II e III do § 1º do
art.
151
do
CP,
a
consumação
ocorre
quando
o
agente,
efetivamente,
divulga,
transmite a outrem, utiliza
abusivamente ou impede a
»
comunicação
ou
a
conversação
telefônica,
telegráfica ou radioelétrica.
Também é admissível a
tentativa.
A última hipótese, prevista
pelo art. 70 do Código
Brasileiro
de
Telecomunicações,
que
revogou o inc. IV do § 1º do
art. 151 do CP, se consuma
quando o agente instala ou
utiliza
telecomunicações,
sem
observância
do
disposto na Lei 4.117/1962
e
nos
regulamentos
pertinentes. Também se
pode raciocinar sobre a
possibilidade de tentativa.
2.
CORRESPONDÊNCIA COMERCIAL
Correspondência comercial Art.
152. Abusar da condição de sócio ou
empregado
de
estabelecimento
comercial ou industrial para, no todo
ou em parte, desviar, sonegar, subtrair
ou suprimir correspondência, ou
revelar a estranho seu conteúdo:
Pena – detenção, de três meses a
dois anos.
Parágrafo único. Somente se
procede mediante representação.
2.1
Introdução
O art. 152 do Código Penal possui natureza especial
comparativamente às demais infrações penais cuja finalidade é
proteger a inviolabilidade do sigilo da correspondência.
Com a rubrica correspondência comercial, o art. 152 do Código
Penal pune aquele que abusa da condição de sócio ou empregado
de estabelecimento comercial ou industrial para, no todo ou em
parte, desviar, sonegar, subtrair ou suprimir correspondência, ou
revelar a estranho seu conteúdo.
Noronha esclarece que a correspondência comercial:
“É a última espécie dos delitos contra a inviolabilidade de
correspondência. É a comercial que aqui se tutela, devendo
entender-se por isso, nos termos do dispositivo, tanto a
pertencente a estabelecimento comercial como a industrial e
constituída por contas, faturas, cartas etc. Estabelecimento é o
lugar onde se realiza a atividade comercial ou industrial, é o
escritório, a loja, a fábrica e semelhantes.”15
Busca-se, com ele, proteger o sigilo indispensável, muitas
vezes, ao sucesso das empresas comerciais. Há uma quebra na
relação de confiança que se cria entre os sócios ou empregados
com o estabelecimento comercial ou industrial, que pode ser
prejudicado, por exemplo, com a revelação a estranhos do conteúdo
de correspondência que lhe é própria.
Conforme salienta Aníbal Bruno:
“O agente realiza o fato punível abusando da sua condição de
sócio ou empregado do estabelecimento. Trata-se de crime
especial. Só pode praticá-lo quem tenha essa qualidade de
empregado ou de sócio, qualquer que ele seja e qualquer que
seja a relação das suas funções com a correspondência. É
essa condição que atribui particular reprovabilidade ao fato e
justifica a severidade da punição.
Mas o que apoia a incriminação não é a simples inviolabilidade
que se deve assegurar ao conteúdo da comunicação ou a
garantia de que ela siga o destino previsto. É a possibilidade de
dano à empresa ou a terceiro. Se não há dano algum a temer, o
fato não será punível.”16
O tipo do art. 152 do Código Penal prevê uma série de
comportamentos que, se praticados, poderão configurar o delito em
análise.
Inicialmente, a lei penal fala em abusar, aqui utilizado no
sentido de se valer indevidamente da condição de sócio ou
empregado de estabelecimento comercial ou industrial. Ou seja, a
empresa deposita confiança naqueles que, em tese, concentram
seus esforços para que ela possa ter sucesso, progredir, crescer.
Existe, portanto, um dever de lealdade, de fidelidade, no qual deve
reinar a confiança. Pode, entretanto, essa confiança ser quebrada,
surgindo, daí, a situação de abuso.
Como se percebe pela redação da figura típica, o abuso
praticado pelo sócio ou empregado é dirigido no sentido de desviar,
sonegar, subtrair ou suprimir correspondência, ou ainda, revelar a
estranho o seu conteúdo. Aqui, vale a ressalva levada a efeito por
Aníbal Bruno de que somente aquele comportamento que tiver
alguma potencialidade de dano à empresa comercial ou industrial é
que poderá ser considerado típico.
Assim, não é, por exemplo, qualquer revelação de
correspondência que deverá ser entendida como criminosa, mas tão
somente aquela com o potencial de causar danos à empresa.
Revelar a alguém uma correspondência recebida pela empresa que
continha um anúncio imobiliário não lhe causa qualquer dano. Ao
contrário, mostrar a terceiros uma correspondência dirigida à
empresa que continha as novas regras a serem aplicadas em sua
campanha publicitária já pode prejudicá-la com relação à
concorrência, que dela tomará conhecimento, de antemão, e assim
poderá se mobilizar contrariamente.
Conjugado ao núcleo abusar, a lei penal aduz outros que dizem
respeito ao especial fim de agir do agente. Dessa forma, o abuso
pode ser dirigido a: desviar, sonegar, subtrair ou suprimir
correspondência, ou revelar a estranho o seu conteúdo.
Desviar deve ser compreendido no sentido de alterar o destino,
desencaminhar; sonegar, como ocultar, encobrir, esconder; subtrair
no sentido de tomar para si, retirar; suprimir entendido como fazer
desaparecer a correspondência; e revelar quando o agente torna
conhecido, divulga o conteúdo da correspondência a estranho.
2.2
Classificação doutrinária
Crime próprio quanto ao sujeito ativo, bem como quanto ao
sujeito passivo (pois o tipo penal exige que o sujeito ativo seja sócio
ou empregado de estabelecimento comercial ou industrial, sendo
este último o sujeito passivo da infração penal); doloso; de forma
livre; de ação múltipla ou conteúdo variado (uma vez que o agente
pode praticar as várias condutas previstas no tipo penal, somente
respondendo, contudo, por uma única infração penal); comissivo ou
omissivo impróprio (devendo o agente, neste caso, gozar do status
de garantidor); instantâneo (podendo ser instantâneo de efeitos
permanentes, como na hipótese de supressão de correspondência);
monossubjetivo; plurissubsistente.
2.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
Da mesma forma que no delito de violação de correspondência,
a inviolabilidade da correspondência é o bem juridicamente
protegido pelo artigo em estudo. Aqui pode até o conteúdo ser
conhecido, não se tratando, em muitas ocasiões, de proteger o sigilo
da correspondência propriamente dito.
Como citado por Noronha e de acordo com a interpretação dos
núcleos existentes, pode alguém, por exemplo, subtrair um
documento dirigido à empresa, que era do conhecimento de todos.
Objeto material é a correspondência contra a qual é dirigida a
conduta do agente que tem por finalidade desviá-la, sonegá-la,
subtraí-la, suprimi-la ou mesmo revelá-la a terceiro estranho.
2.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
Somente podem ser considerados sujeitos ativos da infração
penal tipificada no art. 152 do diploma repressivo o sócio ou
empregado de estabelecimento comercial ou industrial, uma vez que
o delito em estudo se encontra no rol daqueles considerados como
próprios.
Sujeito passivo é o estabelecimento comercial ou industrial que
sofre as consequências pela conduta praticada pelo sujeito ativo.
2.5
Consumação e tentativa
O delito se consuma com a prática dos comportamentos
previstos pelo art. 152 do Código Penal, vale dizer, quando o sócio
ou empregado de estabelecimento comercial ou industrial desvia,
sonega, subtrai, suprime ou ainda quando revela a estranho
conteúdo de correspondência comercial.
Por se tratar de crime plurissubsistente, a tentativa é
perfeitamente admissível, como na hipótese daquele que, almejando
suprimir a correspondência comercial dirigida ao estabelecimento no
qual era empregado, é impedido no momento em que a jogaria no
fogo, a fim de queimá-la.
2.6
Elemento subjetivo
Os comportamentos previstos no art. 152 do Código Penal
somente podem ser realizados dolosamente, seja o dolo direto ou
mesmo eventual.
Damásio ainda esclarece que, além do dolo:
“É necessário que o sujeito pratique o fato com um elemento
subjetivo do tipo específico, contido na expressão ‘abusar’.
Desta forma, é necessário que o agente, no momento da
realização da conduta, tenha consciência de que está abusando
de sua condição de sócio ou de empregado de estabelecimento
comercial ou industrial.”17
Não há possibilidade de responsabilização criminal se o agente
houver praticado culposamente quaisquer das condutas previstas
pelo mencionado tipo penal, como na hipótese daquele que,
negligentemente, permite que a brasa de seu cigarro caia sobre
uma correspondência importantíssima para o estabelecimento
comercial no qual trabalhava, vindo a destruí-la completamente.
2.7
Modalidades comissiva e omissiva
O delito tipificado no art. 152 do Código Penal pode ser
praticado comissiva ou omissivamente, desde que, nesta última
hipótese, o agente goze do status de garantidor. Assim, por
exemplo, aquele que tendo a obrigação de zelar pela
correspondência comercial, sendo responsável pela sua
manutenção e arquivo, percebendo que ela estava prestes a se
perder, pois uma rajada de vento fez com que fosse arremessada
em direção à janela que se encontrava aberta, querendo suprimi-la,
nada faz para que não venha a cair do 15º andar de um edifício
localizado no centro de uma grande cidade, acabando por se perder
em meio à multidão e ao trânsito de veículos.
2.8
Pena, ação penal, competência para julgamento e
suspensão condicional do processo
A pena cominada no preceito secundário do art. 152 do Código
Penal é de detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos.
Tendo em vista a pena máxima cominada, a competência, pelo
menos inicialmente, para julgamento da infração penal sub examen
será do Juizado Especial Criminal, aplicando-se, aqui, os institutos
que lhe são inerentes (transação penal e suspensão condicional do
processo).
A ação penal, nos termos do parágrafo único do art. 152 do
Código Penal, é de iniciativa pública condicionada à representação.
2.9
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo:
o
sócio
ou
empregado
de
estabelecimento comercial
ou industrial.
Passivo:
é
o
estabelecimento comercial
ou industrial que sofre as
consequências
pela
conduta praticada pelo
sujeito ativo.
Objeto material
É a correspondência contra a
qual é dirigida a conduta do
agente que tem por finalidade
desviá-la, sonegá-la, subtraí-la,
suprimi-la ou mesmo revelá-la a
terceiro estranho.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
A
inviolabilidade
correspondência.
da
Elemento subjetivo
»
É o dolo direto ou eventual.
»
Não há previsão para a
modalidade culposa.
Modalidades
omissiva
comissiva
e
O delito pode ser praticado
comissiva ou omissivamente,
desde
que,
nesta
última
hipótese, o agente goze do
status de garantidor.
Consumação e tentativa
»
O delito se consuma
quando
o
sócio
ou
empregado
de
estabelecimento comercial
ou
industrial
desvia,
»
sonega, subtrai, suprime ou
ainda quando revela a
estranho
conteúdo
de
correspondência comercial.
Por se tratar de crime
plurissubsistente,
a
tentativa é perfeitamente
admissível.
1
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 2, p. 500-501.
2
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 324.
3
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 2, p. 504.
4
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. v, p. 236.
5
TELES, Ney Moura. Direito penal, v. 2, p. 321.
6
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 330.
7
OBS.: A Lei nº 4.898/65 foi revogada pela Lei nº 13.869, de 5 de setembro de 2019.
8
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal, v. 2, p. 206-207.
9
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 2, p. 505.
10
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, v. 2, p. 317.
11
O artigo citado corresponde ao atual art. 1.566, II, do Código Civil (Lei nº 10.406, de 10
de janeiro de 2002), que diz: “Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges: I – [...]; II
– vida em comum, no domicílio conjugal.”
12
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VI, p. 238-239.
13
FARIA, Bento de. Código penal brasileiro, v. IV, p. 282.
14
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VI, p. 237.
15
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 186-187.
16
BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa, p. 399.
17
JESUS, Damásio E. de. Direito penal, v. 2, p. 290.
Capítulo IX
Dos Crimes contra a
Inviolabilidade dos
Segredos
1.
DIVULGAÇÃO DE SEGREDO
Divulgação de segredo
Art. 153. Divulgar alguém, sem justa
causa, conteúdo de documento
particular ou de correspondência
confidencial, de que é destinatário ou
detentor, e cuja divulgação possa
produzir dano a outrem: Pena –
detenção, de um a seis meses, ou
multa, de trezentos mil réis a dois
contos de réis.
§ 1º Somente se procede mediante
representação.
§ 1º-A. Divulgar, sem justa causa,
informações sigilosas ou reservadas,
assim definidas em lei, contidas ou
não nos sistemas de informações ou
banco de dados da Administração
Pública:
Pena – detenção, de 1 (um) a 4
(quatro) anos, e multa.
§ 2º Quando resultar prejuízo para a
Administração Pública, a ação penal
será incondicionada.
1.1
Introdução
A seção IV do Capítulo VI do Título I do Código Penal cuida dos
crimes contra a inviolabilidade dos segredos.
Procura-se, assim, proteger o direito que se tem ao segredo,
evitando sua indevida divulgação.
O art. 153 do Código Penal, na sua modalidade fundamental,
responsabiliza criminalmente aquele que divulga, sem justa causa,
conteúdo de documento particular ou de correspondência
confidencial, de que é destinatário ou detentor, que tenha a
possibilidade de produzir dano a outrem.
Além do comportamento previsto no caput do art. 153, por
intermédio da Lei nº 9.983, de 14 de julho de 2000, foi acrescentado
um parágrafo ao mencionado artigo, qualificando-o, que recebeu a
numeração de § 1º-A, especializando a divulgação de segredo
quando disser respeito a informações sigilosas ou reservadas,
assim definidas em lei, contidas ou não nos sistemas de
informações ou banco de dados da Administração Pública.
A exposição de motivos da parte especial do Código Penal de
1940, por intermédio de seu item 54, explica os motivos pelos quais
se manteve a incriminação da divulgação de segredo, dizendo:
54. Ao incriminar a violação arbitrária
de segredos, o projeto mantém-se fiel
aos “moldes” do Código em vigor,
salvo uma ou outra modificação.
Deixa à margem da proteção penal
somente os segredos obtidos por
confidência oral e não necessária.
Não foi seguido o exemplo do Código
Italiano, que exclui da órbita do ilícito
penal até mesmo a violação do
segredo obtido por confidência
escrita. Não é convincente a
argumentação de Rocco: “Entre o
segredo confiado oralmente e o
confiado por escrito não há diferença
substancial, e como a violação do
segredo oral não constitui crime, nem
mesmo quando o confidente se tenha
obrigado a não revelá-lo, não se
compreende porque a diversidade do
meio usado, isto é, o escrito, deva
tornar punível o fato”. Ora, é
indisfarçável a diferença entre divulgar
ou revelar a confidência que outrem
nos faz verbalmente e a que
recebemos por escrito: no primeiro
caso, a veracidade da comunicação
pode ser posta em dúvida, dada a
ausência de comprovação material;
ao passo que, no segundo, há um
corpus, que se impõe à credulidade
geral. A traição da confiança, no
segundo caso, é evidentemente mais
grave do que no primeiro.
Diversamente da lei atual, é
incriminada tanto a publicação do
conteúdo secreto de correspondência
epistolar, por parte do destinatário,
quanto
o
de
qualquer
outro
documento particular, por parte do seu
detentor, e não somente quando daí
advenha efetivo dano a alguém (como
na lei vigente), senão também quando
haja simples possibilidade de dano.
Ao contrário das situações anteriores, analisadas nos arts. 151
e 152 do Código Penal, o art. 153 do mesmo diploma repressivo, ao
iniciar sua redação, narra o comportamento típico utilizando a
expressão divulgar alguém, sem justa causa... Mais adiante, aponta
aqueles que podem praticar a mencionada infração penal, vale
dizer, o destinatário e o detentor do documento particular ou de
correspondência confidencial, sendo que, para tanto, essa conduta
deverá trazer em si a possibilidade de dano a outrem.
Assim, analisando a mencionada figura típica, podemos apontar
os seguintes elementos da divulgação criminosa: a) divulgação de
conteúdo de documento particular ou de correspondência
confidencial; b) ausência de justa causa para essa divulgação; c)
divulgação levada a efeito pelo destinatário ou detentor do
documento particular ou de correspondência confidencial; d)
potencialidade de dano a outrem.
Para que possa ser objeto da proteção penal, o documento
particular, segundo Aníbal Bruno, deve ter:
“Caráter sigiloso, escrito, que deva ser mantido secreto e possa
servir de prova em fato de importância jurídica. Da tutela de
segredo contido em documento público ocupam-se outros
dispositivos do Código.
A correspondência deve ser confidencial, ter um conteúdo
realmente secreto, ser aquilo que se diz só para chegar ao
conhecimento de determinada pessoa ou de limitado número de
pessoas, a coisa que se deve manter em sigilo, porque isso
corresponde à vontade e ao interesse legítimo de alguém.”1
Se houver justa causa na divulgação do segredo, ou seja, se o
agente atua amparado, por exemplo, por alguma causa de
justificação, a exemplo do estado de necessidade, não há falar em
crime. Assim, imagine-se a hipótese daquele que recebe uma
correspondência confidencial na qual nela se aponta o verdadeiro
autor da infração penal que, injustamente, é imputada ao agente
que recebeu aquela correspondência. Tal divulgação, por mais que
se tenha exigido seu caráter confidencial, pode, para fins de se
provar a inocência daquele que estava sendo injustamente acusado
em uma ação penal, por exemplo, ser feita, já que presente justa
causa para tanto.
Além dessa hipótese, como bem observa Damásio, ausência de
justa causa:
“Significa que a divulgação só é incriminada quando o sujeito
ativo não tem justo motivo para a prática do fato. Exemplos de
justa causa: consentimento do interessado, comunicação ao
Judiciário de crime de ação pública, dever de testemunhar em
juízo, defesa de direito ou interesse legítimo, comprovação de
crime ou sua autoria etc. Nesses casos, a ausência no fato
concreto do elemento normativo conduz à atipicidade da
conduta.”2
Para que se configure o delito tipificado no art. 153 do Código
Penal é preciso que o próprio destinatário ou o detentor do
documento particular ou de correspondência confidencial divulgue
indevidamente, ou seja, sem justa causa, o seu conteúdo. Por
destinatário deve ser entendido aquele para o qual fora endereçado
o documento particular ou remetida a correspondência confidencial.
Detentor é aquele que, mesmo não sendo o destinatário, por algum
motivo, seja lícito ou ilícito, detém o documento particular ou a
correspondência confidencial consigo. Nesse sentido, preleciona
Luiz Regis Prado:
“A lei penal pátria não exige que a detenção seja ilegítima.
Logo, ante a ausência de distinção entre detentor legítimo e
ilegítimo, tanto pode figurar como sujeito ativo aquele que
possui licitamente o documento ou a correspondência (in
nomine proprio) como quem a detém, por exemplo, em virtude
de sonegação ou subtração (in nomine alieno). Advirta-se,
porém, que, em se tratando de detenção ilegítima, o crime-fim
(violação de segredo – art. 153, CP) absorve o crime-meio
(apossamento de correspondência – art. 40, § 1º, Lei nº
6.538/78), por força do princípio de consunção.”3
Além disso, conforme determina a parte final do caput do art.
153 do Código Penal, essa divulgação deve ter a potencialidade de
produzir dano a outrem. Não exige a lei penal, como se percebe, o
dano efetivo, mas tão somente a possibilidade de dano, ou seja, o
dano potencial. Assim, aquele que, divulgando o conteúdo de uma
correspondência confidencial, coloca em risco, por exemplo, a
efetivação de uma transação comercial de grande valor, embora
esta, mesmo com a divulgação, venha a se efetivar, ainda assim o
agente deverá ser responsabilizado criminalmente pela
potencialidade de dano contida em seu comportamento.
1.2
Classificação doutrinária
Crime próprio quanto ao sujeito ativo (pois o tipo penal exige
uma qualidade especial, vale dizer, a de destinatário ou detentor do
documento particular ou de correspondência confidencial) e comum
quanto ao sujeito passivo (uma vez que qualquer pessoa pode vir a
ser prejudicada com a divulgação indevida); doloso; formal;
instantâneo; comissivo (podendo, no entanto, ser praticado
omissivamente, desde que o agente se encontre na condição de
garantidor); monossubjetivo; unissubsistente (como regra, podendo,
no entanto, ser também considerado como plurissubsistente,
dependendo da maneira como o delito é praticado, haja vista a
possibilidade de fracionamento do iter criminis).
1.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
A inviolabilidade dos segredos é o bem juridicamente protegido
de forma direta pelo art. 153 do Código Penal, devendo-se lembrar
de que o mencionado delito encontra-se no capítulo correspondente
aos crimes contra a liberdade individual, sendo esta, também, objeto
da proteção penal.
O documento particular e a correspondência confidencial, cujos
conteúdos são divulgados sem justa causa, são considerados
objetos materiais da infração penal em estudo.
1.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
Tendo em vista a indicação típica, somente podem ser
considerados sujeitos ativos do delito previsto no art. 153 do Código
Penal o destinatário e o detentor do documento particular ou da
correspondência confidencial.
Sujeito passivo, segundo a parte final contida no caput do
referido artigo, é aquele que, com a divulgação do conteúdo do
documento particular ou da correspondência confidencial, corre o
risco de sofrer dano, mesmo que este não venha a efetivamente se
concretizar, podendo, até mesmo, ser o próprio remetente.
1.5
Consumação e tentativa
Consuma-se a infração penal com a efetiva divulgação a
terceiros do conteúdo de documento particular ou de
correspondência confidencial, desde que, com essa divulgação, se
consiga visualizar a potencialidade de dano a outrem, cuidando-se,
portanto, de crime de natureza formal, cujo resultado previsto no tipo
não precisa se configurar para fins de consumação do delito. Assim,
conforme esclarece Bento de Faria:
“Ainda quando não se prove o dano efetivamente causado, é
suficiente a demonstração do prejuízo potencial, isto é,
possibilidade de causá-lo.
O dano eventual ou possível pode ser material ou moral,
público ou privado.”4
1.6
Elemento subjetivo
Somente a divulgação dolosa de segredo importa ao art. 153 do
Código Penal, seja o dolo direto ou mesmo eventual. Assim, pode
alguém divulgar um segredo contido em uma correspondência
confidencial a ele dirigida com o fim de causar dano a alguém, ou
pode o agente tê-lo divulgado, mesmo sabendo que em seu
comportamento havia uma potencialidade de dano cuja produção
lhe era indiferente.
Dessa forma, podemos visualizar as duas espécies de dolo no
comportamento traduzido pelo núcleo divulgar, que obrigatoriamente
deverá ser conjugado com a possibilidade de produção de danos a
outrem.
Não houve previsão legal da modalidade culposa. Logo, se
alguém divulga a outrem um segredo, acreditando que seu
comportamento seja inofensivo a qualquer pessoa, quando, na
realidade, pode ser entendido como um potencial causador de dano,
podemos talvez apontar, nessa hipótese, uma divulgação que
poderíamos chamar de imprudente, cuja finalidade inicial não era a
de efetivamente causar danos a qualquer pessoa, mas que, dada
sua avaliação equivocada, era potencialmente lesiva, sendo o fato
praticado, portanto, considerado atípico.
1.7
Modalidades comissiva e omissiva
A divulgação pode ocorrer de forma comissiva, bem como
omissivamente, desde que, nesta última hipótese, o agente seja
considerado como garantidor, amoldando-se ao conceito de
destinatário ou detentor.
Imagine-se a hipótese daquele que, mesmo sabendo que
receberia visitas em sua casa, não evita que a correspondência
confidencial a ele dirigida chegue ao conhecimento de terceiros,
almejando, com isso, produzir dano a outrem. Se a
correspondência, por exemplo, já se encontrava aberta em sua
mesa, e o agente, após ser informado que receberia algumas
pessoas em sua casa, não a retira daquele local onde já se
encontrava anteriormente, possibilitando que todos a conheçam,
podemos raciocinar pela inação do agente com a possibilidade da
prática por omissão do delito em exame.
1.8
Modalidade qualificada
A Lei nº 9.983, de 14 de julho de 2000, criou, por intermédio do
§ 1º-A, uma modalidade qualificada de crime de divulgação de
segredo, dizendo:
§ 1º-A. Divulgar, sem justa causa,
informações sigilosas ou reservadas,
assim definidas em lei, contidas ou
não nos sistemas de informações ou
banco de dados da Administração
Pública:
Pena – detenção, de 1 (um) a 4
(quatro) anos, e multa.
Ao inserir o mencionado parágrafo ao art. 153 do Código Penal,
a Lei nº 9.983, de 14 de julho de 2000, criou uma norma penal em
branco, uma vez que somente se configurará a modalidade
qualificada se as informações, em tese consideradas como sigilosas
ou reservadas forem aquelas apontadas como tal pela lei, estejam
elas contidas ou não nos sistemas de informações ou banco de
dados da Administração Pública.
Segundo Cezar Roberto Bitencourt:
“Informações são dados, detalhes, referências sobre alguma
coisa ou alguém. Sigiloso é algo que não deve ser revelado,
confidencial, limitado a conhecimento restrito, não podendo sair
da esfera de privacidade de quem o detém. Reservado, por sua
vez, é dado ou informação que exige discrição e reserva das
pessoas que dele tomam conhecimento. Por fim, é
indispensável que a natureza sigilosa ou reservada das
informações divulgadas indevidamente seja objeto de lei e lei
em sentido estrito, sendo inadmissível sua equiparação a
resoluções, portarias, regulamentos etc.”5
Apesar da necessidade de lei em sentido estrito que venha a
complementar o texto da norma penal em branco contida no § 1º-A
do art. 153 do Código Penal, não se exige um diploma legal único
que venha definir quais são as informações consideradas sigilosas
ou reservadas que, se divulgadas sem justa causa, estejam ou não
contidas nos sistemas de informações ou banco de dados da
Administração Pública, se configurará em delito.
Pode ocorrer, e de fato ocorre, que leis diversas determinem
sigilo no que diz respeito a certas informações que, se forem
fornecidas indevidamente, ou seja, sem justa causa, darão ensejo à
responsabilização penal daquele que as forneceu.
O art. 202 da Lei de Execução Penal, por exemplo, assevera:
Art. 202. Cumprida ou extinta a pena,
não constarão da folha corrida,
atestados ou certidões fornecidas por
autoridade policial ou por auxiliares da
Justiça, qualquer notícia ou referência
à condenação, salvo para instruir
processo pela prática de nova
infração penal ou outros casos
expressos em lei.
Assim, imagine-se a hipótese daquele que, querendo constituir
uma sociedade, mas desconfiando, desde o início, de um dos seus
futuros sócios, solicite a um servidor público, que tem acesso ao
banco de dados do Instituto de Criminalística, que verifique se
aquela pessoa já tinha sido condenada pela Justiça Criminal. Caso
o sujeito já tenha cumprido sua pena, por exemplo, tais informações
deixarão de ter caráter público, somente podendo ser fornecidas
para a instrução de processo pela prática de nova infração penal ou
outros casos expressos em lei, conforme esclarece o art. 202 acima
transcrito.
Dessa forma, caso o servidor público venha a divulgar esse tipo
de informação sigilosa, poderá ser responsabilizado pelo delito em
estudo.
Guilherme de Souza Nucci, no que diz respeito ao sigilo das
informações contidas no inquérito policial, ainda salienta:
“O art. 20 do Código de Processo Penal preceitua que ‘a
autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à
elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade’.
Assim, quem divulgar informações contidas nesse inquérito,
que tramita sob sigilo, pode responder pelo delito em questão.”6
1.9
Pena, ação penal, competência para julgamento e
suspensão condicional do processo
Em sua modalidade fundamental, a violação de segredo é
punida com a pena de detenção, de 1(um) a 6 (seis) meses, ou
multa, sendo que na forma qualificada, prevista pelo § 1º-A, a pena
cominada é de detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
A ação penal é de iniciativa pública condicionada à
representação (§ 1º do art. 153 do CP), sendo que, em ambas as
hipóteses, quando resultar prejuízo para a Administração Pública (§
2º do art. 153 do CP), será de iniciativa pública incondicionada.
Será do Juizado Especial Criminal a competência para
julgamento do delito previsto no caput do art. 153 do Código Penal,
aplicando-se todos os institutos que lhe são inerentes (transação
penal e suspensão condicional do processo).
No que diz respeito à modalidade qualificada, embora a
competência não seja a do Juizado Especial Criminal, em virtude da
pena mínima a ela cominada, será possível a realização de proposta
de suspensão condicional do processo.
1.10
Destaques
1.10.1
Divulgação a uma única pessoa
Discute-se, doutrinariamente, se o núcleo divulgar, constante do
caput do art. 153 do Código Penal, pressupõe que o fato seja dado
ao conhecimento de várias pessoas, exigindo ampla difusão, ou
basta que seja a uma só.
Hungria, partidário da primeira corrente, afirma:
“Não basta a simples comunicação a uma só pessoa ou a um
grupo restrito de pessoas: é necessário que haja difusão
extensiva (publicação pela imprensa, radiodifusão, afixação em
lugar público) ou, pelo menos, exposição que torne possível o
conhecimento de indeterminado número de pessoas.”7
No mesmo sentido, preleciona Fragoso: “Divulgar é tornar
público o que pressupõe comunicação a um número indeterminado
de pessoas.”8
Apesar da autoridade dos renomados autores, ousamos deles
discordar, uma vez que o núcleo divulgar, de acordo com nosso
entendimento, não exige coletividade. Basta que seja dado indevido
conhecimento a alguém, como no caso do caput do art. 153 do
Código Penal, sobre o conteúdo de documento particular ou de
correspondência confidencial, sendo dela destinatário ou detentor, e
que, dada essa divulgação, haja uma potencialidade de dano, moral
ou material, a outrem.
Portanto, com a devida vênia das posições em contrário, o
núcleo divulgar não exige, para sua configuração, a extensão
pretendida pela primeira corrente, bastando, portanto, que com o
comportamento do agente seja visualizada uma potencialidade de
dano, mesmo que a divulgação, sem justa causa, do conteúdo do
documento particular ou da correspondência confidencial seja feita a
uma só pessoa.
1.10.2
Divulgação de segredo e Código Penal Militar
O crime de divulgação de segredo também veio previsto no
Código Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de
1969), conforme se verifica pela leitura do seu art. 228.
1.11
Quadro-resumo
Sujeitos
»
Ativo: são o destinatário e o
detentor do documento
particular
ou
da
correspondência
confidencial.
»
Passivo: é aquele que, com
a divulgação do conteúdo
do documento particular ou
da
correspondência
confidencial, corre o risco
de sofrer dano, mesmo que
este
não
venha
a
efetivamente
se
concretizar, podendo, até
mesmo, ser o próprio
remetente.
Objeto material
O documento particular e a
correspondência confidencial,
cujos conteúdos são divulgados
sem justa causa.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
A inviolabilidade dos segredos.
Elemento subjetivo
»
»
É o dolo direto ou eventual.
Não houve previsão legal da modalidade
culposa.
Modalidades
omissiva
comissiva
e
A divulgação pode ocorrer de
forma comissiva, bem como
omissivamente, desde que
nesta última hipótese o agente
seja
considerado
como
garantidor, amoldando-se ao
conceito de
detentor.
destinatário
ou
Consumação e tentativa
»
Consuma-se a infração
penal
com
a
efetiva
divulgação a terceiros do
conteúdo de documento
particular
ou
de
correspondência
confidencial, desde que,
com essa divulgação, se
consiga
visualizar
a
potencialidade de dano a
outrem,
cuidando-se,
portanto, de crime de
natureza
formal,
cujo
resultado previsto no tipo
não precisa se configurar
»
para fins de consumação
do delito.
Será possível a tentativa.
2.
VIOLAÇÃO DE SEGREDO PROFISSIONAL
Violação de segredo profissional Art. 154.
Revelar alguém, sem justa causa, segredo,
de que tem ciência em razão de função,
ministério, ofício ou profissão, e cuja
revelação possa produzir dano a outrem:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um)
ano, ou multa.
Parágrafo único. Somente se procede
mediante representação.
2.1
Introdução
O art. 154 do Código Penal tipifica o comportamento do agente
que, sem justa causa, revela a alguém segredo de que teve ciência
em razão de função, ministério, ofício ou profissão, revelação essa
capaz de produzir dano a outrem.
Sabemos que existem atividades, conforme as descritas pelo
mencionado artigo, que requerem uma relação de confiança entre
as pessoas. Quando essa confiança é quebrada sem um motivo
justo, abre-se a possibilidade de se responsabilizar criminalmente
aquele que não cumpriu com os seus deveres de fidelidade e
lealdade.
São vários os dispositivos legais que resguardam o dever de
sigilo, a exemplo do art. 207 do Código de Processo Penal, do art.
448 do Código de Processo Civil (Lei nº 13.105, de 16 de março de
2015) e do art. 7º, XIX, do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos
Advogados do Brasil, conforme se verifica nas transcrições as
seguir:
Código de Processo Penal
Art. 207. São proibidas de depor as
pessoas que, em razão de função,
ministério, ofício ou profissão, devam
guardar
segredo,
salvo
se,
desobrigadas pela parte interessada,
quiserem dar o seu testemunho.
Código de Processo Civil
Art. 448. A testemunha não é
obrigada a depor sobre fatos:
I – [...];
II – a cujo respeito, por estado ou
profissão, deva guardar sigilo.
Estatuto da OAB
Art. 7º São direitos do advogado:
[...]
XIX – recusar-se a depor como
testemunha em processo no qual
funcionou ou deva funcionar, ou sobre
fato relacionado com pessoa de quem
seja ou foi advogado, mesmo quando
autorizado
ou
solicitado
pelo
constituinte, bem como sobre fato que
constitua sigilo profissional.
Assim, podemos extrair os seguintes elementos da redação
contida no art. 154 do Código Penal, que constituem o delito de
violação de segredo profissional: a) a existência de um segredo; b) o
fato de ter esse segredo chegado ao conhecimento do agente em
virtude de sua função, ministério, ofício ou profissão; c) revelação a
alguém; d) ausência de justa causa; e) potencialidade de dano a
outrem.
Hungria esclarece que o segredo deveria ser interpretado como
o fato:
“Da vida privada que se tem interesse em ocultar. Pressupõe
dois elementos: um negativo – ausência de notoriedade, e outro
positivo – a vontade determinante de sua custódia ou
preservação. Secreto é o fato que ainda não é notório (res
arcana), não se devendo, porém, confundir a notoriedade com a
vaga atoarda. Não deixa de ser secreto o fato sobre o qual
apenas corre um boato incerto.”9
Para que o fato possa se subsumir à figura típica em estudo, é
preciso que o segredo tenha sido revelado por alguém que o soube,
por intermédio da própria pessoa detentora do segredo, em razão
de função, ministério, ofício ou profissão. Há necessidade, portanto,
desse vínculo entre as pessoas do confidente e daquele que
confessa seus segredos. Entende-se por função toda determinação
de encargos imposta pela lei a uma pessoa, esteja ou não ligada ao
exercício de um cargo, haja ou não remuneração. Assim, o tutor, o
curador, a escrevente de sala de um juiz, no exemplo de Guilherme
de Souza Nucci, que “toma conhecimento, em razão de sua função,
de segredos narrados durante uma audiência de divórcio, que corre
em segredo de justiça, revelando-os a terceiros.” Por ministério,
como regra, entende-se aqueles que exercem atividades religiosas,
a exemplo dos pastores, padres, irmãs de caridade. O item 55 da
exposição de motivos da Parte Especial do Código Penal de 1940,
procurando afastar qualquer dúvida, aduz:
55. Definindo o crime de “violação de
segredo profissional”, o projeto
procura dirimir qualquer incerteza
acerca do que sejam confidentes
necessários. Incorrerá na sanção
penal todo aquele que revelar
segredo, de que tenha ciência em
razão de “função, ministério, ofício ou
profissão.” Assim, já não poderá ser
suscitada, como perante a lei vigente,
a dúvida sobre se constitui ilícito penal
a quebra do “sigilo do confessionário.”
Entende-se por ofício aquelas atividades habituais, consistentes
na prestação de serviços manuais ou mecânicos, como acontece
com as empregadas domésticas, costureiras etc. Profissão diz
respeito a toda atividade que, como regra, tenha finalidade de lucro,
exercida por quem tenha habilitação. Dissemos como regra porque,
em algumas situações, mesmo que exercendo um trabalho
voluntário, aquela determinada atividade somente poderá ser
exercida por um profissional, como é o caso, por exemplo, dos
médicos e advogados.
Para que ocorra a infração penal sub examen o segredo que
chegou ao conhecimento do agente deve por ele ser revelado a
outrem. Aqui, conforme já nos posicionamos quando do estudo do
art. 153 do Código Penal, não há necessidade de que essa
revelação seja levada a um número indeterminado de pessoas. A lei
penal não exige essa situação. Dessa forma, como já afirmamos,
acreditamos bastar que o segredo tenha sido revelado a uma só
pessoa e que tenha possibilidade, com essa revelação, de causar
dano a outrem.
O art. 154 do Código Penal, da mesma forma que o artigo que
lhe é anterior, usa a expressão sem justa causa querendo denotar
que a revelação não foi amparada por um motivo justificado.
Noronha esclarece que:
“Em regra, a justa causa funda-se na existência de estado de
necessidade: é a colisão de dois interesses, devendo um ser
sacrificado em benefício do outro; no caso, a inviolabilidade dos
segredos deve ceder a outro bem-interesse. Há, pois,
objetividades jurídicas que a ela preferem, donde não ser
absoluto o dever do silêncio ou sigilo profissional.”10
Rogério Sanches Cunha, com precisão, aduz que:
“O art. 269 do CP bem espelha um exemplo de justa causa,
obrigando o médico, sob pena de punição, comunicar à
autoridade a ocorrência de moléstia contagiosa confidenciada
no exercício da profissão.
Hoje, princípios como o da proporcionalidade (ou
razoabilidade), bastante ventilado no campo ‘das provas obtidas
por meios ilegais’, acaba, de alguma forma, por admitir, em
casos excepcionais, a revelação de segredo profissional, em
especial na salvaguarda e manutenção de valores conflitantes,
desde que aplicada única e exclusivamente, em situações
extraordinárias.”11
Para que a revelação sem justa causa de um segredo, que
chegou ao conhecimento do agente por meio de sua função,
ministério, ofício ou profissão, possa ser típica, é preciso que seja
demonstrada sua potencialidade lesiva, isto é, a possibilidade que
essa revelação possuiu no sentido de causar dano a outrem. Caso
contrário, mesmo que tenha havido a revelação de um segredo, o
fato será atípico, em face da ausência de potencialidade lesiva.
2.2
Classificação doutrinária
Crime próprio quanto ao sujeito ativo (uma vez que o tipo
delimita a prática da infração penal àqueles que tiverem tomado
conhecimento do segredo em razão de função, ministério, ofício ou
profissão), sendo comum no que diz respeito ao sujeito passivo;
doloso; formal; instantâneo; comissivo (podendo ser praticado
omissivamente somente pelo agente que goze do status de
garantidor); de forma livre; monossubjetivo; unissubsistente ou
plurissubsistente (dependendo da forma com que a infração penal é
levada a efeito, pois os atos podem ser concentrados ou diluídos
pelo iter criminis).
2.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
Como a própria rubrica do art. 154 do Código Penal indica, bem
juridicamente protegido por esse tipo penal é a inviolabilidade do
segredo profissional. Da mesma forma que o art. 153, que cuida do
delito de divulgação de segredo, o crime de violação de segredo
profissional encontra-se inserido na Seção IV, que cuida dos crimes
contra a inviolabilidade dos segredos, que por sua vez está contido
no Capítulo VI, que prevê os crimes contra a liberdade individual,
podendo ser esta também indicada como bem que se procura
proteger através da incriminação do comportamento narrado pelo
tipo penal em estudo.
Objeto material, segundo Guilherme de Souza Nucci, “é o
assunto transmitido em caráter sigiloso, que sofre a conduta
criminosa.”12
2.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
O crime de violação do segredo profissional é próprio com
relação ao sujeito ativo, uma vez que somente as pessoas que
tiverem tomado conhecimento do segredo em razão de função,
ministério, ofício ou profissão poderão praticá-lo.
Damásio ainda acrescenta:
“Sujeitos ativos são os confidentes necessários, pessoas que
recebem o conteúdo do segredo em razão de função,
ministério, ofício ou profissão. Dizem-se confidentes
necessários porque, em razão de sua atividade específica,
normalmente tomam conhecimento de fatos particulares da vida
alheia. É o caso do médico, do dentista, do advogado, do
engenheiro, do sacerdote etc. Na hipótese do sacerdote, por
exemplo, é inerente ao exercício de seu ministério a tomada de
conhecimento de segredos alheios.”13
Embora o confidente seja aquela pessoa à qual se confia um
segredo, em algumas das situações elencadas pelo art. 154 do
Código Penal não teremos a figura do confidente, tampouco será ele
considerado necessário.
A lei penal somente faz menção àquele que tem ciência de um
segredo em razão de função, ministério, ofício ou profissão. Não
afirma que ele deve gozar do status de confidente, muito menos
necessário. Assim, por exemplo, a empregada doméstica pode ter
tido conhecimento de um segredo, em razão do ofício por ela
desempenhado, mas que não fora confessado diretamente a ela.
Não poderá ser considerada confidente, tampouco necessária. Ou,
ainda, na hipótese do Oficial de Justiça que, cumprindo as funções
de porteiro de auditório, toma conhecimento de segredos revelados
dentro da sala de audiência e os divulga. Não se pode apontá-lo,
aqui, como confidente, mas tão somente como uma pessoa que, em
razão da função que exerce, tomou conhecimento de um segredo
que não lhe fora revelado diretamente.
Sujeito passivo pode ser tanto aquele que tem o seu segredo
revelado como o terceiro que, com essa revelação, pode sofrer um
dano, material ou moral.
2.5
Consumação e tentativa
Consuma-se o delito tipificado no art. 154 do Código Penal
quando o segredo potencialmente lesivo é revelado a outrem,
mesmo que tal revelação, como já afirmamos, tenha sido feita a
uma única pessoa.
Nesse sentido, esclarece Fragoso que “revelar é menos do que
divulgar. É transmitir a qualquer pessoa (uma só basta) o segredo,
consumando-se, assim, o crime.”14
No entanto, afirmava ser a tentativa “juridicamente inconcebível,
pois não se pode admitir que a tentativa de revelar o segredo possa
resultar a potencialidade de dano para o interessado.”15
Apesar da autoridade do renomado autor, ousamos dele
discordar, permissa vênia, no que concerne à impossibilidade de
tentativa. Pode o agente, por exemplo, tentar revelar a alguém, por
meio de uma carta, um segredo que chegou ao seu conhecimento
em razão da sua profissão, cuja revelação traz em si uma
potencialidade de dano a outrem, quando a própria pessoa que
levou a efeito a confissão impede que essa carta chegue ao
conhecimento de terceiro, depois de ter sido a ele encaminhada.
Assim, podemos visualizar a hipótese de tentativa, uma vez que,
valendo-se o agente desse meio de transmissão para a revelação
do segredo, o delito é de natureza plurissubsistente, podendo-se
verificar o fracionamento dos atos que compõem o iter criminis. No
exemplo fornecido, para o fim de raciocínio, concluímos que o
agente cogitou praticar o delito, preparou-se (escrevendo a carta
que continha a revelação do segredo) e o executou (colocando, por
exemplo, a carta embaixo da porta de terceiro), quando aquele que
tinha confessado o seu segredo descobre, acidentalmente, as
intenções do agente e impede que terceiro tome conhecimento do
conteúdo da carta.
2.6
Elemento subjetivo
O crime de violação de segredo profissional somente pode ser
praticado dolosamente, seja o dolo direto, seja eventual.
Não se admite a modalidade culposa, por ausência expressa de
disposição legal nesse sentido, conforme determina o parágrafo
único do art. 18 do Código Penal, que diz: Salvo os casos expressos
em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime,
senão quando o pratica dolosamente.
2.7
Modalidades comissiva e omissiva
A revelação pode ocorrer de forma comissiva, bem como
omissivamente, desde que, nesta última hipótese, o agente seja
considerado garantidor da guarda do segredo que lhe é revelado em
razão de função, ministério, ofício ou profissão.
Assim, imagine-se a hipótese daquele que, mesmo sabendo
que receberia visitas em casa, não evita que as declarações escritas
que lhe foram entregues por aquele que, por meio delas, tenha lhe
confessado um segredo, chegue ao conhecimento de terceiro,
almejando, com isso, produzir dano a outrem. Se as declarações,
por exemplo, já se encontravam em sua mesa e o agente, após ser
informado que receberia algumas pessoas em sua casa, não as
retira daquele local onde já se encontravam anteriormente,
possibilitando que todos a conheçam, podemos raciocinar com a
inação do agente na possibilidade da prática por omissão do delito
em exame.
2.8
Pena, ação penal, competência para julgamento e
suspensão condicional do processo
A pena cominada no preceito secundário do art. 154 do Código
Penal é de detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa,
sendo o seu julgamento, portanto, pelo menos inicialmente, de
competência do Juizado Especial Criminal, aplicando-se, outrossim,
os institutos que lhe são inerentes (transação penal e suspensão
condicional do processo).
Nos termos do parágrafo único do art. 154 do Código Penal, a
ação penal é de iniciativa pública condicionada à representação.
2.9
2.9.1
Destaques
Violação de segredo profissional e Código Penal Militar
O crime de violação de segredo profissional também veio
previsto no Código Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de
outubro de 1969), conforme se verifica pela leitura do seu art. 230.
2.10
Quadro-resumo
Sujeitos
»
Ativo: somente as pessoas
que
tiverem
tomado
conhecimento do segredo
em razão de função,
ministério,
ofício
ou
»
profissão poderão praticálo.
Passivo: pode ser tanto
aquele que tem o seu
segredo revelado como o
terceiro que, com essa
revelação, pode sofrer um
dano, material ou moral.
Objeto material
“É o assunto transmitido em
caráter sigiloso, que sofre a
conduta criminosa” (NUCCI,
2005, p. 493).
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
A inviolabilidade do segredo
profissional.
Elemento subjetivo
»
»
É o dolo direto ou eventual.
Não
se
admite
a
modalidade culposa.
Modalidades
omissiva
comissiva
e
A revelação pode ocorrer de
forma comissiva, bem como
omissivamente, desde que,
nesta última hipótese, o agente
seja considerado garantidor da
guarda do segredo que lhe é
revelado em razão de função,
ministério, ofício ou profissão.
Consumação e tentativa
»
»
Consuma-se
o
delito
quando
o
segredo
potencialmente lesivo é
revelado a outrem, mesmo
que tal revelação tenha
sido feita a uma única
pessoa.
Embora exista controvérsia
doutrinária,
entendemos
ser admissível a tentativa.
3.
INVASÃO DE DISPOSITIVO INFORMÁTICO
Invasão de dispositivo informático
Art.
154-A.
Invadir
dispositivo
informático de uso alheio, conectado
ou não à rede de computadores, com
o fim de obter, adulterar ou destruir
dados
ou
informações
sem
autorização expressa ou tácita do
usuário do dispositivo ou de instalar
vulnerabilidades para obter vantagem
ilícita:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4
(quatro) anos, e multa.
§ 1º Na mesma pena incorre quem
produz, oferece, distribui, vende ou
difunde dispositivo ou programa de
computador com o intuito de permitir a
prática da conduta definida no caput.
§ 2º Aumenta-se a pena de 1/3 (um
terço) a 2/3 (dois terços) se da
invasão resulta prejuízo econômico. §
3º Se da invasão resultar a obtenção
de conteúdo de comunicações
eletrônicas
privadas,
segredos
comerciais ou industriais, informações
sigilosas, assim definidas em lei, ou o
controle remoto não autorizado do
dispositivo invadido:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5
(cinco) anos, e multa.
§ 4º Na hipótese do § 3º, aumenta-se
a pena de um a dois terços se houver
divulgação,
comercialização
ou
transmissão a terceiro, a qualquer
título, dos dados ou informações
obtidos.
§ 5º Aumenta-se a pena de um terço à
metade se o crime for praticado
contra:
I – Presidente da República,
governadores e prefeitos;
II – Presidente do Supremo Tribunal
Federal;
III – Presidente da Câmara dos
Deputados, do Senado Federal, de
Assembleia Legislativa de Estado, da
Câmara Legislativa do Distrito Federal
ou de Câmara Municipal; ou IV –
dirigente máximo da administração
direta e indireta federal, estadual,
municipal ou do Distrito Federal.
Ação penal
Art. 154-B. Nos crimes definidos no
art. 154-A, somente se procede
mediante representação, salvo se o
crime
é
cometido
contra
a
administração pública direta ou
indireta de qualquer dos Poderes da
União, Estados, Distrito Federal ou
Municípios ou contra empresas
concessionárias de serviços públicos.
3.1
Introdução
O século XXI está experimentando um avanço tecnológico
inacreditável. Situações que, em um passado não muito distante,
eram retratadas em filmes e desenhos infantis como sendo
hipóteses futuristas, hoje estão presentes em nosso dia a dia. As
conversas on-line, com visualização das imagens dos interlocutores,
seja através de computadores, ou mesmo de smartphones, que
pareciam incríveis no início da segunda metade do século XX,
atualmente fazem parte da nossa realidade.
Enfim, vivemos novos tempos e devemos nos adaptar,
consequentemente, ao mau uso de todo esse aparato tecnológico. A
internet revolucionou o mundo e o fez parecer muito menor.
Originalmente, a internet teve uma utilização militar, sendo que
a ideia de uma rede interligada surgiu em 1962, durante a Guerra
Fria, e foi imaginada, conforme esclarece Augusto Rossini, “para
proteger a rede de computadores do governo norte-americano após
um ataque nuclear. Planos detalhados foram apresentados em
1967, tendo sido criada a Arpanet em 1968, estabelecendo-se o
germe do que é hoje Internet”,16 concebida, entre outros, por Paul
Baran, da empresa Rand Corporation, também com a finalidade de
suprir as deficiências e fragilidades da rede telefônica AT&T,
utilizada, ainda, nos anos 1980-90, como meio de comunicação
científica interuniversitária.
Conforme esclarece Juan José López Ortega:
“Em seus primeiros anos de existência, internet parecia
pressagiar um novo paradigma de liberdade. Um espaço isento
de intervenções públicas, no qual os internautas desfrutavam
de um poder de ação ilimitado. A liberdade para se comunicar e
se expressar se estendia sem possibilidade de censura a todos
os
cantos
do
planeta.
A
propriedade
intelectual,
necessariamente, devia ser compartilhada e a intimidade se
encontrava assegurada preservando o anonimato da
comunicação e pelas dificuldades técnicas de rastrear as fontes
e identificar os conteúdos.
As novas tecnologias de recolhimento dos dados, associadas à
economia do comércio eletrônico, transformaram a liberdade e
a privacidade na internet, e isso em consequência direta de sua
comercialização. A necessidade de assegurar e identificar a
comunicação para poder ganhar dinheiro através da rede, junto
com a necessidade de proteger os direitos de novas
arquiteturas de software, que possibilitam o controle da
comunicação.
Tecnologias
de
identificação
(senhas,
marcadores digitais, processos de identificação) colocadas nas
mãos das empresas e dos governos deram passo ao
desenvolvimento de tecnologias de vigilância, que permitem
rastrear os fluxos de informação.
Através dessas técnicas, qualquer informação transmitida
eletronicamente pode ser recolhida, armazenada, processada e
analisada. Para muitos, isso supôs o fim da privacidade e, se
não é assim, ao menos obriga a redefinir o âmbito do privado
na internet, um espaço no qual, por sua dimensão global, já não
basta garantir o controle dos dados pessoais. Noções até agora
válidas, como “fichário” ou “base de dados”, deixam de ter
significado. A nova fronteira não é o computador pessoal ou a
internet, senão a rede global, e isso tem consequências ao
delimitar o conteúdo do direito à intimidade, que no espaço
digital se transmuda como o direito ao anonimato.”17
A internet, dentro de um mundo considerado globalizado, se
transformou em uma necessidade da modernidade, de que não
podemos abrir mão. Nunca as pesquisas foram tão velozes.
Bibliotecas inteiras podem ser resumidas a um comando no
computador. No entanto, toda essa modernidade informática traz
consigo os seus problemas. Como alerta Cinta Castillo Jimenez:
“Internet supõe um sonho para seus usuários e um pesadelo
para os práticos do direito. Por uma parte, permite concluir
transações com empresas e consumidores situados em
qualquer lugar do planeta, agiliza a comunicação entre as
pessoas. Representa a liberdade mundial de informação e da
comunicação; é um sonho transformado em realidade.
Por outro lado, todo conjunto de atividades sociais precisa de
uma regulamentação. As legislações nacionais avançam com
muito atraso no que diz respeito às novas tecnologias. Isso faz
com que sejam dificultadas as respostas legais a numerosos
litígios que podem suscitar as operações na internet. Por isso é
também um pesadelo jurídico.
Um espanhol, usuário da internet, pode acessar a rede e
contatar com uma empresa alemã, vendedora ou prestadora de
serviços, graças ao acesso à internet, proporcionado pela filial
holandesa de um provedor norte-americano. As fronteiras
estatais se diluem na internet. A aldeia global se transformou
em realidade.
Podemos dizer que as questões legais mais espinhosas que
são colocadas no ciberespaço correspondem ao direito
internacional privado.”18
Com a utilização da internet, delitos considerados como
tradicionais, a exemplo do estelionato, podem ser praticados sem
que a vítima conheça sequer o rosto do autor da infração penal.
Nossa vida pessoal pode ser completamente devassada e colocada
à disposição de milhões de pessoas. Nossa intimidade, enfim,
estará disponível com apenas um toque no computador.
Muito se tem discutido, atualmente, a respeito dos chamados
delitos de informática, também reconhecidos doutrinariamente
através das expressões crimes de computador, crimes digitais,
crimes cibernéticos, crimes via internet, entre outros. Na verdade,
sob essa denominação se abrigam não somente os crimes em que
o objeto material da conduta praticada pelo agente é um
componente informático, a exemplo dos programas de computador
ou as próprias informações existentes em um dispositivo
informático, como também, e o que é mais comum, todas as demais
infrações penais em que a informática é utilizada como verdadeiro
instrumento para sua prática, razão pela qual observam Mário
Furlaneto Neto e José Augusto Chaves Guimarães que “a
informática permite não só o cometimento de novos delitos, como
potencializa alguns outros tradicionais (estelionato, por exemplo).
Há, assim, crimes cometidos com o computador (The computer as a
tool of a crime) e os cometidos contra o computador, isto é, contra
as informações e programas nele contidos (The computer as the
object of a crime).”19 É neste último sentido que, precipuamente, a
Lei nº 12.737, de 30 de novembro de 2012, inserindo o art. 154-A ao
Código Penal, criou o delito de invasão de dispositivo informático,
prevendo, outrossim, o chamado crime de informática puro, isto é,
aquele, segundo definição de Marco Aurélio Rodrigues da Costa,
cuja conduta ilícita “tenha por objetivo exclusivo o sistema de
computador, seja pelo atentado físico ou técnico do equipamento e
seus componentes, inclusive dados e sistemas.”20
Os delitos praticados através da informática podem ser de difícil
apuração. Lucrecio Rebollo Delgado destaca três características
muito importantes, que lhe são peculiares, dizendo que todas as
atuações ilícitas cometidas no âmbito informático se realizarão:
“Com celeridade e distância no tempo e no espaço. O conceito
de realização delitiva se encontra truncado com estas novas
formas. É frequente pensar que qualquer um pode praticar um
homicídio, mas este requer a proximidade espacial e temporal
de sua vítima. Sem embargo, no âmbito informático, o suposto
delinquente não necessita para a comissão delitiva nem a
presença física, nem temporal. Ademais disso as facilidades no
tratamento e processo da informação, com a possibilidade de
realizar programas que atuem de forma retardada ou controlada
no tempo, aproveitando as funções do sistema operativo do
computador, permitem ativar ou desativar determinadas ordens
na máquina, de maneira dinâmica, inclusive flexível. Dessa
forma, dependendo de uma ou outra circunstância prevista de
antemão, assim como a utilização das comunicações para
poder, em tempo real e fora do alcance ou controle do operador
do computador, atuar na forma desejada, permitem preparar
ações dolosas em prejuízo do outro, em tempo e espaços
distantes.
Facilidade de encobrimento. É característica praticamente
inseparável da atividade ilícita informática, a facilidade com que
se encobrem os fatos. É muito fácil, por exemplo, modificar um
programa para que realize uma atividade ilícita em benefício do
autor e estabelecer logo o que se denomina uma rotina
software que volte a modificar o programa de forma automática.
Dessa forma, não fica rastro da possível prática do delito. Se,
posteriormente, fosse realizado um estudo do programa, seria
impossível detectar a forma em que se cometeu o fato.
Tenhamos em mente a ideia de que é possível realizá-lo, mas
não teremos nenhuma prova de que se realizou.
Dificuldade probatória. A dificuldade em atribuir a autoria do fato
vem, em grande medida, determinada pela dificuldade
probatória que rodeia a ilicitude informática. Isso se deve à
própria dinâmica do processamento informático, que impede
detectar
uma
determinada
atividade
ou
processo
posteriormente à sua realização, e em outras ocasiões, devido
à facilidade para fazer desaparecer, de forma fraudulenta, por
meio da manipulação de programa e dados, as atividades,
operações, cálculos ou processos que foram realizados
anteriormente.”21
A Lei nº 12.737, de 30 de novembro de 2012, inserindo o art.
154-A ao Código Penal, com as modificações em sua redação
original trazida pela Lei nº 14.155, de 27 de maio de 2021, exigiu a
presença dos seguintes elementos para efeitos de caracterização do
delito de invasão de dispositivo informático, a saber: a) o núcleo
invadir; b) dispositivo informático alheio; c) conectado ou não à rede
de computadores; d) com o fim de obter, adulterar ou destruir dados
ou informações sem autorização expressa ou tácita do usuário do
dispositivo; e) ou de instalar vulnerabilidades para obter vantagem
ilícita.
O núcleo invadir tem o sentido de violar, penetrar, acessar.
Informática, na definição de Pablo Guillermo Lucero e Alejandro
Andrés Kohen é:
“A ciência aplicada que trata do estudo e aplicação do
processamento automático da informação, mediante a
utilização de elementos eletrônicos e sistemas de computação.
O termo informatique é um acrônimo das palavras francesas
information e automatique, o qual foi utilizado pelo engenheiro
francês Philippe Dreyfus no ano de 1962 para sua empresa
Societé d’Informatique Appliquée.
Posteriormente, esse termo começou a ser utilizado pelas
diferentes línguas quando se desejava contemplar a questão do
processamento automático da informação, sendo assim que, ao
ingressar no mundo castelhano, se conceitualizou a palavra
informática.
Para que se possa considerar um sistema informático se deve
verificar, necessariamente, a realização das seguintes tarefas
básicas:
Entrada: aquisição dos dados;
Processo: tratamento dos dados;
Saída: transmissão dos resultados.”22
Assim, de acordo com a conceituação e requisitos apontados
acima, o dispositivo informático seria todo aquele aparelho capaz de
receber os dados, tratá-los, bem como transmitir os resultados, a
exemplo do que ocorre com os computadores, smartphones, tablets
etc.
Exige o art. 154-A que esse dispositivo informático seja de uso
alheio, mas não, necessariamente, de propriedade alheia, com
exigia a redação típica anterior à modificação trazida pela Lei nº
14.155, de 27 de maio de 2021. Assim, como bem esclarece
Rogério Sanches Cunha, “ainda que o agente seja o proprietário do
aparelho, pode cometer o crime se esse aparelho estiver sendo
utilizado por alguém. E, por coerência, a lei agora faz referência à
falta de autorização expressa ou tácita do usuário do dispositivo,
não mais do titular”23.
Esse dispositivo informático alheio pode estar ou não conectado
à rede de computadores, ou seja, a um conjunto de dois ou mais
computadores autônomos e outros dispositivos, interligados entre si
com a finalidade de compartilhar informações e equipamentos, a
exemplo dos dados, impressoras, mensagens etc. Diz respeito,
portanto, a estruturas físicas (equipamentos) e lógicas (programas,
protocolos) que possibilitam que dois ou mais computadores
possam compartilhar suas informações entre si. A internet, por ser
considerada um amplo sistema de comunicação, conecta inúmeras
redes de computadores. As quatro redes mais conhecidas,
classificadas quanto ao tamanho, são: 1. LAN (Local Area Network)
– redes locais, privadas, em que os computadores ficam localizados
dentro de um mesmo espaço, como, por exemplo, uma residência,
uma sala comercial, um prédio etc.; 2. MAN (Metropolitan Area
Network) – redes metropolitanas, em que os computadores estão
ligados remotamente, a distâncias pequenas, podendo se localizar
na mesma cidade ou entre duas cidades próximas; 3. WAN (Wide
Area Network) – são redes extensas, ligadas, normalmente, entre
diferentes estados, países ou continentes, a exemplo do que ocorre
com o sistema bancário internacional; 4. PAN (Personal Area
Network) – são redes pessoais, presentes em regiões delimitadas,
próximas umas das outras.
Dessa forma, presentes os demais elementos exigidos pelo
tipo, poderá ocorrer a infração penal em estudo com a invasão de
um dispositivo informático alheio, como ocorre com um computador,
que pode não estar ligado a qualquer rede e ser acessado via
internet. Assim, se alguém, percebendo que seu vizinho esqueceu o
computador que havia levado para uma festa em que ambos
participavam, invadir o equipamento, com a finalidade de destruir
dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular
do dispositivo, poderá ser responsabilizado pelo tipo penal previsto
pelo caput do art. 154-A do Código Penal.
A conduta do agente, ou seja, o ato de invadir dispositivo
informático alheio, conectado ou não à rede de computadores, deve
ter sido levada a efeito com o fim de obter, adulterar ou destruir
dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular
do dispositivo.
Assim, não é a simples invasão, pela invasão, que importa na
prática da infração penal tipificada no caput do art. 154-A do diploma
repressivo, mas sim aquela que possui uma finalidade especial, ou
seja, aquilo que denominamos especial fim de agir, que consiste na
obtenção, adulteração ou destruição de dados ou informações sem
a autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo. Obter tem
o significado de adquirir, alcançar o que desejava, conseguir;
adulterar diz respeito a alterar, estragar, modificar o conteúdo,
corromper; destruir quer dizer aniquilar, fazer desaparecer, arruinar.
Tanto a obtenção quanto a adulteração e a destruição de dados
ou informações devem ser levadas a efeito sem a autorização
expressa ou tácita do titular do dispositivo. Assim, em havendo essa
autorização, o fato praticado será considerado atípico. Aqui, como
se percebe, o consentimento do ofendido é considerado como uma
causa legal de exclusão da tipicidade.
Conforme os esclarecimentos de Pablo Guillermo Lucero e
Alejandro Andrés Kohen:
“Uma das diferenças fundamentais que devemos compreender
no âmbito da informática é a existente entre dado e informação.
Um dado, por si mesmo, não constitui informação;
simplesmente é uma representação simbólica, atributo ou
característica de uma entidade.
Ao contrário e por sua parte, a informação é um conjunto de
dados processados que tem relevância, propósito e utilidade
para seu receptor.
É por isso que os dados se convertem em informação quando
seu criador lhes adiciona significado, sendo isso um processo
fundamental no campo da informática.”24
A conduta de invadir dispositivo informático alheio, conectado
ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de
mecanismo de segurança pode, ainda, além da finalidade de obter,
adulterar ou destruir dados ou informações, sem autorização
expressa ou tácita do titular do dispositivo, ser dirigida no sentido de
instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita.
Segundo o Centro de Estudos, Resposta e Tratamento de
Incidentes de Segurança no Brasil:
“Uma vulnerabilidade é definida como uma condição que,
quando explorada por um atacante, pode resultar em uma
violação de segurança. Exemplos de vulnerabilidades são
falhas no projeto, na implementação ou na configuração de
programas, serviços ou equipamentos de rede. Um ataque de
exploração de vulnerabilidades ocorre quando um atacante,
utilizando-se de uma vulnerabilidade, tenta executar ações
maliciosas, como invadir um sistema, acessar informações
confidenciais, disparar ataques contra outros computadores ou
tornar um serviço inacessível.”25
Ainda de acordo com o Centro de Estudos, Resposta e
Tratamento de Incidentes de Segurança no Brasil, pode o agente
instalar vulnerabilidades através dos chamados códigos maliciosos:
“Códigos maliciosos (malware) são programas especificamente
desenvolvidos para executar ações danosas e atividades
maliciosas em um computador. Algumas das diversas formas
como os códigos maliciosos podem infectar ou comprometer
um computador são:
•
•
•
•
•
pela exploração de vulnerabilidades existentes nos
programas instalados;
pela autoexecução de mídias removíveis infectadas, como
pen-drives;
pelo acesso a páginas web maliciosas, utilizando
navegadores vulneráveis;
pela ação direta de atacantes que, após invadirem o
computador,
incluem
arquivos
contendo
códigos
maliciosos;
pela execução de arquivos previamente infectados, obtidos
em anexos de mensagens eletrônicas, via mídias
removíveis, em páginas web ou diretamente de outros
computadores (através do compartilhamento de recursos).
Uma vez instalados, os códigos maliciosos passam a ter acesso
aos dados armazenados no computador e podem executar
ações em nome dos usuários, de acordo com as permissões de
cada usuário.
Os principais motivos que levam um atacante a desenvolver e a
propagar códigos maliciosos são a obtenção de vantagens
financeiras, a coleta de informações confidenciais, o desejo de
autopromoção e o vandalismo. Além disso, os códigos
maliciosos são, muitas vezes, usados como intermediários e
possibilitam a prática de golpes, a realização de ataques e a
disseminação de spam.”26
Alguns dos principais tipos de códigos maliciosos são: a) vírus –
programa malicioso que possui, basicamente, dois objetivos: atacar
e replicar automaticamente. O vírus depende da execução dos
arquivos hospedeiros para que possa se tornar ativo e continuar o
processo de infecção; b) worm – writer once read many – tem como
característica fundamental replicar mensagens sem o consentimento
do usuário, disseminando propagandas, arquivos maliciosos ou
congestionando a rede. Diferente do vírus, o worm não embute
cópias de si mesmo em outros programas ou arquivos e não
necessita ser explicitamente executado para se propagar. Sua
propagação se dá através da exploração de vulnerabilidades
existentes ou falhas na configuração de softwares instalados em
computadores; trojan horse (cavalo de troia) – literalmente, é um
presente de grego, pois é um programa que se passa por um
presente, a exemplo do que ocorre com álbuns de fotos, jogos,
cartões virtuais, algum aplicativo útil etc., mas, no entanto, abre
portas remotas para invasão dos hackers; spyware – são programas
espiões, a exemplo do keylogger, que captura e armazena as teclas
digitadas pelo usuário no teclado ou, ainda, o screenlogger, capaz
de capturar telas da área de trabalho do usuário, inclusive
armazenando a posição do cursor; bot – que é um programa que
dispõe de mecanismos de comunicação com o invasor que
permitem que ele seja controlado remotamente. Possui processo de
infecção e propagação similar ao do worm, ou seja, é capaz de se
propagar automaticamente, explorando vulnerabilidades existentes
em programas instalados em computadores; botnet – é uma rede
formada por centenas ou milhares de computadores zumbis e que
permite potencializar as ações danosas executadas pelos bots etc.
Enfim, são inúmeros os códigos maliciosos através dos quais
pode ser praticado o delito de invasão de dispositivo informático,
sendo que, sem nenhuma dose de exagero, a cada dia surgem
diferentes formas de ataques.
A parte final do caput do art. 154-A do Código Penal prevê,
ainda, que, para que se configure a infração penal em estudo, o
agente deve atuar no sentido de instalar a vulnerabilidade, a fim de
obter vantagem ilícita, que pode ou não ter natureza patrimonial.
Aqui, vale o alerta de Cleber Masson, quando aponta a:
“Ausência de crime no ato de simplesmente invadir o
computador alheio, sem nenhuma finalidade específica, a
exemplo do que se dá nas condutas de hackers que entram no
sistema de segurança de grandes empresas, avisando-as das
falhas operacionais. Nessas situações, é frequente a
contratação desses experts, mediante elevada remuneração,
justamente para aperfeiçoar a proteção virtual das
corporações.”27
3.2
Classificação doutrinária
Analisando a figura típica fundamental, prevista no caput do art.
154-A do Código Penal, crime comum, tanto com relação ao sujeito
ativo, quanto ao sujeito passivo; doloso; formal (uma vez que a
simples violação indevida de mecanismo de segurança, com a
finalidade de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem
autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar
vulnerabilidades para obter vantagem ilícita já configura o crime,
independentemente desses resultados); de dano; de forma livre;
instantâneo; monossubjetivo; plurissubsistente; transeunte ou não
transeunte (dependendo da hipótese concreta).
3.3
Objeto material e bens juridicamente protegidos
Bens juridicamente protegidos são a liberdade individual e o
direito à intimidade, configurados na proteção da inviolabilidade dos
dados e informações existentes em dispositivo informático.
Objeto material é o dispositivo informático alheio, conectado ou
não à rede de computadores, bem como os dados e as informações
nele armazenadas.
Dissertando sobre os dispositivos informáticos, objeto do delito
em estudo, preleciona Cleber Masson a sua divisão em quatro
grupos, a saber:
“a) dispositivos de processamento: são responsáveis pela
análise de dados, com o fornecimento de informações, visando
a compreensão de uma informação do dispositivo de entrada
para envio aos dispositivos de saída ou de armazenamento.
Exemplos: placas de vídeo e processadores de computadores e
smartphones;
b) dispositivos de entrada: relacionam-se à captação de dados
(escritos, orais ou visuais).
Exemplos: teclados, microfones e webcam;
c) dispositivos de saída: fornecem uma interface destinada ao
conhecimento ou captação, para outros dispositivos, da
informação (escrita, oral ou visual) produzida no
processamento. Exemplos: impressoras e monitores; e
d) dispositivos de armazenamento: dizem respeito à guarda de
dados ou informações para posterior análise. Exemplos:
pendrives, HDs (hard disk) e Cds (discos compactos).”28
3.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do delito de invasão de
dispositivo informático, haja vista que o tipo penal em estudo não
exige qualquer condição especial.
Sujeito passivo é o proprietário (pessoa física ou jurídica) do
dispositivo informático invadido, ou mesmo qualquer outra pessoa
que nele tenha arquivados dados ou informações.
3.5
Consumação e tentativa
Em se tratando de crime formal, o delito tipificado no caput do
art. 154-A se consuma no momento em que o agente consegue,
efetivamente, invadir dispositivo informático alheio, conectado ou
não à rede de computadores, com o fim de obter, adulterar ou
destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita
do titular do dispositivo, ou instalar vulnerabilidades para obter
vantagem ilícita.
Dessa forma, a obtenção, adulteração ou destruição dos dados
ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do
dispositivo ou a instalação de vulnerabilidades para obtenção de
vantagem ilícita, caso venham a ocorrer, devem ser consideradas
como mero exaurimento do crime.
Tendo em vista a sua natureza plurissubsistente, onde se pode
fracionar o iter criminis, será possível o raciocínio correspondente à
tentativa.
No que diz respeito à modalidade equiparada, ocorrerá a
consumação quando o agente produzir, oferecer, distribuir, vender
ou difundir dispositivo ou programa de computador com o intuito de
permitir a prática da conduta definida no caput do art. 154-A do
Código Penal. Não há necessidade, portanto, que o invasor
efetivamente utilize dispositivo ou programa de computador
produzido, oferecido, distribuído, vendido ou difundido pelo agente,
tratando, também aqui, de crime formal, em que a simples prática
dos comportamentos previstos pelo tipo tem o condão de consumar
a infração penal.
Se o dispositivo ou programa de computador produzido,
oferecido, vendido, distribuído ou difundido pelo agente for utilizado
para a invasão de dispositivo informático, esse último
comportamento será considerado como exaurimento do crime
tipificado no § 1º do art. 154-A do Código Penal.
Tal como ocorre para a modalidade prevista no caput, será
possível o reconhecimento da tentativa na modalidade equiparada,
tendo em vista, também, a possibilidade de fracionamento do iter
criminis no que diz respeito aos comportamentos narrados.
3.6
Elemento subjetivo
O dolo é o elemento subjetivo previsto pelo tipo penal sub
examen, não havendo previsão para a modalidade de natureza
culposa.
Há, ainda, o que doutrinariamente é reconhecido como especial
fim de agir, configurado nas expressões com o fim, prevista no caput
do art. 154-A do Código Penal, e com o intuito de, existente no § 1º
do mesmo artigo.
3.7
Modalidades comissiva e omissiva
O delito de invasão de dispositivo informático só pode ser
praticado comissivamente.
No entanto, poderá ser levado a efeito o raciocínio
correspondente ao crime omissivo impróprio se o agente, garantidor,
nos termos do art. 13, § 2º, do Código Penal, devendo e podendo
agir para impedir o resultado, nada fizer.
3.8
Modalidade qualificada
Assevera o § 3º do art. 154-A do Código Penal:
§ 3º Se da invasão resultar a
obtenção
de
conteúdo
de
comunicações eletrônicas privadas,
segredos comerciais ou industriais,
informações sigilosas, assim definidas
em lei, ou o controle remoto não
autorizado do dispositivo invadido:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5
(cinco) anos, e multa.
Inicialmente, incidirá na modalidade qualificada o agente que,
com a invasão de dispositivo informático, obtiver o conteúdo de
comunicações eletrônicas privadas. De acordo com as alíneas b e c
do art. 4º do Capítulo II da Convenção das Nações Unidas sobre o
uso de comunicações eletrônicas nos contratos internacionais, cujos
conceitos podem ser utilizados na interpretação do dispositivo penal
em exame, embora o § 3º do art. 154-A mencione comunicações
eletrônicas privadas:
“(b) ‘Comunicação eletrônica’ significa qualquer comunicação
feita pelas partes utilizando-se de mensagens eletrônicas;
(c) ‘Mensagem eletrônica’ significa uma informação criada,
enviada, recebida ou armazenada por mecanismo eletrônico,
magnético, óptico ou similar, incluindo, mas não se limitando, a
intercâmbio eletrônico de dados, correio eletrônico, telegrama,
telex ou telecópia; (...)”.
Da mesma forma ocorrerá o delito qualificado se da invasão
resultar a obtenção de segredos comerciais ou industriais,
informações sigilosas, assim definidas em lei. Cuida-se, na última
parte do dispositivo, de norma penal em branco, uma vez que, para
efeitos de reconhecimento das informações sigilosas, haverá
necessidade de definição legal.
No que diz respeito à Administração Pública, o inciso III do art.
4º da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, traduziu o conceito
de informação sigilosa, dizendo:
Art. 4º Para os efeitos desta Lei,
considera-se:
[...]
III – informação sigilosa: aquela
submetida
temporariamente
à
restrição de acesso público em razão
de sua imprescindibilidade para a
segurança da sociedade e do Estado;
Além das hipóteses anteriores, importará no reconhecimento do
delito qualificado quando o agente, em virtude de seu
comportamento, obtiver o controle remoto não autorizado do
dispositivo invadido. Existem programas que permitem que o
dispositivo informático invadido seja operado de outro computador,
em que o invasor terá acesso aos seus dados e informações.
Através desses programas é possível compartilhar pastas, jogar em
rede, conversar, acessar outros programas, impressoras, editar
arquivos, enfim, o invasor atua como se estivesse em frente à tela
do dispositivo invadido.
Não é incomum, contudo, que profissionais de confiança, com a
permissão dos proprietários dos dispositivos de informática, se
utilizem desses programas para que, de seus locais de trabalho,
ingressem nas máquinas de seus clientes, sempre com a permissão
destes últimos. Nesses casos, como se percebe, o consentimento
do proprietário afastará a tipicidade do fato.
A Lei nº 14.155, de 27 de maio de 2021 modificou a pena
prevista inicialmente para a modalidade qualificada do delito de
invasão de dispositivo informático passando a cominar, agora, uma
pena de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
3.9
Modalidade equiparada
Assevera o § 1º do art. 154-A, verbis:
§ 1º Na mesma pena incorre quem
produz, oferece, distribui, vende ou
difunde dispositivo ou programa de
computador com o intuito de permitir a
prática da conduta definida no caput.
Produzir significa criar, gerar, fabricar; oferecer importa em
ofertar, gratuita ou onerosamente; distribuir tem o sentido de
partilhar, repartir; vender tem o significado de transferir (o dispositivo
ou o programa de computador) mediante um preço determinado;
difundir diz respeito a propagar, divulgar, espalhar.
Todas essas condutas, vale dizer (produzir, oferecer, distribuir,
vender ou difundir), dizem respeito a dispositivo ou programa de
computador. O art. 1º da Lei nº 9.609, de 19 de fevereiro de 1998,
traduz o conceito de programa de computador, dizendo:
Art. 1º Programa de computador é a
expressão de um conjunto organizado
de instruções em linguagem natural
ou codificada, contida em suporte
físico de qualquer natureza, de
emprego necessário em máquinas
automáticas
de
tratamento
da
informação, dispositivos, instrumentos
ou
equipamentos
periféricos,
baseados em técnica digital ou
análoga, para fazê-los funcionar de
modo e para fins determinados.
Conforme o disposto na parte final do § 1º do art. 154-A do
Código Penal, as condutas acima narradas devem ser cometidas
com o intuito de permitir a prática da conduta definida no caput do
citado dispositivo legal, ou seja, o agente produz, oferece, distribui,
vende ou difunde dispositivo ou programa de computador, no
sentido de permitir que terceira pessoa invada dispositivo
informático alheio, conectado ou não à rede de computadores,
mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com o
fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem
autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar
vulnerabilidades para obter vantagem ilícita.
Com essas hipóteses, a lei quis, portanto, punir de maneira
independente aquele que, de alguma forma, auxilia para que
terceiro tenha facilitada a prática do tipo penal constante do caput
do art. 154-A do diploma repressivo.
3.10
Causas especiais de aumento de pena
Os §§ 2º, 4º e 5º preveem três causas especiais de aumento de
pena, dizendo:
§2º Aumenta-se a pena de 1/3 (um
terço) a 2/3 (dois terços) se da
invasão resulta prejuízo econômico. §
4º Na hipótese do § 3º, aumenta-se a
pena de um a dois terços se houver
divulgação,
comercialização
ou
transmissão a terceiro, a qualquer
título, dos dados ou informações
obtidos.
§ 5º Aumenta-se a pena de um terço à
metade se o crime for praticado
contra:
I – Presidente da República,
governadores e prefeitos;
II – Presidente do Supremo Tribunal
Federal;
III – Presidente da Câmara dos
Deputados, do Senado Federal, de
Assembleia Legislativa de Estado, da
Câmara Legislativa do Distrito Federal
ou de Câmara Municipal; ou
IV
–
dirigente
máximo
da
administração direta e indireta federal,
estadual, municipal ou do Distrito
Federal.
No que diz respeito ao § 2º do art. 154-A do Código Penal é
importante frisar que o aumento de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços)
somente será aplicado às hipóteses constantes do caput, bem como
de seu § 1º, tendo em vista a situação topográfica, devendo-se
aplicar a regra hermenêutica que determina que os parágrafos
somente sejam aplicados às hipóteses anteriores.
Além disso, o aumento somente será possível no critério
trifásico, previsto pelo art. 68 do Código Penal, se ficar comprovado
que o comportamento praticado pelo agente causou, efetivamente,
prejuízo econômico à vítima.
Conforme determina o § 4º, na hipótese do § 3º, ou seja, e da
invasão resultar a obtenção de conteúdo de comunicações
eletrônicas privadas, segredos comerciais ou industriais,
informações sigilosas, assim definidas em lei, ou o controle remoto
não autorizado do dispositivo invadido, a pena será aumentada de
um a dois terços se houver divulgação, comercialização ou
transmissão a terceiro, a qualquer título, dos dados ou informações
obtidos.
Finalmente, a pena ainda será aumentada de um terço até a
metade se quaisquer dos crimes (previstos no caput, §§ 1º e 3º, do
art. 154-A do Código Penal) forem praticados contra as autoridades
mencionadas no § 4º do art. 154-A do diploma repressivo.
3.11
Pena, suspensão condicional do processo, ação penal
A pena cominada no preceito secundário do caput do art. 154-A
do Código Penal é de detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e
multa.
Para a modalidade qualificada de invasão de dispositivo
informático, prevista no § 3º do art. 154-A do diploma repressivo, a
pena é de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
Nos termos do § 2º do artigo em análise, aumenta-se a pena de
1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) se da invasão resulta prejuízo
econômico.
De acordo com o § 4º, na hipótese do § 3º, ambos do art. 154-A
do Código Penal, aumenta-se a pena de um a dois terços se houver
divulgação, comercialização ou transmissão a terceiro, a qualquer
título, dos dados ou informações obtidos.
O § 5º do mesmo artigo determina que a pena será aumentada
de um terço à metade se o crime for praticado contra:
I – Presidente da República,
governadores e prefeitos;
II – Presidente do Supremo Tribunal
Federal;
III – Presidente da Câmara dos
Deputados, do Senado Federal, de
Assembleia Legislativa de Estado, da
Câmara Legislativa do Distrito Federal
ou de Câmara Municipal; ou
IV
–
dirigente
máximo
da
administração direta e indireta federal,
estadual, municipal ou do Distrito
Federal.
Será possível a proposta de suspensão condicional do
processo, nos termos do art. 89 da Lei nº 9.099/95, somente para
infração penal tipificada no caput do art. 154-A do Código Penal.
A ação penal, conforme determinação contida no art. 154-B,
incluído também pela Lei nº 12.737, de 30 de novembro de 2012,
será de iniciativa pública condicionada à representação, salvo se o
crime é cometido contra a administração pública direta ou indireta
de qualquer dos Poderes da União, Estados, Distrito Federal ou
Municípios, ou contra empresas concessionárias de serviços
públicos.
3.12
3.12.1
Destaques
Concurso de causas de aumento de pena
Poderá ocorrer a hipótese em que, no caso concreto, seja
vislumbrada a possibilidade de aplicação de mais de uma
majorante. Assim, imagine-se a hipótese em que o agente tenha,
em virtude da invasão de dispositivo informático alheio, causado
prejuízo econômico (§ 2º do art. 154-A do CP), bem como esse fato
tenha sido cometido em face do presidente do Supremo Tribunal
Federal (inciso I do § 5º do art. 154-A do CP). Nesse caso,
poderíamos aplicar, simultaneamente, as duas causas especiais de
aumento de pena?
Como resposta, prevalecerá a regra constante do parágrafo
único do art. 68 do Código Penal, que assevera: “No concurso de
causas de aumento ou de diminuição, previstas na parte especial,
pode o juiz limitar-se a um só aumento ou a uma só diminuição,
prevalecendo, todavia, a causa que mais aumente ou diminua.”
3.12.2
Marco civil da internet
Em 23 de abril de 2014, foi editada a Lei nº 12.965,
estabelecendo princípios, garantias, direitos e deveres para o uso
da internet no Brasil. Com ela, foram definidos vários conceitos, que
deverão ser utilizados quando da interpretação dos tipos penais, a
exemplo do significado da própria internet, que, segundo o inciso I
do art. 5º do referido diploma legal, é o sistema constituído do
conjunto de protocolos lógicos, estruturado em escala mundial para
uso público e irrestrito, com a finalidade de possibilitar a
comunicação de dados entre terminais por meio de diferentes redes.
O referido diploma legal foi regulamentado pelo Decreto nº
8.771, de 11 de maio de 2016, para tratar das hipóteses admitidas
de discriminação de pacotes de dados na internet e de degradação
de tráfego, indicar procedimentos para guarda e proteção de dados
por provedores de conexão e de aplicações, apontar medidas de
transparência na requisição de dados cadastrais pela Administração
Pública e estabelecer parâmetros para fiscalização e apuração de
infrações.
3.12.3
Lei de proteção de dados pessoais
A Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, dispôs sobre a
proteção de dados pessoais, alterando, ainda, a Lei nº 12.965, de
23 de abril de 2014 (Marco Civil da Internet), explicitando, em seus
arts. 1º e 2º, seus objetivos e fundamentos, dizendo, verbis:
Art. 1º Esta Lei dispõe sobre o
tratamento de dados pessoais,
inclusive nos meios digitais, por
pessoa natural ou por pessoa jurídica
de direito público ou privado, com o
objetivo de proteger os direitos
fundamentais de liberdade e de
privacidade e o livre desenvolvimento
da personalidade da pessoa natural.
Art. 2º A disciplina da proteção de
dados
pessoais
tem
como
fundamentos:
I – o respeito à privacidade;
II – a autodeterminação informativa;
III – a liberdade de expressão, de
informação, de comunicação e de
opinião;
IV – a inviolabilidade da intimidade, da
honra e da imagem;
V – o desenvolvimento econômico e
tecnológico e a inovação;
VI – a livre-iniciativa, a livre
concorrência
e
a
defesa
do
consumidor; e VII – os direitos
humanos, o livre desenvolvimento da
personalidade, a dignidade e o
exercício da cidadania pelas pessoas
naturais.
3.12.4
Invasão de dispositivo informático
correspondência eletrônica
e
violação
de
O art. 10 da Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996, assevera que
constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas,
de informática ou telemática, ou quebrar segredo de justiça ou com
objetivos não autorizados em lei, cominando uma pena de reclusão
de dois a quatro anos, e multa.
O conflito aparente de normas deverá ser resolvido com a
aplicação do princípio da especialidade, afastando-se a incidência
do art. 154-A do Código Penal, quando for a hipótese de violação de
correspondência eletrônica.
3.12.5
Invasão de dispositivo informático e quebra de sigilo
bancário
O art. 10 da Lei Complementar nº 105, de 10 de janeiro de
2001, diz que a quebra de sigilo, fora das hipóteses por ela
autorizada, constitui crime e sujeita os responsáveis à pena de
reclusão, de um a quatro anos, e multa, aplicando-se, no que
couber, o Código Penal, sem prejuízo de outras sanções cabíveis.
Aqui também terá aplicação o princípio da especialidade,
quando a conduta do agente disser respeito, especificamente, à
quebra de sigilo bancário através da invasão de dispositivos
informáticos, não tendo aplicação, portanto, o art. 154-A do Código
Penal.
3.12.6
Infiltração de agentes de polícia na internet
A Lei nº 13.441, de 8 de maio de 2017, previu a possibilidade
de infiltração de agentes de polícia na internet com o fim de
investigar crimes contra a dignidade sexual de criança e de
adolescente, fazendo inserir a Seção V-A na Lei nº 8.069, de 13 de
julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), cujo art. 190A, nela previsto, elenca as seguintes regras para que possa
efetivamente ocorrer a mencionada infiltração:
I – será precedida de autorização
judicial devidamente circunstanciada e
fundamentada, que estabelecerá os
limites da infiltração para obtenção de
prova, ouvido o Ministério Público;
II – dar-se-á mediante requerimento
do
Ministério
Público
ou
representação de delegado de polícia
e conterá a demonstração de sua
necessidade, o alcance das tarefas
dos policiais, os nomes ou apelidos
das pessoas investigadas e, quando
possível, os dados de conexão ou
cadastrais
que
permitam
a
identificação dessas pessoas;
III – não poderá exceder o prazo de
90 (noventa) dias, sem prejuízo de
eventuais renovações, desde que o
total não exceda a 720 (setecentos e
vinte) dias e seja demonstrada sua
efetiva necessidade, a critério da
autoridade judicial.
A Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, inseriu, ainda, os
arts. 10-A, 10-B, 10-C e 10-D na Lei nº 12.850, de 2 de agosto de
2013, dispondo sobre a ação de agentes de polícia infiltrados
virtuais, dizendo:
Art. 10-A. Será admitida a ação de
agentes de polícia infiltrados virtuais,
obedecidos os requisitos do caput do
art. 10, na internet, com o fim de
investigar os crimes previstos nesta
Lei e a eles conexos, praticados por
organizações criminosas, desde que
demonstrada sua necessidade e
indicados o alcance das tarefas dos
policiais, os nomes ou apelidos das
pessoas investigadas e, quando
possível, os dados de conexão ou
cadastrais
que
permitam
a
identificação dessas pessoas.
§ 1º Para efeitos do disposto nesta
Lei, consideram-se:
I – dados de conexão: informações
referentes a hora, data, início,
término, duração, endereço de
Protocolo de Internet (IP) utilizado e
terminal de origem da conexão;
II – dados cadastrais: informações
referentes a nome e endereço de
assinante ou de usuário registrado ou
autenticado para a conexão a quem
endereço de IP, identificação de
usuário ou código de acesso tenha
sido atribuído no momento da
conexão.
§ 2º Na hipótese de representação do
delegado
de
polícia,
o
juiz
competente, antes de decidir, ouvirá o
Ministério Público.
§ 3º Será admitida a infiltração se
houver indícios de infração penal de
que trata o art. 1º desta Lei e se as
provas não puderem ser produzidas
por outros meios disponíveis.
§ 4º A infiltração será autorizada pelo
prazo de até 6 (seis) meses, sem
prejuízo de eventuais renovações,
mediante
ordem
judicial
fundamentada e desde que o total não
exceda a 720 (setecentos e vinte) dias
e seja comprovada sua necessidade.
§ 5º Findo o prazo previsto no § 4º
deste
artigo,
o
relatório
circunstanciado,
juntamente
com
todos os atos eletrônicos praticados
durante a operação, deverão ser
registrados, gravados, armazenados e
apresentados ao juiz competente, que
imediatamente cientificará o Ministério
Público.
§ 6º No curso do inquérito policial, o
delegado de polícia poderá determinar
aos seus agentes, e o Ministério
Público e o juiz competente poderão
requisitar, a qualquer tempo, relatório
da atividade de infiltração.
§ 7º É nula a prova obtida sem a
observância do disposto neste artigo.
Art. 10-B. As informações da
operação
de
infiltração
serão
encaminhadas diretamente ao juiz
responsável pela autorização da
medida, que zelará por seu sigilo.
Parágrafo único. Antes da conclusão
da operação, o acesso aos autos será
reservado ao juiz, ao Ministério
Público e ao delegado de polícia
responsável pela operação, com o
objetivo de garantir o sigilo das
investigações.
Art. 10-C. Não comete crime o policial
que oculta a sua identidade para, por
meio da internet, colher indícios de
autoria e materialidade dos crimes
previstos no art. 1º desta Lei.
Parágrafo único. O agente policial
infiltrado que deixar de observar a
estrita finalidade da investigação
responderá
pelos
excessos
praticados.
Art. 10-D. Concluída a investigação,
todos os atos eletrônicos praticados
durante a operação deverão ser
registrados, gravados, armazenados e
encaminhados ao juiz e ao Ministério
Público, juntamente com relatório
circunstanciado.
Parágrafo único. Os atos eletrônicos
registrados citados no caput deste
artigo serão reunidos em autos
apartados e apensados ao processo
criminal juntamente com o inquérito
policial,
assegurando-se
a
preservação da identidade do agente
policial infiltrado e a intimidade dos
envolvidos.
3.13
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: qualquer pessoa.
Passivo: é o proprietário
(pessoa física ou jurídica)
do dispositivo informático
invadido
ou
mesmo
qualquer outra pessoa que
nele
tenha
arquivados
dados ou informações.
Objeto material
É o dispositivo informático
alheio, conectado ou não à rede
de computadores.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
São a liberdade individual e o
direito
à
intimidade
configurados na proteção da
inviolabilidade dos dados e
informações existentes em
dispositivo informático.
Elemento subjetivo
»
O dolo é o elemento
subjetivo previsto pelo tipo
penal sub examen.
»
»
Não há previsão para a
modalidade de natureza
culposa.
Há,
ainda,
o
que
doutrinariamente
é
reconhecido como especial
fim de agir, configurado nas
expressões com o fim,
prevista no caput do art.
154-A do Código Penal, e
com o intuito de, existente
no § 1º do mesmo artigo.
Modalidades
omissiva
»
comissiva
e
O delito de invasão de
dispositivo informático só
pode
ser
praticado
comissivamente.
»
No entanto, poderá ser
levado a efeito o raciocínio
correspondente ao crime
omissivo impróprio, nos
termos do art. 13, § 2º, do
CP.
Consumação e tentativa
»
Em se tratando de um
crime formal, o delito
tipificado no caput do art.
154-A se consuma no
momento em que o agente
consegue,
efetivamente,
invadir
dispositivo
informático
alheio,
conectado ou não à rede
de
computadores,
mediante violação indevida
»
»
de
mecanismo
de
segurança, com o fim de
obter, adulterar ou destruir
dados ou informações sem
autorização expressa ou
tácita
do
titular
do
dispositivo.
ou
instalar
vulnerabilidades para obter
vantagem ilícita.
Tendo em vista a sua
natureza plurissubsistente,
em que se pode fracionar o
iter criminis, será possível o
raciocínio correspondente à
tentativa.
No que diz respeito à
modalidade
equiparada
ocorrerá a consumação
quando o agente produzir,
oferecer, distribuir, vender
ou difundir dispositivo ou
programa de computador
»
com o intuito de permitir a
prática da conduta definida
no caput do art. 154-A do
Código Penal. Não há
necessidade, portanto, que
o invasor efetivamente
utilize
dispositivo
ou
programa de computador
produzido,
oferecido,
distribuído, vendido ou
difundido
pelo
agente,
tratando, também aqui, de
crime formal, em que a
simples
prática
dos
comportamentos previstos
pelo tipo tem o condão de
consumar a infração penal.
Tal como ocorre para a
modalidade prevista no
caput, será possível o
reconhecimento
da
tentativa na
equiparada.
modalidade
1
BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa, p. 407.
2
JESUS, Damásio E. de. Direito penal, v. 2, p. 292.
3
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 342.
4
FARIA, Bento de. Código penal brasileiro, v. IV, p. 304.
5
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 2, p. 533-534.
6
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado, p. 491.
7
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VI, p. 251.
8
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal – Parte especial, (arts. 121 a 160,
CP), p. 246.
9
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. v, p. 260.
10
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 197.
11
CUNHA, Sanches Rogério. Manual de direito penal – parte especial, volume único, p.
258/259.
12
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado, p. 493.
13
JESUS, Damásio E. de. Direito penal, vol. 2, p. 295-296.
14
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal – Parte especial (arts. 121 a 160,
CP), p. 252.
15
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal – Parte especial (arts. 121 a 160,
CP), p. 252.
16
ROSSINI, Augusto. Informática, telemática e direito penal, p. 26.
17
ORTEGA, Juan José López. Intimidad informática y derecho penal. Derecho a la
intimidad y nuevas tecnologias, p. 109-110.
18
JIMENEZ, Cinta Castillo. Protección del derecho a la intimidad y uso de las nuevas
tecnologias de la información, p. 39-40.
19
NETO, Mário Furlaneto; GUIMARÃES, José Augusto Chaves. Crimes na internet:
elementos para uma reflexão sobre a ética informacional, p. 69.
20
RODRIGUES DA COSTA, Marco Aurélio. Crimes de informática. Jus Navigandi,
Teresina,
ano
1,
n.
12,
maio
de
1997.
Disponível
em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1826>. Acesso em: 20 jan. 2009.
21
DELGADO, Lucrecio Rebollo. Derechos fundamentales y proteción de datos, p. 187188.
22
GUILLERMO LUCERO, Pablo; ANDRÉS KOHEN, Alejandro. Delitos informáticos, p.
15-16.
23
CUNHA, Rogério Sanches. Lei 14.155/21 e os crimes de fraude digital. Primeiras
impressões
e
reflexos
no
CP
e
no
CPP.
Disponível
em:
https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2021/05/28/lei-14-15521-e-os-crimesde-fraude-digital-primeiras-impressoes-e-reflexos-no-cp-e-no-cpp/.Acessado em 29 de
maio de 2021.
24
GUILLERMO LUCERO, Pablo; ANDRÉS KOHEN, Alejandro. Delitos informáticos, p.
16.
25
Disponível em: <http://cartilha.cert.br/ataques/>. Acesso em: 10 dez. 2012.
26
Disponível em: <http://cartilha.cert.br/malware/>. Acesso em: 10 dez. 2012.
27
MASSON, Cleber. Direito penal esquematizado – parte especial, v. 2, p. 311.
28
MASSON, Cleber. Direito penal esquematizado – parte especial, v. 2, p. 309.
Parte II
DOS CRIMES CONTRA O
PATRIMÔNIO
Capítulo I
Do Furto
1.
INTRODUÇÃO
O Título II da Parte Especial do Código Penal cuida dos crimes
contra o patrimônio, que é dividido em oito capítulos. Sete deles
dizem respeito a delitos em espécie e o último cuida das
disposições gerais a eles aplicáveis, a saber:
Capítulo I – Do furto – arts. 155 e 156;
Capítulo II – Do roubo e da extorsão –
arts. 157 a 160;
Capítulo III – Da usurpação – arts.
161 e 162;
Capítulo IV – Do dano – arts. 163 a
167;
Capítulo V – Da apropriação indébita
– arts. 168 a 170;
Capítulo VI – Do estelionato e outras
fraudes – arts. 171 a 179;
Capítulo VII – Da receptação – arts.
180 e 180-A;
Capítulo VIII – Disposições gerais –
arts. 181 a 183.
De todos os Títulos constantes da Parte Especial do Código
Penal, o Título II é um dos que mais se destacam nas estatísticas
judiciárias e policiais. Os crimes contra o patrimônio figuram na lista
daquelas infrações penais mais praticadas em nossa sociedade. A
pergunta que devemos nos fazer nesse momento é: por que isso
acontece?
Estudos criminológicos já demonstraram que as infrações
patrimoniais são praticadas em decorrência da ausência do Estado,
melhor dizendo, da má administração da coisa pública, que gera a
desigualdade social, criando bolsões de miséria, separando, cada
vez mais, as classes sociais existentes.
A situação de miserabilidade gera revolta, indignação,
desconfiança dos poderes públicos e cria um clima de tensão. De
um lado, a mídia bombardeando nossa mente, forçando-nos a
“entrar na moda”, obrigando-nos a todo tipo de compras inúteis e
desnecessárias; do outro, pessoas desempregadas ou, mesmo
empregadas, recebendo importâncias irrisórias, que mal atendem às
suas necessidades básicas de subsistência, sofrem a consequência
da pressão social, que as discrimina pela maneira de se vestir, falar,
por não terem casa própria, veículos etc.
Com isso, queremos afirmar, em poucas linhas, que a ausência
do Estado Social é fator preponderante para a prática dos crimes
patrimoniais. Talvez o leitor nunca tenha se perguntado por que no
Japão o índice de crimes patrimoniais é tão baixo. Será porque os
tipos penais japoneses são mais bem redigidos do que os nossos e,
com isso, a mensagem punitiva do Estado chega melhor ao
conhecimento de todos, ou será porque o Japão cumpre com suas
funções sociais, proporcionando a quase todos uma vida digna?
Obviamente que o cumprimento das funções sociais pelo
Estado inibe essa espécie de criminalidade. Aqueles que possuem
uma condição financeira razoável, que lhes permite a satisfação de
alguns desejos (pois satisfazer a todos seria impossível, pelo menos
para a maioria absoluta da população), não estarão propensos a
praticar quaisquer dos crimes previstos no Título II da Parte Especial
do Código Penal. Você imaginaria, por exemplo, alguém com uma
renda superior a 20 salários mínimos roubando um turista em plena
luz do dia, arrancando-lhe das mãos a sua câmera fotográfica ou,
mesmo, sequestrando alguém com o fim de obter um resgate? Isso
aconteceria somente como exceção, justificando a regra geral.
Dessa forma, podemos concluir que os crimes patrimoniais,
previstos no Título em estudo, originam-se, basicamente, da
ausência do Estado Social, que cria, dada a sua má administração,
um abismo entre as classes sociais, gerando, consequentemente,
um clima de tensão, altamente propício ao desenvolvimento de uma
mentalidade voltada à prática dessas infrações penais.
O legislador, mesmo sabendo que o Estado é o responsável
pelo índice assustador de crimes patrimoniais, parece fazer parte do
“jogo” da Administração: pune mais severamente aqueles que se
veem compelidos a praticar infrações penais patrimoniais, muitas
vezes considerados também vítimas do sistema, do que os
verdadeiros responsáveis por essa situação de calamidade, que
praticam, com seus “colarinhos brancos”, as piores e mais
hediondas infrações penais.
Como os criminosos de “colarinho branco” não sujam as mãos
em suas infrações penais, bem como pelo fato de que, como
consequência de seus comportamentos, como regra, não
conseguimos enxergar o filete de sangue na calçada, para a
população, parece que seus crimes não são tão importantes assim.
Na verdade, muito pelo contrário, são verdadeiros genocidas que
exterminam a sociedade, matando milhares ao mesmo tempo com
suas subtrações.
No Título correspondente aos crimes contra o patrimônio, será
fundamental ao exegeta utilizar a interpretação denominada
sistêmica ou sistemática para que se tenha melhor compreensão
dos tipos penais. Imagine-se, por exemplo, a hipótese do art. 159,
que prevê o delito de extorsão mediante sequestro, cujo caput
possui a seguinte redação:
Art. 159. Sequestrar pessoa com o
fim de obter, para si ou para outrem,
qualquer vantagem, como condição
ou preço do resgate.
O mencionado art. 159 do Código Penal tem a vantagem como
um dos elementos exigidos pelo tipo. A nossa indagação, no
momento, seria: a que tipo de vantagem faz menção o referido
artigo? Seria vantagem de qualquer natureza ou somente aquela de
natureza patrimonial?
Levando-se a efeito uma interpretação sistêmica, com a
necessária observação da situação topográfica do artigo em estudo,
chegaríamos à conclusão de que a vantagem exigida pelo tipo penal
seria tão somente aquela de natureza patrimonial, pois que o art.
159 encontra-se inserido no Título correspondente aos crimes
contra o patrimônio, sendo este, portanto, o bem jurídico
precipuamente protegido.
Da mesma forma seria o raciocínio relativo ao crime de
latrocínio. Suponha-se que o agente, dolosamente, cause a morte
da vítima, com a finalidade de subtrair-lhe o relógio. Teria, de acordo
com o seu elemento subjetivo, cometido o delito de latrocínio. Neste
caso, pergunta-se: como a morte foi dolosa, mesmo tendo o agente
a finalidade de subtrair os bens da vítima, o fato deveria ser levado
a julgamento pelo Júri, conforme determina o inciso XXXVIII do art.
5º da Constituição Federal? Não, uma vez que o delito de latrocínio
encontra-se no Título II da Parte Especial do Código Penal, que diz
respeito aos crimes contra o patrimônio, razão pela qual, mesmo
tendo o agente causado dolosamente a morte da vítima, a finalidade
de subtração patrimonial fará com que o seu julgamento seja
realizado pelo juízo monocrático, e não pelo Júri.
Merece destaque, ainda, o fato de que em muitas infrações
penais contidas neste Título, embora o patrimônio seja o bem
precipuamente protegido, isso não afasta a possibilidade de, com
ele, serem tutelados bens de outra natureza, a exemplo do citado
crime de latrocínio. Nele, além do patrimônio, protege-se a vida,
tratando-se, pois, de um delito pluriofensivo, razão pela qual a pena
correspondente ao latrocínio (reclusão, de 20 a 30 anos) é superior
à do homicídio, mesmo que qualificado (reclusão, de 12 a 30 anos).
Faremos, portanto, a partir do art. 155 do Código Penal, o
estudo dos tipos penais que visam à proteção precípua do
patrimônio, apontando suas principais características.
1.1
Jurisprudência em teses do Superior Tribunal de Justiça,
edição nº 87: crimes contra o patrimônio – IV
1)
2)
O crime de extorsão é formal e consuma-se no momento
em que a violência ou a grave ameaça é exercida,
independentemente da obtenção da vantagem indevida.
No crime de extorsão, a ameaça a que se refere o caput do
art. 158 do CP, exercida com o fim de obter a indevida
vantagem econômica, pode ter por conteúdo grave dano
aos bens da vítima.
3)
4)
5)
6)
7)
8)
O delito de dano ao patrimônio público, quando praticado
por preso para facilitar a fuga do estabelecimento prisional,
demanda a demonstração do dolo específico de causar
prejuízo ao bem público (animus nocendi), sem o qual a
conduta é atípica.
A ausência de menção expressa ao patrimônio do Distrito
Federal no art. 163, parágrafo único, III, do Código Penal
torna inviável a configuração da forma qualificada do crime
de dano quando o bem danificado for distrital, em virtude
da vedação da analogia in malam partem no sistema penal
brasileiro.
Não é possível a aplicação do princípio da insignificância
nas hipóteses de dano qualificado, quando o prejuízo ao
patrimônio público atingir outros bens de relevância social e
tornar evidente o elevado grau de periculosidade social da
ação e de reprovabilidade da conduta do agente.
O crime de apropriação indébita previdenciária (art. 168-A
do CP) é de natureza material e exige a constituição
definitiva do débito tributário perante o âmbito
administrativo para configurar-se como conduta típica.
O delito de apropriação indébita previdenciária constitui
crime omissivo próprio, que se perfaz com a mera omissão
de recolhimento da contribuição previdenciária dentro do
prazo e das formas legais, prescindindo, portanto, do dolo
específico.
A apropriação indébita previdenciária é crime instantâneo e
unissubsistente, sendo a mera omissão de recolhimento da
contribuição previdenciária dentro do prazo e das formas
legais suficiente para a caracterização da continuidade
delitiva.
9)
10)
11)
12)
13)
14)
15)
É possível o reconhecimento da continuidade delitiva de
crimes de apropriação indébita previdenciária (art. 168-A
do CP), bem como entre o crime de apropriação indébita
previdenciária e o crime de sonegação previdenciária (art.
337-A do CP) praticados na administração de empresas
distintas, mas pertencentes ao mesmo grupo econômico.
O pagamento integral dos débitos oriundos de apropriação
indébita previdenciária, ainda que efetuado após o
recebimento da denúncia, mas antes do trânsito em julgado
da sentença condenatória, extingue a punibilidade, nos
termos do art. 9º, § 2º, da Lei nº 10.684/2003.
Aplica-se o princípio da insignificância ao crime de
apropriação indébita previdenciária, quando, na ocasião do
delito, o valor do débito com a Previdência Social não
ultrapassar o montante de R$ 10.000,00 (dez mil reais),
previsto no art. 20 da Lei nº 10.522/2002.
O delito de receptação (art. 180 do CP), nas modalidades
transportar, conduzir ou ocultar, é crime permanente, cujo
flagrante perdura enquanto o agente se mantiver na posse
do bem que sabe ser produto de crime.
No crime de receptação, se o bem houver sido apreendido
em poder do acusado, caberá à defesa apresentar prova
acerca da origem lícita da res ou de sua conduta culposa
(art. 156 do CPP), sem que se possa falar em inversão do
ônus da prova.
Talonário de cheques pode ser objeto material do crime de
receptação, dada a existência de valor econômico do bem
e a possibilidade de posterior utilização fraudulenta para
obtenção de vantagem ilícita.
É inaplicável o princípio da consunção entre os crimes de
receptação e porte ilegal de arma de fogo por serem delitos
autônomos e de natureza jurídica distinta, devendo o
agente responder por ambos os delitos em concurso
material.
16) Justifica-se a opção do legislador pela imposição de pena
mais grave ao delito de receptação qualificada em relação
à figura simples pois a comercialização ou industrialização
do produto de origem ilícita lesiona o mercado e os
consumidores
2.
FURTO
Furto Art. 155. Subtrair, para si ou
para outrem, coisa alheia móvel:
Pena – reclusão, de um a quatro
anos, e multa.
§ 1º A pena aumenta-se de um terço,
se o crime é praticado durante o
repouso noturno.
§ 2º Se o criminoso é primário, e é de
pequeno valor a coisa furtada, o juiz
pode substituir a pena de reclusão
pela de detenção, diminuí-la de um a
dois terços, ou aplicar somente a
pena de multa. § 3º Equipara-se à
coisa móvel a energia elétrica ou
qualquer outra que tenha valor
econômico. Furto qualificado § 4º A
pena é de reclusão de dois a oito
anos, e multa, se o crime é cometido:
I – com destruição ou rompimento de
obstáculo à subtração da coisa;
II – com abuso de confiança, ou
mediante
fraude,
escalada
ou
destreza;
III – com emprego de chave falsa;
IV – mediante concurso de duas ou
mais pessoas.
§ 4º-A. A pena é de reclusão de 4
(quatro) a 10 (dez) anos e multa, se
houver emprego de explosivo ou de
artefato análogo que cause perigo
comum.
§ 4º-B. A pena é de reclusão, de 4
(quatro) a 8 (oito) anos, e multa, se o
furto mediante fraude é cometido por
meio de dispositivo eletrônico ou
informático, conectado ou não à rede
de computadores, com ou sem a
violação de mecanismo de segurança
ou a utilização de programa malicioso,
ou
por
qualquer
outro
meio
fraudulento análogo.
§ 4º-C. A pena prevista no § 4º-B
deste artigo, considerada a relevância
do resultado gravoso:
I – aumenta-se de 1/3 (um terço) a 2/3
(dois terços), se o crime é praticado
mediante a utilização de servidor
mantido fora do território nacional;
II – aumenta-se de 1/3 (um terço) ao
dobro, se o crime é praticado contra
idoso ou vulnerável.
§ 5º A pena é de reclusão de 3 (três) a
8 (oito) anos, se a subtração for de
veículo automotor que venha a ser
transportado para outro Estado ou
para o exterior.
§ 6º A pena é de reclusão de 2 (dois)
a 5 (cinco) anos se a subtração for de
semovente domesticável de produção,
ainda que abatido ou dividido em
partes no local da subtração.
§ 7º A pena é de reclusão de 4
(quatro) a 10 (dez) anos e multa, se a
subtração
for
de
substâncias
explosivas ou de acessórios que,
conjunta
ou
isoladamente,
possibilitem
sua
fabricação,
montagem ou emprego.
2.1
Introdução
O art. 155 do Código Penal prevê o delito de furto, isto é, a
subtração patrimonial não violenta, com a seguinte redação:
Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel.
Percebe-se, portanto, que o mencionado tipo penal é composto
por vários elementos, a saber: o núcleo subtrair; o especial fim de
agir caracterizado pela expressão para si ou para outrem; bem
como pelo objeto da subtração, ou seja, a coisa alheia móvel.
O verbo subtrair é empregado no artigo sub examen no sentido
de retirar, tomar, sacar do poder de alguém coisa alheia móvel.
A finalidade de ter a coisa alheia móvel para si ou para outrem
é que caracteriza o chamado animus furandi no delito de furto. Não
basta a subtração, o arrebatamento meramente temporário, com o
objetivo de devolver a coisa alheia móvel logo em seguida. É da
essência do delito de furto, portanto, que a subtração ocorra com a
finalidade de ter o agente a res furtiva para si ou para outrem. Caso
contrário, seu comportamento será considerado um indiferente
penal, caracterizando-se aquilo que a doutrina convencionou
chamar, em nossa opinião equivocadamente, de furto de uso, cuja
análise será levada a efeito mais adiante.
Também é da essência da infração penal em estudo que o seu
objeto seja a coisa alheia móvel. Ao contrário do Direito Civil, o
Direito Penal trabalha com um conceito natural de coisa móvel.
Coisa móvel, portanto, seria tudo aquilo passível de remoção, ou
seja, tudo o que puder ser removido, retirado, mobilizado.
O Código Civil, entretanto, possui conceitos que lhe são
peculiares e que não se aplicam ao Direito Penal. Veja-se o exemplo
contido no art. 81 daquele diploma legal, que diz:
Art. 81. Não perdem o caráter de
imóveis:
I – as edificações que, separadas do
solo, mas conservando a sua unidade,
forem removidas para outro local;
II – os materiais provisoriamente
separados de um prédio, para nele se
reempregarem.
Assim, para o Código Civil, por exemplo, a janela que, para
efeitos de reforma no imóvel, foi dele momentaneamente separada
não perderá sua natureza de imóvel. Para o Direito Penal,
entretanto, será possível a sua subtração, caracterizando-se o delito
de furto, pois que passível naturalmente de remoção.
Até mesmo uma casa poderá ser subtraída, desde que possível
a sua locomoção, ou seja, a sua retirada do local no qual estava
afixada, como é a hipótese das casas de madeira, que podem,
tranquilamente, ser transportadas de um lugar para o outro sem que
ocorra a sua destruição.
Os animais também são considerados coisa móvel para efeitos
de aplicação da lei penal, da mesma forma que os cadáveres que
estiverem sendo utilizados em pesquisas, por exemplo, em
universidades, já não se amoldando mais à proteção que lhes foi
destinada pelo Capítulo II do Título V da Parte Especial do Código
Penal, que prevê os delitos contra o sentimento religioso e contra o
respeito aos mortos. O furto é qualificado se a subtração for de
semovente domesticável de produção, ainda que abatido ou dividido
em partes no local da subtração, conforme alteração levada a efeito
pela Lei nº 13.330, de 2 de agosto de 2016.
O ser humano vivo jamais poderá se amoldar ao conceito de
coisa, razão pela qual qualquer remoção forçada poderá se
configurar em crime de sequestro ou cárcere privado,
constrangimento ilegal ou outra infração penal que lhe seja
pertinente.
Além de móvel, isto é, passível de remoção, a coisa,
obrigatoriamente, deverá ser considerada alheia, ou seja,
pertencente a alguém que não aquele que a subtrai. Dessa forma,
não se configurará no delito de furto a subtração de: a) res nullius
(coisa de ninguém, que jamais teve dono); b) res derelicta (coisa
abandonada); e c) res commune omnium (coisa de uso de todos).
Assim, aquele que, v.g., percebendo que numa lata de lixo
deixada do lado de fora de uma residência se encontrava um
guarda-chuva, o retira daquele lugar, levando-o consigo, não pratica
o crime de furto, uma vez que se cuida de coisa abandonada pelo
dono, não se amoldando ao conceito de coisa alheia, elemento
indispensável à configuração típica.
No que diz respeito a res commune omnium, ressalva Nélson
Hungria:
“Res commune omnium é a que, embora de uso de todos,
como o ar, a luz ou o calor do sol, a água dos mares e rios, não
é suscetível de ocupação na sua totalidade ou conjunto natural
de sua massa. Pode ser, entretanto, parcialmente captada e
aproveitada como força ou energia (ar liquefeito, calor solar
como força motriz etc.). Incidindo essa parte especializada na
propriedade de alguém e, assim, tornando-se objeto adequado
do furto. As águas das cisternas ou as colhidas e depositadas
para uso exclusivo de alguém podem ser, como é claro, res
furtiva. O desvio ou represamento, em proveito próprio ou de
outrem, de águas correntes alheias, porém, constitui usurpação
(art. 161, § 1º, I, do Cód. Penal), e não furto.”1
Podemos raciocinar, ainda, com a chamada res desperdicta, ou
seja, com a coisa perdida. Imagine-se a hipótese em que o agente,
no interior de um veículo coletivo, encontre, caído próximo ao seu
assento, um relógio de pulso. Aproveitando-se da oportunidade, o
agente toma o relógio e o coloca no bolso, apropriando-se dele.
Pergunta-se: poderia o sujeito, nesse caso, responder pelo delito de
furto? A resposta só pode ser negativa, pois que, aqui, seu
comportamento se amoldaria ao inciso II do art. 169 do Código
Penal, que prevê o delito de apropriação de coisa achada, assim
redigido:
II – quem acha coisa alheia perdida e
dela
se
apropria,
total
ou
parcialmente, deixando de restituí-la
ao dono ou legítimo possuidor ou de
entregá-la à autoridade competente,
dentro no prazo de 15 (quinze) dias.
Nesse caso, se o agente deixasse transcorrer o prazo de 15
(quinze) dias sem levar a efeito a devolução da coisa por ele
achada, seria responsabilizado pelo delito tipificado no art. 169, II,
do Código Penal, e não pelo crime de furto, razão pela qual
podemos concluir não ser a res desperdicta passível de subtração,
mas, sim, de apropriação, nos termos do mencionado artigo.
Exigindo, ainda, a lei penal que a coisa móvel seja alheia, tornase impossível, tendo em vista o princípio da legalidade, a punição do
proprietário pela prática do delito do art. 155 do diploma repressivo,
podendo, se for o caso, ser responsabilizado pelo delito tipificado no
art. 156 do Código Penal (furto de coisa comum), ou mesmo pela
modalidade de subtração ou dano de coisa própria em poder de
terceiro, tipificado no art. 346 do mesmo diploma legal, que diz:
Art. 346. Tirar, suprimir, destruir ou danificar coisa própria, que
se acha em poder de terceiro por determinação judicial ou
convenção.
Magalhães Noronha, discordando da impossibilidade apontada
acima, visualizava outro conceito de coisa alheia dizendo:
“A princípio, é chocante a ideia de que se possa dizer alheia,
em relação ao proprietário, a coisa que lhe pertence.
E isso é tanto mais exato quando se verifica ter nosso diploma,
em outros dispositivos referentes aos crimes patrimoniais,
empregado o adjetivo para qualificar a coisa que pertence a
outrem. Iria então usar essa mesma expressão – dando-lhe
acepções diferentes?
Sem grande esforço, entretanto, podemos aceitar que, no furto,
alheia não é só a coisa pertencente a outrem, mas
principalmente a que se acha legitimamente na posse de
terceiro.
Ao tratarmos da objetividade jurídica do furto vimos que, em
primeiro lugar, se destaca a posse. O furto é, sobretudo, um
crime contra a posse, no que estão de acordo quase todos os
juristas. Ora, se assim é, coerentemente devemos considerar
coisa alheia a que se acha na posse legítima de alguém e não a
que pertence a terceiro.
Se não dermos essa interpretação ao dispositivo, veremos que
nosso estatuto foi ilógico e deixou impune crime que, na
verdade, merece repressão legal.
Não se diga estar essa espécie de furto prevista no art. 346.
Seria improcedente a afirmação. Com efeito, trata-se aí de
crime contra a administração da justiça, e que constitui
modalidade do delito de exercício arbitrário das próprias razões,
que é o nomen juris dele e do artigo antecedente. Nesse crime,
não há furto, porque o agente tem direito sobre a coisa, sua
pretensão é lícita, mas unicamente porque não usa das vias
legais é que seu ato cai sob a sanção da lei. É outro o dolo
específico.”2
Justificando a sua construção, exemplifica o renomado autor
com a hipótese daquele que, tendo deixado um objeto de sua
propriedade em penhor, não podendo saldar o débito, subtrai a
coisa de seu legítimo possuidor, pois não queria perdê-la.
Weber Martins Batista, com precisão, contestando o raciocínio
de Noronha, afasta a possibilidade de se compreender a expressão
coisa alheia como também aquela pertencente ao seu proprietário,
esclarecendo:
“Não apenas em sentido comum, como em sentido jurídico e,
sobretudo, em sentido jurídico-penal, alheio significa ‘o que não
é nosso, o que pertence a outrem’. Com esse significado, o
Código Penal emprega o termo próprio no título relativo aos
crimes contra o patrimônio, como se vê no art. 163 e – nesses
casos, sem qualquer contestação – nos arts. 164, 168 e 169.
Seria lógico imaginar que o legislador lhe reservasse um duplo
significado, um outro sentido, equívoco, valendo tão somente
para o crime de furto? Elementar regra de hermenêutica diz
não, e o recurso ao elemento histórico abona tal resposta. O
Código de 1890 consagrava, como figura autônoma, o furto
praticado pelo dono da coisa, consistente no fato do tirar, sem
autorização legal, a coisa própria que se achasse em poder de
terceiro, por convenção ou determinação judicial, e em prejuízo
dele (art. 332). O Projeto Alcântara Machado também acolhia a
figura, dando-lhe redação semelhante (art. 350, § 1º).
O Código de 1940, no entanto, deixou de incluí-la no capítulo
referente aos crimes contra o patrimônio, e o fez exatamente
porque dela cuida no art. 346. O tipo aí descrito engloba os
essentialia do furto de coisa própria, antes previsto, com a
vantagem de afastar a limitação ‘em prejuízo dele’. Quaisquer
que sejam a intenção do agente e as consequências do fato, a
subtração da coisa própria em poder de terceiro – ainda que
sem determinação judicial, mas por convenção entre as partes
– caracterizará este crime.”3
Assim, concluindo, apesar da força do raciocínio de Noronha,
entendemos, permissa vênia, não ser a sua posição a melhor, uma
vez que colide, frontalmente, com o princípio da legalidade, pois que
amplia indevidamente o conceito de coisa alheia, contrariando a
própria essência da expressão.
2.2
Classificação doutrinária
Crime comum, tanto com relação ao sujeito ativo quanto ao
sujeito passivo; doloso; material; de dano; de forma livre (podendo
ser praticado, inclusive, através de animais adestrados, ou de
inimputáveis que são utilizados como instrumentos pelo agente, que
será considerado, nesse último caso, como autor mediato);
comissivo (em que pese a possibilidade de ser praticado
omissivamente, nos casos em que o agente vier a gozar do status
de garantidor); instantâneo (não sendo descartada a hipótese de
crime instantâneo de efeitos permanentes se for destruída a res
furtiva); permanente (pois que na modalidade de furto de energia
elétrica, por exemplo, a consumação se prolonga no tempo,
enquanto durar o comportamento do agente); monossubjetivo;
plurissubsistente; não transeunte (como regra, pois que será
possível, na maioria dos casos, o exame pericial).
2.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
Embora o crime de furto esteja inserido no Título
correspondente aos crimes contra o patrimônio, a maioria de nossos
doutrinadores entende ser a posse o bem jurídico precipuamente
protegido pelo tipo penal do art. 155 do diploma repressivo, além da
propriedade, e também a mera detenção sobre a coisa alheia móvel.
Cezar Roberto Bitencourt, depois de analisar a posição de
alguns autores, disserta:
“Não se pode negar que o proprietário sofre dano patrimonial
com a subtração ou o desaparecimento da coisa sobre a qual
tinha a posse, direta ou indireta. Somos obrigados a admitir,
contudo, que a posse vem em primeiro lugar, e só
secundariamente se tutela a propriedade. Esta é o direito
complexo de usar, gozar e dispor de seus bens – jus utendi,
fruendi et abutendi; aquela, a posse, é, na expressão de
Ihering, a relação de fato estabelecida entre o indivíduo e a
coisa, pelo fim de sua utilização econômica. Enfim, posse é
fato, protegida pelo direito como fato, enquanto fato. E é
exatamente essa situação de fato que o diploma legal protege,
imediatamente.”4
Em sentido contrário, posiciona-se Hungria, argumentando que
o tipo penal que prevê o delito de furto não tem por finalidade a
proteção da posse, mas tão somente a da propriedade, dizendo:
“Em que pese à opinião contrária (inadvertidamente defendida
entre nós por influência dos autores italianos, afeiçoados ao
direito positivo de seu país, diverso do nosso na conceituação
do furto), a incriminação, na espécie, visa, essencial ou
precipuamente, à tutela da propriedade, e não da posse. Temse em conta, é certo, a perda da posse, mas tão somente
porque redunda em lesão da propriedade, de que a posse é o
exercício ou exteriorização prática. A posse, como mero fato, só
por si, ou não correspondente ao direito de propriedade,
embora protegida pelo direito civil, não entra na configuração do
furto (isto é, no âmbito do art. 155).”5
Somos partidários da corrente que compreende a posse como
um dos bens juridicamente protegidos pelo tipo penal do art. 155.
Existe perda tanto para o possuidor, quanto para o proprietário da
coisa, como bem alertado por Cezar Roberto Bitencourt. No entanto,
não conseguimos visualizar a perda que sofre o mero detentor para
que se possa incluir a detenção da coisa como bem juridicamente
protegido pelo tipo penal em estudo. Nesse sentido, preleciona
Guilherme de Souza Nucci que a mera detenção, “não é protegida
pelo direito penal, pois não integra o patrimônio da vítima.”6
Objeto material do delito de furto é a coisa alheia móvel contra
a qual é dirigida a conduta praticada pelo agente.
Vale ressaltar, por oportuno, que, embora a lei penal proteja o
patrimônio (aqui entendendo-se também a posse), nem todo e
qualquer patrimônio interessa ao Direito Penal. Por outro lado, o
patrimônio, passível de subtração, não deve ser tão somente aquele
apreciável economicamente, razão pela qual parte da doutrina
subentende na palavra valor dois significados extremamente
importantes. De um lado, temos o chamado valor de troca,
economicamente apreciável. Assim, mediante o valor de troca
podemos atribuir um valor à cadeira, ao telefone celular, ao
automóvel etc. Contudo, além dos bens que possuem esse
chamado valor de troca, outros existem que trazem em si um valor
de uso, de natureza sentimental, não economicamente apreciável, a
exemplo daquele que guarda os dentes de leite de seus filhos ou,
ainda, um pedaço de papel com o autógrafo de uma pessoa famosa.
A importância dessa distinção diz respeito ao fato de que, em
regra, pode-se aplicar o princípio da insignificância quando os bens
tiverem valor de troca, ficando impossibilitado o seu raciocínio,
também como regra, quando os bens tiverem valor de uso, ou seja,
um valor afetivo, sentimental.
Assim, aquele que, no interior de um bar, sem o consentimento
do proprietário, subtrai um palito terá praticado um comportamento
indiferente para o Direito Penal, aplicando-se, aqui, o raciocínio da
insignificância, que terá o condão de eliminar a tipicidade do fato,
por ausência da chamada tipicidade material. No entanto, aquele
que, depois de ingressar na residência da vítima, vier a subtrair um
guardanapo de papel, que continha um autógrafo de um artista
nacionalmente conhecido, responderá pelo furto, uma vez que os
bens de valor sentimental não possuem valor de troca, razão pela
qual não podemos chamá-los de insignificantes, a ponto de afastar a
tipicidade da conduta levada a efeito pelo agente.
Concluindo com Weber Martins Batista:
“Faz parte do patrimônio das pessoas e, portanto, deve ser
considerado coisa, para o Direito Penal, qualquer objeto
material que, embora não seja economicamente apreciável,
tenha algum valor para o dono ou possuidor, por satisfazer suas
necessidades, usos ou prazeres. Incluem-se entre estes, por
exemplo, a mecha de cabelos do ‘único amor de sua vida’, a
carta do filho já morto,... a pedra colhida no caminho por onde
Jesus teria passado, uma pequena porção do solo da ‘terra
natal’ etc. – objetos que, embora sem valor de troca, podem ter
grande valor de afeição para o dono.”7
2.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do delito de furto, desde
que não seja o proprietário ou mesmo o possuidor da coisa.
Isso porque o art. 155 do Código Penal, ao narrar o delito de
furto, determina que a coisa móvel seja alheia, razão pela qual o
proprietário não pode figurar como sujeito ativo, subtraindo coisa
móvel que lhe pertence. Quando o proprietário, por exemplo, retira a
coisa móvel que lhe pertencia, que se encontrava em poder de
terceiros, poderá, se for o caso, responder pelo delito tipificado no
art. 346 do Código Penal, que diz:
Art. 346. Tirar, suprimir, destruir ou
danificar coisa própria, que se acha
em
poder
de
terceiro
por
determinação judicial ou convenção.
O proprietário, entretanto, poderá ser considerado sujeito ativo
do delito de furto de coisa comum, em virtude de previsão expressa
nesse sentido, constante do art. 156 do diploma repressivo.
O possuidor não pode figurar como sujeito ativo pelo fato de
que, se não restituir a coisa ao seu legítimo proprietário, deverá ser
responsabilizado pelo delito de apropriação indébita, e não pelo
crime de furto.
Sujeitos passivos são o proprietário e o possuidor da coisa
alheia móvel, podendo, nesse caso, figurar tanto a pessoa física,
quanto a pessoa jurídica.
2.5
Consumação e tentativa
Várias teorias surgiram com a finalidade de apontar o momento
de consumação do delito de furto.
Inicialmente, prevaleceu entre os romanos a teoria da
contrectatio, que entendia como consumado o furto quando o
agente simplesmente tocava na coisa com a finalidade de subtraí-la,
mesmo que não conseguisse removê-la do local em que se
encontrava.
Em sentido diametralmente oposto à primeira posição, surgiu a
teoria da illactio, que entendia que a consumação do furto exigia,
para a sua configuração, o fato de conseguir o agente levar o objeto
ao lugar que era destinado.
As teorias da amotio e da ablatio ocupavam posição
intermediária às teorias citadas anteriormente. Conforme esclarece
Damásio de Jesus:
“Nos termos da teoria da amotio, o momento consumativo do
furto ocorre com a deslocação do objeto material.
Para a teoria da ablatio, a consumação exigia dois requisitos:
apreensão e deslocação do objeto material.”8
Hoje em dia, a doutrina se divide em relação ao momento de
consumação do furto, formando-se, outrossim, duas posições bem
visualizáveis, com as seguintes orientações:
a)
b)
o furto se consuma no momento em que a res é retirada da
esfera de posse e disponibilidade da vítima, ingressando,
consequentemente, na do agente, ainda que não tenha ele
a posse tranquila sobre a coisa;
a consumação somente ocorre quando a res é retirada da
esfera de posse e disponibilidade da vítima, ingressando,
consequentemente, na do agente, que, obrigatoriamente,
deverá exercer, mesmo que por curto espaço de tempo, a
posse tranquila sobre a coisa.
São, portanto, duas correntes que divergem, basicamente,
sobre a necessidade ou não de o agente exercer a posse tranquila
sobre a coisa, depois de tê-la retirado da esfera de disponibilidade
da vítima.
Fragoso afirma:
“Somente estará consumado o furto quando a coisa for tirada
da esfera de vigilância do sujeito passivo, do seu poder de fato,
submetendo-a o agente ao próprio poder autônomo de
disposição.”9
Hungria também esclarece:
“Para que se possa falar propriamente em perda da posse, em
desfalque do domínio, é indispensável que, embora
passageiramente, se estabeleça a posse exclusiva e sossegada
do ladrão. É preciso que este, ainda que por breve tempo,
possua a coisa a salvo da hostilidade.”10
Em sentido contrário, posiciona-se Damásio:
“Para nós, o furto atinge a consumação no momento em que o
objeto material é retirado da esfera de posse e disponibilidade
do sujeito passivo, ingressando na livre disponibilidade do autor,
ainda que este não obtenha a posse tranquila.”11
Nessa mesma linha de raciocínio, Ney Moura Teles preleciona:
“Haverá furto consumado no exato momento em que o ofendido
não puder mais dela dispor, em que deixa de sobre ela exercer
o poder que exercia quando em sua posse. É óbvio que se o
agente consegue ter a posse tranquila o furto é consumado,
mas o foi antes disso, quando a coisa saiu da esfera de
disponibilidade da vítima.”12
Nossos Tribunais Superiores têm descartado a necessidade da
posse tranquila sobre a coisa, conforme se percebe pelas ementas
abaixo colacionadas:
“Para a consumação dos crimes de furto e roubo, basta o
desapossamento da coisa subtraída, o que ocorre com a
inversão da posse, sendo prescindível esta ser mansa e
pacífica. Precedentes do STJ” (STJ, HC 509.130/MS, Rel. Min.
Nefi Cordeiro, 6ª T., DJe 08/10/2019). “Este Superior Tribunal
de Justiça firmou entendimento no sentido de que para
consumação do furto, basta o desapossamento da coisa
subtraída, o qual se dá com a inversão da posse, não sendo
necessário que a res furtiva saia da esfera de vigilância da
vítima, e muito menos que o agente tenha posse mansa e
pacífica sobre a mesma. A Terceira Seção desse Superior
Tribunal de Justiça, julgando recurso especial representativo da
controvérsia, na forma do art. 543-C do Código de Processo
Civil revogado (regime dos recursos repetitivos), com disciplina
atual no art. 1.036 e seguintes do CPC em vigor, em decisão
unânime, pacificou a matéria, assim resumida: “consuma-se o
crime de furto com a posse de fato da res furtiva, ainda que por
breve espaço de tempo e seguida de perseguição ao agente,
sendo prescindível a posse mansa e pacífica ou desvigiada”
(REsp 1.524.450/RJ, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, Terceira
Seção, j. 14/10/2015, DJe 29/10/2015) (STJ, REsp
1.716.938/RJ, Rel. Min. Jorge Mussi, 5ª T., DJe 27/04/2018).
“Os Tribunais superiores adotaram a teoria da apprehensio,
também denominada de amotio, segundo a qual o crime de
roubo, assim como o de furto, consuma-se no momento em que
o agente se torna possuidor da coisa alheia móvel, pouco
importando se por longo ou breve espaço temporal, sendo
prescindível a posse mansa, pacífica, tranquila e/ou desvigiada”
(STJ, AgRg no AREsp 1.042.361/SP, Rel. Min. Joel Ilan
Paciornik, 5ª T., DJe 09/06/2017).
Entendemos, no entanto, que somente se pode concluir pela
consumação quando o bem, após ser retirado da esfera de
disponibilidade da vítima, vier a ingressar na posse tranquila do
agente, mesmo que por curto espaço de tempo. O agente, portanto,
deve ter tido tempo suficiente para dispor da coisa, pois, caso
contrário, se isso não aconteceu, estaremos diante da tentativa.
Tal raciocínio não impede a ocorrência de prisão em flagrante
delito na hipótese de furto consumado. Raciocinemos com o
seguinte exemplo: No centro de uma grande cidade, havia um grupo
especializado em furto de aparelhos de telefone celular. Em
determinado dia, uma pessoa, já idosa, caminhava pela mencionada
região carregando seu telefone preso à cintura. O agente, com a
habilidade que lhe era peculiar, aproximou-se da vítima e subtraiu o
mencionado aparelho sem que ela pudesse perceber. Contudo, no
instante seguinte, almejando fazer uma ligação, levou a mão à
cintura e, para sua surpresa, percebeu que foi vítima de um crime
de furto. Depois de certificar-se da subtração, procurou uma cabine
policial e narrou os fatos. O policial militar que ali se encontrava a
tranquilizou, dizendo que, a partir daquele instante, começaria a
fazer o rastreamento, porque já imaginava quem poderia ter
realizado a subtração, dada a frequência desses fatos naquele local.
Depois de aproximadamente 30 minutos, os policiais militares
encontraram o autor do delito de posse da res furtiva. Pergunta-se:
Partindo do pressuposto de que, para nós, o delito de furto se
consuma somente quando o agente tiver a posse tranquila da coisa,
no caso concreto, preso 30 minutos após ter realizado a subtração
do mencionado aparelho telefônico, poderíamos entender como
suficiente esse espaço de tempo para que pudéssemos a ele atribuir
o delito de furto consumado? E, ainda, seria possível a prisão em
flagrante?
As respostas só podem ser positivas. Durante o tempo em que
permaneceu com a coisa, sem qualquer vigilância, exercendo sobre
ela a posse tranquila, o agente fez com que se consumasse a
infração penal.
Poderia, também, ser preso em flagrante, pois que o Código de
Processo Penal, em seu art. 302, considera em flagrante delito
quem: I – está cometendo a infração penal; II – acaba de cometê-la;
III – é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por
qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da
infração; IV – é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas,
objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração.
A última hipótese, contida no inciso IV do art. 302 do Código de
Processo Penal, é a do chamado flagrante presumido. Segundo as
lições de Paulo Rangel, no flagrante presumido:
“O agente é surpreendido na posse de instrumentos, armas,
objetos ou papéis que presumem ser ele o autor da infração
penal, não dando margens a dúvidas quanto à autoria e à
materialidade. Não é apenas o encontro de um indivíduo em
situação suspeita, mas sim, com vestígios da prática da
infração penal.”13
Como se percebe, se a lei processual penal permite a prisão
em flagrante daquele que é encontrado com instrumentos, armas,
objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração
penal, que dirá na hipótese, por nós levantada, de ser com ele
encontrada a própria res furtiva. Não se afasta, portanto, a
possibilidade de se reconhecer o flagrante delito na hipótese de
furto consumado.
Existe outro momento em que se pode visualizar a consumação
do delito de furto, vale dizer, o da destruição da coisa. Assim, ainda
que o agente não tenha a posse tranquila da coisa, se esta vier a
ser destruída, inutilizada, danificada ou mesmo ocultada, o furto
restará consumado, e não tentado, pois que a coisa deve ser
devolvida da mesma forma como foi subtraída, sem qualquer perda
patrimonial, total ou mesmo parcial.
Nesse sentido, esclarece Weber Martins Batista:
“Só há falar em posse tranquila das coisas, como condição de
consumação do furto, quando estas são recuperadas, na
totalidade. Se elas se perdem, ainda quando no ato de subtrair,
o crime consuma-se, porque houve diminuição patrimonial da
vítima.”14
Assim, imagine-se a hipótese do agente que, logo depois de
subtrair um veículo, seja perseguido pela polícia e, durante a fuga,
venha a colidi-lo, danificando o automóvel. Aqui, embora, como se
percebe, não tenha tido o agente a posse tranquila sobre o bem, o
furto restará consumado, pois a destruição, mesmo que parcial,
conduz ao raciocínio da consumação, uma vez ter havido, no caso
concreto, diminuição patrimonial.
A tentativa de furto é plenamente admissível, haja vista tratar-se
de crime material.
2.6
Elemento subjetivo
O delito de furto somente pode ser praticado dolosamente, não
havendo previsão legal para a modalidade culposa.
Além do chamado animus furandi, ou seja, a vontade do agente
dirigida à subtração, há necessidade de que esta se dê com a
finalidade de ter a coisa alheia móvel para si ou para outrem,
visualizando-se, através dessa expressão (para si ou para outrem),
o chamado especial fim de agir.
Caso a subtração da res não ocorra motivada por essa
finalidade especial, o fato será atípico, como na hipótese do
equivocadamente denominado furto de uso, onde o agente subtrai a
coisa, momentaneamente, para usá-la, sendo sua intenção devolvêla posteriormente.
Não houve previsão legal para a modalidade culposa, não se
podendo cogitar, portanto, em furto culposo.
2.7
Modalidades comissiva e omissiva
O núcleo subtrair pressupõe um comportamento ativo por parte
do agente, um fazer alguma coisa dirigido a tomar a coisa alheia
móvel, para si ou para outrem. A conduta prevista no tipo, portanto,
é de natureza comissiva.
Entretanto, pergunta-se: Poderá o delito de furto ser praticado
por omissão? Sim, desde que o agente goze do status de
garantidor. Assim, se tinha, por exemplo, de acordo com a alínea a
do § 2º do art. 13 do Código Penal, a obrigação legal de vigiar a
coisa e, percebendo que seria subtraída, podendo, dolosamente,
nada faz para evitar a subtração, o agente deverá ser
responsabilizado pelo furto, via omissão imprópria.
2.8
Causa de aumento de pena relativa ao repouso noturno
O § 1º do art. 155 do Código Penal determina que a pena seja
aumentada de um terço se o crime é praticado durante o repouso
noturno.
Afirma Hungria que, por meio da majorante do repouso noturno,
o Código Penal visa “única e exclusivamente assegurar a
propriedade móvel contra maior precariedade de vigilância e defesa
durante o recolhimento das pessoas para o repouso durante a
noite.”15
A maior facilidade do agente na subtração, quando o bem está
menos guarnecido, menos vigiado, é que dá ensejo à aplicação da
mencionada causa especial de aumento de pena.
Inicialmente, o Código Penal exige que o repouso seja noturno,
isto é, que ocorra durante o período da noite. Assim, na hipótese em
que alguém, v.g., na qualidade de vigia, trabalhe durante a noite e,
consequentemente, durma durante o dia, se o agente, sabendo
dessa situação, vier a ingressar em sua residência por volta das 12
horas, porque tinha conhecimento de que, justamente nesse horário,
a vítima se encontrava em sono profundo, e de lá vier a subtrair um
aparelho eletrônico, embora possamos raciocinar com o fato da
menor vigilância, o furto não poderá ser majorado pela causa
especial de aumento de pena do repouso noturno, uma vez que fora
levado a efeito durante o dia. Caso entendêssemos contrariamente,
estaríamos infringindo o princípio da legalidade, na vertente do
nullum crimen nulla poena sine lege stricta, que proíbe o recurso à
analogia in malam partem.
Dessa forma, deve haver uma situação de repouso e, além
disso, o fato deve ocorrer, obrigatoriamente, à noite.
Por repouso noturno, portanto, de acordo com as lições de
Fragoso, “há de se entender como o período de recolhimento,
dedicado ao repouso (critério psicossociológico)”,16 ou, ainda, como
se diz no item 56 da Exposição de Motivos da Parte Especial do
Código Penal, o período de sossego noturno.
Na verdade, os costumes é que ditam as regras para se chegar
à conclusão de que, naquele lugar, embora no período da noite,
havia ou não uma situação de repouso. Há lugares em que não
existe repouso, pois que a vigilância sobre os bens móveis é a
mesma durante o dia ou no período da noite. Dessa forma,
encontrando-se os bens igualmente vigiados, não haverá a
possibilidade da aplicação da majorante, mesmo que o furto tenha
sido cometido à noite.
A doutrina e a jurisprudência se dividem, ainda, com relação às
seguintes situações específicas, que dizem respeito ao lugar onde o
crime é praticado, para efeitos de aplicação da causa especial de
aumento relativa ao repouso noturno, mencionadas por Luiz Regis
Prado: “a) o lugar precisa ser habitado, com pessoa repousando; b)
o lugar não precisa ser habitado; c) os moradores não devem estar
acordados; d) não se exige a presença de moradores.”17
O Superior Tribunal de Justiça, no entanto, acabando com as
possíveis diferenças entre as situações apontadas, já decidiu:
“A causa especial de aumento de pena do furto cometido
durante o repouso noturno pode se configurar mesmo quando o
crime é cometido em estabelecimento comercial ou residência
desabitada, sendo indiferente o fato de a vítima estar, ou não,
efetivamente repousando. Precedentes do Superior Tribunal de
Justiça” (STJ, HC 501.072/SC, Rel. Min. Felix Fischer, 5ª T.,
DJe 11/06/2019).
“Não obstante o entendimento desse Superior Tribunal de
Justiça no sentido da incidência da causa de aumento prevista
no art. 155, § 1º, do CP, inclusive quando o delito é praticado
em imóvel comercial, sem a presença da vítima, in casu
constata-se a impossibilidade de se operar o acréscimo na
terceira etapa da dosimetria, uma vez que já utilizada a referida
circunstância para exasperar a reprimenda inicial” (STJ, AgRg
no REsp 1.557.470/MG, Rel. Min. Jorge Mussi, 5ª T., DJe
16/02/2018).
“Para a configuração da circunstância majorante do § 1º do art.
155 do Código Penal basta que a conduta delitiva tenha sido
praticada durante o repouso noturno, dada a maior
precariedade da vigilância e a defesa do patrimônio durante tal
período e, por consectário, a maior probabilidade de êxito na
empreitada criminosa, sendo irrelevante o fato de uma das
vítimas não estar dormindo no momento do crime” (STJ, HC
331.100/MS, Rel. Min. Ribeiro Dantas, 5ª T., DJe 03/05/2016).
Destaque-se, também, o fato de que a majorante em estudo
somente se aplica ao furto simples, não sendo permitida a causa de
aumento nas hipóteses de furto qualificado. Isso porque, de acordo
com a situação topográfica do parágrafo sub examen, fosse
intenção da lei aplicá-lo também às modalidades qualificadas, o
aumento relativo ao repouso noturno deveria vir consignado
posteriormente ao § 4º do art. 155 do Código Penal.
Em virtude do mencionado raciocínio, imagine-se a hipótese em
que três pessoas, agindo em concurso, durante o repouso noturno,
resolvam subtrair um aparelho de som pertencente à vítima. Assim,
ingressam clandestinamente em sua residência e conseguem ter
êxito na subtração. Pergunta-se: Poderíamos classificar o fato como
um crime de furto qualificado pelo concurso de pessoas, incidindo,
também, a causa especial de aumento de pena relativa ao repouso
noturno, uma vez que o delito fora cometido durante esse período?
Como explicamos anteriormente, a resposta é negativa, uma
vez que a majorante somente terá aplicação na hipótese de furto
simples, dada a sua situação topográfica (ou seja, § 1º do art. 155
do Código Penal).
O STJ, mudando sua posição, infelizmente, de forma
equivocada, passou a entender que a causa especial de aumento
de pena do repouso noturno podia ser aplicada tanto ao furto
simples, quanto às suas modalidades qualificadas, dizendo:
“A causa de aumento prevista no § 1º do art. 155 do Código
Penal, que se refere à prática do crime durante o repouso
noturno – em que há maior possibilidade de êxito na empreitada
criminosa em razão da menor vigilância do bem, mais
vulnerável à subtração –, é aplicável tanto na forma simples
como na qualificada do delito de furto” (STJ, AgRg no REsp
1.821.557/ SC, Rel. Min. Sebastião Reis Junior, 6ª T., DJe
02/10/2019).
“Esta Corte já assentou entendimento no sentido de que “a
causa de aumento prevista no § 1° do art. 155 do Código Penal
– prática do crime de furto no período noturno –, [...], pode
incidir tanto no crime de furto simples (caput) como na sua
forma qualificada (§ 4º). Isso porque tal entendimento está em
consonância, mutatis mutandis, com a posição firmada por este
Sodalício no julgamento do Recurso Especial Representativo de
Controvérsia nº 1.193.194/MG, (...), no qual afigurou-se
possível o reconhecimento do privilégio previsto no § 2º do art.
155 do Código Penal nos casos de furto qualificado (CP, art.
155, § 4º), máxime se presentes os requisitos” (STJ, REsp
1.716.938/RJ, Rel. Min. Jorge Mussi, 5ª T., DJe 27/04/2018).
“Conforme o entendimento consolidado no REsp 1.193.194/MG,
submetido ao rito dos recursos repetitivos, o privilégio do art.
155, § 2º, do Código Penal é compatível com as qualificadoras
objetivas do crime de furto. Por consectário, a jurisprudência
desta Corte, seguindo tal linha de raciocínio, passou a entender
ser o aumento relativo ao furto noturno compatível com a figura
do furto qualificado. Precedentes” (STJ, HC 391.007/SC, Rel.
Min. Ribeiro Dantas, 5a T., DJe 30/08/2017).
Ora, não podemos confundir as duas situações apontadas na
decisão acima transcrita. Isso porque a aplicação da causa de
redução de pena ao furto qualificado beneficia o agente, sendo
permitida, portanto, por questões de política criminal. Já o
reconhecimento da causa especial de aumento relativa ao repouso
noturno, aplicada ao furto qualificado, o prejudica, razão pela qual
não deve ser admitida, devido à sua situação topográfica.
2.9
Primariedade e pequeno valor da coisa furtada
Diz o § 2º do art. 155 do Código Penal, verbis:
§ 2º Se o criminoso é primário, e é de
pequeno valor a coisa furtada, o juiz
pode substituir a pena de reclusão
pela de detenção, diminuí-la de um a
dois terços, ou aplicar somente a
pena de multa.
Pelo que se percebe por meio da leitura do § 2º do art. 155 do
Código Penal, a conjugação da primariedade com o pequeno valor
da coisa furtada permite ao julgador que: a) substitua a pena de
reclusão pela de detenção; b) diminua-a de um a dois terços; c)
aplique somente a pena de multa.
Inicialmente, vale dizer que primariedade não se confunde com
maus antecedentes. A lei apenas exige que o agente seja primário,
isto é, que não seja reincidente. Pode, portanto, o agente ter sido
condenado em outros processos, por exemplo, que não se prestem
para efeitos de forjar a reincidência, sendo, outrossim, portador de
maus antecedentes. Como a lei penal faz menção expressa à
primariedade, deve ser entendido que ela deseja excluir tão
somente o reincidente das consequências por ela previstas, não se
podendo ampliá-la a fim de abranger, também, o agente portador de
maus antecedentes.
Os maus antecedentes influirão na decisão do juiz quanto à
escolha de qualquer uma das alternativas mencionadas, pois que,
nos termos da parte final do art. 59 do Código Penal, deverá
estabelecer as penas que sejam necessárias e suficientes para a
reprovação e a prevenção do crime. Se, no caso concreto, chegar à
conclusão de que a pena de multa é a que melhor atende aos
interesses de política criminal, considerando-se a particular situação
do sentenciado, essa é a que deverá ser aplicada; se, ao contrário,
entender que o agente deverá cumprir uma pena privativa de
liberdade, será aplicado o percentual de redução de um a dois
terços.
Enfim, maus antecedentes não impedem a aplicação do § 2º do
art. 155 do Código Penal, mas influenciam, contudo, na decisão do
julgador quanto à seleção da alternativa que melhor se adapta ao
caso concreto.
Além da primariedade, o agente deve ter subtraído uma coisa
de pequeno valor. Pequeno valor é um dado que enseja valoração
por parte do intérprete. A primeira dúvida que surge é se esse
pequeno valor deve ser considerado levando-se em conta a pessoa
da vítima. Devemos, aqui, descartar esse tipo de raciocínio, visto
que a lei penal afirma, peremptoriamente, que o pequeno valor diz
respeito à coisa furtada, sendo objetivo esse dado, não fazendo
menção a lei penal a pequeno prejuízo, cujo raciocínio poderia nos
conduzir à pessoa da vítima, tal como ocorre no crime de estelionato
(art. 171, § 1º, do Código Penal).
No entanto, embora seja um elemento de natureza normativa,
que permite valorações, a doutrina e a jurisprudência
convencionaram que por pequeno valor deve ser entendido aquele
que gira em torno de um salário mínimo. Não podemos, como
afirmam alguns renomados autores, fixar o teto de um salário
mínimo vigente à época em que ocorreram os fatos para fins de
aplicação do § 2º do art. 155 do Código Penal. Fugiria ao raciocínio
da razoabilidade deixar de aplicar algumas das consequências
previstas pelo mencionado parágrafo se o valor da res furtiva
ultrapassasse um pouco o do salário mínimo. Por isso, nossa
posição é no sentido de que pequeno valor é aquele que gira em
torno do salário mínimo, ou seja, um pouco mais ou um pouco
menos do que o valor a ele atribuído à época em que ocorreram os
fatos.
Dessa forma, conjugando-se a primariedade com o pequeno
valor da coisa, o sentenciado passa a ter direito subjetivo à
aplicação de alguma das alternativas previstas no § 2º do art. 155
do Código Penal, não podendo o julgador, a seu livre alvedrio,
deixar de considerá-las.
Álvaro Mayrink da Costa salienta:
“Entendemos que o legislador criou um direito público subjetivo
do réu com a aplicação da causa especial de diminuição de
pena, quando satisfeitos os pressupostos legais. Não se trata
de mera faculdade do juiz penal. A regra insculpida no § 2º do
art. 155 do CP não estabelece mero indicador de
individualização de pena, pois se trata de causa especial de
diminuição de pena, sendo que o que se outorga à faculdade do
julgador é a escolha de melhor estratégia de política criminal
alternativa em relação à qualidade e à quantidade das sanções
elencadas.”18 “Para o reconhecimento do crime de furto
privilegiado – direito subjetivo do réu –, a norma penal exige a
conjugação de dois requisitos objetivos, consubstanciados na
primariedade e no pequeno valor da coisa furtada que, na linha
do entendimento pacificado neste Superior Tribunal de Justiça,
não deve ultrapassar o valor do salário mínimo vigente à época
dos fatos. É indiferente que o bem furtado tenha sido restituído
à vítima, pois o critério legal para o reconhecimento do privilégio
é somente o pequeno valor da coisa furtada” (STJ, AgRg no
REsp 1.785.985/SP, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, 6ª T., DJe
09/09/2019).
Outro detalhe que merece destaque diz respeito à possibilidade
de ser aplicado o § 2º do art. 155 do Código Penal às modalidades
qualificadas previstas pelos §§ 4º a 7º do mesmo artigo.
Quando analisamos a causa especial de aumento de pena
relativa ao repouso noturno, concluímos que ela não se aplicava às
modalidades qualificadas em razão da sua situação topográfica, ou
seja, pelo fato de se encontrar anteriormente às qualificadoras,
somente poderia ser aplicada ao caput do art. 155 do Código Penal,
de acordo com as regras de hermenêutica.
Agora, temos outro parágrafo que também antecede a previsão
das modalidades qualificadas. Entretanto, ao contrário do repouso
noturno, o § 2º do art. 155 do Código Penal beneficia o agente.
Dessa forma, pergunta-se: poderá ter aplicação às modalidades
qualificadas? A resposta, aqui, por mais paradoxal que possa
parecer, só pode ser positiva. Isso porque, ao contrário do raciocínio
anterior (furto praticado durante o repouso noturno), a aplicação do
mencionado § 2º beneficia o agente, razão pela qual, por questões
de boa política criminal, faz-se mister a sua aplicação.
Dessa forma, é possível o raciocínio, por exemplo, do agente,
primário, que subtraia coisa de pequeno valor, rompendo um
obstáculo. Deverá, portanto, ser responsabilizado pelo furto
qualificado pelo rompimento de obstáculo, aplicando-se-lhe, ainda,
uma das consequências elencadas no § 2º do art. 155 do estatuto
repressivo, surgindo, portanto, aquilo que se denomina furto
qualificado-privilegiado.
Nossos Tribunais Superiores têm decidido reiteradamente que:
“No que se refere à figura do furto privilegiado, o art. 155, § 2º,
do Código Penal impõe a aplicação do benefício penal na
hipótese de adimplemento dos requisitos legais da
primariedade e do pequeno valor do bem furtado, assim
considerado aquele inferior ao salário mínimo ao tempo do fato.
Trata-se, em verdade, de direito subjetivo do réu, não
configurando mera faculdade do julgador a sua concessão,
embora o dispositivo legal empregue o verbo “poder”. Nos
termos da pacífica jurisprudência desta Corte, consolidada na
Súmula 511/STJ, é viável a incidência do privilégio na hipótese
de furto qualificado, desde que a qualificadora seja de caráter
objetivo. Decerto, a única qualificadora que inviabiliza o
benefício penal é a de abuso de confiança” (CP, art. 155, § 4º,
II, primeira parte) (STJ, HC 424745/SP, Rel. Min. Ribeiro
Dantas, 5ª T., DJe 20/03/2018).
“Reconhecida a figura do furto privilegiado, a faculdade
conferida ao julgador de substituir a pena de reclusão pela de
detenção, diminuí-la de 1 (um) a 2/3 (dois terços), ou aplicar
somente a pena de multa requer fundamentação concreta,
como exige o próprio princípio do livre convencimento
fundamentado (arts. 157, 381 e 387 do CPP c/c o art. 93, inciso
IX, segunda parte, da Lex Maxima)” (AgRg no REsp
1.560.158/MG, Rel. Min. Felix Fischer, 5a T., j. 09/08/2016, DJe
26/08/2016). No caso dos autos, o Tribunal a quo, mesmo tendo
reconhecido a primariedade do agente, as circunstâncias
favoráveis do art. 59 do CP e o baixo valor do bem furtado,
limitou-se à substituição da pena de reclusão pela de detenção
sem contudo apresentar motivação idônea, o que ensejou a
reforma do julgado, a fim de aplicar o privilégio de redução da
reprimenda na fração de 2/3” (STJ, AgRg no AREsp 1.077.303/
MG, Rel. Min. Ribeiro Dantas, 5ª T., DJe 28/08/2017).
O Superior Tribunal de Justiça, a seu turno, reforçando o
raciocínio acima, em 11 de junho de 2014, aprovou a Súmula nº 511,
com o seguinte enunciado:
Súmula nº 511. É possível o
reconhecimento do privilégio previsto
no § 2º do art. 155 do CP nos casos
de crime de furto qualificado, se
estiverem presentes a primariedade
do agente, o pequeno valor da coisa e
a qualificadora for de ordem objetiva.
2.10
Furto de energia
O § 3º do art. 155 do Código Penal esclarece:
§ 3º Equipara-se à coisa móvel a
energia elétrica ou qualquer outra que
tenha valor econômico.
Com essa redação, ficam eliminadas as discussões sobre a
possibilidade de subtração de energia, não somente a elétrica, mas
também a solar, a térmica, a sonora, atômica, mecânica etc. Ou
seja, qualquer energia que tenha valor econômico poderá ser objeto
de subtração, nos moldes preconizados pelo mencionado parágrafo.
A importância do dispositivo legal em estudo reside no fato de
que parte da doutrina, principalmente a estrangeira, considerando a
natureza da coisa que poderia ser objeto da subtração, não incluía
como tal a energia, conforme se verifica nas lições de Diego-Manuel
Luzón Peña, quando disserta sobre o conceito de coisa móvel:
“O conceito de coisa móvel, que é o objeto material do delito,
constitui um elemento normativo do tipo mas, não obstante, se
interpreta em Direito Penal de uma maneira mais ampla que no
Direito Civil [...], ao incluir-se nele todos os objetos físicos
valoráveis economicamente, suscetíveis de apoderamento
material e de deslocação. São, assim, coisas móveis para
efeitos penais, ainda que não civis, tanto os animais como os
elementos separáveis incorporados a um imóvel, e
inversamente, não podem reputar-se como coisas móveis, para
efeitos penais, nem os direitos, nem a energia, nem os demais
objetos incorporais.”19
O item 56 da Exposição de Motivos à Parte Especial do Código
Penal esclarece sobre a equiparação da energia elétrica ou
qualquer outra que tenha valor econômico à coisa móvel passível de
subtração:
56. [...] Para afastar qualquer dúvida,
é expressamente equiparada à coisa
móvel
e,
consequentemente,
reconhecida como possível objeto de
furto a ‘energia elétrica ou qualquer
outra que tenha valor econômico’.
Toda
energia
economicamente
utilizável e suscetível de incidir no
poder de disposição material e
exclusiva de um indivíduo (como, por
exemplo,
a
eletricidade,
a
radioatividade, a energia genética dos
reprodutores etc.) pode ser incluída,
mesmo do ponto de vista técnico,
entre as coisas móveis, a cuja
regulamentação jurídica, portanto,
deve ficar sujeita.
Assim, imagine-se a hipótese daquele que subtrai o sêmen de
um touro reprodutor, com a finalidade de, com ele, fertilizar uma de
suas vacas. O crime praticado, nesse caso, seria o de furto de
energia genética, conforme orientação contida na mencionada
Exposição de Motivos. Aqui, entretanto, nem haveria necessidade
da ressalva, pois que o sêmen do reprodutor se amolda,
perfeitamente, ao conceito de coisa, tal como seria a própria
subtração do leite ordenhado.
Merece destaque, no que diz respeito à energia elétrica, que o
fato poderá se configurar no delito de furto, ou mesmo no crime de
estelionato, dependendo do instante em que a corrente é desviada
em benefício do agente. Dessa forma, aquele que desvia a corrente
elétrica antes que ela passe pelo registro comete o delito de furto. É
o que ocorre, normalmente, naquelas hipóteses em que o agente
traz a energia para sua casa diretamente do poste, fazendo aquilo
que popularmente é chamado de “gato.” A fiação é puxada
diretamente do poste de energia elétrica para o lugar onde se quer
usá-la, sem que passe por qualquer medidor. Ao contrário, se a
ação do agente consiste, como adverte Magalhães Noronha:
“Em modificar o medidor, para acusar um resultado menor do
que o consumido, há fraude, e o crime é estelionato,
subentendido, naturalmente, o caso em que o agente está
autorizado, por via de contrato, a gastar energia elétrica. Usa
ele, então, de artifício que induzirá a vítima a erro ou engano,
com o resultado fictício, do que lhe advém vantagem ilícita.”20
O furto de energia elétrica, ao contrário do que ocorre quando
estamos diante, efetivamente, de coisa móvel, naturalmente
corpórea, deve ser considerado de natureza permanente, uma vez
que a sua consumação se prolonga, se perpetua no tempo,
podendo, portanto, ser o agente preso em flagrante quando
descoberta a ligação clandestina de que era beneficiado.
2.11
Modalidades qualificadas
Os §§ 4º, 4º-A, 4º-B, 5º, 6º e 7º do art. 155 do Código Penal
preveem as modalidades qualificadas do delito de furto, verbis:
§ 4º A pena é de reclusão de dois a
oito anos, e multa, se o crime é
cometido:
I – com destruição ou rompimento de
obstáculo à subtração da coisa;
II – com abuso de confiança, ou
mediante
fraude,
escalada
ou
destreza;
III – com emprego de chave falsa;
IV – mediante concurso de duas ou
mais pessoas.
§ 4º-A. A pena é de reclusão de 4
(quatro) a 10 (dez) anos e multa, se
houver emprego de explosivo ou de
artefato análogo que cause perigo
comum.
§ 4º-B. A pena é de reclusão, de 4
(quatro) a 8 (oito) anos, e multa, se o
furto mediante fraude é cometido por
meio de dispositivo eletrônico ou
informático, conectado ou não à rede
de computadores, com ou sem a
violação de mecanismo de segurança
ou a utilização de programa malicioso,
ou
por
qualquer
outro
meio
fraudulento análogo.
§ 4º-C. A pena prevista no § 4º-B
deste artigo, considerada a relevância
do resultado gravoso:
I – aumenta-se de 1/3 (um terço) a 2/3
(dois terços), se o crime é praticado
mediante a utilização de servidor
mantido fora do território nacional;
II – aumenta-se de 1/3 (um terço) ao
dobro, se o crime é praticado contra
idoso ou vulnerável.
§ 5º A pena é de reclusão de 3 (três) a
8 (oito) anos, se a subtração for de
veículo automotor que venha a ser
transportado para outro Estado ou
para o exterior.
§ 6º A pena é de reclusão de 2 (dois)
a 5 (cinco) anos se a subtração for de
semovente domesticável de produção,
ainda que abatido ou dividido em
partes no local da subtração § 7º A
pena é de reclusão de 4 (quatro) a 10
(dez) anos e multa, se a subtração for
de substâncias explosivas ou de
acessórios
que,
conjunta
ou
isoladamente,
possibilitem
sua
fabricação, montagem ou emprego.
Faremos a análise, isoladamente, de cada uma das
qualificadoras descritas, a fim de apontar melhor as suas
características e peculiaridades.
2.11.1
Destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da
coisa
A primeira das qualificadoras constante do rol do § 4º do art.
155 do Código Penal diz respeito à destruição ou rompimento de
obstáculo à subtração da coisa.
Inicialmente, vale registrar que, em sede doutrinária, considerase obstáculo tudo aquilo que tenha a finalidade precípua de proteger
a coisa e que também não seja a ela naturalmente inerente.
Hungria, dissertando sobre o tema, esclarece:
“Não é obstáculo, no sentido legal, a resistência inerente à
coisa em si mesma. Assim, não é furto qualificado a subtração
da árvore serrada pelo próprio agente ou da porção de pano por
ele cortada à respectiva peça, ou do pedaço de chumbo que
violentamente destaca de um encanamento. É indeclinável que
haja violência exercida contra um obstáculo exterior à coisa. No
caso, por exemplo, de uma coisa anexa a outra (para o fim de
sua própria utilização), mas de modo a permitir o desligamento
sem emprego de violência, a sua subtração, mediante tal
expediente, não é furto qualificado. Igualmente, o simples
desparafusamento, por exemplo, do farolete de um automóvel,
para o fim da subtração, não realiza a qualificativa em questão.
Os obstáculos podem ser externos ou internos, ativos
(offendicula, fios elétricos de uma campainha de alarma e, em
geral, dispositivos automáticos de segurança), ou passivos
(muros, paredes, vidraças, portas, grades, redes ou telas
metálicas, aparelhos antifurto de automóveis, selos de chumbo
etc.).”21
A qualificadora em exame prevê duas modalidades de
comportamento. No primeiro, o agente destrói o obstáculo, ou seja,
usa de violência contra a coisa, destruindo, eliminando ou fazendo
desaparecer aquilo que o impedia de levar a efeito a subtração.
Pratica o crime de furto qualificado pela destruição de obstáculo o
agente que, valendo-se de um pé de cabra, arrebenta o cadeado
que impedia o acesso de estranhos ao local onde se encontravam
acondicionados os aparelhos eletrônicos que foram objeto da
subtração.
Rompimento, conforme lições de Noronha, “designa a ação ou
consequência de romper, que importa partir, despedaçar, separar,
rasgar, abrir etc.”22 Ainda podemos compreender o rompimento no
sentido de afastar, eliminar o obstáculo, mesmo que o agente o
preserve intacto. Assim, podemos raciocinar com a hipótese em que
o agente, ao invés de destruir, inutilizar o cadeado colocado para
impedir a abertura de uma porta, consiga retirá-lo desaparafusando
os suportes que os sustentavam, para, logo em seguida à
subtração, recolocá-lo em seu lugar original.
Discute-se, ainda, se, nos termos da redação legal, a destruição
e o rompimento de obstáculo devem ser levados a efeito antes da
subtração da coisa alheia móvel, ou se é possível, mesmo depois do
seu apossamento, também para fim de subtração.
Imagine-se a seguinte hipótese: o agente, almejando subtrair
alguns aparelhos eletrônicos, destrói o cadeado que fora colocado
com o fim específico de impedir o acesso de pessoas estranhas ao
galpão onde se encontravam acondicionados. Aqui, a destruição do
obstáculo (cadeado), foi praticada para que o agente pudesse levar
a efeito a subtração. Agora, imagine-se a hipótese em que o agente
se esconda no interior de uma loja de departamentos para, depois
de seu fechamento, subtrair alguns aparelhos eletrônicos. Contudo,
para que possa sair daquele local, faz-se necessária a destruição de
algum obstáculo, a exemplo do mesmo cadeado.
Assim, pergunta-se: em virtude da locução contida no inciso I
do § 4º do art. 155 do Código Penal, ou seja, destruição ou
rompimento de obstáculo à subtração da coisa, os dois exemplos
seriam considerados modalidades qualificadas de furto ou tão
somente o primeiro?
Tal discussão é travada doutrinariamente por Noronha e
Hungria.
Defendendo a tese de que a destruição ou o rompimento de
obstáculo deveria ocorrer antes da apreensão da coisa ou
concomitantemente a ela, assim se manifesta Noronha:
“Deve ela ser empregada para a subtração. Como já notamos,
subtrair e subtração são termos que tanto se referem à
apreensão da coisa como ao crime todo. Entretanto estamos
que a lei, nesse passo, emprega a expressão em sentido
restrito. Sua redação é que nos diz isso: ‘[...] se o crime é
cometido com destruição ou rompimento de obstáculos à
subtração da coisa’. Por certo, se se quisesse referir ao delito
todo, bastaria dizer: ‘[...] se o crime é cometido com destruição
ou rompimento de obstáculo’. Se assim não se interpretar o
dispositivo, a oração será pleonástica.
A violência, pois, há de ser meio para se efetivar a apreensão
da coisa; deve ser anterior ou concomitante.”23
Em sentido contrário, afirmando que a destruição ou o
rompimento poderia ocorrer antes, ou mesmo depois da apreensão
da res, esclarece Hungria:
“Cumpre que a destruição ou o rompimento do obstáculo ocorra
em qualquer dos momentos da fase executiva do crime. O que
vale dizer: para possibilitar ou facilitar tanto a apprehensio,
quanto a efetiva transferência da res furtiva ao poder de livre e
tranquila disposição dela por parte do agente. Enquanto o furto
não está consumado, ou ainda se ache em fase de execução, a
violência contra o obstáculo é qualificativa.”24
Filiamo-nos à corrente esposada por Hungria. Não seria
razoável, permissa vênia, deixar de qualificar o delito de furto,
mesmo tendo o agente destruído ou rompido um obstáculo para que
pudesse ter sucesso na empresa criminosa, pela simples razão de
que a res furtiva já estava em seu poder. Assim, portanto, é
indiferente o fato de que a violência contra a coisa tenha sido
empregada antes, durante ou, mesmo, posteriormente à
apprehensio, pois que o furto restará, da mesma forma, consumado,
haja vista que o comportamento do agente foi dirigido a destruir ou
romper um obstáculo ali colocado com o fim de impedir a subtração,
o que, ao final, acabou ocorrendo.
Existe, ainda, controvérsia no que diz respeito à aplicação da
qualificadora quando estivermos diante de um obstáculo
descontínuo. Imagine-se a hipótese de um lugar rodeado por uma
cerca, sendo que, em um dos pontos, havia um buraco que permitia
a passagem de uma pessoa. Caso o agente ingressasse por aquele
local já aberto, deveria responder pela qualificadora em estudo?
Entendemos que não. Isso porque não podemos concluir que o
agente destruiu ou rompeu um obstáculo, já que, no caso
apresentado, este não se encontrava presente, em razão do buraco
existente na cerca.
2.11.1.1 Jurisprudência em teses do Superior Tribunal de Justiça.
Edição nº 105: Provas no processo penal – I
5) A incidência da qualificadora
rompimento de obstáculo, prevista no
art. 155, § 4º, I, do Código Penal, está
condicionada à comprovação por
laudo pericial, salvo em caso de
desaparecimento
dos
vestígios,
quando a prova testemunhal, a
confissão do acusado ou o exame
indireto poderão lhe suprir a falta.
2.11.2
Abuso de confiança, ou mediante fraude, escalada ou
destreza
A primeira das qualificadoras contidas no inciso II do § 4º do art.
155 do Código Penal refere-se ao abuso de confiança. A primeira
ilação que podemos fazer dessa expressão diz respeito ao fato de
que somente se pode abusar sobre aquilo que se tem. Isso significa
que, para haver abuso de confiança, é preciso que, antes, tenha
havido uma relação de confiança entre o agente e a vítima. Caso
contrário, se isso nunca ocorreu, o furto deverá ser reconhecido
como simples ou deve-se aplicar, se for o caso, outra qualificadora.
Relação de confiança pressupõe liberdade, lealdade,
credibilidade, presunção de honestidade entre as pessoas. Abusa o
agente da confiança que nele fora depositada quando se aproveita
dessa relação de fidelidade existente anteriormente para praticar a
subtração. Dessa forma, também para que se caracterize a
qualificadora em questão, será preciso comprovar que,
anteriormente à prática da subtração, havia, realmente, essa relação
sincera de fidelidade, que trazia uma sensação de segurança à
vítima. No entanto, se o agente, ardilosamente, construir essa
relação de confiança para o fim de praticar a subtração, fazendo
com que a vítima incorra em erro no que diz respeito a essa
fidelidade recíproca, o furto será qualificado pela fraude, e não pelo
abuso de confiança.
A relação empregatícia pode ou não permitir a aplicação da
qualificadora relativa ao abuso de confiança, conforme exemplifica
Guilherme de Souza Nucci:
“Uma empregada doméstica que há anos goza da mais
absoluta confiança dos patrões, que lhe entregam a chave da
casa e várias outras atividades pessoais (como o pagamento de
contas), caso pratique um furto, incidirá na figura qualificada.
Por outro lado, a empregada doméstica recém-contratada, sem
gozar da confiança plena dos patrões, cometendo um furto
incide na figura simples. Note-se que a simples relação de
emprego entre funcionário e empregador não faz nascer a
confiança entre as partes, que é um sentimento cultivado com o
passar do tempo.”25
Quando não for o caso da aplicação da qualificadora do abuso
de confiança, poderá, dependendo da hipótese concreta, fazer-se
incidir a circunstância agravante prevista na alínea f do inciso II do
art. 61 do Código Penal (com abuso de autoridade ou prevalecendose de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade).
O emprego de fraude também qualifica o delito de furto. Fraude,
aqui, significa a utilização de meios ardilosos, insidiosos, fazendo
com que a vítima incorra ou seja mantida em erro, a fim de que o
próprio agente pratique a subtração.
A fraude, portanto, é utilizada pelo agente a fim de facilitar a
subtração por ele levada a efeito. Assim, aquele que, por exemplo,
querendo praticar a subtração de um aparelho de ultrassonografia,
veste-se com roupa característica do pessoal encarregado da
manutenção dos aparelhos hospitalares, facilitando, dessa forma, o
seu ingresso naquele lugar, bem como a retirada da coisa do seu
local original; ou, ainda, um caso que ficou famoso no Rio de
Janeiro, em que os agentes, valendo-se de um veículo
caracterizado como de propriedade do Detran, subtraíram algumas
motocicletas no centro da cidade carioca, fazendo-se passar por
funcionários daquele órgão, que, supostamente, estavam ali para
coibir estacionamentos irregulares que ocorriam em locais públicos.
Alerta Hungria que “meio fraudulento é, também, qualquer ardil
no sentido de provocar a ausência momentânea do dominus ou
distraindo-lhe a atenção, para mais fácil perpetração do furto.”26
Imagine-se, nesse caso, o exemplo daquele que, querendo subtrair
algum objeto que se encontrava na mesa de trabalho da vítima, lhe
informe, ardilosa e mentirosamente, que seu carro estava sendo
rebocado, fazendo com que esta saísse, às pressas, deixando o
bem almejado pelo agente em cima da referida mesa, faci-litandolhe a subtração. No caso sub examen, deveria o agente ser
responsabilizado pelo delito de furto qualificado pelo emprego de
fraude.
Assim, concluindo, no furto qualificado mediante fraude, o ardil,
a insídia e o engodo são empregados pelo agente a fim de facilitar a
subtração da coisa.
Escalada, na definição de Hungria, é:
“O ingresso em edifício ou recinto fechado, ou saída dele, por
vias não destinadas normalmente ao trânsito de pessoas,
servindo-se o agente de meios artificiais (não violentos) ou de
sua própria agilidade. Tanto é escalada o galgar uma altura,
quanto saltar um desvão (exemplo: um fosso), ou passar por via
subterrânea não transitável ordinariamente (ex.: um túnel de
esgoto). Se a passagem subterrânea é escavada adrede, o que
se tem a reconhecer é o emprego de meio fraudulento.”27
Resumindo as lições do insuperável autor, para que se possa
raciocinar em termos de escalada, é preciso que o ingresso do
agente se dê por via anormal, que demande esforço também
anormal, a exemplo daquele que, a fim de ingressar na residência
da vítima, salta um muro com três metros de altura. No entanto,
imagine-se a hipótese em que o agente, mesmo com a intenção de
saltar o muro da residência da vítima a fim de praticar o delito de
furto, perceba que exista, no mencionado muro, um buraco que lhe
permita passar, com tranquilidade. A primeira indagação que
faríamos seria a seguinte: Ingressar naquela residência pelo muro
seria uma via de acesso normal? Obviamente que a resposta seria
não. Contudo, temos de continuar nos perguntando: Embora não
sendo uma via de acesso normal, o agente teve de fazer um esforço
tremendo, anormal, para que conseguisse atravessar o mencionado
muro? A resposta, aqui, também seria negativa, razão pela qual,
mesmo sendo a via anormal, o furto seria considerado simples, e
não qualificado pela escalada.
Também merece destaque a indagação se a qualificadora da
escalada será aplicada somente nas hipóteses em que o corpo do
agente ingresse, por inteiro, no prédio, ou se poderá ser levada a
efeito sua aplicação na hipótese de ingresso parcial.
A discussão tem sentido, uma vez que a imprensa tem trazido
ao conhecimento do público furtos praticados pelos chamados
“homens-aranha”, que possuem uma habilidade especial para
escalar prédios. Imagine-se a hipótese em que o agente, depois de
escalar a fachada de um edifício, chegando até o quinto andar,
perceba que o objeto que almeja subtrair encontra-se próximo à
janela, não sendo preciso, portanto, o seu ingresso completo
naquela residência. Dessa forma, obtém sucesso na subtração
mediante o ingresso parcial de seu corpo, ou seja, tão somente de
seu braço. Nesse caso, poderia ser aplicada a qualificadora da
escalada? A resposta deve ser positiva, uma vez que a escalada é
um meio para a prática da subtração, que foi plenamente utilizado
pelo agente, como se percebe sem qualquer dificuldade.
A destreza é a última figura contida no inciso II do § 4º do art.
155 do Código Penal. Atua com destreza o agente que possui
habilidade especial na prática do furto, fazendo com que a vítima
não perceba a subtração. A qualificadora, como regra, é aplicada
aos agentes que, na gíria policial, são chamados de punguistas, que
possuem habilidades especiais para a prática da subtração, a
exemplo daquele que, no interior de um veículo coletivo, coloca a
mão em um dos bolsos da vítima, subtraindo-lhe a carteira sem que
ela perceba; ou, ainda, na hipótese em que o agente, valendo-se de
um estilete, corta a bolsa da vítima, subtraindo-lhe os bens que nela
estavam contidos.
Weber Martins Batista, com a precisão que lhe é peculiar,
acrescenta:
“Destreza é soma de habilidade com dissimulação. O agente se
adestra, treina, especializa-se, adquire tal agilidade de mãos e
dedos, que é capaz de subtrair a coisa como que em um passe
de mágica. E usa essa habilidade extraordinária, excepcional,
como arma para dissimular a subtração do bem. Por isso
mesmo, todos concordam em que não haverá furto qualificado
se, embora com invulgar ligeireza, o ladrão age abertamente,
pois assim fazendo não frustra de todo a possibilidade de
defesa da coisa pelo dono.
A qualificadora exige, portanto, essa agilidade manual
incomum, sem a qual não há maior risco para o patrimônio. Não
basta o agente querer praticar furto com destreza; é preciso que
ele tenha habilidade para isso. À semelhança do que ocorre
com quem, pensando dar veneno, ministra açúcar ao doente
que quer matar, é impossível a qualificadora no caso de
tentativa de furto mediante destreza por quem se mostra inábil,
absolutamente despreparado para isso.”28
Em razão desse raciocínio, seria possível alguém ser
processado criminalmente por tentativa de furto qualificado pela
destreza, já que, não tendo sucesso na empresa criminosa, foi
preso em flagrante durante a execução do delito?
Cezar Roberto Bitencourt afirma:
“A prisão em flagrante (próprio) do punguista afasta a
qualificadora, devendo responder por tentativa de furto simples;
na verdade, a realidade prática comprovou exatamente a
inabilidade do incauto.”29
Ousamos discordar, nesse ponto, do renomado professor
gaúcho. Na verdade, a resposta deve ser desdobrada. Inicialmente,
se foi a própria vítima quem percebeu a ação do agente e o prendeu
em flagrante, mesmo que auxiliada por terceiros, logicamente não
podemos falar em destreza, uma vez que, no caso concreto, não
teve ele habilidade suficiente para realizar a subtração sem que ela
o descobrisse. Por outro lado, suponhamos que o agente, já
finalizando a subtração que, até aquele momento, “tinha sido um
sucesso”, assim que retira a carteira do bolso da vítima, é
descoberto por um terceiro, que o prende em flagrante. Nessa
hipótese, a tentativa poderá ser qualificada pela destreza, visto que
a ação descoberta por terceiros não afasta a habilidade
extraordinária com a qual o agente praticava a subtração.
Não age com destreza o agente, segundo opinião
doutrinariamente predominante, quando a subtração é realizada
contra vítima que dormia ou se encontrava embriagada, pois que,
qualquer pessoa, em decorrência desses fatores, poderia fazê-lo.
Contudo, merece destaque o fato de que somente o sono profundo
e a embriaguez em estágio avançado afastam a qualificadora, uma
vez que impedem a vítima de perceber a subtração, mesmo que
praticada por aquele que não possuía habilidade especial,
extraordinária. Se a vítima, mesmo dormindo ou embriagada, ou
seja, nas condições em que se encontrava, tivesse condições de
perceber a subtração, se esta vem a ocorrer dada a habilidade do
agente, o delito poderá ser qualificado pela destreza.
2.11.3
Emprego de chave falsa
Considera-se chave falsa qualquer instrumento – tenha ou não
aparência ou formato de chave – destinado a abrir fechaduras, a
exemplo de grampos, gazuas, mixa, cartões magnéticos (utilizados
modernamente nas fechaduras dos quartos de hotéis) etc.
Qualquer chave, desde que não seja a verdadeira, utilizada
para abrir fechaduras, deve ser considerada falsa, inclusive a cópia
da chave verdadeira. Entretanto, existe divisão doutrinária com
relação à interpretação da expressão chave falsa. Alguns autores, a
exemplo de Magalhães Noronha, afirmam que, em determinadas
situações, a própria chave verdadeira poderá ser considerada falsa,
para efeitos de aplicação da qualificadora, assim se manifestando:
“São também falsas as chaves verdadeiras furtadas ou
perdidas. Não há como excluí-las da disposição legal. Se o que
a lei veda é a abertura ilícita da coisa que representa a
custódia, maior razão existe contra o emprego da chave
subtraída ou achada, pois já é obtida criminosamente, quer por
ter sido furtada, quer por não ter sido devolvida ao dono.”30
Vale registro a posição de Álvaro Mayrink da Costa, na qual fica
consignada sua mudança de entendimento no que diz respeito ao
conceito de chave falsa:
“Já sustentamos que a chave verdadeira se equiparava à chave
falsa, quando obtida por meios sub-reptícios, e o fato de
desviar-se de sua destinação converteria a verdadeira em falsa
(tese puramente subjetiva). Contudo, melhor examinando o
elemento objetivo do tipo, observamos que a expressão usada
é chave falsa, razão pela qual reformulamos nossa posição
para aceitar parcialmente a corrente dominante em nossa
doutrina de que o emprego de chave verdadeira não constituiria
a qualificadora do emprego de chave falsa, mas configuraria a
figura da fraude (tese puramente objetiva). Segue-se que a
cópia da verdadeira é falsa, e a esquecida na fechadura não
constitui qualificadora, pois se equipara à porta aberta, e a
chave é verdadeira, tratando-se, portanto, de furto simples.”31
Interpretar a expressão chave falsa a fim de nela compreender
também a chave verdadeira configura-se em gritante ofensa ao
princípio da legalidade, negando-se, inclusive, a própria natureza
das coisas. A lei penal exige, claramente, a utilização de qualquer
outra chave (vale dizer, qualquer outro instrumento, tenha ou não o
formato de chave), que não seja a verdadeira, para qualificar o
crime de furto.
A utilização de chave verdadeira, obtida ardilosamente pelo
agente, terá o condão de qualificar o delito de furto pelo emprego de
fraude, e não pelo emprego de chave falsa.
O art. 25 da Lei das Contravenções Penais tipifica a posse não
justificada de instrumento de emprego usual na prática de furto,
dizendo:
Art. 25.32 Ter alguém em seu poder,
depois de condenado por crime de
furto ou roubo, ou enquanto sujeito à
liberdade
vigiada
ou
quando
conhecido como vadio ou mendigo,
gazuas, chaves falsas ou alteradas ou
instrumentos empregados usualmente
na prática de crime de furto, desde
que não prove destinação legítima:
Pena – prisão simples, de 2 (dois)
meses a 1 (um) ano, e multa.
2.11.4
Mediante o concurso de duas ou mais pessoas
O § 4º do art. 155 do Código Penal diz respeito ao fato de ter
sido o crime cometido mediante o concurso de duas ou mais
pessoas.
Para que se configure a mencionada qualificadora basta, tão
somente, que um dos agentes seja imputável, não importando se os
demais participantes possuam ou não esse status. Assim, se três
pessoas resolvem praticar a subtração, sendo que duas delas são
menores de 18 anos, ainda assim estaremos diante da possibilidade
de aplicação da qualificadora.
Não importa, ainda, que somente um dos agentes tenha sido
descoberto, não se podendo identificar os demais que com ele
praticaram a infração penal. Basta que se tenha a certeza de que o
furto foi cometido mediante o concurso de duas ou mais pessoas,
mesmo que somente uma delas tenha sido identificada, para que a
infração penal reste qualificada.
Por outro lado, a lei penal exige o concurso, isto é, o acordo de
vontades dirigido à finalidade comum de subtrair coisa alheia móvel.
Para tanto, faz-se mister verificar o vínculo psicológico que unia os
agentes na prática do mesmo crime. A ausência de liame subjetivo
entre os agentes afasta o concurso de pessoas, fazendo surgir outra
figura denominada autoria colateral, que não tem o condão de
qualificar o furto.
Existe polêmica doutrinária e jurisprudencial com relação ao
fato de se exigir, para fins de reconhecimento da qualificadora em
exame, a presença das pessoas durante a execução material do
delito de furto.
Hungria entendia pela necessidade da presença in loco dos
concorrentes na fase executiva do crime.33 Fragoso, ao contrário,
dizia que “o furto será qualificado desde que cometido por duas ou
mais pessoas, embora apenas uma tenha realizado a execução
material do crime, limitando-se a outra ou as outras a participação
secundária.”34
Interpretando a expressão que conduz à qualificação do furto
pelo concurso de pessoas, Weber Martins Batista conclui:
“A lei pune todos aqueles que, moral ou materialmente,
concorrem para o crime, mas só considera agravado o furto
praticado, cometido, executado por dois ou mais agentes.
Assim, à interpretação teleológica [...], se junta a interpretação
literal da norma em exame e a sua comparação com a do art.
29 do Código Penal, tudo levando à conclusão de que é
necessária a presença dos concorrentes no local do crime, na
hora de sua execução, pois o furto só será cometido ‘mediante
o concurso de duas ou mais pessoas’ se estas participarem na
fase executiva do delito.”35
Entendemos que a razão se encontra com a corrente que exige
a presença das pessoas no local onde o crime é praticado, dada a
ilação que se deve ter da expressão contida no § 4º do art. 155 do
Código Penal, que menciona o cometimento do crime, e não a
simples concorrência para o crime, como bem ressaltado por Weber
Martins Batista. Cometer é mais do que simplesmente concorrer.
Cometer é praticar atos executórios, é estar junto no momento da
realização da subtração, facilitando-a sobremaneira. Caso os
agentes não tenham praticado, juntos, os atos de execução, na
hipótese em que um deles se encarregou de elaborar o plano
criminoso, enquanto o outro o executou, entendemos que, em razão
da exigência contida no mencionado § 4º, ambos deverão ser
responsabilizados pelo delito de furto simples.
Se existe um grupo já formado, especializado na prática de
crimes de furto, caso vários de seus integrantes atuem na execução
material do crime, não se poderá aplicar a qualificadora, sob pena
de se incorrer no chamado bis in idem, devendo, portanto, o grupo
responder pela associação criminosa (art. 288 do CP), nos termos
da nova redação que lhe foi conferida pela Lei nº 12.850, de 2 de
agosto de 2013, além do crime de furto simples (art. 155, caput, do
CP), caso não exista outra qualificadora, posição com a qual não
concorda Weber Martins Batista, que afirma pelo concurso material
entre o delito do art. 288 do Código Penal, e o furto qualificado pelo
concurso de pessoas, previsto no art. 155, § 4º, IV, do mesmo
diploma repressivo.36
Merece ser frisado, ainda, que o STJ editou a Súmula nº 442,
publicada no DJe de 13 de maio de 2010, com o seguinte teor:
Súmula nº 442. É inadmissível
aplicar, no furto qualificado, pelo
concurso de agentes, a majorante do
roubo.
Tal posicionamento foi firmado pelo fato de que alguns Tribunais
de Justiça, a exemplo do que ocorria no Rio Grande do Sul, fazendo
uma comparação entre a qualificadora prevista no inciso IV do § 4º
do art. 155 do Código Penal, com a causa especial de aumento de
pena constante do inciso II do § 2º do art. 157 do mesmo diploma
legal, entendiam que o concurso de pessoas, comum às duas
situações, tinha tratamento mais gravoso no furto, uma vez que
duplicava as penas constantes do caput, enquanto no roubo, crime
mais grave, o concurso de pessoas fazia com que a pena fosse
aumentada de um terço até metade.
Assim, ao argumento de que o inciso IV do § 2º do art. 155 do
Código Penal era ofensivo ao princípio da proporcionalidade,
negavam a sua validade e, consequentemente, na hipótese de ter
havido o concurso de pessoas, aplicavam, por analogia, a causa
especial de aumento de pena prevista no inciso II do § 2º do art. 157
do estatuto repressivo.
A Súmula nº 442 do STJ, a nosso ver com razão, mesmo sem
efeito vinculante, foi editada com a finalidade de tentar impedir esse
raciocínio.
2.11.5
Emprego de explosivo ou de artefato análogo que cause
perigo comum
As modernas tecnologias fizeram com que a criminalidade
optasse por novas práticas ilícitas lucrativas. Os roubos a bancos
deixaram de ser comuns, pois envolvem riscos maiores para o
grupo criminoso, tendo em vista a possibilidade real de confronto
com a polícia, captura de seus membros, dificuldade de fuga etc.
Os caixas eletrônicos passaram, portanto, a ser o alvo principal
desses grupos, uma vez que são instalados em inúmeros e diversos
lugares (postos de gasolina, fachada dos bancos, em casas
lotéricas, supermercados etc.) e, normalmente, permitem o
armazenamento de uma quantidade considerável de dinheiro.
Via de regra, os criminosos, a fim de subtrair os valores
depositados nesses caixas eletrônicos, se utilizavam de explosivos,
durante a madrugada, na calada da noite, sem a presença de
qualquer pessoa por perto. Por não existir violência ou ameaça
contra qualquer pessoa, essas explosões em caixas eletrônicos
eram tipificadas tão somente como delitos de furto, normalmente
considerados como qualificados em virtude, muitas vezes, da
destruição ou rompimento de obstáculo, ou do concurso eventual de
pessoas, conforme previsto nos incisos I e IV do § 4º do art. 155 do
Código Penal, cuja pena cominada varia entre 2 (dois) a 8 (oito)
anos de reclusão, e multa.
Como se percebe sem muito esforço, a pena era pequena para
fatos de tamanha gravidade, e já se pugnava pelo seu aumento, o
que foi efetivamente levado a efeito pela Lei nº 13.654, de 23 de
abril de 2018, que inseriu o § 4º-A ao art. 155 do Código Penal,
criando uma qualificadora específica quando houver o emprego de
explosivo ou de artefato análogo que cause perigo comum,
cominando uma pena de reclusão de 4 (quatro) a 10 (dez) anos e
multa.
Agora, em razão da especialidade, mesmo se houver um
concurso eventual de pessoas, ou ainda um rompimento ou
destruição de obstáculo com a utilização de explosivo ou artefato
análogo para fins de subtração dos valores depositados em um
caixa eletrônico, por exemplo, ou mesmo para a subtração de bens
depositados em outro lugar, como ocorre com os próprios bancos
(sem que haja violência ou grave ameaça a qualquer pessoa), locais
destinados à guarda de bens, residências, enfim, se houver a
utilização de explosivo ou de artefato análogo, o delito será, agora,
aquele previsto pelo § 4º-A ao art. 155 do Código Penal.
Explosivo, de acordo com a definição do Esquadrão
Antibombas do Batalhão de Operações Policiais Especiais – BOPE
– do Estado de Minas Gerais é o produto que, por meio de uma
excitação adequada se transforma rápida e violentamente de estado
gerando gases, altas pressões e elevadas temperaturas sendo a
explosão o escape súbito e repentino de gases do interior de um
espaço limitado, gerando alta pressão e elevada temperatura37; ou,
ainda, conforme preleciona Walter Dornberger:
“Explosivos são substâncias ou compostos que, por ação de
uma causa externa (calor, choque, descarga elétrica etc.) são
capazes de gerar explosão, uma reação química caracterizada
pela liberação, em breve espaço de tempo e de forma violenta,
de calor, gás e energia mecânica. São usados como carga em
bombas, granadas e minas; como propelentes para projéteis de
armas leves e artilharia; e em engenharia, terraplanagem,
mineração e demolição (militar ou comercial) de construções e
outras estruturas.
Explosivos são classificados em ‘baixo’ e ‘alto’ poder explosivo.
Baixo-explosivos agem por ‘deflagração’, através de
combustão, da queima do material, com a explosão se
propagando a alta velocidade subsônica, da ordem de
centímetros ou metros por segundo, exemplo: pólvora negra e
todos os propelentes. Alto-explosivos agem por ‘detonação’,
através da quebra da estrutura molecular do material, com a
explosão se propagando a velocidade supersônica, da ordem
de 1.000 a 10.000 metros por segundo, exemplo: nitroglicerina
e todos os explosivos modernos”38.
Conforme preleciona José Sérgio Marcondes:
“A descoberta dos explosivos se deu na China no ano 1000
d.C., com a descoberta da pólvora: um pó preto formado pela
mistura de carvão, enxofre e salitre (nitrato de potássio),
utilizado então apenas para fabricar fogos de artifício.
Possuem em sua composição química componentes que
possuem alta energia interna, os quais, quando sensibilizados
por um acionador, liberam essa energia na forma de calor e
ondas de choque.
As ondas de choque são, normalmente, responsáveis pela
maior quantidade de danos ocasionados por uma explosão.
Para ser considerado um explosivo a substância tem que ter
uma instabilidade natural que possa ser acionada por uma
chama, choque, atrito ou calor”39.
Os explosivos podem ser classificados em: a) explosivos
industrializados e comercializados (EOD – Explosive ordinance
disposal); b) artefatos explosivos improvisados (IEDD – Improvised
explosive device disposal), ou c) munições não explodidas (UXO –
Unexpoded ordinance).
O Exército brasileiro, através de Comando Logístico, editou a
Portaria nº 42, de 28 de março de 2018, estabelecendo
procedimentos administrativos para o exercício de atividades com
explosivos e produtos que contêm nitrato de amônio, onde em seu
Anexo A inseriu um glossário contendo definições dos termos e
expressões utilizados na referida portaria, que deverão ser utilizadas
na interpretação do conceito de explosivo, utilizado pelo § 4º-A do
art. 155 do Código Penal, dizendo:
Cargas moldadas – são explosivos
com formato fixo, predefinido, de
acordo com um molde inicial; o tipo
mais comum possui um orifício cônico
em seu corpo destinado a concentrar
a energia da explosão em uma
direção específica; o funcionamento
desses dispositivos é baseado no
efeito Monroe ou “carga oca”, é muito
utilizado
em
munições
para
perfuração de blindagens.
Cordel detonante – tubo flexível
preenchido com nitropenta, RDX ou
HMX, destinado a transmitir a
detonação do ponto de iniciação até a
carga explosiva; seu tipo mais comum
é o NP 10, ou seja, aquele que possui
10 g de nitropenta/RDX por metro
linear. Para fins de armazenamento, a
unidade a ser utilizada é o metro.
Explosivos granulados industriais –
são composições explosivas que,
além de nitrato de amônio e óleo
combustível, possuem aditivos como
serragem, casca de arroz e alumínio
em pó (para correção de densidade,
balanço de oxigênio, sensibilidade e
potencial energético); também são
conhecidos comercialmente como
granulados,
pulverulentos,
derramáveis ou nitrocarbonitratos.
Explosivos plásticos – são massas
maleáveis, normalmente à base de
ciclonite
(RDX),
trinitrotolueno,
nitropenta e óleos aglutinantes, que
podem ser moldadas de acordo com a
necessidade de emprego. São os
explosivos mais cobiçados para fins
ilícitos por sua facilidade de iniciação
(é sensível à espoleta comum no 8),
por seu poder de destruição e por sua
praticidade. São também conhecidos
como cargas moldáveis.
Explosivos tipo ANFO – são misturas
de nitrato de amônio e óleos
combustíveis. Explosivos tipo dinamite
– são todos os que contêm
nitroglicerina em sua composição,
exigindo maior cuidado em seu
manuseio e utilização devido à
elevada sensibilidade.
Emulsão – são misturas de nitrato de
amônio diluído em água e óleos
combustíveis obtidas por meio de um
agente
emulsificante;
contêm
microbolhas dispersas no interior de
sua massa responsáveis por sua
sensibilização;
normalmente
são
sensíveis à espoleta comum no 8 e,
eventualmente, necessitam de um
reforçador para sua iniciação.
Emulsão bombeada – são explosivos
tipo emulsão a granel, bombeados e
sensibilizados diretamente no local de
emprego por meio de unidades
móveis, de fabricação ou de
bombeamento.
Explosivos tipo emulsão encartuchada
– são explosivos tipo emulsão
embalados em cartuchos cilíndricos,
normalmente de filme plástico,
sensibilizados desde a fabricação.
Explosivos tipo lama – são misturas
de nitratos diluídos em água e
agentes sensibilizantes na forma de
pastas; também conhecidos como
“slurries” (ou, no singular, “slurry”).
Gelatina explosiva – é uma mistura de
nitrocelulose e nitroglicerina utilizada
na fabricação de explosivos tipo
dinamite. Em decorrência, algumas
dinamites
são
denominadas
gelatinosas
ou
semigelatinosas
conforme a quantidade de gelatina
explosiva
presente
em
sua
composição.
GHS
(Sistema
Harmonizado
Globalmente para Classificação e
Rotulagem de Produtos Químicos) – é
uma metodologia para definir os
perigos específicos de cada produto
químico, para criar critérios de
classificação segundo seus perigos e
para
organizar
e
facilitar
a
comunicação da informação de perigo
em rótulos e fichas de informação de
segurança.
IIS – Identificação Individual Seriada.
(...) Pólvora negra – mistura de nitrato
de potássio, carvão e enxofre.
Reforçadores – são acessórios
explosivos destinados a amplificar a
onda de choque para permitir a
iniciação de explosivos em geral não
sensíveis à espoleta comum no 8 ou
cordel detonante; normalmente são
tipos específicos de cargas moldadas
de TNT, nitropenta ou pentolite.
Retardos
–
são
dispositivos
semelhantes a espoletas comuns,
normalmente com revestimento de
corpo plástico, que proporcionam
atraso controlado na propagação da
onda de choque. São empregados na
montagem de malhas que necessita
de uma defasagem na iniciação do
explosivo em diferentes pontos ou de
detonações isoladas, a fim de
oferecer maior segurança à operação.
Para que a qualificadora em estudo possa ser efetivamente
aplicada, o explosivo utilizado deve causar uma situação de perigo
comum, ou seja, a um número indeterminado de pessoas.
A Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, modificando a Lei
nº 8.072/1990, inseriu o inciso IX em seu art. 1º, passando a
considerar como hediondo o furto qualificado pelo emprego de
explosivo ou de artefato análogo que cause perigo comum (art. 155,
§ 4º-A).
2.11.6
Se o furto mediante fraude é cometido por meio de
dispositivo eletrônico ou informático, conectado ou não à
rede de computadores, com ou sem a violação de
mecanismo de segurança ou a utilização de programa
malicioso, ou por qualquer outro meio fraudulento análogo
O § 4º-B foi inserido ao art. 155 do Código Penal pela Lei nº
14.155, de 27 de maio de 2021, criando mais uma qualificadora
quando o furto mediante fraude é cometido por meio de dispositivo
eletrônico ou informático, conectado ou não à rede de
computadores, com ou sem a violação de mecanismo de segurança
ou a utilização de programa malicioso, ou por qualquer outro meio
fraudulento análogo.
Dispositivo eletrônico ou informático seria todo aquele aparelho
capaz de receber e armazenar dados e informações, tratá-los, bem
como transmitir os resultados, a exemplo do que ocorre com os
computadores, smartphones, tablets etc.
Esse dispositivo eletrônico ou informático pode estar ou não
conectado à rede de computadores, ou seja, a um conjunto de dois
ou mais computadores autônomos e outros dispositivos, interligados
entre si com a finalidade de compartilhar informações e
equipamentos, a exemplo dos dados, impressoras, mensagens etc.
Diz respeito, portanto, a estruturas físicas (equipamentos) e lógicas
(programas, protocolos) que possibilitam que dois ou mais
computadores possam compartilhar suas informações entre si.
Não há necessidade, ainda, para efeitos de reconhecimento e
aplicação da qualificadora em análise, que tenha ocorrido violação
de mecanismo de segurança. Por mecanismos de segurança
podemos entender todos os meios que visem a garantir que
somente determinadas pessoas terão acesso ao dispositivo
informático, a exemplo do que ocorre com a utilização de login e
senhas que visem a identificar e autenticar o usuário, impedindo que
terceiros não autorizados tenham acesso às informações nele
contidas.
Da mesma forma, não se exige, para efeitos de aplicação da
qualificadora constante do § 4º-B, do art. 155 do Código Penal, que
tenha sido levada a efeito a utilização de programa malicioso.
“Códigos maliciosos (malware) são programas especificamente
desenvolvidos para executar ações danosas e atividades
maliciosas em um computador. Algumas das diversas formas
como os códigos maliciosos podem infectar ou comprometer
um computador são:
•
pela exploração de vulnerabilidades existentes nos
programas instalados;
•
pela autoexecução de mídias removíveis infectadas, como
pen-drives;
•
pelo acesso a páginas web maliciosas, utilizando
navegadores vulneráveis;
•
pela ação direta de atacantes que, após invadirem o
computador,
incluem
arquivos
contendo
códigos
maliciosos;
•
pela execução de arquivos previamente infectados, obtidos
em anexos de mensagens eletrônicas, via mídias
removíveis, em páginas web ou diretamente de outros
computadores (através do compartilhamento de recursos).
Uma vez instalados, os códigos maliciosos passam a ter acesso
aos dados armazenados no computador e podem executar
ações em nome dos usuários, de acordo com as permissões de
cada usuário.
Os principais motivos que levam um atacante a desenvolver e a
propagar códigos maliciosos são a obtenção de vantagens
financeiras, a coleta de informações confidenciais, o desejo de
autopromoção e o vandalismo. Além disso, os códigos
maliciosos são, muitas vezes, usados como intermediários e
possibilitam a prática de golpes, a realização de ataques e a
disseminação de spam.”40
Qualquer outro meio fraudulento análogo à fraude cometida por
meio de dispositivo eletrônico ou informático, conectado ou não à
rede de computadores, com ou sem a violação de mecanismo de
segurança ou a utilização de programa malicioso também importará
na aplicação da qualificadora.
2.11.7
Causas de aumento de pena específicas para a
qualificadora prevista no § 4º-B do art. 155 do Código
Penal
Diz o art. 4º-C, inserido ao art. 155 do Código Penal pela Lei nº
14.155, de 27 de maio de 2021, verbis:
§ 4º-C. A pena prevista no § 4º-B
deste artigo, considerada a relevância
do resultado gravoso:
I – aumenta-se de 1/3 (um terço) a 2/3
(dois terços), se o crime é praticado
mediante a utilização de servidor
mantido fora do território nacional;
II – aumenta-se de 1/3 (um terço) ao
dobro, se o crime é praticado contra
idoso ou vulnerável.
O mencionado § 4º-B, do art. 155 do Código Penal, a seu turno,
assevera que a pena é de reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e
multa, se o furto mediante fraude é cometido por meio de dispositivo
eletrônico ou informático, conectado ou não à rede de
computadores, com ou sem a violação de mecanismo de segurança
ou a utilização de programa malicioso, ou por qualquer outro meio
fraudulento análogo.
Assim, a referida pena de reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito)
anos, e multa, será aumentada de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços),
se o crime for praticado mediante a utilização de servidor mantido
fora do território nacional, tendo em vista a maior dificulda19de no
que diz respeito à investigação nessa hipótese, bem como haverá
um aumento de 1/3 (um terço) ao dobro, se o crime for praticado
contra idoso, isto é, aquele que, segundo o art. 1º da Lei nº 10.741,
de 1º de outubro de 2003, tiver idade igual ou superior a 60
(sessenta) anos, ou vulnerável, vale dizer, os elencados pelo art.
217-A do diploma repressivo, isto é, o menor de 14 (quatorze) anos,
e os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o
necessário discernimento para a prática do ato. O paralelo com o
referido art. 217-A do Código Penal se faz necessário, tendo em
vista que a lei tão somente se utilizou do termo vulnerável, para
efeito de aplicação da referida causa especial de aumento de pena.
Em se tratando de majorantes, ou seja, causas especiais de
aumento de pena, serão aplicadas no terceiro momento do critério
trifásico previsto no art. 68 do Código Penal.
2.11.8
Subtração de veículo automotor que venha a ser
transportado para outro Estado ou para o exterior
Por intermédio da Lei nº 9.426, de 24 de dezembro de 1996, foi
acrescentado o § 5º ao art. 155 do Código Penal, criando mais uma
modalidade qualificada de furto, dizendo que a pena é de reclusão
de 3 (três) a 8 (oito) anos, se a subtração for de veículo automotor
que venha a ser transportado para outro Estado ou para o exterior,
aumentando em 1 (um) ano a pena mínima cominada às
qualificadoras constantes do parágrafo anterior, não prevendo,
entretanto, qualquer cominação de multa.
Essa qualificadora foi criada em virtude do movimento da mídia
que, a todo instante, trazia ao conhecimento público, por meio de
reportagens investigativas, o destino dos veículos automotores
subtraídos no Brasil que, como regra, eram levados ao Paraguai e lá
utilizados normalmente pelos seus “novos proprietários”, que os
adquiriam mesmo sabendo de sua origem ilícita.
O objeto material da nova qualificadora é o veículo automotor
(automóveis, caminhões, lanchas, motocicletas etc.), desde que
venha a ser transportado para outro Estado ou para o exterior.
Dessa forma, se o agente subtrai veículo automotor sem a finalidade
de ultrapassar a barreira de seu Estado, o furto será simples, e não
qualificado.
Assim, é a conjugação do objeto material, com o efetivo
transporte do veículo automotor, para outro Estado ou mesmo para
o exterior, que qualifica a subtração.
Entretanto, seria possível cogitar em tentativa, considerando-se
a nova qualificadora? Ou seja, se o agente fosse surpreendido,
ainda no Estado onde ocorreu a subtração, quando estivesse se
dirigindo a outro Estado da federação ou mesmo a um país
estrangeiro, vizinho ao Brasil, em razão de sua especial finalidade,
poderíamos raciocinar com a tentativa qualificada? A péssima
redação nos leva a responder negativamente, pois, caso contrário,
seria muito melhor para o agente alegar, sendo surpreendido no
Estado onde ocorrera a subtração, que sua finalidade era a de, por
exemplo, transportá-lo para outro Estado, para que lhe fosse
aplicada, obrigatoriamente, a redução de um terço a dois terços,
prevista pelo parágrafo único do art. 14 do Código Penal.
Cezar Roberto Bitencourt ainda alerta:
“Essa qualificadora cria um problema sério sobre o momento
consumativo da nova figura delitiva. Afinal, pode um tipo penal
apresentar dois momentos consumativos distintos, um no
momento da subtração e outro quando ultrapassar a fronteira
de um Estado federado ou do próprio País? Com efeito, quando
o agente pratica a subtração de um veículo automotor, em
princípio é impossível saber, com segurança, se será
transportado para outro Estado ou para fora do território
nacional. Assim, essa qualificadora somente se consuma
quando o veículo ingressa efetivamente em outro Estado ou em
território estrangeiro. Na verdade, não basta que a subtração
seja de veículo automotor. É indispensável que este ‘venha a
ser transportado para outro Estado ou para o exterior’, atividade
que poderá caracterizar um posterius em relação ao crime já
consumado. Nessas circunstâncias, é impossível, em regra,
reconhecer a tentativa da figura qualificada quando, por
exemplo, um indivíduo é preso, no mesmo Estado, dirigindo um
veículo furtado.”41
2.11.9
Subtração de semovente domesticável de produção, ainda
que abatido ou dividido em partes no local da subtração
Com a finalidade de dar um tratamento mais severo à subtração
de semovente domesticável de produção, ainda que abatido ou
dividido em partes no local da subtração, a Lei nº 13.330, de 2 de
agosto de 2016, inseriu o § 6º ao art. 155 do Código Penal,
prevendo, outrossim, mais uma modalidade qualificada para o delito
de furto, cominando uma pena de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco)
anos para aqueles que praticarem essa modalidade de subtração.
De acordo com a justificativa do Projeto de Lei nº 6.999/2013,
de autoria do Deputado Afonso Hamm, posteriormente transformado
na Lei nº 13.330, de 2 de agosto de 2016:
“O crime de abigeato, ou furto de animais, é uma forma terrível
de atingir a vida do produtor rural, suprimindo bens que
garantem sua subsistência e de sua família.
O abigeato representa a perda de ativos para o produtor rural,
que já tem que lidar com uma realidade difícil, em termos
econômicos e ambientais, em nosso país.
Dados recentes demonstram que o abigeato é responsável por
20% dos abates clandestinos de animais, no Rio Grande do
Sul, segundo a Secretaria de Agricultura.
É importante que se ressalte que além do produtor, e talvez de
forma mais danosa, o abigeato atinge toda a sociedade. Tratase de uma prática criminosa que é a raiz de outras tantas
violações à segurança e à saúde públicas.
O comércio de alimentos oriundos de animais furtados é, pois,
uma atividade econômica clandestina que tem impactos
negativos tanto do ponto de vista da sonegação de impostos,
como em relação à saúde da população.
Tome-se, por exemplo, o comércio de carne de um animal
furtado que tenha sido recentemente vacinado. Determinadas
vacinas permanecem no organismo do animal por um período
de até 40 (quarenta) dias, tornando-o impróprio para consumo.
Quando a sociedade não tem garantia da origem do alimento
que adquire e consome, ela mesma se expõe a danos de toda
ordem, que podem comprometer seriamente a saúde humana”.
Por semovente domesticável de produção entende-se o animal
não selvagem destinado à produção pecuária de alimentos, a
exemplo do que ocorre com os gados bovinos, suínos, ovinos,
equinos, bufalinos, caprinos e os asininos, ou seja, que dizem
respeito à criação para o abate de mercado de bois, vacas,
carneiros, ovelhas, cavalos, búfalos, burros, cabras e bodes. O furto
de gado é conhecido por abigeato. Gado, segundo as precisas
lições de Bento de Faria, “é denominação que inculca os animais
geralmente criados ao consumo e a serviços industriais ou
comerciais; rebanho – é a multidão de – gado”42.
Dessa forma, a cunicultura, ou seja, a criação de coelhos, se
amoldaria ao conceito de gado. Os bípedes também estão inseridos
nesse conceito, como é o caso das galinhas, codornas, faisões,
perus etc., por mais estranho que isso possa parecer.
Quando o tipo penal exige, expressamente, que o semovente
domesticável seja de produção, com isso quer afastar dessa
modalidade de subtração todos os animais que sejam considerados
como de estimação, a exemplo do que ocorre com os cães, gatos,
hamsters etc. Por outro lado, se um animal que, normalmente, seria
destinado à produção, é tratado também como de estimação, a
exemplo do que tem ocorrido com porcos, o furto também não
poderá ser considerado como o de semovente domesticável de
produção, se amoldando a outra espécie de subtração.
Por produção deve ser entendido não somente o comércio de
carne animal, mas também seus derivados destinados à
alimentação humana, além de não consumíveis, que tenham valor
econômico, como ocorre com a ovelha, que é subtraída para que
dela se retire a lã.
Por outro lado, imagine-se a hipótese de um morador da zona
rural, que tenha alguns animais semoventes domesticáveis, cuja
finalidade seria o abate para o próprio uso, a exemplo do que
ocorre, usualmente, com criadores de porcos, ovelhas, bodes etc.,
que não vendem suas carnes para terceiros, mas sim as utilizam
para o próprio consumo. Nesse caso, entendemos não se aplicar a
qualificadora em estudo, tendo em vista que o caso retratado não se
amolda ao conceito de produção, havendo, portanto, uma outra
modalidade de furto.
Como diz a parte final do § 6º do art. 155 do Código Penal, para
efeitos de reconhecimento da subtração de semovente domesticável
de produção, não importa se o animal tenha sido retirado, ainda
vivo, do local da subtração, ou mesmo se tenha sido ali abatido ou
dividido em partes, como é comum acontecer.
Merece destaque ainda, o fato de que, normalmente, essa
modalidade de subtração não é praticada por somente um único
agente, havendo, outrossim, o chamado concurso de pessoas. Além
disso, via de regra, obstáculos são rompidos para que o furto seja
bem--sucedido. Enfim, o que estamos querendo dizer é que, quase
na totalidade dos casos, haverá outras qualificadoras, tipificadas no
§ 4º do art. 155 do Código Penal. Assim, quando houver, por
exemplo, uma subtração de semovente domesticável de produção,
praticado mediante o concurso de pessoas, qual será a qualificadora
a ser aplicada ao caso concreto? Será aquela prevista no § 4º do
art. 155 do diploma repressivo, cujas penas variam entre 2 (dois) e 8
(oito) anos de reclusão, ou as do § 6º, que vão de 2 (dois) a 5
(cinco) anos? A regra será a aplicação da maior pena, ou seja, o §
6º será deixado de lado, a fim de ser aplicado o § 4º, todos do
Código Penal, uma vez que este último possui uma pena máxima
cominada em abstrato superior àquele.
Infelizmente, mais uma vez, andou mal o legislador. Teria sido
melhor a criação de uma causa especial de aumento de pena já
que, dificilmente, não ocorreria uma modalidade qualificada de
subtração e a pena superior cumpriria seu papel de maior
reprovabilidade do comportamento praticado, como queria o
legislador.
Por outro lado, nas hipóteses em que, devido ao tamanho do
animal, seria possível a subtração por um único agente, não
incidindo qualquer das qualificadoras existentes no § 4º do art. 155
do Código Penal, aqui, sem dúvida, será aplicado o § 6º do mesmo
estatuto repressivo.
Por ser considerada como uma novatio legis in pejus, ou seja,
uma lei que piorou a situação anterior daqueles que praticaram a
subtração de semovente domesticável de produção, e que não se
amoldaram à qualificadora do § 4º do art. 155 do Código Penal,
cometendo, à época do fato, portanto, um crime de furto simples, o
§ 6º do diploma repressivo citado não poderá ter aplicação
retroativa, nos precisos termos do inciso XL do art. 5º da
Constituição Federal, que diz que a lei penal não retroagirá, salvo
para beneficiar o réu.
2.11.10 Se a subtração for de substâncias explosivas ou de
acessórios que, conjunta ou isoladamente, possibilitem sua
fabricação, montagem ou emprego
O § 7º foi inserido ao art. 155 do Código Penal através da Lei nº
13.654, de 23 de abril de 2018.
Ao contrário do que ocorre com o § 4º-A do art. 155 do Código
Penal, onde o explosivo ou artefato análogo é utilizado como um
instrumento para a prática de um crime de furto, no § 7º a conduta
do(s) agente(s) é dirigida no sentido de levar a efeito a própria
subtração de substâncias explosivas ou de acessórios que, conjunta
ou isoladamente, possibilitem sua fabricação, montagem ou
emprego, evitando-se, assim, seu emprego futuro na prática de
outras infrações penais.
De acordo com a classificação feita pela Unesp, as substâncias
explosivas podem ser divididas: 1) quanto à potência; 2) quanto ao
desempenho; 3) do ponto de vista químico; 4) quanto à
consistência.
Quanto à potência
•
•
Explosivos primários ou iniciadores: são materiais
utilizados nos processos de iniciação dos explosivos
propriamente ditos: Espoletas, Cordel Detonante, Boosters
etc. Os mais usados industrialmente são: Azida de
Chumbo, Estifinato de Chumbo, Fulminato de Mercúrio,
Nitropenta etc. Não têm força para detonar a rocha, apenas
iniciar a explosão. Muito sensíveis.
Explosivos secundários ou altos explosivos: são os
explosivos propriamente ditos ou explosivos de ruptura.
São tão potentes quanto os explosivos primários, porém,
por serem mais estáveis necessitam de uma maior
quantidade de energia para iniciar o processo de
detonação, energia esta geralmente fornecida pela ação
direta da detonação de um explosivo primário. É o caso
das Dinamites, Gelatinas, ANFOS, Lamas etc.
Alguns materiais podem atuar tanto como primários como
secundários em um processo de detonação. É o caso da
Nitropenta, que no Cordel Detonante atua como explosivo
primário ou iniciador e em cargas especiais atua como
secundários em cargas de demolição. Detonam com
velocidades de 2.500 a 7.500 m/s, com pressões de até
100.000 atmosferas.
Quanto ao desempenho
•
Explosivos deflagrantes: são aqueles que se decompõem
através de uma reação de deflagração. São também
denominados baixos explosivos. Produzem queima rápida,
sem grande onda de choque. Usados na produção de
mármores, paralelepípedos de calçamento etc. O único
ainda usado é a pólvora negra.
•
Explosivos detonantes: decompõem-se pela reação de
detonação e apresentam grande capacidade de trabalho
pelo que são também conhecidos como explosivos de
ruptura. São os explosivos industriais propriamente ditos.
Do ponto de vista químico: podem ser classificados em:
•
•
•
Simples (uma só substância química) – nitroglicerina,
nitroglicol, nitrocelulose, trotil e ciclonite;
Mistos: formados por substâncias que isoladamente não
são explosivas – nitratos inorgânicos, cloratos e
percloratos. O principal é o nitrato de amônio, que se torna
explosivo quando misturado com óleo diesel;
Compostos: mistura de explosivos simples com
substâncias também capazes de consumir e produzir
oxigênio. São a maioria, por permitirem dosagens que os
tornam mais – ou menos – destruidores.
Quanto à consistência: são chamados:
•
•
•
Plásticos e semiplásticos: moldam-se ao furo, podendo
preencher maior volume.
Sólidos: cartuchos contendo o explosivo em pó (dinamite);
Líquidos: os mais fáceis de fazer o carregamento (ex.:
nitroglicerina)”43. Para que ocorra a qualificadora em
estudo, não somente as substâncias explosivas devem ser
objetivo da subtração, mas também acessórios que,
conjunta ou isoladamente, possibilitem sua fabricação,
montagem ou emprego. Assim, por exemplo, não somente
pratica o crime aquele que furtar uma “banana de
dinamite”, como também aquele que vier a subtrair algum
•
•
•
•
•
acessório que facilite a sua detonação. Como exemplo de
acessórios de detonação, podemos citar: • Acendedores:
para iniciar a detonação de espoletas ou dos reforçadores
(boosters) Podem ser: estopim de segurança, estopim
ultrarrápido, conectores para estopim, cordão ignitor,
reforçadores;
Estopim de segurança: aspecto de cordão. Núcleo de
pólvora negra de nitrato de potássio, revestido com tecido
impermeabilizante. Queima com velocidade uniforme,
conhecida (145 m/s, 10%). Para detonar pólvora negra,
precisa espoleta, o mesmo ocorrendo para gelatinas e
dinamites. Usado para iniciar cargas a distâncias curtas e
cordéis detonantes;
Estopim ultrarrápido: para iniciar dinamites e
nitrocarbonitratos. Alta segurança contra impacto, correntes
parasitas, eletricidade estática. Velocidade na ordem de
2.000 m/s. Conector numa ponta, e na outra espoleta
instantânea ou retardo;
Conectores para estopim: mesmo princípio do estopim,
providenciam a ligação destes com o cordão ignitor. Núcleo
é um misto pirotécnico;
Cordão ignitor: cordão fino e flexível, revestido com
polietileno, que queima com chama firme. Usado para
acender linhas de estopins em qualquer quantidade;
Reforçadores (boosters): cargas explosivas de alta
potência usadas para iniciar a explosão de explosivos de
baixa sensibilidade, como anfos, pastas detonantes, e para
assegurar a continuidade da onda explosiva ao longo da
coluna. Combinam alta velocidade de detonação (VOD)
com alta energia (AWS). Geralmente são iniciados com
•
•
2.12
cordel detonante, espoleta simples ou elétrica. Aumentam
a segurança contra detonações falhas;
Espoletas simples: cápsulas de alumínio com tetranitrato
de penta-eritritrol (ou nitropenta) e carga iniciadora de
azida de chumbo. Ligam o explosivo ao estopim comum
por pressão de alicate especial. Usadas quando se quer ou
pode haver sequência de explosão, não quando o fogo é
simultâneo. Acoplamento perigoso, porque a carga
explosiva está aberta ao ligar;
Espoleta elétrica: Permitem detonações simultâneas.
Podem ser instantâneas ou “de tempo”44.
Causas de aumento de pena específicas para a
qualificadora prevista no § 4º-B do art. 155 do Código
Penal
Diz o § 4º-C, inserido ao art. 155 do Código Penal através da
Lei nº 14.155, de 27 de maio de 2021, verbis:
§ 4º-C. A pena prevista no § 4º-B
deste artigo, considerada a relevância
do resultado gravoso:
I – aumenta-se de 1/3 (um terço) a 2/3
(dois terços), se o crime é praticado
mediante a utilização de servidor
mantido fora do território nacional;
II – aumenta-se de 1/3 (um terço) ao
dobro, se o crime é praticado contra
idoso ou vulnerável.
O mencionado §4-B, do art. 155 do Código Penal, a seu turno,
assevera que a pena é de reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e
multa, se o furto mediante fraude é cometido por meio de dispositivo
eletrônico ou informático, conectado ou não à rede de
computadores, com ou sem a violação de mecanismo de segurança
ou a utilização de programa malicioso, ou por qualquer outro meio
fraudulento análogo.
Assim, a referida pena de reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito)
anos, e multa, será aumentada de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços),
se o crime for praticado mediante a utilização de servidor mantido
fora do território nacional, tendo em vista a maior dificuldade no que
diz respeito à investigação nessa hipótese, bem como haverá um
aumento de 1/3 (um terço) ao dobro, se o crime for praticado contra
idoso, isto é, aquele que, segundo o art. 1º da Lei nº 10.741, de 1º
de outubro de 2003, tiver idade igual ou superior a 60 (sessenta)
anos, ou vulnerável, vale dizer, os elencados pelo art. 217-A do
diploma repressivo, isto é, o menor de 14 (quatorze) anos, e os que,
por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário
discernimento para a prática do ato. O paralelo com o referido art.
217-A do Código Penal se faz necessário, tendo em vista que a lei
tão somente se utilizou do termo vulnerável, para efeito de aplicação
da referida causa especial de aumento de pena.
Em se tratando de majorantes, ou seja, causas especiais de
aumento de pena, serão aplicadas no terceiro momento do critério
trifásico previsto no art. 68 do Código Penal.
2.12.1
Pena, ação penal e suspensão condicional do processo
Para o furto simples, comina a lei penal uma pena de reclusão,
de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, sendo que para as
modalidades qualificadas, constantes do § 4º, a pena é de reclusão
de 2 (dois) a 8 (oito) anos e multa; do § 4º-A, de reclusão de 4
(quatro) a 10 (dez) anos e multa; do § 4º-B, de reclusão, de 4
(quatro) a 8 (oito) anos, e multa; do § 5º, de reclusão de 3 (três) a 8
(oito) anos; do § 6º, de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos; e de 4
(quatro) a 10 (dez) anos e multa na hipótese do § 7º.
Como regra geral, a ação penal é de iniciativa pública
incondicionada. Entretanto, devemos observar que, nos termos do
art. 182 do estatuto repressivo:
Art. 182. Somente se procede
mediante representação, se o crime
previsto neste título é cometido em
prejuízo:
I – do cônjuge desquitado ou
judicialmente separado;
II – de irmão, legítimo ou ilegítimo;
III – de tio ou sobrinho, com quem o
agente coabita.
Mesmo tratando-se das pessoas relacionadas pelos incisos do
art. 182 do Código Penal, se o furto for cometido contra pessoa de
idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, a ação será de
iniciativa pública incondicionada, nos termos do inciso III,
acrescentado ao art. 183 do Código Penal pela Lei nº 10.741, de 1º
de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso).
Admite-se a possibilidade de suspensão condicional do
processo no furto simples, haja vista que a pena mínima cominada
em seu preceito secundário não ultrapassa 1 (um) ano, nos termos
do art. 89 da Lei nº 9.099/95, desde que não praticado durante o
repouso noturno, quando incidirá o aumento de um terço, previsto
pelo § 1º do art. 155 do Código Penal.
2.12.2
Destaques
2.12.2.1 Erro de tipo com relação à elementar coisa alheia, quando
o agente a supõe res derelicta ou res nullius
Pode acontecer a hipótese em que o agente, por exemplo, ao
passar diante de uma residência, verifique que, próximo a uma lata
de lixo, encontrava-se um guarda-chuva usado, mas em bom estado
de conservação. Supondo que havia sido jogado fora, o agente o
leva consigo, quando, na verdade, seu legítimo dono estava de
saída e havia deixado o objeto na porta de sua residência por
poucos instantes, para pegá-lo logo em seguida.
Pergunta-se: o agente que o levou consigo, imaginando que
havia sido abandonado (res derelicta), poderá ser responsabilizado
a título de furto? Como já dissemos no início do nosso estudo, a
resposta só pode ser negativa, uma vez ter incorrido em erro de
tipo, isto é, errou o agente sobre um dos elementos constantes do
art. 155 do Código Penal. Para ele, a coisa não era alheia, pois que
imaginava tivesse ela sido abandonada.
Mesmo que estivéssemos diante de um erro de tipo
inescusável, cuja consequência seria afastar o dolo, mas permitir a
punição a título de culpa, o fato praticado pelo agente seria atípico,
haja vista a ausência de previsão legal para o furto de natureza
culposa.
2.12.2.2 Crime impossível
Ao analisarmos o furto qualificado pela destreza, dissemos que
tal situação é comum na hipótese do chamado “punguista”, ou seja,
aquele agente que possui uma habilidade tão extraordinária com os
dedos e as mãos que consegue levar a efeito a subtração dos bens
da vítima sem que esta perceba.
Suponhamos que o agente, no interior de um veículo coletivo,
selecione a vítima contra a qual irá praticar a subtração de seus
bens. Aproximando-se dela, começa a fazer a investida em seus
bolsos, na esperança de encontrar alguma coisa de valor. Logo
depois de retirar a mão do primeiro bolso da vítima, sem nada
encontrar, o agente é flagrado por um terceiro que, por sorte,
percebeu-lhe a movimentação. Nesse caso, em regra, conforme já
afirmamos, seria possível a tentativa de furto qualificado pela
destreza. Entretanto, a vítima, naquele momento, não possuía
qualquer bem passível de subtração, pois que estava voltando para
sua residência depois de entregar ao cobrador o seu único bem de
valor – um vale-transporte.
Assim, pergunta-se: poderia o agente, mesmo não tendo a
vítima qualquer bem que pudesse ser por ele subtraído, ser
responsabilizado pela tentativa qualificada de furto? A resposta só
pode ser negativa, tendo em vista a absoluta impropriedade do
objeto. Não havendo bem a ser subtraído, o caso seria o de crime
impossível, nos termos do art. 17 do Código Penal.
Em sentido contrário, posiciona-se Hungria, concluindo pela
tentativa de furto, afirmando ter sido:
“Meramente acidental a inexistência de dinheiro no bolso do
transeunte: ou este guardava a carteira noutro bolso ou
ocasionalmente não a trazia consigo. Resultou de puro caso
fortuito o insucesso do militante propósito do agente.”45
Apesar do raciocínio de Hungria, não podemos afirmar como
idênticas as situações em que a vítima traz algum valor consigo, que
não chegou a ser subtraído pelo agente, que errou um de seus
bolsos, e aquela em que a vítima não tem qualquer valor a ser
subtraído.
No primeiro caso, não podemos deixar de reconhecer a
tentativa, uma vez que a teoria adotada pelo Código Penal, em sede
de crime impossível, foi aquela denominada teoria objetiva
moderada (matizada ou temperada), vale dizer, o caso será
considerado hipótese de crime impossível somente quando houver
uma ineficácia absoluta do meio, ou absoluta impropriedade do
objeto. Sendo relativa a ineficácia do meio ou a impropriedade do
objeto, deverá ser reconhecida a tentativa.
Assim, na hipótese daquele que traz alguma coisa consigo, mas
que, por sorte, não foi subtraída, como o bem se encontrava em
situação de risco, devemos concluir pela tentativa; no caso do
exemplo fornecido, não existindo qualquer bem passível de
subtração, somos obrigados a concluir pela absoluta impropriedade
do objeto e, consequentemente, pelo crime impossível.
Da mesma forma, tem-se discutido se a utilização de aparelhos
de monitoramento eletrônico nos interiores dos estabelecimentos
comerciais, ou mesmo a utilização de pessoas responsáveis pela
sua segurança, impediriam o reconhecimento do crime de furto.
O Superior Tribunal de Justiça entendendo, corretamente, pela
possibilidade de reconhecimento do delito de furto publicou, no DJe
de 29 de fevereiro de 2016, a Súmula nº 567, que diz:
Súmula nº 567. Sistema de vigilância
realizado
por
monitoramento
eletrônico ou por existência de
segurança
no
interior
de
estabelecimento comercial, por si só,
não torna impossível a configuração
do crime de furto.
2.12.2.3 Furto de uso
O chamado equivocadamente furto de uso não encontra
previsão em nosso ordenamento jurídico-penal.
Dissemos que a denominação é equivocada porque furto é o
nomen juris dado às subtrações não violentas que encontram
previsão em nossa legislação penal. O máximo que se poderia dizer,
para que se pudesse distingui-lo das demais situações, seria
subtração de uso, e não furto de uso, pois que este pressupõe
previsão na lei penal.
A subtração de uso é considerada um indiferente penal pelo
fato de o art. 155 do diploma repressivo exigir, ao seu
reconhecimento, que a finalidade do agente seja a de subtrair a
coisa alheia móvel para si ou para outrem. Portanto, deve agir com
o chamado animus furandi ou, ainda, o animus rem sibi habendi,
vale dizer, o dolo de ter a coisa para si ou para outrem, a vontade de
se assenhorear da coisa subtraída.
Merece frisar, entretanto, que somente as coisas infungíveis
serão passíveis de ser subtraídas tão somente para o uso
momentâneo do agente. Sendo fungível a coisa, a exemplo do
dinheiro, tem-se entendido, majoritariamente, pelo furto comum, e
não pela subtração de uso.
A coisa deverá, ainda, ser devolvida da mesma forma como foi
subtraída, isto é, nas mesmas condições e no mesmo lugar em que
se encontrava quando foi retirada pelo agente, havendo decisões no
sentido de se condenar o sujeito pelo delito de furto quando houver
a destruição total ou parcial da coisa ou, ainda, quando for deixada
em lugar diferente do qual foi levada.
O uso prolongado da coisa subtraída faz com que se entenda
pela ocorrência do furto comum, e não da subtração para uso, que
deve, obrigatoriamente, ser momentânea.
Por essas razões é que Álvaro Mayrink da Costa define a
subtração de uso dizendo que ela se caracteriza “pelo uso
momentâneo da coisa subtraída e sua imediata devolução intacta ao
local de onde fora retirada, operando o autor sem o ânimo de
apropriar-se de coisa alheia.”46
O Código Penal Militar incrimina o furto de uso, conforme se
verifica em seu art. 241, verbis:
Art. 241. Se a coisa é subtraída para
o fim de uso momentâneo e, a seguir,
vem a ser imediatamente restituída ou
reposta no lugar onde se achava:
Pena – detenção, até seis meses.
2.12.2.4 Furto famélico
A palavra famélico traduz, segundo o vernáculo, a situação
daquele que tem fome, que está faminto. Quando nos referimos ao
furto famélico, queremos apontar uma situação em que a subtração
dos bens da vítima foi levada a efeito para que o agente pudesse
saciar sua fome.
Em tese, o fato praticado pelo agente seria típico. Entretanto, a
ilicitude seria afastada em virtude da existência do chamado estado
de necessidade. Podemos concluir que o furto famélico amolda-se
às condições necessárias ao reconhecimento do estado de
necessidade, uma vez que, de um lado, podemos visualizar o
patrimônio da vítima e, do outro, a vida ou a saúde do agente, que
corre risco em virtude da ausência de alimentação necessária à sua
subsistência.
No entanto, como em todo raciocínio que diz respeito ao estado
de necessidade, ambos os bens em confronto são juridicamente
protegidos, o agente deve subtrair patrimônio alheio (alimento) que
cause menos prejuízo, uma vez que, havendo alternativa de
subtração, deve optar por aquela menos lesiva à vítima, pois, caso
contrário, não poderá beneficiar-se com a causa de justificação em
estudo.
Assim, aquele que, no interior de um supermercado, podendo
subtrair um saco de feijão, seleciona uma peça de bacalhau, por
mais que tenha necessidade de se alimentar, não poderá ser
beneficiado com o raciocínio do estado de necessidade, pois a
escolha do bem a ser subtraído deve recair sobre aquele que traga
menor prejuízo à vítima.
Apesar da possibilidade do seu reconhecimento, somente os
casos extremos permitem o raciocínio correspondente ao furto
famélico. Conforme esclarece Weber Martins Batista:
“Exige a doutrina, para a configuração do estado de
necessidade, a impossibilidade de evitar por outro modo o
perigo. Por isso, como se tem decidido, não o caracteriza o
simples desemprego [...] e, com maior razão, o fato de o agente
perceber parco salário [...]. Lógico concluir, portanto, [...] que
não pode alegar o estado de necessidade o agente que sofre
as agruras comuns a toda classe trabalhadora do país e que,
além de estar empregado – o que não acontece a todos – não
faz prova de que passa por situação de especial dificuldade.”47
2.12.2.5 Furto de pequeno valor e subtração insignificante
Não se pode confundir o furto de pequeno valor, previsto pelo §
2º do art. 155 do Código Penal, com a subtração de valor
insignificante.
Na primeira hipótese, chega-se à conclusão de que o fato
praticado pelo agente é típico, ilícito e culpável. Há crime. Contudo,
em razão do pequeno valor da coisa subtraída (em torno de um
salário mínimo, segundo a opinião dominante), conjugada com a
primariedade do agente, a lei penal determina que o juiz, levando
em consideração as finalidades atribuídas às penas, que devem ser
necessárias e suficientes para a reprovação e a prevenção do
crime, escolha a que melhor atenda aos interesses de política
criminal, substituindo a pena de reclusão pela de detenção,
diminuindo-a de um a dois terços, ou aplicando somente a pena de
multa.
Ao contrário, entendendo o julgador que o bem subtraído não
goza da importância exigida pelo Direito Penal em virtude da sua
insignificância, deverá absolver o agente, fundamentado na
ausência de tipicidade material, que é o critério por meio do qual o
Direito Penal avalia a importância do bem no caso concreto.
Nesse sentido, já decidiu o Superior Tribunal Justiça conforme
se verifica pela ementa abaixo transcrita:
“No caso de furto, para efeito da aplicação do princípio da
insignificância, é imprescindível a distinção entre ínfimo
(ninharia) e pequeno valor. Este, ex vi legis, implica
eventualmente, furto privilegiado – como no caso dos autos;
aquele, na atipia conglobante (dada a mínima gravidade). A
interpretação deve considerar o bem jurídico tutelado e o tipo
de injusto. Ainda que se considere o delito como de pouca
gravidade, tal não se identifica com o indiferente penal se, como
um todo, observado o binômio tipo injusto/bem jurídico, deixou
de se caracterizar a sua insignificância. In casu, imputa-se ao
paciente a prática de furto privilegiado de relógio de pulso de
valor considerado – R$ 338,00 (trezentos e trinta e oito reais) –,
não se podendo reconhecer a irrelevância da conduta” (STJ,
HC 318.043/MS, Rel. Min. Felix Fischer, 5ª T., DJe 23/06/2015).
Assim, no furto de pequeno valor, o agente é condenado,
aplicando-se a ele, entretanto, uma das alternativas previstas pelo §
2º do art. 155 do Código Penal; na subtração de valor insignificante,
o agente deverá ser absolvido, por ausência de tipicidade material,
inserida no contexto da chamada tipicidade conglobante ou
conglobada.
2.12.2.6 Furto de sinal de TV em canal fechado
O § 3º do art. 155 do Código Penal equipara à coisa alheia
móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor
econômico.
Pelo que se percebe da redação do texto legal, somente a
energia foi equiparada à coisa alheia móvel, encerrando-se a
discussão doutrinária até então existente. No entanto, outras
situações foram surgindo, depois da edição do Código Penal, que
não podem ser consideradas como energia, mas que assim têm
sido cuidadas, principalmente pelas empresas que as fornecem, a
exemplo daquilo que acontece com o sinal de TV em canal fechado,
transmitido via satélite ou a cabo.
A pergunta que devemos nos fazer, agora, é a seguinte:
podemos entender como contida na expressão utilizada pelo
mencionado § 3º os sinais correspondentes à transmissão de TV por
assinatura?
Entendemos que não, pois, caso contrário, estaríamos
adotando o recurso à analogia in malam partem para que
pudéssemos preencher a lacuna existente.
Estamos com Cezar Roberto Bitencourt quando assevera:
“O art. 155, § 3º, equipara à coisa móvel ‘a energia elétrica ou
qualquer outra que tenha valor econômico’. Certamente, ‘sinal
de TV a cabo’ não é energia elétrica; deve-se examinar, por
conseguinte, seu enquadramento na expressão genérica
‘qualquer outra’ contida no dispositivo em exame. A locução
‘qualquer outra’ refere-se, por certo, a ‘energia’ que, apenas por
razões linguísticas, ficou implícita na redação do texto legal;
mas, apesar de sua multiplicidade, energia solar, térmica,
luminosa, sonora, mecânica, atômica, genética, entre outras,
inegavelmente ‘sinal de TV’ não é nem se equipara a ‘energia’,
seja de que natureza for. Na verdade, energia se consome, se
esgota, diminui, e pode, inclusive, terminar, ao passo que ‘sinal
de televisão’ não se gasta, não diminui; mesmo que metade do
País acesse o sinal ao mesmo tempo, ele não diminui, ao passo
que, se fosse a energia elétrica, entraria em colapso.”48
Nesse sentido:
“A 2a Turma concedeu habeas corpus para declarar a
atipicidade da conduta de condenado pela prática do crime
descrito no art. 155, § 3º, do CP (‘Art. 155. Subtrair, para si ou
para outrem, coisa alheia móvel: [...] § 3º Equipara-se à coisa
móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor
econômico’), por efetuar ligação clandestina de sinal de TV a
cabo. Reputou-se que o objeto do aludido crime não seria
‘energia’ e ressaltou-se a inadmissibilidade da analogia in
malam partem em Direito Penal, razão pela qual a conduta não
poderia ser considerada penalmente típica” (STF, HC
97.261/RS, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 2a T., julg. 12/4/2011,
Informativo 623).
Em sentido contrário, o STJ tem decidido que:
“O sinal de TV a cabo pode ser equiparado à energia elétrica
para fins de incidência do art. 155, § 3º, do Código Penal.
Doutrina. Precedentes” (STJ, RHC 30.847/RJ, Rel. Min. Jorge
Mussi, 5ª T., DJe 04/09/2013).
2.12.2.7 Vítima desconhecida
Para que reste configurado o delito de furto, o agente deverá
levar a efeito a subtração de coisa alheia móvel. Assim, como já
afirmamos, não será possível o reconhecimento do furto quando
estivermos diante de res nullius, res derelicta e de res commune
omnium.
No entanto, a pergunta que devemos nos fazer agora é a
seguinte: poderá alguém ser condenado pelo delito de furto sem que
se possa indicar a vítima da mencionada infração penal, vale dizer,
o proprietário ou possuidor da coisa que fora subtraída?
Fontan Balestra responde a essa indagação afirmando que
para o reconhecimento do furto “basta que a coisa seja alheia para o
ladrão, sem que se requeira a exigência positiva de se saber de
quem é.”49
Embora não se exija a identificação do dono da coisa para que
se possa concluir pelo furto, a condenação do agente, entretanto,
somente poderá ocorrer se houver certeza absoluta de que a coisa
que se encontra em seu poder foi objeto de subtração.
Assim, imagine-se a hipótese em que seja encontrado com o
agente um relógio de ouro. Verificando-se, no caso concreto, que
ele, de acordo com sua capacidade financeira, não tinha a mínima
condição de adquirir aquele bem, não tendo apresentado, ainda,
nota fiscal, além de não indicar de quem o havia adquirido, pode-se
entender pela prática do delito de furto. Enfim, o que estamos
querendo afirmar é que, em determinadas situações, mesmo não se
podendo identificar a vítima, não ficará impossibilitado o
reconhecimento do crime de furto.
2.12.2.8 Diferença entre furto com fraude e estelionato
Questão que merece destaque diz respeito à diferença que se
deve levar a efeito entre o furto com fraude e o estelionato.
O fundamento da diferença reside no fato de que no furto com
fraude o comportamento ardiloso, insidioso, como regra, é utilizado
para que seja facilitada a subtração pelo próprio agente dos bens
pertencentes à vítima. Ao contrário, no crime de estelionato, o
artifício é utilizado pelo agente para que, induzindo ou mantendo a
vítima em erro, ela própria possa entregar-lhe a vantagem ilícita.
No primeiro caso há subtração; no segundo, a própria vítima,
voluntariamente, induzida ou mantida em erro, faz a entrega da
vantagem ilícita ao agente. Há, portanto, o dissenso da vítima no
furto com fraude e o seu consenso no estelionato.
Assim, aquele que, fazendo-se passar por manobrista de uma
churrascaria, recebe as chaves do automóvel das mãos do seu
proprietário a fim de ser estacionado, pratica o crime de estelionato;
ao contrário, se o agente, usando as roupas características de um
manobrista de determinado estabelecimento comercial, valendo-se
desse artifício para poder ter acesso ao quadro de chaves dos
automóveis que ali se encontravam estacionados, subtrair um dos
veículos, deverá ser responsabilizado pelo delito de furto mediante
fraude.
Concluindo com Celso Delmanto, Roberto Delmanto, Roberto
Delmanto Júnior e Fábio M. de Almeida Delmanto:
“Se a fraude foi empregada para iludir a vigilância do ofendido,
há furto qualificado pela fraude; se, porém, a fraude serviu para
iludir a vítima a entregar a coisa, antecedendo o apossamento,
o crime é de estelionato.”50
2.12.2.9 Subtração por arrebatamento (crime do trombadinha)
Muito comum nos grandes centros urbanos, a subtração por
arrebatamento, também conhecida como “crime do trombadinha”,
ocorre naquelas situações em que o agente, depois de escolher sua
vítima, parte em direção a ela e, rapidamente, mediante um golpe
ligeiro, ou “trombada”, arrebata-lhe, como regra, das mãos (bolsa,
telefone celular etc.), do pescoço (colares, cordões etc.), do pulso
(pulseiras, relógios etc.) os bens que pretendia subtrair.
Em razão do modo como o delito é praticado, surge a dúvida se
o fato se configuraria como delito de furto ou como crime de roubo.
Weber Martins Batista esclarece que, quando a vítima “não
sofre lesão corporal em decorrência da ação de arrebatar a coisa, o
entendimento é quase unânime no sentido de que se caracteriza o
furto.”51
E continua suas lições asseverando:
“Mesmo quando, acidentalmente, a vítima fica ferida, a maioria
das decisões têm entendido, corretamente, que se caracteriza o
furto, não o roubo. Só se pode falar em crime de roubo quando
a subtração for praticada mediante o constrangimento ilegal da
vítima.”52
Percebe-se, outrossim, que a finalidade do agente, ao esbarrar
na vítima visando arrebatar-lhe os bens, não é intimidá-la para levar
a efeito a subtração, ao contrário do que ocorre com o crime de
roubo, no qual a violência é empregada pelo agente com a
finalidade de subjugar a vítima, permitindo-lhe, com isso, a
subtração dos bens que lhe pertencem.
São precisas as lições de Weber Martins Batista quando afirma:
“O furto por arrebatamento caracteriza uma hipótese de crime
mais grave que a do furto simples, pois o ladrão demonstra
maior audácia, mostra-se mais perigoso, razão por que deveria
ser arrolada como uma forma de furto qualificado. Como isso
não ocorre, impossível cobrir a falta com a aplicação da regra
do art. 157 do Código Penal.”53
O STJ, analisando hipótese de subtração por arrebatamento de
coisa presa ao corpo da vítima, entendeu pelo delito de roubo,
conforme se verifica na ementa abaixo transcrita:
“Esta Corte Superior tem entendimento no sentido de que o
arrebatamento de coisa presa ao corpo da vítima que
comprometa ou ameace sua integridade física, configurando
vias de fato, bem como a prolação de ameaças verbais e a
superioridade de sujeitos ativos, são suficientes para a
caracterização das elementares da violência e da grave
ameaça, e, em consequência, do crime de roubo” (STJ, AgRg.
no AREsp 256.213/ES, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, 5a T.,
DJe 10/6/2013).
2.12.2.10 Comunicação das qualificadoras aos coparticipantes
Determina o art. 30 do Código Penal, verbis:
Art. 30. Não se comunicam as
circunstâncias e as condições de
caráter
pessoal,
salvo
quando
elementares do crime.
Circunstâncias são dados periféricos que gravitam ao redor da
figura típica, sendo que sua existência tem o condão de fazer com
que a pena seja aumentada ou diminuída. Ao contrário, elementares
são dados indispensáveis à definição típica, sem os quais o fato
passa a ser completamente atípico ou permite que ocorra uma
desclassificação.
Assim, imagine-se a hipótese do crime de furto. Quando se
nega a elementar coisa alheia ao argumento de que o agente a
entendia como própria, ou mesmo como res derelicta etc., o fato
passa a ser considerado um indiferente penal. Agora, raciocinemos
com a subtração por arrebatamento, analisada linhas atrás. Quando
se chega à conclusão de que o arrebatamento súbito não se
configura como violência exigida para fins de caracterização do
delito de roubo, negando-se essa elementar (violência), não tendo
havido grave ameaça, o fato será entendido como furto, havendo,
portanto, uma desclassificação.
As circunstâncias, ao contrário, em nada interferem na definição
típica. Cuidando especificamente do delito de furto, não modifica
sua configuração quando se conclui que o agente era primário e de
pequeno valor a coisa furtada, ou mesmo quando se afirma que a
subtração foi cometida com emprego de chave falsa. Como se
percebe, tais dados (primariedade e pequeno valor, bem como o
emprego de chave falsa) gravitam ao redor da figura típica, mas não
interferem na definição característica do furto.
Depois dessa breve introdução, podemos afirmar que todas as
modalidades qualificadas do crime de furto são circunstâncias, e
não elementares. Estão, outrossim, ligadas umbilicalmente, por
intermédio dos seus parágrafos, à figura constante do caput do art.
155 do Código Penal, que é sua fonte de vida.
Assim, pergunta-se: sendo consideradas como circunstâncias,
as qualificadoras poderiam ser estendidas a todos aqueles que
praticaram a infração penal, agindo em concurso? Sim, desde que
estejamos diante de qualificadoras de natureza objetiva, que
venham a ingressar na esfera de conhecimento do agente. Se forem
subjetivas as qualificadoras, de acordo com a redação do art. 30 do
Código Penal, serão incomunicáveis.
Dessa forma, torna-se impossível a comunicabilidade da
qualificadora relativa ao abuso de confiança¸ pois que de natureza
subjetiva. Ao contrário, será perfeitamente possível a comunicação
ao coparticipante da qualificadora correspondente à destruição de
obstáculo, se havia ingressado na sua esfera de conhecimento.
2.12.2.11 Necessidade de laudo pericial
Determinam os arts. 158 (com a nova redação que lhe foi
conferida pela Lei nº 13.721, de 2 de outubro de 2018) e 167 do
Código de Processo Penal, verbis:
Art. 158. Quando a infração deixar
vestígios, será indispensável o exame
de corpo de delito, direto ou indireto,
não podendo supri-lo a confissão do
acusado.
Parágrafo único. Dar-se-á prioridade
à realização do exame de corpo de
delito quando se tratar de crime que
envolva:
I – violência doméstica e familiar
contra mulher;
II – violência contra criança,
adolescente, idoso ou pessoa com
deficiência.
Art. 167. Não sendo possível o exame
de corpo de delito, por haverem
desaparecido os vestígios, a prova
testemunhal poderá suprir-lhe a falta.
Pelos textos acima transcritos, percebe-se a necessidade de
realização do exame pericial quando a infração penal deixar
vestígios, o que acontece quando estivermos diante, por exemplo,
de um furto qualificado pela destruição ou rompimento de obstáculo.
Somente na impossibilidade de realização do exame de corpo
de delito, direto ou indireto, é que o julgador poderá levar em
consideração a prova testemunhal.
2.12.2.12 Concurso entre as qualificadoras dos §§ 4º e 5º do art.
155 do Código Penal
Pode acontecer que o agente, mediante fraude, subtraia veículo
automotor com a finalidade de transportá-lo a outro Estado, o que,
efetivamente, acontece.
Teríamos, portanto, à primeira vista, a presença de duas
qualificadoras constantes de parágrafos diferentes do art. 155 do
Código Penal. Nesse caso, qual delas deveria ser aplicada?
Ocorrendo essa hipótese, deverá prevalecer a qualificadora de
maior gravidade, vale dizer, aquela constante do § 5º do art. 155 do
diploma repressivo.
2.12.2.13 Antefato e pós-fato impuníveis no furto
Antefato impunível seria, em tese, a infração penal antecedente
praticada pelo agente a fim de conseguir levar a efeito o crime por
ele pretendido, vale dizer, in casu, o furto. Assim, por exemplo, para
que o agente conseguisse subtrair o aparelho de som pertencente à
vitima, seria necessário que, inicialmente, violasse seu domicílio
(art. 150 do CP).
O pós-fato impunível pode ser considerado uma extensão da
infração penal principal praticada pelo agente. No caso em exame,
podemos raciocinar no sentido de que o agente praticou o delito de
furto (crime-fim) subtraindo o aparelho de som não porque pretendia
tê-lo para si, mas, sim, em razão do valor que ele representava e
que poderia ser conseguido com sua venda posterior. Dessa forma,
fazendo-se passar pelo proprietário do bem, vende-o a terceiros por
um preço justo, real de mercado. Aquele que adquiriu o mencionado
aparelho de som, pagando o preço correto, em tese, foi vítima de
um crime de estelionato (art. 171 do CP), uma vez que, descoberto
o autor do furto, a res foi recuperada pela polícia e entregue ao seu
verdadeiro dono.
Dessa forma, temos duas situações: uma anterior ao crime-fim,
isto é, a violação de domicílio que foi um crime-meio para a prática
do furto; em seguida à subtração, o agente induziu a vítima em erro,
a fim de obter vantagem ilícita, praticando, portanto, um delito de
estelionato.
Nesses casos, deveria ele responder por essas três infrações
penais? A resposta só pode ser negativa, aplicando-se, aqui, o
raciocínio correspondente ao antefato e ao pós-fato impuníveis.
Assim, no que diz respeito à violação de domicílio (antefato), seria
aplicada a regra da consunção; quanto ao pós-fato, Fragoso,
analisando o tema, entende que “os fatos posteriores que significam
um aproveitamento e por isso ocorrem regularmente depois do fato
anterior são por este consumidos. É o que ocorre nos crimes de
intenção, em que aparece especial fim de agir. A venda pelo ladrão
da coisa furtada como própria não constitui estelionato.”54
2.12.2.14 Furto de automóveis e a qualificadora do rompimento de
obstáculo
Conforme salientamos, tem-se entendido por obstáculo tudo
aquilo que tenha sido utilizado com a finalidade específica de evitar
a subtração, e que não seja inerente à própria coisa.
Dessa forma, no que diz respeito, especificamente, à subtração
de veículos ou de bens que se encontram no seu interior, o
raciocínio se modifica para cada uma dessas situações. Assim, por
exemplo, tem-se entendido que os vidros do automóvel lhe são
inerentes, razão pela qual, se forem quebrados para que o próprio
veículo seja subtraído, não se poderia aplicar a qualificadora em
estudo.
Por outro lado, se a destruição do vidro do automóvel for levada
a efeito para que o agente realize a subtração de bens que se
encontravam no seu interior, a exemplo do aparelho de som, bolsas
etc., deverá ter incidência a qualificadora do rompimento de
obstáculo, conforme orientação doutrinária e jurisprudencial
dominante.
Nesse sentido, já decidiu o STF que:
“Furto qualificado – Rompimento de obstáculo. Configura o furto
qualificado a violência contra coisa, considerado veículo,
visando adentrar no recinto para retirada de bens que nele se
encontravam” (HC 98.606/RS, Rel. Min. Marco Aurélio, 1a T.,
julg. 4/5/2010).
Também já se posicionou o STJ, dizendo:
“A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, no
julgamento do EREsp nº 1.079.847/SP, reconheceu restar
configurada a qualificadora do rompimento de obstáculo
‘quando o agente, visando subtrair aparelho sonoro localizado
no interior do veículo, quebra o vidro da janela do automóvel
para atingir seu intento, primeiro porque este obstáculo
dificultava a ação do autor, segundo porque o vidro não é parte
integrante da res furtiva visada, no caso, o som automotivo’.
Precedentes” (STJ, HC 328.896/DF, Rel. Min. Ribeiro Dantas,
5ª T., DJe 15/04/2016).
“A jurisprudência desta Corte Superior é firme em assinalar que
a qualificadora de rompimento de obstáculo é aplicável quando
o agente, com o objetivo de subtrair algum bem que está no
interior do veículo, quebra o vidro da janela ou, de outra forma,
danifica o automóvel. A posterior devolução dos bens
subtraídos do interior do veículo não tem o condão de afastar a
incidência da qualificadora, pois persiste o prejuízo suportado
pela vítima, em razão da avaria em seu automóvel” (STJ, AgRg
no AREsp 783.675/SP, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, 6ª T.,
DJe 09/03/2016).
2.12.2.15 Subtração de cadáver
Como é cediço, não se pode cogitar da subtração de um ser
humano vivo. Sua remoção involuntária poderia se configurar em
outra figura típica, a exemplo do crime de sequestro ou cárcere
privado. No entanto, seria possível que o delito de furto tivesse por
objeto material um cadáver, vale dizer, um corpo humano morto?
A resposta a essa questão deverá ser desdobrada.
Inicialmente, se estivermos, por exemplo, diante de um cadáver
adquirido por uma universidade de Medicina, que será utilizado para
que os estudantes o dissequem, será perfeitamente possível o
reconhecimento do delito de furto, caso venha a ser subtraído, pois,
nesse caso, passou a gozar do status de coisa, possuindo até
mesmo valor econômico.
No entanto, caso o cadáver se encontre sepultado sem que se
tenha havido qualquer permissão para sua remoção, o fato se
subsumirá ao tipo penal do art. 211 do diploma repressivo, que
prevê o delito de destruição, subtração ou ocultação de cadáver.
Verifica-se, portanto, que, nas duas hipóteses sugeridas,
estamos diante da proteção de distintos bens jurídicos. No primeiro
exemplo, gozando já do status de coisa, o patrimônio, ou seja, o
valor econômico que representa o cadáver com aquela utilidade,
seria o bem jurídico tutelado; no segundo caso, a subtração do
cadáver sepultado ofenderia o respeito que todos devem ter para
com as pessoas mortas.
2.12.2.16 Perícia e destruição ou rompimento de obstáculo à
subtração da coisa, ou por meio de escalada
Preconiza o art. 171 do Código de Processo Penal, verbis:
Art. 171. Nos crimes cometidos com
destruição
ou
rompimento
de
obstáculo a subtração da coisa, ou
por meio de escalada, os peritos,
além de descrever os vestígios,
indicarão com que instrumentos, por
que meios e em que época presumem
ter sido o fato praticado.
2.12.2.17 Furto com fraude e saque em terminal eletrônico
Nos dias de hoje, a possibilidade de autoatendimento nos
caixas eletrônicos, principalmente no que diz respeito ao saque de
importâncias em dinheiro, fez com que novos meios fossem criados
para prática de infrações penais, podendo-se destacar, dentre eles,
aquilo que se convencionou chamar vulgarmente de “chupa-cabra”,
ou seja, um aparelho que é colocado no interior desses caixas
eletrônicos, que tem por finalidade copiar os dados bancários da
vítima permitindo que, posteriormente, o agente viesse a utilizá--los.
Aqui, pergunta-se: qual a infração penal praticada por aquele que
instala o referido aparelho, obtendo os dados bancários necessários
para efetuar o saque dos valores pertencentes à vítima? Mais
objetivamente, estaríamos diante de um crime de furto com fraude,
ou de um crime de estelionato?
O Superior Tribunal de Justiça, respondendo corretamente a
essas indagações, concluiu que o fato se subsome ao crime de furto
com fraude, assim se posicionando:
“O furto mediante fraude não se confunde com o estelionato. A
distinção se faz primordialmente com a análise do elemento
comum da fraude que, no furto, é utilizada pelo agente com o
fim de burlar a vigilância da vítima que, desatenta, tem seu bem
subtraído, sem que se aperceba; no estelionato, a fraude é
usada como meio de obter o consentimento da vítima que,
iludida, entrega voluntariamente o bem ao agente. Hipótese em
que o Acusado se utilizou de equipamento coletor de dados,
popularmente conhecido como ‘chupa-cabra’, para copiar os
dados bancários relativos aos cartões que fossem inseridos no
caixa eletrônico bancário. De posse dos dados obtidos, foi
emitido cartão falsificado, posteriormente utilizado para a
realização de saques fraudulentos. No caso, o agente se valeu
de fraude – clonagem do cartão – para retirar indevidamente
valores pertencentes ao titular da conta bancária, o que
ocorreu, por certo, sem o consentimento da vítima, o Banco. A
fraude, de fato, foi usada para burlar o sistema de proteção e de
vigilância do Banco sobre os valores mantidos sob sua guarda,
configurando o delito de furto qualificado” (REsp 1.412.971/PE,
Recurso Especial 2013/0046975-4, 5ª T., Rel.ª Min.ª Laurita
Vaz, DJe 25/11/2013).
2.12.2.18 Furto e Código Penal Militar
O delito de furto e, inclusive, o chamado furto de uso foram
previstos nos arts. 240 e 241 do Código Penal Militar (Decreto-Lei nº
1.001, de 21 de outubro de 1969).
2.12.2.19 Subtração privilegiada de semovente domesticável de
produção
Tendo em vista que a qualificadora constante do § 6º do art. 155
do Código Penal é de natureza objetiva, torna-se perfeitamente
compatível com a causa especial de redução de pena prevista no §
2º do mesmo diploma legal, nos precisos termos da Súmula nº 511
do STJ, que diz:
Súmula nº 511. É possível o
reconhecimento do privilégio previsto
no § 2º do art. 155 do CP nos casos
de crime de furto qualificado, se
estiverem presentes a primariedade
do agente, o pequeno valor da coisa e
a qualificadora for de ordem objetiva.
2.12.2.20 Subtração de semovente domesticável de produção e
princípio da insignificância
Mesmo que a subtração de semovente domesticável de
produção seja considerada como um delito de furto qualificado,
previsto pelo § 6º do art. 155 do Código Penal, tal tipificação não
impede o reconhecimento do princípio da insignificância.
Assim, imagine-se a hipótese daquele que subtrai um frango, o
que não é incomum, principalmente nas cidades do interior do
Brasil. Nesse caso, por mais que o animal se amolde ao conceito de
semovente domesticável de produção, o fato deverá ser
considerado atípico, por ausência de tipicidade material.
Nesse sentido, já decidiu o STF:
“O Plenário do Supremo Tribunal Federal tem um entendimento
consolidado de que o princípio da insignificância incide quando
presentes, cumulativamente, as seguintes condições objetivas:
(i) mínima ofensividade da conduta do agente; (ii) nenhuma
periculosidade social da ação;
(iii) grau reduzido de reprovabilidade do comportamento; e (iv)
inexpressividade da lesão jurídica provocada, ressaltando,
ainda, que a contumácia na prática delitiva impede a aplicação
do princípio” (STF, RHC 169.831 AgR/MS, Rel. Min. Roberto
Barroso, 1ª T., DJe 30/10/2019).
2.12.2.21 Jurisprudência em teses do Superior Tribunal de Justiça,
edição nº 47: crimes contra o patrimônio – furto
1)
Consuma-se o crime de furto com a posse de fato da res
furtiva, ainda que por breve espaço de tempo e seguida de
perseguição ao agente, sendo prescindível a posse mansa
2)
3)
4)
5)
6)
7)
8)
9)
e pacífica ou desvigiada (Tese Julgada sob o rito do art.
543-C do CPC – TEMA 934).
Não há continuidade delitiva entre roubo e furto, porquanto,
ainda que possam ser considerados delitos do mesmo
gênero, não são da mesma espécie.
A qualificadora prevista no art. 155, § 4º, inciso I, do CP se
aplica às hipóteses em que a violência empregada no
rompimento do obstáculo for contra a própria coisa furtada.
O rompimento ou destruição do vidro do automóvel com a
finalidade de subtrair objetos localizados em seu interior
qualifica o furto.
A qualificadora prevista no art. 155, § 4º, inciso I, do CP
não se aplica às hipóteses em que a violência empregada
no rompimento do obstáculo for contra a própria coisa
furtada.
Todos os instrumentos utilizados como dispositivo para
abrir fechadura são abrangidos pelo conceito de chave
falsa, incluindo as mixas.
É possível o reconhecimento do privilégio previsto no § 2º
do art. 155 do CP nos casos de crime de furto qualificado,
se estiverem presentes a primariedade do agente, o
pequeno valor da coisa e a qualificadora for de ordem
objetiva (Súmula nº 511/STJ) (Tese julgada sob o rito do
art. 543-C).
A prática do delito de furto qualificado por escalada,
destreza, rompimento de obstáculo ou concurso de
agentes indica a reprovabilidade do comportamento do réu,
sendo inaplicável o princípio da insignificância.
O princípio da insignificância deve ser afastado nos casos
em que o réu faz do crime o seu meio de vida, ainda que a
coisa furtada seja de pequeno valor.
10) Para reconhecimento do crime de furto privilegiado é
indiferente que o bem furtado tenha sido restituído à vítima,
pois o critério legal para o reconhecimento do privilégio é
somente o pequeno valor da coisa subtraída.
11) Para efeito da aplicação do princípio da bagatela, é
imprescindível a distinção entre valor insignificante e
pequeno valor, uma vez que o primeiro exclui o crime e o
segundo pode caracterizar o furto privilegiado.
12) É inadmissível aplicar, no furto qualificado, pelo concurso
de agentes, a majorante do roubo (Súmula nº 442/STJ).
13) Para a caracterização do furto privilegiado, além da
primariedade do réu, o valor do bem subtraído não deve
exceder à importância correspondente ao salário mínimo
vigente à época dos fatos.
14) O reconhecimento das qualificadoras da escalada e
rompimento de obstáculo previstas no art. 155, § 4º, I e II,
do CP exige a realização do exame pericial, salvo nas
hipóteses de inexistência ou desaparecimento de vestígios,
ou ainda se as circunstâncias do crime não permitirem a
confecção do laudo.
15) Reconhecido o privilégio no crime de furto, a fixação de um
dos benefícios do § 2º do art. 155 do CP exige expressa
fundamentação por parte do magistrado.
16) A lesão jurídica resultante do crime de furto não pode ser
considerada insignificante quando o valor dos bens
subtraídos perfaz mais de 10% do salário mínimo vigente à
época dos fatos.
17) Nos casos de continuidade delitiva o valor a ser
considerado para fins de concessão do privilégio (art. 155,
§ 2º, do CP) ou do reconhecimento da insignificância é a
soma dos bens subtraídos.
A captação clandestina de sinal de televisão fechada ou a
cabo não configura o crime previsto no art. 155, § 3º, do
Código Penal.
19) O sinal de TV a cabo pode ser equiparado à energia
elétrica para fins de configuração do delito do art. 155, § 3º,
do Código Penal.
18)
2.13
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: qualquer pessoa.
Passivo: qualquer pessoa
(tanto física quanto jurídica.
Objeto material
É a coisa alheia móvel contra a
qual é dirigida a conduta
praticada pelo agente.
Bem(ns)
protegido(s)
»
»
juridicamente
A maioria de nossos
doutrinadores entende ser
a
posse,
além
da
propriedade, e também a
mera detenção sobre a
coisa alheia móvel.
Em
sentido
contrário,
posiciona-se
Hungria,
argumentando que o tipo
penal que prevê o delito de
furto não tem por finalidade
a proteção da posse, mas
tão
somente
a
da
propriedade.
Elemento subjetivo
»
»
O delito de furto somente
pode
ser
praticado
dolosamente, não havendo
previsão legal para a
modalidade culposa.
Além do chamado animus
furandi há necessidade que
o delito se dê com a
finalidade de ter a coisa
alheia móvel para si ou
para outrem, visualizandose,
por
meio
dessa
expressão (para si ou para
outrem),
o
chamado
especial fim de agir.
Modalidades
omissiva
comissiva
e
»
»
O
núcleo
subtrair
pressupõe
um
comportamento ativo por
parte do agente, um fazer
alguma coisa dirigido a
tomar a coisa alheia móvel,
para si ou para outrem. A
conduta prevista no tipo,
portanto, é de natureza
comissiva.
Entretanto, poderá o delito
de furto ser praticado por
omissão, desde que o
agente goze do status de
garantidor.
Consumação e tentativa
»
Várias teorias surgiram
com a finalidade de apontar
»
»
o momento de consumação
do delito de furto.
Inicialmente,
prevaleceu
entre os romanos a teoria
da
contrectatio,
que
entendia como consumado
o furto quando o agente
simplesmente tocava na
coisa com a finalidade de
subtraí-la, mesmo que não
conseguisse removê-la do
local
em
que
se
encontrava.
Em sentido diametralmente
oposto à primeira posição,
surgiu a teoria da illactio,
que
entendia
que
a
consumação
do
furto
exigia,
para
a
sua
configuração, o fato de
conseguir o agente levar o
»
»
objeto ao lugar que era
destinado.
As teorias da amotio e da
ablatio ocupavam posição
intermediária às teorias
citadas
anteriormente.
Conforme
esclarece
Damásio de Jesus, “nos
termos da teoria da amotio,
o momento consumativo do
furto
ocorre
com
a
deslocação
do
objeto
material. Para a teoria da
ablatio, a consumação
exigia
dois
requisitos:
apreensão e deslocação do
objeto material” (JESUS,
1999, p. 305).
Hoje em dia, a doutrina se
divide em relação ao
momento de consumação
do
furto,
formando-se,
outrossim, duas posições
bem visualizáveis, com as
seguintes orientações:
a) o furto se consuma no
momento em que a res é
retirada da esfera de posse
e disponibilidade da vítima,
ingressando,
consequentemente, na do
agente, ainda que não
tenha ele a posse tranquila
sobre a coisa;
b) a consumação somente
ocorre quando a res é
retirada da esfera de posse
e disponibilidade da vítima,
ingressando,
consequentemente, na do
agente,
que,
obrigatoriamente,
deverá
exercer, mesmo que por
curto espaço de tempo, a
»
»
posse tranquila sobre a
coisa.
Nossos
Tribunais
Superiores têm descartado
a necessidade da posse
tranquila sobre a coisa. »
Entendemos, no entanto,
que somente se pode
concluir pela consumação
quando o bem, após ser
retirado da esfera de
disponibilidade da vítima,
vier a ingressar na posse
tranquila
do
agente,
mesmo que por um curto
espaço de tempo.
O agente, portanto, deve
ter tido tempo suficiente
para dispor da coisa, pois,
caso contrário, se isso não
aconteceu,
estaremos
diante da tentativa.
3.
FURTO DE COISA COMUM
Furto de coisa comum Art. 156.
Subtrair o condômino, coerdeiro ou
sócio, para si ou para outrem, a quem
legitimamente a detém, a coisa
comum:
Pena – detenção, de seis meses a
dois anos, ou multa.
§ 1º Somente se procede mediante
representação.
§ 2º Não é punível a subtração de
coisa comum fungível, cujo valor não
excede a quota a que tem direito o
agente.
3.1
Introdução
Núcleo do tipo é o verbo subtrair, ou seja, retirar a coisa comum
de quem legitimamente a detém, com o animus de tê-la para si ou
para outrem. A retirada momentânea não caracteriza a infração
penal se era intenção do agente devolvê-la. Aplica-se, in casu, o
mesmo raciocínio levado a efeito quando do estudo do delito de
furto, com a diferença de que, aqui, o legislador especializou a
infração penal, limitando o seu cometimento a determinadas
pessoas, bem como ao fato de a coisa subtraída também pertencer
ao agente.
O art. 156 do Código Penal aponta aqueles que poderão
praticar a conduta prevista no núcleo do tipo, a saber: o condômino,
o coerdeiro e, ainda, o sócio. Assim, somente quando houver um
condomínio, uma herança ainda comum aos coerdeiros, bem como
uma sociedade é que se poderá cogitar do delito de furto de coisa
comum.
Segundo Caio Mário da Silva Pereira, “dá-se o condomínio
quando a mesma coisa pertence a mais de uma pessoa, cabendo a
cada uma delas igual direito, idealmente, sobre o todo e cada uma
de suas partes”;55 herança, também denominada espólio ou monte,
numa visão própria do Direito Penal, é o conjunto de bens que são
transmitidos aos herdeiros; e, por fim, sociedade, na definição de
Noronha:
“É a reunião de duas ou mais pessoas que, mediante contrato,
se obrigam a combinar seus esforços ou bens, para a
consecução de fins comuns. Ela aproxima-se do condomínio,
como se vê do art. 1.386, II,56 do Código Civil, em que cada
sócio pode servir-se das coisas pertencentes à sociedade,
desde que lhes dê o seu destino, isto é, conforme aos
interesses da sociedade. Distingue-se do condomínio porque,
neste, a destinação determina-se pelos costumes ou pela
natureza das coisas, ao passo que, na sociedade, ela é
determinada pelo contrato. Como no condomínio, o sócio pode
usar de seu direito, não tolhendo aos outros exercício de direito
igual.”57
O § 2º do art. 156 do Código Penal diz não ser punível a
subtração de coisa comum fungível cujo valor não exceda a quota a
que tem direito o agente. O Código Civil traduz o conceito de coisa
fungível dizendo, em seu art. 85, verbis:
Art. 85. São fungíveis os móveis que
podem substituir-se por outros da
mesma
espécie,
qualidade
e
quantidade.
3.2
Classificação doutrinária
Crime próprio, tanto com relação ao sujeito ativo quanto ao
sujeito passivo, uma vez que o tipo penal os aponta expressamente;
doloso; material; comissivo (podendo, contudo, ser praticado via
omissão imprópria, caso o agente venha a gozar do status de
garantidor); de forma livre; de dano; instantâneo (podendo, em
alguns casos, ser instantâneo de efeitos permanentes, na hipótese
em que a coisa tenha desaparecido); monossubjetivo;
plurissubsistente; não transeunte (como regra).
3.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
O objeto material do delito em estudo é a coisa comum. Embora
não mencione expressamente a lei penal, a coisa comum deverá ser
móvel, pois, conforme vimos anteriormente, somente aquilo que seja
passível de remoção poderá ser objeto de subtração.
Bens juridicamente protegidos são a posse e a propriedade da
coisa comum, vale dizer, aquela pertencente ao condômino,
coerdeiro ou sócio.
3.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
O tipo do art. 156 do Código Penal aponta aqueles que poderão
figurar como sujeitos ativos, vale dizer, o condômino, o coerdeiro ou
sócio da coisa comum. Evidencia-se, dessa forma, que estamos
diante de um crime próprio, que somente pode ser praticado por um
grupo determinado de pessoas que goze de uma qualidade ou
condição especial.
Sujeito passivo é aquele que detém a posse legítima da coisa,
podendo ser o condômino, coerdeiro, sócio ou, mesmo, um terceiro.
Conforme esclarece Damásio de Jesus, “se a detenção é ilegítima,
não há delito de subtração de coisa comum por ausência de
tipicidade. Se a coisa comum estava na posse do sujeito, responde
por apropriação indébita.”58
3.5
Consumação e tentativa
Tratando-se de furto, mesmo que de coisa comum, a sua
consumação ocorre conforme já esclarecido quando do estudo do
art. 155 do Código Penal, para onde remetemos o leitor, a fim de
não sermos repetitivos.
Dada a sua classificação como crime material, é perfeitamente
admissível o raciocínio correspondente à tentativa, haja vista a
possibilidade de ser fracionado o iter criminis.
3.6
Elemento subjetivo
O delito de furto de coisa comum somente pode ser praticado
dolosamente, não havendo previsão legal para a modalidade
culposa.
Além do dolo, o tipo penal exige, segundo a doutrina
majoritária, um chamado especial fim de agir, caracterizado pela
expressão para si ou para outrem, constante do art. 156 do Código
Penal.
Merece registro a observação feita por Fragoso, quando
assevera ser “necessário que o agente saiba que se trata de coisa
comum. Deverá sempre reconhecer-se o crime do art. 156, se o
agente supõe, por erro, ser alheia a coisa comum objeto da ação.”59
3.7
Modalidades comissiva e omissiva
O núcleo subtrair pressupõe um comportamento ativo do
agente, vale dizer, uma conduta dirigida finalisticamente a retirar, de
quem legitimamente detinha a coisa comum, para si ou para outrem.
É possível o raciocínio da subtração por omissão, desde que o
agente goze do status de garantidor, nos termos do art. 13, § 2º, do
Código Penal.
3.8
Pena, ação penal, competência para julgamento e
suspensão condicional do processo
A pena cominada ao furto de coisa comum é de detenção, de 6
(seis) meses a 2 (dois) anos, ou multa, podendo o juiz escolher
entre a aplicação da pena privativa de liberdade e a pena
pecuniária, dada a alternatividade constante do preceito secundário
do art. 156 do Código Penal.
É do Juizado Especial Criminal a competência, pelo menos
inicialmente, para o seu julgamento, tendo em vista a pena máxima
cominada em abstrato, sendo cabível, ainda, proposta de
suspensão condicional do processo, nos termos do art. 89 da Lei nº
9.099/95.
A ação penal é de iniciativa pública condicionada à
representação do ofendido, conforme o § 1º do art. 156 do diploma
repressivo.
3.9
3.9.1
Destaques
Sócio que furta da pessoa jurídica
Considerando que a pessoa jurídica possui personalidade
distinta da de seus sócios, a subtração de seu patrimônio móvel por
um deles poderia ser caracterizada como delito de furto de coisa
comum?
A doutrina, majoritariamente, tem entendido que não, ao
argumento de que, se o bem pertence a uma sociedade com
personalidade jurídica, a subtração de seu patrimônio por um dos
sócios se configurará no delito tipificado no art. 155 do Código
Penal, e não a infração penal prevista no art. 156 do mesmo
diploma repressivo, pois, conforme assevera Guilherme de Souza
Nucci, “o que pertence à pessoa jurídica não se confunde com os
bens individuais do sócio.”60
Se, como dissemos anteriormente, para a doutrina dominante, o
sócio que subtrai bens de uma sociedade com personalidade
jurídica regularmente constituída pratica o delito de furto tipificado
no art. 155 do Código Penal, em que situação a conduta do sócio se
amoldaria ao tipo penal do art. 156 do referido diploma legal? Tal
situação ocorreria nas hipóteses em que houvesse uma sociedade
destituída de personalidade jurídica, pois, nestas, de acordo com as
lições de Noronha, há uma redução “à comunhão de bens e
interesses. Comunicam-se, então, os bens, tornando-se comuns.
Nesse caso, o sócio que subtrair coisa dessa sociedade furta coisa
comum, dando-se, então, o crime do dispositivo em apreço.”61
Hungria, no entanto, contestando a posição assumida por
Noronha, inclinava-se ao reconhecimento do delito tipificado no art.
156 quando seu autor fosse sócio, não importando se de uma
sociedade com personalidade jurídica ou mesmo dela destituída,
dizendo:
“O direito penal, essencialmente realístico, é infenso às ficções
ou abstrações do direito civil ou comercial. Na realidade prática,
não obstante o princípio de que societas distat a singulis, o
patrimônio que serve ao fim social é condomínio ou propriedade
comum dos sócios. E isto mesmo reconhece o nosso próprio
Cód. Civil (art. 1.37362). O art. 156 (reprodução do art. 627 do
Cód. Penal Italiano) não distingue entre sócio e sócio. É
inquestionável que, se quisesse fazer distinção, teria
acrescentado à palavra sócio a cláusula ‘salvo em se tratando
de sociedade com personalidade jurídica’. Não fez, nem podia
fazer tal distinção, pois, de outro modo, estaria infringindo o ubi
eadem ratio, ubi eadem dispositio.”
Acreditamos que a razão esteja com Hungria, mesmo
entendendo que o patrimônio da pessoa jurídica regularmente
constituída não se confunde com o de seus sócios. O Direito Penal,
conforme deixou transparecer Hungria, não pode negar a natureza
das coisas. É claro que o sócio se sente dono do patrimônio da sua
empresa que, inclusive, foi idealizada por ele. O juízo de censura
expresso por meio da pena cominada no preceito secundário do art.
156 do Código Penal é menor do que aquele previsto pelo art. 155
do citado estatuto justamente pelo fato de que o sócio se sente
dono, mesmo que parcialmente, dos bens, não se podendo igualar a
sua situação com a daquele que não possui qualquer vínculo com a
pessoa jurídica.
Assim, mesmo tendo conhecimento de que tal posição é
rejeitada, quase que por unanimidade, pelos nossos doutrinadores,
somos partidários do posicionamento lógico e coerente assumido
por Hungria, a fim de entender que o sócio, seja em uma sociedade
regularmente constituída ou não, deverá ser responsabilizado pelo
art. 156 do Código Penal, caso venha a subtrair bens da sociedade
da qual faz parte.
3.9.2
União estável
Pode ocorrer que a subtração se dê durante a constância da
chamada união estável.63 O art. 1.723 do Código Civil a reconhece
como entidade familiar, dizendo:
Art. 1.723. É reconhecida como
entidade familiar a união estável entre
o homem e a mulher, configurada na
convivência pública, contínua e
duradoura e estabelecida com o
objetivo de constituição de família.
No que diz respeito às relações patrimoniais existentes entre os
companheiros, o art. 1.725 do Código Civil determina:
Art. 1.725. Na união estável, salvo
contrato
escrito
entre
os
companheiros, aplica-se às relações
patrimoniais, no que couber, o regime
da comunhão parcial de bens.
Nesse caso, se um dos companheiros subtraísse a coisa
comum, adquirida durante a união estável, responderia pelo delito
previsto pelo art. 156 do Código Penal?
A questão merece uma análise mais aprofundada. Se
estivéssemos diante de uma relação de matrimônio, em que as
pessoas fossem casadas, ocorrendo uma subtração por parte de um
dos cônjuges, fosse comum o bem ou não, seria aplicada a escusa
absolutória prevista no inciso I do art. 181 do Código Penal, que diz
ser isento de pena quem comete qualquer dos crimes previstos no
Título II, em prejuízo do cônjuge, na constância da sociedade
conjugal.
No entanto, a lei penal não fez menção expressa à situação
possível de ocorrer na constância de uma união estável. Nesse
caso, em obediência ao obrigatório raciocínio da ubi eadem ratio,
ubi eadem dispositio, devemos aplicar, por analogia, o mencionado
dispositivo legal, afastando-se, outrossim, a punibilidade relativa à
subtração cometida por um companheiro em detrimento do outro.
3.9.3
Subtração violenta
Tal como ocorre com o delito de furto tipificado no art. 155 do
Código Penal, para que se reconheça o crime de furto de coisa
comum não será possível o emprego de grave ameaça ou violência
contra a pessoa por parte do agente. Caso isso venha a ocorrer, ou
seja, se o agente, pretendendo subtrair coisa comum, utilizar, por
exemplo, violência física contra aquele que mantinha a coisa em seu
poder, deverá ser responsabilizado pelo delito de roubo,
entendendo-se a elementar coisa alheia, constante do art. 157 do
Código Penal, como aquela parte que pertencia à vítima, que foi
privada de seu patrimônio.
3.9.4
Coisa comum de que o agente tinha a posse
Para que se possa concluir pelo delito tipificado no art. 156 do
Código Penal, faz-se mister que a coisa comum seja subtraída pelo
agente. Isso significa que se ela já estiver em seu poder e se houver
recusa por parte do agente na sua devolução, ou mesmo na
hipótese em que dela vier a se desfazer, o delito praticado será o de
apropriação indébita, entendendo-se, também aqui, a elementar
coisa alheia móvel como aquela parte que pertencia ao outro
condômino, coerdeiro ou sócio.
3.10
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: o condômino, o
coerdeiro ou sócio da coisa
comum.
Passivo: é aquele que
detém a posse legítima da
coisa, podendo ser o
condômino,
coerdeiro,
sócio ou, mesmo, um
terceiro.
Objeto material
É a coisa comum. Embora não
mencione expressamente a lei
penal, a coisa comum deverá
ser móvel, pois somente aquilo
que seja passível de remoção
poderá ser objeto de subtração.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
São a posse e a propriedade da
coisa comum, vale dizer, aquela
pertencente ao condômino,
coerdeiro ou sócio.
Elemento subjetivo
»
»
Somente
pode
ser
praticado dolosamente, não
havendo previsão legal
para a modalidade culposa.
Além do dolo, o tipo penal
exige, segundo a doutrina
majoritária, o chamado
especial fim de agir,
caracterizado
pela
expressão para si ou para
outrem.
Modalidades
omissiva
comissiva
e
»
»
O
núcleo
subtrair
pressupõe
um
comportamento comissivo.
É possível o raciocínio da
subtração por omissão,
desde que o agente goze
do status de garantidor.
Consumação e tentativa
Vide discussões relativas ao
delito de furto, tipificado no art.
155 do CP.
1
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 20-21.
2
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 216.
3
BATISTA, Weber Martins. O furto e o roubo no direito e no processo penal, p. 22-23.
4
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 4.
5
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 17.
6
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado, p. 501.
7
BATISTA, Weber Martins. O furto e o roubo no direito e no processo penal, p. 6.
8
JESUS, Damásio E. de. Direito penal, v. 2, p. 305.
9
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal – Parte especial (arts. 121 a 160
CP), p. 273.
10
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. 7, p. 26.
11
JESUS, Damásio E. de. Direito penal, v. 2, p. 305.
12
TELES, Ney Moura. Direito penal, v. 2, p. 350-351.
13
RANGEL, Paulo. Direito processual penal, p. 599.
14
BATISTA, Weber Martins. O furto e o roubo no direito e no processo penal, p. 51.
15
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 30.
16
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal – Parte especial (arts. 121 a 160
CP), p. 276.
17
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 374.
18
COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal – Parte especial, p. 630.
19
LUZÓN PEÑA, Diego-Manuel. Enciclopedia penal básica, p. 782.
20
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 238.
21
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 42.
22
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 240.
23
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 239.
24
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 40.
25
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado, p. 506.
26
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 43-44.
27
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 44.
28
BATISTA, Weber Martins. O furto e o roubo no direito e no processo penal, p. 161-162.
29
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 35.
30
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 236-237.
31
COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal – Parte especial, p. 650-651.
32
“No julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 583.523, realizado na sessão do dia 3
de outubro de 2013, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade,
declarou não recepcionado pela Constituição Federal de 1988 o art. 25 da Lei de
Contravenções Penais (LCP), que considera como contravenção o porte injustificado
de objetos como gazuas, pés de cabra e chaves michas por pessoas com
condenações por furto ou roubo ou classificadas como vadios ou mendigos. Segundo
o ministro Gilmar Mendes, relator do processo, o dispositivo da LCP é anacrônico e
não foi recepcionado pela CF por ser discriminatório e contrariar o princípio
fundamental da isonomia. A matéria teve repercussão geral reconhecida. O ministro
Gilmar Mendes lembrou que a Lei de Contravenções Penais foi instituída por meio de
decreto-lei, em 1941, durante o período ditatorial conhecido como Estado Novo. ‘Não
há como deixar de reconhecer o anacronismo do tipo penal que estamos a analisar.
Não se pode admitir a punição do sujeito apenas pelo fato do que ele é, mas pelo que
faz’, afirmou. ‘Acolher o aspecto subjetivo como determinante para caracterização da
contravenção penal equivale a criminalizar, em verdade, a condição pessoal e
econômica do agente, e não fatos objetivos que causem relevante lesão a bens
jurídicos importantes ao meio social’. O RE 583.523 teve repercussão geral
reconhecida pelo Supremo por tratar da admissibilidade constitucional da punição
criminal de alguém pelo fato de já ter sido anteriormente condenado e, ainda, por
discutir os limites constitucionais da noção de crime de perigo abstrato, o que
demonstrou a necessidade de análise da constitucionalidade da norma da LCP. Na
ocasião em que foi reconhecida a repercussão geral, o STF considerou que o tema
tem profundo reflexo no ius libertatis, bem jurídico fundamental, e, por este motivo,
ultrapassa os limites subjetivos da causa. O recurso foi interposto pela Defensoria
Pública do Rio Grande do Sul contra acórdão do Tribunal de Justiça gaúcho (TJ-RS),
que manteve a condenação do recorrente, por posse não justificada de instrumento de
emprego usual na prática de furto, com base no artigo 25 da LCP, pois anteriormente
havia
sido
condenado
por
furto
(<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=250053>).”
33
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 46-47.
34
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal – Parte especial (arts. 121 a 160
CP), p. 284.
35
BATISTA, Weber Martins. O furto e o roubo no direito e no processo penal, p. 189.
36
BATISTA, Weber Martins. O furto e o roubo no direito e no processo penal, p. 190.
37
Materiais de instrução cedidos gentilmente pelo Te. Francis Albert Cotta, explosivista
do BOPE-MG.
38
DORNBERGER, Walter. Explosivos, incendiários e pirotécnicos. Disponível em:
<http://www.clubedos-generais.org/site/artigos/154/2014/08/explosivos-incendiarios-epirotecnicos/>. Acesso em: 27 maio 2018.
39
MARCONDES, José Sérgio. Explosivo: O que é? Definições, tipos, classificação,
legislação. Disponível em: <https://www.gestaodesegurancaprivada.com.br/explosivoo-que-sao-quais-os-tipos/>. Acesso em: 27 maio 2018.
40
Disponível em: <http://cartilha.cert.br/malware/>. Acesso em: 10 dez. 2012.
41
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 60.
42
FARIA, Bento de. Código penal brasileiro – comentado. v. V, p. 73.
43
Disponível em: <https://www2.unesp.br>. Acesso em: 27 maio 2018.
44
Disponível em: <https://www2.unesp.br>. Acesso em: 27 maio 2018.
45
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 28-29.
46
COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal – Parte especial, p. 622.
47
BATISTA, Weber Martins. O furto e o roubo no direito e no processo penal, p. 100.
48
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 66-67.
49
FONTAN BALESTRA, Carlos. Tratado de derecho penal, v. V, p. 444.
50
DELMANTO, Celso; DELMANTO, Roberto; DELMANTO JÚNIOR,
DELMANTO, Fábio M. de Almeida. Código penal comentado, p. 345.
Roberto;
51
BATISTA, Weber Martins. O furto e o roubo no direito e no processo penal, p. 107.
52
BATISTA, Weber Martins. O furto e o roubo no direito e no processo penal, p. 107.
53
BATISTA, Weber Martins. O furto e o roubo no direito e no processo penal, p. 110.
54
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal, v. 1, p. 360.
55
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v. IV, p. 130.
56
Hoje correspondente aos arts. 1.013 e 1.015 do novo Código Civil.
57
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 241.
58
JESUS, Damásio E. de. Direito penal, v. 2, p. 332.
59
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal – Parte especial (arts. 121 a 160
CP), p. 293.
60
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado, p. 510.
61
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 249.
62
O artigo citado corresponde ao atual art. 989 do Código Civil, que diz: “Os bens sociais
respondem pelos atos de gestão praticados por qualquer dos sócios, salvo pacto
expresso limitativo de poderes, que somente terá eficácia contra o terceiro que o
conheça ou deva conhecer.”
63
O § 3º do art. 226 da Constituição Federal assevera: “Para efeito da proteção do
Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade
familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.”
Capítulo II
Do Roubo e da Extorsão
1.
ROUBO
Roubo
Art. 157. Subtrair coisa móvel alheia,
para si ou para outrem, mediante
grave ameaça ou violência a pessoa,
ou depois de havê-la, por qualquer
meio, reduzido à impossibilidade de
resistência:
Pena – reclusão, de quatro a dez
anos, e multa.
§ 1º Na mesma pena incorre quem,
logo depois de subtraída a coisa,
emprega violência contra pessoa ou
grave ameaça, a fim de assegurar a
impunidade do crime ou a detenção
da coisa para si ou para terceiro.
§ 2º A pena aumenta-se de 1/3 (um
terço) até metade:
I – (revogado);
II – se há o concurso de duas ou mais
pessoas;
III – se a vítima está em serviço de
transporte de valores e o agente
conhece tal circunstância;
IV – se a subtração for de veículo
automotor
que
venha
a
ser
transportado para outro Estado ou
para o exterior;
V – se o agente mantém a vítima em
seu poder, restringindo sua liberdade;
VI – se a subtração for de substâncias
explosivas ou de acessórios que,
conjunta
ou
isoladamente,
possibilitem
sua
fabricação,
montagem ou emprego;
VII – se a violência ou grave ameaça
é exercida com emprego de arma
branca;
§ 2º-A. A pena aumenta-se de 2/3
(dois terços):
I – se a violência ou ameaça é
exercida com emprego de arma de
fogo;
II – se há destruição ou rompimento
de obstáculo mediante o emprego de
explosivo ou de artefato análogo que
cause perigo comum.
§ 2º-B. Se a violência ou grave
ameaça é exercida com emprego de
arma de fogo de uso restrito ou
proibido, aplica-se em dobro a pena
prevista no caput deste artigo.
§ 3º Se da violência resulta:
I – lesão corporal grave, a pena é de
reclusão de 7 (sete) a 18 (dezoito)
anos, e multa;
II – morte, a pena é de reclusão de 20
(vinte) a 30 (trinta) anos, e multa.
1.1
Introdução
A figura típica do roubo é composta pela subtração,
característica do crime de furto, conjugada com o emprego de grave
ameaça ou violência à pessoa. Assim, o roubo poderia ser
visualizado como um furto acrescido de alguns dados que o tornam
especial.
São, portanto, os elementos que compõem a figura típica do
roubo: a) o núcleo subtrair; b) o especial fim de agir caracterizado
pela expressão para si ou para outrem; c) a coisa móvel alheia; d) o
emprego de violência (própria ou imprópria) à pessoa ou grave
ameaça.
O núcleo subtrair diz respeito a retirar, tomar de alguém a coisa
alheia móvel, que deve ser conjugado com a finalidade especial do
agente de tê-la para si ou para outrem. Tais elementos já foram
analisados quando do estudo do delito de furto, para onde
remetemos o leitor.
O que torna o roubo especial em relação ao furto é justamente
o emprego da violência à pessoa ou da grave ameaça, com a
finalidade de subtrair a coisa alheia móvel para si ou para outrem. O
art. 157 do Código Penal prevê dois tipos de violência. A primeira
delas, contida na primeira parte do artigo, é a denominada própria,
isto é, a violência física, a vis corporalis, que é praticada pelo agente
a fim de que tenha sucesso na subtração criminosa; a segunda,
entendida como imprópria, ocorre quando o agente, não usando de
violência física, utiliza qualquer meio que reduza a possibilidade de
resistência da vítima, conforme se verifica pela leitura da parte final
do caput do artigo em exame.
A violência (vis absoluta) deve ser empregada contra a pessoa,
por isso denominada física, que se consubstancia na prática de
lesão corporal (ainda que leve) ou mesmo em vias de fato. As vias
de fato podem ser entendidas como sendo aquelas agressões que
não possuem gravidade suficiente para serem reconhecidas como
lesão corporal, a exemplo dos empurrões, tapas etc.
A violência pode ser entendida, ainda, como direta ou imediata
e indireta ou mediata. Direta ou imediata é a violência física exercida
contra a pessoa de quem se quer subtrair os bens. Assim, por
exemplo, o agente agride violentamente a vítima com socos, para
que possa levar a efeito a subtração de seu relógio; indireta ou
mediata é a violência empregada contra pessoas que são próximas
da vítima ou, mesmo, contra coisas. Na verdade, a violência
entendida como indireta se configura mais como grave ameaça do
que propriamente como violência, pois a sua prática interfere no
espírito da vítima, fazendo com que se submeta, por medo, pavor,
receio de também ser agredida, à subtração praticada pelo agente.
Além disso, podemos visualizar no tipo penal que traduz o delito
de roubo duas modalidades de violência. A primeira delas, narrada
anteriormente, pode ser reconhecida como própria; a segunda,
prevista na última parte do caput do art. 157 do Código Penal,
entendida como imprópria.
Violência própria seria, portanto, aquela de natureza física,
dirigida contra a vítima, capaz de subjugá-la a ponto de permitir que
o agente pratique a subtração de seus bens. Por outro lado, na
violência entendida como imprópria, não existe uma conduta
ostensiva violenta. Pelo contrário, conforme a descrição típica, o
agente se vale de qualquer outro meio capaz de conduzir à redução
de possibilidade de resistência da vítima.
Hungria, esclarecendo o significado da violência imprópria, diz:
“Aos meios violentos é equiparado todo aquele pelo qual o
agente, embora sem emprego de força ou incutimento de medo,
consegue privar a vítima o poder de agir, v.g.: narcotizando-a à
son insu ou dissimuladamente, hipnotizando-a, induzindo-a a
ingerir bebida alcoólica até a embriaguez etc. Pressupõe-se que
o outro ‘qualquer meio’, a que se refere o art. 157, caput, é
empregado ardilosa ou sub-repticiamente, ou, pelo menos,
desacompanhado, em sua aplicação, de violência física ou
moral, pois, do contrário, se confundiria com esta, sem
necessidade da equiparação legal.”1
Além da violência (própria ou imprópria), também se caracteriza
o crime de roubo quando, para fins de subtração da coisa alheia
móvel, o agente se utiliza de grave ameaça (vis compulsiva).
Grave ameaça é aquela capaz de infundir temor à vítima,
permitindo que seja subjugada pelo agente que, assim, subtrai-lhe
os bens. Quando o art. 157 do diploma repressivo usa a locução
grave ameaça, devemos entendê-la de forma diferenciada do crime
de ameaça, tipificado no art. 147 do Código Penal. A ameaça, em si
mesma considerada como uma infração penal, deve ser concebida
como uma promessa de mal futuro, injusto e grave. No delito de
roubo, embora a promessa do mal deva ser grave, ele, o mal, deve
ser iminente, capaz de permitir a subtração naquele exato instante
pelo agente, em virtude do temor que infunde na pessoa da vítima.
Por isso é que, com precisão, Vives Antón e González Cussac
definem a ameaça, característica do roubo, como a:
“Vis compulsiva ou psíquica, que causa temor naquele a que se
dirige, ao representar a ameaça explícita ou implícita, de um
mal imediato de força suficiente para vencer a vontade contrária
do sujeito contra o qual se dirige e provocar, também
imediatamente, que este entregue a coisa ou possibilite ou não
dificulte o ato de apoderamento [...]. Note-se que se exige a
ameaça de um mal suficiente para produzir o temor desejado,
mas não a idoneidade lesiva do meio ou instrumento
intimidatório.”2
A ameaça deve ser verossímil, vale dizer, o mal proposto pelo
agente, para fins de subtração dos bens da vítima, deve ser crível,
razoável, capaz de infundir temor. Dizer à vítima para entregar seus
bens, pois, caso contrário, rogará aos céus que caia um raio na sua
cabeça, não se configura ameaça, mas uma encenação ridícula. Por
outro lado, há pessoas que são extremamente sensíveis,
principalmente quando envolvidas com o sobrenatural. Portanto,
pode ser considerada como ameaça o fato de dizer à vítima que fará
uma feitiçaria, uma magia negra a fim de causar-lhe a morte,
subjugando-a, com isso, para fins de subtração de seus bens.
Conforme destaca Weber Martins Batista:
“Como se trata de um estado de alma, sua análise é
eminentemente subjetiva. Assim, a gravidade da ameaça deve
ser analisada com base nas circunstâncias do caso, tendo em
consideração o meio usado pelo agente, o local do fato, a hora
em que aconteceu, se era possível algum auxílio de terceiro e,
sobretudo, levando em conta as condições pessoais do agente
e da vítima. Pode acontecer que o meio e modo de que se
valeu o sujeito ativo – que não seria capaz de, em condições
normais, intimidar um homem de mediana coragem – seja
suficiente para atemorizar a vítima, pessoa mais fraca ou
colocada em circunstâncias adversas.”3
Na verdade, deve-se procurar, mesmo não desprezando o
subjetivismo da questão, um ponto de equilíbrio, pois, caso
contrário, o agente sempre deveria responder pelo delito de roubo,
mesmo quando não tivesse a intenção de subtrair os bens da vítima,
mas tão somente pedir uma ajuda, uma esmola. Existem pessoas
com aparência sinistra, assustadora. Isso não quer dizer que todas
as vezes que formos abordados por elas estaremos prestes a figurar
no rol das vítimas do crime de roubo.
Por outro lado, não há necessidade sequer que o agente
verbalize o mal que vai praticar, caso não obtenha sucesso na
subtração. Imagine-se a hipótese do agente que, sem mostrar a sua
arma, leva, simplesmente, sua mão à cintura, dando a entender que
a sacaria, caso fosse preciso. O simples gesto de levar as mãos à
cintura já se configura em ameaça suficiente para fins de
caracterização do roubo. Da mesma forma, a superioridade de
forças, principalmente quando ocorre entre homens e mulheres,
também já é suficiente. Suponha-se, neste caso, que o agente, um
homem alto, forte e mal-encarado, chegue perto da vítima, uma
mulher, e anuncie o roubo dizendo tão somente: “Passe a bolsa.”
Nenhuma promessa de mal foi anunciada. Entretanto, poderia a
vítima imaginar que algum mal lhe aconteceria caso não entregasse
sua bolsa ao agente? A resposta só pode ser positiva.
Assim, concluindo, tal como dissemos quando da análise do art.
147 do Código Penal, a grave ameaça constante do art. 157 do
mesmo diploma legal pode ser praticada por diversos meios, pois o
delito em estudo encontra-se no elenco daqueles considerados
como de forma livre.
No que diz respeito à coisa alheia móvel, aplica-se ao crime de
roubo tudo o que foi dito quando do estudo do delito de furto, para
onde remetemos o leitor. Aqui vale somente o registro de uma
curiosidade, insignificante na verdade, mas que demonstra a falta de
padronização do legislador. É que, no art. 155 do Código Penal, o
legislador, indicando a espécie de patrimônio a ser protegido pelo
tipo penal que prevê o delito de furto, usou a expressão coisa alheia
móvel. No roubo, em vez de se valer da mesma expressão, inverteu
a ordem dizendo que a subtração deveria recair sobre coisa móvel
alheia. Obviamente que isso não traz qualquer repercussão, positiva
ou negativa, mas somente demonstra a capacidade do nosso
legislador em desorganizar a lei penal.
1.2
Classificação doutrinária
Crime comum, tanto com relação ao sujeito ativo quanto ao
sujeito passivo; doloso (não havendo previsão para a modalidade
culposa);
material;
comissivo
(podendo
ser
praticado
omissivamente, caso o agente goze do status de garantidor); de
forma livre; instantâneo (podendo também, em alguns casos, ser
considerado como instantâneo de efeito permanente, caso haja
destruição
da
res
furtiva);
de
dano;
monossubjetivo;
plurissubsistente (podendo-se fracionar o iter criminis, razão pela
qual é possível o raciocínio da tentativa).
1.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
O crime de roubo encontra-se no Título II do Código Penal,
correspondente aos crimes contra o patrimônio, aplicando-se,
portanto, o raciocínio que fizemos quando do estudo do delito de
furto segundo o qual, embora exista controvérsia doutrinária e
jurisprudencial, tem como bens juridicamente protegidos o
patrimônio e a posse.
No entanto, o roubo goza do status de crime complexo, uma
vez que podemos nele visualizar a fusão de duas ou mais figuras
típicas. Assim, no roubo, existe a subtração, característica do crime
de furto; além dela, nele se encontram presentes a violência à
pessoa, característica do art. 129 do Código Penal, bem como a
grave ameaça, prevista pelo art. 147 do mesmo diploma legal, cujos
tipos penais visam a proteger, respectivamente, a integridade
corporal ou a saúde e a liberdade individual, sem falar no crime de
latrocínio, que conjuga a subtração com o resultado morte,
característico do delito de homicídio.
Dessa forma, podemos dizer que o tipo penal que prevê o delito
de roubo protege, precipuamente, a propriedade, a posse e, por
conta da sua natureza complexa, também a detenção, não
deixando, contudo, mesmo que mediatamente, de proteger a
integridade corporal ou a saúde, a liberdade individual, bem como a
vida.
Trata-se, portanto, de um delito pluriofensivo, em que são
protegidos vários bens jurídicos, não se podendo esquecer, contudo,
da relação de precipuidade que o patrimônio exerce sobre os
demais, mesmo sendo quase todos os outros de valor superior a
ele, como é o caso da vida no delito de latrocínio. Insistimos nessa
relação de precipuidade para que se possa levar a efeito uma
interpretação sistêmica do Código Penal, fundamental para uma
correta compreensão das figuras típicas.
O objeto material do roubo é a coisa alheia móvel, bem como a
pessoa sobre a qual recai a conduta praticada pelo agente, em face
de sua pluralidade ofensiva.
1.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
Crime comum com relação ao sujeito ativo, o roubo pode ser
praticado por qualquer pessoa, à exceção do proprietário, uma vez
que o tipo penal exige, como um de seus elementos, que a coisa
móvel seja alheia. No entanto, veja-se a ressalva constante do delito
de subtração de coisa comum, em que será possível que o
condômino, coerdeiro ou sócio subtraia, violentamente, o bem que
se encontra em poder do outro que possuía condição idêntica à sua.
Nesse caso, entende-se que a parte pertencente ao outro integra-se ao conceito de alheia, pois que não lhe pertence.
Qualquer pessoa, também, pode ser considerada sujeito
passivo do delito de roubo, vale dizer, o proprietário, o possuidor e,
aqui, ao contrário do que dissemos no crime de furto, incluímos o
mero detentor. Isso porque a natureza complexa do crime de roubo
permite que visualizemos em sua figura típica, como já alertamos
acima, a proteção de mais de um bem jurídico. O patrimônio, em
razão da situação topográfica do artigo, é o bem jurídico
precipuamente protegido; além dele, entretanto, outros também se
encontram protegidos, mesmo que mediatamente, pelo tipo penal
que prevê o roubo, conforme ressaltamos linhas atrás. Dessa forma,
quando alguém detém em seu poder coisa alheia, que lhe é
subtraída violentamente pelo agente, não podemos deixar de considerá-lo, igualmente, sujeito passivo do delito em estudo.
São precisas as lições de Cezar Roberto Bitencourt quando
esclarece:
“O sujeito passivo da violência ou da ameaça pode ser diverso
do sujeito passivo da subtração; pode ocorrer, com efeito, que a
violência seja empregada não contra o proprietário ou possuidor
da coisa alheia, mas contra terceiro. Nesta hipótese, haverá
dois sujeitos passivos: um em relação ao patrimônio e outro em
relação à violência, ambos vítimas de roubo, sem, contudo,
dividir a ação criminosa, que continua única. As duas vítimas –
do patrimônio e da violência – estão intimamente ligadas pelo
objetivo final do agente: subtração e apossamento da coisa
subtraída.”4
1.5
Roubo próprio e roubo impróprio
O Código Penal, embora não utilizando essa rubrica, faz a
distinção entre o roubo próprio, previsto no caput do seu art. 157, e
o roubo impróprio, constante do § 1º do mesmo artigo.
Inicialmente, é de fundamental importância, para efeitos de
distinção entre os roubos próprio e impróprio, ressaltar que o
emprego de violência contra a pessoa ou a grave ameaça pode
ocorrer antes, durante e após a subtração.
A hipótese mais comum, sem dúvida, diz respeito à utilização
de violência contra pessoa ou a grave ameaça como um meio para
a prática do crime de roubo. Antes de desapossar a vítima, o agente
a subjuga, agredindo-a, por exemplo, para, logo em seguida, levar a
efeito a subtração de seus bens. É a hipótese constante do caput do
art. 157 do diploma repressivo, uma vez que a própria redação legal
nos leva a acreditar ser a violência contra pessoa ou a grave
ameaça um meio para a execução do delito de roubo, quando se
utiliza da expressão mediante grave ameaça ou violência a pessoa.
Perceba a colocação da palavra mediante, aqui empregada no
sentido de apontar os meios utilizados na prática da subtração.
A dúvida, no entanto, reside quando a violência contra pessoa
ou a grave ameaça é empreendida durante ou depois da subtração.
O § 1º do art. 157 do Código Penal, cuidando do roubo impróprio,
diz o seguinte:
§ 1º Na mesma pena incorre quem,
logo depois de subtraída a coisa,
emprega violência contra pessoa ou
grave ameaça, a fim de assegurar a
impunidade do crime ou a detenção
da coisa para si ou para terceiro.
A primeira indagação que surge é a seguinte: Se o agente,
dando início a uma subtração não violenta, vale dizer, a um crime de
furto, é surpreendido no interior da residência da vítima e, para
assegurar a detenção da coisa que havia selecionado, a agride,
conseguindo fugir do local do crime, estaríamos diante de um roubo
próprio ou de um roubo impróprio? A finalidade da pergunta reside
no fato de tentarmos apurar o real significado da expressão logo
depois, contida no § 1º do art. 157 do Código Penal.
Para que seja facilitado o entendimento, é possível afirmar que,
no que diz respeito ao roubo próprio, houve no agente a intenção, o
dolo de praticar, desde o início, a subtração violenta (aqui
abrangendo a violência contra pessoa ou a grave ameaça como
meio para a prática do roubo). Ao contrário, no roubo denominado
impróprio, a finalidade inicialmente proposta pelo agente era a de
levar a efeito uma subtração patrimonial não violenta (furto), que se
transformou em violenta por algum motivo durante a execução do
delito.
Essa transformação ocorre tanto quando o agente é
surpreendido durante, v.g., a seleção dos bens que queria subtrair,
como também na hipótese de já estar se retirando do local,
momento em que é descoberto pelo proprietário e, a fim de
assegurar a detenção da coisa que estava sendo subtraída, o
agride, por exemplo.
Temos para nós, portanto, que a expressão logo depois de
subtraída a coisa deve ter uma interpretação condizente com o dolo
do agente. Assim, se o seu dolo era o de praticar, ab initio, uma
subtração violenta, usando desse meio para a prática do delito, o
roubo deverá ser considerado próprio; ao contrário, se a sua
finalidade era a de praticar um delito de furto, que acaba se
convertendo em roubo depois de selecionados os bens, ou mesmo
quando já os retirava do lugar de onde estavam sendo subtraídos,
deverá ser considerado impróprio, entendendo-se a expressão logo
depois no sentido de já ter o agente selecionado os bens, ou seja, já
estar praticando atos que podiam ser compreendidos como início da
prática do núcleo subtrair.
A questão, no entanto, está longe de ser pacífica, sendo que a
maioria da doutrina se posiciona contrariamente ao nosso
entendimento, raciocinando no sentido de que a locução logo depois
não compreende a utilização da violência contra pessoa ou a grave
ameaça durante a prática da subtração.
Nesse sentido, afirma Hungria, apontando as diferenças entre o
roubo próprio e o impróprio:
“A diferença entre elas é a seguinte: na primeira (chamada
roubo próprio), o meio violento ou impeditivo da resistência da
vítima é empregado ab initio ou concomitantemente à tirada da
coisa, enquanto que na segunda (chamada roubo impróprio ou
por aproximação), tendo sido empolgada a coisa clam et
occulte, como no furto, o agente é surpreendido logo depois
(isto é, antes de se pôr a bom recato) e vem a empregar
violência (física ou moral) para assegurar a impunidade do
crime (evitar a prisão em flagrante ou ulterior reconhecimento
ou indigitação etc.) ou a detenção da res furtiva.”5
É fundamental consignar que a subtração inicialmente praticada
sem violência não pode, jamais, ser considerada consumada, para
efeitos de sua transformação no delito de roubo. Por isso é que
temos que entender a locução logo depois de subtraída a coisa no
sentido de que, embora já tendo selecionado e retirado a coisa
pertencente à vítima, saindo da sua esfera de disponibilidade, não
tinha o agente, ainda, a sua posse tranquila. Aquilo poderia ser
compreendido como atos de execução tendentes à consumação de
um crime de furto, que se transforma em roubo, pois, caso contrário,
se o agente já estava na posse tranquila da coisa quando foi
surpreendido, teremos, no caso, que cuidar de duas infrações
penais distintas, sendo a primeira delas o crime de furto, já
consumado anteriormente quando o agente passou a gozar da
posse tranquila da res furtiva, e, v.g., um crime de lesões corporais,
mas nunca o crime de roubo.
Esse raciocínio é que nos assegura que a expressão logo
depois da subtração da coisa não pode ser compreendida no
sentido de que o agente já havia consumado a subtração, mas tão
somente de que estavam em curso os atos de execução.
Por essa razão, permissa vênia, não podemos concordar com a
posição de Álvaro Mayrink da Costa quando afirma:
“A distinção entre as duas modalidades se situa em que, no
roubo próprio, a grave ameaça ou a violência são dirigidas à
pessoa visando ao apossamento da coisa, ou melhor, ocorre
antes ou durante a ação da subtração; ao passo que, no roubo
impróprio, a grave ameaça ou a violência são praticadas após a
subtração, isto é, quando esta foi consumada.”6
Além disso, o § 1º do art. 157 do Código Penal menciona que a
violência contra pessoa ou a grave ameaça, praticada
posteriormente à subtração (entendida, aqui, no sentido exposto
acima), deve ter sido utilizada para: a) assegurar a impunidade do
crime; b) assegurar a detenção da coisa para si ou para terceiro.
Embora sejam hipóteses que podem se confundir no caso
concreto, Guilherme de Souza Nucci, tentando fazer a distinção
entre as duas situações, preleciona:
“Há duas possibilidades para o emprego da violência ou da
grave ameaça após a subtração ter-se efetivado: assegurar a
impunidade, significando garantir que o agente não será preso
(ex.: dar o ladrão um soco na vítima, que tenta prendê-lo, após
descobrir a subtração), ou assegurar a detenção da coisa para
si ou para terceiro, querendo dizer que o objeto retirado do
ofendido não deve voltar à sua esfera de disponibilidade (ex.:
proferir o ladrão uma ameaça de morte, apontando o revólver,
para que a vítima não se aproxime, tentando recuperar o bem
que percebe estar sendo levado embora).”7
Ao que parece, a distinção somente reside no fato de que, por
exemplo, no primeiro caso, quando a lei menciona que o agente se
vale do emprego da violência contra pessoa ou a grave ameaça, a
fim de assegurar a impunidade do crime, a situação envolvia a sua
liberdade, como exemplificado por Nucci. Não se tinha a
preocupação, no momento, de se recuperar a res furtiva, mas, pelo
menos precipuamente, de prender o autor da infração penal,
oportunidade em que este se vale da violência ou da grave ameaça
para alcançar a impunidade. No entanto, o agente também não
pode abandonar a res furtiva somente empregando a violência ou a
grave ameaça, para fugir, sem se preocupar com o objeto da
subtração, pois teríamos, aqui, uma tentativa de furto, conjugada,
por exemplo, com um delito de lesão corporal.
Por isso é que alertamos que a distinção é um tanto quanto
confusa, uma vez que as hipóteses devem ser conjugadas. Da
mesma forma, quando o agente atua com violência querendo,
hipoteticamente, assegurar a detenção da coisa que por ele estava
sendo subtraída, bem como a sua liberdade, fugindo do local do
crime.
Também se discute se na modalidade imprópria de roubo seria
possível o emprego, tal como previsto no caput do art. 157 do
Código Penal, de qualquer outro meio, que não a violência contra
pessoa ou a grave ameaça, que pudesse reduzir a capacidade de
resistência da vítima, vale dizer, a denominada violência imprópria,
já analisada em nossa introdução.
A doutrina também se divide nesse ponto.
Cezar Roberto Bitencourt, argumentando com o princípio da
legalidade, não vê qualquer possibilidade de ampliação do texto
constante do § 1º do art. 157 do Código Penal, a fim de nele
abranger a violência imprópria, asseverando:
“No roubo impróprio, ao contrário do roubo próprio, não há
previsão legal, como executivo, da utilização de ‘qualquer outro
meio’, limitando-se ao emprego de violência ou grave ameaça.
Rechaçamos, assim, o entendimento daqueles que admitem
‘outros meios’, além de violência ou grave ameaça, na
caracterização do roubo impróprio. É inadmissível qualquer
interpretação extensiva ou analógica para incluir, como
elementar típica, meio que a lei não prevê, ampliando o jus
puniendi estatal e ferindo o princípio da tipicidade taxativa.”8
Hoeppner Dutra, citado por Weber Martins Batista, aduz que,
“no roubo impróprio, o emprego de qualquer meio que anule a
resistência da vítima importa, necessariamente, em violência à
pessoa.”9
Entendemos assistir razão à corrente, por sinal majoritária, que
somente admite a violência contra pessoa (vis corporalis) e a grave
ameaça, praticadas logo após a subtração (compreendida, aqui, no
sentido que defendemos anteriormente), para efeitos de
reconhecimento do roubo impróprio, descartando-se, em obediência
ao princípio da legalidade, a inclusão da denominada violência
imprópria.
1.6
Consumação e tentativa
Para efeitos de reconhecimento do momento consumativo do
roubo, a doutrina, de forma majoritária, faz a distinção entre as suas
duas espécies, vale dizer, o roubo próprio e o roubo impróprio, a
nosso ver sem o menor sentido.
Embora com algum dissenso, afirmam que o roubo próprio se
consuma com a retirada violenta do bem da esfera de
disponibilidade da vítima, passando o agente a exercer sobre ele a
posse tranquila, mesmo que por curto espaço de tempo. Mesmo na
hipótese de roubo próprio, nossos Tribunais Superiores têm
modificado sua posição, passando a entender que a simples retirada
do bem da esfera de disponibilidade da vítima já seria suficiente
para efeitos de reconhecimento da consumação, conforme se
verifica nas jurisprudências abaixo colacionadas:
“A teor da Súmula nº 582/STJ, tem-se a consumação do crime
de roubo com a inversão da posse do bem mediante emprego
de violência ou grave ameaça, ainda que por breve tempo e em
seguida à perseguição imediata ao agente e recuperação da
coisa roubada, sendo prescindível a posse mansa e pacífica ou
desvigiada” (STJ, AgRg no HC 499.829/ SC, Rel. Min. Nefi
Cordeiro, 6ª T., DJe 13/06/2019).
“De acordo com a jurisprudência consolidada deste Superior
Tribunal de Justiça, reafirmada no recente julgamento do
Recurso Especial Repetitivo 1.499.050/RJ pela Terceira Seção,
deve ser adotada a teoria da aprehensio ou amotio no que se
refere à consumação do delito de roubo, que ocorre no
momento em que o agente se torna possuidor da res furtiva,
ainda que a posse não seja de forma mansa e pacífica, não
sendo necessário que o objeto subtraído saia da esfera de
vigilância da vítima” (STJ, AgRg no REsp 1.201.491/RJ, Rel.ª
Min.ª Maria Thereza de Assis Moura, 6ª T., DJe 12/04/2016).
“A jurisprudência desta Eg. Corte Superior já se consolidou no
sentido de que o delito de roubo consuma-se com a simples
posse da coisa alheia móvel subtraída, ainda que por breves
instantes, sendo desnecessário que o bem saia da esfera de
vigilância da vítima. Prescindível, portanto, a posse tranquila do
bem, obstada, muitas vezes, pela imediata perseguição policial
ou por terceiro” (STJ, HC 243.422/SP, Rel. Min. Nefi Cordeiro,
6ª T., DJe 17/03/2016).
Nesse sentido, a Súmula nº 582 do STJ, publicada no DJ e de
19 de setembro de 2016, que diz:
Súmula nº 582. Consuma-se o crime
de roubo com a inversão da posse do
bem mediante emprego de violência
ou grave ameaça, ainda que por
breve tempo e em seguida à
perseguição imediata ao agente e
recuperação da coisa roubada, sendo
prescindível a posse mansa e pacífica
ou desvigiada.
Nossos doutrinadores parecem acompanhar essa involução,
permissa vênia, dos Tribunais Superiores, a exemplo de Cezar
Roberto Bitencourt, quando diz:
“A consumação do crime de roubo se perfaz no momento em
que o agente se torna possuidor da res furtiva, subtraída
mediante violência ou grave ameaça, independentemente de
sua posse mansa e pacífica.”10
No mesmo sentido, Guilherme de Souza Nucci:
“O roubo está consumado quando o agente retira o bem da
esfera de disponibilidade e vigilância da vítima.”11
Estamos, portanto, com Weber Martins Batista quando,
rechaçando a posição acima transcrita, assevera:
“Não se pode falar em consumação antes que o poder de
disposição da coisa se perca para o dono e passe para o
agente. E isso acontece no momento em que este estabelece
um estado tranquilo, embora transitório, de detenção da
coisa.”12
Tratando-se de crime material, é perfeitamente admissível a
tentativa de roubo, sendo que, para nós, ocorrerá quando o agente
não conseguir, mesmo que por curto espaço de tempo, a posse
tranquila da res furtiva; para a corrente que entende não ser
necessária a posse tranquila da coisa pelo agente, para efeitos de
reconhecimento de consumação, ainda assim será possível a
tentativa, a partir do instante em que, iniciada a execução, não
conseguir retirar o bem da esfera de disponibilidade da vítima, por
circunstâncias alheias à sua vontade.
Por outro lado, no que diz respeito ao roubo impróprio, também
de forma majoritária, a doutrina já se posicionava, tal como acontece
hoje, no sentido de que a sua consumação ocorreria quando do
emprego da violência ou da grave ameaça, depois da subtração,
para assegurar a impunidade do crime ou a detenção da coisa.
Nesse sentido, afirma Álvaro Mayrink da Costa que “a
consumação do roubo impróprio ocorre quando o sujeito ativo
emprega violência ou grave ameaça à pessoa para assegurar a
impunidade do crime ou a posse da res furtiva.”13
Não conseguimos compreender a mudança de tratamento para
efeitos de reconhecimento de momentos diferentes de consumação
nas espécies de roubo – próprio e impróprio. Para nós, que
entendemos que a consumação somente ocorre com a retirada do
bem da esfera de disponibilidade da vítima e o ingresso na posse
tranquila do agente, não há qualquer diferença no fato de ser a
violência anterior ou posterior à subtração da coisa.
Em razão dessa afirmação, vale dizer, que no roubo impróprio a
consumação ocorre com o simples emprego de violência ou grave
ameaça depois da subtração da coisa, é que a doutrina e a
jurisprudência têm se dividido com relação à possibilidade de
reconhecimento da tentativa nessa modalidade de roubo.
Segundo as lições de Hungria:
“No caso de violência subsequente à subtração, o momento
consumativo é o do emprego da violência; e não há falar-se em
tentativa: ou a violência é empregada, e tem-se a consumação,
ou não é empregada, e o que se apresenta é o crime de furto.”14
Nesse sentido, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:
“O crime previsto no art. 157, § 1º, do Código Penal consumase no momento em que, após o agente tornar-se possuidor da
coisa, a violência é empregada, não se admitindo, pois, a
tentativa (REsp 1.025.162/SP, Recurso Especial 2008/00143518, 5ª T., Rel. Min. Felix Fischer, DJe 10/11/2008).
Fazendo a distinção entre o roubo próprio e o impróprio e
firmando entendimento no sentido de se permitir a tentativa nessa
última modalidade, posição com a qual nos filiamos, com precisão,
aduz Weber Martins Batista:
“Entre uma e outra situação não estão separadas por um
simples ponto, mas por uma linha, muitas vezes longa, pois
entre o apoderamento da coisa e o fato do agente passar a
dispor dela com tranquilidade, desvigiadamente, há um iter a
ser percorrido. Assim, a grave ameaça ou a violência praticada
ao longo desse caminho, visando, sem êxito, a manter a
detenção da coisa, ou a garantir a fuga com a coisa, caracteriza
o roubo impróprio tentado.”15
Em ambas as espécies de roubo – próprio e impróprio –, a
destruição da coisa, total ou parcial, tal como acontece no delito de
furto, terá o condão de consumar a infração penal, haja vista que a
coisa alheia móvel não poderá ser restituída da mesma forma com
que foi subtraída.
Com relação ao roubo qualificado pela lesão corporal grave e
pela morte, dadas as suas especificidades, faremos a análise do
seu momento consumativo, bem como da possibilidade de tentativa,
quando do estudo em tópico próprio.
1.7
Elemento subjetivo
O crime de roubo somente pode ser praticado dolosamente,
não havendo previsão legal para a modalidade culposa.
Além do dolo, a doutrina majoritária aponta outro elemento
subjetivo, que lhe é transcendente, chamado especial fim de agir,
caracterizado na expressão para si ou para outrem, constante do
art. 157 do Código Penal.
Assim, a figura típica do delito de roubo somente estará
aperfeiçoada quando a subtração for praticada dolosamente pelo
agente, que atua com a finalidade especial de ter a coisa para si ou
para outrem. Esse chamado especial fim de agir elimina, no caso, a
punição do agente pela subtração violenta para uso a título de
roubo, conforme veremos mais adiante.
Merece destaque, ainda, o fato de que o dolo do agente deve
abranger todos os elementos constantes do tipo penal em estudo, a
exemplo do que ocorre com o elemento normativo consubstanciado
na expressão coisa móvel alheia. O sujeito, portanto, deve saber
que a coisa por ele subtraída não é de sua propriedade, pois, caso
contrário, poderá ser levado a efeito o raciocínio correspondente ao
erro de tipo, previsto no art. 20 do Código Penal.
No roubo impróprio, o § 1º do art. 157 do Código Penal ainda
exige outros dois elementos subjetivos, que dizem respeito à
especial finalidade do agente, que atua no sentido de assegurar a
impunidade do crime ou a detenção da coisa, também para si ou
para outrem.
1.8
Modalidades comissiva e omissiva
O núcleo subtrair, constante do art. 157 do Código Penal,
pressupõe um comportamento comissivo, vale dizer, um fazer
alguma coisa no sentido de conseguir a subtração.
Entretanto, se o agente vier a gozar do status de garantidor,
poderá responder pelo delito de roubo via omissão imprópria. Assim,
imagine-se a hipótese em que um policial civil, cuja função de
garantia é originária da lei, amoldando-se, portanto, à alínea a do §
2º do art. 13 do Código Penal, percebendo que um delito de roubo
está em andamento e, podendo, dolosamente, nada faz para evitálo, porque percebe que a vítima da infração penal é sua inimiga.
Nesse caso, não deverá ser responsabilizado pelo crime de
prevaricação, mas sim pelo resultado que devia e podia, mas não
tentou evitar, vale dizer, o roubo.
Dessa forma, podemos concluir que o delito de roubo admite a
sua prática comissiva e omissivamente, desde que, neste último
caso, estejamos diante das hipóteses de omissões impróprias.
1.9
Causas especiais de aumento de pena
Os §§ 2º, 2º-A e 2º-B do art. 157 do Código Penal, com as
modificações trazidas pelas Leis nºs 13.654/2018 e 13.964, de 24 de
dezembro de 2019, determinam, verbis:
§ 2º A pena aumenta-se de 1/3 (um
terço) até metade:
I – (revogado);
II – se há o concurso de duas ou mais
pessoas;
III – se a vítima está em serviço de
transporte de valores e o agente
conhece tal circunstância.
IV – se a subtração for de veículo
automotor
que
venha
a
ser
transportado para outro Estado ou
para o exterior;
V – se o agente mantém a vítima em
seu poder, restringindo sua liberdade.
VI – se a subtração for de substâncias
explosivas ou de acessórios que,
conjunta
ou
isoladamente,
possibilitem
sua
fabricação,
montagem ou emprego.
VII – se a violência ou grave ameaça
é exercida com o emprego de arma
branca.
§ 2º-A. A pena aumenta-se de 2/3
(dois terços):
I – se a violência ou ameaça é
exercida com emprego de arma de
fogo;
II – se há destruição ou rompimento
de obstáculo mediante o emprego de
explosivo ou de artefato análogo que
cause perigo comum.
§ 2º-B. Se a violência ou grave
ameaça é exercida com emprego de
arma de fogo de uso restrito ou
proibido, aplica-se em dobro a pena
prevista no caput deste artigo.
Os §§ 2º, 2º-A e 2º-B do art. 157 do Código Penal, com as
modificações trazidas pelas nºs 13.654/2018 e 13.964, de 24 de
dezembro de 2019, preveem as causas de aumento de pena a
serem aplicadas ao crime de roubo, que terão influência no terceiro
momento do critério trifásico previsto pelo art. 68 do mesmo diploma
legal.
Dessa forma, segundo a posição por nós assumida, na hipótese
do § 2º do art. 157 do Código Penal, quanto maior a presença, no
caso concreto, de hipóteses que dão margem à majoração, maior
será o percentual de aumento, que poderá variar de um terço até a
metade. Assim, a presença de mais de uma causa especial de
aumento de pena permite ao julgador a fuga do patamar mínimo de
aumento (um terço), levando-o em direção ao percentual máximo
(metade), lembrando sempre que toda decisão deverá ser
fundamentada, não se podendo aceitar, simplesmente, a
determinação de um percentual de aumento acima do patamar
mínimo sem que haja motivação suficiente.16
Nesse sentido, o STJ manifestou o seu posicionamento quanto
ao tema, editando a Súmula nº 443, publicada do DJe de 13 de
maio de 2010, com o seguinte teor:
Súmula nº 443. O aumento na
terceira fase de aplicação da pena no
crime de roubo circunstanciado exige
fundamentação concreta, não sendo
suficiente para a sua exasperação a
mera indicação do número de
majorantes.
Não se cuidam, ainda, de qualificadoras, ao contrário do que
ocorre com os incisos I e II do § 3º do art. 157 do Código Penal, pois
não cominam penas mínimas e máximas superiores ao caput,
determinando, tão somente, o aumento da pena aplicada ao agente
que, nas hipóteses do § 2º, variará entre um terço até metade, será
de 2/3 (dois terços) na prevista pelo § 2º-A e o dobro se ocorrer a
hipótese do § 2º-B, todos do mesmo artigo.
Faremos, em seguida, o estudo individualizado de cada uma
delas, de acordo com a ordem proposta pela lei penal.
1.9.1
Concurso de duas ou mais pessoas
Ao contrário do crime de furto, no qual o concurso de pessoas
torna a infração qualificada, no crime de roubo o concurso de
pessoas encontra-se no rol das causas especiais de aumento de
pena, gozando, aqui, do status de majorante, e não de qualificadora.
No entanto, embora possuindo naturezas diferentes, os
raciocínios são idênticos, razão pela qual todas as discussões
lançadas quando do estudo do crime de furto valem, também, para
o delito de roubo. Por este motivo, pedimos vênia ao leitor para
remetê-lo ao tópico correspondente no delito de furto.
Merece destaque, contudo, a advertência feita por Weber
Martins Batista, quando diz que no crime de roubo:
“Não é preciso que todos os parceiros pratiquem grave ameaça
ou violência; basta que um o faça, e esse modo de execução
seja de conhecimento e tenha a aprovação, expressa ou tácita,
dos demais.
Tal como ocorre no furto, a qualificadora exige que os agentes
participem da execução do crime, intervenham em seu
cometimento, estejam presentes no local e momento do fato.
Não basta, pois, que estejam combinados, que um seja o
mandante e outro, o executor; que um cometa o crime e o
outro, por combinação prévia, lhe preste qualquer tipo de auxílio
posterior à prática do delito.”17
1.9.2
Se a vítima está em serviço de transporte de valores e o
agente conhece tal circunstância
Para que ocorra a causa especial de aumento de pena prevista
pelo inciso III do § 2º do art. 157 do Código Penal, é preciso a
conjugação de dois fatores. Primeiro, que a vítima esteja em serviço
de transporte de valores; segundo, que o agente conheça tal
circunstância.
Dessa forma, incide a majorante se o serviço da vítima era, no
momento em que foi abordada pelo agente, o de transportar valores,
que, segundo Hungria, “tanto podem ser representados por dinheiro,
como por qualquer outro efeito que se costuma transportar (n.b.:
transportar, e não portar), como sejam: pedras preciosas, ouro em
pó ou em barra, selos, estampilhas, títulos ao portador etc.”18
Não há necessidade, ainda, que o serviço praticado pela vítima
seja o de, especificamente, transportar valores, a exemplo do que
ocorre com o transporte de dinheiro em carro-forte. Poderá, por
exemplo, um office-boy, que, sempre no final da tarde, leva os
valores arrecadados no local onde trabalha, a fim de que sejam
depositados numa agência bancária. Nesse caso, podemos afirmar
que, naquele momento específico, estava a serviço de transporte de
valores.
Nesse sentido, adverte corretamente Rogério Sanches Cunha
que:
“Certamente o vendedor que distribui mercadoria, recebe o
preço e retorna à base, também transporta valores. Sem razão,
assim, aqueles que buscam limitar o aumento de pena aos
casos de transporte de valores das casas bancárias”19.
A segunda exigência contida no inciso em estudo, necessária à
caracterização da majorante, diz respeito ao fato de que, além de a
vítima estar a serviço de transporte de valores, o agente deve ter
conhecimento dessa circunstância. Conhecer essa circunstância, de
acordo com a ilação legal, tem o sentido de que o agente sabia,
efetivamente, que a vítima, naquele momento, estava a serviço de
transporte de valores. Esse conhecimento deve, obrigatoriamente,
fazer parte do seu dolo, sob pena de se afastar a majorante. Dessa
forma, se o agente, por coincidência, aborda a vítima que, naquele
instante, estava a serviço de transporte de valores e, mediante o
emprego de grave ameaça, consegue subtrair tudo aquilo que ela
trazia consigo, somente responderá pelo roubo, sem a causa
especial de aumento de pena.
Discute-se, ainda, em virtude da locução estar em serviço de
transporte de valores, que, se fosse o proprietário que estivesse
transportando valores no momento da abordagem, se poderia ser
aplicada a majorante em exame. Tem-se entendido que não, uma
vez que a expressão estar em serviço afasta o proprietário dos
valores, pois ele não estaria em serviço para si mesmo,
abrangendo, tão somente, terceiros que lhe prestam esse serviço.
Nesse sentido, afirma Paulo José da Costa Júnior que a causa
especial de aumento de pena “se refere ao transportador de valores,
não se entendendo como tal o proprietário de joias que estiver a
levá-las do cofre do banco para sua casa.”20
1.9.3
Se a subtração for de veículo automotor que venha a ser
transportado para outro Estado ou para o exterior
A Lei nº 9.426, de 24 de dezembro de 1996, acrescentou dois
incisos ao § 2º do art. 157 do Código Penal, sendo um deles relativo
à subtração de veículo automotor que venha a ser transportado para
outro Estado ou para o exterior, considerado como mais uma causa
especial de aumento de pena, ao contrário do que ocorreu no delito
de furto, quando o legislador, valendo-se do mesmo fato, criou outra
modalidade qualificada de subtração sem violência.
Como as situações são idênticas – subtração de veículo
automotor que venha a ser transportado para outro Estado ou para
o exterior –, somente se modificando a natureza jurídica da punição,
pois no furto tal fato qualifica a infração penal e no roubo considerase como uma majorante, a ser avaliada no terceiro momento de
aplicação da pena, previsto pelo art. 68 do Código Penal, tomamos
a liberdade, evitando-se a desnecessária repetição, de remeter o
leitor ao tópico próprio, quando do estudo do delito de furto.
Damásio de Jesus, no que diz respeito à aplicação prática da
causa especial de aumento de pena em estudo, assevera:
“O novo tipo surtirá pouco efeito prático, uma vez que esse
delito, na maioria das vezes, já terá a pena especialmente
agravada pela natureza do instrumento utilizado (arma) ou pela
forma de execução (concurso de pessoas), atuando a espécie
do objeto material (veículo automotor) e o transporte como
meras circunstâncias judiciais, uma vez que não estão descritas
no art. 61 do CP, sem a importância que a lei lhes pretendeu
emprestar.”21
Apesar da força do raciocínio do renomado autor, ousamos dele
discordar. Isso porque, segundo entendemos, quanto maior o
número de majorantes presentes no caso concreto, maior será a
possibilidade de o julgador fugir ao percentual mínimo de aumento,
previsto em um terço. Assim, permissa vênia, a existência de mais
de uma causa de aumento de pena, não prevista pelo Código Penal
também como circunstância agravante, não deverá ser analisada
como se fosse uma circunstância judicial, mas sim no terceiro
momento do critério trifásico, previsto pelo art. 68 do diploma
repressivo, podendo o juiz fundamentar a aplicação de um
percentual maior de aumento de pena, quando estiver diante de
mais de uma majorante.
1.9.4
Se o agente mantém a vítima em seu poder, restringindo
sua liberdade
Também inserido no § 2º do art. 157 do Código Penal pela Lei
nº 9.426, de 24 de dezembro de 1996, o inciso V permite o aumento
de um terço até metade se durante a prática do roubo o agente
mantém a vítima em seu poder, restringindo sua liberdade. Antes da
edição da mencionada lei, a solução era pelo concurso de crimes
entre o roubo e o sequestro, caso houvesse, além da subtração
patrimonial violenta, a privação da liberdade da vítima.
Tal majorante, entretanto, merece atenção especial, dadas suas
peculiaridades. Inicialmente, faz-se mister registrar o fato de que
essa causa especial de aumento de pena foi inserida no Código
Penal, basicamente, em virtude do chamado sequestro relâmpago,
no qual durante, por exemplo, a prática do crime de roubo, a vítima
é colocada no porta-malas do seu próprio veículo e ali permanece
por tempo não prolongado, até que os agentes tenham completo
sucesso na empresa criminosa, sendo libertada logo em seguida.
Não podemos, entretanto, entender que toda privação de
liberdade levada a efeito durante a prática do roubo se
consubstanciará na majorante em estudo. Pode ser, inclusive, que
se configure em infração penal mais grave.
A doutrina tem visualizado duas situações que permitiriam a
incidência da causa de aumento de pena em questão, a saber: a)
quando a privação da liberdade da vítima for um meio de execução
do roubo; b) quando essa mesma privação de liberdade for uma
garantia, em benefício do agente, contra a ação policial.
Devemos concluir, ainda, que a vítima mencionada pela
majorante é a do próprio roubo, pois, caso contrário, o crime poderá
se constituir em extorsão mediante sequestro, previsto pelo art. 159
do Código Penal.
Vale o alerta feito por Cezar Roberto Bitencourt, quando afirma:
“Quando o ‘sequestro’ (manutenção da vítima em poder do
agente) for praticado concomitantemente com o roubo de
veículo automotor ou, pelo menos, como meio de execução do
roubo ou como garantia contra ação policial, estará configurada
a majorante aqui prevista. Agora, quando eventual ‘sequestro’
for praticado depois da consumação do roubo de veículo
automotor, sem nenhuma conexão com sua execução ou
garantia de fuga, não se estará diante da majorante especial,
mas se tratará de concurso de crimes, podendo, inclusive,
tipificar-se, como já referimos, a extorsão mediante sequestro: o
extorquido é o próprio ‘sequestrado’.”22
Além disso, para que seja aplicada a causa especial de
aumento de pena, a privação da liberdade não poderá ser
prolongada, devendo-se, aqui, trabalhar com o princípio da
razoabilidade para efeitos de reconhecimento do tempo que, em
tese, seria suficiente para ser entendido como majorante, e não
como figura autônoma de sequestro, ou mesmo extorsão mediante
sequestro.
Devemos lembrar que a causa especial de aumento em estudo
é benéfica ao agente, pois evita a imposição do concurso de crimes,
razão pela qual deverá ser criteriosa a sua aplicação, para não se
chegar a conclusões absurdas, em detrimento das vítimas dessas
infrações penais.
Assim, imagine-se a hipótese na qual os agentes, depois de
subtraírem os pertences da vítima, a mantenham presa no interior
do porta-malas de seu próprio automóvel, a fim de que pratiquem
vários roubos durante toda a madrugada, utilizando o veículo a ela
pertencente, que lhes servirá nas fugas. O fato de ter permanecido
privada de sua liberdade durante toda a madrugada é tempo mais
que suficiente para se configurar o crime de sequestro, que deverá
ser reconhecido juntamente com o delito de roubo, aplicando-se a
regra do concurso material.
Agora, suponha-se que o agente, pretendendo a subtração do
veículo de propriedade da vítima, depois de anunciar o roubo, a
coloque dentro do porta-malas, saindo em direção a uma via de
acesso rápido. Algum tempo depois, quando já se encontrava em
local adequado para a fuga, quando já não mais corria risco de ser
interceptado pelos policiais que, em tese, seriam avisados pela
vítima, caso esta não tivesse sido privada da sua liberdade, o
agente estaciona o veículo e a liberta. Nesse caso, deverá
responder pelo roubo, com a pena especialmente agravada nos
termos do inciso V do § 2º do art. 157 do Código Penal.
A Lei nº 11.923, de 17 de abril de 2009, criou outra modalidade
de sequestro relâmpago, acrescentando o § 3º ao art. 158 do
Código Penal, dizendo, verbis:
§ 3º Se o crime é cometido mediante
a restrição da liberdade da vítima, e
essa condição é necessária para a
obtenção da vantagem econômica, a
pena é de reclusão, de 6 (seis) a 12
(doze) anos, além da multa; se resulta
lesão corporal grave ou morte,
aplicam-se as penas previstas no art.
159, §§ 2º e 3º, respectivamente.
A Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, modificando a Lei
nº 8.072/1990, nela inserindo a alínea a, no inciso II do seu art. 1º,
passou a considerar como hediondo o roubo circunstanciado pela
restrição de liberdade da vítima, tipificado no inciso V do § 2º do art.
157 do estatuto penal.
1.9.5
Se a subtração for de substâncias explosivas ou de
acessórios que, conjunta ou isoladamente, possibilitem sua
fabricação, montagem ou emprego
A majorante em estudo foi inserida no § 2º do art. 157 do
Código Penal através da Lei nº 13.654, de 23 de abril de 2018.
Ao contrário do que ocorreu com o delito de furto, no qual foi
criada uma modalidade qualificada, punindo com uma pena de 4
(quatro) a 10 (dez) anos de reclusão e multa, se a subtração for de
substâncias explosivas ou de acessórios que, conjunta ou
isoladamente, possibilitem sua fabricação, montagem ou emprego,
para o delito de roubo a mesma subtração, se cometida com o
emprego de violência ou grave ameaça, importará em um aumento
que poderá variar de 1/3 até metade, a ser aplicado no terceiro
momento do critério trifásico de aplicação da pena, previsto pelo art.
68 do mesmo diploma repressivo.
Para que não sejamos repetitivos, remetemos o leitor ao art.
155 do Código Penal, onde essas substâncias explosivas e seus
acessórios foram tratados mais detidamente.
1.9.6
Se a violência ou grave ameaça é exercida com o emprego
de arma branca
O inciso VII foi acrescentado ao § 2º do art. 157 do Código
Penal através da Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, que
prevê um aumento de 1/3 (um terço) até a metade se o roubo for
cometido com o emprego de arma branca. O conceito de arma
branca pode ser encontrado por exclusão, vale dizer, não sendo
considerada uma arma de fogo, todo instrumento que pode ser
utilizado tanto para o ataque como para defesa, pode ser
considerado como uma arma branca.
As armas brancas podem ser classificadas em sete espécies, a
saber: I – cortantes (navalhas, lâminas etc.), II – perfurantes (florete,
chave de fenda etc.); III – perfurocortantes (faca, cacos de vidro
etc.); IV – contundentes (martelo, pedaço de pau etc.); V –
cortocontundentes (machado, foice etc.); VI – perfurocontundentes
(lança, arpão etc.); e perfurocortocontundentes (facão etc.).
Nesse conceito de arma branca não podemos incluir os
chamados simulacros, ou seja, aquelas réplicas, muitas delas
perfeitas, que se confundem com as armas de fogo. Obviamente
que o simulacro de arma possui poder de intimidação, fazendo com
que a vítima ceda mais facilmente à subtração. Contudo, não se
amolda ao conceito de arma branca, isto é, não se encaixa em
nenhuma das definições apontadas acima.
“Nos casos em que se aplica a Lei nº 13.654/2018, é possível a
valoração do emprego de arma branca, no crime de roubo,
como circunstância judicial desabonadora” (STJ, 5ª T., HC
556.629-RJ, Rel. Min. Ribeiro Dantas, j. 03/03/2020 – Info 668).
1.9.7
Se a violência ou ameaça é exercida com emprego de
arma de fogo
O conceito de arma de fogo encontra-se previsto nos Decreto nº
10.030, de 30 de setembro de 2019.
O emprego da arma de fogo agrava especialmente a pena em
virtude de sua potencialidade ofensiva, conjugada com o maior
poder de intimidação sobre a vítima. Os dois fatores, na verdade,
devem estar reunidos para efeitos de aplicação da majorante. Dessa
forma, não se pode permitir o aumento de pena quando a arma de
fogo utilizada pelo agente não tinha, no momento da sua ação,
qualquer potencialidade ofensiva por estar sem munição ou mesmo
com um defeito mecânico que impossibilitava o disparo. Embora
tivesse a possibilidade de amedrontar a vítima, facilitando a
subtração, não poderá ser considerada para efeitos de aumento de
pena, tendo em vista a completa impossibilidade de potencialidade
lesiva, ou seja, a de produzir dano superior ao que normalmente
praticaria sem o seu uso.
Entendendo pelo afastamento da majorante nas hipóteses de
arma de fogo desmuniciada, assim decidiu o Superior Tribunal de
Justiça:
“Nos termos da jurisprudência desta Corte, o emprego de arma
de fogo desmuniciada, como forma de intimidar a vítima do
delito de roubo, malgrado caracterize a grave ameaça
configuradora do crime de roubo, não justifica o reconhecimento
da majorante do art. 157, § 2º, I23, do Código Penal, ante a
ausência de potencialidade ofensiva do artefato” (STJ, HC
247.708/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, 5ª T., DJe 25/04/2018).
A doutrina se digladia quanto à necessidade de ser a arma de
fogo efetivamente empregada, para efeitos de se praticar a violência
ou a grave ameaça, ou se bastaria o seu uso ostensivo, para fins de
reconhecimento da causa especial de aumento de pena.
Empregar a arma de fogo significa utilizá-la no momento da
prática criminosa. Tanto emprega a arma de fogo o agente que, sem
retirá-la da cintura, mas com a mão sobre ela, anuncia o roubo,
intimidando a vítima, como aquele que, após sacá-la, a aponta em
direção à sua cabeça. O importante é que ela seja utilizada durante
o roubo, mesmo que a ameaça seja levada a efeito implicitamente,
como no exemplo acima fornecido. Conforme alerta Weber Martins
Batista, também poderá ser reconhecida a majorante, “na
circunstância do agente que, tendo consigo a arma, e mesmo sem
manejá-la ou exibi-la à vítima, dá a entender que está armado e
pretende fazer uso da arma, em caso de resistência”24.
Em sentido contrário, preleciona Cezar Roberto Bitencourt:
“Segundo a dicção do texto legal, é necessário o emprego
efetivo de arma, sendo insuficiente o simples portar. [...] A
tipificação legal condiciona a ser a violência ou grave ameaça
‘exercida’ com o ‘emprego de arma’, e ‘empregá-la’ significa uso
efetivo, concreto, real, isto é, a utilização da arma no
cometimento da violência”25.
1.9.7.1
Jurisprudência em teses do Superior Tribunal de Justiça.
Edição nº 111: Provas no processo penal – II
É prescindível a apreensão e a perícia de arma de fogo para a
caracterização de causa de aumento de pena prevista no art. 157, §
2º-A, I, do Código Penal, quando evidenciado o seu emprego por
outros meios de prova.
1.9.8
Se há destruição ou rompimento de obstáculo mediante o
emprego de explosivo ou de artefato análogo que cause
perigo comum
A causa especial de aumento de pena relativa à destruição ou
rompimento de obstáculo mediante o emprego de explosivo ou de
artefato análogo que cause perigo comum foi inserida no art. 157
por meio da Lei nº 13.654, de 23 de abril de 2018, que criou o § 2ºA, determinando um aumento de 2/3 (dois terços).
Anteriormente, a destruição ou rompimento de obstáculo à
subtração da coisa só era previsto para o crime de furto. Agora, em
virtude da modificação legislativa, passou a ser previsto, também,
para o crime de roubo, desde que esses comportamentos sejam
levados a efeito mediante o emprego de explosivo ou de artefato
análogo que cause perigo comum. Nas demais hipóteses, mesmo
que haja destruição ou rompimento de obstáculo para a prática de
um crime de roubo, não será possível a aplicação da majorante.
Assim, imagine-se a hipótese daquele que, querendo praticar
um crime de roubo a uma agência bancária, destrua, com a
utilização de uma marreta, a porta que estava devidamente trancada
com cadeados e barras de ferro, para evitar o ingresso de pessoas
não permitidas. Na agência bancária, agride o segurança e leva a
efeito a subtração dos bens que se encontravam no cofre. Nesse
caso, não haverá que se falar em aplicação da causa de aumento
de pena prevista no inciso II do § 2º-A do art. 157 do Código Penal.
Raciocínio ao contrário se daria se os agentes, a fim de ingressar na
agência bancária, ou mesmo para a abertura do cofre-forte, se
utilizassem de explosivos ou artefatos análogos para que tivessem
sucesso na prática do roubo.
A lei exige, ainda, que o emprego do explosivo ou do artefato
análogo cause perigo comum, ou seja, a um número indeterminado
de pessoas. Assim, se os agentes se utilizarem de explosivos ou de
artefatos que não proporcionem essa situação de perigo, limitando a
sua utilização tão somente a destruir ou a romper o obstáculo,
também não haverá possibilidade de aplicação da majorante. Aqui,
somente a prova pericial é que poderá afirmar se houve ou não a
criação de perigo comum com a sua utilização.
1.9.9
Se a violência ou grave ameaça é exercida com emprego
de arma de fogo de uso restrito ou proibido, aplica-se em
dobro a pena prevista no caput deste artigo
O § 2º-B foi inserido no art. 157 do Código Penal através da Lei
nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019. Assim, se a violência ou
grave ameaça é exercida com emprego de arma de fogo de uso
restrito ou proibido, aplica-se em dobro a pena prevista no caput do
artigo em análise.
Em 30 de setembro de 2019, após muitas polêmicas, foi
publicado o Decreto nº 10.030, cujos incisos II e III do art. 3º do
Anexo I, definindo os conceitos de arma de fogo de uso restrito e de
uso proibido, dizem:
Art. 3º As definições dos termos
empregados neste Regulamento são
aquelas constantes deste artigo e do
Anexo III.
(...)
II – arma de fogo de uso restrito – as
armas de fogo automáticas, de
qualquer
tipo
ou
calibre,
semiautomáticas ou de repetição que
sejam:
a) não portáteis;
b) de porte, cujo calibre nominal, com
a utilização de munição comum,
atinja, na saída do cano de prova,
energia cinética superior a mil e
duzentas libras-pé ou mil seiscentos e
vinte joules; ou
c) portáteis de alma raiada, cujo
calibre nominal, com a utilização de
munição comum, atinja, na saída do
cano de prova, energia cinética
superior a mil e duzentas libras-pé ou
mil seiscentos e vinte joules;
III – arma de fogo de uso proibido:
a) as armas de fogo classificadas
como de uso proibido em acordos ou
tratados internacionais dos quais a
República Federativa do Brasil seja
signatária; e
b) as armas de fogo dissimuladas,
com aparência de objetos inofensivos;
A Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, modificando a Lei
nº 8.072/1990, na última parte da alínea b do inciso II do seu art. 1º,
passou a considerar como hediondo o roubo com emprego de arma
de fogo de uso proibido ou restrito.
1.10
Roubo qualificado pela lesão corporal grave e pela morte
(latrocínio)
Os incisos I e II do § 3º do art. 157 do Código Penal, com a
nova redação que lhe foi conferida pela Lei nº 13.654, de 23 de abril
de 2018, preveem duas modalidades qualificadas de roubo
qualificado pelo resultado, verbis:
§ 3º Se da violência resulta:
I – lesão corporal grave, a pena é de
reclusão de 7 (sete) a 18 (dezoito)
anos, e multa;
II – morte, a pena é de reclusão de 20
(vinte) a 30 (trinta) anos, e multa.
Inicialmente, vale ressaltar que a lei penal exige que os
resultados previstos no mencionado § 3º sejam provenientes da
violência praticada pelo agente, entendida, no sentido do texto,
como a vis corporalis, ou seja, a violência física empregada contra a
pessoa. Se, por exemplo, durante a execução de um crime de
roubo, cometido com o emprego de grave ameaça, a vítima vier a
sofrer um colapso cardíaco, falecendo durante a ação criminosa, o
agente não poderá responder pelo fato a título de latrocínio, porque
o resultado morte da vítima não foi decorrente da violência por ele
empreendida, mas, sim, de sua grave ameaça. Poderá, se for o
caso, ser responsabilizado pelo roubo (sem a qualificadora do
resultado morte), além do homicídio (doloso ou culposo, se o agente
conhecia o problema cardíaco da vítima, variando de acordo com o
seu elemento subjetivo).
Os resultados qualificadores especificados pelos incisos I e II
do § 3º do art. 157 do Código Penal, com a nova redação que lhe foi
dada pela Lei nº 13.654, de 23 de abril de 2018, são: a) lesão
corporal de natureza grave (aqui compreendidos os §§ 1º e 2º do
art. 129 do Código Penal); b) morte (latrocínio). Esses resultados
podem ser imputados a título de dolo ou culpa, isto é, durante a
prática do roubo, o agente pode ter querido causar, efetivamente,
lesões graves na vítima, ou mesmo a sua morte, para fins de
subtração de seus bens, ou tais resultados podem ter ocorrido
durante a empresa criminosa sem que fosse intenção do agente
produzi-los, mas causados culposamente. Assim, segundo a
posição majoritária da doutrina, os incisos I e II do § 3º do art. 157
do Código Penal cuidam de crimes qualificados pelo resultado
(lesão corporal grave ou morte) que poderão ser imputados ao
agente a título de dolo ou culpa. Importante frisar, ainda, que em
hipótese alguma o agente poderá ser responsabilizado pela
ocorrência de um resultado que não lhe era previsível, não se
aceitando, pois, o raciocínio da chamada responsabilidade penal
objetiva, conhecida, ainda, por responsabilidade penal sem culpa ou
pelo resultado, uma vez que o art. 19 do estatuto repressivo
determina expressamente que: Pelo resultado que agrava
especialmente a pena, só responde o agente que o houver causado
ao menos culposamente.
As qualificadoras acima mencionadas – lesão corporal grave e
a morte – são aplicadas em ambas as espécies de roubo, vale dizer,
o roubo próprio, bem como o roubo impróprio. O importante, como já
registramos anteriormente, é que tenha sido consequência da
violência utilizada.
A morte, que qualifica o roubo, faz surgir aquilo que
doutrinariamente é reconhecido por latrocínio, embora o Código
Penal não utilize essa rubrica. Assim, se durante a prática do roubo,
em virtude da violência empreendida pelo agente, advier a morte –
dolosa ou mesmo culposa – da vítima, poderemos iniciar o
raciocínio correspondente ao crime de latrocínio, consumado ou
tentado, conforme veremos mais adiante.
Em sentido contrário, aduzindo que o resultado morte somente
pode ser atribuído ao agente a título de culpa, Israel Domingos
Jorio, em monografia específica sobre o tema, traçando um paralelo
entre diversos delitos que preveem a morte como qualificadora do
crime, preleciona:
“Se o agente quis o estupro e quis o homicídio, não há razão
para se apenar apenas um dos crimes e desconsiderar o outro.
Praticou dois crimes e deve responder por ambos, um e outro.
A morte, como resultado, não é exaurimento de conduta dolosa
tendente ao estupro; é resultado provocado por ação
consciente, que preenche todos os requisitos necessários à
tipificação do crime de homicídio. Não se trata, pois, de uma
ação, com uma única finalidade, e dois resultados diversos,
mas, sim, de duas ações, duas finalidades e dois resultados
perseguidos pelo agente. Não se diga que esta lógica não se
aplica aos crimes patrimoniais. Não há, para tanto, qualquer
explicação razoável.”26
Ao latrocínio e ao roubo qualificado pelas lesões corporais de
natureza grave não se aplicam as causas de aumento de pena
previstas no § 2º do art. 157 do Código Penal, em virtude de sua
localização topográfica. Imagine-se, por exemplo, que a vítima
esteja a serviço de transporte de valores (inciso III), quando é
interceptada por dois agentes (inciso II) que, munidos com armas de
fogo (inciso I do § 2º-A),contra ela atiram querendo a sua morte,
para que possam realizar a subtração. Por intermédio desse
exemplo, podemos perceber a ocorrência de três causas de
aumento de pena. No entanto, nenhuma delas poderá ser aplicada
ao latrocínio, a título de majorantes, uma vez que, se fosse intenção
da lei penal aplicá-las às modalidades qualificadas, deveriam estar
localizadas posteriormente ao § 3º do art. 157 do Código Penal.
Assim, conclui-se, as majorantes previstas nos §§ 2º e 2º-A do
mesmo artigo somente são aplicadas àquilo que as antecede, isto é,
às duas modalidades de roubo simples, seja ele próprio (caput) ou
mesmo impróprio (§ 1º).
Tem-se afirmado, com razão, que a morte de qualquer pessoa,
durante a prática do roubo, que não alguém do próprio grupo que
praticava a subtração, caracteriza o latrocínio. Assim, por exemplo,
se integrantes de uma associação criminosa ingressam em uma
agência bancária e matam, imediatamente, o segurança que ali se
encontrava, a fim de praticar a subtração, já se poderá cogitar do
latrocínio, consumado ou tentado, dependendo do caso concreto,
bem como da posição que se adote, conforme será explicado mais
adiante. No entanto, conforme esclarece Weber Martins Batista:
“Não se pode falar em latrocínio, se é um dos agentes que
morre, ferido por tiro disparado pela vítima, pela polícia, ou por
qualquer pessoa que veio em socorro desta, pois tal morte não
foi praticada por qualquer dos sujeitos ativos do crime. Mas se
acontecer – hipótese que não é incomum nos roubos à mão
armada – que um dos agentes dispare arma na direção de
terceiro e atinja e mate um companheiro, o fato caracteriza o
latrocínio.”27
Pode ocorrer, ainda, que, durante a prática do roubo, várias
pessoas sejam mortas. Nesse caso, haveria crime único (latrocínio),
devendo as várias mortes ser consideradas tão somente no
momento de aplicação da pena-base, ou se poderia, no caso,
cogitar de concurso de crimes, considerando-se cada morte como
uma infração penal (consumada ou tentada)?
O Superior Tribunal de Justiça, modificando sua posição
anterior, que entendia pelo crime único (REsp 15.701/SP), passou a
se posicionar no sentido de que:
“Nos crimes de latrocínio, a prática de uma subtração, com dois
resultados morte, é hipótese de reconhecimento do concurso
formal impróprio. Precedentes” (STJ, AgRg na RvCr 4.109/ MT,
Rel. Min. Sebastião Reis Junior, 6ª T., DJe 27/02/2018).
Portanto, quando estivermos diante de várias subtrações com
vários resultados morte, nada impede o raciocínio do concurso de
crimes. Assim, imagine-se que, durante a prática de um roubo em
um prédio de apartamentos, os agentes acabem subtraindo os bens
de várias pessoas, causando a morte de algumas delas. Poderá se
cogitar, in casu, de concurso de latrocínios, com as discussões que
lhe são pertinentes, que girarão em torno da natureza desse
concurso de crimes (concurso material, concurso formal, ou, ainda,
o crime continuado).
O latrocínio encontra-se previsto no rol das infrações penais
consideradas hediondas, conforme se verifica pela leitura da alínea
c do inciso II do art. 1º da Lei nº 8.072/1990, com a nova redação
que lhe foi conferida pela Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de
2019.
Entendemos que não será possível a aplicação ao delito
tipificado no art. 157, § 3º, II, do Código Penal, da causa especial de
aumento de pena prevista no art. 9º da Lei nº 8.072/90, em virtude
da revogação expressa do art. 224 do Código Penal pela Lei nº
12.015, de 7 de agosto de 2009.
Com a devida vênia das posições em contrário, não podemos
raciocinar no sentido de que as hipóteses elencadas pelo art. 224 do
Código Penal, às quais se remetia o art. 9º da Lei nº 8.072/90, foram
deslocadas para o art. 217-A do Código Penal, que prevê o delito de
estupro de vulnerável.
Não podemos vagar pelo Código Penal à procura de tipos que
se amoldem a remissões já revogadas. Caso seja do interesse do
legislador manter o aumento de pena para o delito tipificado no art.
157, § 3º, II, do Código Penal, deverá fazê-lo expressamente.
Nesse sentido, trazemos à colação os ensinamentos de Luiz
Carlos dos Santos Gonçalves, que esclarece:
“O art. 9º da Lei dos Crimes Hediondos foi tacitamente
revogado, vez que revogado expressamente o art. 224 do
Código Penal, ao qual ele se referia. É certo que há
semelhança entre a situação de vulnerabilidade, mencionada
nos arts. 217-A e 218 e aquelas descritas no revogado art. 224
do Código, mas não se assemelha possível o emprego da
analogia no caso – pois seria in malam partem. O necessário
aumento da pena do roubo, da extorsão e da extorsão mediante
sequestro, praticados contra vítimas menores de 14 anos, com
doença mental ou que não poderiam oferecer resistência, fica,
assim, prejudicado. É a dificuldade da técnica do ‘tipo remetido’:
revogado o artigo mencionado, fica sem aplicação o que o
menciona.”28
Compete ao juízo singular o julgamento dos fatos que envolvam
o crime de latrocínio. Mesmo que o agente tenha dolosamente
causado a morte da vítima para fim de subtração de seus bens, não
poderá ser submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri, a não ser,
por exemplo, na hipótese de conexão com um caso que deva ser
submetido a julgamento pelo Tribunal popular, haja vista que a este
compete julgar os crimes dolosos contra a vida, sendo que, no tipo
penal que prevê o latrocínio, o bem jurídico por ele precipuamente
protegido é o patrimônio, em face de sua inserção no Título II do
Código Penal (Dos Crimes contra o Patrimônio).
Faremos, a seguir, o raciocínio correspondente à consumação e
à possibilidade de tentativa no crime de latrocínio.
1.10.1
Consumação e tentativa no delito de latrocínio
Diz-se complexo o crime quando numa mesma figura típica há
a fusão de dois ou mais tipos penais. É o caso, por exemplo, do
delito de roubo, em que à subtração da coisa alheia móvel também
é adicionada a violência à pessoa ou a grave ameaça. Nesse tipo,
vislumbramos pelo menos três figuras que, de forma isolada, são
previstas pela lei penal: a subtração (art. 155), a violência à pessoa
(art. 129) e a ameaça (art. 147).
Nesse caso, consuma-se o crime quando o agente preenche o
tipo penal levando a efeito as condutas que, unidas, formam a
unidade complexa. Tomando, ainda, o exemplo do delito de roubo,
somente poderemos concluir pela sua consumação quando, aliada à
violência ou à grave ameaça, o agente tiver conseguido subtrair a
coisa alheia móvel. Caso contrário, isto é, embora o agente tenha
feito uso de violência ou grave ameaça, se não obtiver sucesso no
que diz respeito à subtração da coisa, o delito permanecerá tão
somente tentado.
Pela definição fornecida, podemos concluir, também, que o
latrocínio, sendo uma modalidade qualificada do delito de roubo (art.
157, § 3º, II, do CP), é um crime complexo. Poderíamos afirmar que
esse crime permaneceria na fase do conatus se não fossem
preenchidos todos os elementos que o compõem, vale dizer, a
subtração da coisa alheia móvel, mais o resultado morte. Quanto a
essa infração penal, especificamente, a discussão não é tão simples
assim. Se temos um homicídio consumado e uma subtração
consumada, não hesitamos em afirmar que estamos diante de um
latrocínio consumado. Da mesma forma, se temos um homicídio
tentado e uma subtração tentada, também somos convencidos de
que houve um latrocínio tentado. Agora, se há o homicídio
consumado e a subtração tentada, ou se a subtração foi consumada
e o homicídio tentado, as discussões doutrinárias e jurisprudenciais
começam a surgir. Faremos, então, a análise das duas últimas
situações isoladamente.
•
Subtração consumada e homicídio tentado – Para
Hungria,29 haveria aqui uma tentativa de homicídio
qualificado (art. 121, § 2º, V), pois que, segundo o
renomado autor:
“Se se admitisse tentativa de latrocínio quando se consuma o
homicídio (crime-meio) e é apenas tentada a subtração
patrimonial (crime-fim) ou, ao contrário, quando é tentado o
homicídio, consumando-se a subtração, o agente incorreria, no
primeiro caso, em pena inferior à do homicídio simples (!) e, no
segundo, em pena superior à da tentativa de homicídio
qualificado pela conexão de meio a fim com outro crime (art.
121, § 2º, V), ainda que este ‘outro crime’ seja de muito maior
gravidade que o roubo. A solução que sugiro, nas hipóteses
formuladas, como menos subversiva dos princípios é a
seguinte: o agente responderá, e tão somente, por consumado
ou tentado o homicídio qualificado (121, § 2º, V), dada a relação
de meio e fim entre o homicídio consumado e a tentativa de
crime patrimonial ou entre homicídio tentado e a consumada
lesão patrimonial.”30
Fragoso31 e Noronha,32 analisando a mesma situação,
discordando do posicionamento de Hungria, entendem que,
havendo subtração consumada e homicídio tentado, resolve-se pela
tentativa de latrocínio, posição à qual nos filiamos.
•
Homicídio consumado e subtração tentada – Aqui,
tentando elucidar o problema, surgiram, pelo menos, três
correntes:
A primeira delas, na esteira de Frederico Marques, citado por
Damásio,33 entende que houve latrocínio tentado em virtude de ser
um crime complexo.
Assim, já decidiu o TJ-RJ:
“Dada a unidade de tipo, como crime complexo, não se vê
razão para não ser aplicado ao latrocínio o princípio do art. 12,
parágrafo único, do Código Penal (atual 14), fazendo incidir
sobre a pena correspondente ao crime consumado a diminuição
própria da tentativa.”34
Na segunda posição, encabeçada por Hungria, conclui-se que,
no caso de subtração tentada e homicídio consumado, deve o
agente responder tão somente por homicídio qualificado, ficando
afastada a punição pela tentativa de subtração, pois, segundo o
citado autor:
“A única solução que nos parece razoável é a de, sem
desrespeito à unidade jurídica do crime, aplicar exclusivamente
a pena mais grave, considerados os crimes separadamente,
ficando absorvida ou abstraída a pena menos grave. Tome-se,
por exemplo, o crime de latrocínio (art. 157, § 3º, in fine35), e
suponha-se que o homicídio (crime-meio) seja apenas tentado,
enquanto a subtração da res aliena (crime-fim) se consuma:
deve ser aplicada tão somente a pena de tentativa de homicídio
qualificado (art. 121, § 2º, V), considerando-se absorvida por ela
a do crime patrimonial. Se, ao contrário, o homicídio se
consuma, ficando apenas tentado o crime patrimonial, a pena
única a aplicar-se é a do homicídio qualificado consumado.”36
Finalmente, hoje, como terceira e majoritária posição, temos
aquela adotada pelo STF, o qual deixou transparecer seu
entendimento através da Súmula nº 610, assim redigida:
Súmula nº 610. Há crime de
latrocínio, quando o homicídio se
consuma, ainda que não realize o
agente a subtração de bens da vítima.
Para essa corrente, basta que tenha ocorrido o resultado morte
para que se possa falar em latrocínio consumado, mesmo que o
agente não consiga levar a efeito a subtração patrimonial.
Por entendermos que, para a consumação de um crime
complexo, é preciso que se verifiquem todos os elementos que
integram o tipo, ousamos discordar das posições de Hungria e do
STF e nos filiamos à posição de Frederico Marques, concluindo que,
havendo homicídio consumado e subtração tentada, deve o agente
responder por tentativa de latrocínio, e não por homicídio qualificado
ou mesmo por latrocínio consumado.
A posição assumida por nossa Corte Maior agride,
frontalmente, a determinação contida no inciso I do art. 14 do
Código Penal, que diz que o crime é consumado quando nele se
reúnem todos os elementos de sua definição legal. A lei penal é
clara ao exigir a presença de todos os elementos que compõem os
tipos penais, para efeito de reconhecimento da consumação, exceto
nos crimes formais, também reconhecidos por crimes de
consumação antecipada (de resultado cortado), justamente porque
a sua consumação ocorre independentemente da produção
naturalística do resultado, considerado como um mero exaurimento
do crime, como acontece com o delito extorsão mediante sequestro,
tipificado no art. 159 do Código Penal, em que a simples privação da
liberdade da vítima já permite o raciocínio da consumação,
independentemente da obtenção da vantagem indevida pelo agente.
No latrocínio, ao contrário, estamos diante de um crime
material, vale dizer, de conduta e produção naturalística de
resultado. Para efeitos de reconhecimento de sua consumação, há
necessidade inafastável do preenchimento das figuras que, juntas,
formam a cadeia complexa. Assim, para que se configure o
latrocínio (crime complexo), é preciso que ocorra a subtração, além
da morte da vítima, ou mesmo de terceiro que se encontre numa
relação de contexto com a prática da subtração violenta.
Dessa forma, a posição assumida pelo STF, que se contenta
com a morte da vítima, mesmo que não realize o agente a subtração
de seus bens, para efeitos de reconhecimento do latrocínio
consumado, é completamente contra legem, ofendendo a
determinação contida no mencionado art. 14, I, do Código Penal.
Por isso, quando algum dos elementos que se configuram como
infrações penais autônomas, que formam o crime de latrocínio, não
estiver presente (seja a subtração dos bens ou a morte da vítima), a
conclusão deverá ser, fatalmente, pela tentativa.
1.10.2
Aplicação do art. 9º da Lei nº 8.072/90 ao delito de
latrocínio
Não será possível a aplicação da causa especial de aumento
de pena, prevista pelo art. 9º da Lei nº 8.072/90, ao delito de
latrocínio, em virtude da revogação expressa do art. 224 do Código
Penal pela Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009.
O Superior Tribunal de Justiça, analisando o tema, já concluiu
que “com a superveniência da Lei nº 12.015/2009, foi revogada a
majorante prevista no art. 9º da Lei dos Crimes Hediondos, não
sendo mais admissível sua aplicação para fatos posteriores à sua
edição” (REsp 1.102.005-SC, Rel. Min. Felix Fischer, julg.
29/9/2009).
1.11
Pena e ação penal
Ao roubo simples, seja ele próprio ou impróprio, é cominada
uma pena de reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos, e multa.
Para as modalidades qualificadas, se da violência resultar lesão
corporal grave, a pena é de reclusão de 7 (sete) a 18 (dezoito) anos,
e multa; se resulta morte, a pena é de reclusão de 20 (vinte) a 30
(trinta) anos, e multa.
A ação penal é de iniciativa pública incondicionada.
1.12
1.12.1
Destaques
Vítima que se coloca em condições que a impossibilitam de
oferecer resistência
A última parte do art. 157 do Código Penal faz menção à
chamada violência imprópria, quando o agente subtrai a coisa alheia
móvel, depois de haver, por qualquer meio, reduzido à
impossibilidade de resistência da vítima.
Percebe-se, portanto, que é o próprio agente que coloca a
vítima em situação de impossibilidade de resistência, a fim de
facilitar a subtração, a exemplo do que ocorre nas hipóteses do
golpe chamado popularmente de “Boa noite, Cinderela”, no qual,
normalmente, é colocado um sonífero na bebida da vítima, a fim de
que ela caia em sono profundo, permitindo que seus bens sejam
facilmente subtraídos pelo agente.
Suponha-se,
agora,
que
tenha
a
própria
vítima,
voluntariamente, se colocado nesse estado de impossibilidade de
resistência, em decorrência, por exemplo, da quantidade excessiva
de bebida alcoólica por ela ingerida. Se o agente, percebendo a
situação em que ela se encontrava, dela subtrai seus pertences,
deveria ser responsabilizado pelo delito de roubo com violência
imprópria? A resposta só pode ser negativa, pois o próprio agente
deve se valer de recursos para colocar a vítima em situação que
impossibilite sua resistência. No caso, como a própria vítima se
colocou nesse estado, estaríamos diante de um crime de furto,
podendo ou não ser qualificado, conforme se viu anteriormente
quando do estudo do tipo penal do art. 155 do diploma repressivo.
1.12.2
Violência ou grave ameaça para escapar, sem a intenção
de levar a coisa consigo
Vimos que, no roubo impróprio, a violência contra a pessoa ou
a grave ameaça é levada a efeito pelo agente a fim de assegurar a
impunidade do crime ou a detenção da coisa. Assim, o agente havia
começado a praticar um delito de furto quando, por exemplo, é
descoberto e, querendo prosseguir no seu propósito de subtrair
coisa alheia, agride a vítima, almejando assegurar a detenção da
coisa que estava sendo furtada. Nesse caso, não há dúvida de que
estaremos diante da hipótese de roubo impróprio.
Entretanto, imagine-se a hipótese daquele que, no interior de
uma residência, quando agia com animus furandi, depois de ser
descoberto, querendo tão somente escapar, deixa para trás os
objetos que por ele já haviam sido selecionados, agride a vítima
com a finalidade de fugir, almejando evitar sua prisão em flagrante.
Nesse caso, pergunta-se: Estaríamos diante de um roubo com
violência imprópria? A resposta só pode ser negativa. O que houve,
na verdade, foi uma tentativa de furto, seguida de delito de lesão
corporal (leve, grave ou gravíssima, dependendo do caso). O fato de
abandonar a coisa que seria furtada descaracteriza o roubo
impróprio, passando-se a adotar o raciocínio correspondente ao
furto, seguido da infração penal que lhe foi posterior.
Se, no caso em exame, em vez da vítima, o agente tivesse sido
surpreendido pela autoridade policial que lhe deu voz de prisão e,
agindo única e exclusivamente com a vontade de fugir, não mais
querendo realizar a subtração, viesse a agredi-la, opondo-se,
violentamente à execução do ato legal, estaríamos diante de uma
tentativa de furto, além do fato de também poder ser o agente
responsabilizado pelo crime de resistência (art. 329 do CP), bem
como pelo de lesões corporais (leves, graves ou gravíssimas,
conforme determina o § 2º do art. 329 do CP).
1.12.3
Crime impossível no roubo – Impropriedade do objeto
(vítima que nada possuía ou violência que é empregada
contra morto)
Discute-se, doutrinária e jurisprudencialmente, sobre a
possibilidade de aplicação do raciocínio correspondente ao crime
impossível no delito de roubo.
Cezar Roberto Bitencourt, posicionando-se contrariamente,
justifica:
“A inexistência de objeto de valor em poder da vítima não
descaracteriza a figura típica prevista no art. 157 do Código
Penal, porquanto o roubo é modalidade de crime complexo,
cuja primeira ação – a violência ou grave ameaça – constitui
início de execução.”37
Entendemos, ao contrário do eminente professor gaúcho, que a
ausência de bens em poder da vítima permite a conclusão pelo
crime impossível, diante, por exemplo, da absoluta impropriedade
do objeto. Isso porque, mesmo considerando a natureza complexa
do crime de roubo, não podemos deixar de concluir ser o patrimônio
o bem precipuamente protegido por aquela figura típica. O roubo,
como é cediço, está inserido no Título do Código Penal
correspondente aos crimes contra o patrimônio e, se não há
patrimônio que possa ser subtraído, como se pode insistir na
ocorrência do roubo, mesmo tentado?
Para nós, o agente deverá ser responsabilizado pelos atos de
violência já cometidos, afastando-se, contudo, a possibilidade de
tentativa de roubo, em face da absoluta impropriedade do objeto.
Da mesma forma, poderíamos aplicar o raciocínio do crime
impossível na hipótese em que o agente viesse a agredir
violentamente uma pessoa, com a finalidade de fazê-la desmaiar, a
fim de subtrair seus pertences quando, na verdade, a vítima havia
sofrido um colapso cardíaco, e já se encontrava morta quando do
início das agressões. Se o agente levou a efeito a subtração, deverá
responder pelo crime de furto, e não de roubo, haja vista que para
efeitos de reconhecimento desta última infração penal, a violência
deve ser exercida contra uma pessoa, o que, nesse caso, não
ocorreu, uma vez que o cadáver já não goza mais desse status.
1.12.4
Roubo de uso
Existe previsão expressa no art. 244 do Código Penal espanhol
para o chamado roubo de uso, quando o agente subtrai veículo a
motor ou ciclomotor cujo valor exceda a cinquenta mil pesetas, sem
ânimo de apropriação, dizendo o tópico 3 do mesmo artigo que, se
não levada a efeito a restituição no prazo de 48 horas, o fato será
presumido como roubo comum.
Muñoz Conde explica a decisão do legislador espanhol em
determinar um prazo para que se possa configurar o roubo de uso
dizendo:
“O fato de que não se restitua o veículo dentro das quarenta e
oito horas não implica sempre um ânimo de apropriação. A
situação não modifica essencialmente pelo fato de haver
restituído o veículo as quarenta e nove ou as cinquenta e cinco
horas depois da subtração; sem embargo o legislador, por
razões de política criminal e pelas dificuldades probatórias que
pode ter para se realizar a distinção entre este delito e os de
furto e roubo comuns considerando o elemento subjetivo,
estabeleceu uma barreira objetiva, conforme a qual converte
em furto ou roubo comum o furto e o roubo de uso quando
transcorrer o prazo assinalado, sem necessidade de
demonstrar o ânimo de apropriação. A decisão pode ser
criticável teoricamente, mas explicável por razões políticas.”38
Não existe no Brasil disposição semelhante, pelo menos no que
diz respeito ao crime de roubo, uma vez que, no que tange ao furto,
o art. 241 do Código Penal Militar, como vimos anteriormente,
comina pena de detenção de até seis meses para aquele que
subtrai a coisa para o fim de uso momentâneo e, a seguir, a restitui
ou a repõe, imediatamente, no lugar onde se achava.
Portanto, fica a pergunta: será possível o raciocínio, da mesma
forma que no furto, para o roubo de uso? Não podemos afirmar que
a conduta, em tese configuradora do roubo de uso, seria
completamente atípica, tendo em vista a natureza complexa do
roubo.
Se houver violência na subtração levada a efeito pelo agente,
que não atua com a vontade de ter a coisa para si ou para terceiro,
mas tão somente de usá-la por um período curto de tempo, a fim de
devolvê-la logo em seguida, poderíamos raciocinar com o tipo penal
do art. 146 do diploma repressivo, que prevê o delito de
constrangimento ilegal, pois, ao tomar a coisa à força, o agente
impede que a vítima faça com ela aquilo que a lei permite, vale
dizer, usá-la da forma que melhor lhe aprouver.
Entendendo pela tipicidade do roubo, assim já se posicionou o
STJ:
“É típica a conduta denominada ‘roubo de uso’. De início, cabe
esclarecer que o crime de roubo (art. 157 do CP) é um delito
complexo que possui como objeto jurídico tanto o patrimônio
como a integridade física e a liberdade do indivíduo. Importa
assinalar, também, que o ânimo de apossamento – elementar
do crime de roubo – não implica, tão somente, o aspecto de
definitividade, pois se apossar de algo é ato de tomar posse, de
dominar ou de assenhorar-se do bem subtraído, que pode
trazer o intento de ter o bem para si, de entregar para outrem
ou apenas de utilizá-lo por determinado período. Se assim não
fosse, todos os acusados de delito de roubo, após a prisão,
poderiam afirmar que não pretendiam ter a posse definitiva dos
bens subtraídos para tornar a conduta atípica. Ressalte-se,
ainda, que o STF e o STJ, no que se refere à consumação do
crime de roubo, adotam a teoria da apprehensio, também
denominada de amotio, segundo a qual se considera
consumado o delito no momento em que o agente obtém a
posse da res furtiva, ainda que não seja mansa e pacífica ou
haja perseguição policial, sendo prescindível que o objeto do
crime saia da esfera de vigilância da vítima. Ademais, a grave
ameaça ou a violência empregada para a realização do ato
criminoso não se compatibilizam com a intenção de restituição,
razão pela qual não é possível reconhecer a atipicidade do
delito ‘roubo de uso’” (STJ, REsp 1.323.275/GO, 5ª T., Rel.ª
Min.ª Laurita Vaz, RSTJ, v. 234, p. 567).
1.12.5
Presença de mais de uma causa de aumento de pena
Ocorre com frequência a possibilidade de aplicação de mais de
uma causa de aumento de pena ao delito de roubo. Imagine-se que
os agentes, em concurso de pessoas, sabendo que a vítima estava
a serviço de transporte de valores, praticam o delito de roubo, a
mantendo em seu poder, restringindo sua liberdade. Nesse
exemplo, podemos visualizar três majorantes, elencadas nos incisos
II, III e V, do § 2º do art. 157 do Código Penal.
Assim, diante dessa situação, qual deveria ser o
comportamento do julgador, sendo condenados os réus, no
momento da aplicação da pena?
Três correntes se formaram a esse respeito.
A primeira delas entende que uma das majorantes servirá para
a aplicação do percentual de aumento previsto pelo § 2º do art. 157,
sendo que as demais deverão ser consideradas para efeitos de
fixação da pena-base, no momento em que serão avaliadas as
chamadas circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do Código
Penal.
A segunda corrente assevera que o número de majorantes
existentes no caso concreto é que permite ao julgador fugir do
aumento mínimo de um terço, caminhando em direção ao aumento
máximo de metade.
A terceira, conforme salienta Guilherme de Souza Nucci, aduz:
“A existência de mais de uma causa de aumento por si só não
significa a elevação necessária da pena. O juiz, se assim
entender, ainda que presentes várias causas de aumento,
poderia aplicar o aumento de apenas um terço, pois o que está
em jogo é a gravidade do meio empregado, e não o número de
incisos do § 2º que estejam configurados.”39
Somos partidários da segunda posição, à qual nos filiamos. Isso
porque o aumento baseado na quantidade de majorantes faz com
que o critério não seja extremamente subjetivo, ficando ao alvedrio
do julgador a sua aplicação, tornando, por outro lado, melhor o
controle sobre a escolha do percentual a ser aplicado.
1.12.6
Concurso de pessoas e crime de associação criminosa
Merece destaque, ainda, a discussão sobre a possibilidade de
os agentes integrantes de uma associação criminosa responderem
também pelo delito de roubo com a causa especial de aumento de
pena relativa ao concurso de pessoas.
Duas correntes se formaram.
A primeira delas, à qual nos filiamos, entende não ser possível
a aplicação da causa especial de aumento de pena relativa ao
concurso de pessoas no roubo se os agentes foram também
condenados pelo delito de associação criminosa, pois, caso
contrário, estaríamos diante do chamado bis in idem, em que um
mesmo fato – concurso de pessoas – estaria incidindo duas vezes
em prejuízo do agente.
Em sentido contrário, afirma Weber Martins Batista, criticando a
posição anterior:
“Esse entendimento, data vênia, não parece ser, nem lógica
nem juridicamente o melhor. Sob este último aspecto, porque a
associação de quatro ou mais pessoas para a prática de
crimes, indeterminadamente, não é imprescindível, não é meio
necessário à prática de roubo em concurso de agentes.
A razão da incriminação daquele crime e o motivo de
agravamento da pena deste último derivam de razões
diferentes. Num caso, busca-se proteger o sentimento de
tranquilidade e segurança das pessoas, bem jurídico que é
atingido mesmo quando não chega a ser praticado nenhum dos
delitos que eram a razão da associação. No outro, no roubo
qualificado pelo concurso de agentes, a punição mais severa
visa a evitar a maior facilidade de cometimento do crime, o que
ocorre quando são dois ou mais os executores. Sendo assim,
porque diversa a vontade do Estado, ao definir os fatos
puníveis, e diferentes os bens jurídicos protegidos e as pessoas
atingidas, não há como falar, na hipótese, em progressão
criminosa ou em crime progressivo, em antefato ou em pós-fato
impuníveis.”40
Apesar da indiscutível autoridade do renomado autor sobre o
tema em estudo, ousamos dele discordar, uma vez que não
conseguimos deixar de visualizar, por mais que tentemos enfocar a
questão sob outros aspectos, que a reunião de pessoas estará
servindo, duas vezes, à punição dos agentes, razão pela qual,
mesmo havendo a possibilidade de, no caso concreto, até
receberem penas menores, não podemos tolerar o bis in idem.
Sendo assim, entendemos melhor a primeira posição, que não
permite o concurso entre o crime de associação criminosa com o
roubo com a pena especialmente agravada pelo concurso de
pessoas.
1.12.7
Diferença entre a tentativa de latrocínio e o roubo
qualificado pelas lesões graves
Os incisos I e II do § 3º do art. 157 do Código Penal, com a
nova redação que lhes foi conferida pela Lei nº 13.654, de 23 de
abril de 2018, dizem que, se da violência resulta:
I – lesão corporal grave, a pena é de
reclusão de 7 (sete) a 18 (dezoito)
anos, e multa;
II – morte, a pena é de reclusão de 20
(vinte) a 30 (trinta) anos, e multa.
Vimos que a morte, que qualifica o roubo, pode ter sido dolosa
ou mesmo culposa, sendo, pois, o latrocínio um crime qualificado
pelo resultado. O agente, assim, pode ter agido com vontade de
causar a morte da vítima, a fim de realizar a subtração de seus
bens. Dessa forma, suponha-se que o agente, querendo causar a
morte da vítima, para que pudesse, logo em seguida, praticar a
subtração patrimonial, venha, com um disparo de arma de fogo, a
atingi-la na cabeça. A vítima, por um milagre, tal como aconteceu
com um famoso ator de televisão, acabou sobrevivendo, tendo o
agente, entretanto, conseguido subtrair os bens a ela pertencentes.
Nesse caso, pergunta-se: Uma vez que, em razão do disparo
recebido na cabeça, a vítima sofreu lesões corporais gravíssimas,
deveria o autor do disparo responder pelo delito de roubo, com a
qualificadora constante do inciso I do § 3º do art. 157 do Código
Penal? Absolutamente não. Isso porque o seu dolo era o de causar
a morte da vítima, com o fim de subtrair-lhe os bens. Nesse caso,
estaremos diante de um delito de latrocínio tentado, conforme
analisado anteriormente, pois, embora tenha conseguido a
subtração (um dos elementos que compõem o crime complexo de
roubo), a morte permaneceu na fase do conatus (tentativa), não
restando, portanto, preenchido esse elemento fundamental à
caracterização do latrocínio consumado, nos termos preconizados
pelo inciso I do art. 14 do Código Penal.
Assim, somente quando o agente tiver o dolo de produzir as
lesões corporais graves na vítima, ou se estas forem produzidas a
título de culpa, para efeitos de subtração patrimonial, é que poderá
ser responsabilizado pelo roubo com a qualificadora contida no
inciso I do § 3º do art. 157 do Código Penal, pois, caso contrário, se
o seu dolo era o de matar para roubar, sobrevivendo a vítima,
mesmo que nela tenha produzido lesões corporais graves, deverá
responder pelo latrocínio tentado.
1.12.8
Arma de fogo sem munição ou impossibilitada de disparar
e exame de potencialidade ofensiva
Embora a questão também seja controvertida, entendemos que
o fundamento da causa especial de aumento de pena relativa ao
emprego de arma de fogo, previsto no inciso I do § 2º-A do art. 157
do Código Penal, reside não somente no maior temor que é
infundido à vítima, mas e principalmente na sua potencialidade
ofensiva, isto é, na maior probabilidade, no maior risco de dano que
o seu possível uso trará para a vida ou a integridade física da vítima.
São precisas, portanto, as lições de Álvaro Mayrink da Costa,
quando afirma:
“Não se admite a causa especial de aumento de pena quando
se trata de arma desmuniciada ou defeituosa, incapaz de
colocar em risco o segundo objeto jurídico de tutela no tipo
complexo de roubo, razão pela qual se exige a apreensão para
a feitura da perícia, não sendo bastante a palavra da vítima que
não é um experto em armas.”41
Conforme deixou entrever o ilustre desembargador do Tribunal
de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, se é exigido que a arma de
fogo possua potencialidade ofensiva para efeitos de reconhecimento
da causa especial de aumento de pena, consequentemente, será
fundamental o exame pericial, a fim de ser constatada tal
potencialidade ofensiva. Caso contrário, não se podendo realizar o
exame, por exemplo, por falta de apreensão da arma de fogo, na
dúvida sobre sua potencialidade ofensiva, esta deverá prevalecer
em benefício do agente, aplicando-se o princípio do in dubio pro reo.
O tema é controvertido, conforme se verifica pelas decisões do
STJ, abaixo colacionadas:
“Prevalece, na Sexta Turma desta Corte, o entendimento de
que, para a incidência da causa de aumento decorrente do
emprego de arma, é indispensável a apreensão do artefato,
com a posterior realização de perícia, a fim de comprovar a
potencialidade lesiva. No caso, tem-se que o artefato não foi
apreendido, bem como não foi comprovada sua potencialidade
lesiva por outros meios de prova, o que enseja a exclusão do
acréscimo decorrente da referida causa de aumento” (STJ, HC
169.151, Proc. 2010/0067210-1, DF, Rel. Min. Og Fernandes, 6a
T., julg. 22/6/2010, DJe 2/8/2010).
Em sentido contrário:
“Mesmo após a superveniência das alterações trazidas, em
24/05/2018, pela Lei nº 13.654/2018, essa Corte Superior, no
que tange à causa de aumento do delito de roubo prevista no
art. 157, § 2º, I, do Código Penal – nos casos em que utilizada
arma de fogo –, manteve o entendimento exarado por sua
Terceira Seção, no sentido de ser desnecessária a apreensão
da arma utilizada no crime e a realização de exame pericial
para atestar a sua potencialidade lesiva, quando presentes
outros elementos probatórios que atestem o seu efetivo
emprego na prática delitiva, uma vez que seu potencial lesivo é
in re ipsa” (STJ, AgRg no HC 473.117/ MS, Rel. Min. Reynaldo
Soares da Fonseca, 5ª T., DJe 14/02/2019).
“O poder vulnerante integra a própria natureza do artefato,
sendo ônus da defesa, caso alegue o contrário, provar tal
evidência. Exegese do art. 156 do CPP” (STJ, AgRg no Ag no
REsp 1.561.836/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, 5ª T., DJe
25/4/2018).
“A jurisprudência desta Corte é firme no sentido de que a
aplicação da majorante pela utilização de arma prescinde da
apreensão e perícia no objeto, quando comprovada sua
utilização por outros meios de prova, como pela palavra da
vítima ou de testemunhas” (STJ, HC 310.880/ SP, Rel. Min.
Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª T., DJe 25/06/2015).
Na verdade, não podemos radicalizar com qualquer uma
dessas posições. Isso porque, como dissemos, o fundamento da
causa de aumento de pena em estudo encontra-se não somente na
capacidade que tem de infundir temor à vítima, facilitando
sobremaneira a prática do delito, mas também sua potencialidade
ofensiva, colocando em risco a saúde ou mesmo a vida da vítima.
Assim, pode ocorrer, por exemplo, em um caso concreto, que
um agente anuncie o roubo e, para tanto, simplesmente mostre a
arma de fogo que se encontrava na sua cintura. Nessa hipótese,
caso a arma de fogo não seja apreendida, não poderemos aplicar a
majorante, pois que não ficou demonstrada sua potencialidade
ofensiva. Poderia, inclusive, ser uma arma de brinquedo, o que não
permitiria a aplicação da majorante. Agora, imagine-se a hipótese
em que, durante o roubo, o agente efetue um disparo, ficando o
projétil alojado em algum lugar (parede, poste, chão etc.), sendo
encontrado e devidamente periciado. In casu, a perícia, juntamente
com a prova testemunhal (ou declarações da vítima), suprirá, com
toda segurança, o exame de potencialidade ofensiva que deveria ter
sido realizado na arma de fogo.
Nem mesmo um disparo que não possa ser devidamente
periciado, conforme exemplo acima, poderá permitir o aumento de
pena. Isso porque, embora a arma de fogo possa ter produzido um
barulho semelhante a um disparo, a munição pode ter sido de
festim, sem possibilidade alguma de produção de dano.
Assim, concluindo, para que possamos aplicar a majorante do
emprego de arma de fogo, há necessidade, inicialmente, de que a
arma seja apreendida e devidamente periciada, comprovando-se
sua potencialidade ofensiva; caso contrário, ou seja, não sendo
apreendida, haverá, ainda, a necessidade de produção de prova
pericial, conjugada com a prova testemunhal (ou declarações da
vítima), a fim de comprovar que a arma de fogo utilizada tinha essa
potencialidade de causar dano.
1.12.9
Possibilidade de arrependimento posterior no roubo
O art. 16 do Código Penal determina, verbis:
Art. 16. Nos crimes cometidos sem
violência ou grave ameaça à pessoa,
reparado o dano ou restituída a coisa,
até o recebimento da denúncia ou da
queixa, por ato voluntário do agente, a
pena será reduzida de um a dois
terços.
Logo na primeira parte do mencionado artigo, percebe-se que
sua aplicação somente será possível quando estivermos diante de
crimes que não sejam cometidos com violência ou grave ameaça à
pessoa, elementos que integram a figura típica do roubo.
Entretanto, haveria, ainda assim, possibilidade de aplicação da
mencionada causa geral de redução de pena ao delito previsto pelo
art. 157 do Código Penal? Entendemos que sim, desde que o roubo
não tenha sido cometido mediante o emprego de violência ou grave
ameaça à pessoa, mas, sim, por meio daquela modalidade especial
de violência, reconhecida como imprópria, contida na parte final do
art. 157 do diploma penal, quando faz menção a qualquer outro
meio capaz de reduzir à impossibilidade de resistência da vítima, a
exemplo do que ocorre naquelas situações em que o agente coloca
sonífero em sua bebida, hipnotiza-a, faz com que se embriague etc.
Nesses casos, como não há emprego real de violência (vis
corporalis) ou mesmo a grave ameaça, entendemos possível a
aplicação da minorante.
1.12.10 Roubo e princípio da insignificância
Existe discussão doutrinária e jurisprudencial sobre a
possibilidade de ser aplicado o raciocínio correspondente ao
princípio da insignificância ao crime de roubo. O roubo encontra-se
no rol dos crimes considerados complexos, uma vez que, para a sua
configuração, há necessidade de que o agente tenha a finalidade de
praticar a subtração patrimonial e, para tanto, atue mediante o
emprego de grave ameaça ou violência.
Assim, entendemos que se todos os elementos que integram a
cadeia complexa do roubo são insignificantes, será possível o
reconhecimento e aplicação do mencionado princípio; ao contrário,
se pelo menos um desses elementos que integram a cadeia
complexa for grave o suficiente, descartado estará o princípio.
A título de exemplo, imagine-se a hipótese em que o agente,
com a finalidade de praticar um delito de roubo no interior de um
veículo coletivo, mediante o emprego de arma de fogo, anuncie o
assalto ao trocador que, temeroso por sua vida, entregue ao agente
todo o valor que trazia consigo, vale dizer, a importância de R$ 5,00
(cinco reais).
À primeira vista, poderíamos considerar o valor de R$ 5,00
(cinco reais) como insignificante o suficiente a fim de possibilitar o
raciocínio do princípio em exame. No entanto, a ameaça exercida
com emprego de arma de fogo é grave, razão pela qual a aplicação
do princípio não seria viável.
Dessa forma, resumindo, se todos os elementos que compõem
a cadeia complexa forem insignificantes, entendemos pela
possibilidade de aplicação do princípio; caso um deles seja grave,
afastado estará a aplicação do princípio da insignificância, devendo
o agente responder pelo roubo (consumado ou tentado).
O Supremo Tribunal Federal, não levando a efeito qualquer
distinção, entende pela impossibilidade de aplicação do princípio da
insignificância ao crime de roubo, conforme se verifica pelo julgado
abaixo colacionado:
“É inviável reconhecer a aplicação do princípio da
insignificância para crimes praticados com violência ou grave
ameaça, incluindo o roubo. Jurisprudência consolidada do
Supremo Tribunal Federal” (RHC 106.360/DF, Recurso
Ordinário em Habeas Corpus, 1ª T., Rel.ª Min.ª Rosa Weber,
DJe 04/10/2012).
1.12.11 Roubo e Código Penal Militar
O crime de roubo também veio previsto no Código Penal Militar
(Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969), conforme se
verifica pela leitura do seu art. 242. Aqui, ao contrário do que ocorre
no Código Penal, existe rubrica expressa, no § 3º do citado artigo,
indicando o delito de latrocínio.
1.12.12 Prioridade de tramitação do processo de latrocínio (art.
157, § 3º, II, do CP)
A Lei nº 13.285, de 10 de maio de 2016, acrescentou o art. 394A ao Código de Processo Penal, determinando, verbis:
Art. 394-A. Os processos que apurem
a prática de crime hediondo terão
prioridade de tramitação em todas as
instâncias.
Assim, de acordo com a alteração trazida pela Lei nº 13.964, de
24 de dezembro de 2019, à Lei nº 8.072/90, terão prioridade de
tramitação os processos referentes aos crimes de:
II – roubo:
a) circunstanciado pela restrição de
liberdade da vítima (art. 157, § 2º,
inciso V);
b) circunstanciado pelo emprego de
arma de fogo (art. 157, § 2º-A, inciso
I) ou pelo emprego de arma de fogo
de uso proibido ou restrito (art. 157, §
2º-B);
c) qualificado pelo resultado lesão
corporal grave ou morte (art. 157, §
3º);
1.12.13 Concorrência das causas de aumento de pena previstas
nos §§ 2º, 2º-A e 2º-B do art. 157 do Código Penal
Pode ocorrer, e não é incomum, que, em um determinado caso
concreto, incidam mais de uma causa de aumento de pena, como já
dissemos anteriormente. Agora, após o advento da Lei nº 13.654, de
23 de abril de 2018, que inseriu o § 2º-A no art. 157 do Código
Penal, e a Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, que inseriu o
§ 2º-B no mesmo artigo, temos a possibilidade de ocorrência
simultânea de várias majorantes, em níveis diferentes de aumento
de pena. Assim, a título de raciocínio, pode ser que os agentes,
agindo em concurso de pessoas, mediante o emprego de arma de
fogo, pratiquem um crime de roubo, mantendo as vítimas em seu
poder, restringindo sua liberdade.
Aqui, como se percebe, temos duas causas especiais de
aumento de pena previstas nos incisos II e V do § 2º, e uma
elencada no inciso I do § 2º-A, todos do art. 157 do Código Penal?
Para as duas primeiras (concurso de pessoas e restrição da
liberdade da vítima) existe um aumento de pena que varia de um
terço até metade. Para a outra (emprego de arma de fogo), o
aumento é de 2/3, de acordo com a nova redação legal. Portanto,
pergunta-se: Qual das duas causas de aumento será aplicada, ou
haverá possibilidade de dois aumentos simultâneos, ou seja, de um
terço até metade e também o de 2/3? Entendemos que, na hipótese
de concorrência de majorantes, somente serão aplicados os
maiores aumentos, no terceiro momento do critério trifásico, previsto
pelo art. 68 do Código Penal.
In casu, considerando o exemplo fornecido, somente haveria o
aumento de 2/3, ficando as demais causas absorvidas por aquela
que possui o maior aumento.
Se houvesse, por exemplo, emprego de arma de fogo de uso
restrito deveria ser aplicado somente o § 2º-B do art. 157 do Código
Penal, fazendo com que as penas previstas no caput do
mencionado
artigo
fossem
duplicadas,
afastando-se,
consequentemente, as demais causas de aumento de pena
presentes no caso concreto.
1.12.14 Roubo com emprego de arma de fogo e extorsão com o
emprego de arma
Por mais uma vez, prevaleceu a desorganização legislativa em
nosso Código Penal. No afã de punir mais severamente o emprego
de arma de fogo no crime de roubo, o legislador fez inserir uma
nova causa de aumento de pena de 2/3, conforme se verifica pela
leitura do § 2º-A do art. 157 do Código Penal.
No entanto, perdendo a visão sistemática do Código Penal,
deixou de prever, ou mesmo de exigir o emprego de arma de fogo
para a aplicação da mesma majorante relativa ao crime de extorsão.
Assim, no que diz respeito ao roubo, somente poderá haver a
aplicação da causa de aumento de pena se a violência ou ameaça
forem levadas a efeito mediante o emprego de arma de fogo. Ao
contrário, na extorsão, haverá possibilidade de aumento, mesmo
que em percentual menor, se o crime for cometido com o emprego
de arma, não se exigindo, in casu, seja ela arma de fogo, ou seja,
importará no reconhecimento da majorante o emprego de qualquer
arma, seja ela própria ou imprópria.
1.12.15 Sequestro relâmpago e vítima mantida como refém
A Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, inseriu o
parágrafo único ao art. 25 do Código Penal, dizendo:
Art. 25. (...) Parágrafo único.
Observados os requisitos previstos no
caput deste artigo, considera-se
também em legítima defesa o agente
de segurança pública que repele
agressão ou risco de agressão a
vítima mantida refém durante a prática
de crimes.
Embora fosse desnecessária essa inclusão, se o agente de
segurança pública agir nessas condições, fazendo cessar a situação
de agressão injusta que já existia tão somente com a privação de
liberdade da vítima, independentemente do fato de esta última estar
sendo agredida ou pelo menos com risco de ser agredida, estará
acobertado pela legítima defesa, resguardando-se, contudo, a
possibilidade de ser analisado o excesso, se houver.
1.12.16 Jurisprudência em teses do Superior Tribunal de Justiça,
edição nº 51: crimes contra o patrimônio – II
1)
Consuma-se o crime de roubo com a inversão da posse do
bem, mediante emprego de violência ou grave ameaça,
2)
3)
4)
5)
6)
7)
8)
ainda que por breve tempo e em seguida a perseguição
imediata ao agente e recuperação da coisa roubada, sendo
prescindível a posse mansa e pacífica ou desvigiada (Tese
julgada sob o rito do art. 543-C do CPC TEMA 916).
O aumento na terceira fase de aplicação da pena no crime
de roubo circunstanciado exige fundamentação concreta,
não sendo suficiente para a sua exasperação a mera
indicação do número de majorantes (Súmula nº 443/STJ).
Há concurso material entre os crimes de roubo e extorsão
quando o agente, após subtrair bens da vítima, mediante
emprego de violência ou grave ameaça, a constrange a
entregar o cartão bancário e a respectiva senha para sacar
dinheiro de sua conta-corrente.
Não é possível reconhecer a continuidade delitiva entre os
crimes de roubo e de extorsão, pois são infrações penais
de espécies diferentes.
O roubo praticado em um mesmo contexto fático, mediante
uma só ação, contra vítimas diferentes, enseja o
reconhecimento do concurso formal de crimes, e não a
ocorrência de crime único.
É prescindível a apreensão e perícia da arma de fogo para
a caracterização de causa de aumento de pena prevista no
art. 157, § 2º, I, do CP, quando evidenciado o seu emprego
por outros meios de prova.
Cabe à defesa o ônus da prova de demonstrar que a arma
empregada para intimidar a vítima é desprovida de
potencial lesivo.
A utilização de arma sem potencialidade lesiva, atestada
por perícia, como forma de intimidar a vítima no delito de
roubo, caracteriza a elementar grave ameaça, porém, não
permite o reconhecimento da majorante de pena.
9)
10)
11)
12)
13)
14)
15)
16)
O crime de porte de arma é absorvido pelo de roubo
quando restar evidenciado o nexo de dependência ou de
subordinação entre as duas condutas e que os delitos
foram praticados em um mesmo contexto fático o que
caracteriza o princípio da consunção.
A gravidade do delito de roubo circunstanciado pelo
concurso de pessoas e/ ou emprego de arma de fogo não
constitui motivação suficiente, por si só, para justificar a
imposição de regime prisional mais gravoso, na medida em
que constituem circunstâncias comuns à espécie.
Não há continuidade delitiva entre roubo e furto, porquanto,
ainda que possam ser considerados delitos do mesmo
gênero, não são da mesma espécie.
Não é possível o reconhecimento da continuidade delitiva
entre os crimes de roubo e latrocínio pois, apesar de se
tratarem de delitos do mesmo gênero, não são da mesma
espécie, devendo incidir a regra do concurso material.
Há tentativa de latrocínio quando a morte da vítima não se
consuma por razões alheias à vontade do agente.
Há crime de latrocínio, quando o homicídio se consuma,
ainda que não realize o agente a subtração de bens da
vítima (Súmula nº 610/STF).
Há concurso formal impróprio no crime de latrocínio nas
hipóteses em que o agente, mediante uma única subtração
patrimonial provoca, com desígnios autônomos, dois ou
mais resultados morte.
Nos crimes de roubo praticados em detrimento da Empresa
Brasileira de Correios e Telégrafos a fixação da
competência é verificada de acordo com a natureza
econômica do serviço prestado na forma de agência
própria, cuja competência é da Justiça Federal; ou na
forma de franquia, explorada por particulares, hipótese em
que a Justiça Estadual terá competência para julgamento
dos processos.
1.13
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: qualquer pessoa, à
exceção do proprietário.
Ressalva: o delito de
subtração de coisa comum,
em que será possível que o
condômino, coerdeiro ou
sócio
subtraia,
violentamente, o bem que
se encontra em poder do
outro que possuía condição
idêntica à sua.
Passivo: qualquer pessoa
(inclusive o mero detentor).
Objeto material
É a coisa alheia móvel,
como a pessoa sobre a
recai a conduta praticada
agente, em face de
pluralidade ofensiva.
Bem(ns)
protegido(s)
bem
qual
pelo
sua
juridicamente
Trata-se
de
um
delito
pluriofensivo, sendo protegidos,
precipuamente, o patrimônio, a
posse e, por conta da sua
natureza complexa, também a
detenção,
não
deixando,
contudo,
mesmo
que
mediatamente, de proteger a
integridade corporal ou a saúde,
a liberdade individual, bem
como a vida.
Elemento subjetivo
»
»
»
O crime somente pode ser
praticado dolosamente, não
havendo previsão legal
para a modalidade culposa.
Além do dolo, a doutrina
majoritária aponta outro
elemento subjetivo, que lhe
é transcendente, chamado
especial fim de agir,
caracterizado na expressão
para si ou para outrem.
No roubo impróprio, o § 1º
do art. 157 do CP ainda
exige
outros
dois
elementos subjetivos, que
dizem respeito à especial
finalidade do agente, que
atua
no
sentido
de
assegurar a impunidade do
crime ou a detenção da
coisa, também para si ou
para outrem.
Modalidades
omissiva
»
»
comissiva
e
O
núcleo
subtrair
pressupõe
um
comportamento comissivo,
vale dizer, um fazer alguma
coisa
no
sentido
de
conseguir a subtração.
Entretanto, se o agente vier
a gozar do status de
garantidor,
poderá
responder pelo delito de
roubo
via
omissão
imprópria.
Consumação e tentativa
»
Súmula 582 do STJ:
Consuma-se o crime de
roubo com a inversão da
posse do bem mediante
emprego de violência ou
grave ameaça, ainda que
por breve tempo e em
seguida à perseguição
imediata ao agente e
recuperação
da
coisa
roubada,
sendo
prescindível
a
posse
mansa e pacífica ou
desvigiada.
»
Tratando-se
de
crime
material, é perfeitamente
admissível a tentativa de
roubo, sendo que, para
nós, ocorrerá quando o
agente
não
conseguir,
mesmo que por curto
espaço de tempo, a posse
tranquila da res furtiva;
para a corrente que
entende não ser necessária
a posse tranquila da coisa
pelo agente, para efeitos
de reconhecimento de
consumação, ainda assim
será possível a tentativa, a
partir do instante em que,
iniciada a execução, não
conseguir retirar o bem da
esfera de disponibilidade
da
vítima,
por
»
»
circunstâncias alheias à
sua vontade.
No que diz respeito ao
roubo impróprio, também
de forma majoritária, a
doutrina posiciona-se, no
sentido de que a sua
consumação
ocorreria
quando do emprego da
violência ou da grave
ameaça,
depois
da
subtração, para assegurar
a impunidade do crime ou a
detenção da coisa.
Não
conseguimos
compreender a mudança
de tratamento para efeitos
de reconhecimento de
momentos diferentes de
consumação nas espécies
de roubo – próprio e
impróprio. Para nós, que
»
entendemos
que
a
consumação
somente
ocorre com a retirada do
bem
da
esfera
de
disponibilidade da vítima e
o ingresso na posse
tranquila do agente, não há
qualquer diferença no fato
de ser a violência anterior
ou posterior à subtração da
coisa.
Em ambas as espécies de
roubo – próprio e impróprio
–, a destruição da coisa,
total ou parcialmente, tal
como acontece no delito de
furto, terá o condão de
consumar a infração penal,
haja vista que a coisa
alheia móvel não poderá
ser restituída da mesma
forma
com
subtraída.
que
foi
2.
EXTORSÃO
Extorsão Art. 158. Constranger
alguém, mediante violência ou grave
ameaça, e com o intuito de obter para
si ou para outrem indevida vantagem
econômica, a fazer, tolerar que se
faça ou deixar de fazer alguma coisa:
Pena – reclusão, de quatro a dez
anos, e multa.
§ 1º Se o crime é cometido por duas
ou mais pessoas, ou com emprego de
arma, aumenta-se a pena de um terço
até metade.
§ 2º Aplica-se à extorsão praticada
mediante violência o disposto no § 3º
do artigo anterior.
§ 3º Se o crime é cometido mediante
a restrição da liberdade da vítima, e
essa condição é necessária para a
obtenção da vantagem econômica, a
pena é de reclusão, de seis a doze
anos, além da multa; se resulta lesão
corporal grave ou morte, aplicam-se
as penas previstas no art. 159, §§ 2º e
3º, respectivamente.
2.1
Introdução
O crime de extorsão muito se parece com o delito de roubo,
havendo, até mesmo, em algumas situações, dificuldade para se
entender por uma ou por outra infração penal.
No entanto, é possível, mediante a análise do tipo penal do art.
158 do diploma repressivo, apontar suas particularidades, que terão
o condão de demonstrar suas diferenças com relação às demais
infrações penais.
Inicialmente, o núcleo do tipo é o verbo constranger, que tem o
significado de obrigar, coagir alguém a fazer, tolerar que se faça ou
deixar de fazer alguma coisa. Esse constrangimento, da mesma
forma que aquele previsto pelo art. 146 do Código Penal, deve ser
exercido com o emprego de violência ou grave ameaça. Além disso,
o agente, segundo o entendimento doutrinário predominante, deve
atuar com uma finalidade especial, que transcende ao seu dolo,
chamada de especial fim de agir, aqui entendida como o intuito de
obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica. Dessa
forma, o agente deve constranger a vítima, impondo-lhe um
comportamento – positivo ou negativo –, determinando que faça,
tolere que se faça, ou mesmo deixe de fazer alguma coisa, a fim de
que, com isso, consiga, para ele ou para outrem, indevida vantagem
econômica, que deve ser entendida em um sentido mais amplo do
que a coisa móvel alheia exigida no delito de roubo. Qualquer
vantagem de natureza econômica, gozando ou não do status de
coisa móvel alheia, ou seja, passível ou não de remoção, poderá se
constituir na finalidade especial com que atua o agente.
Podemos, portanto, destacar os elementos que integram o
delito de extorsão, a saber: a) constrangimento, constituído pela
violência física (vis corporalis) ou grave ameaça (vis compulsiva),
obrigando a vítima a fazer, tolerar que se faça ou a deixar de fazer
alguma coisa; b) especial fim de agir, caracterizado pela finalidade
do agente em obter indevida vantagem econômica, para si ou para
outrem.
Conforme destaca Hungria:
“O meio mais comumente empregado para a extorsão é a grave
ameaça, e, tal como no roubo, não há distinguir se o mal
prometido é, em si mesmo, injusto, ou não. Não há confundir o
crime de ameaça (art. 147) com a ameaça como meio executivo
de crime: no primeiro caso, é necessário que o mal ameaçado
seja injusto; no segundo, é indiferente que possa ser, ou não,
infligido secundum ius. Ainda que se tenha direito à inflição de
um mal, a ameaça de exercê-lo torna-se obviamente contra jus
quando empregada como meio à prática de um crime. É
preciso, porém, não confundir o caso em que o mal é, em si
mesmo, justo e injusta a vantagem pretendida, e o em que,
injusto o mal, é justa a vantagem pretendida: no primeiro, há
extorsão; no segundo, não, apresentando-se o crime de
violento ‘exercício arbitrário das próprias razões’ (art. 345).
Assim, será este o crime cometido, v.g., pelo proprietário que
obtém do ladrão, sob ameaça de morte, a restituição da res
furtiva, já na sua posse tranquila. Existe extorsão ainda quando
o agente, tendo alguém sob coação legítima, lhe exija
vantagem para fazer cessá-la, ex.: o particular que prende um
criminoso em flagrante, exige dele, a seguir, a entrega de
dinheiro para libertá-lo.”42
O constrangimento, seja exercido com o emprego de violência
ou de grave ameaça, deve ter sempre uma finalidade especial: a
obtenção de indevida vantagem econômica, para si ou para outrem.
A ausência dessa finalidade especial descaracteriza o crime de
extorsão, podendo se configurar, por exemplo, no delito de
constrangimento ilegal, tipificado no art. 146 do Código Penal.
Por indevida deve ser entendida aquela vantagem a que o
agente não tinha direito, pois, caso contrário, se fosse devida a
vantagem, poderia, dependendo do caso concreto, haver
desclassificação para o delito de exercício arbitrário das próprias
razões (art. 345 do CP). Além de indevida, a vantagem deve,
obrigatoriamente, ser econômica, conceito muito mais amplo do que
a simples posse ou propriedade, exigida para a configuração do
crime de roubo.
Nesse sentido, esclarece Luiz Regis Prado:
“O elemento normativo obtenção de indevida vantagem
econômica, distintamente do que ocorre com o furto, exige para
sua caracterização o conteúdo econômico, sob pena de
configurar outra infração (art. 146, CP – constrangimento ilegal),
ou de conduzir à atipicidade da conduta. O conceito de
vantagem contido no art. 158 é bem mais amplo que o do furto
e o do roubo, haja vista que abrange não só a coisa móvel
corpórea de outrem, mas todo interesse ou direito patrimonial
alheio, tratando-se, destarte, de crime contra o patrimônio em
geral. O ato juridicamente nulo (art. 145, CC), que nenhum
benefício de ordem econômica possa produzir, não configura a
extorsão (art. 17, CP – crime impossível por impropriedade do
objeto), restando apenas o constrangimento (art. 146, CP).”43
Tal como ocorre no crime de roubo, quando houver o concurso
de duas ou mais pessoas no cometimento da extorsão, a pena será
aumentada de um terço até metade.
Da mesma forma, se da violência praticada na extorsão resultar
lesão corporal grave, a pena é de reclusão, de 7 (sete) a 15 (quinze)
anos, além da multa; se resulta a morte, a reclusão é de 20 (vinte) a
30 (trinta) anos, sem prejuízo da multa, conforme determina o § 2º
do art. 158 do Código Penal.
A extorsão qualificada pela morte encontra-se no rol das
infrações penais consideradas hediondas, conforme se verifica pela
leitura do inciso III do art. 1º, com a nova redação que lhe foi
conferida pela Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019.
2.2
Classificação doutrinária
Crime comum, tanto no que diz respeito ao sujeito ativo quanto
ao sujeito passivo; de dano (embora Fragoso concluísse que “o
crime se consuma com o resultado do constrangimento, isto é, com
a ação ou omissão que a vítima é constrangida a fazer, omitir ou
tolerar que se faça e, por isso, pode-se dizer que, em relação ao
patrimônio, este crime é de perigo”);44 doloso; formal; comissivo
(podendo ser praticado via omissão imprópria, caso o agente goze
do status de garantidor); de forma livre; instantâneo;
monossubjetivo; plurissubsistente; transeunte (ou não transeunte,
dependendo da possibilidade de realização de perícia no caso
concreto).
2.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
A extorsão, da mesma forma que o roubo, é um delito
considerado complexo, ou seja, aquele que é formado pela fusão de
duas ou mais figuras típicas. Assim, percebe-se, pela redação do
tipo penal do art. 158 do Código Penal, que, além do patrimônio
(aqui entendido num sentido mais amplo do que a posse e a
propriedade, pois a lei penal fala em indevida vantagem econômica),
também podemos visualizar a liberdade individual, a integridade
física e psíquica da vítima como os bens por ele juridicamente
protegidos.
Objeto material do crime de extorsão é a pessoa contra a qual
recai o constrangimento.
2.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
Qualquer pessoa pode figurar como sujeito ativo do delito de
extorsão, haja vista que o tipo penal do art. 158 do diploma
repressivo não exige, para a sua prática, qualquer qualidade ou
condição especial.
Da mesma forma, qualquer pessoa pode ser considerada como
sujeito passivo do delito em estudo, podendo, inclusive, numa
mesma infração penal, figurarem, por exemplo, dois sujeitos
passivos diferentes, pois um deles pode sofrer o constrangimento,
enquanto o outro, embora não constrangido, sinta a perda
patrimonial, como na hipótese mencionada por Luiz Regis Prado,
“de alguém que ameaça um filho, a fim de obrigar o pai à prestação
da qual resultará prejuízo para terceiro. Aqui, tem-se pluralidade de
vítimas, não podendo ser excluída nenhuma delas”, embora,
acrescentamos, estejamos diante de crime único, ou seja, o agente,
mesmo com pluralidade de sujeitos passivos, responderá por um
único crime de extorsão.
Também é possível que a pessoa jurídica goze do status de
sujeito passivo do delito sub examen, uma vez que seus sócios, por
exemplo, podem ceder ao constrangimento sofrido, fazendo com
que haja perda no patrimônio daquela.
2.5
Consumação e tentativa
Tendo em vista a sua natureza de crime formal, consuma-se a
extorsão no momento em que o agente pratica a conduta núcleo do
tipo, vale dizer, o verbo constranger, obrigando a vítima, mediante
violência ou grave ameaça, a fazer, a tolerar que se faça ou deixar
de fazer alguma coisa. Nesse exato momento, isto é, quando a
vítima assume um comportamento positivo ou negativo, contra a sua
vontade, impelida que foi pela conduta violenta ou ameaçadora do
agente, tem-se por consumado o delito.
A obtenção da indevida vantagem econômica, prevista no tipo
do art. 158 do Código Penal como o seu especial fim de agir, é
considerada mero exaurimento do crime, tendo repercussões,
entretanto, para efeitos de aplicação da pena, quando da análise
das chamadas circunstâncias judiciais, previstas no caput do art. 59
do mesmo diploma.
Faz-se mister apontar o momento exato em que o crime se
consuma, tendo em vista as suas consequências práticas. Veja-se,
por exemplo, o inciso I do art. 111 do Código Penal, que diz que a
prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a
correr do dia em que o crime se consumou.
Portanto, conforme observado quando do estudo da Parte Geral
do Código Penal, não podemos confundir esses dois momentos
distintos que fazem parte do chamado iter criminis, vale dizer, a
consumação e o exaurimento do crime.
Adotando postura que demonstra a natureza formal do crime de
extorsão, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 96, que
diz:
Súmula nº 96. O crime de extorsão
consuma-se independentemente da
obtenção da vantagem indevida.
Assim, se a consumação ocorre quando a vítima, constrangida
pelo agente, faz, tolera que se faça ou deixa de fazer alguma coisa,
seria possível a tentativa no delito em estudo? A resposta só pode
ser positiva. Mesmo tratando-se de um crime formal, toda vez que
pudermos fracionar o iter criminis será possível o raciocínio
correspondente à tentativa.
Nesse sentido, Luiz Flávio Gomes e Rogério Sanchez Cunha
prelecionam que:
“A tentativa é perfeitamente possível, pois a extorsão não se
perfaz num único ato, apresentando um caminho a ser
percorrido (delito plurissubsistente).”45
2.6
Elemento subjetivo
O crime de extorsão só pode ser praticado dolosamente, não
havendo previsão para a modalidade culposa.
Além do dolo, a doutrina majoritária aponta outro elemento
subjetivo, que lhe é transcendente, chamado especial fim de agir,
caracterizado, in casu, pela finalidade do agente em obter, para si
ou para outrem, indevida vantagem econômica.
Assim, portanto, para aqueles que adotam essa posição, o tipo
subjetivo seria composto pelo dolo de constranger a vítima a fazer, a
tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa, acrescido da
finalidade especial de obter para si ou para outrem indevida
vantagem econômica.
2.7
Modalidades comissiva e omissiva
O núcleo constranger pressupõe um comportamento comissivo
do agente. Entretanto, aquele que se encontra na condição de
garantidor e, dolosamente, nada faz para evitar o constrangimento
sofrido pela vítima, também deverá ser responsabilizado pelo delito
de extorsão, nos moldes preconizados pelo § 2º do art. 13 do
Código Penal, que diz que a omissão é penalmente relevante
quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado.
2.8
Causas de aumento de pena
Ao contrário do § 2º do art. 157 do Código Penal, que contém
cinco causas de aumento de pena, o § 1º do art. 158, do mesmo
diploma legal, somente elegeu duas, vale dizer, o concurso de duas
ou mais pessoas, bem como o emprego de arma no cometimento do
crime, que serão analisadas, isoladamente, a seguir.
2.8.1
Concurso de duas ou mais pessoas no cometimento do
crime
Quando analisamos a qualificadora do concurso de pessoas no
delito de furto, filiamo-nos à corrente que exigia, para efeitos de
reconhecimento da mencionada qualificadora, a presença dos
agentes durante a prática dos atos materiais de execução do delito,
havendo a mesma necessidade para fins de aplicação da majorante
ao roubo, bem como, agora, ao delito de extorsão.
Weber Martins Batista, interpretando e levando a efeito as
distinções entre cometer e concorrer para o crime, afirma:
“O Código Penal não comete a heresia de consagrar, expressa
ou implicitamente, que comete o crime quem de qualquer forma
concorre para ele. O que está na lei, corretamente, é que incide
nas penas cominadas ao crime – expressão com que,
implicitamente, se afirma que não o comete – quem, de
qualquer modo, concorre para ele. Comete o crime – ninguém
afirma de outro modo – quem participa materialmente de sua
execução. Não fora isso, e seria desnecessária a norma de
extensão do art. 29 do Código Penal.”46
Assim, portanto, adotando as lições do renomado professor,
para que seja reconhecido o concurso de pessoas, quer como
qualificadora, como acontece no crime de furto, quer como causa
especial de aumento de pena, nas hipóteses de roubo e extorsão,
será exigida a presença dos agentes durante a prática dos atos
materiais de execução das respectivas infrações penais.
Com relação às demais situações, a exemplo do cômputo de
inimputáveis no reconhecimento do concurso de pessoas, não
identificação de todos os agentes, bem como a exigência de
comprovação do liame subjetivo entre eles, remetemos o leitor às
discussões travadas quando do estudo da qualificadora do concurso
de pessoas no crime de furto, que se aplicam, perfeita e
identicamente, ao delito de extorsão.
2.8.2
Se o crime é cometido com o emprego de arma
A arma, mencionada pela lei penal, tanto pode ser a própria, ou
seja, aquela que tem a função precípua de ataque ou defesa, a
exemplo do que ocorre, como aponta Mirabete, com as “armas de
fogo (revólveres, pistolas, fuzis etc.), as armas brancas (punhais,
estiletes etc.) e os explosivos (bombas, granadas etc.)”47, bem como
aquelas consideradas impróprias, cuja função precípua não se
consubstancia em ataque ou defesa, mas em outra finalidade
qualquer, a exemplo do que ocorre com a faca de cozinha, o taco de
beisebol, as barras de ferro etc.
Ao contrário do que ocorre com o delito de roubo, que passou a
exigir, para efeitos de aplicação da causa especial de aumento de
pena, o efetivo emprego de arma de fogo, a lei penal, por mais uma
vez, quebrou a regra de tratamento que deveria ser igual para
ambas as infrações penais, vale dizer, tanto para o crime de roubo
quanto para o crime de extorsão.
In casu, vale dizer, no delito tipificado no art. 159 do diploma
repressivo, qualquer arma, seja ela própria ou imprópria, se
utilizada, deverá ser considerada para efeito de reconhecimento e
aplicação da majorante; no roubo, ao contrário, somente o emprego
de arma de fogo é que permitirá o aumento da pena no terceiro
momento do critério trifásico.
2.9
Modalidades qualificadas
Diz o § 2º do art. 158 do Código Penal, verbis:
§ 2º Aplica-se à extorsão praticada
mediante violência o disposto no § 3º
do artigo anterior.
Dessa forma, de acordo com a determinação legal, aplica-se ao
delito de extorsão as qualificadoras constantes do crime de roubo,
vale dizer, a lesão corporal grave e a morte.
O mesmo raciocínio desenvolvido quando do estudo do crime
de roubo aplica-se à extorsão. Merece ser registrado, contudo, o
fato de ter o § 2º do art. 158 frisado que os resultados que
qualificam a extorsão somente poderiam ser atribuídos ao agente se
fossem originários da violência utilizada na prática do delito.
Todas as conclusões a que chegamos quando do estudo das
modalidades qualificadas de roubo aplicam-se também à extorsão, à
exceção do fato de que a extorsão qualificada pelo resultado morte
não é reconhecida como latrocínio, sendo esse nomen juris
específico para o roubo com resultado morte.
Entendemos que não será possível a aplicação ao delito
tipificado no art. 158, § 2º, do Código Penal, da causa especial de
aumento de pena prevista no art. 9º da Lei nº 8.072/90, em virtude
da revogação expressa do art. 224 do Código Penal pela Lei nº
12.015, de 7 de agosto de 2009.
Com a devida vênia das posições em contrário, não podemos
raciocinar no sentido de que as hipóteses elencadas pelo art. 224 do
Código Penal, ao qual se remetia o art. 9º da Lei nº 8.072/90, foram
deslocadas para o art. 217-A do Código Penal, que prevê o delito de
estupro de vulnerável.
Não podemos vagar pelo Código Penal a procura de tipos que
se amoldem a remissões já revogadas. Caso seja do interesse do
legislador manter o aumento de pena para o delito tipificado no art.
158, § 2º, do Código Penal, deverá fazê-lo expressamente.
Nesse sentido, trazemos à colação os ensinamentos de Luiz
Carlos dos Santos Gonçalves, que esclarece:
“O art. 9º da Lei dos Crimes Hediondos foi tacitamente
revogado, vez que revogado expressamente o art. 224 do
Código Penal, ao qual ele se referia. É certo que há
semelhança entre a situação de vulnerabilidade, mencionada
nos arts. 217-A e 218 e aquelas descritas no revogado art. 224
do Código, mas não se assemelha possível o emprego da
analogia no caso – pois seria in malam partem. O necessário
aumento da pena do roubo, da extorsão e da extorsão mediante
sequestro, praticados contra vítimas menores de 14 anos, com
doença mental ou que não poderiam oferecer resistência, fica,
assim, prejudicado. É a dificuldade da técnica do ‘tipo remetido’:
revogado o artigo mencionado, fica sem aplicação o que o
menciona.”48
No mesmo sentido, prelecionam Luiz Flávio Gomes e Rogério
Sanches Cunha que o art. 224 do Código Penal foi revogado pela
Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009, “eliminando-se, tacitamente,
também a majorante da Lei dos Crimes Hediondos (art. 9º),
cuidando-se de alteração benéfica que deve retroagir para alcançar
os fatos passados.”49
2.10
Sequestro relâmpago
A Lei nº 11.923, de 17 de abril de 2009, inclui o § 3º ao art. 158
do Código Penal, criando, assim, mais uma modalidade do chamado
sequestro relâmpago, além daquela prevista pelo inciso V do § 2º do
art. 157 do mesmo diploma repressivo.
Em virtude da nova disposição legal temos que, ab initio, levar a
efeito a distinção entre o sequestro relâmpago, que configura o
delito de extorsão, e aquele que se consubstancia em crime de
roubo.
Infelizmente, a lei penal cedeu à pressão de parte de nossos
doutrinadores que, ainda seguindo as orientações de Hungria,
conjugadas com os ensinamentos de Luigi Conti, afirmava que a
diferença entre os delitos de roubo e extorsão residiria,
fundamentalmente, no fato de que, naquele, o agente podia, por si
mesmo, praticar a subtração, sem que fosse preciso a colaboração
da vítima; na extorsão, ao contrário, a consumação somente seria
possível se a vítima cooperasse com o agente, entregando-lhe a
vantagem indevida.
Assim, além de levarem a efeito a diferença entre a contrectatio
e a traditio, procuram distinguir os delitos com base no critério da
“prescindibilidade ou não do comportamento da vítima”, afirmando
que se a obtenção da vantagem patrimonial fosse impossível sem a
sua colaboração, estaríamos diante de um crime de extorsão; por
outro lado, ou seja, se mesmo sem a colaboração da vítima fosse
possível o sucesso da empresa criminosa, o crime seria o de roubo.
A fim de distinguir essas duas situações, tem-se exemplificado
com os crimes praticados contra vítimas que se encontram em
caixas eletrônicos. Assim, tendo em vista que, para que o agente
tenha sucesso na obtenção da vantagem indevida, a vítima,
obrigatoriamente, deverá efetuar o saque, mediante a apresentação
de sua senha, o fato, para a maioria de nossos doutrinadores,
deveria ser entendido como extorsão.
Infelizmente, não se tem considerado a possibilidade de
decisão da vítima, ou seja, não se tem levado em consideração se a
vítima, na situação em que se encontrava, tinha ou não um tempo
razoável, ou mesmo se podia resistir ao constrangimento que era
praticado pelo agente. Weber Martins Batista analisando, com
precisão, a distinção entre os crimes de roubo e extorsão,
preleciona que:
“Se o agente ameaça a vítima ou pratica violência contra ela,
visando a obter a coisa na hora, há roubo, sendo desimportante
para caracterização do fato que ele tire o objeto da vítima ou
este lhe seja dado por ela. É que, nesta última hipótese, não se
pode dizer que a vítima agiu, pois, estando totalmente
submetida ao agente, não passou de um instrumento de sua
vontade. Só se pode falar em extorsão, por outro lado, quando
o mal prometido é futuro e futura a obtenção da vantagem
pretendida, porque neste caso a vítima, embora ameaçada, não
fica totalmente a mercê do agente e, portanto, participa, ainda
que com a vontade viciada, do ato de obtenção do bem.”50
A Lei nº 11.923, de 17 de abril de 2009, como dissemos, criou
outra modalidade qualificada de extorsão, acrescentando o § 3º do
art. 158 do Código Penal, tipificando o delito de sequestro
relâmpago, mesmo que não tenha consignado, expressamente,
esse nomen juris como rubrica51 ao mencionado parágrafo, dizendo,
verbis:
§ 3º Se o crime é cometido mediante
a restrição da liberdade da vítima, e
essa condição é necessária para a
obtenção da vantagem econômica, a
pena é de reclusão, de 6 (seis) a 12
(doze) anos, além da multa; se resulta
lesão corporal grave ou morte,
aplicam-se as penas previstas no art.
159, §§ 2º e 3º, respectivamente.
Dessa forma, para que se configure o delito em estudo, há
necessidade de que a vítima tenha sido privada de sua liberdade, e
essa condição seja necessária para obtenção da vantagem
econômica.
Essa privação da liberdade deverá ocorrer por tempo razoável,
permitindo, assim, que se reconheça que a vítima ficou limitada em
seu direito de ir, vir ou mesmo permanecer, em virtude do
comportamento levado a efeito pelo agente.
Por outro lado, a privação da liberdade da vítima deve ser um
meio, ou seja, uma condição necessária para que o agente tenha
sucesso na obtenção da vantagem econômica. Citam-se como
exemplos dessa hipótese quando a vítima é obrigada a acompanhar
o agente a um caixa eletrônico a fim de efetuar o saque de toda a
importância disponível em sua conta bancária, ou mesmo aquele
que obriga a vítima a dirigir-se até a sua residência, a fim de
entregar-lhe todas as joias existentes no seu cofre, que somente
poderia ser aberto mediante a apresentação das digitais do seu
proprietário.
Faz-se mister ressaltar que, para nós, os exemplos acima se
configurariam em delito de roubo, com a causa especial de aumento
de pena prevista no inciso V do § 2º do art. 157 do Código Penal,
uma vez que a vítima não tinha liberdade de escolha. No entanto,
para a maioria de nossa doutrina, seria um exemplo de extorsão,
com restrição de liberdade da vítima.
De acordo com nosso posicionamento, minoritário por sinal,
dificilmente seria aplicado o novo parágrafo do art. 158 do Código
Penal, pois a vítima, privada de sua liberdade mediante o
constrangimento praticado pelo agente, não teria como deixar de
anuir à exigência da entrega, por exemplo, da indevida vantagem
econômica.
Ocorreria, por outro lado, o sequestro relâmpago, característico
do crime de roubo, para a maioria de nossos doutrinadores, quando
o agente pudesse, ele próprio, sem a necessidade de colaboração
da vítima, subtrair os bens móveis que desejasse. Assim, por
exemplo, pode ocorrer que o agente, ao se deparar com a vítima,
que dirigia seu automóvel, anuncie o roubo e, ato contínuo, a
coloque no porta-malas e siga em direção a um lugar ermo,
afastado, impedindo-a, dessa forma, de se comunicar
imediatamente com a polícia.
Como se percebe, nesse último caso, o agente poderia, sem a
colaboração da vítima, subtrair seu automóvel. No entanto, privou-a
de sua liberdade, razão pela qual não haveria dúvida na aplicação
do inciso V do § 2º do art. 157 do Código Penal, fazendo com que a
pena aplicada ao roubo fosse aumentada de um terço até a metade.
Merece ser frisado que a Lei nº 11.923, de 17 de abril de 2009,
desigualou o tratamento até então existente entre os crimes de
roubo e extorsão, cujos arts. 157 e 158 do Código Penal,
respectivamente, preveem as mesmas penas no que diz respeito à
modalidade fundamental (reclusão, de 4 a 10 anos, e multa), bem
como à majorante de 1/3 (um terço) até a metade para algumas
hipóteses similares e, ainda, penas idênticas se da violência resultar
lesão corporal grave ou morte.
Agora, a privação da liberdade da vítima importará no
reconhecimento de uma qualificadora (art. 158, § 3º, do CP), ao
invés de uma causa especial de aumento de pena como havia sido
previsto inicialmente para o crime de roubo (art. 157, § 2º, V, do CP).
Assim, fatos semelhantes terão penas diferentes, ofendendo-se,
frontalmente, os princípios da isonomia, da razoabilidade e da
proporcionalidade.
Além disso, como alerta, com precisão, Eduardo Luiz Santos
Cabette:
“Nos casos de roubos qualificados por lesões graves ou morte,
onde houve restrição da liberdade da vítima, e extorsões nas
mesmas condições, estas serão sempre apenadas com mais
rigor. Nestes casos a Lei nº 11.923/2009 manda aplicar à
extorsão com restrição da liberdade as mesmas penas do crime
de extorsão mediante sequestro qualificado (art. 159, §§ 2º e 3º,
CP). Assim sendo, enquanto nos casos de roubo as penas
variam entre ‘reclusão, de 7 a 15 anos’52 (lesões graves) e
‘reclusão, de 20 a 30 anos’ (morte); nos casos de extorsão as
sanções vão gravitar entre ‘reclusão, de 16 a 24 anos’ (lesões
graves) e ‘reclusão, de 24 a 30 anos’ (morte). É realmente de
se indagar: o que justifica essa discrepância?
Deixando um pouco de lado essas falhas grotescas da nova
legislação, tem-se que, com o advento do novo § 3º do art. 158,
CP, dever-se-á verificar em cada caso concreto se ocorreu um
roubo ou uma extorsão. Em se formando um juízo de roubo,
aplica-se o art. 157, § 2º, V, CP; caso contrário, concluindo-se
pela ocorrência de extorsão, aplica-se o art. 158, § 3º, CP. Notese que no caso do roubo a ocorrência de lesões graves ou
morte afasta a aplicação do § 2º, V, do art. 157, CP,
prevalecendo o § 3º, do mesmo dispositivo. Já na extorsão
deve-se atentar para que se houver lesões graves ou morte,
sem que o agente tenha obrado com restrição da liberdade da
vítima, aplica-se o § 2º do art. 158, CP, que remete às penas do
art. 157, § 3º, CP. Quando ocorrerem os mesmos resultados
(lesões graves ou morte), mas o agente tiver atuado mediante
restrição da liberdade da vítima, aplica-se o § 3º, in fine, do art.
158, CP, que remete às penas do art. 159, §§ 2º e 3º, CP.”53
Outro problema que deve ser enfrentado diz respeito à
possibilidade de se raciocinar, também, com o delito de sequestro,
previsto no art. 148 do Código Penal, em concurso com o delito de
extorsão. Como dissemos anteriormente, para que se caracterize a
modalidade qualificada de extorsão, mediante a restrição da
liberdade da vítima, esta, ou seja, a restrição da liberdade, deve ser
um meio para que o agente tenha a vantagem econômica.
Assim, raciocinemos com o seguinte exemplo: imagine-se a
hipótese em que o agente, depois de constranger a vítima, por
telefone, a entregar-lhe determinada quantia, marque com ela um
local para a entrega do dinheiro. Ao receber o valor exigido, o
agente, acreditando que a vítima estivesse sendo seguida, a fim de
assegurar a sua fuga, a coloca no porta-malas de seu automóvel e,
com ela, vai em direção a uma cidade vizinha, distante,
aproximadamente, 50 quilômetros do local da entrega do dinheiro,
onde, após assegurar-se de que não estava sendo seguido, a
liberta.
Nesse caso, tendo em vista a sua natureza de crime formal, a
extorsão havia se consumado anteriormente, quando da prática do
constrangimento pelo agente. Ao privar a vítima de sua liberdade,
nesse segundo momento, o agente pratica, outrossim, o delito de
sequestro, que não serviu, como se percebe, para a prática da
extorsão. Aqui, portanto, teríamos o concurso entre o delito de
extorsão, tipificado no caput do art. 158 do Código Penal, e o delito
de sequestro ou cárcere privado, previsto pelo art. 148 do mesmo
diploma repressivo.
Se a finalidade da privação da liberdade da vítima for a
obtenção, para si ou para outrem, de qualquer vantagem, como
condição ou preço do resgate, o fato se amoldará ao delito de
extorsão mediante sequestro, tipificado no art. 159 do Código Penal.
2.11
Pena e ação penal
As penas cominadas ao delito de extorsão, nas suas
modalidades simples e qualificadas, são as mesmas previstas para
o delito de roubo.
Assim, nos termos do caput do art. 158 do Código Penal, em
sua modalidade fundamental, a pena é de reclusão, de 4 (quatro) a
10 (dez) anos, e multa.
Para as modalidades qualificadas, se da violência resultar lesão
corporal grave, a pena é de reclusão, de 7 (sete) a 18 (dezoito)
anos, além de multa; se resulta a morte, a reclusão é de 20 (vinte) a
30 (trinta) anos, sem prejuízo da multa.
A ação penal é de iniciativa pública incondicionada.
2.12
Destaques
2.12.1
Diferença entre roubo e extorsão
Há muito tempo as discussões sobre a diferença entre o roubo
e a extorsão vêm dividindo a doutrina e a jurisprudência,
exatamente pelo fato de serem muito parecidos. Muitos, ainda
ancorados nas lições de Hungria, tentam levar a efeito a diferença
entre ambas as figuras típicas na existência da contrectatio (retirada
da coisa pelo próprio agente) e da traditio (entrega da coisa ou da
vantagem pela própria vítima). Assim, segundo Hungria:
“Há entre a extorsão e o roubo (aos quais é cominada pena
idêntica) uma tal afinidade que, em certos casos, praticamente
se confundem. Conceitualmente, porém, a distinção está em
que, na extorsão, diversamente do roubo, é a própria vítima
que, coagida, se despoja em favor do agente. Dizia Frank,
lapidarmente, que o ‘ladrão subtrai, o extorsionário faz com que
lhe seja entregue’[...]. A este descrime sumário, entretanto, não
se afeiçoava Von Liszt, que, referindo-se ao caso do ladrão que
aterrorizava a vítima com o revólver em punho e o dilema a
bolsa ou a vida, indagava: ‘Ainda que a vítima tire do bolso, ela
mesma, a carteira e a entregue ao ladrão, poder-se-á negar o
roubo? Realmente, do ponto de vista prático, tanto faz que o
agente tire a carteira ou que esta lhe seja entregue pela vítima;
mas, se não se quer renunciar, sob o prisma técnico, a uma
diferença constante entre extorsão e roubo, é força reconhecer
que a distinção não é outra senão esta: no roubo, há uma
contrectatio; na extorsão, há uma traditio. Na hipótese figurada
por Von Liszt, há extorsão, e não roubo: o agente não subtraiu,
mas recebeu da vítima a carteira.”54
Na verdade, são vários os critérios que procuram traçar as
distinções entre o roubo e a extorsão, a saber:
1.
2.
3.
4.
Conforme lições de Hungria, a diferença reside entre a
contrectatio e a traditio. Assim, se o agente subtrai, o crime
é de roubo; se o agente faz com que a ele seja entregue
pela vítima, estaríamos diante da extorsão.
Noronha, citando Carrara, aponta a distinção entre os dois
crimes considerando que “no roubo o mal é iminente e o
proveito contemporâneo; enquanto, na extorsão, o mal
prometido é futuro e futura a vantagem a que visa.”55
Luigi Conti56 procura levar a efeito a distinção com base no
critério da “prescindibilidade ou não do comportamento da
vítima.” Assim, se sem a colaboração da vítima fosse
impossível a obtenção da vantagem, o delito seria o de
extorsão; por outro lado, se mesmo sem a colaboração da
vítima fosse possível o sucesso da empresa criminosa, o
crime seria o de roubo.
Weber Martins Batista, a seu turno, em nossa opinião
acertadamente, afirma:
“Se o agente ameaça a vítima ou pratica violência contra ela,
visando a obter a coisa na hora, há roubo, sendo desimportante
para caracterização do fato que ele tire o objeto da vítima ou
este lhe seja dado por ela. É que, nesta última hipótese, não se
pode dizer que a vítima agiu, pois, estando totalmente
submetida ao agente, não passou de um instrumento de sua
vontade. Só se pode falar em extorsão, por outro lado, quando
o mal prometido é futuro e futura a obtenção da vantagem
pretendida, porque neste caso a vítima, embora ameaçada, não
fica totalmente a mercê do agente e, portanto, participa, ainda
que com a vontade viciada, do ato de obtenção do bem.”57
Entendemos que o melhor critério para a distinção entre o
roubo e a extorsão reside no fato de que, na extorsão, há
necessidade de colaboração da vítima, conjugada com um espaço
de tempo, mesmo que não muito longo, para que esta anua ao
constrangimento e entregue a vantagem indevida ao agente. No
roubo, como dizia Carrara, o mal é imediato. Aqui, mesmo que sem
a colaboração da vítima o agente não pudesse obter a vantagem
indevida (compreendido, aqui, o patrimônio alheio), o fato de não ter
um tempo para refletir sobre a exigência que lhe é feita mediante
violência ou grave ameaça faz com que o crime seja de roubo.
Assim, imagine-se a hipótese, infelizmente muito comum nos
dias de hoje, em que a vítima é abordada ao chegar em frente a um
caixa eletrônico de uma agência bancária, onde pretendia sacar,
para si, determinada importância. Ato contínuo, o agente saca sua
arma e a coloca em direção à cabeça da vítima, exigindo-lhe que
saque todo o seu limite de crédito. A primeira indagação é a
seguinte: O agente poderia sacar o dinheiro da vítima se esta não
se dispusesse a fornecer-lhe a senha? Obviamente não, razão pela
qual a sua anuência à exigência do agente é fundamental ao
sucesso da infração penal. Contudo, devemos também nos
perguntar: Poderia a vítima, nas condições em que se encontrava,
resistir ao agente? Aqui a resposta negativa também se impõe, pois,
caso contrário, ela seria morta ou, pelo menos, agredida. Assim,
embora dependendo da sua colaboração, mas não tendo a vítima
tempo para refletir sobre a exigência, pois o mal lhe seria imediato,
estaríamos diante de um crime de roubo, e não de extorsão, mesmo
que a própria vítima, depois do saque com o cartão, entregasse o
dinheiro ao agente.
Por outro lado, o que também tem sido uma prática comum em
meio aos marginais é o fato de que, mesmo no interior de
penitenciárias, conseguem os números dos telefones de alguns
comerciantes e, de dentro do próprio sistema carcerário, ligam para
essas pessoas e exigem que elas adquiram determinada quantidade
de cartões para telefones celulares, a fim de que, mesmo presos,
possam continuar a gerenciar seus negócios ilegais. Nesse caso,
quando o comerciante recebe um telefonema intimidador de um
preso dizendo que conhece todos os seus dados pessoais (onde
trabalha, quantos filhos possui, onde estudam etc.) e exige a
compra de um valor determinado de cartões telefônicos, com receio
de ver cumpridas as ameaças, anui a essas exigências, estaríamos
diante de um crime de roubo ou de extorsão? Como se percebe
agora, a situação é diferente; a vítima, mesmo que intimidada, tem
liberdade de escolha, arriscando ver cumprida, por exemplo, a
ameaça de morte. A promessa de mal é futura, como também é
futura a vantagem a ser entregue ao agente; além disso, a obtenção
da vantagem indevida depende da vítima que, entretanto, possui
tempo para poder sobre ela refletir.
Nossos Tribunais Superiores entendem pelo concurso material
entre os crimes de roubo e extorsão, quando o agente, por exemplo,
além de subtrair os bens que a vítima portava, a obrigam a fornecer
sua senha para saque de valores no caixa eletrônico, dizendo:
Não há que se falar em crime único em relação ao roubo e à
extorsão, considerando que quatro vítimas tiveram seus
pertences subtraídos no interior da residência e, em seguida,
duas delas foram obrigadas a realizar saques e compras
utilizando seus cartões bancários, restando configurados os
crimes descritos no art. 157, § 2º, I, II e V e art. 158, § 3º,
ambos do Código Penal. Nos termos da jurisprudência desta
Corte, conquanto os crimes de roubo e extorsão sejam do
mesmo gênero, são de espécies distintas, o que afasta a
possibilidade de reconhecimento da continuidade delitiva,
tornando despiciendo o exame dos requisitos objetivos e
subjetivos necessários para a incidência do art. 71 do Código
Penal (STJ, HC 435.792/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, 5ª T.,
DJe 30/05/2018).
Merece registro, ainda, que no crime de extorsão a lei não o
limitou a coisas móveis, pois a expressão indevida vantagem
econômica tem abrangência muito maior, podendo, inclusive, dizer
respeito até mesmo a imóveis. Imagine-se a hipótese na qual a
vítima é ameaçada para que transfira o imóvel de sua propriedade
ao agente. O fato jamais poderia se configurar como roubo, uma vez
que este exige que a coisa alheia seja móvel. Ao contrário, admitese, com tranquilidade, a extorsão, pois para esse delito não importa
a natureza do bem, mas sim que ele se configure como indevida
vantagem econômica para o agente.
2.12.2
Diferença entre concussão e extorsão
O art. 316 do Código Penal tipifica a concussão dizendo:
Art. 316. Exigir, para si ou para
outrem, direta ou indiretamente, ainda
que fora da função ou antes de
assumi-la, mas em razão dela,
vantagem indevida:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12
(doze) anos, e multa.
A concussão pode ser entendida como uma modalidade
especial de extorsão praticada por funcionário público. A diferença
entre ambas as figuras típicas reside no modo como os delitos são
praticados.
Assim, na extorsão, a vítima é constrangida, mediante violência
ou grave ameaça, a entregar a indevida vantagem econômica ao
agente; na concussão, contudo, o funcionário público deve exigir a
indevida vantagem sem o uso de violência ou de grave ameaça, que
são elementos do tipo penal do art. 158 do diploma repressivo.
Nesse sentido, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:
“Ainda que a conduta delituosa tenha sido praticada por
funcionário público, o qual teria se valido dessa condição para a
obtenção da vantagem indevida, o crime por ele cometido
corresponde ao delito de extorsão e não ao de concussão, uma
vez configurado o emprego de grave ameaça, circunstância
elementar do delito de extorsão” (HC 54.776/SP, Habeas
Corpus 2006/0034108-5, 6ª T., Rel. Min. Nefi Cordeiro, DJe
3/10/2014).
Além do modo como o delito é praticado, na extorsão, de
acordo com a redação legal, a indevida vantagem deve ser sempre
econômica; ao contrário, no delito de concussão, o art. 316 do
Código Penal somente usa a expressão vantagem indevida,
podendo ser esta de qualquer natureza. Dissertando sobre o
conceito de vantagem indevida, Guilherme de Souza Nucci
preleciona:
“Pode ser qualquer lucro, ganho, privilégio ou benefício ilícito,
ou seja, contrário ao direito, ainda que ofensivo apenas aos
bons costumes. Entendíamos que o conteúdo da vantagem
indevida deveria possuir algum conteúdo econômico, mesmo
que indireto. Ampliamos o nosso pensamento, pois há casos
concretos em que o funcionário deseja obter somente um
elogio, uma vingança ou mesmo um favor sexual, enfim, algo
imponderável no campo econômico e, ainda assim, corrompese para prejudicar ato de ofício.”58
2.12.3
Diferença entre exercício arbitrário das próprias razões e
extorsão
O delito de exercício arbitrário das próprias razões está
tipificado no art. 345 do Código Penal, verbis:
Art. 345. Fazer justiça pelas próprias
mãos, para satisfazer pretensão,
embora legítima, salvo quando a lei o
permite:
Pena – detenção, de 15 (quinze) dias
a 1 (um) mês, ou multa, além da pena
correspondente à violência.
Pela redação do art. 345 do Código Penal percebe-se que a
diferença fundamental entre a extorsão e o exercício arbitrário das
próprias razões reside no fato de que, neste, a violência é
empregada no sentido de satisfazer uma pretensão legítima do
agente. Entretanto, como a Justiça é um monopólio do Estado, não
pode o agente atuar por sua conta, mesmo a fim de satisfazer uma
pretensão legítima.
Ao contrário, como já afirmado acima, no delito de extorsão o
agente constrange a vítima a fim de obter, para si ou para outrem,
indevida vantagem econômica.
2.12.4
Prisão em flagrante quando do recebimento da vantagem
A imprensa tem divulgado, até com certa frequência, casos de
extorsão em que a vítima comunica o fato à autoridade policial, que
a orienta no sentido de marcar a data e o lugar da entrega ao
agente da indevida vantagem econômica. Uma vez determinada a
hora e local, os policiais se posicionam no sentido de prender o
sujeito no exato instante em que a vantagem indevida lhe é
entregue pela vítima.
A pergunta que nos devemos fazer, tomando por base os fatos
citados, é a seguinte: Poderia o agente ser preso em flagrante delito
no momento em que a vítima lhe faz a entrega da indevida
vantagem econômica?
Inicialmente, para que possamos responder a essa indagação,
faz-se mister ressaltar que o crime de extorsão, embora haja
posição contrária, é de natureza formal, conforme orientação contida
na Súmula nº 96 do STJ. Sua consumação ocorre, portanto, com a
prática da conduta prevista no núcleo do tipo penal do art. 158 do
diploma repressivo, vale dizer, com o constrangimento exercido com
o emprego de violência ou grave ameaça, sendo a obtenção da
indevida vantagem econômica mero exaurimento do crime. Além de
formal, o crime de extorsão não se amolda ao rol daquelas infrações
penais tidas como permanentes, sendo, ao contrário, um crime
instantâneo.
Com base nessas orientações, isto é, considerando que o crime
de extorsão é formal e instantâneo, que se consuma quando, com a
prática da conduta núcleo do tipo, a vítima, constrangida pelo
agente, faz, tolera que se faça ou deixa de fazer alguma coisa, não
se prolongando no tempo seus atos de execução e consequente
consumação, não entendemos ser possível a prisão em flagrante
que ocorre posteriormente ao constrangimento exercido pelo
agente, quando lhe estava sendo entregue a indevida vantagem
econômica.
Paulo Rangel, embora exemplificando com o delito de
concussão, cujo raciocínio se aplica também ao delito em estudo,
esclarece:
“Às vezes, é comum ouvirmos dizer que o policial X foi preso
em ‘flagrante delito’, no momento em que recebia o dinheiro
exigido da vítima, pois esta, alertada por terceiras pessoas,
procurou as autoridades e relatou o fato. No dia determinado
para a entrega do dinheiro, a vítima, acompanhada de policiais
que estavam de atalaia no local, dirigiu-se ao policial X e lhe fez
a entrega do dinheiro combinado, momento em que os policiais
deram voz de prisão em flagrante ao policial X. Esse fato,
inclusive, é noticiado pela grande imprensa. Nesta hipótese,
não há prisão em flagrante delito, pois o que se dá é mero
exaurimento do crime, ou seja, o crime já se consumou com a
mera exigência da vantagem indevida. Trata-se, portanto, de
prisão manifestamente ilegal, que deverá ser, imediatamente,
relaxada pela autoridade judiciária, nos precisos termos do art.
5º, LXV, da CRFB.”59
2.12.5
Concurso de pessoas no delito de extorsão
A hipótese mais comum de concurso de pessoas ocorre quando
os agentes percorrem, unidos pelo liame subjetivo e com identidade
de propósito, desde o começo, o chamado iter criminis, composto
pelas seguintes fases: cogitação, preparação, execução,
consumação e exaurimento do crime.
No entanto, também pode ocorrer que alguém ingresse no
plano criminoso após iniciados os atos de execução, oportunidade
em que será reconhecida uma modalidade de coautoria denominada
sucessiva.
Não há dúvida de que, quando estivermos diante de uma
infração permanente, ou seja, aquela cuja consumação se prolonga,
se perpetua no tempo, se alguém ingressar no plano criminoso
enquanto a infração penal estiver se consumando, teremos que
apontá-lo como coautor sucessivo.
Assim, imagine-se a hipótese do crime de sequestro. Suponhase que o agente tenha privado a vítima de sua liberdade, colocandoa em um cativeiro. Logo depois dessa privação, outra pessoa
ingressa no plano criminoso, a fim de auxiliá-lo a manter a vítima
presa, vigiando-a dia e noite. Essa segunda pessoa que ingressou
no plano criminoso depois de iniciados os atos de execução e ainda
quando a consumação do delito estava se prolongando no tempo,
em face do seu caráter permanente, poderá ser reconhecida como
coautora sucessiva, aplicando-se-lhe, consequentemente, as
sanções penais relativas ao crime de sequestro.
No entanto, pode ocorrer, a exemplo do que acontece com o
crime de extorsão, que alguém ingresse no plano depois da
consumação do delito, mas antes do seu exaurimento. A pergunta,
aqui, seria: Poderia o agente que ingressou no plano criminoso
depois de sua consumação responder também pelo delito de
extorsão?
A fim de responder a essa indagação, imagine-se a hipótese
em que o agente, depois de constranger a vítima mediante violência
ou grave ameaça, marque com ela data e local para que lhe seja
entregue a indevida vantagem econômica. Antes da data prevista
para a entrega da indevida vantagem econômica, mas
posteriormente à prática do constrangimento, o agente convida uma
terceira pessoa que teria a “missão” de se encontrar com a vítima, a
fim de que lhe fosse entregue a indevida vantagem econômica.
Pergunta-se: Essa terceira pessoa que ingressou no plano depois
da sua consumação, mas antes do exaurimento da infração penal
poderia ser responsabilizada, também, pelo delito de extorsão, a
título de coautoria? A resposta, nesse caso, deve ser negativa, pois,
não se cuidando de infração penal de natureza permanente, a
coautoria sucessiva somente seria possível até a consumação do
delito.
No caso acima proposto, o terceiro que ingressou no plano
criminoso depois da sua consumação60 poderia responder pelo
crime de favorecimento real, tipificado no art. 349 do Código Penal,
verbis:
Art. 349. Prestar a criminoso, fora dos
casos de coautoria ou de receptação,
auxílio destinado a tornar seguro o
proveito do crime:
Em sentido contrário, Nilo Batista afirma:
“Pode ocorrer a coautoria sucessiva não só até a simples
consumação do delito, e sim até o seu exaurimento, que
Maurach chama de ‘punto final’. Dessa forma, o agente que
aderisse à empresa delituosa na extorsão (art. 158 CP) por
ocasião da obtenção da indevida vantagem econômica (que
está situada após a consumação, configurando mero
exaurimento) seria coautor sucessivo.”61
Apesar da autoridade do renomado autor, ousamos dele
discordar. Se estivéssemos diante, por exemplo, do crime de
extorsão mediante sequestro, tipificado no art. 159 do Código Penal,
em virtude do fato de ser um crime permanente, seria perfeito o
raciocínio, imputando-se àquele que ingressou no plano criminoso
depois da sua execução e consequente consumação (que ocorreu
com a privação da liberdade da vítima), mas antes da obtenção da
vantagem, como condição ou preço do resgate, o status de coautor
sucessivo.
Entretanto, o crime de extorsão não é permanente, mas, sim,
instantâneo, razão pela qual aquele que ingressa no plano depois
da consumação do delito poderá, conforme dissemos, responder,
como no exemplo citado, pelo delito de favorecimento real e não ser
reconhecido como coautor, mesmo que sucessivo, no crime de
extorsão.
2.12.6
Extorsão e Código Penal Militar
O crime de extorsão também veio previsto no Código Penal
Militar (Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969), conforme
se verifica pela leitura do seu art. 243.
2.12.7
Prioridade de tramitação do processo de extorsão
qualificada pela restrição da liberdade da vítima, ocorrência
de lesão corporal ou morte
A Lei nº 13.285, de 10 de maio de 2016, acrescentou o art. 394A ao Código de Processo Penal, determinando, verbis:
Art. 394-A. Os processos que apurem
a prática de crime hediondo terão
prioridade de tramitação em todas as
instâncias.
2.13
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: qualquer pessoa.
Passivo: qualquer pessoa
(inclusive
a
pessoa
jurídica).
Objeto material
É a pessoa contra a qual recai o
constrangimento.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
O patrimônio (aqui entendido
num sentido mais amplo do que
a posse e a propriedade, pois
que a lei penal fala em indevida
vantagem
econômica),
a
liberdade
individual,
a
integridade física e psíquica da
vítima.
Elemento subjetivo
»
»
O crime de extorsão só
pode
ser
praticado
dolosamente, não havendo
previsão para a modalidade
culposa.
Há também o especial fim
de agir, caracterizado, in
casu, pela finalidade do
agente em obter, para si ou
para
outrem,
indevida
vantagem econômica.
Modalidades
omissiva
»
comissiva
e
O
núcleo
constranger
pressupõe
um
comportamento comissivo
do agente.
»
Entretanto, aquele que se
encontra na condição de
garantidor e, dolosamente,
nada faz para evitar o
constrangimento
sofrido
pela vítima, também deverá
ser responsabilizado pelo
delito de extorsão.
Consumação e tentativa
»
Tendo
em
vista
sua
natureza de crime formal,
consuma-se a extorsão no
momento em que o agente
pratica a conduta núcleo do
tipo, vale dizer, o verbo
constranger, obrigando a
vítima, mediante violência
ou grave ameaça, a fazer,
»
»
»
a tolerar que se faça ou
deixar de fazer alguma
coisa.
A obtenção da indevida
vantagem
econômica,
prevista no tipo do art. 158
do CP como o seu especial
fim de agir, é considerada
mero
exaurimento
do
crime, tendo repercussões,
entretanto, para efeitos de
aplicação da pena.
Súmula 96 do STJ. O crime
de extorsão consuma-se
independentemente
da
obtenção da vantagem
indevida.
Mesmo se tratando de um
crime formal, toda vez que
pudermos fracionar o iter
criminis será possível o
raciocínio correspondente à
tentativa.
3.
EXTORSÃO MEDIANTE SEQUESTRO
Extorsão mediante sequestro Art.
159. Sequestrar pessoa com o fim de
obter, para si ou para outrem,
qualquer vantagem, como condição
ou preço do resgate:
Pena – reclusão, oito a quinze anos.
§ 1º Se o sequestro dura mais de 24
(vinte e quatro) horas, se o
sequestrado é menor de 18 (dezoito)
ou maior de 60 (sessenta) anos, ou se
o crime é cometido por bando ou
quadrilha62:
Pena – reclusão, de doze a vinte
anos.
§ 2º Se do fato resulta lesão corporal
de natureza grave:
Pena – reclusão, de dezesseis a vinte
e quatro anos.
§ 3º Se resulta a morte:
Penal – reclusão, de vinte e quatro a
trinta anos.
§ 4º Se o crime é cometido em
concurso, o concorrente que o
denunciar à autoridade, facilitando a
libertação do sequestrado, terá sua
pena reduzida de um a dois terços.
3.1
Introdução
O crime de extorsão mediante sequestro talvez tenha sido um
dos que mais ganharam espaço em nossa mídia no final do século
XX, motivando, até mesmo, a edição de leis mais severas, que
pregavam o recrudescimento das penas, bem como o seu
cumprimento mais prolongado no cárcere, a exemplo do que
ocorreu com a Lei nº 8.072/90, que regulamentou o art. 5º, XLIII, da
Constituição Federal, dispondo sobre os chamados crimes
hediondos.
Alberto Silva Franco, em obra específica sobre os crimes
hediondos, apontando as origens de sua criação, esclarece:
“Sob o impacto dos meios de comunicação de massa,
mobilizados em face de extorsões mediante sequestro, que
tinham vitimizado figuras importantes da elite econômica e
social do país (caso Martinez, caso Salles, caso Diniz, caso
Medina etc.), um medo difuso e irracional, acompanhado de
uma desconfiança para com os órgãos oficiais de controle
social, tomou conta da população, atuando como um
mecanismo de pressão ao qual o legislativo não soube resistir.
Na linha de pensamento da Law and Order, surgiu a Lei nº
8.072/90, que é, sem dúvida, um exemplo significativo de uma
posição político-criminal que expressa, ao mesmo tempo,
radicalismo e passionalidade.”63
Certo é que o crime de extorsão mediante sequestro encontrase no rol das infrações penais mais graves, e que mais estragos faz
à vítima e aos seus familiares. Tanto é verdade que a maior pena
existente em nosso ordenamento jurídico-penal é a cominada à
extorsão mediante sequestro com resultado morte, que varia de 24
(vinte e quatro) a 30 (trinta) anos de reclusão, sendo pequena a
margem entre as penas mínima e máxima para que o julgador
possa individualizá-la com maior precisão.
O tipo fundamental do art. 159 do Código Penal aponta os
elementos indispensáveis ao reconhecimento do crime de extorsão
mediante sequestro, por meio da seguinte redação:
Art. 159. Sequestrar pessoa com o
fim de obter, para si ou para outrem,
qualquer vantagem, como condição
ou preço do resgate:
Assim, verifica-se pela redação acima transcrita que a extorsão
mediante sequestro encontra-se no catálogo daqueles crimes
considerados complexos, sendo, pois, o resultado da fusão de
várias figuras típicas, a exemplo do sequestro, que é utilizado como
um meio para a prática da extorsão. Na verdade, trata-se de uma
modalidade especializada de extorsão, justamente pelo meio
utilizado, vale dizer, a privação da liberdade da vítima.
Dessa forma, podemos identificar os seguintes elementos que
compõem o delito em estudo: a) privação da liberdade de alguém; b)
especial fim de agir, caracterizado pela finalidade do agente de
obter, para si ou para outrem, qualquer vantagem, como condição
ou preço do resgate.
A privação da liberdade, utilizada como meio para a prática do
crime de extorsão mediante sequestro, é a mesma referida no art.
148 do Código Penal, sendo que, aqui, possui uma finalidade
especial: a obtenção de qualquer vantagem.
Poder-se-ia indagar a respeito da sua natureza, já que a lei
penal faz menção genérica a qualquer vantagem, não exigindo
expressamente, inclusive, que essa vantagem seja indevida.
Hungria, analisando a redação legal, diz:
“O art. 159 fala em ‘qualquer vantagem’, sem dizê-la
expressamente indevida, como faz quanto à extorsão in genere,
pois seria isso supérfluo, desde que a sua ilegitimidade resulta
de ser exigida como preço da cessação de um crime. Se o
sequestro visa à obtenção da vantagem devida, o crime será o
de ‘exercício arbitrário das próprias razões’ (art. 345), em
concurso formal com o de sequestro (art. 148).”64
Assim, embora o art. 159 do diploma repressivo não faça
menção expressa à indevida vantagem, temos que compreendê-la
como consignada implicitamente pelo mencionado tipo penal, sob
pena de ser realizada, como propôs Hungria, a desclassificação
para outra figura típica.
Além de indevida a vantagem, entendemos, também, que não é
exatamente qualquer uma que permite o raciocínio do crime de
extorsão mediante sequestro, mas tão somente a vantagem que
tenha valor econômico, de natureza patrimonial, uma vez que o tipo
do art. 159 está inserido no Título II do Código Penal, relativo aos
crimes contra o patrimônio. Portanto, de acordo com uma
interpretação sistêmica do Código Penal, devemos entender que a
vantagem exigida como condição ou preço do resgate deve ter
natureza patrimonial, pois, caso contrário, poderá se configurar em
outra infração penal.
Imagine-se a hipótese daquele que sequestre o filho da mulher
pela qual estava apaixonado, alegando que somente restituirá a
liberdade da criança caso venha a ter com ela relações sexuais.
Poderíamos, no exemplo fornecido, até visualizar uma vantagem de
natureza sexual obtida mediante a privação da liberdade de alguém.
No entanto, poderia o agente responder pelo delito de extorsão
mediante sequestro? Entendemos que não. Nesse caso, deveria ser
responsabilizado pelo sequestro da criança (art. 148 do CP), em
concurso com o crime de estupro (art. 213 do CP).
Nesse sentido é a posição majoritária da doutrina. Afirma
Fragoso que “a ação deve ser praticada para obter qualquer
vantagem, como preço ou condição do resgate. Embora haja aqui
uma certa imprecisão da lei, é evidente que o benefício deve ser de
ordem econômica ou patrimonial, pois de outra forma este seria
apenas um crime contra a liberdade individual.”65 Ou, ainda, Luiz
Regis Prado, quando diz que “no que tange à vantagem descrita no
tipo, simples interpretação do dispositivo induziria à conclusão de
que não deva ser necessariamente econômica. Contudo, outro deve
ser o entendimento. De fato, a extorsão está encartada entre os
delitos contra o patrimônio, sendo o delito-fim, e, no sequestro,
apesar de o próprio tipo não especificar a natureza da vantagem,
parece indefensável entendimento diverso.”66 Mirabete também
esclarece que, tratando-se de “crime contra o patrimônio, há que se
entender que se trata de qualquer vantagem patrimonial (dinheiro,
títulos, cargo remunerado etc.).”67
Em sentido contrário, assevera Damásio que “qualquer
vantagem diz respeito a ‘qualquer vantagem’ mesmo, sendo
irrelevante que seja devida ou indevida, econômica ou não
econômica. Se exigirmos que a vantagem seja econômica e
indevida, como ocorre na extorsão, não estaremos diante da
tipicidade do fato, pois que o CP fala em ‘qualquer vantagem’, não a
especificando. Que ‘qualquer vantagem’ é esta que precisa ser
econômica e indevida?”68 Cezar Roberto Bitencourt, defendendo a
interpretação ampla da expressão qualquer vantagem, acompanha
Damásio, justificando que “a natureza econômica da vantagem é
afastada pela elementar típica qualquer vantagem, que deixa clara
sua abrangência. Quando a lei quer limitar a espécie de vantagem,
usa o elemento normativo indevida, injusta, sem justa causa [...].
Assim, havendo sequestro, para obter qualquer vantagem, para si
ou para outrem – não importando a natureza (econômica ou não) ou
espécie (indevida ou não) –, como condição ou preço do resgate,
estará caracterizado o crime de extorsão mediante sequestro.” 69
Sabemos, ao contrário do que afirma o velho chavão que diz
que “a lei é sábia”, que ela não possui essa característica generosa.
O legislador penal, em várias passagens do
Código, pecou pela falta de técnica, fazendo com que os intérpretes
tivessem trabalho redobrado no momento de extrair o alcance legal.
Por isso, faz-se mister a aplicação de todos os instrumentos de
interpretação disponíveis, principalmente a chamada interpretação
sistemática. Figurativamente, não se analisa uma estrela
solitariamente. Devemos buscar a sua constelação, descobrindo sua
galáxia, para se ter a noção do Universo. Da mesma forma, a fim de
melhor compreender um artigo, busca-se saber, por exemplo, a que
capítulo pertence, e este, consequentemente, em que Título está
inserido, relativo a que Código. Nesse sentido, orienta Manoel
Messias Peixinho:
“Quando se fala em interpretação sistemática, tem-se em mente
a interpretação harmoniosa do ordenamento jurídico. Não se
deve, em nenhuma hipótese, apartar a norma do seu contexto
(a lei em tela, o Código: Penal, Civil etc.) e muito menos na sua
sequência imediata (nunca se deve ler só um artigo, leiam-se
também os parágrafos e os demais artigos).”70
Como se percebe sem muito esforço, os artigos que antecedem
ao crime de extorsão mediante sequestro têm como finalidade a
obtenção de vantagem de natureza patrimonial, pois, no roubo, a
conduta do agente é dirigida à subtração da coisa alheia móvel e, na
extorsão, à obtenção de uma indevida vantagem econômica. Por
que razão somente no delito de extorsão mediante sequestro a
obtenção de qualquer vantagem, não importando a sua natureza,
poderia ser a finalidade especial do agente?
Tendo em vista a interpretação sistêmica, não há como aderir à
tese segundo a qual a expressão qualquer vantagem, contida como
elemento do art. 159 do Código Penal, diz respeito a toda e
qualquer vantagem, tenha ou não natureza patrimonial, pois isso
ofenderia ao sistema no qual está inserido o crime de extorsão
mediante sequestro, cujo bem precipuamente protegido é,
efetivamente, o patrimônio.
Assim, concluindo, a expressão qualquer vantagem significa tão
somente aquela de natureza patrimonial, afastando-se todas as
demais, que poderão se configurar em outros tipos penais que não a
extorsão mediante sequestro.
Não há necessidade, ainda, que a vítima seja removida para
outro local, podendo o delito ocorrer dentro de sua própria
residência, desde que o agente a prive de sua liberdade com o fim
de obter qualquer vantagem, como condição ou preço para que
possa voltar a exercer o seu direito de ir, vir e permanecer.
Cleber Masson nos esclarece, ainda, que:
“Condição de resgate diz respeito a qualquer tipo de
comportamento, por parte do sujeito passivo, idôneo a
proporcionar uma vantagem econômica ao criminoso. A vítima
patrimonial faz ou deixa de fazer algo que possa beneficiar o
sequestrador. Exemplos: assinatura de um cheque, entrega de
um documento, elaboração de uma nota promissória etc. De
outro lado, preço do resgate se relaciona à exigência de um
valor em dinheiro ou em qualquer outra utilidade econômica.
Nesse caso, o ofendido paga alguma quantia em troca da
liberdade do sequestrado. Exemplos: entrega de determinada
quantia em pecúnia, tradição de um automóvel etc.”71
3.2
Classificação doutrinária
Crime comum, tanto com relação ao sujeito ativo quanto ao
sujeito passivo; doloso; formal (pois sua consumação ocorre com a
prática da conduta núcleo do tipo, sendo a obtenção da vantagem
um mero exaurimento do crime); permanente (tendo em vista que a
sua consumação se prolonga no tempo, enquanto houver a privação
da liberdade da vítima); de forma livre; comissivo ou omissivo
(podendo ser praticado via omissão imprópria, caso o agente goze
do status de garantidor); monossubjetivo; plurissubsistente;
transeunte ou não transeunte, dependendo de como o delito é
praticado.
3.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
A extorsão mediante sequestro, como já afirmamos
anteriormente, é considerada um crime complexo, da mesma forma
que o roubo e a extorsão. Assim, faz-se mister ressaltar que,
mediante a redação do tipo penal do art. 159 do diploma repressivo,
conseguimos visualizar a proteção de vários bens jurídicos, como o
patrimônio (aqui entendido num sentido mais amplo do que a posse
e a propriedade, pois a lei penal fala em qualquer vantagem),
podendo-se também apontar a liberdade individual (principalmente
no que diz respeito ao direito de ir, vir e permanecer), bem como a
integridade física e psíquica.
Embora todos esses bens formem a unidade complexa, não
podemos deixar de esclarecer que, entre eles, o bem precipuamente
protegido é o patrimônio, haja vista a inserção do art. 159 no Título II
do Código Penal, correspondente, justamente, aos crimes contra o
patrimônio.
Objeto material é a pessoa contra a qual recai a privação da
liberdade, mediante o sequestro, e também aquela que sofre a
perda patrimonial.
3.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
Qualquer pessoa pode figurar como sujeito ativo do delito de
extorsão mediante sequestro, haja vista que o tipo penal do art. 159
do diploma repressivo não exige, para a sua prática, qualquer
qualidade ou condição especial.
Sujeito passivo, conforme preleciona Cezar Roberto Bitencourt,
“também pode ser qualquer pessoa, inclusive quem sofre o
constrangimento sem lesão patrimonial. Assim, a vítima do
sequestro pode ser diversa da pessoa que sofre ou deve sofrer a
lesão patrimonial. Haverá, nesse caso, duas vítimas, uma do
patrimônio e outra da privação de liberdade, mas ambas do mesmo
crime de extorsão mediante sequestro.”72
Entretanto, embora com pluralidade de vítimas, estaremos
diante de crime único, devendo o agente responder, tão somente,
por um único crime de extorsão mediante sequestro.
Também é possível que a pessoa jurídica goze do status de
sujeito passivo do delito de extorsão mediante sequestro, uma vez
que seus sócios podem, por exemplo, ser privados da sua liberdade,
para que se efetue o pagamento do resgate por intermédio do
patrimônio da pessoa jurídica a eles pertencente.
3.5
Consumação e tentativa
Crime formal, ocorre a consumação da extorsão mediante
sequestro quando o agente pratica a conduta prevista no núcleo do
tipo, vale dizer, quando realiza o sequestro, com a privação da
liberdade ambulatorial da vítima, independentemente da obtenção
da vantagem, como condição ou preço do resgate, que se configura
em mero exaurimento do delito.
Basta, portanto, que a privação da liberdade da vítima se dê
com a finalidade de obtenção de qualquer vantagem, como
condição ou preço do resgate, para que a infração penal reste
consumada. Assim, imagine-se a hipótese em que o agente,
almejando praticar o delito em estudo, vá até o local de trabalho da
vítima e, logo após sua saída, mediante o emprego de violência, a
coloque no interior de um veículo utilizado durante a empresa
criminosa, dirigindo-se, logo em seguida, ao cativeiro. Suponha-se
que, para a sorte da vítima, alguém perceba a ação criminosa e
avise a polícia, que dá início à perseguição. Poucos minutos depois,
o automóvel é interceptado, sendo a vítima libertada, e o agente
preso em flagrante. Assim, pergunta-se: O crime de extorsão
mediante sequestro foi consumado ou tentado? Note-se que no
exemplo fornecido o agente sequer teve a oportunidade de fazer
uma ligação telefônica para os familiares da vítima, exigindo o
pagamento do resgate em troca de sua liberdade. No entanto,
podemos afirmar que o delito foi consumado, e não tentado, pois,
mesmo que por um espaço curto de tempo, houve a privação da
liberdade ambulatorial da vítima.
Assim, conforme já afirmamos acima, o fato de receber a
vantagem como condição ou preço do resgate é considerado mero
exaurimento do crime, com repercussões no momento da aplicação
da pena.
Por outro lado, em se tratando de um crime formal, seria
possível a tentativa? A resposta deve ser positiva. Isso porque,
embora seja, realmente, um crime formal, a extorsão mediante
sequestro também possui a natureza de delito plurissubsistente, ou
seja, aquele que pode ser desdobrado em vários atos, fracionandose, pois, o iter criminis. Dessa forma, imagine-se que o agente, no
exemplo fornecido, tivesse anunciado o sequestro e, ao colocar as
mãos no braço da vítima, fosse surpreendido por um dos
seguranças que se encontravam no local, e que não foram por ele
percebidos, que impediram que a vítima fosse privada da sua
liberdade. Nesse caso, podemos visualizar a situação em que o
agente cogitou praticar o crime, preparou-se para a empresa
criminosa e, ao abordar a vítima, deu início aos atos de execução
relativos ao sequestro, que não se consumou por circunstâncias
alheias à sua vontade. Aqui, segundo entendemos, podemos
raciocinar em termos de tentativa, haja vista não ter havido,
efetivamente, a privação da liberdade ambulatorial da vítima, tendo
o agente, contudo, praticado atos de execução nesse sentido.
3.6
Elemento subjetivo
O crime de extorsão mediante sequestro só pode ser praticado
dolosamente, não existindo previsão para a modalidade culposa.
Além do dolo, a doutrina majoritária aponta outro elemento
subjetivo, que lhe é transcendente, denominado especial fim de agir,
caracterizado pela expressão com o fim de obter, para si ou para
outrem, qualquer vantagem, como condição ou preço do resgate.
Essa finalidade de obter, para si ou para outrem, qualquer
vantagem como condição ou preço do resgate é que torna o crime
de extorsão mediante sequestro especial relativamente ao crime de
sequestro, pois, neste, a vítima se vê privada do seu direito de ir, vir
e permanecer sem que, para tanto, o agente atue com qualquer
outra finalidade, a não ser a privação da liberdade em si.
3.7
Modalidades comissiva e omissiva
O núcleo do tipo é o verbo sequestrar, entendido no sentido de
privar alguém de sua liberdade. Da mesma forma que o crime de
sequestro, aqui, o delito pode ser praticado comissiva ou
omissivamente. Assim, pode o agente fazer alguma coisa no sentido
de privar a vítima de sua liberdade, levando-a até um cativeiro, com
a finalidade de, posteriormente, exigir um pagamento de resgate
para a sua libertação, ou poderá deixar de colocar a vítima em
liberdade, sendo essa sua obrigação, só o fazendo mediante o
pagamento de certa quantia em dinheiro.
3.8
Modalidades qualificadas
Os §§ 1º, 2º e 3º do art. 159 do Código Penal preveem as
modalidades qualificadas, dizendo, verbis:
§ 1º Se o sequestro dura mais de 24
(vinte e quatro) horas, se o
sequestrado é menor de 18 (dezoito)
ou maior de 60 (sessenta) anos, ou se
o crime é cometido por bando ou
quadrilha73:
Pena – reclusão, de doze a vinte
anos.
§ 2º Se do fato resulta lesão corporal
de natureza grave:
Pena – reclusão, de dezesseis a vinte
e quatro anos.
§ 3º Se resulta a morte:
Pena – reclusão, de vinte e quatro a
trinta anos.
Tendo em vista as características que lhe são peculiares,
faremos a análise individualizada de cada uma das qualificadoras
elencadas.
3.8.1
Se o sequestro dura mais de 24 (vinte e quatro) horas
A primeira qualificadora é de natureza objetiva, pois a lei penal
determina que, se a privação da liberdade durar mais do que 24
horas, a pena cominada será de reclusão, de 12 (doze) a 20 (vinte)
anos.
Faz-se mister observar que a contagem do prazo tem início a
partir do momento em que a vítima se vê, efetivamente, privada de
sua liberdade. Assim, por exemplo, se foi sequestrada às 15 horas e
30 minutos, a partir desse exato instante é que começa a contar o
prazo de 24 horas determinado pelo § 1º do art. 159 do Código
Penal.
O fundamento de tal qualificadora reside na maior
reprovabilidade do comportamento daquele que priva, por um
período de tempo prolongado, a vítima de sua liberdade,
aumentando-lhe os danos psicológicos, não somente com relação a
ela, vítima, como também a seus familiares. O sentimento de
incerteza, de insegurança, no que diz respeito ao futuro, aumenta a
cada instante em que a vítima se encontra à mercê dos
sequestradores, fazendo por merecer, portanto, uma pena mais
exacerbada.
Por outro lado, a existência da aludida qualificadora afasta,
quase que totalmente, a possibilidade de alguém ser condenado
pela modalidade fundamental do crime de extorsão mediante
sequestro, pois, como regra geral, a vítima permanece em poder
dos sequestradores por tempo superior a 24 horas.
3.8.2
Se o sequestrado é menor de 18 (dezoito) ou maior de 60
(sessenta) anos
A idade daquele que foi privado de sua liberdade também é um
dado de natureza objetiva que merece ser considerado para efeitos
de reconhecimento da qualificadora. Tanto a vítima com pouca idade
como aquela que já se encontra em idade avançada ficam mais
fragilizadas nas mãos dos sequestradores.
Afirma Hungria que “a circunstância de ser a vítima menor de
18 anos (isto é, que ainda não completou tal idade) também justifica
a agravação especial, porque torna mínima, quando não nenhuma,
a possibilidade de eximir-se ao sequestro, ao mesmo tempo que é
infringida a incolumidade especialmente assegurada à criança e ao
adolescente.”74
O § 1º do art. 159 teve sua redação modificada pela Lei nº
10.741, de 1º de outubro de 2003, que, dispondo sobre o Estatuto
do Idoso, fez acrescentar como mais uma modalidade qualificada o
fato de ser o sequestrado maior de 60 (sessenta) anos de idade.
Merece registro o fato de que a idade das vítimas deverá ser
conhecida, pois, caso contrário, poderá ser alegado o chamado erro
de tipo. Assim, por exemplo, se o agente sequestra a vítima, que
imagina contar com mais de 20 anos de idade, quando, na
realidade, tem apenas 17 anos, não poderá incidir a qualificadora,
se provada a hipótese de erro.
A idade dela deverá ser demonstrada nos autos por meio de
documentos próprios, conforme determina o parágrafo único do art.
155 do Código de Processo Penal, com a nova redação que lhe foi
dada pela Lei nº 11.690, de 9 de junho de 2008, que diz: Somente
quanto ao estado das pessoas serão observadas as restrições
estabelecidas na lei civil.
3.8.3
Se o crime é cometido por bando ou quadrilha (leia-se,
associação criminosa)
Para que se possa aplicar a qualificadora em estudo, é preciso
que exista, efetivamente, a formação da associação criminosa, nos
moldes preconizados pelo art. 288 do Código Penal, com a nova
redação que lhe foi conferida pela Lei nº 12.850, de 2 de agosto de
2013. Portanto, deve haver a associação não eventual de pessoas,
o que exige certa estabilidade ou permanência, para o fim específico
de cometer crimes, vale dizer, um número indeterminado de delitos.
Caso ocorra a reunião eventual de 3 (três) ou mais pessoas, para o
fim específico de praticar um único crime de extorsão mediante
sequestro, restará afastada a qualificadora.
Hungria, na primeira metade do século XX, dissertando sobre
as origens da qualificadora da quadrilha ou bando (atualmente
entendida como associação criminosa) no crime de extorsão
mediante sequestro, diz:
“A qualificativa de ser o crime cometido por bandoleiros ou
quadrilheiros (isto é, indivíduos associados para o fim de
cometer crimes, o que, em si mesmo, já constitui crime, ut art.
288 do Cód. Penal) teve a sugeri-la a assustadora atividade dos
gangs norte-americanos (cujo exemplo tende a difundir-se
universalmente), organizados para a prática de kidnappings,
atestando um aberrante recrudescimento da criminalidade
violenta da época moderna.”75
Se os poucos casos, naquela época, de extorsão mediante
sequestro praticados por associações criminosas já assustavam o
grande penalista brasileiro, que diria o notável jurista se estivesse
vivo, nos dias de hoje, presenciando a indústria do sequestro que
alimenta o crime organizado?!
3.8.4
Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave
O § 2º do art. 159 do Código Penal comina uma pena de
reclusão de 16 (dezesseis) a 24 (vinte e quatro) anos, se do fato
resulta lesão corporal de natureza grave.
Inicialmente, devemos observar que quando o mencionado § 2º
inicia sua redação usando a expressão se do fato resulta... está
querendo, segundo entendemos, dizer que se do sequestro, isto é,
se da privação da liberdade da vítima resultar lesão corporal grave,
o delito será reconhecido como qualificado. Em nossa opinião,
portanto, somente qualificará o delito se o próprio sequestrado for a
vítima das lesões corporais graves, e não outras pessoas, a
exemplo do que ocorre com o latrocínio, em que o roubo, como
vimos, será qualificado desde que haja a morte de qualquer pessoa
que não alguém do próprio grupo.
Nesse sentido, afirma Noronha:
“Refere-se a lei ao fato, isto é, ao sequestro, considerado em
toda sua duração, que só termina com a liberdade do
sequestrado. O legislador, neste passo, só volve suas vistas a
esse ofendido, conquanto nesta espécie de crime haja
pluralidade de vítimas: a que tem sua liberdade coarctada e a
que sofre a lesão patrimonial. Muito embora, à vezes, ambas as
lesões recaiam sobre a mesma pessoa, é frequente que isso
não aconteça. Essa interpretação é ditada pela Exposição de
Motivos do Código Penal de 1940: ‘Se do fato resulta a morte
do sequestrado, é cominada a mais rigorosa sanção penal do
projeto: reclusão por 20 a 30 anos’. Daí, se a lesão corporal
grave ou a morte recair sobre sujeito passivo da lesão
patrimonial, não haverá lugar a sanção agravada, imperando no
caso as regras do concurso de delitos.”76
Assim, não podemos concordar com Cezar Roberto Bitencourt
quando afirma que a lesão corporal grave “tanto pode ser produzida
na vítima do sequestro como na vítima da extorsão ou em qualquer
outra pessoa que venha a sofrer a violência”,77 pois, de acordo com
a redação legal, a qualificadora somente incidirá se do fato do
sequestro, quer dizer, se da privação da liberdade da vítima vier a
ocorrer lesão corporal grave.
Trata-se, aqui, de crime qualificado pelo resultado, podendo
este ser atribuído ao agente a título de dolo ou mesmo culpa. Assim,
pode o agente querer e, efetivamente, produzir as lesões graves na
vítima, ou elas podem ter ocorrido em razão de culpa, oportunidade
em que se poderá levar a efeito o raciocínio correspondente ao
crime preterdoloso.
Se as lesões corporais de natureza grave sofridas pela vítima
forem provenientes de caso fortuito ou força maior, não poderão ser
imputadas ao agente, por força do art. 19 do Código Penal, que diz
que pelo resultado que agrava especialmente a pena, só responde o
agente que o houver causado ao menos culposamente.
Merece ser ressaltado, ainda, o fato de que quando a lei penal
se refere às lesões corporais graves, está abrangendo, com essa
locução, tanto as lesões corporais graves, previstas pelo § 1º do art.
129 do Código Penal quanto as lesões corporais gravíssimas,
tipificadas no § 2º do mesmo artigo.
A pena mínima cominada à extorsão mediante sequestro
qualificada pela lesão corporal de natureza grave foi aumentada
pela Lei nº 8.072/90, passando de 12 (doze) para 16 (dezesseis)
anos, mantendo-se, contudo, a pena máxima cominada em abstrato,
que é de 24 (vinte e quatro) anos de reclusão, sendo, contudo,
suprimida a pena de multa originalmente cominada a essa
modalidade qualificada.
3.8.5
Se resulta morte
O § 3º do art. 159 do Código Penal comina uma pena de
reclusão, de 24 (vinte e quatro) a 30 (trinta) anos, se do fato resulta
a morte.
Vale, aqui, tudo o que dissemos com relação à qualificadora da
lesão corporal de natureza grave, ou seja:
a)
b)
c)
que a qualificadora somente terá aplicação se ocorrer a
morte da vítima do sequestro, isto é, aquela que teve
cerceada a sua liberdade ambulatorial;
a morte pode ter sido provocada dolosa ou culposamente,
tratando-se, portanto, de crime qualificado pelo resultado
que admite as duas modalidades;
não poderá ser aplicada a qualificadora ao agente caso o
resultado morte seja proveniente de caso fortuito ou força
maior, em obediência ao art. 19 do Código Penal.
Assim, imagine-se a hipótese em que a vítima seja levada a
cativeiro e, por isso, deixe de tomar os remédios que eram
indispensáveis à manutenção da sua vida, mesmo depois de
solicitá-los aos sequestradores, vindo, pois, a falecer. Podemos
entender, nesse exemplo, pelo crime de extorsão mediante
sequestro qualificado pelo resultado morte, uma vez que esta se
deu pelo fato do sequestro, além de, no mínimo, ter sido previsível
pelos agentes, que foram informados pela própria vítima da
necessidade da ministração dos medicamentos.
O crime de extorsão mediante sequestro qualificado pelo
resultado morte possui a maior pena cominada na Parte Especial do
Código Penal, variando de 24 (vinte e quatro) a 30 (trinta) anos de
reclusão, após a modificação levada a efeito pela Lei nº 8.072/90,
que, a seu turno, eliminou a cominação da pena de multa.
3.9
Delação premiada – causa especial de diminuição de
pena
A Lei nº 9.269, de 2 de abril de 1996, fez inserir o § 4º ao art.
159 do Código Penal, criando a chamada delação premiada para o
crime de extorsão mediante sequestro, verbis:
§ 4º Se o crime é cometido em
concurso, o concorrente que o
denunciar à autoridade, facilitando a
libertação do sequestrado, terá sua
pena reduzida de um a dois terços.
Assim, de acordo com a redação legal, são três os requisitos
exigidos para que seja levada a efeito a redução de um a dois terços
na pena aplicada ao agente, a saber:
a)
b)
c)
que o crime tenha sido cometido em concurso;
que um dos agentes o denuncie à autoridade;
facilitação da libertação do sequestrado.
O primeiro dos requisitos diz respeito ao fato de que somente
poderá ser aplicada a minorante na hipótese de o crime ser
cometido em concurso. Aqui, basta que duas pessoas tenham,
agindo em concurso, praticado o delito para que a uma delas seja
possível a delação.
O segundo requisito diz respeito ao fato de ter o agente que
denunciar, isto é, levar ao conhecimento da autoridade o sequestro,
não havendo necessidade de indicar o coparticipante, mas de tão
somente informar a prática do crime. A lei não exige que o outro
coparticipante seja preso ou mesmo responsabilizado criminalmente
para que se possa aplicar a minorante. No entanto, é preciso ter a
certeza de que o crime foi praticado em concurso de pessoas, pois
se o agente o praticou sozinho, mesmo que arrependido, não
poderá ser beneficiado com a redução de pena.
A autoridade mencionada pelo parágrafo pode ser delegado de
polícia, Promotor de Justiça, juiz de direito, enfim, qualquer
autoridade que possa conduzir a solução do caso.
O último requisito exige que a denúncia do coparticipante
facilite a libertação do sequestrado. Na verdade, a denúncia,
segundo entendemos, deve conduzir, obrigatoriamente, à libertação
do sequestrado, pois a delação premiada tem em mira mais a vítima
do sequestro do que o agente que o praticou. Se, por exemplo, após
denunciar à autoridade a prática do sequestro, indicando o local do
cativeiro, a vítima tiver sido transferida para outro lugar, obviamente
que não poderá o agente ser beneficiado, pois a sua delação em
nada facilitou a sua libertação.
Por outro lado, se o resgate já tiver sido pago, poderá o agente
ser beneficiado se a vítima não tiver, ainda, sido libertada? Sim, uma
vez que a lei penal não exige a recuperação da vantagem obtida
pelos demais agentes com o delito, mas sim a facilitação da
colocação em liberdade da vítima.
Conforme preleciona Rogério Sanches Cunha:
“Trata-se de causa obrigatória de redução de pena, isto é,
presentes os seus requisitos, é direito subjetivo do réu ver sua
pena diminuída proporcionalmente ao maior ou menor auxílio
prestado (aferido pela presteza na liberação do sequestrado).”78
Merece ser ressaltado, contudo, que parte de nossa doutrina
entende, corretamente em nossa opinião, que o § 4º do art. 159 do
Código Penal foi tacitamente revogado pelo art. 13 da Lei nº 9.807,
de 13 de julho de 1999, que diz:
Art. 13. Poderá o juiz, de ofício ou a
requerimento das partes, conceder o
perdão judicial e a consequente
extinção da punibilidade ao acusado
que, sendo primário, tenha colaborado
efetiva e voluntariamente com a
investigação e o processo criminal,
desde que dessa colaboração tenha
resultado:
I – a identificação dos demais
coautores ou partícipes da ação
criminosa;
II – a localização da vítima com a sua
integridade física preservada;
III – a recuperação total ou parcial do
produto do crime.
Parágrafo único. A concessão do
perdão judicial levará em conta a
personalidade do beneficiado e a
natureza, circunstâncias, gravidade e
repercussão social do fato criminoso.
Segundo as lições de Renato Brasileiro de Lima:
“O disposto no art. 159, § 4º, do Código Penal, teria sido
tacitamente revogado pela Lei nº 9.807/99, que também tratou
da delação premiada em seu art. 13, prevendo, todavia,
vantagens mais benéficas que uma simples diminuição de pena
– perdão judicial e consequente extinção da punibilidade. De
fato, apesar de o art. 13 da Lei nº 9.807/99 não se referir
expressamente ao art. 159 do Código Penal, quando se atenta
para a redação de seus três incisos (I – a identificação dos
demais coautores ou participes da ação criminosa; II – a
localização da vitima com a sua integridade física preservada;
III – a recuperação total ou parcial do produto do crime), é fácil
deduzir que o único crime em que os três objetivos podem ser
simultaneamente atingidos seria o de extorsão mediante
sequestro. Logo, como se trata de lei posterior que tratou do
assunto, temos que o art. 159, § 4º do CP, encontra-se
tacitamente revogado”79.
No mesmo sentido, afirmam Alberto Silva Franco, Rafael Lira e
Yuri Felix, dizendo:
“Embora diversos diplomas posteriores à Lei 9.269/96
apresentassem, com denominações diferentes, hipóteses bem
ajustáveis ao instituto da delação premiada, força é convir que a
amplitude atribuída a esse instituto pela Lei 9.807/99 dá suporte
a afirmação de que se trata de norma legal revogadora da Lei
9.269/96”80.
3.10
Pena e ação penal
À modalidade fundamental de extorsão mediante sequestro
comina o caput do art. 159 do Código Penal uma pena de reclusão,
de 8 (oito) a 15 (quinze) anos; se o sequestro dura mais de 24 (vinte
e quatro) horas, se o sequestrado é menor de 18 (dezoito) ou maior
de 60 (sessenta) anos, ou se o crime é cometido por associação
criminosa, a pena é de reclusão, de 12 (doze) a 20 (vinte) anos (§ 1º
do art. 159 CP); se do fato resulta lesão corporal de natureza grave,
a pena é de reclusão, de 16 (dezesseis) a 24 (vinte e quatro) anos
(§ 2º do art. 159 CP); e se resulta morte, a pena é de reclusão, de
24 (vinte e quatro) a 30 (trinta) anos (§ 3º do art. 159 CP).
A ação, em todas as modalidades de extorsão mediante
sequestro, é de iniciativa pública incondicionada.
3.11
3.11.1
Destaques
Concorrência de mais de uma qualificadora
Pode acontecer que, no caso concreto, esteja presente mais de
uma qualificadora. Assim, por exemplo, pode o sequestro ter sido
cometido por uma associação criminosa, que o praticou contra uma
vítima que contava com mais de 60 (sessenta) anos de idade, além
de ter ficado privada de sua liberdade por mais de 24 (vinte e
quatro) horas, que não resistiu aos maus-tratos no cativeiro e
acabou morrendo. Pergunta-se: Qual das qualificadoras será
aplicada ao caso concreto? Segundo nosso posicionamento, a
maior das qualificadoras, ou seja, aquela que prevê as penas mais
graves, afastará a aplicação das demais, pois não se pode aplicar
duas qualificadoras simultaneamente, haja vista que a pena-base
encontrada depois da análise do art. 59 do Código Penal será de
acordo com as suas balizas mínima e máxima.
No exemplo fornecido, a qualificadora do resultado morte
afastará as demais, que servirão, contudo, ou para efeitos de
aplicação da pena-base, se contidas no rol do art. 59 do diploma
repressivo, ou para efeitos de circunstâncias agravantes, como é o
caso do maior de 60 (sessenta) anos, de acordo com o art. 61, II, h,
segunda figura.
3.11.2
Concurso entre a qualificadora do § 1º do art. 159 do
Código Penal com o crime de associação criminosa
A prática do delito por uma associação criminosa qualifica o
crime de extorsão mediante sequestro, nos termos do § 1º do art.
159 do Código Penal. Nesse caso, deverá o grupo criminoso, além
de ser responsabilizado pela extorsão mediante sequestro
qualificada, também responder penalmente pelo crime de
associação criminosa, tipificado no art. 288 do mesmo diploma
legal?
Há controvérsia doutrinária e jurisprudencial.
Fernando Capez, posicionando-se favoravelmente ao concurso
de crimes, afirma:
“A controvérsia reside em saber se a hipótese configura ou não
bis in idem. Não há que se falar em bis in idem, uma vez que os
momentos consumativos e a objetividade jurídica entre tais
crimes são totalmente diversos, além do que a figura prevista
no art. 288 do Código Penal existe independentemente de
algum crime vir a ser praticado pela quadrilha ou bando. Do
mesmo modo que não há dupla apenação entre associação
criminosa (art. 14 da Lei de Tóxicos) e o tráfico por ela
praticado, aqui também incide a regra do concurso material.”81
A segunda corrente, minoritária, entende pela impossibilidade
de concurso material entre a modalidade qualificada de extorsão
mediante sequestro e o crime de associação criminosa, sob a
alegação, já mencionada por Fernando Capez, do chamado bis in
idem, vale dizer, um mesmo fato, a formação da associação
criminosa, estar incidindo duas vezes em prejuízo do agente.
In casu, somos partidários da corrente que entende pela
possibilidade, pois a própria lei penal foi que se referiu ao crime
cometido
por
associação
criminosa,
já
reconhecendo,
anteriormente, sua existência. Assim, a maior gravidade residiria
justamente no fato de ter sido praticado pelo grupo criminoso, não
reunido eventualmente com esse propósito, mas sim unido, de
forma duradoura, para a prática de um número indeterminado de
crimes, podendo-se contar, entre eles, o delito de extorsão mediante
sequestro.
Assumindo uma posição intermediária, em havendo
concorrência de outra qualificadora com a associação criminosa,
Yuri Carneiro Coelho argumenta:
“Se existir mais de uma qualificadora, entre elas a de o crime
ter sido cometido por quadrilha ou bando e, por exemplo, se o
sequestrado é maior de 60 anos, pode-se qualificar pela idade
da vítima (maior de 60) e a condição de quadrilha ou bando ser
punida autonomamente, como delito do art. 288 do CP em
concurso com o crime de extorsão mediante sequestro.”82
3.11.3
Prisão em flagrante
Tendo em vista a sua natureza de crime permanente, a prisão
em flagrante pode ser realizada desde o início dos atos de execução
até o exaurimento do crime.
Assim, mesmo depois de consumado o delito, com a privação
da liberdade da vítima, mas antes do recebimento do pagamento do
resgate, por exemplo, que seria considerado mero exaurimento,
enquanto a vítima permanecer privada de sua liberdade, será
possível a prisão em flagrante.
3.11.4
Aplicação do art. 9º da Lei nº 8.072/90 ao delito de
extorsão mediante sequestro
Entendemos que não será possível a aplicação ao delito
tipificado no art. 159, caput e seus parágrafos, do Código Penal, da
causa especial de aumento de pena prevista no art. 9º da Lei nº
8.072/90, em virtude da revogação expressa do art. 224 do Código
Penal pela Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009.
Com a devida vênia das posições em contrário, não podemos
raciocinar no sentido de que as hipóteses elencadas pelo art. 224 do
Código Penal, ao qual se remetia o art. 9º da Lei nº 8.072/90, foram
deslocadas para o art. 217-A do Código Penal, que prevê o delito de
estupro de vulnerável.
Não podemos vagar pelo Código Penal à procura de tipos que
se amoldem a remissões já revogadas. Caso seja do interesse do
legislador manter o aumento de pena para o delito tipificado no art.
159, caput e seus parágrafos, do Código Penal, deverá fazê-lo
expressamente.
Nesse sentido, trazemos à colação os ensinamentos de Luiz
Carlos dos Santos Gonçalves, que esclarece que:
“O art. 9º da Lei dos Crimes Hediondos foi tacitamente
revogado, vez que revogado expressamente o art. 224 do
Código Penal, ao qual ele se referia. É certo que há
semelhança entre a situação de vulnerabilidade, mencionada
nos arts. 217-A e 218 e aquelas descritas no revogado art. 224
do Código, mas não se assemelha possível o emprego da
analogia no caso – pois seria in malam partem. O necessário
aumento da pena do roubo, da extorsão e da extorsão mediante
sequestro, praticados contra vítimas menores de 14 anos, com
doença mental ou que não poderiam oferecer resistência, fica,
assim, prejudicado. É a dificuldade da técnica do ‘tipo remetido’:
revogado o artigo mencionado, fica sem aplicação o que o
menciona.”83
O Superior Tribunal de Justiça, analisando o tema, já concluiu
que “com a superveniência da Lei nº 12.015/2009, foi revogada a
majorante prevista no art. 9º da Lei dos Crimes Hediondos, não
sendo mais admissível sua aplicação para fatos posteriores à sua
edição” (REsp 1.102.005-SC, Rel. Min. Félix Fischer, julg.
29/9/2009).
3.11.5
Extorsão mediante sequestro e Código Penal Militar
O crime de extorsão mediante sequestro também veio previsto
no Código Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de
1969), conforme se verifica pela leitura do seu art. 244.
3.11.6
Prioridade de tramitação do processo de extorsão mediante
sequestro simples e qualificada (art. 159, caput, e §§ 1º, 2º
e 3º)
A Lei nº 13.285, de 10 de maio de 2016, acrescentou o art. 394A ao Código de Processo Penal, determinando, verbis:
Art. 394-A. Os processos que apurem
a prática de crime hediondo terão
prioridade de tramitação em todas as
instâncias.
3.11.7
Vítima mantida como refém
A Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, inseriu o
parágrafo único ao art. 25 do Código Penal, dizendo:
Art. 25. (...) Parágrafo único.
Observados os requisitos previstos no
caput deste artigo, considera-se
também em legítima defesa o agente
de segurança pública que repele
agressão ou risco de agressão a
vítima mantida refém durante a prática
de crimes.
Embora fosse desnecessária essa inclusão, se o agente de
segurança pública agir nessas condições, fazendo cessar a situação
de agressão injusta que já existia tão somente com a privação de
liberdade da vítima, independentemente do fato de esta última estar
sendo agredida ou pelo menos com risco de ser agredida, estará
acobertado pela legítima defesa, resguardando-se, contudo, a
possibilidade de ser analisado o excesso, se houver.
3.12
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: qualquer pessoa.
Passivo: qualquer pessoa
(inclusive a pessoa jurídica.
Objeto material
É a pessoa contra a qual recai a
privação da liberdade, mediante
o sequestro.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
O patrimônio (aqui entendido
num sentido mais amplo do que
a posse e a propriedade, pois
que a lei penal fala em qualquer
vantagem),
podendo-se
também apontar a liberdade
individual (principalmente no
que diz respeito ao direito de ir,
vir e permanecer), bem como a
integridade física e psíquica.
Elemento subjetivo
»
»
É o dolo, não existindo
previsão para a modalidade
culposa.
A
doutrina
majoritária
aponta outro elemento
subjetivo,
que
lhe
é
transcendente,
denominado especial fim
de agir, caracterizado pela
expressão com o fim de
obter, para si ou para
outrem,
qualquer
vantagem, como condição
ou preço do resgate.
Modalidades
omissiva
comissiva
e
O delito pode ser praticado
comissiva ou omissivamente.
Consumação e tentativa
»
»
Ocorre a consumação da
extorsão
mediante
sequestro quando o agente
pratica a conduta prevista
no núcleo do tipo, vale
dizer, quando realiza o
sequestro, com a privação
da liberdade ambulatorial
da
vítima,
independentemente
da
obtenção da vantagem,
como condição ou preço do
resgate, que se configura
como mero exaurimento do
delito.
Embora seja um crime
formal, possui a natureza
de delito plurissubsistente,
fracionando-se, pois, o iter
criminis, razão pela qual
será possível a tentativa.
4.
EXTORSÃO INDIRETA
Extorsão indireta Art. 160. Exigir ou
receber, como garantia de dívida,
abusando da situação de alguém,
documento que pode dar causa a
procedimento criminal contra a vítima
ou contra terceiro:
Pena – reclusão, de um a três anos, e
multa.
4.1
Introdução
O item 57 da Exposição de Motivos da Parte Especial do
Código Penal, justificando a criação do tipo penal que prevê a
extorsão indireta, esclarece que este novo dispositivo destina-se a:
57. [...] coibir os torpes e opressivos
expedientes a que recorrem, por
vezes, os agentes da usura, para
garantir-se contra o risco do dinheiro
mutuado. São bem conhecidos esses
recursos como, por exemplo, o de
induzir o necessitado cliente a assinar
um contrato simulado de depósito ou
a forjar no título de dívida a firma de
algum parente abastado, de modo
que, não resgatada a dívida no
vencimento, ficará o mutuário sob a
pressão da ameaça de um processo
por apropriação indébita ou falsidade.
Pela análise da figura típica, podemos verificar que o delito de
extorsão indireta requer, para o seu reconhecimento, a presença
dos seguintes elementos: a) a conduta de exigir, ou mesmo tão
somente de receber documento que possa dar causa a
procedimento criminal contra a vítima ou contra terceiro; b)
existência de uma dívida entre o sujeito passivo e o sujeito ativo; c)
abuso da situação de inferioridade em que se encontra o sujeito
passivo; d) a finalidade de, por meio do documento exigido, garantir
o pagamento do sujeito passivo, sob a ameaça de um processo
penal.
No que diz respeito aos núcleos do tipo, Hungria afirma:
“A lei equipara a exigência ao recebimento, devendo este, como
é claro, ser acompanhado da ciência e consciência de que o
documento (particular ou público) pode dar lugar a processo
penal. No primeiro caso, há a imposição de uma condição sine
qua non; no segundo, há a aceitação de uma proposta ou a
formação de um pacto de iniciativa do próprio devedor (que a lei
protege contra si mesmo), segundo o qual é entregue e aceito o
simulado corpo de delito representado pelo documento.”84
Determina a lei penal, também, que o documento exigido ou
aceito pelo sujeito ativo diga respeito a uma garantia de dívida, ou
seja, faz-se mister a existência de uma dívida, e que o documento
seja o modo pelo qual o agente ficará, em tese, garantido da sua
quitação. Não tem, aqui, qualquer relevância o fundamento ou a
razão de ser da dívida, conforme ressalta Fragoso,85 podendo ser
lícita ou ilícita, como acontece, neste último caso, com a agiotagem.
A ilicitude, na verdade, reside na exigência ou entrega de um
documento que poderá dar causa à instauração de um
procedimento criminal contra a vítima ou mesmo contra terceiro.
Tal documento é exigido ou mesmo entregue pela vítima em
razão de sua situação de desespero, fazendo com que aceite a
exigência de forjar um documento que poderá comprometê-la
criminalmente no futuro, caso não honre com o seu compromisso.
Não tendo outra opção, a vítima se submete às exigências do
agente ou mesmo se dispõe, volitivamente, a entregar-lhe um
documento como garantia de dívida, que, se não for quitada, dará
ensejo a um procedimento criminal contra ela. Entre o risco do
procedimento criminal e a necessidade de ver resolvido
imediatamente o seu problema financeiro, opta por este último,
abusando, pois, o agente, da condição de inferioridade em que se
encontra a vítima.
O art. 160 do Código Penal exige a presença de um
documento, por meio do qual a vítima será ameaçada a quitar a
dívida, sob pena de ser levado ao conhecimento da autoridade
competente, a fim de que seja inaugurado procedimento criminal. O
documento poderá ser público ou particular. Paulo José da Costa
Júnior exemplifica dizendo que o mencionado documento poderá
“consistir em cheques sem suficiente provisão de fundos, em
promissória contendo falsa assinatura, em confissão de autoria de
um crime ou mesmo numa prova de ilícito penal inexistente.”86
O procedimento criminal apontado pelo tipo tanto pode ser a
instauração de inquérito policial ou mesmo a própria ação penal,
haja vista que o Ministério Público poderá oferecer a denúncia sem
a necessidade de estar amparada em inquérito policial, mas tão
somente em peças de informação.
4.2
Classificação doutrinária
Crime comum (pois o tipo não exige nenhuma qualidade
especial do sujeito ativo, bem como do sujeito passivo); doloso;
comissivo; de forma vinculada (uma vez que a lei penal exige a
confecção de um documento, hábil a dar causa a procedimento
criminal); instantâneo; formal (quando disser respeito ao núcleo
exigir) e material (quando diante da conduta de receber), havendo
posição contrária de Guilherme de Souza Nucci, afirmando que, em
ambas as modalidades o delito é formal, pois “o resultado
naturalístico previsto no tipo penal, que não se exige seja atingido,
não é o mero recebimento do documento, mas sim a possibilidade
de dar causa à instauração de um procedimento criminal;”87
monossubjetivo; plurissubsistente; não transeunte.
4.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
Pela análise da figura típica constante do art. 160 do Código
Penal, concluímos que, precipuamente, o bem por ele juridicamente
protegido é o patrimônio. Entretanto, a liberdade individual, mesmo
que mediatamente, também é tutelada pelo tipo penal que prevê a
extorsão indireta.
Objeto material é o documento que poderá dar ensejo à
instauração de procedimento criminal.
4.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
Crime comum, o tipo penal que prevê a extorsão indireta não
indica o sujeito ativo.
Da mesma forma, qualquer pessoa poderá figurar como sujeito
passivo da mencionada infração penal.
Chegamos a essa conclusão uma vez que o que vincula o
sujeito ativo ao sujeito passivo é a relação de débito e crédito, ou
seja, o sujeito ativo gozando o status de credor, e,
consequentemente, o sujeito passivo o de devedor.
Entretanto, essa relação de débito e crédito somente surgirá
com a exigência ou mesmo oferta do documento que dará ensejo,
caso a dívida não seja quitada, à instauração de procedimento
criminal contra a vítima ou contra terceiros. Qualquer pessoa,
portanto, poderá se colocar numa dessas posições, não havendo
necessidade, inclusive, que o sujeito ativo seja, por exemplo, um
“agiota profissional.”
Conforme bem observado por Paulo César Busato:
“Os titulares dos bens jurídicos atingidos podem ser distintos.
Ou seja, é possível que o abuso econômico seja perpetrado
tendo em vista um devedor, impondo uma ameaça para a
quitação da dívida, que consista na oferta de um documento
que pode levar não apenas à instauração de procedimento
criminal contra a própria vítima, mas também eventualmente
contra terceiro. Há possibilidade, assim, da existência de uma
pluralidade de vítimas.”88
4.5
Consumação e tentativa
Na modalidade exigir, o crime se consuma com a prática do
mencionado comportamento, não importando que a vítima,
efetivamente, anua para com a exigência, entregando ao agente o
documento que, com a finalidade de garantir a dívida, poderá dar
causa a procedimento criminal contra ela ou contra terceiro.
Ao contrário, na modalidade receber, o crime somente se
aperfeiçoa quando o sujeito ativo recebe o documento, tratando-se,
aqui, de crime material.
Noronha discorda dessa solução, entendendo que o art. 160 do
Código Penal somente previa um crime formal, “consumando-se tão
só com a ação do agente, abstraída a realização do evento por ele
querido. Não se trata de crime material, pois neste se exige a
efetivação do evento antijurídico a que o agente se propôs: a
produção de um resultado externo, que pode ser impedido ou
obstado, ocorrendo então a tentativa.”89
Não importando a natureza da infração penal, ou seja, se formal
ou mesmo material, caberá a tentativa desde que se possa
visualizar, no caso concreto, o fracionamento do iter criminis.
4.6
Elemento subjetivo
A extorsão indireta somente pode ser praticada dolosamente,
não havendo previsão para a modalidade culposa.
Assim, o agente deve dirigir finalisticamente sua conduta no
sentido de exigir ou receber documento, como garantia de dívida,
abusando da situação da vítima que sabe estar fragilizada e,
portanto, propensa a aceitar qualquer condição para resolver sua
situação financeira, que pode dar causa a procedimento criminal
contra ela própria (vítima) ou contra terceiros.
4.7
Modalidades comissiva e omissiva
Os núcleos exigir e receber pressupõem um comportamento
comissivo, seja do sujeito ativo, seja do sujeito passivo.
No entanto, caso o sujeito goze do status de garantidor, tendo,
por exemplo, o dever de impedir que a vítima entregue documento
que possa dar causa a procedimento criminal contra ela ou contra
terceiro, se, podendo, dolosamente, não atua no sentido de evitar
que a vítima se coloque nessa situação, poderá ser
responsabilizado pelo delito em estudo, via omissão imprópria.
4.8
Pena, ação penal e suspensão condicional do processo
O preceito secundário do art. 160 do Código Penal comina uma
pena de reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa, para o crime
de extorsão indireta.
A ação penal é de iniciativa pública incondicionada.
Poderá ser proposta suspensão condicional do processo,
considerando-se a pena mínima cominada ao delito em estudo, vale
dizer, um ano, nos termos do art. 89 da Lei nº 9.099/95.
4.9
4.9.1
Destaques
Cheque sem fundos e a Súmula nº 246 do STF
Discute-se, doutrinária e jurisprudencialmente, se o cheque
fornecido como garantia de dívida poderia se configurar no
documento exigido pelo art. 160 do Código Penal, uma vez que,
emitido nessa condição, restaria descaracterizado o delito de
estelionato, nos termos preconizados pela Súmula nº 246 do STF,
que diz:
Súmula nº 246. Comprovado não ter
havido fraude, não se configura o
crime de emissão de cheque sem
fundos.
Essa ausência de fraude pode ocorrer mediante duas situações
distintas. A primeira diz respeito à emissão culposa de cheques sem
fundos, vale dizer, o agente, ao emitir o cheque, acreditando que
tivesse fundos em sua conta-corrente, equivoca-se e emite a cártula
sem cobertura bancária. A segunda delas, objeto maior de
discussão, conclui que somente se poderia configurar o crime de
emissão de cheque sem suficiente provisão de fundos, nos moldes
previstos pelo inciso VI do § 2º do art. 171 do Código Penal, quando
mantivesse sua natureza de ordem de pagamento à vista. Caso
contrário, se fosse emitido como simples garantia de dívida, restaria
afastada a figura típica, em razão do fato de ter sido
descaracterizada a sua natureza, pois o emitente não afirma existir
fundos em sua conta, mas que somente, na data aprazada,
depositará a quantia necessária para efeito de cobertura.
Assim, a posição majoritária entende que o cheque emitido
como garantia de dívida não se presta para efeitos de
reconhecimento do crime de estelionato.
Dessa forma, se o agente exige da vítima a emissão de um
cheque como garantia de dívida, tal documento poderia
consubstanciar-se na exigência contida no art. 160 do Código
Penal?
Embora haja posição contrária, entendemos que sim. Isso
porque a lei penal não exige a condenação, nem mesmo a
instauração de um processo penal em face da vítima ou de
terceiros. Na verdade, a exigência diz respeito tão somente a um
documento capaz de dar causa a procedimento criminal, e no
conceito de procedimento criminal podemos incluir o inquérito
policial.
Poderá o delegado de polícia, com fundamento no cheque
emitido sem suficiente provisão de fundos, inaugurar o inquérito
policial, até mesmo para se certificar se aquela cártula foi
confeccionada como garantia de dívida ou como ordem de
pagamento à vista.
Queremos afirmar, portanto, que a simples emissão de um
cheque, mesmo como garantia de dívida, poderá dar causa a
procedimento criminal, razão pela qual não podemos descartar a
possibilidade de o cheque fornecido nessa condição ser suficiente
para a configuração do delito de extorsão indireta.
Concluindo com Noronha, “satisfaz-se a lei com que o
documento possa dar causa a procedimento-crime. Basta, então,
potencialidade; é suficiente ser apto a esse fim.”90
No entanto, em sentido contrário, já decidiu o TJ-MG:
“Apelação – Extorsão indireta – Cheque – Garantia de dívida –
Fato atípico – Crime de cobrança abusiva de juros – Prescrição
retroativa – Ocorrência – Suscitada de ofício. Tendo em vista
que cheque exigido como garantia de dívida não faz documento
hábil a dar margem a instauração de procedimento criminal
contra a vítima, na espécie, torna-se medida imperiosa a
absolvição do réu, em razão da atipicidade do fato” (Proc.
2.0000.00.488029-9/000(1). Rel. Vieira de Brito. Data da
Publicação: 18/2/2006).
4.9.2
Extorsão indireta e Código Penal Militar
O crime de extorsão indireta também veio previsto no Código
Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969),
conforme se verifica pela leitura do seu art. 246.
4.10
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: qualquer pessoa.
Passivo: qualquer pessoa.
Objeto material
É o documento que poderá dar
ensejo
à
instauração
de
procedimento criminal.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
É o patrimônio. Entretanto, a
liberdade individual, mesmo que
mediatamente,
também
é
tutelada.
Modalidades
omissiva
comissiva
e
Os núcleos exigir e receber
pressupõem
um
comportamento comissivo. No
entanto, caso o sujeito goze do
status de garantidor, poderá ser
responsabilizado pelo delito em
estudo, via omissão imprópria.
Consumação e tentativa
»
»
»
Na modalidade exigir, o
crime se consuma com a
prática do mencionado
comportamento,
não
importando que a vítima,
efetivamente, anua para
com
a
exigência,
entregando ao agente o
documento que, com a
finalidade de garantir a
dívida, poderá dar causa a
procedimento
criminal
contra ela ou contra
terceiro.
Na modalidade receber, o
crime
somente
se
aperfeiçoa quando o sujeito
ativo recebe o documento,
tratando-se, aqui, de crime
material.
Não importando a natureza
da infração penal, ou seja,
se formal ou mesmo
material, caberá a tentativa
desde que se possa
visualizar,
no
caso
concreto, o fracionamento
do iter criminis.
1
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 55-56.
2
VIVES ANTÓN, T. S.; BOIX REIG, J.; ORTS BERENGUER, E.; CARBONELL MATEU,
J. C.; GONZÁLEZ CUSSAC, J. L. Derecho penal – Parte especial, p. 405.
3
BATISTA, Weber Martins. O furto e o roubo no direito e no processo penal, p. 206.
4
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 82.
5
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 56.
6
COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal – Parte especial, p. 712.
7
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado, p. 514.
8
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 92-93.
9
BATISTA, Weber Martins. O furto e o roubo no direito e no processo penal, p. 238.
10
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 104.
11
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado, p. 513.
12
BATISTA, Weber Martins. O furto e o roubo no direito e no processo penal, p. 220.
13
COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal – Parte especial, p. 712.
14
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 61.
15
BATISTA, Weber Martins. O furto e o roubo no direito e no processo penal, p. 234.
16
No tópico correspondente aos destaques faremos menção às demais correntes que
disputam o tratamento que deve ser levado a efeito quando estivermos diante de mais
de uma causa especial de aumento de pena.
17
BATISTA, Weber Martins. O furto e o roubo no direito e no processo penal, p. 261.
18
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 59.
19
CUNHA, Sanches Rogério. Manual de direito penal – parte especial, volume único, p.
298.
20
COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Curso de direito penal, v. 2, p. 83.
21
JESUS, Damásio E. de. Direito penal, v. 2, p. 343.
22
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 102.
23
A Lei nº 13.654/2018 revogou o inciso I do § 2º do art. 157 e inseriu o § 2º-A, I para
prever o aumento da pena em 2/3 se violência ou ameaça for exercida com emprego
de arma de fogo.
24
BATISTA, Weber Martins. O furto e o roubo no direito e no processo penal, p. 248.
25
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 97.
26
JORIO, Israel Domingos. Latrocínio, p. 238.
27
BATISTA, Weber Martins. O furto e o roubo no direito e no processo penal, p. 286.
28
GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Primeiras impressões sobre a nova
conceituação do crime de estupro, vinda da Lei nº 12.015/2009. Disponível em:
<http://www.cpcmarcato.com.br/arquivo_interno.php?un=1&arquivo=41>. Acesso em:
02 set. 2009.
29
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 62-63.
30
O argumento de Hungria não mais se justifica, pois a pena mínima do latrocínio foi
aumentada para 20 anos.
31
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal – Parte especial (arts. 121 a 160
CP), p. 308.
32
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 375.
33
JESUS, Damásio E. de. Direito penal, v. 2, p. 375.
34
RT 515/424.
35
OBS.: Atualmente, o latrocínio encontra-se no inciso II do § 3º do art. 157 do Código
penal, com a nova redação que lhe foi conferida pela Lei nº 13.654, de 23 de abril de
2018.
36
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 63-64.
37
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 107.
38
MUÑOZ CONDE, Francisco. Derecho penal – Parte especial, p. 400.
39
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado, p. 515.
40
BATISTA, Weber Martins. O furto e o roubo no direito e no processo penal, p. 265-266.
41
COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal – Parte especial, p. 721.
42
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 69.
43
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 410.
44
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal – Parte especial (arts. 121 a 160
CP), p. 316.
45
GOMES, Luiz Flávio; CUNHA, Rogério Sanchez. Comentários à reforma penal de
2009 e a convenção de Viena sobre o direito dos tratados, p. 19.
46
BATISTA, Weber Martins. O furto e o roubo no direito e no processo penal, p. 189.
47
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal, v. 2, p. 54.
48
GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Primeiras impressões sobre a nova
conceituação do crime de estupro, vinda da Lei nº 12.015/2009. Disponível em:
<http://www.cpcmarcato.com.br/arquivo_interno.php?un=1&arquivo=41>. Acesso em:
02 set. 2009.
49
GOMES, Luiz Flávio; CUNHA, Rogério Sanches. Comentários à reforma penal de
2009 e a convenção de Viena sobre o direito dos tratados, p. 20.
50
BATISTA, Weber Martins. O furto e o roubo no direito e no processo penal, p. 301.
51
A expressão sequestro relâmpago, no entanto, veio consignada na ementa da Lei nº
11.923, de 17 de abril de 2009, dizendo, textualmente: Acrescenta parágrafo ao art.
158 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, para tipificar
o chamado ‘sequestro relâmpago’.
52
OBS.: Agora, a pena máxima é de 18 anos, conforme modificação levada a efeito pela
Lei nº 13.654, de 23 de abril de 2018.
53
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. A Lei nº 11.923/2009 e o famigerado sequestrorelâmpago.
Afinal,
que
raio
de
crime
é
esse?
Disponível
em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=12760>. Acesso em: 29 ago. 2009.
54
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 66-67.
55
NORONHA, Edgar Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 266.
56
Apud Weber Martins Batista. O furto e o roubo no direito e no processo penal, p. 297.
57
BATISTA, Weber Martins. O furto e o roubo no direito e no processo penal, p. 301.
58
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado, p. 839.
59
RANGEL, Paulo. Direito processual penal, p. 611.
60
Já decidiu o STF: “Não é admissível a coautoria após a consumação do crime, salvo
se comprovada a existência de ajuste prévio. A pessoa que participa apenas no
momento do exaurimento do crime, comete crime de favorecimento real, se sabe
prestar auxílio destinado a tornar seguro o proveito do crime” (HC 39.732/RJ, Rel.a
Min.a Maria Thereza de Assis Moura, 6a T., julg. 26/6/2007, DJ 3/9/2007, p. 225).
61
BATISTA, Nilo. Concurso de agentes, p. 88.
62
A Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013, substituiu a rubrica que constava no art. 288
do Código Penal, modificando, ainda, sua redação original. Assim, onde se lê
quadrilha ou bando, leia-se associação criminosa, sendo exigido, com essa
modificação legal, um número mínimo de 3 (três) pessoas para sua formação.
63
FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos, p. 90-91.
64
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, vol. VII, p. 72.
65
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal – Parte especial (arts. 121 a 160
CP), p. 320.
66
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 417.
67
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal, v. 2, p. 253.
68
JESUS, Damásio E. de. Direito penal, v. 2, p. 370.
69
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 139.
70
PEIXINHO, Manoel Messias. A interpretação da constituição e os princípios
fundamentais, p. 39-40.
71
MASSON, Cleber. Direito penal esquematizado – parte especial, v. 2, p. 471.
72
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 135.
73
A Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013, substituiu a rubrica que constava no art. 288
do Código Penal, modificando, ainda, sua redação original. Assim, onde se lê
quadrilha ou bando, leia-se associação criminosa, sendo exigido, com essa
modificação legal, um número mínimo de 3 (três) pessoas para sua formação.
74
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 73.
75
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 74.
76
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 276.
77
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 146.
78
CUNHA, Sanches Rogério. Manual de direito penal – parte especial, volume único, p.
317.
79
LIMA, Renato Brasileiro. Legislação criminal especial comentada, p. 108.
80
FRANCO, Alberto Silva. LIRA, Rafael; FELIX, Yuri. Crimes hediondos, p. 527.
81
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, v. 2, p. 414.
82
COÊLHO, Yuri Carneiro. Curso de direito penal didático, p. 643.
83
GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Primeiras impressões sobre a nova
conceituação do crime de estupro, vinda da Lei nº 12.015/2009. Disponível em:
<http://www.cpcmarcato.com.br/arquivo_interno.php?un=1&arquivo=41>. Acesso em:
02 set. 2009.
84
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 80.
85
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal – Parte especial (arts. 121 a 160
CP), p. 325.
86
COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Direito penal objetivo, p. 293.
87
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado, p. 528.
88
BUSATO, Paulo César. Direito penal – parte especial 1, p. 479.
89
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 281.
90
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 280.
Capítulo III
Da Usurpação
1.
ALTERAÇÃO DE LIMITES, USURPAÇÃO DE ÁGUAS E
ESBULHO POSSESSÓRIO
Alteração de limites
Art. 161. Suprimir ou deslocar
tapume, marco ou qualquer outro sinal
indicativo de linha divisória, para
apropriar-se, no todo ou em parte, de
coisa imóvel alheia:
Pena – detenção, de um a seis
meses, e multa.
§ 1º Na mesma pena incorre quem:
Usurpação de águas
I – desvia ou represa, em proveito
próprio ou de outrem, águas alheias;
Esbulho possessório
II – invade, com violência a pessoa ou
grave ameaça, ou mediante concurso
de mais de duas pessoas, terreno ou
edifício alheio, para o fim de esbulho
possessório.
§ 2º Se o agente usa de violência,
incorre também na pena a esta
cominada.
§ 3º Se a propriedade é particular, e
não há emprego de violência,
somente se procede mediante queixa.
1.1
Introdução
A alteração de limites, a usurpação de águas e o esbulho
possessório são infrações penais que se encontram inseridas no
Capítulo III (Da usurpação), do Título II (Dos crimes contra o
patrimônio), do Código Penal, tendo como finalidade precípua a
proteção do patrimônio de natureza imóvel.
O item 58 da Exposição de Motivos da Parte Especial do
Código Penal nos fornece alguns esclarecimentos a respeito das
infrações penais em estudo, dizendo:
58. Sob a rubrica ‘Da usurpação’, o
projeto incrimina certos fatos que a lei
penal vigente conhece sob diversos
nomen juris ou ignora completamente,
deixando-os na órbita dos delitos
civis. Em quase todas as suas
modalidades, a usurpação é uma
lesão ao interesse jurídico da
inviolabilidade da propriedade imóvel.
Assim, a ‘alteração de limites’ (art.
161), a ‘usurpação de águas’ (Art.
161,§ 1º, I) e o ‘esbulho possessório’,
quando praticados com violência à
pessoa, ou mediante grave ameaça,
ou concurso de mais de duas pessoas
(art. 161, § 1º, II). O emprego de
violência contra a pessoa, na
modalidade da invasão possessória, é
condição de punibilidade, mas, se
dele resulta outro crime, haverá
concurso
material
de
crimes,
aplicando-se,
somadas,
as
respectivas penas (art. 161, § 2º).
Cada uma dessas infrações penais será analisada de forma
isolada, a fim de que sejam evidenciadas, com mais clareza, suas
características particulares. Seus dados comuns, entretanto, serão
estudados conjuntamente, conforme veremos a seguir.
1.2
Alteração de limites
O delito de alteração de limites veio tipificado no caput do art.
161 do Código Penal, com a seguinte redação:
Art. 161. Suprimir ou deslocar
tapume, marco, ou qualquer outro
sinal indicativo de linha divisória, para
apropriar-se, no todo ou em parte, de
coisa imóvel alheia:
Pena – detenção, de um a seis
meses, e multa.
O tipo penal do art. 161 do diploma repressivo exige a presença
dos seguintes elementos, necessários à sua configuração: a) a
conduta de suprimir ou deslocar tapume, marco, ou qualquer outro
sinal indicativo de linha divisória; b) a finalidade de apropriação, no
todo ou em parte, de coisa imóvel alheia.
O núcleo suprimir é utilizado pelo texto legal no sentido de
eliminar, acabar com, fazer desaparecer, isto é, destruir tapume,
marco ou qualquer sinal indicativo de linha divisória. Merecem
registro as lições de Cezar Bitencourt quando afirma que “a ação de
suprimir deve ser apagar, fazer desaparecer por completo a
demarcação da linha divisória, inviabilizando que se possa constatar
onde esta se localizava. Por isso, não caracteriza supressão o
simples ato de arrancar tapumes ou marcos de uma cerca, sem
tapar os respectivos buracos existentes no solo, que são
denunciadores da linha divisória. Ação como essa poderá, no
máximo, caracterizar o crime de dano, ou mesmo de furto, na
hipótese de haver subtração do material extraído.”1 Embora
estejamos de acordo com as lições do renomado autor gaúcho, não
se exige, para a caracterização do delito em tela, que desapareçam,
por completo, todos os vestígios dos sinais anteriormente
existentes. O mais importante, segundo o nosso raciocínio, é o
elemento subjetivo com que atua o sujeito ativo. Se a sua finalidade
era a de se apropriar de imóvel alheio, tentando “apagar” as linhas
divisórias, não poderá ser responsabilizado por crime de dano ou
mesmo de furto se sobraram alguns vestígios, pois estaríamos
modificando completamente o seu dolo, considerando um detalhe
não exigido pela figura típica.
Por outro lado, deslocar deve ser compreendido no sentido de
que o tapume, o marco ou outro sinal indicativo de linha divisória foi
preservado, sendo, contudo removido, afastado para lugar diferente
do de origem, a fim de que o agente, com esse comportamento, se
apropriasse, total ou parcialmente, de coisa imóvel alheia.
O art. 1.297 do Código Civil diz que o proprietário tem o direito
de cercar, murar, valar ou tapar de qualquer modo o seu prédio,
urbano ou rural.
Nélson Hungria faz a distinção entre tapume e marco dizendo:
“Tapume, no sentido estrito que lhe atribui o art. 161, caput, é
toda cerca (sebe viva ou seca, cerca de arame, tela metálica
etc.) ou muro (de pedra, tijolos, adobes, cimento armado)
destinado a assinalar o limite entre dois ou mais imóveis.
Marco é toda coisa corpórea (pedras, piquetes, postes, árvores,
tocos de madeira, padrões etc.) que, artificialmente colocada ou
naturalmente existente em pontos da linha divisória de imóveis,
serve, também, ao fim de atestá-la permanentemente (ainda
que não perpetuamente). Não somente o tapume e o marco
servem ao objetivo de indicação de limites, pois outros meios
podem ser empregados ou utilizados, como, por exemplo,
valas, regos, sulcos, trilhas, cursos d’água etc.”2
Quando o caput do art. 161 do Código Penal faz menção a
qualquer outro sinal indicativo de linha divisória, está se referindo à
necessidade de o intérprete levar a efeito a chamada interpretação
analógica. Assim, inicialmente, a lei penal exemplifica dizendo que
se configura a infração penal em exame suprimir ou deslocar
tapume ou marco para, logo em seguida, determinar que também se
configurará como delito de usurpação de limites a supressão ou
deslocamento de qualquer outro sinal indicativo de linha divisória
que não se constitua em tapume ou marco. Assim, a uma fórmula
casuística, exemplificativa, a lei faz seguir outra fórmula, de
natureza genérica, configurando-se, portanto, a chamada
interpretação analógica.
A supressão ou o deslocamento do tapume, marco ou qualquer
outro sinal indicativo de linha divisória deve ter sido levado a efeito
com a finalidade de apropriação, no todo ou em parte, de coisa
imóvel alheia. Dessa forma, somente se configurará na infração
penal de alteração de limites quando o agente atuar com essa
finalidade especial de apropriação. Caso contrário, não agindo
motivado por esse fim, que se configura em elemento do tipo penal
em estudo, o fato, aí sim, poderá ser caracterizado como outra
infração penal, a exemplo do dano ou mesmo do crime de furto.
1.2.1
Classificação doutrinária
Crime próprio, tanto com relação ao sujeito ativo quanto ao
sujeito passivo, pois somente o proprietário ou o possuidor podem
figurar nessa condição; doloso; formal (não se exigindo a efetiva
apropriação, mas tão somente a conduta de suprimir ou deslocar
tapume, marco, ou qualquer outro sinal indicativo de linha divisória,
para apropriar-se, no todo ou em parte, de coisa imóvel alheia); de
dano; comissivo (excepcionalmente omissivo impróprio, desde que o
agente goze do status de garantidor); de forma vinculada (uma vez
que o tipo penal indica a forma pela qual a infração é praticada, isto
é, destruindo, deslocando tapume, marco etc.); instantâneo;
monossubjetivo; plurissubsistente; não transeunte.
1.2.2
Objeto material e bem juridicamente protegido
A propriedade e a posse da coisa imóvel são os bens
juridicamente protegidos pelo tipo penal que prevê o delito de
alteração de limites.
Hungria, no entanto, afirma que “o que a lei protege com a
incriminação da alteração de limites (como em todas as outras
formas de usurpação) é a propriedade, e não a posse.”3
Em sentido contrário, e a nosso ver com acerto, esclarece
Noronha:
“Objeto específico da tutela do dispositivo é a posse da coisa
imóvel; é ela a objetividade imediata que se tem em vista.
Protegendo-a, protege também a lei a propriedade, pois a
posse é a propriedade exteriorizada, atualizada. Mas, como no
furto, tem preeminência no plano da proteção legal a posse,
ainda que entre em conflito com a propriedade. Se no direito
civil o possuidor pode intentar ação possessória contra o
proprietário, razão maior existe para o direito penal proteger
aquele, quando o ato do segundo apresenta caráter mais grave,
invadindo a órbita do ilícito penal.”4
Assim, entendemos que, de acordo com o raciocínio levado a
efeito por Noronha, bem como considerando-se a própria redação
do tipo penal do art. 161 do diploma repressivo, a propriedade
imóvel, bem como a posse de imóvel são os bens juridicamente
protegidos por este último.
Objetos materiais do delito em estudo são o tapume, marco, ou
qualquer outro sinal de linha divisória.
1.2.3
Sujeito ativo e sujeito passivo
Tendo em vista a sua natureza de crime próprio, somente o
proprietário e o possuidor do imóvel limítrofe é que poderão figurar
como sujeito ativo do delito de alteração de limites. Embora exista
posição em contrário, podemos incluir, também, o possuidor como
sujeito ativo do mencionado delito, principalmente considerando a
possibilidade concreta que tem de usucapir o imóvel, nos termos
dos arts. 1.238, 1.239 e 1.240 do Código Civil.5
Noronha ainda incluía dentre os possíveis sujeitos ativos o
futuro comprador do imóvel, pois, segundo o renomado autor, este:
“Pode suprimir ou deslocar sinais da linha divisória, para que,
mais tarde, venha a obter, pelo preço ajustado, área maior que
possa explorar ou desfrutar.”6
O sujeito passivo é o proprietário ou/e o possuidor do imóvel no
qual são suprimidos ou deslocados os tapumes, marcos ou
quaisquer outros sinais indicativos de linha divisória.
1.2.4
Consumação e tentativa
Consuma-se o delito de alteração de limites quando o agente
pratica os comportamentos típicos de suprimir ou deslocar tapume,
marco ou qualquer outro sinal indicativo de linha divisória, ou seja,
no momento em que o destrói, elimina ou mesmo o modifica de
lugar, com a finalidade de se apropriar, total ou parcialmente, de
coisa imóvel alheia.
Sendo um crime plurissubsistente, entendemos perfeitamente
admissível a tentativa, a exemplo daquele que é surpreendido no
momento em que começava a arrancar o marco de limitação do
imóvel, não consumando a infração penal por circunstâncias alheias
à sua vontade.
Não há necessidade de que se efetive a apropriação, entendida
aqui, conforme preleciona Cezar Roberto Bitencourt, como simples
“apossamento ou apoderamento ilegítimo da propriedade imóvel
alheia”,7 que é considerada como um exaurimento do crime.
1.2.5
Elemento subjetivo
O tipo penal do art. 161 do diploma repressivo só pode ser
praticado dolosamente, não havendo previsão para a modalidade
culposa.
Assim, somente haverá o crime de alteração de limites se o
agente, dolosamente, vier a suprimir ou deslocar tapumes, sabendo
que se encontravam afixados em lugar correto.
Além do dolo de suprimir ou deslocar tapume, marco ou
qualquer outro sinal indicativo de linha divisória, para a doutrina
dominante o agente deve atuar com uma finalidade especial, que
transcende ao dolo, caracterizada pelo especial fim de agir
consistente na finalidade de se apropriar, no todo ou em parte, de
coisa imóvel alheia.
Não basta, portanto, a conduta de suprimir ou deslocar tapume,
marco etc., pois, ao praticar esses comportamentos, deve agir
motivado pelo fim especial de se apropriar de coisa imóvel alheia;
caso contrário, o fato poderá se configurar em outra infração penal,
conforme já destacamos acima, a exemplo dos delitos de furto e
dano, além da possibilidade de ocorrência do crime de fraude
processual, tipificado no art. 347 do Código Penal, quando o agente
inova artificiosamente, na pendência de processo civil ou
administrativo, o estado de lugar, de coisa (no caso o tapume, o
marco ou qualquer sinal indicativo de linha divisória) ou de pessoa,
com o fim de induzir a erro o juiz ou o perito. Também poderá
configurar-se no delito de exercício arbitrário das próprias razões,
previsto pelo art. 345 do Código Penal, caso não se considere o seu
comportamento como um desforço imediato, nos termos do § 1º do
art. 1.210 do Código Civil, verbis:
Art. 1.210. O possuidor tem o direito a
ser mantido na posse em caso de
turbação, restituído no de esbulho, e
segurado de violência iminente, se
tiver justo receio de ser molestado.
§ 1º O possuidor turbado, ou
esbulhado, poderá manter-se ou
restituir-se por sua própria força,
contanto que o faça logo; os atos de
defesa, ou de desforço, não podem ir
além do indispensável à manutenção,
ou restituição da posse.
A apropriação deve ser dirigida à coisa imóvel alheia, devendo
ser entendida essa expressão como o imóvel por natureza, vale
dizer, o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou
artificialmente, nos termos do art. 79 do Código Civil.
1.2.6
Modalidades comissiva e omissiva
Os núcleos suprimir e deslocar pressupõem um comportamento
comissivo do agente. Entretanto, nada impede que se raciocine em
termos de omissão imprópria, caso o agente goze do status de
garantidor, agindo com dolo no sentido de não impedir que terceiro
se aproprie de parte de um terreno pertencente ao garantido,
suprimindo ou mesmo deslocando tapume, marco, ou qualquer
outro sinal indicativo de linha divisória.
1.2.7
Quadro-resumo
Sujeitos
»
Ativo:
somente
o
proprietário e o possuidor
do imóvel limítrofe.
»
Passivo: proprietário ou/e o
possuidor do imóvel no
qual são suprimidos ou
deslocados os tapumes,
marcos
ou
quaisquer
outros sinais indicativos de
linha divisória.
Objeto material
O tapume, marco, ou qualquer
outro sinal de linha divisória.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
A propriedade e a posse da
coisa imóvel.
Elemento subjetivo
»
»
É o dolo, não havendo
previsão para a modalidade
culposa.
Para a doutrina dominante
o agente deve atuar com
uma finalidade especial,
que transcende ao dolo,
caracterizada pelo especial
fim de agir consistente na
finalidade de se apropriar,
no todo ou em parte, de
coisa imóvel alheia.
Modalidades
omissiva
comissiva
e
»
»
Os núcleos suprimir e
deslocar pressupõem um
comportamento comissivo
do agente.
Entretanto, nada impede
que se raciocine em termos
de omissão imprópria, caso
o agente goze do status de
garantidor.
Consumação e tentativa
»
Consuma-se
o
delito
quando o agente pratica os
comportamentos típicos de
suprimir
ou
deslocar
tapume, marco ou qualquer
outro sinal indicativo de
linha divisória, ou seja, no
momento em que o destrói,
»
1.3
elimina ou mesmo o
modifica de lugar, com a
finalidade de se apropriar,
total ou parcialmente, de
coisa imóvel alheia.
Sendo
um
crime
plurissubsistente,
é
admissível a tentativa.
Usurpação de águas
O inciso I do § 1º do art. 161 do Código Penal prevê o delito de
usurpação de águas, cominando uma pena de detenção, de 1 (um)
a 6 (seis) meses, e multa, para aquele que desvia ou represa, em
proveito próprio ou de outrem, águas alheias.
O art. 1.290 do Código Civil, a seu turno, determina, verbis:
Art. 1.290. O proprietário de nascente, ou do solo onde caem
águas pluviais, satisfeitas as necessidades de seu consumo,
não pode impedir, ou desviar o curso natural das águas
remanescentes pelos prédios inferiores.
Merece registro, ainda, o fato de que as águas, enquanto parte
líquida do solo, são consideradas imóveis, nos termos do art. 79 do
Código Civil, que diz serem bens imóveis o solo e tudo quanto se
lhe incorporar natural ou artificialmente.
Nos termos da redação legal, consideram-se como elementos
do tipo penal de usurpação de águas: a) desviar ou represar; b) em
proveito próprio ou de outrem; c) águas alheias.
O núcleo desviar deve ser entendido no sentido de modificar o
curso normal, natural das águas, enquanto represar significa reter,
ou seja, interromper o curso, impedindo, de alguma forma, de fluir
normalmente.
As condutas de desviar e represar devem ser praticadas no
sentido de trazer algum proveito para o próprio agente ou para
terceiro. Essa é a finalidade especial contida no delito em estudo.
Pode acontecer, inclusive, que o beneficiado pelo represamento ou
pelo desvio sequer tenha tomado conhecimento da conduta
praticada pelo agente, podendo, inclusive, supor que tal fato se deu
por força da natureza. Com isso, queremos afirmar que, mesmo não
sendo beneficiado com o desvio ou o represamento, o agente
poderá ser responsabilizado pelo delito em tela, bastando que tenha
dirigido finalisticamente sua conduta no sentido de beneficiar
terceiros, mesmo que estes sequer tomem conhecimento do seu
comportamento.
O tipo penal exige, ainda, que as águas sejam alheias, isto é,
não sejam de propriedade do agente, podendo, no entanto, ser
públicas ou mesmo privadas. Esclarece Hungria que se o desvio ou
represamento:
“É praticado pelo proprietário das águas, ainda quando
arrendado a outrem o terreno em que se encontrem, inexiste o
crime (haverá no caso mero ilícito civil). No caso, porém, de
águas comuns ou em condomínio, poderá ser sujeito ativo do
crime qualquer dos proprietários das terras atravessadas ou
banhadas pelas águas ou qualquer dos condôminos, desde
que, com o desvio ou represamento, seja impedida a utilização
pelos demais proprietários ou condôminos. O específico
elemento subjetivo do crime é o lucri faciendi animus, isto é, o
fim de obter, para si ou para outrem, um proveito patrimonial ou
econômico. Se o agente é movido, in exemplis, por vingança ou
despeito, o crime será o de dano; se para satisfazer pretensão
legítima ou supostamente tal, exercício arbitrário das próprias
razões; se para inovar artificialmente, em processo judiciário ou
administrativo, o estado de lugar, com o fim de induzir a erro o
juiz ou perito, fraude processual.”8
1.3.1
Classificação doutrinária
Crime comum com relação ao sujeito ativo e próprio no que diz
respeito ao sujeito passivo; doloso; comissivo (podendo, contudo,
ser praticado na omissão imprópria, desde que o agente goze do
status de garantidor); de dano; formal (pois o tipo penal não exige
que o agente tenha, efetivamente, tido algum proveito com o desvio
ou represamento, bastando que pratique uma das mencionadas
condutas); de forma livre; instantâneo; monossubjetivo;
plurissubsistente; não transeunte.
1.3.2
Objeto material e bem juridicamente protegido
Bens juridicamente protegidos, de acordo com a ilação que
pode ser feita do inciso I do § 1º do art. 161 do Código Penal, são,
também, a posse e a propriedade imobiliárias, enfatizando-se,
conforme salienta Cezar Roberto Bitencourt, “o direito sobre o uso
das águas por seu titular. Protege-se aqui o direito real do
proprietário, e não simplesmente um direito pessoal ou
obrigacional.”9
Objeto material são as águas, entendidas, aqui, como parte do
solo, isto é, consideradas como imóveis. Nesse sentido, são as
lições de Álvaro Mayrink da Costa quando afirma:
“Objeto material da ação é o ato de desviar a massa líquida
alheia, que se constitui em águas no estado natural, fluentes ou
estagnadas, não importando que se trate de correntes
contínuas ou intermitentes, superficiais ou subterrâneas,
correntes ou paradas, públicas ou privadas. Não se incluem as
res nullius.”10
1.3.3
Sujeito ativo e sujeito passivo
Crime comum com relação ao sujeito ativo, o delito de
usurpação de águas pode ser praticado por qualquer pessoa, uma
vez que o tipo penal não exige qualquer qualidade ou condição
especial do agente para a sua configuração.
Ao contrário, no que diz respeito ao sujeito passivo, somente o
proprietário e o possuidor é que podem figurar nessa condição,
sendo, aqui, considerado como próprio o delito em estudo, podendo,
nesse caso, ser tanto uma pessoa física quanto uma pessoa
jurídica.
1.3.4
Consumação e tentativa
Crime formal, o delito de usurpação de águas se consuma no
momento em que ocorre o desvio ou o represamento de águas
alheias, independentemente do fato de ter o agente conseguido
auferir proveito desse comportamento para si ou para terceiro.
Tratando-se de crime plurissubsistente, sendo possível, pois,
fracionar-se o iter criminis, é perfeitamente admissível a tentativa.
1.3.5
Elemento subjetivo
O tipo penal do inciso I do § 1º do art. 161 do estatuto
repressivo, que prevê o delito de usurpação de águas, somente
pode ser praticado dolosamente, não havendo previsão para a
modalidade culposa. Assim, aquele que, culposamente, vier a
desviar o curso natural de águas alheias, praticará um
comportamento penalmente irrelevante, podendo, entretanto, se for
o caso, ser responsabilizado na esfera civil.
Além do dolo de desviar ou represar águas alheias, a doutrina
majoritária visualiza, ainda, outro elemento subjetivo que transcende
ao dolo, vale dizer, o chamado especial fim de agir, caracterizado
pela finalidade do agente de levar a efeito tais comportamentos em
proveito próprio ou de terceiros.
Para nós, essa finalidade especial integra o dolo do agente, não
podendo ser considerada como outro elemento subjetivo, que o
transcenderia. Por isso, se o agente não atua com esse dolo, ou
seja, se não atua objetivando desviar ou represar, em proveito
próprio ou de terceiro, águas alheias, mas tão somente com a
vontade de prejudicar a vítima, o fato não se amoldará ao delito de
usurpação de águas, por ausência desse necessário elemento
subjetivo, podendo se subsumir a uma outra figura típica, a exemplo
do crime de dano, tipificado no art. 163 do Código Penal.
1.3.6
Modalidades comissiva e omissiva
Os núcleos desviar e represar pressupõem um comportamento
comissivo do agente.
Entretanto, será perfeitamente possível o raciocínio em termos
de omissão imprópria, desde que o agente goze do status de
garantidor e atue com dolo de não impedir, mesmo devendo e
podendo agir, que terceiro desvie ou represe, em proveito próprio ou
de outrem, as águas pertencentes ao garantido.
1.3.7
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: qualquer pessoa.
Passivo: o proprietário e o
possuidor.
Objeto material
As águas, entendidas, aqui,
como parte do solo, isto é,
consideradas como imóveis.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
A posse e a propriedade
imobiliárias,
enfatizando-se,
conforme
salienta
Cezar
Roberto Bitencourt, “o direito
sobre o uso das águas por seu
titular. Protege-se aqui o direito
real do proprietário, e não
simplesmente
um
direito
pessoal
ou
obrigacional”
(BITENCOURT, 2003, p. 170).
Elemento subjetivo
»
»
É o dolo, não havendo
previsão para a modalidade
culposa.
A
doutrina
majoritária
visualiza,
ainda,
outro
elemento subjetivo que
transcende ao dolo, vale
dizer, o chamado especial
fim de agir, caracterizado
pela finalidade do agente
de levar a efeito tais
comportamentos
em
proveito próprio ou de
terceiros.
Modalidades
omissiva
comissiva
e
Os núcleos desviar e represar
pressupõem
um
comportamento comissivo do
agente.
Entretanto,
será
possível o raciocínio em termos
de omissão imprópria, desde
que o agente goze do status de
garantidor.
Consumação e tentativa
»
»
1.4
O delito de usurpação de
águas se consuma no
momento em que ocorre o
desvio ou o represamento
de
águas
alheias,
independentemente do fato
de ter o agente conseguido
auferir
proveito
desse
comportamento para si ou
para terceiro.
Tratando-se
de
crime
plurissubsistente,
sendo
possível, pois, fracionar-se
o
iter
criminis,
é
perfeitamente admissível a
tentativa.
Esbulho possessório
A última das figuras típicas previstas no inciso II do § 1º do art.
161 do Código Penal é o chamado esbulho possessório, que
comina, da mesma forma que nas infrações penais anteriores, uma
pena de detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, e multa, para aquele
que invade, com violência a pessoa ou grave ameaça, ou mediante
o concurso de mais de duas pessoas, terreno ou edifício alheio,
para o fim de esbulho possessório.
Pela análise da redação típica, podemos destacar os seguintes
elementos que integram o delito de esbulho possessório: a) a
invasão de terreno ou prédio alheio; b) o emprego de violência a
pessoa ou grave ameaça; c) alternativamente, o concurso de
pessoas; d) a finalidade especial de praticar o esbulho possessório.
O núcleo invadir é utilizado no texto com o sentido de ingresso
não autorizado em terreno ou prédio alheio, através do emprego de
violência à pessoa ou grave ameaça, ou mediante o concurso de
mais de duas pessoas.
Isso significa que se a invasão se der às ocultas, ou seja, sem o
conhecimento do proprietário ou do possuidor, não havendo,
obviamente, o emprego de violência, em face de sua
clandestinidade, o fato somente se configurará em esbulho
possessório se for praticado mediante o concurso de mais de duas
pessoas, isto é, no mínimo, três pessoas.
A violência à pessoa (vis corporalis) é uma das formas pelas
quais o crime pode ser praticado. A própria lei penal esclarece
dizendo que a violência, considerada como o elemento do esbulho
possessório, é aquela praticada contra a pessoa, não a simples
violência contra a coisa (como acontece, por exemplo, quando o
agente, para entrar no terreno que será objeto do esbulho, destrói a
cerca que tinha a finalidade de impedir o acesso de pessoas não
autorizadas naquele local). Além da violência contra a pessoa,
poderá a infração ser levada a efeito com o emprego de grave
ameaça, ou seja, a vis compulsiva, forma através da qual o agente
intimida a vítima, a fim de que possa esbulhar o terreno ou edifício
alheio.
Não havendo violência física, tampouco violência moral (grave
ameaça), poderá ainda se configurar o delito em estudo na hipótese
em que pelo menos três pessoas, agindo em concurso, invadirem
terreno ou edifício alheio, com o fim de esbulhá-lo.
Alguns autores entendem ser dúbia a expressão mediante
concurso de mais de duas pessoas utilizada pelo inciso II do § 1º do
art. 161 do Código Penal, a exemplo de Luiz Regis Prado, que
afirma:
“A presença de duas ou mais pessoas é elemento controvertido
na doutrina, em face de sua redação, que gera dúvidas acerca
da interpretação do dispositivo. Assim, uma corrente entende
ser preciso três pessoas além do autor, e outra acredita que é
suficiente o número de três. Apoia-se a primeira corrente, pois a
lei não diz (como no furto e no roubo) ‘se o crime é cometido
mediante o concurso’ ou ‘se há concurso’, mas, sim, ‘invadir...
mediante concurso’. Alguém invade mediante concurso de mais
de duas pessoas, de modo que os autores ou partícipes são, no
mínimo, quatro.”11
Apesar do brilhantismo do renomado autor, ousamos dele
discordar. A lei penal é clara no sentido de apontar que o concurso
de mais de duas pessoas, ou seja, três, pode caracterizar o delito de
esbulho possessório, se presente a finalidade especial contida no
tipo penal em análise. Sabemos, sim, que o legislador parece gostar
de inovar, pois, ao invés de padronizar as redações legais, as
modifica, desnecessariamente, em cada tipo penal. Veja-se o
exemplo comparativo entre os arts. 155 e 157 do Código Penal. No
primeiro, ao se referir ao objeto da infração penal, denomina-o coisa
alheia móvel, enquanto no segundo passa a ser coisa móvel alheia.
Ao contrário do que afirmou Luis Regis Prado, concessa vênia,
embora o art. 155, § 4º, IV, ao mencionar o concurso de pessoas,
utilize a expressão se o crime é cometido, isso não acontece com o
crime de roubo, onde o inciso II do § 2º do art. 157 do mesmo
diploma repressivo, somente se vale da expressão se há o concurso
de duas ou mais pessoas.
Portanto, embora haja controvérsia, entendemos que a lei penal
é clara no sentido de exigir um mínimo de três pessoas para a
possibilidade de configuração do crime de esbulho possessório.
Finalmente, para que se caracterize a infração penal em
estudo, será preciso que o agente atue com a finalidade especial de
esbulhar a posse de terreno ou edifício alheio, sem a qual o fato
poderá se configurar em outra infração penal, ou mesmo ser
considerado atípico.
Assim, de acordo com as lições de Hungria, o fim do agente:
“Deve ser o de ocupação (total ou parcial) do terreno ou edifício
alheio, para aí comportar-se ut dominus. A invasão sem tal
escopo será mero ilícito civil, salvo no concernente à violência
(contra a pessoa ou contra a coisa), se houver. Se o agente
procede para satisfazer pretensão legítima ou putativamente tal,
o crime será o de exercício arbitrário das próprias razões. Se o
réu defender-se com tal pretensão, o próprio juiz penal poderá
resolver a controvérsia ou, se já tiver sido provocado o juízo
cível, aguardar a decisão deste (art. 93 do Cód. de Proc.
Penal).”12
Dessa forma, se a invasão se der pacificamente, ou seja, sem o
emprego de violência contra a pessoa, sem o recurso à grave
ameaça, e não tendo sido levada a efeito mediante o concurso de
mais de duas pessoas, o fato será atípico com relação à figura do
esbulho possessório.
1.4.1
Classificação doutrinária
Crime comum, com relação ao sujeito ativo; próprio no que diz
respeito ao sujeito passivo; doloso; comissivo (podendo, contudo,
ser praticado via omissão imprópria, desde que o agente goze do
status de garantidor); de forma livre; instantâneo; formal;
monossubjetivo; plurissubsistente; não transeunte.
1.4.2
Objeto material e bem juridicamente protegido
Bens juridicamente protegidos pelo inciso II do § 1º do art. 161
do Código Penal são a posse e a propriedade imobiliária. Cezar
Roberto Bitencourt alerta para o fato de que no tipo penal que prevê
o crime de esbulho possessório:
“São tuteladas igualmente a integridade e a saúde física e
mental do sujeito passivo, na medida em que o crime pode ser
praticado com violência ou grave ameaça à pessoa. O modus
operandi ofende, paralelamente, esses aspectos da pessoa
humana, que são abundantemente protegidos no Título que
cuida dos crimes contra a pessoa. Essa proteção múltipla de
bens jurídicos distintos permite que se possa classificá-lo como
espécie de crime complexo.”13
Objeto material é o terreno ou edifício alheio.
1.4.3
Sujeito ativo e sujeito passivo
Crime comum, o esbulho possessório permite que qualquer
pessoa figure como sujeito ativo dessa infração penal, exceto se for
o proprietário ou mesmo o possuidor do terreno ou edifício.
Entretanto, Noronha admitia a prática do delito pelo proprietário
tratando-se de condomínio pro diviso, conforme apontado no item
correspondente aos destaques (item 7).
Ao contrário, com relação ao sujeito passivo, somente o
proprietário e o possuidor é que podem figurar nessa condição,
sendo, portanto, sob esse enfoque, considerado como próprio o
delito sub examen, merecendo ressaltar o fato de que tanto a
pessoa física quanto a jurídica podem sofrer com a conduta
praticada pelo agente, razão pela qual ambas podem ser
consideradas sujeito passivo.
1.4.4
Consumação e tentativa
Consuma-se o delito de esbulho possessório com a efetiva
invasão do terreno ou prédio alheio, mesmo que por curto espaço
de tempo, não havendo necessidade, dada a sua natureza formal,
de o agente permanecer na posse do imóvel, como se fosse o
legítimo proprietário ou possuidor, pois, caso isso venha a
acontecer, será considerado mero exaurimento do crime.
Tratando-se de crime plurissubsistente, é admissível a tentativa,
tendo em vista a possibilidade de ser fracionado o iter criminis.
1.4.5
Elemento subjetivo
O delito de esbulho possessório só pode ser praticado
dolosamente, não havendo previsão legal para a modalidade de
natureza culposa.
A doutrina dominante visualiza, ainda, outro elemento subjetivo,
transcendente ao dolo, denominado especial fim de agir,
caracterizado pela expressão para o fim de esbulho possessório.
Somente se configurará a infração penal em exame se o agente
atuar com essa finalidade, dita especial pela doutrina, que é a de
esbulhar a posse de terreno ou prédio alheio. Esbulhar deve ser
entendido no sentido de passar a ocupar o lugar que
originariamente era do possuidor ou do proprietário, razão pela qual
Noronha afirma que “se o agente invade o imóvel com o fito de fruir
ou explorar, momentaneamente, uma parte do imóvel, sem desalojar
o possuidor, nem essa intenção tendo, não poderá ser punido nos
termos do artigo.”14
1.4.6
Modalidades comissiva e omissiva
O núcleo invadir pressupõe um comportamento comissivo por
parte do agente.
No entanto, não se descarta a hipótese de o crime ser praticado
via omissão imprópria, desde que o omitente goze do status de
garantidor, atuando com dolo no sentido de permitir o esbulho do
terreno ou prédio de propriedade do garantido.
1.4.7
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: qualquer pessoa,
exceto o proprietário ou
mesmo o possuidor do
terreno ou edifício.
Passivo: o proprietário e o
possuidor.
Objeto material
Conforme as lições de Cleber
Masson (2012, p. 476), “há dois
objetos materiais: o imóvel
invadido e a pessoa que
suporta a violência ou a grave
ameaça”.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
A posse e a propriedade
imobiliária.
Cezar
Roberto
Bitencourt alerta para o fato de
que no tipo penal “são tuteladas
igualmente a integridade e a
saúde física e mental do sujeito
passivo, na medida em que o
crime pode ser praticado com
violência ou grave ameaça à
pessoa” (BITENCOURT, 2003,
p. 176).
Elemento subjetivo
»
»
O
delito
de
esbulho
possessório só pode ser
praticado dolosamente, não
havendo previsão legal
para a modalidade de
natureza culposa.
A
doutrina
dominante
visualiza,
ainda,
outro
elemento
subjetivo,
transcendente ao dolo,
denominado especial fim
de agir, caracterizado pela
expressão para o fim de
esbulho possessório.
Modalidades
omissiva
»
»
comissiva
e
O núcleo invadir pressupõe
um
comportamento
comissivo por parte do
agente.
No
entanto,
não
se
descarta a hipótese de o
crime ser praticado via
omissão imprópria, desde
que o omitente goze do
status
de
garantidor,
atuando com dolo no
sentido de permitir o
esbulho do terreno ou
prédio de propriedade do
garantido.
Consumação e tentativa
»
»
1.5
Consuma-se o delito com a
efetiva invasão do terreno
ou prédio alheio, mesmo
que por curto espaço de
tempo,
não
havendo
necessidade, dada a sua
natureza formal, de o
agente permanecer na
posse do imóvel, como se
fosse o legítimo proprietário
ou possuidor.
Tratando-se
de
crime
plurissubsistente,
é
admissível a tentativa.
Emprego de violência na usurpação
O § 2º do art. 161 do Código Penal determina, verbis:
§ 2º Se o agente usa de violência,
incorre também na pena a esta
cominada.
Isso significa que, em qualquer das três modalidades de
usurpação previstas pelo art. 161 do Código Penal – alteração de
limites, usurpação de águas e esbulho possessório –, o agente
deverá também responder pela violência praticada em concurso
formal de crimes, embora aplicando-se a regra relativa ao cúmulo
material, em razão do fato de ter atuado com o chamado desígnio
autônomo, previsto na última parte do caput do art. 70 do Código
Penal.
Não há, no caso, como sugere o item 58 da Exposição de
Motivos da Parte Especial do Código Penal, um concurso material
de crimes, uma vez que podemos visualizar uma conduta única,
produtora de dois resultados – o correspondente à violência e à
usurpação.
Se qualquer das infrações penais for praticada com o emprego
de grave ameaça, esta, na qualidade de crime-meio, será absorvida
pelo crime-fim, uma vez que não existe ressalva legal para que
possa levar a efeito a punição do agente por esse fato, considerado,
também, como delito.
1.6
Pena, ação penal, competência para julgamento e
suspensão condicional do processo
A pena para as três modalidades de usurpação previstas no art.
161 e seu § 1º do Código Penal, vale dizer, alteração de limites,
usurpação de águas e esbulho possessório, é de detenção, de 1
(um) a 6 (seis) meses, e multa.
Se houver o emprego de violência na prática de qualquer dos
delitos anteriormente apontados, será aplicado raciocínio do
concurso formal de crimes, aplicando-se a regra do cúmulo material
de penas.
A competência para julgamento dos crimes previstos pelo art.
161 do Código Penal será do Juizado Especial Criminal, a não ser
na hipótese de concurso formal com a lesão corporal de natureza
grave, resultante do emprego de violência, sendo viável, ainda, a
possibilidade de proposta de suspensão condicional do processo,
caso os delitos não tenham sido praticados mediante o emprego de
violência ou, se esta tiver ocorrido, a soma das penas não
ultrapassar o limite de um ano, determinado pelo art. 89 da Lei nº
9.099/95, como seria o caso, v.g., da soma das penas mínimas dos
crimes de esbulho possessório (um mês), com as lesões corporais
leves (três meses).
Nos termos do § 3º do art. 161 do Código Penal, se a
propriedade é particular, e não há o emprego de violência, somente
se procede mediante queixa. Interpretando-se o mencionado
parágrafo, a contrario sensu, se a propriedade é pública, a ação
penal será, consequentemente, de iniciativa pública incondicionada.
1.7
1.7.1
Destaques
O movimento dos Sem-Terra e o estado de necessidade
Temos presenciado, de forma constante, por intermédio da
imprensa, as invasões de terras promovidas por pessoas filiadas ao
movimento conhecido como “Sem-Terra.” Percebe-se que, em
muitas ocasiões, tais invasões são levadas a efeito com o emprego
de violência e, em quase todos os casos, mediante o concurso de
mais de duas pessoas, o que caracterizaria, em tese, o delito de
esbulho possessório, em face da finalidade especial do grupo em se
radicar naquele novo lugar.
Entretanto, pergunta-se: seria viável a alegação do estado de
necessidade
pelas
pessoas
invasoras,
afastando-se,
consequentemente, a infração penal relativa ao esbulho
possessório?
Entendemos que sim, uma vez que, para que se reconheça o
estado de necessidade, o primeiro raciocínio que deve ser levado a
efeito diz respeito ao confronto dos bens, ambos juridicamente
protegidos, sendo que um deles, em tese, deve perecer para que o
outro, mais importante, subsista.
A Constituição Federal, considerada como a Constituição
Cidadã, elenca, no Capítulo relativo aos direitos e deveres
individuais e coletivos, inseridos em seu Título II, correspondente
aos direitos e garantias fundamentais, de um lado, o direito de
propriedade (inciso XXII, do art. 5º), que merece e deve ser
respeitado; de outro, vários direitos também inerentes à pessoa
humana, tais como a vida, a liberdade, a igualdade, a segurança, a
moradia, a educação etc., que, somados a outros, nos dão a noção
necessária de dignidade da pessoa humana.
Não há como se falar em existência digna se a pessoa, em
virtude da ausência do Estado Social, não tem o que comer ou o
que vestir, se não tem um teto onde possa repousar, se não
consegue cuidar das doenças que, ao longo de nossa vida, surgem
a toda hora. Enfim, há um conjunto de necessidades que, se
satisfeitas, tornam a existência humana mais digna.
No caso específico dos chamados Sem-Terra, de um lado, há a
necessidade de subsistência, de manutenção da própria vida
daqueles que não tem onde morar e que pretendem, se forem ali
radicados, levar adiante sua vida com um pouco mais de dignidade,
cultivando a terra para que produza os alimentos indispensáveis à
manutenção do corpo, bem como para que tenham um lugar para
repouso; do outro lado, como regra, temos uma propriedade
improdutiva, destinada, quase que exclusivamente, à exploração
econômica ou financeira. Há um investimento, como outro qualquer,
onde muitas vezes seu proprietário a adquire por preço irrisório,
aguardando a melhora do mercado para que possa vendê-la
lucrativamente.
No caso em exame, entre a subsistência dos Sem-Terra e a
exploração econômica da terra, aquela deve prevalecer em
detrimento desta, podendo-se visualizar, com tranquilidade, a
situação característica do estado de necessidade. É claro que não
podemos confundir o raciocínio correspondente à ausência de
infração penal por parte dos “invasores sem-terra”, com a
necessidade, inafastável, do Estado de indenizar aqueles que
tiveram seus terrenos invadidos em virtude da sua própria
incapacidade em administrar a coisa pública, levando a efeito uma
distribuição condigna de bens.
Deverá o Estado, portanto, considerando caso a caso, efetivar a
desapropriação por interesse social, nos termos do art. 184 da
Constituição Federal.
No entanto, também devemos separar o joio do trigo, pois nem
todas as invasões perpetradas por integrantes do movimento dos
Sem-Terra são motivadas pela situação de estado de necessidade.
Existem, infelizmente, mercenários que se dizem filiados ao
movimento, mas que, na verdade, utilizam essa “fachada” para
adquirir terras que serão, futuramente, por eles exploradas
economicamente.15 Se valem do movimento como um negócio ilícito
de ganho e venda, pois, assim que adquirem as terras
desapropriadas pelo governo, procuram vendê-las a terceiros e, por
mais uma vez, buscam um outro lugar para invadir e lucrar.
Esses, como se percebe, não podem ser beneficiados com o
raciocínio do estado de necessidade, tratando-se, pois, de
criminosos comuns que merecem, como outros, a punição prevista
pela lei penal.
1.7.2
Proprietário como sujeito ativo dos crimes de alteração de
limites e esbulho possessório
Há controvérsia doutrinária no que diz respeito à possibilidade
de o proprietário ser considerado sujeito ativo dos delitos de
alteração de limites e esbulho possessório, uma vez que o caput do
art. 161 do estatuto repressivo menciona expressamente que a
supressão ou o deslocamento do tapume, marco ou qualquer outro
sinal indicativo de linha divisória deve ser levada(o) a efeito com a
finalidade de apropriação, no todo ou em parte, de coisa imóvel
alheia, bem como o inciso II do § 1º do referido artigo diz
caracterizar-se o esbulho possessório quando a invasão, mediante
violência à pessoa ou grave ameaça, ou mediante concurso de mais
de duas pessoas, ocorrer em terreno ou edifício alheio.
Assim, portanto, as elementares coisa imóvel alheia e terreno
ou edifício alheio, constantes dos mencionados artigos, impediriam
a prática dos delitos pelos proprietários do imóvel.
Noronha, analisando detidamente a questão, conclui:
“Cremos que no condomínio pro indiviso, onde há indivisão de
direito e de fato, onde há composse sobre todo o imóvel, não é
admissível o delito. Não assim, na comunhão pro diviso, onde
há indivisão de direito, porém não de fato. Por contrato ou modo
tácito, os condôminos delimitam suas partes, passando cada
um deles a possuir na coisa comum parte certa e determinada.
Tem, nesta hipótese, o condômino direito ao uso e gozo dessa
parte com exclusão dos outros, tendo, aliás, direito aos
interditos possessórios, quer contra estranhos, quer contra os
outros condôminos, conforme se deduz dos arts. 623, 634 e
488 do Código Civil.16 Há comunhão sine compossessione, pois
cada coproprietário tem posse sobre parte certa do imóvel.
Pode então o condômino remover sinais divisórios no
condomínio, para se apropriar da parte sobre a qual o vizinho
exerce sua posse.”17
O mesmo raciocínio aplica-se, também, ao delito de esbulho
possessório.
1.7.3
Violência contra pessoa praticada após o sucesso da
invasão
Vimos que, para que se caracterize o crime de esbulho
possessório, há necessidade de que a invasão se dê mediante
violência à pessoa ou grave ameaça, ressalvando-se a hipótese em
que, embora não havendo violência ou grave ameaça para fins de
invasão, esta se dê mediante o concurso de mais de duas pessoas.
No entanto, imagine-se a hipótese em que a invasão, praticada
por uma só pessoa, tenha sido inicialmente pacífica. Chegando, por
exemplo, ao conhecimento do proprietário do imóvel a invasão
ocorrida em seu terreno, ele vai até o local para, mediante desforço
pessoal, tentar retirar o invasor, conforme lhe permite o § 1º do art.
1.210 do Código Civil, que diz:
§ 1º O possuidor turbado, ou
esbulhado, poderá manter-se ou
restituir-se por sua própria força,
contanto que o faça logo; os atos de
defesa, ou de desforço, não podem ir
além do indispensável à manutenção,
ou restituição da posse.
No entanto, depois da invasão, a fim de se manter no terreno, o
agente agride o proprietário. Nesse caso, pergunta-se: Em virtude
da agressão praticada pelo agente ter ocorrido posteriormente à sua
invasão do terreno alheio, poderia ele ser responsabilizado pelo
delito de esbulho possessório? Entendemos que sim, pois a
violência à pessoa pode ser praticada não somente como um meio
para a invasão, como também para a manutenção daquele que já
havia invadido terreno ou prédio alheio. Nesse último caso, a
violência para a manutenção do agente em terreno ou prédio alheio
transforma um fato que, antes, era considerado um indiferente
penal, no crime de esbulho possessório.
1.7.4
Esbulho de imóvel do Sistema Financeiro da Habitação
(SFH) – Lei nº 5.741/71, art. 9º, e Invasão de Terra da
União, Estados ou Municípios – Lei nº 4.947/66, art. 20
A Lei nº 5.741, de 1º de dezembro de 1971, que dispõe sobre a
proteção do financiamento de bens imóveis vinculados ao Sistema
Financeiro da Habitação, prevê uma modalidade especial de
esbulho possessório, dizendo, em seu art. 9º, verbis:
Art. 9º Constitui crime de ação
pública, punido com a pena de
detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois)
anos e multa de cinco a vinte salários
mínimos, invadir alguém, ou ocupar,
com o fim de esbulho possessório,
terreno ou unidade residencial,
construída ou em construção, objeto
de
financiamento
do
Sistema
Financeiro da Habitação.
§ 1º Se o agente usa de violência,
incorre também nas penas a esta
cominada.
§ 2º É isento de pena de esbulho o
agente
que,
espontaneamente,
desocupa o imóvel antes de qualquer
medida coativa.
Da mesma forma, a Lei nº 4.947, de 6 de abril de 1966, que fixa
normas de Direito Agrário, dispõe sobre o Sistema de Organização
e Funcionamento do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária, possui
tipo penal específico de esbulho possessório, conforme se verifica
pela redação de seu art. 20, verbis:
Art. 20. Invadir, com intenção de
ocupá-las, terras da União, dos
Estados e dos Municípios:
Pena – detenção de 6 meses a 3
anos.
Parágrafo único. Na mesma pena
incorre quem, com idêntico propósito,
invadir terras de órgãos ou entidades
federais, estaduais ou municipais,
destinadas à Reforma Agrária.
1.7.5
Alteração de limites, usurpação de águas e invasão de
propriedade (esbulho possessório) e o Código Penal Militar
Os crimes de alteração de limites, usurpação de águas e
invasão de propriedade (esbulho possessório) também vieram
previstos no Código Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de
outubro de 1969), conforme se verifica pela leitura do seu art. 257 e
parágrafos.
2.
SUPRESSÃO OU ALTERAÇÃO DE MARCA EM ANIMAIS
Supressão ou alteração de marca
em animais
Art. 162. Suprimir ou alterar,
indevidamente, em gado ou rebanho
alheio, marca ou sinal indicativo de
propriedade:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a
3 (três) anos, e multa.
2.1
Introdução
Ainda no capítulo correspondente à usurpação, no art. 162 do
Código Penal, houve previsão para a figura típica relativa à
supressão ou alteração de marca em animais, cominando uma pena
de detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos e multa, para aquele
que suprimir ou alterar, indevidamente, em gado ou rebanho alheio,
marca ou sinal indicativo de propriedade.
Portanto, para efeito de configuração típica, faz-se mister a
presença dos seguintes elementos: a) a conduta de suprimir ou
alterar marca ou sinal indicativo de propriedade; b) que essa
supressão ou alteração ocorra em marca ou sinal existente em gado
ou rebanho alheio; c) que seja indevida essa supressão ou
alteração.
Inicialmente, deve ser ressaltado que o núcleo suprimir é
utilizado no texto legal no sentido de fazer desaparecer, ou seja,
acabar com a marca anteriormente existente; alterar significa, a seu
turno, modificar, transformar, desfigurar a marca ou o sinal indicativo
de propriedade, tornando-o irreconhecível.
Hungria fazia distinção entre marca e sinal, dizendo:
“Marca é o assinalamento a ferro candente ou substância
química. Sinal é todo distintivo artificial, diverso da marca (ex.:
argolas de determinado feitio nos chifres ou focinhos dos
animais).”18
No que diz respeito ao gado bovino, a Lei nº 4.714, de 29 de
junho de 1965, modificando a legislação anterior sobre o uso da
marca de fogo, determinou, em seus arts. 1º e 2º, verbis:
Art. 1º O gado bovino só poderá ser
marcado a ferro candente na cara, no
pescoço e nas regiões situadas
abaixo da linha imaginária, ligando as
articulações fêmuro-rótulo-tibial e
húmero-rádio-cubital, de sorte a
preservar de defeitos a parte do couro
de maior utilidade, denominada
grupon.
Art. 2º Fica proibido o uso de marca
cujo tamanho não possa caber num
círculo de onze centímetros de
diâmetro (0,11m).
Exige o tipo penal que a conduta seja a de suprimir ou alterar
marca ou sinal já existente. Isso significa que se o animal não
possuir qualquer marca ou sinal indicativo de seu proprietário, caso
o agente o marque, o fato será atípico com relação ao delito do art.
162 do Código Penal, podendo, dependendo da sua finalidade,
consubstanciar-se em outra figura, a exemplo do crime de dano ou,
mesmo, furto.
Não há necessidade, entretanto, que a marca ou sinal tenha
sido objeto de registro pelo seu proprietário, bastando que esteja
presente nas reses.
Determina a lei penal que a conduta do agente seja dirigida a
suprimir ou alterar marca ou sinal de propriedade alheia em gado ou
rebanho, sendo estas expressões sinônimas, dizendo respeito às
reses em geral. O gado pode ser dividido em grosso (equinos ou
bovinos) e miúdo (suínos, caprinos e os ovinos ou ovelhuns).19
Hungria, a seu turno, os distinguia dizendo que “quando os animais
são de grande porte (bois, cavalos, muares), fala-se em gado;
quando de pequeno porte (carneiros, cabritos, porcos etc.), preferese o termo rebanho.”20 Mirabete, a seu turno, afirma que “gado é o
conjunto de quadrúpedes de grande porte, geralmente empregados
nos serviços de lavoura, para fins industriais, comerciais ou
consumo doméstico (bois, cavalos, muares etc.). Rebanho significa
gado, lanígero ou não, de pequeno porte (carneiros, cabritos, porcos
etc.).”21
Deverá, ainda, ser indevida, isto é, ilícita a supressão de marca
ou sinal indicativo de propriedade alheia em gado ou rebanho.
Dessa forma, aquele que adquire gado de terceiro poderá, a seu
critério, modificar a marca anteriormente existente, a fim de
identificar os animais por meio daquela que lhe for característica,
não se podendo, sequer, visualizar a tipicidade do seu
comportamento, em face da exclusão do elemento normativo
indevidamente, contido no tipo penal do art. 162.
O item 58 da Exposição de Motivos da Parte Especial do
Código Penal, buscando esclarecer o delito de supressão ou
alteração de marcas em animais, principalmente tentando traçar a
sua distinção para com o crime de furto, afirma:
58. Também constitui crime de
usurpação o fato de suprimir ou
alterar marca ou qualquer sinal
indicativo de propriedade em gado ou
rebanho alheio, para dele se apropriar
no todo ou em parte. Não se confunde
esta modalidade de usurpação com o
abigeato, isto é, o furto de animais: o
agente limita-se a empregar um meio
fraudulento (supressão ou alteração
de marca ou sinal) para irrogar-se a
propriedade dos animais. Se esse
meio fraudulento é usado para
dissimular o anterior furto dos
animais, já não se tratará de
usurpação: o crime continuará com o
seu nomen juris, isto é, furto.
Nélson Hungria, na mesma linha de raciocínio, preleciona:
“Diferencia-se ele do furto, porque não há subtração da res; da
apropriação indébita (ainda quando o gado ou rebanho esteja
confiado ao agente), porque ainda não há efetiva apropriação;
do estelionato, porque à fraude, que o informa, não se segue a
efetiva captação do lucro ilícito. Se a supressão ou alteração da
marca ou sinal é meio para dissimular o furto anterior, ou
assegurar o continuado êxito de uma apropriação indébita, ou
tiver servido como ardil num estelionato, qualquer desses
crimes absorverá o de que ora se trata, segundo a regra ubi
major minor cessat.”22
2.2
Classificação doutrinária
Crime comum com relação ao sujeito ativo e próprio no que diz
respeito ao sujeito passivo; doloso; comissivo (podendo ser
praticado via omissão imprópria, desde que o agente goze do status
de garantidor); de mera conduta; de forma livre; instantâneo (pois a
sua consumação ocorre no exato instante em que é realizada a
supressão ou alteração da marca ou sinal indicativo de propriedade
em gado ou rebanho alheio); monossubjetivo; plurissubsistente; não
transeunte.
2.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
Ao contrário das outras modalidades de usurpação, nas quais
se tinha por bem jurídico a propriedade e a posse de bem imóvel, no
tipo penal do art. 162 do diploma repressivo busca-se proteger a
propriedade e a posse de gado ou rebanho alheio.
A conduta do agente é dirigida finalisticamente a suprimir ou
alterar, indevidamente, marca ou sinal indicativo de propriedade em
gado ou rebanho alheio, sendo este, portanto, considerado objeto
material do delito em estudo.
2.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
Crime comum quanto ao sujeito ativo, a conduta de suprimir ou
alterar, indevidamente, em gado ou rebanho alheio, marca ou sinal
indicativo de propriedade, pode ser praticada por qualquer pessoa,
uma vez que o tipo penal do art. 162 não limita a sua prática a quem
detenha qualidades ou condições especiais.
Ao contrário, o sujeito passivo do delito será o proprietário ou
possuidor do gado ou rebanho, não importando se pessoa física ou
mesmo jurídica.
2.5
Consumação e tentativa
De acordo com a redação contida no art. 162 do Código Penal,
consuma-se o delito quando da prática de uma das condutas
núcleo, vale dizer, quando o agente, efetivamente, suprime ou
altera, indevidamente, marca ou sinal indicativo de propriedade em
gado ou rebanho alheio.
Se, em virtude da supressão ou alteração da marca, o agente
vier a subtrair o animal, por exemplo, o fato se amoldará ao tipo
penal do art. 155, § 4º, II, segunda figura, do Código Penal, uma vez
que tal comportamento se configura na fraude utilizada pelo agente,
a fim de lhe facilitar a subtração.
A criação dessa figura típica, como já dissemos acima, permite
a punição, muitas vezes, de um ato que, em tese, poderia ser
considerado até mesmo como preparatório de um crime de furto ou
mesmo de uma apropriação indébita. Assim, a lei se antecipa e
pune como modalidade autônoma de infração penal a supressão ou
alteração de marca em animais.
Tratando-se de um crime plurissubsistente, é perfeitamente
possível a tentativa, a exemplo da hipótese em que o agente, depois
de dar início aos atos tendentes à modificação de uma marca
anteriormente existente em um animal, é surpreendido pelo
proprietário da res, que o prende em flagrante.
2.6
Elemento subjetivo
O dolo é o elemento subjetivo exigido para a configuração do
delito tipificado no art. 162 do Código Penal, não havendo previsão
para a modalidade culposa.
Embora o agente atue dolosamente no sentido de suprimir ou
alterar, indevidamente, em gado ou rebanho alheio, marca ou sinal
indicativo de propriedade, temos que entender que tal
comportamento fora praticado pelo agente a fim de que pudesse se
apropriar do animal, o que efetivamente não vem a ocorrer, pois,
caso contrário, poderia ser responsabilizado pelo delito de furto
qualificado pelo emprego de fraude, previsto no inciso II do § 4º do
art. 155 do Código Penal.
O que acontece, na verdade, é que a lei penal cria uma figura
delitiva específica para aquilo que poderia ser considerado como um
ato de preparação de um crime de furto.
De acordo com as lições de Álvaro Mayrink da Costa, é preciso
que o agente, suprimindo ou alterando, indevidamente, em gado ou
rebanho alheio, marca ou sinal indicativo de propriedade, atue com
a finalidade de “estabelecer confusão quanto à propriedade do
animal marcado. O autor sempre obra objetivando a futura
apropriação ou subtração do animal”,23 pois, não fosse assim,
deveria, como já afirmamos anteriormente, ser responsabilizado por
outra infração penal, a exemplo do crime de dano, uma vez que os
animais se amoldam ao conceito jurídico de coisa, previsto pelo art.
163 do Código Penal.
2.7
Modalidades comissiva e omissiva
As condutas típicas de suprimir e alterar nos induzem a um
comportamento positivo por parte do agente, vale dizer, um fazer
algo no sentido de apagar ou modificar marca ou sinal anteriormente
existente, podendo-se visualizar, portanto, um comportamento
comissivo.
No entanto, será possível o raciocínio correspondente à
omissão imprópria, desde que o agente goze do status de
garantidor. Imagine-se a hipótese daquele que é contratado como
peão, sendo suas funções cuidar e vigiar a boiada. Descontente
com o tratamento que vem recebendo por parte do proprietário dos
bois, percebe que alguém se aproxima da boiada com um ferro em
brasa e começa a remarcar o gado. Mesmo devendo e podendo
fazer algo, omite-se, com a finalidade de prejudicar o patrão.
Nesse caso, segundo nosso posicionamento, poderia ser
responsabilizado pelo delito de supressão ou alteração de marca em
animais, via omissão imprópria.
2.8
Pena, ação penal e suspensão condicional do processo
A pena cominada para o delito de supressão ou alteração de
marca em animais, tipificado no art. 162 do Código Penal, é de
detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, e multa.
A ação penal é de iniciativa pública incondicionada.
Considerando a pena mínima cominada ao delito, será possível
o oferecimento de proposta de suspensão condicional do processo
pelo Ministério Público.
2.9
Destaques
2.9.1
Supressão ou alteração de marca ou sinal indicativo de
propriedade em um único animal
Pode ocorrer que o agente leve a efeito a supressão ou
alteração de marca ou sinal indicativo de propriedade em um único
animal pertencente ao rebanho. Nesse caso, estaria configurado o
delito previsto pelo art. 162 do Código Penal?
A doutrina se divide com relação a este tema.
Celso Delmanto, Roberto Delmanto, Roberto Delmanto Júnior e
Fábio M. de Almeida Delmanto, dissertando sobre o tema,
asseveram:
“A doutrina inclina-se no sentido de ser suficiente a alteração ou
supressão em um só animal, com o que não concordamos, pois
a lei emprega os coletivos gado e rebanho, além de a rubrica
referir-se a animais. O CP costuma indicar o objeto material de
seus tipos no singular: ‘alguém’ (arts. 121, 122, 130, 138),
‘coisa’ (arts. 155, 156, 157, 163), ‘correspondência’ (arts. 151,
152, 153), ‘local’ (art. 166), ‘segredo’(art. 154) etc. Portanto,
deve-se obedecer ao princípio hermenêutico de que não há
palavras desnecessárias na lei. Se o CP, neste art. 162,
emprega o plural, repetidamente, ao contrário de outros em que
sempre usa o singular, não se pode, sem infração à regra da
reserva legal (CR/88, art. 5º, XXXIX; PIDCP, art. 15, § 1º,
CADH, art. 9º), ampliá-lo de forma a incriminar a conduta
quando ela é praticada em um só animal (e não em dois ou
mais animais). É possível discordar da lei, mas não se pode
alargá-la, a pretexto de que seria mais lógico, ou melhor, ter ela
maior amplitude.”24
Com a devida vênia da posição assumida pelos ilustres autores,
entendemos não ser essa a melhor conclusão. Quando a lei penal
utiliza os termos gado e rebanho quer, na verdade, dizer que a
supressão ou alteração deve ser realizada em res que participe
dessa aglomeração animal, não impedindo, contudo, que apenas
um deles sofra a modificação levada a efeito pelo agente.
2.9.2
Animal sem qualquer marcação
Também deixamos antever que a lei penal exige, para efeitos
de configuração do mencionado delito, que as condutas de suprimir
e alterar refiram-se a marcas ou sinais anteriores em gado ou
rebanho alheio indicativos de sua propriedade.
Dessa forma, aquele que, por exemplo, marca, indevidamente,
um animal pertencente a um rebanho alheio, com o fim de subtraílo, deverá ser responsabilizado por outra infração penal, vale dizer,
o delito de furto qualificado pelo emprego de fraude.
A fraude, aqui, consistiria no fato de marcar o animal como se
fosse de sua propriedade, a fim de facilitar-lhe a subtração. No
entanto, fica a indagação: A simples marcação, por si só, poderia
ser entendida como início de execução, a ponto de permitir, pelo
menos, a punição do agente pelo delito de tentativa de furto
qualificado pelo emprego de fraude? Entendemos que não. Embora
já tendo o agente se valido da fraude (marcação do animal como se
fosse de sua propriedade), seria preciso que já estivesse praticando
atos de execução no sentido de retirá-lo da esfera de vigilância da
vítima.
Para nós, somente no instante em que o animal, por exemplo,
estivesse sendo por ele retirado do pasto, do curral, enfim, do lugar
onde originalmente se encontrava, é que será possível cogitar-se,
pelo menos, em tentativa.
Entretanto, pode ocorrer a hipótese, não incomum, em que os
animais estivessem misturados, sendo vários os seus proprietários.
Se com a sua marcação original o verdadeiro proprietário da res
fosse ludibriado, fazendo com que recolhesse todos os demais para
que pudesse voltar à sua fazenda, deixando para trás o animal
marcado pelo agente, nesse caso poderíamos entender, até mesmo,
pela consumação do delito, uma vez que o bem (animal) já havia
saído da esfera de disponibilidade da vítima, passando a ingressar
na esfera de disposição do agente.
2.9.3
Aposição, supressão ou alteração de marca e Código
Penal Militar
O crime de aposição, supressão ou alteração de marca
encontra-se também previsto no Código Penal Militar (Decreto-Lei nº
1.001, de 21 de outubro de 1969), conforme se verifica pela leitura
do seu art. 248.
Aqui, ao contrário do Código Penal, além da supressão e
alteração, foi tipificado o comportamento de apor indevidamente, em
gado ou rebanho alheio, sob guarda ou administração militar, marca
ou sinal indicativo de propriedade.
2.10
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: qualquer pessoa.
Passivo: o proprietário ou
possuidor do gado ou
rebanho, não importando
se pessoa física ou mesmo
jurídica.
Objeto material
Marca ou sinal indicativo de
propriedade em gado ou
rebanho alheio.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
A propriedade e a posse de
gado ou rebanho alheio.
Elemento subjetivo
»
O dolo é o elemento
subjetivo exigido para a
configuração
do
delito
tipificado no art. 162 do CP.
» Não há previsão para a
modalidade culposa.
Modalidades
omissiva
»
comissiva
e
As condutas típicas de
suprimir e alterar nos
induzem
a
um
comportamento positivo por
»
parte do agente, podendose visualizar, portanto, um
comportamento comissivo.
No entanto, será possível o
raciocínio correspondente à
omissão imprópria, desde
que o agente goze do
status de garantidor.
Consumação e tentativa
»
Consuma-se
o
delito
quando da prática de uma
das condutas núcleo, vale
dizer, quando o agente,
efetivamente, suprime ou
altera,
indevidamente,
marca ou sinal indicativo de
propriedade em gado ou
rebanho alheio.
»
É admissível a tentativa.
1
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, p. 164.
2
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. III, p. 86.
3
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 89.
4
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 283.
5
Art. 1.238. Aquele que, por 15 (quinze) anos, sem interrupção, nem oposição, possuir
como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé,
podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título
para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.Parágrafo único. O prazo
estabelecido neste artigo reduzir-se-á a 10 (dez) anos se o possuidor houver
estabelecido no imóvel sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de
caráter produtivo.
Art. 1.239. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua
como sua, por 5 (cinco) anos ininterruptos, sem oposição, área de terra em zona rural
não superior a 50 (cinquenta) hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de
sua família, tendo nela sua moradia, adqui-rir-lhe-á a propriedade.
Art. 1.240. Aquele que possuir, como sua, área urbana de até 250 (duzentos e
cinquenta) metros quadrados, por 5 (cinco) anos ininterruptamente e sem oposição,
utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que
não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
6
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 284.
7
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, p. 167.
8
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 90-91.
9
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 170.
10
COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal – Parte especial, p. 820.
11
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 437-438.
12
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 93.
13
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 176.
14
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 294.
15
O art. 189 da Constituição Federal determina: Os beneficiários da distribuição de
imóveis rurais pela reforma agrária receberão títulos de domínio ou de concessão de
uso, inegociáveis pelo prazo de dez anos.
16
O art. 623, correspondente ao atual art. 1.314, bem como o art. 488 correspondente ao
atual art. 1.199, não havendo correspondência, entretanto, no que diz respeito ao art.
634 do revogado Código Civil.
17
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 284.
18
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, V. VII, p. 98.
19
Conforme distinção feita pelo Novo dicionário da língua portuguesa, p. 827.
20
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 98.
21
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal, v. 2, p. 267.
22
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 98.
23
COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal – Parte especial, p. 829-830.
24
DELMANTO, Celso; DELMANTO, Roberto; DELMANTO JÚNIOR,
DELMANTO, Fábio M. de Almeida. Código penal comentado, p. 372.
Roberto;
Capítulo IV
Do Dano
1.
DANO
Dano
Art. 163. Destruir, inutilizar ou
deteriorar coisa alheia:
Pena – detenção, de um a seis
meses, ou multa.
Dano qualificado Parágrafo único.
Se o crime é cometido:
I – com violência à pessoa ou grave
ameaça;
II – com emprego de substância
inflamável ou explosiva, se o fato não
constitui crime mais grave;
III – contra o patrimônio da União, de
Estado, do Distrito Federal, de
Município ou de autarquia, fundação
pública, empresa pública, sociedade
de economia mista ou empresa
concessionária de serviços públicos;
IV – por motivo egoístico ou com
prejuízo considerável para a vítima:
Pena – detenção, de seis meses a
três anos, e multa, além da pena
correspondente à violência.
1.1
Introdução
O art. 163 do Código Penal, em sua modalidade fundamental,
comina pena de detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa,
para aquele que destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia.
Assim, podemos destacar os seguintes elementos que
compõem o delito de dano: a) a conduta de destruir, inutilizar ou
deteriorar; b) que qualquer um desses comportamentos tenha como
objeto a coisa alheia.
O núcleo destruir é empregado no texto legal no sentido de
eliminar, aniquilar, extinguir; inutilizar significa tornar inútil,
imprestável a coisa para os fins originais a que era destinada,
mesmo que não destruída; deteriorar é estragar, arruinar a coisa.
Hungria, em lapidar lição, distinguia as condutas nucleares do
dano dizendo:
“Na destruição, a coisa cessa de subsistir na sua
individualidade anterior, ainda mesmo que não desapareça a
matéria de que se compõe (ex.: matar uma rês, reduzir a cacos
uma vidraça, cortar uma árvore). Em se tratando de coisas
compostas (ex.: uma casa, uma ponte), sua demolição ou
derribamento é destruição. Como tal também se estende, por
força de compreensão, o fazer desaparecer uma coisa, de
modo a tornar inviável a sua recuperação (ex.: atirando-a a um
abismo impraticável).
A destruição parcial, desde que acarrete a total imprestabilidade
da coisa, é equiparada à destruição completa. Na inutilização
(no sentido restrito com que a lei emprega o vocábulo), a coisa
não perde inteiramente a sua individualidade, mas é reduzida,
ainda que temporariamente, à inadequação ao fim a que se
destina (ex.: desarranjar as peças de um maquinismo, dispersar
os tipos de uma caixa de composição). Finalmente, com a
deterioração, a coisa sofre um estrago substancial, mas sem
desintegrar-se totalmente, ficando apenas diminuída na sua
utilidade específica ou desfalcada em seu valor econômico
(exemplo: mutilar os olhos de um cavalo, partir um solitário, tirar
os ponteiros de um relógio).”1
Dos ensinamentos trazidos a público pelo grande penalista
brasileiro, ousamos discordar de uma afirmação contida no texto
acima transcrito. Hungria afirma que fazer desaparecer também se
entende compreendido no núcleo destruir. Na verdade, permissa
vênia, tal interpretação nos conduziria a uma verdadeira analogia in
malam partem, completamente proibida em Direito Penal, em virtude
do princípio do nullum crimen, nulla poena sine lege stricta. Destruir,
como afirmado anteriormente, tem o significado de eliminar,
extinguir, o que não acontece quando alguém faz desaparecer
alguma coisa pertencente à vítima. A coisa, em si, existe, razão pela
qual não podemos entendê-la como destruída. Aquele que abre a
portinhola de uma gaiola querendo que o canário que ali se
encontra, pertencente à vítima, ganhe a liberdade, não o destrói,
inutiliza ou o deteriora. Aqui, embora não exista infração penal, o
sujeito poderá ser responsabilizado no juízo cível pelos prejuízos
por ele causados à vítima.
O dano poderá ser total ou mesmo parcial. Ressaltamos,
contudo, a necessidade de ser apontada a perda econômica sofrida
na coisa, uma vez que estamos ainda no Título correspondente aos
crimes contra o patrimônio.
Objeto material da ação do agente deverá ser a coisa alheia.
Coisa consiste nos bens corpóreos móveis ou imóveis. Assim,
pratica o crime de dano aquele que dolosamente destrói, por
exemplo, o relógio da vítima, bem como aquele que derruba uma
das paredes de sua casa.
A coisa, obrigatoriamente, deverá gozar do status de alheia, isto
é, deve pertencer a alguém que não o próprio agente, pois, caso
contrário, o comportamento, como regra, será atípico. Assim, não
pratica o crime de dano aquele que destrói res nullius (coisa de
ninguém), ou mesmo a res derelicta (coisa abandonada). Ao
contrário, se o agente destrói res desperdicta (coisa perdida),
poderá ser responsabilizado criminalmente.
O erro sobre a elementar alheia afasta o dolo, impedindo,
consequentemente, a punição do agente a qualquer título, haja vista
não existir previsão do dano na modalidade culposa.
1.2
Classificação doutrinária
Crime comum com relação ao sujeito ativo, bem como quanto
ao sujeito passivo; doloso; material; comissivo (podendo, contudo,
ser praticado via omissão imprópria, considerando-se a posição de
garantidor do agente); de ação múltipla ou conteúdo variado (uma
vez que se o agente pratica as várias condutas previstas pelo tipo
penal somente responderá por uma única infração penal); de dano;
de forma livre; instantâneo (podendo, em algumas situações, como
no caso da destruição da coisa, ser instantâneo de efeitos
permanentes); monossubjetivo; plurissubsistente; não transeunte.
1.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
O bem juridicamente protegido é o patrimônio, seja ele público
ou privado, móvel ou imóvel, tutelando-se, consequentemente, tanto
a propriedade quanto a posse.
O objeto material é a coisa alheia, móvel ou imóvel, desde que
seja corpórea, haja vista que somente essas são passíveis de
serem danificadas fisicamente.
1.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
Qualquer pessoa pode ser o sujeito ativo do crime de dano,
haja vista sua natureza de crime comum, excetuando-se, como
regra, o proprietário, uma vez que a conduta do agente deve ser
dirigida finalisticamente a destruir, inutilizar ou deteriorar coisa
alheia.
Conforme salienta Luiz Regis Prado:
“O possuidor, estando a posse separada da propriedade, e o
condômino que danificam coisa comum, incidem no tipo do art.
163, salvo se, neste último, sendo fungível a coisa, atinge-se
somente a parte correspondente à cota a que tem direito o
agente (como acontece no caso de furto de coisa comum).”2
Não podemos, entretanto, concordar com a posição de
Noronha, quando afirma que “se o bem se acha legitimamente na
posse de outrem, se existe direito real sobre ele, já não se pode
falar em propriedade plena, e o proprietário que, então, danificá-lo
poderá incorrer nas penas do crime”, concluindo que
“excepcionalmente, portanto, pode o dono ou proprietário ser sujeito
ativo do crime, quando, não obstante o bem lhe pertencer, sua
danificação lesar a posse de outrem.”3
Segundo entendemos, o proprietário que danificar a própria
coisa poderá ser responsabilizado no juízo cível pelos prejuízos que,
de acordo com o seu comportamento, vier a causar a terceiros, não
se podendo, contudo, como regra geral, cogitar-se de crime de
dano, tendo em vista a exigência contida no art. 163 do Código
Penal, vale dizer, de que a coisa seja alheia.
Em sentido contrário, visualizando a prática de infração penal,
Rogério Sanches Cunha aduz que se o proprietário:
“Deteriora bem próprio que se encontra no legítimo poder de
terceiro, responderá, conforme o caso, pelo delito previsto no
art. 346 do CP, apenado com maior rigor e perseguido mediante
ação penal pública incondicionada (crime contra a
administração da justiça).”4
Qualquer pessoa pode ser o sujeito passivo do delito em
estudo, desde que proprietário ou mesmo possuidor da coisa. No
caso do possuidor, embora haja crime único, estaremos diante de
dois sujeitos passivos, ou seja, tanto o possuidor quanto o
proprietário da coisa.
1.5
Consumação e tentativa
Por se tratar de crime material, o dano se consuma quando o
agente, efetivamente, destrói, inutiliza ou deteriora coisa alheia, seja
ela móvel ou imóvel.
Além de material, o dano também é considerado como um
delito plurissubsistente, permitindo o fracionamento do iter criminis,
razão pela qual se poderá raciocinar acerca da tentativa, quando o
agente não consegue a produção do resultado por ele pretendido,
por circunstâncias alheias à sua vontade.
Merece ser ressalvado, entretanto, o fato de que o resultado,
mesmo que parcial, consuma a infração penal em estudo. Assim,
imagine-se a hipótese daquele que, embora tendo o dolo de destruir
a coisa alheia, somente consegue inutilizá-la ou deteriorá-la. Nesse
caso, deverá responder por dano consumado, e não tentado. Nesse
sentido, afirma Cezar Roberto Bitencourt: “Consideramos temerário
afirmar que há tentativa quando o agente não obtém o resultado
pretendido, uma vez que o resultado parcial já é suficiente para
consumar o crime de dano. Na verdade, a tentativa somente pode
configurar-se quando o estrago não for relevante”,5 ou,
acrescentamos, na hipótese da chamada tentativa branca, quando o
agente não consegue acertar a coisa contra a qual era dirigida a sua
conduta.
1.6
Elemento subjetivo
O crime de dano só pode ser praticado dolosamente, não
havendo previsão para a modalidade culposa.
No entanto, um detalhe merece ser ressaltado. Para que se
consubstancie o dolo de dano, o agente não pode agir com outra
finalidade que não a de tão somente destruir, inutilizar ou deteriorar
a coisa alheia. Carrara dizia que um dos conceitos que
fundamentam o delito em estudo é que “o dano à propriedade alheia
seja um fim em si mesmo, pois que de outra maneira não seria
senão um dado qualificante de outro delito.”6 No mesmo sentido,
afirmam Vives Antón, Boix Reig, Orts Berenguer, Carbonell Mateu e
González Cussac, que no crime de dano a “ação do sujeito não
segue atrelada à incorporação da coisa ao seu patrimônio ou a de
um terceiro – não há animus rem sibi habendi –, nem sequer é
necessário que de sua comissão se siga alguma sorte de benefício
econômico. Os danos repousam exclusivamente sobre o
menoscabo causado a uma coisa alheia.”7
Na verdade, o que se quer afirmar é que o dano na coisa alheia
é o fim último do agente, ou seja, a sua conduta é dirigida tão
somente a essa finalidade. Assim, se o dano for meramente um
meio ou, mesmo, um dado qualificador de outra infração penal,
restará sempre absorvido. Veja-se, por exemplo, o art. 155, § 4º, I,
do Código Penal, que prevê o delito de furto qualificado pela
destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa. O
dano (crime-meio) será absorvido pelo delito-fim (furto qualificado).
1.7
Modalidades qualificadas
O parágrafo único do art. 163 do Código Penal prevê as
modalidades qualificadas de dano, quando o crime é cometido:
I – com violência à pessoa ou grave
ameaça;
II – com emprego de substância
inflamável ou explosiva, se o fato não
constitui crime mais grave;
III – contra o patrimônio da União, de
Estado, do Distrito Federal, de
Município ou de autarquia, fundação
pública, empresa pública, sociedade
de economia mista ou empresa
concessionária de serviços públicos;
IV – por motivo egoístico ou com
prejuízo considerável para a vítima.
Para melhor visualização, faremos a análise de cada uma delas
isoladamente.
1.7.1
Violência à pessoa ou grave ameaça
A primeira modalidade qualificada de dano diz respeito ao modo
como o delito é praticado. Assim, diz a lei penal que, se o crime é
cometido com violência à pessoa ou grave ameaça, a pena será de
detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, e multa, além da pena
correspondente à violência.
Percebe-se, portanto, que a violência à pessoa e a grave
ameaça são, na verdade, meios utilizados pelo agente para a
prática do dano. Dessa forma, somente poderemos raciocinar em
termos de dano qualificado se a violência à pessoa ou a grave
ameaça for empregada com o fim de destruir, inutilizar ou deteriorar
coisa alheia, ou, pelo menos, durante a prática das condutas
previstas no tipo do art. 163 do Código Penal.
Assim, se a violência à pessoa ou a grave ameaça for
empregada depois da consumação do delito de dano, não poderá
ser aplicada a qualificadora. Imagine-se a hipótese em que o
agente, logo depois de destruir a coisa alheia, seja surpreendido
pelo seu proprietário. Querendo fugir, agride violentamente a vítima,
causando-lhe lesões corporais de natureza grave. Nesse caso, terá
que responder pelo dano simples, além das lesões corporais
produzidas.
Portanto, enquanto não consumado o crime, será possível a
aplicação da qualificadora em exame.
Por violência à pessoa podemos entender tanto as lesões
corporais (leves, graves e gravíssimas) como ainda as vias de fato.
É a chamada vis corporalis, que pode, como esclarece Noronha,
“não ser empregada contra o sujeito passivo do dano e a
qualificação do mesmo modo se dará, bastando o nexo causal entre
ela e a danificação.”8 No entanto, a violência que qualifica o dano
deverá ser sempre contra a pessoa, e não aquela praticada contra a
coisa. Imagine-se a hipótese daquele que, querendo destruir o
relógio da vítima, a agride a fim de arrancá-lo de seu pulso.
Teríamos, aqui, o crime de dano qualificado pelo emprego de
violência à pessoa.
A ameaça que qualifica o crime de dano deverá ser grave. É a
denominada vis compulsiva, que influencia a vontade da vítima,
permitindo ao agente levar a efeito o seu comportamento dirigido
finalisticamente a destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia.
Conforme preleciona Cezar Roberto Bitencourt, “a ameaça também
pode perturbar, escravizar ou violentar a vontade da pessoa, como a
violência material. A violência moral pode materializar-se em gestos,
palavras, atos, escritos ou qualquer outro meio simbólico. Mas
somente a ameaça grave, isto é, aquela ameaça que efetivamente
imponha medo, receio, temor na vítima, e que lhe seja de capital
importância, opondo-se a sua liberdade de querer e de agir”, sendo
desnecessário “que o dano ou perigo ameaçado à vítima seja
injusto, bastando que seja grave. Na verdade, a injustiça deve
residir na ameaça em si e não no dano ameaçado.”9
Se o dano for praticado com o emprego de violência, haverá
concurso de crimes (formal ou material, dependendo do caso
concreto), aplicando-se, também, a pena correspondente à
violência. Não haverá concurso de crimes, entretanto, se o dano for
praticado mediante vias de fato ou grave ameaça, que serão por ele
absorvidas.
1.7.2
Com emprego de substância inflamável ou explosiva, se o
fato não constitui crime mais grave
Da mesma forma que a qualificadora anterior, a substância
inflamável ou explosiva deve ter sido utilizada como meio para a
prática do dano, ressaltando a lei penal, contudo, a sua natureza
subsidiária, pois somente atuará como qualificadora do dano se o
fato não constitui crime mais grave, a exemplo do que ocorre com o
crime de explosão, tipificado no art. 251 do Código Penal, verbis:
Art. 251. Expor a perigo a vida, a
integridade física ou o patrimônio de
outrem,
mediante
explosão,
arremesso ou simples colocação de
engenho
de
dinamite
ou
de
substância de efeitos análogos:
Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis)
anos, e multa.
Álvaro Mayrink da Costa, levando a efeito a distinção entre
substância inflamável e explosiva, assevera:
“Substância explosiva é a que atua com maior ou menor
detonação ou estrondo, ocorrendo deslocamento de ar, e
inflamável são os materiais sólidos, líquidos e gasosos que, por
força da composição ou natureza, proporcionam a chama
rápida e violenta (v.g.: gasolina, álcool, benzina, nafta etc.).
Diferencia-se o explosivo, combustível ou inflamável, em razão
da capacidade de inflamar, mas não de alimentar a combustão
(v.g.: folhas secas e capim não são inflamáveis).”10
1.7.3
Contra o patrimônio da União, de Estado, do Distrito
Federal, de Município ou de autarquia, fundação pública,
empresa pública, sociedade de economia mista ou
empresa concessionária de serviços públicos
A Lei nº 13.531, de 7 de dezembro de 2017, deu nova redação
ao inciso III do parágrafo único do art. 163 do Código Penal,
incluindo outras entidades a fim de qualificar o dano.
Pela redação anterior, havia uma omissão no que dizia respeito
ao patrimônio do Distrito Federal, fato devidamente retificado pelo
citado diploma legal. Assim, se o dano for praticado contra o
patrimônio da União, do Estado, do Distrito Federal, ou de
Município, o fato deverá ser reconhecido como qualificado, devido
ao maior juízo de reprovabilidade que recai sobre o comportamento
praticado pelo agente.
De acordo com o art. 5º, incisos I, II, III e IV, do Decreto-Lei nº
200, de 25 de fevereiro de 1967, consideram-se:
I – Autarquia – o serviço autônomo,
criado por lei, com personalidade
jurídica, patrimônio e receita próprios,
para executar atividades típicas da
Administração
Pública,
que
requeiram,
para
seu
melhor
funcionamento, gestão administrativa
e financeira descentralizada.
II – Empresa Pública – a entidade
dotada de personalidade jurídica de
direito privado, com patrimônio próprio
e capital exclusivo da União, criado
por lei para a exploração de atividade
econômica que o Governo seja levado
a exercer por força de contingência ou
de
conveniência
administrativa
podendo revestir-se de qualquer das
formas
admitidas
em
direito.
(Redação dada pelo Decreto-Lei nº
900, de 1969)
III – Sociedade de Economia Mista – a
entidade dotada de personalidade
jurídica de direito privado, criada por
lei para a exploração de atividade
econômica, sob a forma de sociedade
anônima, cujas ações com direito a
voto pertençam em sua maioria à
União ou a entidade da Administração
Indireta. (Redação dada pelo DecretoLei nº 900, de 1969)
IV – Fundação Pública – a entidade
dotada de personalidade jurídica de
direito privado, sem fins lucrativos,
criada em virtude de autorização
legislativa, para o desenvolvimento de
atividades que não exijam execução
por órgãos ou entidades de direito
público,
com
autonomia
administrativa, patrimônio próprio
gerido pelos respectivos órgãos de
direção, e funcionamento custeado
por recursos da União e de outras
fontes. (Incluído pela Lei nº 7.596, de
1987)
Tem-se entendido que se o dano for praticado contra qualquer
bem público, seja ele de uso comum, especial e dominical, conforme
previsão dos incisos, I, II e III do art. 99 do Código Civil, o crime será
qualificado.
Celso Antônio Bandeira de Mello, com a precisão que lhe é
peculiar, define a concessão de serviço público:
“Como sendo o ato complexo através do qual o Estado atribui a
alguém o exercício de um serviço público e este aceita prestá-lo
em nome do Poder Público sob condições fixadas e alteráveis
unilateralmente pelo Estado mas por sua conta, risco e perigos,
remunerando-se com a própria exploração do serviço,
geralmente pela cobrança de tarifas diretamente dos usuários
do serviço e tendo a garantia contratual de um equilíbrio
econômico-financeiro.”11
Assim, por exemplo, praticaria crime de dano qualificado o
agente que destruísse um telefone público ou mesmo um ônibus,
desde que pertencentes a empresas prestadoras de serviços
públicos.
1.7.4
Por motivo egoístico ou com prejuízo considerável para a
vítima
O inciso IV do parágrafo único do art. 163 do Código Penal
arrola, ainda, duas circunstâncias que permitirão o reconhecimento
de mais uma modalidade qualificada de dano, vale dizer, o motivo
egoístico e o prejuízo considerável para a vítima.
A primeira – motivo egoístico – é de natureza subjetiva, não se
comunicando ao eventual coparticipante, nos termos preconizados
pelo art. 30 do Código Penal, que diz que não se comunicam as
circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando
elementares do crime. Afirmamos que o motivo egoístico deve ser
considerado como uma circunstância, e não como uma elementar
do crime, por se tratar apenas de um dado periférico, cuja finalidade
é fazer com que seja aumentada a pena cominada à modalidade
fundamental do dano.
Definir motivo egoístico não é tarefa das mais fáceis. Hungria
dizia:
“Motivo egoístico, no sentido do texto legal, não é o que se liga
à satisfação de qualquer sentimento pessoal (ódio, inveja,
despeito, prazer da maldade, desprezo pela propriedade alheia
etc.), pois, de outro modo, não haveria como distinguir entre o
dano qualificado em tal caso e o dano simples (sempre
informado de algum sentimento pessoal na sua motivação).
Egoístico é o motivo quando se prende ao desejo ou
expectativa de um ulterior proveito pessoal indireto, seja
econômico ou moral. Exemplo: o ás automobilístico, na
esperança de assegurar-se o prêmio do Circuito da Gávea ou
manter a sua reputação esportiva, destrói o carro em que iria
correr um competidor perigoso.”12
A segunda das circunstâncias previstas no inciso IV do
parágrafo único do art. 163 do Código Penal diz respeito ao fato de
ter o agente causado prejuízo considerável para a vítima.
A lei penal determina, expressamente, portanto, que se leve em
consideração o patrimônio da vítima, a fim de se concluir se o
prejuízo sofrido foi de relevo. Como as pessoas têm capacidade
econômica diferente, aquilo que pode importar em considerável
prejuízo para uma, já não terá o mesmo significado para outra.
Assim, imagine-se que o agente vá até uma fábrica de
automóveis e destrua um dos veículos que se encontrava
estacionado no pátio. Por outro lado, suponha-se, agora, que o
agente vá até a garagem de um prédio de apartamentos e destrua
um veículo que tinha sido recentemente adquirido pela vítima,
depois de, com muito sacrifício, conseguir um financiamento
bancário. Olhando-se objetivamente para os dois fatos, o prejuízo
com a destruição do primeiro veículo sequer “arranhou” o patrimônio
da fábrica, ao passo que, no segundo caso, visualiza-se, com
tranquilidade, o considerável prejuízo experimentado pela vítima.
1.8
Modalidades comissiva e omissiva
As condutas núcleo do tipo, vale dizer, os verbos destruir,
inutilizar e deteriorar pressupõem um comportamento comissivo por
parte do agente.
No entanto, será possível o raciocínio correspondente à
omissão imprópria, caso o agente, gozando do status de garantidor,
devendo e podendo agir para evitar o resultado, dolosamente, nada
faça para impedi-lo.
1.9
Pena, ação penal, competência para julgamento e
suspensão condicional do processo
Para a modalidade simples de dano é cominada uma pena de
detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa; para as
modalidades qualificadas, a pena é de detenção, de 6 (seis) meses
a 3 (três) anos, e multa; no caso do dano cometido com emprego de
violência, aplica-se, também, a pena a ela correspondente.
A ação penal é de iniciativa privada nas hipóteses de dano
simples (caput do art. 163 do Código Penal) e dano qualificado pelo
motivo egoístico ou com prejuízo considerável para a vítima (inciso
IV do parágrafo único do art. 163 do Código Penal), sendo de
iniciativa pública incondicionada quando o dano for qualificado nos
termos dos incisos I, II e III do parágrafo único do art. 163 do Código
Penal, conforme se verifica no art. 167 do mesmo diploma
repressivo.
Compete ao Juizado Especial Criminal o julgamento do dano
simples. Será possível a proposta de suspensão condicional do
processo em ambas as modalidades de dano (simples e
qualificado), uma vez que as penas mínimas a elas cominadas não
ultrapassam o limite de 1 (um) ano, determinado pelo art. 89 da Lei
nº 9.099/95.
1.10
Destaques
1.10.1
Prescindibilidade de animus nocendi à caracterização do
dano
Há controvérsia doutrinária e jurisprudencial no que diz respeito
à necessidade de atuar o agente com animus nocendi para fins de
reconhecimento do crime de dano. Por animus nocendi deve ser
entendida a finalidade especial com que atua o agente no sentido de
causar, com o seu comportamento, um prejuízo patrimonial à vítima.
Hungria, depois de esclarecer que o crime de dano somente
admite a modalidade dolosa, afirma que o dolo é:
“A consciência e vontade de destruir, inutilizar ou deteriorar a
coisa alheia, especifican-do-se pelo animus nocendi, isto é, pelo
fim de causar um prejuízo patrimonial ao dono. É necessário o
concomitante propósito de prejudicar o proprietário. Tanto é
inseparável do dolo, na espécie, o animus nocendi que, se o
agente procede jocandi animo, contando com a tolerância do
dominus, não comete crime de dano (por isso mesmo que falha,
em tal caso, o ânimo de prejudicar).”13
Apesar da força do raciocínio de Hungria, estamos com
Noronha quando esclarece:
“Esse fim, esse escopo de prejudicar, é indispensável para a
caracterização do crime e constitui dolo específico? Este, como
se sabe, é a intenção particular, é o fim especial que o
delinquente tem em vista, e que se acha além dos atos
exteriores de execução do crime. Estará nessas condições o
fim de prejudicar? A nós nos parece que não. Essa intenção de
prejudicar não é dolo específico, porque está compreendida na
própria ação criminosa. Quem destrói uma coisa sabe que
prejudica seu dono ou possuidor. O prejuízo está ínsito no
dano. Se destruir é desfazer, desmanchar, se inutilizar é tirar a
utilidade, e se deteriorar é piorar, quem destrói, inutiliza ou
deteriora a coisa alheia não pode deixar de prejudicar a outrem.
Esse prejuízo é, pois, inseparável da destruição, da inutilização
e da deterioração, que são os resultados do crime.”14
Assim, se objetivamente, com o seu comportamento doloso, o
agente destruiu, inutilizou ou deteriorou coisa alheia, não importa
que tenha ou não agido com a finalidade específica de causar
prejuízo à vítima, deve, pois, responder pelo crime de dano, não
havendo necessidade, dessa forma, de se evidenciar o seu animus
nocendi.
1.10.2
Preso ou condenado que danifica cela para fugir da cadeia
ou penitenciária
Não é incomum a destruição parcial de celas, por exemplo, de
grades, paredes, piso etc., praticada pelos próprios detentos, a fim
de que, com isso, tentem ganhar a liberdade.
Com relação ao dano produzido com essa finalidade, duas
correntes se formaram. A primeira, seguindo a orientação segundo a
qual não se exige, para efeitos de configuração do crime de dano, o
chamado animus nocendi, entende pela responsabilidade penal do
preso que destrói patrimônio público, nos termos do art. 163,
parágrafo único, III, conforme já decidiu o STF, em acórdão relatado
pelo Min. Carlos Velloso:
“Penal. Processo penal. Habeas corpus. Crime de dano. Preso
que danifica a cela para fugir. Exigência apenas do dolo
genérico. CP, art. 163, parágrafo único, III.
1. Comete o crime de dano qualificado o preso que, para fugir,
danifica cela do estabelecimento prisional em que está
recolhido. Cód. Penal, art. 163, parág. único, III.
2. O crime de dano exige, para sua configuração, apenas o dolo
genérico.
3. HC indeferido” (HC 73.189/MS, 2a T., DJU 29/3/1996, p.
9.346).
A segunda corrente, ao contrário, posiciona-se pela exigência
da constatação do animus nocendi, vale dizer, a finalidade com que
atua o agente no sentido de causar prejuízo patrimonial, conforme
se verifica pelo seguinte julgado do STJ:
“Segundo entendimento desta Corte, a destruição de patrimônio
público (buraco na cela) pelo preso que busca fugir do
estabelecimento no qual encontra-se encarcerado não
configura o delito de dano qualificado (art. 163, parágrafo único,
inciso III, do CP), porque ausente o dolo específico (animus
nocendi), sendo, pois, atípica a conduta” (HC 260.350/GO,
Habeas Corpus, 2012/0251794-5, 6ª T., Rel.ª Min.ª Maria
Thereza de Assis Moura, DJe 21/5/2014).
Entendemos que não se exige para a configuração do crime de
dano o chamado animus nocendi. Basta que o agente tenha
conhecimento de que com o seu comportamento está destruindo,
inutilizando ou deteriorando coisa alheia, para que possa ser
responsabilizado pelo delito em estudo, uma vez que o tipo não
exige essa finalidade especial.
No caso do crime de dano, ainda poderíamos construir dois
raciocínios. Imagine-se a hipótese daquele que, almejando fugir do
estabelecimento carcerário, depois de cerrar as grades de sua cela,
agride um agente de segurança para, logo em seguida, ganhar a
liberdade. Suponha-se, ainda, que o sujeito tenha sido preso
instantes depois de sua fuga frustrada. Como usou violência contra
a pessoa para atingir seu objetivo, deverá responder pelo delito
tipificado no art. 352 do Código Penal, verbis:
Art. 352. Evadir-se ou tentar evadir-se
o preso ou o indivíduo submetido a
medida de segurança detentiva,
usando de violência contra a pessoa:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a
1 (um) ano, além da pena
correspondente à violência.
Nesse caso, como o dano foi praticado para que o agente
pudesse se evadir mediante violência contra a pessoa, poderíamos
tentar absorvê-lo na relação de meio a fim, vale dizer, o crime-meio
(dano) seria absorvido pelo crime-fim (evasão mediante violência
contra a pessoa). No entanto, a pena cominada ao delito-fim
(detenção, de 3 meses a 1 ano) é inferior àquela prevista para o
delito-meio (detenção, de 6 meses a 3 anos).
Embora danificando o patrimônio público, destruindo
parcialmente a cela onde se encontrava preso, se durante a fuga
não há emprego de violência contra a pessoa, não se poderia
raciocinar com a relação crime-meio/crime-fim, pois a conduta de
fugir ou tentar fugir seria atípica. Nesse caso, se puníssemos o
agente pelo dano, estaríamos afirmando que, se tentasse fugir sem
o emprego de violência, sua pena seria maior do que se,
efetivamente, agredisse um funcionário público com a finalidade de
ganhar a sua liberdade.
A ausência de necessidade de animus nocendi, segundo nosso
posicionamento, conduzirá à conclusão de que o agente deverá
responder, em concurso de crimes ou não, dependendo da hipótese
concreta, sempre pelo dano por ele produzido ao patrimônio público.
Nesse sentido, Guilherme de Souza Nucci preleciona:
“Deve responder pelo crime de dano, pois não se exige, no tipo
penal, qualquer elemento subjetivo específico, consistente na
intenção de causar prejuízo. Logo, se destruir ou deteriorar a
cela para escapar, merece responder pelo que fez.”15
1.10.3
Pichação
Outra polêmica que envolve o crime de dano diz respeito ao
fato de se poder entender a pichação como um dos
comportamentos tipificados pelo art. 163 do Código Penal, vale
dizer, os de destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia.
A pichação, que se traduz no ato por meio do qual o agente,
com a utilização de tintas, leva a efeito a pintura de desenhos,
palavras, assinaturas etc., em partes constantes de imóveis, não se
coaduna, como regra, com o núcleo destruir. Da mesma forma,
também como regra, não importa em inutilização da coisa alheia
objeto da pichação. Assim, embora não seja pacífico, tem-se
entendido que a pichação se amolda ao núcleo deteriorar, uma vez
que produz na coisa alheia um estrago parcial, alterando-lhe o
estado original, posição à qual nos filiamos.
A Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, com a nova redação
que lhe foi conferida pela Lei nº 12.408, de 25 de maio de 2011, que
dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de
condutas lesivas ao meio ambiente, criou um tipo penal específico
para as pichações realizadas em edificação ou monumento urbano,
conforme se verifica na redação de seu art. 65, verbis:
Art. 65. Pichar ou por outro meio
conspurcar edificação ou monumento
urbano Pena – detenção, de 3 (três)
meses a 1 (um) ano, e multa.
§ 1º Se o ato for realizado em
monumento ou coisa tombada em
virtude do seu valor artístico,
arqueológico ou histórico, a pena é de
6 (seis) meses a 1 (um) ano de
detenção e multa.
§ 2º Não constitui crime a prática de
grafite realizada com o objetivo de
valorizar o patrimônio público ou
privado
mediante
manifestação
artística, desde que consentida pelo
proprietário e, quando couber, pelo
locatário ou arrendatário do bem
privado e, no caso de bem público,
com a autorização do órgão
competente e a observância das
posturas municipais e das normas
editadas
pelos
órgãos
governamentais responsáveis pela
preservação e conservação do
patrimônio
histórico
e
artístico
nacional.
1.10.4
Dano culposo
Embora o Código Penal não preveja a modalidade culposa para
o crime de dano, existe previsão legal para sua punição nos arts.
266 e 383, parágrafo único, do Código Penal Militar,16 bem como
nos arts. 38 e 62 da Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, assim
redigidos, respectivamente:
Art. 266. Se o crime dos arts. 262,
263, 264 e 265 é culposo, a pena é de
detenção de seis meses a dois anos;
ou, se o agente é oficial, suspensão
do exercício do posto de um a três
anos, ou reforma; se resulta lesão
corporal ou morte, aplica-se também a
pena cominada ao crime culposo
contra a pessoa, podendo ainda, se o
agente é oficial, ser imposta a pena
de reforma.
Art. 383. Praticar ou tentar praticar
qualquer dos crimes definidos nos
arts. 262, 263, § § 1º e 2º, e 264, em
benefício
do
inimigo,
ou
comprometendo
ou
podendo
comprometer
a
preparação,
a
eficiência ou as operações militares:
Pena – morte, grau máximo; reclusão,
de vinte anos, grau mínimo.
Parágrafo único. Se o crime é
culposo: Pena – detenção, de quatro
a dez anos.
Art. 38. Destruir ou danificar floresta
considerada
de
preservação
permanente,
mesmo
que
em
formação,
ou
utilizá-la
com
infringência das normas de proteção:
Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três)
anos, ou multa, ou ambas as penas
cumulativamente. Parágrafo único.
Se o crime for culposo, a pena será
reduzida à metade.
Art. 62. Destruir, inutilizar ou
deteriorar:
I – bem especialmente protegido por
lei, ato administrativo ou decisão
judicial;
II – arquivo, registro, museu,
biblioteca,
pinacoteca,
instalação
científica ou similar protegido por lei,
ato administrativo ou decisão judicial:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três)
anos, e multa.
Parágrafo único. Se o crime for
culposo, a pena é de 6 (seis) meses a
1 (um) ano de detenção, sem prejuízo
da multa.
1.10.5
Presença de mais de uma qualificadora
Pode ocorrer a hipótese em que se faça presente mais de uma
qualificadora relativa ao crime de dano. Assim, suponha-se que o
agente, mediante o emprego de explosivo, destrua patrimônio de
empresa concessionária de serviço público, causando prejuízo
considerável à vítima. Nesse caso, estaríamos diante de três
qualificadoras, previstas nos incisos II, III e IV do parágrafo único do
art. 163 do Código Penal.
Qual seria a repercussão prática da constatação de mais de
uma qualificadora?
Cezar Roberto Bitencourt, analisando a questão, preleciona:
“A presença de uma delas é suficiente para qualificar o crime,
mudando sua capitulação e, substancialmente, sua punição;
eventual concurso de duas ou mais qualificadoras não modifica
a pena abstratamente cominada; contudo, deve ser
considerada na medição da pena, ou seja, uma delas, a mais
grave ou mais bem comprovada nos autos, servirá para
estabelecer a pena-base, fixando o marco do tipo penal
derivado (qualificado), enquanto as demais devem ser
trabalhadas na operação dosimétrica da pena, visando
encontrar o resultado definitivo.”17
1.10.6
Exame pericial
Tratando-se de infração penal que deixa vestígios, faz-se
necessária a realização de exame pericial para efeitos de
constatação do crime de dano, nos termos do art. 158 do Código de
Processo Penal, com a nova redação que lhe foi conferida pela Lei
nº 13.721, de 2 de outubro de 2018, que diz:
Art. 158. Quando a infração deixar
vestígios, será indispensável o exame
de corpo de delito, direto ou indireto,
não podendo supri-lo a confissão do
acusado.
Parágrafo único. Dar-se-á prioridade
à realização do exame de corpo de
delito quando se tratar de crime que
envolva:
I – violência doméstica e familiar
contra mulher;
II – violência contra criança,
adolescente, idoso ou pessoa com
deficiência.
Art. 167. Não sendo possível o exame
de corpo de delito, por haverem
desaparecido os vestígios, a prova
testemunhal poderá suprir-lhe a falta.
1.10.7
Dano e Código Penal Militar
O Código Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro
de 1969), prevê várias modalidades de dano, no Capítulo VII (Do
dano), do Título V (Dos crimes contra o Patrimônio), a saber:
Art. 259 (dano simples);
Art. 260 (dano atenuado);
Art. 261 (dano qualificado);
Art. 262 (dano em material ou
aparelhamento de guerra);
Art. 263 (dano em navio de guerra ou
mercante em serviço militar);
Art. 264 (dano em aparelhos e
instalações de aviação e navais, e em
estabelecimentos militares); Art. 265
(desaparecimento, consunção ou
extravio);
Art. 266 (modalidades culposas).
1.10.8
Dano qualificado e princípio da insignificância
“1. A jurisprudência desta Corte Superior assentou que o delito
previsto no art. 163, parágrafo único, III, do Código Penal cuida
de conduta que provoca lesão a bem jurídico de relevante valor
social e afeta toda a coletividade, razão pela qual não cabe a
aplicação do princípio da insignificância (AgRg no HC
462.482/SC, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, 6ª T., j.
07/05/2019, DJe 14/05/2019). 2. Sequer é insignificante a
conduta imputada de ter o paciente, mesmo diante de outras
pessoas que se encontravam na sala de espera do ambulatório
do hospital, arremessado um televisor ao chão. 3. Agravo
regimental improvido” (AgRg no HC 568.768/ PR, Rel. Min. Nefi
Cordeiro, 6ª T., j. 23/06/2020, DJe 29/06/2020).
1.11
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: qualquer pessoa,
excetuando-se,
como
regra, o proprietário.
Passivo: qualquer pessoa,
desde que proprietário ou
mesmo possuidor da coisa.
Objeto material
A coisa alheia, móvel ou imóvel,
desde que seja corpórea, haja
vista que somente essas são
passíveis de serem danificadas
fisicamente.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
É o patrimônio, seja ele público
ou privado, móvel ou imóvel,
tutelando-se,
consequentemente, tanto a
propriedade quanto a posse.
Prova pericial
Faz-se necessária a realização
de exame pericial para efeitos
de constatação do crime de
dano, nos termos do art. 158 do
CPP.
Elemento subjetivo
»
»
É o dolo.
Não há previsão para a
modalidade culposa.
Modalidades
omissiva
»
»
comissiva
e
As condutas núcleo do tipo
pressupõem
um
comportamento comissivo
por parte do agente.
No entanto, será possível o
raciocínio correspondente à
omissão imprópria, caso o
agente, gozando do status
de garantidor, devendo e
podendo agir para evitar o
resultado,
dolosamente,
nada faça para impedi-lo.
Consumação e tentativa
»
»
O dano se consuma
quando
o
agente,
efetivamente,
destrói,
inutiliza ou deteriora coisa
alheia, seja ela móvel ou
imóvel.
O
resultado,
mesmo
que
parcial,
consuma a infração penal
em estudo.
Por se tratar de crime
material
e
plurissubsistente, admitese a possibilidade de
tentativa.
2.
INTRODUÇÃO OU ABANDONO
PROPRIEDADE ALHEIA
DE
ANIMAIS
EM
Introdução
ou
abandono
de
animais em propriedade alheia Art.
164. Introduzir ou deixar animais em
propriedade
alheia,
sem
consentimento de quem de direito,
desde que do fato resulte prejuízo.
Pena – detenção, de quinze dias a
seis meses, ou multa.
2.1
Introdução
Ao crime de introduzir ou deixar animais em propriedade alheia,
sem consentimento de quem de direito, desde que o fato resulte
prejuízo, o Código Penal, em seu art. 164, comina pena de
detenção, de 15 (quinze) dias a 6 (seis) meses, ou multa.
Pela análise da mencionada figura típica, podemos extrair os
seguintes elementos: a) a conduta de introduzir ou deixar animais
em propriedade alheia; b) a ausência de consentimento de quem de
direito; c) o prejuízo resultante desses comportamentos.
O núcleo introduzir é utilizado pelo texto legal no sentido de
fazer entrar, penetrar. Acrescentava Bento de Faria que a introdução
“pode realizar-se por qualquer forma, pouco importando que os
animais entrem sozinhos ou acompanhados, pelo próprio agente ou
por seus prepostos ou empregados.”18 Deixar tem o significado de
fazer permanecer, não retirar o animal que pode até ter sido
inicialmente introduzido licitamente pelo agente. Assim, aquele que,
com o consentimento do proprietário, introduz animal em
propriedade alheia, mas não o retira quando solicitado por quem de
direito, havendo prejuízo, pratica o delito em estudo.
Por se tratar de crime de ação múltipla, de conteúdo variado, o
agente que introduz e, depois disso, deixa animal em propriedade
alheia, sem o consentimento de quem de direito, causando prejuízo,
responderá por um único delito.
O tipo penal não delimita a espécie animal que, se introduzida
ou deixada em propriedade alheia, causando prejuízo, importará na
infração penal em estudo, podendo ser quadrúpedes ou bípedes.
Dessa forma, poderia cometer o delito em questão aquele que
introduzisse suas galinhas em propriedade alheia, fazendo com que
estas se alimentassem de uma plantação ali existente.
A propriedade na qual os animais são introduzidos, por
questões de ordem lógica, só pode ser a imóvel, seja ela urbana ou
rural. Aquele que, por exemplo, introduz um cão em um
apartamento alheio sem o consentimento de quem de direito,
causando-lhe prejuízo, responde pelo mencionado artigo, mesmo
que o imóvel esteja localizado no centro da cidade, e não na zona
rural.
O art. 164 do Código Penal esclarece que somente ocorrerá a
infração penal sub examen se o ato de introduzir ou deixar o animal
for realizado sem o consentimento de quem de direito, apontado,
nesse caso, como o proprietário ou mesmo possuidor do imóvel. O
consentimento do ofendido exerce, aqui, o poder de afastar a
tipicidade do fato, tal como ocorre no crime de violação de domicílio,
previsto pelo art. 150 do Código Penal.
O dissenso da vítima pode ser expresso ou mesmo tácito.
Assim, o agente pode ter sido advertido expressamente pela vítima
a respeito da proibição da introdução de animais em sua
propriedade, como também poderá ser presumida essa proibição.
Por último, essa introdução deve resultar em prejuízo para a
vítima. Por prejuízo devemos entender aquele de natureza
econômica, pois estamos, ainda, no Título relativo aos crimes contra
o patrimônio. O agente, entretanto, não pode ter agido
finalisticamente no sentido de querer causar prejuízo, pois, segundo
Cezar Roberto Bitencourt, se:
“Objetivar especificamente a produção de dano, o crime será
aquele capitulado no art. 163 (dano). Se, por fim, pretender
alimentar seus animais com a pastagem da propriedade alheia,
deixará de existir o dano em si mesmo, passando a
caracterizar-se o crime de furto, com verdadeira subtração de
coisa alheia.”19
Será perfeitamente admissível a aplicação do princípio da
insignificância ao delito em estudo, quando da introdução ou
abandono de animal em propriedade alheia resultar prejuízo irrisório
à vítima.
2.2
Classificação doutrinária
Crime comum com relação ao sujeito ativo e próprio com
relação ao sujeito passivo; doloso; comissivo, na modalidade
introduzir (podendo ser praticado mediante omissão imprópria, na
hipótese de o agente gozar do status de garantidor); omissivo
próprio, na modalidade deixar; de forma livre; de dano; material;
instantâneo (como regra, podendo, no entanto, ser entendido como
permanente quando o agente pratica a conduta de deixar);
monossubjetivo; plurissubsistente (embora não admitindo a
tentativa); condicionado (pois para a sua caracterização exige-se,
efetivamente, a ocorrência de prejuízo para a vítima); não
transeunte.
2.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
Inserido no capítulo relativo ao dano, que, por sua vez, se
encontra previsto no Título II do Código Penal, correspondente aos
crimes contra o patrimônio, o crime tipificado no art. 164 tem como
bens juridicamente protegidos a posse e a propriedade.
Embora a lei não mencione a espécie de propriedade – se
móvel ou imóvel –, devemos entender que ambas mereceram a sua
proteção. Procura-se, portanto, proteger não somente os danos
causados nos imóveis nos quais os animais foram introduzidos ou
deixados, como também as coisas móveis neles existentes, a
exemplo do que acontece com lavouras e plantações, de forma
geral etc.
Nesse sentido são as lições de Bento de Faria, quando afirma:
“A expressão – propriedade – não é aqui empregada no sentido
restrito do domínio, mas para expressar – o terreno de prédio
rústico ou urbano, cultivado, ou não, suscetível de ser
danificado por animais.
[...].
O dano pode verificar-se não só pelo fato de aí pastarem os
animais, como por qualquer outra forma, v.g., destruindo eles
plantações não destinadas a pasto, ou quaisquer obras de
calçamento, de alinhamento, de arruamento etc.”20
2.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
Crime comum com relação ao sujeito ativo, qualquer pessoa
pode praticar o delito tipificado no art. 164 do Código Penal, não
havendo necessidade de que a pessoa que introduz ou deixa
animais em propriedade alheia, resultando em prejuízo para a
vítima, seja seu dono.
Discute-se se o proprietário do imóvel poderia também figurar
como sujeito ativo do delito em estudo, uma vez que a lei penal
utiliza a expressão propriedade alheia. Hungria advoga a tese no
sentido de que o proprietário do imóvel não poderia ser considerado
sujeito ativo do delito previsto pelo art. 164 do Código Penal:
“Não pode ser sujeito ativo do crime o próprio dono do terreno,
ainda quando na posse legítima de terceiro, e as plantações ou
vegetações (ou outras coisas danificadas ou consumidas)
sejam pertencentes a este. No último caso haverá, conforme as
circunstâncias, dano comum (art. 163). A mesma solução deve
ser dada no caso de ser o agente condômino do terreno
invadido e o prejuízo resultar de dano a plantações ou coisas
de exclusiva propriedade do condômino-possuidor.”21
Em sentido contrário, destaca Noronha:
“Sendo a posse, destacada do domínio, protegida pela
disposição penal, segue-se que o proprietário pode ser sujeito
ativo do crime, uma vez que o terreno ou imóvel esteja na
posse justa de outrem.
Se o imóvel se acha no domínio pleno do proprietário, não
pode, naturalmente, este cometer o crime.”22
Embora sejamos adeptos da orientação segundo a qual nos
crimes contra o patrimônio, em geral, não somente este é protegido,
mas também a posse, no caso do delito em exame não podemos
entender como o proprietário do terreno onde fora introduzido ou
mesmo deixado o animal possa ser considerado seu sujeito ativo,
sob pena de ser desobedecido o princípio da legalidade, pois a lei
penal é clara no sentido de somente incriminar, de acordo com a
figura típica do art. 164, aquele que introduz ou deixa animais em
propriedade alheia sem o consentimento de quem de direito,
resultando em prejuízo.
Portanto, para nós, qualquer pessoa poderá ser sujeito ativo
desse crime, à exceção do proprietário do imóvel, que, na feliz
solução de Hungria, poderia responder pelo crime de dano, previsto
no art. 163 do Código Penal, se tivesse atuado com dolo de destruir,
inutilizar ou deteriorar coisa alheia, a exemplo daquela pertencente
ao possuidor do seu imóvel.
O sujeito passivo poderá ser tanto o proprietário do imóvel
quanto o seu possuidor, que sofre o prejuízo produzido pela
introdução de animais em seu imóvel. Aqui já não haveria qualquer
ofensa ao princípio da legalidade considerar o possuidor como
sujeito passivo, pois, havendo a introdução, por exemplo, de
animais em propriedade alheia, tal fato lhe trouxe prejuízos, mesmo
não sendo o proprietário do imóvel, pois, imaginemos, os seus bens,
que ali se encontravam, foram danificados pelo animal.
2.5
Consumação e tentativa
Consuma-se o delito quando, depois de terem sido introduzidos
ou deixados em propriedade alheia, sem o consentimento de quem
de direito, os animais vierem a causar efetivo prejuízo para a vítima.
Como já afirmamos no tópico correspondente à classificação
doutrinária, trata-se, in casu, de crime condicionado, vale dizer,
aquele que, para que possa se configurar, exige a ocorrência de
determinada condição, que será cuidada, dependendo da infração
penal, como elemento do tipo, ou mesmo como condição objetiva de
punibilidade, quando extrínseca a ele.
No caso em exame, ou existe o prejuízo, e o crime se consuma,
ou, embora tenha havido a introdução ou mesmo o abandono de
animais em propriedade alheia, o fato será atípico, não se
admitindo, pois, o reconhecimento da tentativa.
Em sentido contrário à posição doutrinária amplamente
majoritária, Cezar Roberto Bitencourt assevera:
“A exigência do prejuízo para consumar-se a infração não
inviabiliza o reconhecimento da tentativa; pelo contrário, facilita
sua identificação, pelo menos na modalidade de introduzir
animais em propriedade alheia. Assim, por exemplo, se o
agente é surpreendido, e interrompido, por alguém no momento
em que está efetuando a introdução de animais em propriedade
alheia, não se pode negar que já iniciou o iter criminis, cuja
intervenção, circunstância alheia à vontade do agente, impede
a consumação. Na verdade, o que caracteriza a figura da
tentativa não é a existência ou inexistência de condição objetiva
de punibilidade, mas a interrupção do processo executório por
circunstâncias alheias à vontade do agente.”23
Esse raciocínio, concessa vênia, parece-nos um tanto
contraditório com aquele levado a efeito pelo renomado autor
quando afirma, de acordo com a doutrina predominante, que o
agente não pode atuar com o dolo de causar prejuízo, pois, caso
contrário, seu comportamento se amoldaria ao previsto no tipo penal
do art. 163, que prevê o crime de dano. Assim, o meramente
introduzir ou mesmo deixar animal em propriedade alheia seria um
comportamento indiferente ao Direito Penal, a não ser que deles
adviessem prejuízos para a vítima. Dessa forma, quando o agente é
surpreendido, no exemplo fornecido pelo brilhante professor gaúcho,
não se poderá, ainda, raciocinar em termos de tentativa, haja vista
que, por si só, não interessa ao Direito Penal, a não ser se
conjugado com a ocorrência de prejuízo para a vítima, aí, sim,
configurando-se em infração penal.
Portanto, entendemos, ancorados na doutrina predominante,
não ser admitida a tentativa na infração penal em estudo.
2.6
Elemento subjetivo
O crime de introdução ou abandono de animais em propriedade
alheia somente pode ser praticado dolosamente, não havendo
previsão para a modalidade de natureza culposa.
Entretanto, o dolo deverá limitar-se ao fato de introduzir ou de
deixar animais em propriedade alheia, não se podendo visualizar a
finalidade do agente no sentido de causar, efetivamente, prejuízo
para a vítima.
Caso a conduta do agente, ao introduzir ou deixar os animais
em propriedade alheia, seja dirigida a causar dano, o crime será
aquele tipificado no art. 163 do Código Penal, sendo os animais,
portanto, um instrumento utilizado pelo agente na prática do delito.
Se for sua finalidade que os animais se alimentem de pasto alheio, o
crime poderá ser o previsto no art. 155 do Código Penal.
Dessa forma, o prejuízo não pode ter sido querido pelo agente,
não fazendo, outrossim, parte do seu dolo.
Se os animais, em virtude, por exemplo, de conduta negligente
do agente, ingressarem em propriedade alheia causando prejuízos,
o fato não poderá ser resolvido na esfera penal, posto que atípico
em virtude da ausência do elemento subjetivo exigido pelo tipo, vale
dizer, o dolo, restando, pois, a responsabilidade do agente na esfera
civil, em face da inexistência de previsão da modalidade culposa.
2.7
Modalidades comissiva e omissiva
O crime é comissivo na modalidade introduzir, bem como
omissivo próprio no que diz respeito à conduta de deixar animais em
propriedade alheia, sem o consentimento de quem de direito,
causando-lhe prejuízo.
Será possível, ainda, o raciocínio correspondente à omissão
imprópria, desde que o agente goze do status de garantidor,
quando, dolosamente, devendo e podendo impedir, por exemplo, a
introdução de animais em propriedade alheia, nada fizer para evitar
esse comportamento, que, a final, resultará em prejuízo para a
vítima.
O que o agente não pode querer mediante sua inação é a
produção de efetivo prejuízo para a vítima, pois, caso contrário,
seria considerado autor do crime de dano, via omissão imprópria.
2.8
Pena, ação penal, competência para julgamento e
suspensão condicional do processo
A pena cominada para o delito de introdução ou abandono de
animais em propriedade alheia é de detenção, de 15 (quinze) dias a
6 (seis) meses, ou multa, sendo de competência do Juizado
Especial Criminal o seu julgamento.
Em razão da pena mínima cominada, admite-se, nos termos do
art. 89 da Lei nº 9.099/95, proposta de suspensão condicional do
processo.
A ação penal é de iniciativa privada, conforme determinação
contida no art. 167 do Código Penal.
2.9
2.9.1
Destaques
Introdução de somente um animal
Embora a lei faça menção a animais no plural, poderia o delito
ser cometido com o ingresso de somente um, sem o consentimento
de quem de direito, causando prejuízo? A resposta só pode ser
positiva.
Conforme esclarece Bento de Faria:
“O plural referido é usado em sentido indeterminado, mas não
para exigir a pluralidade de animais.
Quando a lei, ao fixar a noção de um delito, se refere a fatos, a
pessoas ou a coisas, usando gênero plural, sem qualquer
designação numérica ou outra indicação quantitativa, entendese que a referência é feita também a um só fato, a uma só
pessoa ou a uma única coisa, salvo quando do contexto da
norma legal resulte, sem possível dúvida, que a sua referência
é necessária e exclusivamente respeitante à – pluralidade de
fatos, de pessoas ou de coisas.”24
2.9.2
Natureza jurídica do prejuízo – Elementar típica ou
condição objetiva de punibilidade
A doutrina se divide com relação à natureza jurídica do prejuízo
causado pelo fato de ter sido introduzido ou deixado, sem o
consentimento de quem de direito, animal em propriedade alheia.
Luiz Regis Prado posiciona-se, nesse sentido:
“Não obstante a existência de posicionamentos divergentes,
considera-se que a causação do prejuízo constitui condição
objetiva de punibilidade.”25
Entendemos, permissa vênia, de forma contrária. Considerando
que a existência de um prejuízo é um elemento que integra a
definição típica, a sua ausência, consequentemente, conduzirá,
fatalmente, à atipicidade do fato. Conforme bem destacado por
Cezar Roberto Bitencourt:
“A condição objetiva da punibilidade é extrínseca ao crime,
estranha, portanto, à tipicidade, à antijuridicidade e à
culpabilidade; é, poder-se-ia dizer, um posterius do crime, está
fora dele.”26
Dessa forma, sendo o prejuízo um elemento do tipo, a sua
ausência, consequentemente, nos conduzirá à situação de
atipicidade do fato, não dizendo respeito, pois, a qualquer condição
objetiva de punibilidade.
2.10
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: qualquer pessoa, à
exceção do proprietário do
imóvel.
Passivo: o proprietário do
imóvel quanto o seu
possuidor.
Objeto material
Propriedade móvel ou imóvel.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
A posse e a propriedade.
Elemento subjetivo
»
É o dolo (limitado ao fato
de introduzir ou deixar
animais em propriedade
alheia, não podendo o
agente ter querido causar
prejuízo, pois tal intenção
configura outro tipo penal).
»
Não há previsão para a
modalidade de natureza
culposa.
Modalidades
omissiva
»
»
comissiva
e
O crime é comissivo na
modalidade introduzir, bem
como omissivo próprio no
que diz respeito à conduta
de deixar animais em
propriedade alheia.
Será possível, ainda, o
raciocínio correspondente à
omissão imprópria, desde
que o agente goze do
status
de
garantidor,
quando,
dolosamente,
devendo e podendo agir,
nada fizer para evitar esse
comportamento que, a
final, resultará em prejuízo
para a vítima.
Consumação e tentativa
»
»
No caso em exame, ou
existe o prejuízo, e o crime
se consuma, ou, embora
tenha havido a introdução
ou mesmo o abandono de
animais em propriedade
alheia, o fato será atípico,
não se admitindo, pois, o
reconhecimento
da
tentativa.
Há posição contrária, mas
o
entendimento
é
minoritário..
3.
DANO EM COISA DE VALOR ARTÍSTICO, ARQUEOLÓGICO
OU HISTÓRICO
Dano em coisa de valor artístico,
arqueológico ou histórico
Art. 165. Destruir, inutilizar ou
deteriorar
coisa
tombada
pela
autoridade competente em virtude de
valor artístico, arqueológico ou
histórico:
Pena – detenção, de seis meses a
dois anos, e multa.
3.1
Introdução
O art. 165 do Código Penal cominava uma pena de detenção
de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, para aquele que
destruísse, inutilizasse ou deteriorasse coisa tombada pela
autoridade competente em virtude de valor artístico, arqueológico ou
histórico.
No entanto, em 12 de fevereiro de 1998, foi editada a Lei nº
9.605, dispondo sobre as sanções penais e administrativas
derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente.
O diploma legal, por intermédio de seu art. 62, I, revogou
tacitamente o art. 165 do Código Penal, nos termos do § 1º do art.
2º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei
nº 4.657, de 4 de setembro de 1942), haja vista ter regulado
inteiramente a matéria originalmente cuidada pelo Código Penal.
Faz-se mister ressaltar que, depois da entrada em vigor da Lei
Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, todas as
revogações passaram a ser expressas, evitando-se interpretações
contraditórias, a fim de trazer a necessária segurança jurídica.
Nesse sentido, o seu art. 9º, com a redação que lhe foi dada pela
Lei Complementar nº 107, de 26 de abril de 2001, determina:
Art. 9º A cláusula de revogação
deverá enumerar, expressamente, as
leis ou disposições legais revogadas.
Embora levada a efeito tacitamente, a doutrina entende, de
forma pacífica, pela revogação do art. 165 do Código Penal, que
ocorreu por intermédio do art. 62, I, da Lei nº 9.605/98, que diz:
Art. 62. Destruir, inutilizar ou
deteriorar:
I – bem especialmente protegido por
lei, ato administrativo ou decisão
judicial;
II – [...].
Pena – reclusão, de um a três anos, e
multa.
Parágrafo único. Se o crime for
culposo, a pena é de seis meses a um
ano de detenção, sem prejuízo da
multa.
Dessa forma, não teria sentido comentarmos o revogado art.
165 do Código Penal, diante de sua pouca aplicação, a não ser nos
casos ocorridos durante a sua vigência, por se tratar de lex mitior,
devendo, portanto, ser ultra-ativa, haja vista que a lei posterior
recrudesceu as penas cominadas àqueles que praticarem dano aos
bens que foram protegidos por lei, ato administrativo ou decisão
judicial, dada a sua importância artística, arqueológica, histórica etc.
Entretanto, faremos, mesmo que sucintamente, a análise dos
elementos que integram a nova infração penal, tipificada pelo inciso
I do art. 62 da Lei nº 9.605/98, a saber: a) conduta dirigida
finalisticamente a destruir, inutilizar ou deteriorar bem; b) que o bem,
objeto da ação praticada pelo agente, tenha sido protegido por lei,
ato administrativo ou decisão judicial.
O núcleo destruir, como tivemos oportunidade de esclarecer
quando do estudo do crime de dano, tipificado no art. 163 do Código
Penal, tem o sentido de eliminar, aniquilar, extinguir; inutilizar
significa tornar inútil, imprestável a coisa para os fins originais a que
era destinada, mesmo que não destruída; deteriorar é estragar,
arruinar a coisa.
Nos termos preconizados pelo inciso I do art. 62 da Lei nº
9.605/98, o agente pratica a conduta de destruir, inutilizar ou
deteriorar contra bem de qualquer natureza, vale dizer, móvel ou
imóvel.
Entretanto, somente poderá ser considerado como objeto da
ação do agente aquele bem que, dada a sua importância (histórica,
cultural, artística, arqueológica etc.), foi especialmente protegido por
lei, ato administrativo ou decisão judicial.
3.2
Classificação doutrinária
Crime comum com relação ao sujeito ativo e próprio com
relação ao sujeito passivo, haja vista que somente o proprietário e o
possuidor (podendo-se, aqui, também incluir as pessoas jurídicas de
direito público) de bens que foram especialmente protegidos por lei,
ato administrativo ou decisão judicial é que poderão figurar nessa
condição; doloso ou culposo; de dano; material; instantâneo
(dependendo do resultado, poderá ser considerado como
instantâneo de efeitos permanentes); de forma livre; comissivo
(podendo ser praticado omissivamente, desde que o agente goze do
status de garantidor); de ação múltipla ou conteúdo variado;
monossubjetivo; plurissubsistente; não transeunte.
3.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
O art. 62 está inserido na Seção IV do Capítulo V da Lei nº
9.605/98, cuja finalidade é proteger o ordenamento urbano e o
patrimônio cultural, de acordo com uma visão ampla de meio
ambiente, sendo estes, portanto, os bens que se buscam tutelar.
A Constituição Federal, por intermédio de seu art. 216,
esclareceu os contornos da expressão patrimônio cultural, dizendo:
Art. 216. Constituem patrimônio
cultural brasileiro os bens de natureza
material
e
imaterial,
tomados
individualmente ou em conjunto,
portadores de referência à identidade,
à ação, à memória dos diferentes
grupos formadores da sociedade
brasileira, nos quais se incluem:
I – as formas de expressão;
II – os modos de criar, fazer e viver;
III – as criações científicas, artísticas e
tecnológicas;
IV – as obras, objetos, documentos,
edificações
e
demais
espaços
destinados às manifestações artístico-culturais;
V – os conjuntos urbanos e sítios de
valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico,
paleontológico,
ecológico e científico.
Apesar da definição ampla, para efeitos de reconhecimento do
delito, somente poderá ser objeto do dano os bens materiais, sejam
eles móveis ou imóveis.
3.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
Qualquer pessoa poderá ser sujeito ativo do crime de dano,
tratando-se, pois, nesse caso, de crime comum. Para aqueles que
conseguem visualizar a possibilidade de sua incriminação sem que
se tenha, ainda, uma necessária e peculiar estrutura jurídica do
crime, o delito tipificado no inciso I do art. 62 da Lei nº 9.605/98
poderá ser praticado, inclusive, por pessoas jurídicas, com
fundamento nos arts. 225, § 3º, da Constituição Federal, e 3º da Lei
nº 9.605/98, que dizem, respectivamente:
Constituição Federal Art. 225. Todos
têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de
uso comum do povo e essencial à
sadia qualidade de vida, impondo-se
ao Poder Público e à coletividade o
dever de defendê-lo e preservá-lo
para as presentes e futuras gerações.
§ 1º [...].
§ 2º [...].
§ 3º As condutas e atividades
consideradas
lesivas
ao
meio
ambiente sujeitarão os infratores,
pessoas físicas ou jurídicas, a
sanções penais e administrativas,
independentemente da obrigação de
reparar os danos causados.
Lei nº 9.605/1998
Art. 3º As pessoas jurídicas serão
responsabilizadas administrativa, civil
e penalmente conforme o disposto
nesta Lei, nos casos em que a
infração seja cometida por decisão de
seu representante legal ou contratual,
ou de seu órgão colegiado, no
interesse ou benefício da sua
entidade.
Não se afasta a possibilidade, ainda, de o proprietário do bem
ser sujeito ativo dessa infração penal, haja vista que a Lei de Crimes
Ambientais não exige, como no delito de dano, tipificado no art. 163
do Código Penal, que a coisa seja alheia.
Podem ser compreendidos como sujeitos passivos da infração
penal em estudo a pessoa jurídica de direito público (União, Estado
ou Município), bem como o proprietário ou, mesmo, o possuidor do
bem merecedor de proteção legal, administrativa ou judicial.
3.5
Consumação e tentativa
Crime material, consuma-se o delito no instante em que o
agente destrói, inutiliza ou deteriora o bem especialmente protegido
por lei, ato administrativo ou decisão judicial.
Por se tratar de crime plurissubsistente, será possível o
raciocínio correspondente à tentativa, bastando que o agente tenha
dado início aos atos de execução tendentes a destruir, inutilizar ou
deteriorar o bem acima apontado, não se consumando a infração
penal por circunstâncias alheias à sua vontade.
3.6
Elemento subjetivo
O crime tipificado no art. 62 da Lei nº 9.605/98 pode ser
praticado dolosa ou culposamente, tendo em vista a previsão
contida no seu parágrafo único que diz que se o crime for culposo, a
pena é de seis meses a um ano de detenção, sem prejuízo da
multa.
3.7
Modalidades comissiva e omissiva
As condutas núcleo do tipo, vale dizer, os verbos destruir,
inutilizar e deteriorar, pressupõem um comportamento comissivo por
parte do agente.
No entanto, será possível o raciocínio correspondente à
omissão imprópria, caso o agente, gozando do status de garantidor,
devendo e podendo agir para evitar o resultado, nada faça para
impedi-lo.
3.8
Pena, ação penal, competência para julgamento,
transação penal e suspensão condicional do processo
Para a modalidade dolosa, prevê o preceito secundário do art.
62 da Lei nº 9.605/98 uma pena de reclusão, de 1 (um) a 3 (três)
anos, e multa, sendo que o parágrafo único do mesmo artigo comina
uma pena de detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, sem
prejuízo da multa, se o delito for culposo.
Será possível a realização de proposta de suspensão
condicional do processo nas hipóteses dolosa e culposa, haja vista
que a pena mínima cominada não é superior a 1 (um) ano, conforme
determina o art. 89 da Lei nº 9.099/95.
Tratando-se de dano culposo, a competência, pelo menos
inicialmente, será do Juizado Especial Criminal, considerando-se a
pena máxima cominada pelo parágrafo único do art. 62 da Lei de
Crimes Ambientais.
Determina o art. 27 da referida lei ambiental:
Art. 27. Nos crimes ambientais de
menor potencial ofensivo, a proposta
de aplicação imediata de pena
restritiva de direitos ou multa, prevista
no art. 76 da Lei nº 9.099, de 26 de
setembro de 1995, somente poderá
ser formulada desde que tenha havido
a prévia composição do dano
ambiental, de que trata o art. 74 da
mesma lei, salvo em caso
comprovada impossibilidade.
de
A ação penal é de iniciativa pública incondicionada, nos termos
do art. 26 da Lei nº 9.605/98.
3.9
3.9.1
Destaque
Conhecimento de que o bem
administrativa ou judicialmente
foi
protegido
legal,
Para que o agente possa ser responsabilizado por essa
modalidade especial de dano, é fundamental que tenha efetivo
conhecimento de que o bem que ele destruiu, inutilizou ou
deteriorou havia sido objeto de proteção legal, administrativa ou
judicial.
Caso contrário, a ausência desse conhecimento faz com que o
agente responda pelo dano comum, previsto no art. 163 do Código
Penal, em virtude da ocorrência do chamado erro de tipo.
3.10
Quadro-resumo
Sujeitos
»
Ativo: qualquer pessoa
(física ou jurídica).
»
Passivo: a pessoa jurídica
de Direito Público (União,
Estado ou Município), bem
como o proprietário ou
mesmo o possuidor do bem
merecedor de proteção
legal, administrativa ou
judicial.
Objeto material
Bens materiais, sejam
móveis ou imóveis.
Bem(ns)
protegido(s)
eles
juridicamente
O ordenamento urbano e o
patrimônio cultural.
Elemento subjetivo
Dolo ou culpa.
Modalidades
omissiva
»
»
comissiva
e
As condutas núcleo do tipo
pressupõem
um
comportamento comissivo
por parte do agente.
No entanto, será possível o
raciocínio correspondente à
omissão imprópria caso o
agente, gozando do status
de garantidor, devendo e
podendo agir para evitar o
resultado, nada faça para
impedi-lo.
Consumação e tentativa
»
»
Consuma-se o delito no
instante em que o agente
destrói,
inutiliza
ou
deteriora
o
bem
especialmente
protegido
por lei, ato administrativo
ou decisão judicial.
É possível a tentativa..
4.
ALTERAÇÃO DE LOCAL ESPECIALMENTE PROTEGIDO
Alteração de local especialmente
protegido
Art. 166. Alterar, sem licença da
autoridade competente, o aspecto de
local especialmente protegido por lei:
Pena – detenção, de um mês a um
ano, ou multa.
4.1
Introdução
O art. 166 do Código Penal cominava uma pena de detenção,
de 1 (um) mês a 1 (um) ano, ou multa, para aquele que alterasse,
sem licença da autoridade competente, o aspecto de local
especialmente protegido por lei.
Tal dispositivo, contudo, da mesma forma que o artigo anterior,
foi revogado tacitamente pelo art. 63 da Lei nº 9.605, de 12 de
fevereiro de 1998, que diz, verbis:
Art. 63. Alterar o aspecto ou estrutura
de edificação ou local especialmente
protegido por lei, ato administrativo ou
decisão judicial, em razão de seu
valor paisagístico, ecológico, turístico,
artístico, histórico, cultural, religioso,
arqueológico,
etnográfico
ou
monumental, sem autorização da
autoridade
competente
ou
em
desacordo com a concedida:
Pena – reclusão, de um a três anos, e
multa.
Assim, tal como fizemos quando do estudo do artigo
imediatamente anterior, faremos a análise, mesmo que
sucintamente, dos elementos que integram a nova figura típica
prevista pelo art. 63 da Lei de Crimes Ambientais.
Luiz Regis Prado, em trabalho específico sobre o tema,
resumiu, com perfeição, todas as características da nova infração
penal, dizendo:
“Pune-se a conduta representada pelo verbo alterar (modificar,
transformar, desfigurar, mudar) aspecto ou estrutura de
edificação ou de local especialmente protegido, como tal
declarado por lei, ato administrativo ou decisão. Aspecto é a
aparência, são as características externas peculiares do local.
Por estrutura entendem-se a disposição e a ordem das partes
componentes de um conjunto – representado por uma
edificação ou um local. Edificação é um edifício, prédio, obra,
construção; enquanto local é o lugar, o sítio, abrangendo esse
dispositivo não apenas a paisagem natural, mas também os
monumentos construídos pelo homem (museus, teatros, igrejas
etc.). A expressão ‘sem autorização da autoridade competente
ou em desacordo com a concedida’ constitui elemento
normativo do tipo, referente à ausência de uma causa de
justificação; presente a autorização, a conduta será lícita. Fazse necessário, porém, que o aspecto ou estrutura da edificação
ou local seja especialmente protegido por lei, ato administrativo
ou decisão judicial – frequentemente através de tombamento –
em razão de seu valor paisagístico, ecológico, turístico,
artístico, histórico, cultural, religioso, arqueológico, etnográfico
ou monumental.”27
4.2
Classificação doutrinária
Crime comum com relação ao sujeito ativo e próprio com
relação ao sujeito passivo, haja vista que somente o proprietário e o
possuidor (podendo-se, aqui, também incluir as pessoas jurídicas de
direito público) de bens que foram especialmente protegidos por lei,
ato administrativo ou decisão judicial, em razão do seu valor
paisagístico, ecológico, turístico, artístico, histórico, cultural,
religioso, arqueológico, etnográfico ou monumental, é que poderão
figurar nessa condição; doloso; de dano; material; instantâneo
(dependendo do resultado, poderá ser considerado como
instantâneo de efeitos permanentes); de forma livre; comissivo
(podendo ser praticado omissivamente, desde que o agente goze do
status de garantidor); monossubjetivo; plurissubsistente; não
transeunte.
4.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
O art. 63 está inserido na Seção IV do Capítulo V da Lei nº
9.605/98, cuja finalidade é proteger o ordenamento urbano e o
patrimônio cultural, de acordo com uma visão ampla de meio
ambiente, sendo esses, portanto, os bens que se busca tutelar, da
mesma forma que no art. 62 da Lei Ambiental.
Aqui, no entanto, procura-se ainda resguardar o aspecto e a
estrutura de edificação ou local especialmente protegido por lei, ato
administrativo ou decisão judicial, sendo estes – edificação e local –
os objetos materiais da ação do agente.
4.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
Qualquer pessoa poderá ser o sujeito ativo do delito, tratandose, pois, nesse caso, de crime comum, podendo ser praticado,
inclusive, por pessoas jurídicas, para aqueles que conseguem
visualizar a possibilidade de sua incriminação, conforme
esclarecemos quando do estudo do art. 62, I, da Lei nº 9.605/98.
Não se afasta a possibilidade, ainda, de o proprietário da
edificação ou local especialmente protegido por lei, ato
administrativo ou decisão judicial ser sujeito ativo dessa infração
penal, haja vista que a Lei de Crimes Ambientais não exige, como
no delito de dano, tipificado no art. 163 do Código Penal, que a
coisa seja alheia.
Podem ser compreendidos como sujeitos passivos da infração
penal em estudo a pessoa jurídica de direito público, bem como o
proprietário ou, mesmo, o possuidor do bem merecedor de proteção
legal, administrativa ou judicial.
4.5
Consumação e tentativa
Crime material, consuma-se o delito no instante em que o
agente altera o aspecto ou a estrutura de edificação ou local
especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão
judicial, sem a necessária autorização da autoridade competente ou
em desacordo com a concedida.
Por se tratar de crime plurissubsistente, será possível o
raciocínio correspondente à tentativa, bastando que o agente tenha
dado início aos atos de execução tendentes a alterar o aspecto ou
estrutura de edificação ou local anteriormente referidos, não se
consumando a infração penal por circunstâncias alheias à sua
vontade.
4.6
Elemento subjetivo
O delito tipificado no art. 63 da Lei nº 9.605/98 somente pode
ser praticado dolosamente, não havendo previsão para a
modalidade culposa.
4.7
Modalidades comissiva e omissiva
A conduta núcleo do tipo, vale dizer, o verbo alterar, pressupõe
um comportamento comissivo por parte do agente.
No entanto, será possível o raciocínio correspondente à
omissão imprópria, caso o agente, gozando do status de garantidor,
devendo e podendo agir para evitar o resultado, dolosamente, nada
fizer para impedi-lo.
4.8
Pena, ação penal e suspensão condicional do processo
O preceito secundário do art. 63 da Lei de Crimes Ambientais
comina uma pena de reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.
Será possível a realização de proposta de suspensão
condicional do processo, haja vista que a pena mínima cominada
não é superior a 1 (um) ano, conforme determina o art. 89 da Lei nº
9.099/95.
A ação penal é de iniciativa pública incondicionada, nos termos
do art. 26 do mencionado diploma legal.
4.9
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: qualquer pessoa
(física ou jurídica).
Passivo: a pessoa jurídica
de direito público, bem
como o proprietário ou,
mesmo, o possuidor do
bem
merecedor
de
proteção
legal,
administrativa ou judicial.
Objeto material
O aspecto e a estrutura de
edificação
ou
local
especialmente protegido por lei,
ato administrativo ou decisão
judicial.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
O ordenamento urbano e o
patrimônio cultural.
Elemento subjetivo
»
»
É o dolo.
Não há previsão para a
modalidade culposa.
Modalidades
omissiva
»
»
comissiva
e
A conduta núcleo do tipo
pressupõe
um
comportamento comissivo
por parte do agente.
No entanto, será possível o
raciocínio correspondente à
omissão imprópria, caso o
agente, gozando do status
de garantidor, devendo e
podendo agir para evitar o
resultado,
dolosamente,
nada fizer para impedi-lo.
Consumação e tentativa
»
»
Crime material, consumase o delito no instante em
que o agente altera o
aspecto ou a estrutura de
edificação
ou
local
especialmente
protegido
por lei, ato administrativo
ou decisão judicial, sem a
necessária autorização da
autoridade competente ou
em desacordo com a
concedida.
É possível o raciocínio
correspondente à tentativa.
1
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 105-106.
2
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 451.
3
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 304-305.
4
CUNHA, Sanches Rogério. Manual de direito penal – parte especial, volume único, p.
329.
5
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 207.
6
CARRARA, Francesco. Programa de derecho criminal, v. 6, p. 531.
7
VIVES ANTÓN, T. S.; BOIX REIG, J.; ORTS BERENGUER, E.; CARBONELL MATEU,
J. C.; GONZÁLEZ CUSSAC, J. L. Derecho penal – Parte especial, p. 535.
8
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 310-311.
9
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 201.
10
COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal – Parte especial, p. 843-844.
11
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo, p. 369.
12
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 111.
13
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 108.
14
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 309.
15
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado, p. 537.
16
O art. 266 do CPM está inserido no Livro I, correspondente aos crimes militares em
tempo de paz, enquanto o art. 383 do mesmo estatuto repressivo, que também prevê a
modalidade culposa, encontra-se no Livro II, que diz respeito aos crimes militares em
tempo de guerra.
17
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 199.
18
FARIA, Bento de. Código penal brasileiro, v. V, p. 82.
19
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 214.
20
FARIA, Bento de. Código penal brasileiro, v. V, p. 81-82.
21
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 113.
22
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 315.
23
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3., p. 216-217.
24
FARIA, Bento de. Código penal brasileiro, v. V, p. 83.
25
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 461.
26
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 215.
27
PRADO, Luiz Regis. Crimes contra o ambiente, p. 216.
Capítulo V
Da Apropriação Indébita
1.
APROPRIAÇÃO INDÉBITA
Apropriação indébita
Art. 168. Apropriar-se de coisa alheia
móvel, de que tem a posse ou a
detenção:
Pena – reclusão, de um a quatro
anos, e multa.
Aumento de pena
§ 1º A pena é aumentada de um terço,
quando o agente recebeu a coisa:
I – em depósito necessário;
II – na qualidade de tutor, curador,
síndico, liquidatário, inventariante,
testamenteiro ou depositário judicial;
III – em razão de ofício, emprego ou
profissão.
1.1
Introdução
Sob o nomen iuris de apropriação indébita, o Código Penal
comina uma pena de reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa,
para aquele que se apropria de coisa alheia móvel, da qual tem a
posse ou a detenção.
Um juízo maior de censura é exercido sobre aqueles que
recebem a coisa: I – em depósito necessário; II – na qualidade de
tutor, curador, síndico, liquidatário, inventariante, testamenteiro ou
depositário judicial; III – em razão de ofício, emprego ou profissão.
Por essa razão, como veremos mais adiante em tópico próprio, foi
criada a majorante prevista no § 1º do art. 168, aumentando a pena
em um terço, que será levada em consideração no terceiro
momento do critério trifásico de aplicação da pena, nos termos do
art. 68 do Código Penal.
Assim, analisando a figura típica da apropriação indébita,
podemos destacar os seguintes elementos: a) a conduta de se
apropriar de coisa alheia móvel; b) a existência de posse ou mesmo
de detenção sobre a coisa por parte do agente; c) o surgimento do
dolo, ou seja, do animus rem sibi habendi, após a posse ou a
detenção da coisa.
O núcleo apropriar deve ser entendido no sentido de tomar
como propriedade, tomar para si, apoderar-se indevidamente de
uma coisa alheia móvel, de que tinha a posse ou a detenção.
O Código Civil esclarece, por intermédio dos arts. 1.196 e
1.198, o que podemos entender como posse e detenção, dizendo,
respectivamente, verbis:
Art. 1.196. Considera-se possuidor
todo aquele que tem de fato o
exercício, pleno ou não, de algum dos
poderes inerentes à propriedade.
Art. 1.198. Considera-se detentor
aquele que, achando-se em relação
de dependência para com outro,
conserva a posse em nome deste e
em cumprimento de ordens ou
instruções suas.
Dessa forma, será de extrema importância, para efeito de
reconhecimento do crime de apropriação indébita, que se chegue à
conclusão de que o agente exercia a posse ou, pelo menos, que
detinha a coisa alheia móvel, mesmo que em nome de outrem,
sendo a característica fundamental dessas duas situações o tipo de
liberdade que o agente exercia sobre a coisa, vale dizer, uma
liberdade desvigiada.
Assim, imagine-se o exemplo do “guardador de automóveis”,
figura muito comum nos dias de hoje, principalmente nos grandes
centros urbanos. Normalmente, entregamos as chaves do
automóvel ao aludido guardador, a fim de que, ele próprio, faça as
manobras necessárias de estacionamento do veículo. Não podemos
dizer, nesse caso, que o guardador tinha a posse sobre nosso
automóvel, mas tão somente a detenção. Entretanto, se depois de
receber as chaves resolver fugir com o mencionado veículo, deverá
ser responsabilizado pelo delito de apropriação indébita, pois a
liberdade que exercia sobre a coisa, naquele momento, era
considerada desvigiada.
Por coisa alheia móvel podemos compreender qualquer bem,
passível de remoção, pertencente a outrem que não o próprio
agente.
Bento de Faria alerta para o fato de que:
“A preexistência da posse do sujeito ativo é uma condição que
constitui o pressuposto de fato do delito de apropriação
indébita.
A coisa deve se achar com o agente, legalmente, antes da
apropriação, isto é, sem subtração, fraude ou violência, pois se
houvesse de recorrer a esses meios para obtê-la, ou a sua
disponibilidade, praticaria delito diverso.”1
A apropriação de coisa alheia móvel deverá ser, portanto,
indébita, ou seja, indevida, conforme alerta a indicação marginal ao
art. 168 do Código Penal, não sendo, pois, de alguma forma,
amparada pelo ordenamento jurídico.
Faz-se necessário esclarecer que o delito somente se
configurará se o dolo de se apropriar surgir depois de ter o agente a
posse ou a detenção sobre a coisa alheia móvel. Caso contrário,
poderá se configurar em outra infração penal, conforme será
analisado no tópico correspondente aos destaques, fazendo-se a
distinção entre a apropriação indébita e o estelionato, bem como
entre o crime de furto.
Será possível o raciocínio correspondente ao princípio da
insignificância se a apropriação disser respeito à coisa alheia móvel
de valor irrisório, afastando-se, pois, a tipicidade material, inserida
no contexto da tipicidade conglobante e, consequentemente, a
tipicidade penal.
1.2
Classificação doutrinária
Crime próprio, tanto com relação ao sujeito ativo quanto ao
sujeito passivo, haja vista que somente aqueles que tiverem a posse
ou a detenção legítima sobre a coisa é que poderão praticar a
infração penal e, consequentemente, somente aqueles que
dispuserem da posse e propriedade da coisa móvel é que poderão
sofrer as consequências do comportamento levado a efeito pelo
agente;2 doloso; comissivo e omissivo (podendo, inclusive, ser
praticado via omissão imprópria, caso o agente goze do status de
garantidor); material; de forma livre; instantâneo (podendo ser, em
algumas situações, instantâneo de efeitos permanentes, se ocorrer,
por exemplo, a destruição da coisa); monossubjetivo;
unissubsistente e plurissubsistente (dependendo da forma como o
delito é praticado); transeunte ou não transeunte (variando de
acordo com a possibilidade, no caso concreto de ser realizada
perícia).
1.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
O direito de propriedade é o bem juridicamente protegido pelo
tipo penal do art. 168 do Código Penal. Noronha afirma que a
apropriação indébita, “definida no art. 168 do Código Penal, tem por
fim a tutela de um direito patrimonial sobre coisa móvel, que se
encontra na posse ou detenção do delinquente. Essa é a sua
objetividade jurídica específica.”3
Objeto material da apropriação indébita é a coisa alheia móvel
que se encontra na posse ou sob a detenção do agente.
1.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
Qualquer pessoa pode ser o sujeito ativo do delito de
apropriação indébita, desde que tenha a posse ou a detenção sobre
a coisa móvel, à exceção do proprietário, em razão da necessidade
de que a res seja alheia. No entanto, conforme destaca Cezar
Roberto Bitencourt, “o condômino, sócio ou coproprietário também
pode ser sujeito ativo de apropriação indébita, desde que não se
trate de coisa fungível e a apropriação não exceda à quota que lhe
cabe.”4
O sujeito passivo da apropriação indébita, como regra, será o
proprietário da coisa móvel. Contudo, conforme as lições de
Hungria, se a coisa “foi entregue por titular da posse direta
decorrente de direito real (usufruto, penhor), também ele será sujeito
passivo (pois o direito real gravita na órbita da propriedade).”5
1.5
Consumação e tentativa
Embora não seja fácil apontar com precisão o momento de
consumação do delito de apropriação indébita, pois não se pode
afirmar, com segurança, em que momento surgiu no agente a
vontade de ter a coisa para si, como se fosse dono, invertendo o
título da posse, objetivamente, podemos destacar alguns momentos
de exteriorização da vontade, característicos daquele que atua com
o dolo relativo ao delito do art. 168 do Código Penal, consumandose, pois, a infração penal.
Assim, conforme preleciona Álvaro Mayrink da Costa, podemos
visualizar a consumação da apropriação indébita quando o agente,
exteriorizando o seu animus rem sibi habendi, atua:
“a) por consumo – no qual há alteração ou transformação da
coisa, o que impossibilita a sua restituição; b) por retenção –
recusa na devolução ou em dar a coisa; c) por alheação –
passar a coisa a terceiro por venda, doação ou permuta,
destinação que fora especificada no recebimento; d) por
ocultação – que é uma forma de consumo; e) por desvio –
aplicar um fim distinto trazendo prejuízo patrimonial (v.g.: Caio
coloca à venda o relógio recebido em custódia; Tício retém
dinheiro referente a comissões recebidas na mediação na
venda de bens). Consoante tal visão, pode-se sintetizar que, na
tipificação, o ilícito comportamental se caracteriza diante da
recusa da devolução da coisa, pois o autor possui um dever
jurídico de restituir.”6
Embora exista controvérsia doutrinária, tratando-se, como
regra, de um crime plurissubsistente, será perfeitamente admissível
o raciocínio correspondente à tentativa no delito de apropriação
indébita. Assim, o agente poderá, por exemplo, estar iniciando a
prática de atos tendentes a se desfazer da coisa alheia móvel que
se encontrava legitimamente em seu poder, quando é surpreendido
pela própria vítima, que impede a transação criminosa. Por outro
lado, quando o agente se recusa a devolver a coisa, depois de
solicitada diretamente pela vítima, não se consegue visualizar a
tentativa pelo fato de que, nesse exemplo, estaremos diante de um
crime unissubsistente, ou seja, todos os atos que fazem parte do iter
criminis foram concentrados na negativa verbal em devolver a res,
consumando-se, nesse momento, a infração penal.
Portanto, a análise da possibilidade referente à tentativa deverá
ser levada a efeito caso a caso, e, dependendo da forma pela qual o
delito é praticado, será possível o reconhecimento do conatus
(tentativa).
1.6
Elemento subjetivo
O delito de apropriação indébita somente pode ser praticado
dolosamente, não existindo previsão para a modalidade de natureza
culposa.
O agente, portanto, para que possa praticar a infração penal em
estudo, deve agir com o chamado animus rem sibi habendi, ou seja,
a vontade de ter a coisa para si, como se fosse dono.
Conforme salientamos, para que se possa configurar o dolo
correspondente ao crime de apropriação indébita, ele deverá surgir,
obrigatoriamente, após o agente ter a posse ou a detenção da coisa
alheia móvel, pois, caso contrário, o fato poderá se consubstanciar
em outra infração penal, a exemplo do crime de estelionato,
analisado mais adiante.
Importante frisar que, no caso concreto, deve ficar
completamente demonstrada a intenção do agente em se apropriar
da coisa alheia móvel, não se podendo cogitar, por exemplo, no
delito em estudo, quando o agente, depois de solicitada a coisa pelo
seu dono, demora em devolvê-la, não agindo, pois, com a finalidade
de inverter o título da posse.
1.7
Modalidades comissiva e omissiva
O núcleo apropriar pode ser praticado comissiva ou
omissivamente pelo agente. Assim, comete o crime de apropriação
indébita, praticando um comportamento comissivo, aquele que se
desfaz da coisa alheia móvel, agindo como se fosse dono,
vendendo-a a terceiro. Da mesma forma, comete o delito em estudo
o agente que se recusa a devolver a coisa quando solicitada por seu
legítimo dono, praticando, outrossim, uma conduta negativa.
Também se pode raciocinar em termos de omissão imprópria
quando o agente, devendo e podendo agir para evitar o resultado,
na qualidade de garantidor, dolosamente, nada faz para impedi-lo.
Imagine-se, nesse caso, que o garantidor, percebendo que o agente
estava para se desfazer do bem pertencente ao garantido,
dolosamente, nada faz para impedir a transação ilícita, querendo,
com isso, trazer prejuízo para a vítima.
1.8
Causas de aumento de pena
O art. 168 do Código Penal elenca, nos três incisos de seu § 1º,
algumas majorantes que terão o condão de fazer com que a pena
seja obrigatoriamente aumentada em um terço, em razão do maior
juízo de censura, de reprovação que recai sobre aqueles que se
encontram nas condições por ele catalogadas.
Interessante ressaltar que, embora o mencionado parágrafo
seja apontado pela lei penal como o primeiro, na verdade ele é o
único parágrafo constante do art. 168 do diploma repressivo, sendo
essa mais uma de nossas “desorganizações legislativas.”
Assim, o § 1º do art. 168 do Código Penal determina:
§ 1º A pena é aumentada em um
terço, quando o agente recebeu a
coisa:
I – em depósito necessário;
II – na qualidade de tutor, curador,
síndico, liquidatário, inventariante,
testamenteiro ou depositário judicial;
III – em razão de ofício, emprego ou
profissão.
Para melhor visualização, faremos a análise de cada um dos
incisos, isoladamente.
1.8.1
Depósito necessário
Os incisos I e II do art. 647 do Código Civil traduzem as
hipóteses do chamado depósito necessário:
Art. 647. É depósito necessário:
I – o que se faz em desempenho de
obrigação legal;
II – o que se efetua por ocasião de
alguma calamidade, como o incêndio,
a inundação, o naufrágio ou o saque.
Pelo que se dessume dos incisos do art. 647 do Código Civil, o
depósito poderá ser dividido em: a) legal, na primeira hipótese; b)
miserável, quando é levado a efeito por ocasião de alguma das
calamidades arroladas pelo inciso II.
Hungria esclarece que a majorante prevista no inciso I do § 1º
do art. 168 do Código Penal somente se aplica às hipóteses do
chamado depósito miserável, argumentando, com precisão:
“Depósito necessário, de que cuida o inciso I é, exclusivamente,
o chamado miserável, isto é, imposto pela necessidade de pôr a
salvo a coisa, na iminência ou no curso de algum
acontecimento calamitoso, ou, como diz o art. 1.282 do Código
Civil, ‘o que se efetua por ocasião de alguma calamidade, como
o incêndio, a inundação, o naufrágio ou o saque’. Não está
incluído o depósito legal, de que é subespécie o depósito
judicial (que a lei civil também considera necessário). A
infidelidade do depositário legal (stricto sensu), que é sempre
um funcionário público, recebendo a coisa ‘em razão do cargo’,
constitui o crime de peculato (art. 312). Quanto ao depositário
judicial, é ele contemplado no inciso II, de modo que sua
infidelidade é apropriação indébita qualificada, e não peculato;
mas isto, bem entendido, quando seja um particular.”7
1.8.2
Na qualidade de tutor, curador, síndico, liquidatário,
inventariante, testamenteiro ou depositário judicial
Há determinadas situações que exigem, mais do que em
qualquer outra, uma relação de fidelidade, de confiança entre as
pessoas. Quando essa relação é quebrada, entende-se que o juízo
de reprovação penal deverá ser maior do que em outra relação em
que não esteja em jogo essa “confiança especial.” Por isso, a lei
penal elenca uma série de relações que se traduzem em uma
condição especial para os agentes, impondo uma majoração em
suas penas, caso delas se aproveitem a fim de se apropriarem de
bens móveis que lhes foram entregues.
A primeira das figuras arroladas é a do tutor, a quem compete
cuidar da pessoa do menor, em virtude do falecimento de seus pais,
ou na hipótese de serem eles declarados ausentes, bem como
quando tiverem decaído do poder familiar. Nos termos do art. 1.741
do Código Civil, incumbe ao tutor, sob a inspeção do juiz,
administrar os bens do tutelado, em proveito deste, cumprindo seus
deveres com zelo e boa-fé.
Curador é aquele que, em virtude de designação judicial,
deverá cuidar dos que, de acordo com os incisos I a V do art. 1.767
do Código Civil, com a nova redação que lhes foi conferida pela Lei
nº 13.146, de 6 de julho de 2015: I – por causa transitória ou
permanente, não puderem exprimir sua vontade; II – (Revogado); III
– são ébrios habituais e os viciados em tóxico; IV – (Revogado); V –
são pródigos.
É fundamental assinalar que somente gozarão dos status de
tutores e curadores aqueles que assim forem nomeados mediante
sentença judicial.
Síndico é, atualmente, o chamado administrador judicial, de
acordo com a Lei nº 11.101/2005, sendo nomeado pelo juiz e
responsável pelo processo de falência ou de recuperação judicial,
conforme prelecionam Maria Thereza Rocha de Assis Moura e
Marta Saad.8
A figura do liquidatário foi abolida, razão pela qual não será
considerada.
Inventariante é aquele a quem compete, desde a assinatura do
compromisso até a homologação da partilha, a administração da
herança, de acordo com as disposições contidas no art. 1.991 do
Código Civil.
Testamenteiro, por seu turno, é aquele que tem a função de
cumprir as disposições de última vontade do de cujus, formalizadas
em seu testamento.
Depositário judicial é o encarregado, conforme o art. 159 do
Código de Processo Civil (Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015),
de guardar e conservar os bens penhorados, arrestados,
sequestrados ou arrecadados não dispondo a lei de outro modo.
Luiz Regis Prado esclarece, ainda, que, “se é funcionário público,
responde por peculato; sendo, porém, particular nomeado pelo juiz,
incorre na majorante em estudo.”9
1.8.3
Em razão de ofício, emprego ou profissão
Por mais uma vez a lei penal sobreleva o dever de fidelidade
que deve existir entre o agente e a vítima, aumentando a pena em
um terço quando o crime é cometido em razão de ofício, emprego
ou profissão. A maior facilidade, dada a confiança depositada no
agente, é motivo de maior censura penal.
Hungria resume as três situações dizendo:
“Por ofício se entende qualquer ocupação habitual consistente
em prestação de serviços manuais; por emprego, toda
ocupação em serviço particular, mas existindo uma relação de
dependência (preposição) ou certa hierarquia entre o locado e o
locatário do serviço; por profissão, finalmente, toda e qualquer
atividade habitual remunerada. A profissão é um gênero, de que
são espécies o ofício e o emprego.”10
1.9
Primariedade do agente e pequeno valor da coisa
apropriada
O art. 170 do Código Penal determina seja aplicado ao delito de
apropriação indébita o § 2º do art. 155 do mesmo diploma legal.
Assim, se o criminoso for primário e for de pequeno valor a coisa
apropriada indebitamente, o juiz poderá substituir a pena de
reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços ou aplicar
somente a pena de multa.
Remetemos o leitor à leitura do tópico correspondente ao delito
de furto.
1.10
Pena, ação penal e suspensão condicional do processo
O preceito secundário do art. 168 do Código Penal comina uma
pena de reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, que deverá
ser aumentada em um terço caso ocorra qualquer uma das
hipóteses previstas pelo seu § 1º.
A ação penal, como regra, será de iniciativa pública
incondicionada. Entretanto, será de iniciativa pública condicionada à
representação, nos termos do art. 182, se o crime for cometido em
prejuízo: I – do cônjuge judicialmente separado; II – de irmão; III –
de tio ou sobrinho, com quem o agente coabita.
Se a vítima contar com 60 anos de idade (ou mais), mesmo que
se amolde a uma das situações anteriores, a ação será de iniciativa
pública incondicionada, de acordo com a determinação contida no
inciso III do art. 183 do Código Penal.
Será possível a realização de proposta de suspensão
condicional do processo desde que não sejam aplicadas quaisquer
majorantes previstas no § 1º do art. 168 do estatuto repressivo, haja
vista que a pena mínima, nessa hipótese, ultrapassaria o limite de
um ano, conforme determinado pelo art. 89 da Lei nº 9.099/95.
1.11
1.11.1
Destaques
Liberdade desvigiada. Diferença entre apropriação indébita
e furto
Um dos pontos fundamentais ao reconhecimento do delito de
apropriação indébita diz respeito à liberdade que o agente exerce
sobre a coisa. Em muitas situações, pode o fato até assemelhar-se
ao delito de apropriação indébita, mas se consubstanciará em outra
infração penal caso o agente não exerça sobre a coisa uma
liberdade desvigiada.
Assim, suponhamos que o agente, no interior de uma biblioteca,
tenha solicitado três livros, uma vez que pretendia fazer um estudo
comparado que lhe ocuparia o dia inteiro. Permaneceu, portanto,
com os livros em seu poder das 7 às 22 horas, oportunidade em
que, ao se retirar, efetuou a devolução de dois livros, escondendo o
outro em sua bolsa. Na hipótese de ter tido sucesso o plano
criminoso, qual seria o crime praticado pelo agente? Seria
apropriação indébita ou furto?
Por mais que possamos ser induzidos a pensar que o agente,
ao menos, detinha consigo os livros que lhe foram emprestados
para que pudesse estudá-los naquele local, a liberdade que ele
exercia sobre eles era vigiada. Dessa forma, deveria o agente ser
responsabilizado pelo delito de furto, e não pelo de apropriação
indébita.
Para que possamos traçar um paralelo, imagine-se, agora, a
hipótese em que o agente pudesse, por empréstimo, levar os livros
da mencionada biblioteca para que os estudasse, em sua própria
residência, pelo prazo de 48 horas. Decorrido esse tempo, a pessoa
encarregada, gentilmente, liga para a residência do agente e o avisa
de que o seu tempo já se esgotara, solicitando-lhe a devolução dos
livros. Como resposta, o agente diz que, em razão de sua precária
situação financeira, havia vendido os mencionados livros. Nesse
caso, o delito seria o de apropriação indébita, pois, ao contrário do
exemplo anterior, a liberdade que o agente exercia sobre a coisa
alheia móvel, em sua residência, era considerada desvigiada.
Imagine-se, ainda, a subtração de valores por parte de um
empregado que exerce as funções de caixa numa agência bancária.
Como se sabe, ele tem à sua disposição, durante todo o seu
período de trabalho, os valores constantes do seu caixa. Se, ao final
de sua jornada de trabalho, subtrai a importância de R$ 200,00
(duzentos reais), o delito praticado seria o de furto ou o de
apropriação indébita? De acordo com a nossa explicação anterior,
deveria ele ser responsabilizado penalmente por furto, pois, mesmo
tendo alguma liberdade sobre a coisa, dentro da própria agência
bancária essa liberdade era considerada vigiada.
Assim, podemos concluir com o julgado do extinto TA-MG, AC
9.011, tendo como relator o Juiz Costa e Silva:
“Na apropriação indébita, o agente tem a posse desvigiada do
objeto material, enquanto que no furto qualificado pelo abuso de
confiança o sujeito não tem a posse do objeto material, que
continua na esfera de proteção, vigilância e posse do seu
dono.”
1.11.2
Momento de surgimento do dolo – Diferença entre
apropriação indébita e estelionato
Quando o tipo penal do art. 168 do estatuto repressivo define o
crime de apropriação indébita, ele se vale da seguinte expressão:
apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a
detenção.
Percebe-se, portanto, que o fundamento da apropriação
indébita reside no fato de ter o agente a posse ou a detenção sobre
a coisa, não se podendo esquecer do que foi discutido acima a
respeito da liberdade desvigiada.
Aqui, interessa-nos ressaltar que, para a existência da
apropriação indébita, será preciso a constatação da posse ou da
detenção. No entanto, outro detalhe merece ser analisado, vale
dizer, o que diz respeito ao momento em que surge o dolo de se
apropriar, atuando o agente com o chamado animus rem sibi
habendi.
Imagine-se a hipótese de um motorista que, diariamente, faz o
mesmo percurso com o automóvel pertencente ao seu patrão.
Assim, ao chegar às 7 horas da manhã, conduz os filhos do casal
até a escola para, logo em seguida, deixar o patrão no seu local de
trabalho. No período entre 9 e 11 horas da manhã, o agente
permanece com o automóvel, no lugar de sua escolha, normalmente
dormindo em seu interior, aguardando o tempo passar, até que volte
a refazer o trajeto, buscando todas as pessoas daquela família.
Durante essas duas horas, o agente, que dirigia um automóvel
Mercedez, começa a pensar em suas dificuldades financeiras e
resolve solucionar os seus problemas fugindo com o veículo para o
Paraguai, a fim de vendê-lo. Nesse caso, qual seria o crime
praticado pelo agente? Entendemos, em razão dos dados
fornecidos, que teria ele que responder pelo delito de apropriação
indébita, pois detinha a coisa, exercendo sobre ela, naquele
momento, liberdade desvigiada. Também será parte integrante do
raciocínio, para efeitos de reconhecimento da apropriação indébita,
o momento em que surgiu o dolo de ter a coisa para si, o que
efetivamente ocorreu quando o agente já detinha a coisa.
Agora, suponha-se que o agente, já tendo elucubrado o plano
criminoso, ou seja, já com a intenção de levar o carro ao Paraguai a
fim de vendê-lo, age normalmente com seu patrão como se fosse
mais um dia comum de trabalho e, depois de deixar todas as
pessoas daquela residência em seus destinos, cumpre o projeto
criminoso e se dirige em direção àquele país, conseguindo,
finalmente, vender o automóvel. Nesse caso, o delito seria, ainda, o
de apropriação indébita? A doutrina, de forma majoritária, entende
que não. Isso porque se o dolo surgir antes de o agente ter a posse
ou a detenção da coisa, o delito passa a ser reconhecido como
estelionato.
Nesse sentido, afirma Ney Moura Teles:
“Se no momento em que recebe a coisa, a título de posse ou de
detenção, o agente já tinha a intenção de apropriar-se dela, o
crime será o de estelionato, pois terá enganado o proprietário,
iludindo sua boa-fé, para que este lha confiasse. É porque,
nesse caso, seu dolo era já o de tornar-se dono da coisa, antes
de receber sua posse ou detenção, ludibriando a vítima.”11
1.11.3
Apropriação indébita de uso
Da mesma forma como ocorre com a subtração de uso, pode o
agente, por exemplo, não devolver, momentaneamente, a coisa que
se encontrava em sua posse, a fim de usá-la por mais algum tempo.
Nesse caso, não restaria configurado o delito de apropriação
indébita, em virtude da ausência do animus rem sibi habendi, vale
dizer, o dolo de se apropriar da coisa, de tê-la para si como se fosse
dono, invertendo o título da posse.
No entanto, devemos considerar, para efeitos de
reconhecimento da apropriação de uso, o princípio da razoabilidade,
evitando-se, pois, que a apropriação da coisa alheia móvel se
perpetue no tempo, sob o falso argumento do simples uso.
Nesse sentido, salienta Romeu de Almeida Salles Júnior:
“O uso da coisa, em princípio, não constitui o delito de
apropriação indébita. Não existe em nosso direito repressivo a
figura criminosa da ‘apropriação indébita de uso’ (conduta
atípica). O exemplo é de Hungria: se o depositário de um cavalo
ou de um automóvel se serve dele para um simples passeio,
haverá abuso de posse, mas não apropriação indébita.
Pode ocorrer a devolução tardia da coisa pelo agente após
consumado o crime. Essa devolução não faz desaparecer o
delito. Atua apenas como circunstância a ser considerada na
dosagem da pena.”12
1.11.4
Arrependimento posterior
Cuidando do instituto do arrependimento posterior, o Código
Penal assevera, em seu art. 16, verbis:
Art. 16. Nos crimes cometidos sem
violência ou grave ameaça à pessoa,
reparado o dano ou restituída a coisa,
até o recebimento da denúncia ou da
queixa, por ato voluntário do agente, a
pena será reduzida de um a dois
terços.
Como se percebe pela redação legal, o delito de apropriação
indébita se encontra no rol daqueles aos quais será possível a
aplicação da causa geral de diminuição de pena relativa ao
arrependimento posterior, uma vez que, em sua figura típica, não há
previsão de violência ou grave ameaça à pessoa, podendo o
agente, por exemplo, até o recebimento da denúncia ou da queixa,
mediante seu ato voluntário, restituir ao seu legítimo dono a coisa de
que ele se apropriou.
Para maiores discussões sobre o arrependimento posterior,
remetemos o leitor ao estudo que foi realizado no primeiro volume
dessa coleção, que diz respeito à análise da Parte Geral do Código
Penal.
1.11.5
Apropriação indébita por procurador legalmente constituído
Para que se constitua alguém como procurador é preciso, antes
de mais nada, que se deposite uma dose considerável de confiança
nessa relação. Às vezes, essa confiança é quebrada, com o
cometimento de alguma traição. Pode ocorrer que alguém,
constituído pela própria vítima para exercer as funções de seu
procurador, recebendo determinada importância em dinheiro, não a
repasse para o seu legítimo dono. Nesse caso, poderíamos cogitar
de apropriação indébita?
A questão deverá ser resolvida em sede de elemento subjetivo,
vale dizer, em cada caso deveremos analisar a intenção do agente,
sua finalidade em não efetuar o repasse dos valores pertencentes à
vítima, para que possamos chegar à conclusão da prática do delito
de apropriação indébita.
Assim, imagine-se a hipótese do advogado que, depois de
receber os valores correspondentes a uma indenização pertencente
à vítima, depositando-os em sua conta bancária e deles fazendo
uso, é procurado por ela, que busca informações a respeito do
desfecho do processo, sendo informada pelo profissional do Direito
que o feito aguardava decisão de um Tribunal Superior, o que
demandaria, ainda, tempo considerável.
Percebe-se, aqui, que o aludido profissional, em virtude dos
poderes que lhe foram outorgados no instrumento de mandato,
podia sacar qualquer valor pertencente à vítima. Assim, a posse de
tais valores, ab initio, era lícita. No entanto, quando informa
ardilosamente à vítima, dizendo-lhe que nada ainda havia sido pago,
uma vez que seu processo aguardava pauta para julgamento pelo
Tribunal, acreditamos que, nesse instante, tenha se configurado o
delito de apropriação indébita, podendo-se visualizar o seu dolo de
ter a coisa para si, invertendo o título da posse.
Seria possível, in casu, o raciocínio que levamos a efeito
anteriormente, referente à apropriação de uso, caso fosse sua
intenção devolver a quantia apropriada em curto prazo, o que
afastaria o animus rem sibi habendi. Imagine-se, agora, o fato de
que, procurado por seu cliente na segunda-feira, embora já tendo
recebido todo o dinheiro que lhe pertencia em razão de uma
indenização judicial, o advogado retarde a sua devolução, dizendolhe que o pagamento sairia na sexta-feira, oportunidade em que
poderia aproveitar esse curto espaço de tempo para saldar algumas
dívidas, já vencidas, pois somente teria algum crédito em sua conta
bancária na quinta-feira, por exemplo. Nesse caso, não
conseguimos visualizar o dolo de ter a coisa para si, como se fosse
dono, invertendo o título da posse. Queria, sim, utilizar, por curto
período, o dinheiro já recebido licitamente, pertencente à vítima,
caracterizando-se, assim, como apropriação de uso, fato indiferente
ao Direito Penal.
1.11.6
Prescindibilidade da prestação de contas à configuração do
delito
O delito de apropriação indébita prescinde da prestação de
contas para efeitos de seu reconhecimento, embora haja
controvérsia jurisprudencial nesse sentido.
O Supremo Tribunal Federal assim vem decidindo
reiteradamente, conforme se verifica pelo julgado abaixo
colacionado:
“Habeas corpus – A jurisprudência desta Corte (assim, a título
exemplificativo, no RHC 53.713 e no RHC 68.132) é no sentido
de que, em se tratando de apropriação indébita, não é
necessária a prévia prestação de contas, a não ser em casos
excepcionais, o que não ocorre na hipótese. – Também é
pacífico que, depois de consumado esse crime, o pagamento
não é causa de extinção da punibilidade por falta de previsão
legal. – O habeas corpus, por seu rito sumário, não é o meio
processual idôneo para o exame aprofundado da prova
indispensável para a aferição da existência ou não, de dolo.
Habeas corpus indeferido” (HC 74.965/RS, 1a T., Rel. Min.
Moreira Alves, DJU 1º/8/1997).
Da mesma forma, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:
“É inexigível a prévia prestação de contas para a caracterização
do crime de apropriação indébita. Precedentes do STJ e do
STF” (REsp 780.319/RS, Recurso Especial 2005/0149730-7, 5ª
T., Rel.ª Min.ª Laurita Vaz, DJe 15/5/2006).
1.11.7
Apropriação indébita e Código Penal Militar
O crime de apropriação indébita também veio previsto no
Código Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de
1969), conforme se verifica pela leitura do seu art. 248.
1.11.8
Apropriação indébita e Estatuto do Idoso
O art. 102 do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741, de 1º de outubro
de 2003) prevê uma modalidade especial de apropriação indébita,
punindo com pena de reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa,
quando alguém se apropria ou desvia bens, proventos, pensão ou
qualquer outro rendimento do idoso, dando-lhes aplicação diversa
da sua finalidade.
1.11.9
Apropriação indébita e Sistema Financeiro Nacional
O art. 5º da Lei nº 7.492, de 16 de junho de 1986, que define os
crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, comina pena de
reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa, quando a apropriação
de dinheiro, título, valor ou qualquer outro bem móvel de que tem a
posse, é cometida por quaisquer das pessoas mencionadas em seu
art. 25 ou é desviado em proveito próprio ou alheio.
1.11.10 Apropriação indébita eleitoral
O crime de apropriação indébita eleitoral (art. 354-A) foi inserido
na Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965 (Código Eleitoral), através
da Lei nº 13.488, de 6 de outubro de 2017, que diz, verbis:
Art. 354-A. Apropriar-se o candidato, o
administrador financeiro da campanha, ou
quem de fato exerça essa função, de bens,
recursos
ou
valores
destinados
ao
financiamento eleitoral, em proveito próprio
ou alheio:
Pena – reclusão, de dois a seis anos, e multa.
1.12
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: somente aquele que
tiver a posse ou a detenção
sobre a coisa móvel.
Passivo: o proprietário da
coisa móvel. Contudo, se a
coisa “foi entregue por
titular da posse direta
decorrente de direito real
(usufruto, penhor), também
ele será sujeito passivo”
(HUNGRIA, 1967, p. 139).
Objeto material
A coisa alheia móvel que se
encontra na posse ou sob a
detenção do agente.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
O direito de propriedade.
Prova pericial
Em se tratando do delito de
apropriação indébita, a doutrina
e a jurisprudência de há muito
vêm entendendo que, em se
tratando de infração que nem
sempre deixa vestígios, tornase dispensável a prova pericial,
pois além de o fato delituoso
poder ser apurado por outros
meios de prova, o julgador
forma a sua convicção pela livre
apreciação das provas (TJMG,
AC 1.0433.05.156600-1/001).
Elemento subjetivo
»
»
É o dolo.
Não há previsão para a
modalidade de natureza
culposa.
Modalidades
omissiva
comissiva
e
O núcleo apropriar pode ser
praticado
comissiva
ou
omissivamente pelo agente.
Consumação e tentativa
»
Podemos
visualizar
a
consumação
da
apropriação
indébita
quando
o
agente,
exteriorizando
o
seu
animus rem sibi habendi,
atua: “a) por consumo – no
qual há alteração ou
transformação da coisa, o
que impossibilita a sua
restituição; b) por retenção
– recusa na devolução ou
em dar a coisa; c) por
alheação – passar a coisa
a terceiro por venda,
doação
ou
permuta,
destinação
que
fora
especificada
no
recebimento;
d)
por
ocultação – que é uma
forma de consumo; e) por
desvio – aplicar um fim
distinto trazendo prejuízo
patrimonial (...). Consoante
tal visão, pode-se sintetizar
que, na tipificação, o ilícito
comportamental
se
caracteriza
diante
da
recusa da devolução da
coisa, pois o autor possui
»
um dever jurídico de
restituir” (COSTA, 2001, p.
881).
Embora exista controvérsia
doutrinária,
entendemos
ser possível a tentativa.
2.
APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA
Apropriação indébita previdenciária
Art. 168-A. Deixar de repassar à
previdência social as contribuições
recolhidas dos contribuintes, no prazo
e forma legal ou convencional:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5
(cinco) anos, e multa.
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem
deixar de:
I – recolher, no prazo legal,
contribuição ou outra importância
destinada à previdência social que
tenha sido descontada de pagamento
efetuado a segurados, a terceiros ou
arrecadada do público;
II – recolher contribuições devidas à
previdência social que tenham
integrado despesas contábeis ou
custos relativos à venda de produtos
ou à prestação de serviços;
III – pagar benefício devido a
segurado, quando as respectivas
cotas ou valores já tiverem sido
reembolsados
à
empresa
pela
previdência social.
§ 2º É extinta a punibilidade se o
agente, espontaneamente, declara,
confessa e efetua o pagamento das
contribuições, importâncias ou valores
e presta as informações devidas à
previdência social, na forma definida
em lei ou regulamento, antes do início
da ação fiscal.
§ 3º É facultado ao juiz deixar de
aplicar a pena ou aplicar somente a
de multa se o agente for primário e de
bons antecedentes, desde que:
I – tenha promovido, após o início da
ação fiscal e antes de oferecida a
denúncia,
o
pagamento
da
contribuição social previdenciária,
inclusive acessórios; ou
II – o valor das contribuições devidas,
inclusive acessórios, seja igual ou
inferior àquele estabelecido pela
previdência
social,
administrativamente, como sendo o
mínimo para ajuizamento de suas
execuções fiscais.
§ 4º A faculdade prevista no § 3º
deste artigo não se aplica aos casos
de parcelamento de contribuições cujo
valor, inclusive dos acessórios, seja
superior
àquele
estabelecido,
administrativamente, como sendo o
mínimo para o ajuizamento de suas
execuções fiscais.
2.1
Introdução
O art. 168-A foi inserido no Código Penal, juntamente com seus
parágrafos, por intermédio da Lei nº 9.983, de 14 de julho de 2000,
revogando expressamente o art. 95 e parágrafos da Lei nº 8.212, de
24 de julho de 1991, que dispunha, de forma confusa, sobre
algumas condutas consideradas criminosas, que poderiam se
configurar em apropriação indébita.
Portanto, sob o nomen juris de apropriação indébita
previdenciária, o Código Penal passa a punir, mediante previsão
contida no caput do seu art. 168-A, com pena de reclusão, de 2
(dois) a 5 (cinco) anos, e multa, aquele que deixar de repassar à
previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no
prazo e forma legal ou convencional.
No § 1º do mencionado artigo, houve previsão de formas
assemelhadas, que serão analisadas, mesmo que sucintamente, em
tópicos próprios.
Assim, para que se possa configurar o delito em estudo, é
preciso que, no caso concreto, sejam verificados os seguintes
elementos integrantes do tipo penal do art. 168-A do diploma
repressivo: a) a conduta núcleo de deixar de repassar à previdência
social; b) as contribuições já e anteriormente recolhidas dos
contribuintes; c) no prazo e forma legal ou convencional.
Deixar de repassar deve ser entendido no sentido de não levar
a efeito o recolhimento aos cofres da Previdência Social as
contribuições previamente recolhidas dos contribuintes. Isso
significa que, embora tendo efetuado os descontos pertinentes aos
valores cabidos à Previdência Social, o agente não os repassa, não
os recolhe em benefício de quem de direito, isto é, a Previdência
Social, que, de acordo com a arrecadação que lhe for pertinente,
nos termos preconizados pelo art. 201 da Constituição Federal,
deverá atender, nos termos da lei, a: I – cobertura dos eventos de
doença, invalidez, morte e idade avançada; II – proteção à
maternidade, especialmente à gestante; III – proteção ao
trabalhador em situação de desemprego involuntário; IV – salário-
família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de
baixa renda; V – pensão por morte do segurado, homem ou mulher,
ao cônjuge ou companheiro e dependentes, observado o disposto
no § 2º.
Tais contribuições, destinadas à manutenção da previdência
social, já devem ter sido recolhidas pelo agente, isto é, em tese,
pelo menos inicialmente, o raciocínio é construído no sentido de que
foram efetivamente descontadas dos contribuintes, não sendo,
entretanto, repassadas à previdência.
Destaca Luiz Regis Prado:
“As contribuições aludidas no texto também constituem
elementos normativos do tipo de valoração jurídica (Direito de
Seguridade Social), assim como o termo contribuintes, que
integra esse ramo do Direito como o Direito Tributário.
Saliente-se que as contribuições referidas no tipo referem-se
tão somente àquelas destinadas ao custeio da Seguridade
Social, sendo contribuintes aqueles erigidos pela legislação
previdenciária como responsáveis tributários (contribuintes de
direito).
A arrecadação da receita destinada ao custeio da Previdência
Social ordinariamente é feita pela rede bancária, embora possa
concretizar-se de outra forma, mediante prévia decisão do
Conselho Nacional de Seguridade Social (art. 60 da Lei nº
8.212/91).”13
Finalmente, somente se caracterizará o delito de apropriação
indébita previdenciária uma vez decorrido o prazo legal ou
convencional concedido para que fosse realizado o repasse à
previdência. Antes de esgotado o prazo, que se encontra previsto na
Lei nº 8.212/91, que dispõe sobre a organização da Seguridade
Social, o fato deve ser considerado um indiferente penal.
2.2
Classificação doutrinária
Crime próprio, tanto com relação ao sujeito ativo quanto ao
sujeito passivo; doloso (não havendo previsão legal para a
modalidade culposa); omissivo próprio; de mera conduta;
instantâneo;
de
forma
vinculada;
monossubjetivo;
monossubsistente; não transeunte.
2.3
Modalidades assemelhadas de apropriação indébita
previdenciária
O § 1º do art. 168-A do Código Penal prevê as modalidades
assemelhadas de apropriação indébita previdenciária, dizendo,
verbis:
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem
deixar de:
I – recolher, no prazo legal,
contribuição ou outra importância
destinada à previdência social que
tenha sido descontada de pagamento
efetuado a segurados, a terceiros ou
arrecadada do público;
II – recolher contribuições devidas à
previdência social que tenham
integrado despesas contábeis ou
custos relativos à venda de produtos
ou à prestação de serviços;
III – pagar benefício devido a
segurado, quando as respectivas
cotas ou valores já tiverem sido
reembolsados
à
empresa
pela
previdência social.
Cezar Roberto Bitencourt, fazendo a distinção entre a figura
constante do caput e as do § 1º do art. 168-A do Código Penal,
ressalta:
“A conduta tipificada no caput tem a finalidade de punir o
substituto tributário, que deve recolher à previdência social o
que arrecadou do contribuinte, e deixou de fazê-lo (ver art. 31
da Lei nº 8.212/91). Já as figuras descritas no § 1º destinam-se
ao contribuinte-empresário, que deve recolher a contribuição
que arrecadou do contribuinte.”14
2.4
Objeto material e bem juridicamente protegido
O crime de apropriação indébita previdenciária encontra-se
inserido no Título II do Código Penal, referente aos crimes contra o
patrimônio, sendo este, portanto, o bem que se busca proteger por
meio da figura típica constante do art. 168-A do estatuto repressivo.
Conforme salienta Antonio Monteiro Lopes:
“Na verdade esse novo artigo protege o patrimônio não de uma
pessoa ou de algumas pessoas, como nos demais crimes
previstos nesse Título, mas o patrimônio de todos os cidadãos
que fazem parte do sistema previdenciário. Ademais, embora
se fale em crime contra a Previdência Social, no fundo é a
Seguridade Social tal como descrita no art. 194 da Constituição
da República que está sendo tutelada.”15
Objeto material é a contribuição que foi recolhida do
contribuinte.
2.5
Sujeito ativo e sujeito passivo
Crime próprio, a apropriação indébita previdenciária somente
pode ser praticada por aquele que tinha a obrigação legal de
repassar à Previdência Social as contribuições recolhidas dos
contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional, não se
podendo, contudo, no tipo penal em estudo, abranger, também, a
pessoa jurídica, por ausência de norma expressa nesse sentido, tal
como acontece com a Lei nº 9.605/98, que cuida das sanções
penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas
ao meio ambiente.
Aqui, portanto, somente os representantes legais da pessoa
jurídica, a exemplo dos sócios que exercem a sua administração, é
que poderão ser considerados sujeitos ativos do delito sub examen.
Salienta Cezar Roberto Bitencourt que “sujeito ativo, nas figuras
descritas no § 1º, é o titular de firma individual, os sócios solidários,
os gerentes, diretores ou administradores que efetivamente hajam
participado da administração da empresa, concorrendo efetivamente
na prática da conduta criminalizada.”16
O sujeito passivo é a Previdência Social, que representa o
Estado por intermédio do Instituto Nacional do Seguro Social
(INSS).
2.6
Consumação e tentativa
Na qualidade de modalidade especializada de apropriação
indébita, o crime de apropriação indébita previdenciária se consuma
no momento em que o agente decide deixar de recolher as
contribuições ou outras importâncias, depois de ultrapassado o
prazo legal ou convencional para tanto.
Por se tratar de crime omissivo próprio, torna-se complicado o
raciocínio correspondente à tentativa, pois, se depois de
ultrapassado o prazo o agente não praticar os comportamentos
determinados pelo tipo penal, o crime estará, nesse momento,
consumado; caso contrário, se realiza as determinações típicas,
efetuando os repasses, recolhendo as contribuições etc., o fato será
um indiferente penal.
A doutrina, no entanto, é vacilante com relação a esse ponto.
Cezar Roberto Bitencourt afirma que o crime se consuma “com
a inversão da natureza da posse, caracterizada por ato
demonstrativo de disposição da coisa alheia ou pela negativa em
devolvê-la. Como crime material, a tentativa é possível, embora de
difícil configuração.”17
Em sentido contrário, e a nosso ver com acerto, Luiz Regis
Prado preleciona que a “consumação delitiva se dá com a omissão
do agente em repassar a contribuição na forma e no prazo
estabelecidos pela lei previdenciária. Dessa forma, vencido o prazo
do repasse, consubstancia-se o delito.” E conclui o raciocínio,
dizendo que a “tentativa é inadmissível, por se tratar de delito
omissivo próprio.”18
2.7
Elemento subjetivo
O delito de apropriação indébita previdenciária só pode ser
praticado dolosamente, não havendo previsão, pois, para a
modalidade de natureza culposa.
Assim, somente aquele que, dolosamente, deixar de repassar à
previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no
prazo e forma legal ou convencional (caput do art. 168-A); deixar de
recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada
à previdência social que tenha sido descontada do pagamento
efetuado a segurados, a terceiros ou arrecadada do público (inciso I,
§ 1º, do art. 168-A); deixar de recolher contribuições devidas à
previdência social que tenham integrado despesas contábeis ou
custos relativos à venda de produtos ou à prestação de serviços
(inciso II, § 1º, do art. 168-A); deixar de pagar benefício devido a
segurado, quando as respectivas cotas ou valores já tiverem sido
reembolsados à empresa pela previdência social (inciso III, § 1º, do
art. 168-A) é que poderá ser responsabilizado penalmente pela
apropriação indébita previdenciária.
Dessa forma, aquele que, negligentemente, esquecer-se de
levar a efeito o repasse devido à previdência social não poderá ser
responsabilizado pelo delito em estudo, que exige, para o seu
reconhecimento, um comportamento doloso.
Embora, em nossa opinião, as denominações dolo genérico e
dolo específico não tenham mais acolhida para aqueles que adotam
a chamada teoria finalista da ação, como é o nosso caso, vale o
registro, para efeitos de conhecimento, da posição assumida pelo
Superior Tribunal de Justiça que, analisando o elemento subjetivo
do delito em estudo, tem se manifestado, reiteradamente, que:
“Em crimes de sonegação fiscal e de apropriação indébita de
contribuição previdenciária, este Superior Tribunal de Justiça
pacificou a orientação no sentido de que sua comprovação
prescinde de dolo específico sendo suficiente, para a sua
caracterização, a presença do dolo genérico consistente na
omissão voluntária do recolhimento, no prazo legal, dos valores
devidos” (STJ, AgRg no AREsp 493.584/SP, Rel. Min. Reynaldo
Soares da Fonseca, 5ª T., DJe 08/06/2016).
“O delito de apropriação indébita previdenciária constitui crime
omissivo próprio, que se perfaz com a mera omissão de
recolhimento da contribuição previdenciária dentro do prazo e
das formas legais, prescindindo, portanto, do dolo específico.
Incidência da Súmula nº 83/ STJ” (STJ, AgRg no AREsp
899.927/SP, Rel. Min. Sebastião Reis Junior, 6ª T., DJe
16/06/2016).
2.8
Modalidades comissiva e omissiva
Em todas as modalidades de apropriação indébita
previdenciária, verifica-se a chamada omissão própria, haja vista
que a inação criminosa vem narrada expressamente pelo tipo penal
do art. 168-A, não se podendo cogitar, outrossim, da modalidade
comissiva.
2.9
Extinção da punibilidade
O § 2º do art. 168-A do Código Penal determina a declaração
de extinção da punibilidade, nos seguintes termos:
§ 2º É extinta a punibilidade se o
agente, espontaneamente, declara,
confessa e efetua o pagamento das
contribuições, importâncias ou valores
e presta as informações devidas à
previdência social, na forma definida
em lei ou regulamento, antes do início
da ação fiscal.
São vários os requisitos necessários que dão ensejo à
declaração da extinção da punibilidade. Inicialmente, o agente
deverá declarar, por exemplo, aquilo que efetivamente recolheu dos
contribuintes e, ato contínuo, confessar que não levou a efeito o
repasse das contribuições recolhidas à previdência social.
Em seguida, deverá efetuar o pagamento, tanto do principal
quanto dos acessórios, das contribuições, importâncias ou valores,
prestando todas as informações à previdência social relativas a seu
débito.
Conforme salienta Antonio Lopes Monteiro:
“Além da confissão de dívida, prestação de informações etc., o
pagamento é essencial para a extinção da punibilidade. A forma
desse pagamento e demais elementos é que ficou para ser
regulamentada em lei ou regulamento, o que não foi bom, pois
pode ficar ao sabor de tendências políticas de cada momento,
já que regulamentos podem suceder-se com enorme facilidade,
como aliás tem sido em matéria de Seguridade Social. Por
outro lado, há um marco, que nós chamaríamos de temporal,
qual seja, o início da ação fiscal. Também não foi feliz o
legislador ao usar essa locução. É que o termo ‘ação’ é
equívoco e pode levar a diversos entendimentos. Não resta
dúvida, contudo, que pelo contexto em que foi empregada,
‘ação fiscal’ corresponde à fiscalização. Outro entendimento,
como processo administrativo ou até judicial, não teria sentido,
pois não haveria confissão e muito menos seria espontânea,
como exige o dispositivo.”19
Luiz Flávio
afirmando que:
Gomes
complementa
o
raciocínio
anterior,
“Sem a cientificação pessoal do contribuinte não se pode
considerar iniciada formalmente a ação fiscal. Com isso a nova
disciplina do pagamento extintivo muito se aproxima da
denúncia espontânea do art. 138 do CTN.”20
Atualmente, os arts. 67, 68 e parágrafo único, e 69 e parágrafo
único, da Lei nº 11.941, de 27 de maio de 2009, dizem,
respectivamente, verbis:
Art. 67. Na hipótese de parcelamento
do crédito tributário antes do
oferecimento da denúncia, essa
somente poderá ser aceita na
superveniência de inadimplemento da
obrigação objeto da denúncia.
Art. 68. É suspensa a pretensão
punitiva do Estado, referente aos
crimes previstos nos arts. 1º e 2º da
Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de
1990, e nos arts. 168-A e 337-A do
Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de
dezembro de 1940 – Código Penal,
limitada a suspensão aos débitos que
tiverem sido objeto de concessão de
parcelamento, enquanto não forem
rescindidos os parcelamentos de que
tratam os arts. 1º a 3º desta Lei,
observado o disposto no art. 69 desta
Lei.
Parágrafo único. A prescrição
criminal não corre durante o período
de suspensão da pretensão punitiva.
Art. 69. Extingue-se a punibilidade
dos crimes referidos no art. 68 quando
a pessoa jurídica relacionada com o
agente efetuar o pagamento integral
dos débitos oriundos de tributos e
contribuições
sociais,
inclusive
acessórios, que tiverem sido objeto de
concessão de parcelamento.
Parágrafo único. Na hipótese de
pagamento efetuado pela pessoa
física prevista no § 15 do art. 1º desta
Lei, a extinção da punibilidade
ocorrerá com o pagamento integral
dos valores correspondentes à ação
penal.
Merecem ser registradas as lições de Fábio Zambitte Ibrahim
quando, apontando a diferença de tratamento entre sonegadores e
demais praticantes de crimes contra o patrimônio, assevera:
“Pode-se dizer que os tipos penais tributários, em especial os
previdenciários, passam por uma crise de identidade, pois, de
modo cada vez mais evidente, deixam de transparecer
condutas dotadas de reprovabilidade social, para, efetivamente,
revelarem-se meros instrumentos arrecadatórios do Estado.
Antes pelos Tribunais, e cada vez mais pelo legislador ordinário,
os delitos de ordem tributária tornam-se pseudocrimes, que
permitem, magicamente, a extinção da punibilidade com o
pagamento, que, cada vez mais, tem sido admitido em qualquer
tempo.
Usualmente se afirma que um contribuinte, após o pagamento
integral do crédito, não deva permanecer encarcerado, pois já
adimpliu sua obrigação. Todavia, o crime de furto, por exemplo,
não tem sua punibilidade extinta pelo singelo fato de o agente
repor o bem ou indenizar a vítima.
Na situação atual, há claro favorecimento a sujeitos passivos
com patrimônio mais elevado, os quais, independente do dolo
em fraudar o sistema e apoderar-se de tributos devidos, podem,
facilmente, quitar suas dívidas e escapar, tranquilamente, da
responsabilidade penal, enquanto empresários de menor porte
e parcos recursos, mesmo que tenham deixado de recolher os
tributos para salvar suas atividades, terão de ingressar no
incerto caminho da inexigibilidade de conduta diversa, contando
com a boa-vontade do julgador em admitir a conduta necessária
do agente como único instrumento de salvação para sua
atividade.
Certamente, algo deve ser feito pelo legislador, seja pela
descriminalização pura e simples dos ilícitos tributários, ou pela
exclusão das salvaguardas que permitem uma verdadeira
imunidade penal para contribuintes mais poderosos. A opção
atual somente amplifica as desigualdades nacionais na esfera
penal, em detrimento do objetivo constitucional da igualdade, o
que é particularmente alarmante em crimes previdenciários, os
quais guarnecem um subsistema da seguridade social que é
fundado na justiça social (art. 193, CF/88).”21
2.10
Perdão judicial e pena de multa
O § 3º do art. 168-A do Código Penal deixa à disposição do
julgador duas opções – perdão judicial ou aplicação da pena de
multa – que podem ser aplicadas ao agente primário de bons
antecedentes que tenha promovido, depois do início da ação fiscal e
antes de oferecida a denúncia, o pagamento da contribuição social
previdenciária, inclusive acessórios, ou se o valor das contribuições
devidas, incluindo os acessórios, for igual ou inferior àquele
estabelecido pela Previdência Social, administrativamente, como
sendo o mínimo para ajuizamento de suas execuções fiscais.
No caso do inciso I do § 3º do art. 168-A do Código Penal, em
razão da orientação contida na Lei nº 10.684/2003, o juiz deverá
declarar a extinção da punibilidade mesmo que as contribuições
tenham sido recolhidas depois do oferecimento da denúncia.
A segunda hipótese, em razão da pequenez do valor a ser
cobrado, que não justifica, até mesmo, o ajuizamento da ação de
execução fiscal, permite a aplicação alternativa do perdão judicial ou
da pena de multa ao sujeito primário e de bons antecedentes.
Atualmente, o valor a que se refere o inciso II do § 3º do art. 168-A
do Código Penal é de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), conforme o
disposto no inciso I do art. 1º da Portaria MF nº 75, de 22 de março
de 2012.
Em 9 de janeiro de 2018 foi publicada a Lei nº 13.606, inserindo
o § 4º ao art. 168-A do Código Penal, que diz, verbis:
§ 4º A faculdade prevista no § 3º
deste artigo não se aplica aos casos
de parcelamento de contribuições cujo
valor, inclusive dos acessórios, seja
superior
àquele
estabelecido,
administrativamente, como sendo o
mínimo para o ajuizamento de suas
execuções fiscais.
2.11
Pena, ação penal e competência para o julgamento
O art. 168-A (caput e § 1º) do Código Penal prevê a pena de
reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
A ação penal é de iniciativa pública incondicionada.
De acordo com o art. 109, I, da Constituição Federal, os crimes
contra a Previdência Social são de competência da Justiça Federal,
haja vista ser o INSS uma autarquia federal.
2.12
2.12.1
Destaques
Existência de processo administrativo
No julgamento, em 5 de maio de 2009, do HC 128.672/SP,
tendo como Relatora a Ministra Thereza de Assis Moura, o Superior
Tribunal de Justiça decidiu em conceder a ordem de habeas corpus,
a fim de suspender o andamento do inquérito policial, até
julgamento definitivo do processo administrativo, por entender que
“enquanto houver processo administrativo questionando a
existência, o valor ou a exigibilidade de contribuição social, é atípica
a conduta prevista no art. 168-A do CP, que tem, como elemento
normativo do tipo a existência da contribuição devida a ser
repassada”, entendendo não importar em violação da independência
das esferas administrativas e judiciária o aguardo da decisão
administrativa, a quem cabe efetuar o lançamento.
2.12.2
Apropriação indébita
insignificância
previdenciária
e
princípio
da
Entendendo de forma diferente daquela preconizada pelo
disposto no inciso I do art. 1º da Portaria MF nº 75, de 22 de março
de 2012, o Superior Tribunal de Justiça vem aplicando o princípio da
insignificância quando o montante não ultrapassar os R$ 10.000,00
(dez mil reais):
“O parâmetro de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) para fins de
incidência do princípio da insignificância não se aplica para o
crime de apropriação indébita previdenciária, devendo ser
observado o parâmetro de R$ 10.000,00 (dez mil reais).
Precedentes” (STJ, AgRg no REsp 1.477.556/RS, Rel. Min. Joel
Ilan Paciornik, 5ª T., DJe 18/09/2017).
“Definindo o parâmetro de quantia irrisória para fins de
aplicação do princípio da insignificância aos crimes de
descaminho, a Terceira Seção deste Superior Tribunal de
Justiça, no julgamento do Recurso Especial Representativo de
Controvérsia nº 1.112.748/TO, pacificou o entendimento no
sentido de que o valor do tributo elidido a ser considerado é
aquele de R$ 10.000,00 (dez mil reais) previsto no art. 20 da Lei
nº 10.522/02, raciocínio que se aplica também aos delitos de
apropriação indébita previdenciária” (STJ, AgRg no REsp
1.588.990/ PR, Rel.ª Min.ª Maria Thereza de Assis Moura, 6ª T.,
DJe 12/05/2016).
“A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é uníssona em
reconhecer a aplicação do princípio da insignificância ao delito
de apropriação indébita previdenciária, quando o valor do débito
com a Previdência Social não ultrapassar o montante de R$
10.000,00. Precedentes. Ressalva do Relator” (STJ, AgRg no
AREsp 392.108/RS, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, 6ª T., DJe
09/03/2016).
Em sentido contrário, não admitindo o reconhecimento do
princípio da insignificância:
“Inaplicável o princípio da insignificância aos delitos de
apropriação indébita previdenciária (art. 168-A do Código
Penal) e sonegação de contribuição previdenciária (art. 337-A
do Código Penal) consoante entendimento assentado do. col.
Supremo Tribunal Federal que conferiu caráter supraindividual
ao bem jurídico tutelado, haja vista visarem proteger a
subsistência financeira da Previdência Social. Precedentes”
(STJ, AgRg na RvCr 4.881/RJ, Rel. Min. Felix Fischer, S3, DJe
28/05/2019).
2.13
Quadro-resumo
Sujeitos
»
Ativo: aquele que tinha a
obrigação legal de repassar
à Previdência Social as
contribuições
recolhidas
dos contribuintes, no prazo
e
forma
legal
ou
convencional,
não
se
podendo, contudo, no tipo
penal em estudo, abranger,
também, a pessoa jurídica
(somente
os
seus
representantes legais).
»
Passivo: é a Previdência
Social, que representa o
Estado por intermédio do
Instituto
Nacional
do
Seguro Social (INSS).
Objeto material
É a contribuição que
recolhida do contribuinte.
Bem(ns)
protegido(s)
foi
juridicamente
“... o patrimônio de todos os
cidadãos que fazem parte do
sistema
previdenciário.
Ademais, embora se fale em
crime contra a Previdência
Social, no fundo é a Seguridade
Social tal como descrita no art.
194
da
Constituição
da
República que está sendo
tutelada” (MONTEIRO, 2000, p.
31).
Prova pericial
Tratando-se do crime tipificado
no art. 168-A do CP, é
desnecessária a prova pericial,
especialmente se a sentença
está baseada em provas
documentais
(STJ,
REsp
897.782/RS).
Elemento subjetivo
»
»
É o dolo.
Não há previsão para a
modalidade de natureza
culposa.
Modalidades
omissiva
comissiva
e
Em todas as modalidades de
apropriação
indébita
previdenciária verifica-se a
chamada omissão própria, haja
vista que a inação criminosa
vem narrada expressamente
pelo tipo penal do art. 168-A,
não
se
podendo
cogitar,
outrossim,
da
modalidade
comissiva.
Consumação e tentativa
»
»
O crime de apropriação
indébita previdenciária se
consuma no momento em
que o agente decide deixar
de
recolher
as
contribuições ou outras
importâncias, depois de
ultrapassado o prazo legal
ou convencional para tanto.
Por se tratar de crime
omissivo próprio, torna-se
complicado o raciocínio
correspondente à tentativa.
A doutrina, no entanto, é
vacilante com relação a
esse ponto.
3.
APROPRIAÇÃO DE COISA HAVIDA POR ERRO, CASO
FORTUITO OU FORÇA DA NATUREZA; APROPRIAÇÃO DE
TESOURO E APROPRIAÇÃO DE COISA ACHADA
Apropriação de coisa havida por
erro, caso fortuito ou força da
natureza
Art. 169. Apropriar-se alguém de
coisa alheia vinda ao seu poder por
erro, caso fortuito ou força da
natureza:
Pena – detenção, de um mês a um
ano, ou multa.
Parágrafo único. Na mesma pena
incorre:
Apropriação de tesouro
I – quem acha tesouro em prédio
alheio e se apropria, no todo ou em
parte, da quota a que tem direito o
proprietário do prédio;
Apropriação de coisa achada
II – quem acha coisa alheia perdida e
dela
se
apropria,
total
ou
parcialmente, deixando de restituí-la
ao dono ou legítimo possuidor ou de
entregá-la à autoridade competente,
dentro no prazo de quinze dias.
3.1
Introdução
O art. 169 e incisos do Código Penal preveem os delitos de
apropriação de coisa havida por erro, caso fortuito ou força da
natureza; apropriação de tesouro e apropriação de coisa achada,
cominando uma pena de detenção, de 1 (um) mês a 1 (um) ano ou
multa.
Como se tratam de figuras típicas diferentes, embora
constantes do mesmo artigo, faremos a análise de cada uma delas,
isoladamente, naquilo que for preciso. O que for comum a todas as
infrações penais será avaliado conjuntamente.
3.2
Apropriação de coisa havida por erro, caso fortuito ou
força da natureza
O delito de apropriação de coisa havida por erro, caso fortuito
ou força da natureza encontra-se tipificado no caput do art. 169 do
Código Penal, com a seguinte redação, verbis:
Art. 169. Apropriar-se alguém
coisa alheia vinda ao seu poder
erro, caso fortuito ou força
natureza:
Pena – detenção, de um mês a
ano, ou multa.
de
por
da
um
Para que se possa configurar o delito em estudo é preciso que
se constate a presença dos seguintes elementos: a) a conduta de se
apropriar de coisa alheia; b) o fato de que a mencionada coisa
alheia tenha vindo ao poder do agente por erro, caso fortuito ou
força da natureza.
O núcleo apropriar é utilizado no sentido de tomar como
propriedade, tomar para si, apoderar-se de uma coisa alheia móvel.
No entanto, ao contrário do que ocorre com a apropriação indébita,
o agente não tinha, licitamente, a posse ou a detenção da coisa.
Aqui, ela vem ao seu poder por erro, caso fortuito ou força da
natureza.
O conceito de coisa alheia móvel é o mesmo adotado para o
delito de apropriação indébita, vale dizer, qualquer bem passível de
remoção não pertencente ao próprio agente.
Como já destacado, a coisa alheia deverá vir ao poder do
agente em virtude de erro, caso fortuito ou força da natureza.
O erro poderá ocorrer em três situações: a) quanto à pessoa; b)
quanto ao objeto; c) quanto à obrigação. Assim, conforme exemplos
de Hungria,22 João recebe do carteiro um registrado de valor
destinado a seu homônimo (erro quanto à pessoa); o agente recebe
da vítima um colar de pérolas autênticas no lugar do colar de
pérolas falsas que realmente comprara (erro quanto ao objeto); no
que diz respeito à existência de uma obrigação, o agente recebe da
vítima o pagamento de uma dívida já paga ou quantia maior do que
a devida (erro quanto à obrigação). Não é incomum a hipótese, nos
dias de hoje, de recebermos, em nossa conta-corrente, o crédito de
importância que nos era indevida, tendo a instituição bancária agido
com erro no que diz respeito à pessoa que devia ter sido
beneficiada com o depósito. Caso o agente retenha o valor,
deixando de restituí-lo, querendo dele se apropriar, deverá ser
responsabilizado pelo delito tipificado no caput do art. 169 do
Código Penal.
Salienta Luiz Regis Prado, com acerto:
“Só ocorrerá erro se o sujeito ativo recebeu a coisa de boa-fé,
caso contrário, poder-se-á configurar o delito de estelionato (art.
171 do CP) ou peculato mediante erro de outrem, se o agente é
funcionário público e recebe a coisa em razão da função
exercida (art. 313 do CP). Ademais, é necessário que o erro
seja da vítima. Se for do sujeito ativo, ao adquirir a posse,
inexiste crime, salvo se este agiu com dolo superveniente,
hipótese em que responderá por apropriação indébita
comum.”23
Caso fortuito e força da natureza são situações semelhantes
que demonstram a ocorrência de um fato que não era dominado ou,
pelo menos, dominável pela vontade humana. Assim, aquele que,
depois de perceber que um animal que não lhe pertencia havia
ingressado em suas terras, passando pelo buraco existente numa
cerca, o vende a terceira pessoa, agindo como se fosse dono,
responde pelo delito de apropriação de coisa achada, que veio a
seu poder mediante caso fortuito; também não é incomum que a
coisa alheia móvel chegue ao poder do agente trazida pela
correnteza de uma enchente ou mesmo carregada por uma intensa
ventania, oportunidade em que se configuraria a situação legal
entendida como força da natureza.
3.2.1
Objeto material e bem juridicamente protegido
Inserido no Título II do Código Penal, correspondente aos
crimes contra o patrimônio, o direito de propriedade é o bem
juridicamente protegido pelo tipo penal que prevê o delito de
apropriação de coisa havida por erro, caso fortuito ou força da
natureza, não se descartando a proteção da posse, uma vez que o
legítimo possuidor pode ter perdido, temporariamente, a posse do
bem, em virtude, por exemplo, de força da natureza.
Objeto material é a coisa alheia móvel que veio ao poder do
agente mediante erro, caso fortuito ou força da natureza.
3.2.2
Sujeito ativo e sujeito passivo
Qualquer pessoa pode ser o sujeito ativo do delito tipificado no
art. 169, caput, do Código Penal, não exigindo o tipo penal nenhuma
qualidade ou condição especial para efeito de seu reconhecimento.
O sujeito passivo é aquele que se viu prejudicado com o
desapossamento da coisa, que chegou ao sujeito ativo por erro,
caso fortuito ou força da natureza. Poderá ser o proprietário ou
mesmo o possuidor, pessoa física ou pessoa jurídica.
3.2.3
Consumação e tentativa
Consuma-se o delito em estudo quando o agente, depois de
tomar conhecimento de que a coisa alheia móvel chegou ao seu
poder por erro, caso fortuito ou força da natureza resolve, mesmo
assim, com ela permanecer, agindo como se fosse dono.
Será difícil, no caso concreto, demonstrar o momento exato em
que, efetivamente, “nasceu” o elemento subjetivo no agente, vale
dizer, a intenção de ter a coisa para si, como se fosse dono,
invertendo o título da posse em domínio. No entanto, a prática de
atos exteriores, como no caso de ter sido descoberto recusar-se a
devolver a coisa ou, mesmo, dela se desfazendo como se fosse
dono, demonstra o elemento subjetivo necessário à caracterização
do delito, entendendo-se por consumada a infração penal.
No exemplo daquele que recebeu, por erro, em sua contacorrente, importância que não lhe era devida, se solicitado a efetuar
a devolução dos valores recusar-se a fazê-lo, teremos por
consumado o delito tipificado no caput do art. 169 do Código Penal.
Será possível o raciocínio correspondente à tentativa quando o
agente, por exemplo, agindo como se fosse dono, tiver dado início
aos atos tendentes a se desfazer da coisa, momento em que é
surpreendido. A tentativa, portanto, deverá ser avaliada caso a caso,
considerando-se a maneira pela qual a infração penal é praticada.
3.2.4
Elemento subjetivo
O delito de apropriação de coisa havida por erro, caso fortuito
ou força da natureza somente pode ser praticado dolosamente, não
havendo previsão legal para a modalidade de natureza culposa.
Assim, aquele que, por exemplo, sem perceber que em sua
conta-corrente havia sido depositada importância que não lhe
pertencia, utiliza valor existente para o pagamento de uma conta já
vencida, não responde pelo delito sub examen.
É fundamental, para efeito de verificação do dolo, que o agente
tenha conhecimento de que a coisa que está em seu poder pertença
a terceiro e que somente lhe chegou às mãos por erro, caso fortuito
ou força da natureza.
3.2.5
Modalidades comissiva e omissiva
O núcleo apropriar pode ser praticado comissiva ou
omissivamente pelo agente. Assim, comete o crime previsto pelo
caput do art. 169 do Código Penal, praticando um comportamento
comissivo, aquele que se desfaz da coisa alheia móvel, que veio ao
seu poder por erro, caso fortuito ou força da natureza, agindo como
se fosse dono, vendendo-a a terceiro. Da mesma forma, comete o
delito em estudo o agente que se recusa a devolver a coisa quando
solicitado por seu legítimo dono, praticando, outrossim, uma conduta
negativa.
3.2.6
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: qualquer pessoa.
Passivo: é aquele que se
viu prejudicado com o
desapossamento da coisa,
que chegou ao sujeito ativo
por erro, caso fortuito ou
força da natureza. Poderá
ser o proprietário ou
mesmo
o
possuidor,
pessoa física ou pessoa
jurídica.
Objeto material
É a coisa alheia móvel que veio
ao poder do agente mediante
erro, caso fortuito ou força da
natureza.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
Direito de propriedade, mas há
também proteção da posse.
Elemento subjetivo
»
»
É o dolo.
Não há previsão legal para
a modalidade de natureza
culposa.
Modalidades
omissiva
comissiva
e
O núcleo apropriar pode ser
praticado
comissiva
ou
omissivamente pelo agente.
Consumação e tentativa
»
Consuma-se o delito em
estudo quando o agente,
depois
de
tomar
conhecimento de que a
coisa alheia móvel chegou
»
3.3
ao seu poder por erro, caso
fortuito
ou
força
da
natureza, resolve, mesmo
assim,
com
ela
permanecer, agindo como
se fosse dono.
A tentativa é admissível.
Apropriação de tesouro
O inciso I do parágrafo único do art. 169 do Código Penal prevê
o delito de apropriação de tesouro, cominando uma pena de
detenção, de 1 (um) mês a 1 (um) ano, ou multa, para aquele que
acha tesouro em prédio alheio e se apropria, no todo ou em parte,
da quota a que tem direito o proprietário do prédio.
De acordo com a redação legal, podemos destacar os
seguintes elementos necessários à configuração típica: a) a conduta
de se apropriar de tesouro achado em prédio alheio; b) a
apropriação poderá ser parcial ou total; c) deverá incidir sobre a
quota a que tem direito o proprietário do prédio.
Os arts. 1.264, 1.265 e 1.266 do Código Civil cuidam do achado
do tesouro:
Art. 1.264. O depósito antigo de
coisas preciosas, oculto e de cujo
dono não haja memória, será dividido
por igual entre o proprietário do prédio
e o que achar o tesouro casualmente.
Art. 1.265. O tesouro pertencerá por
inteiro ao proprietário do prédio, se for
achado por ele, ou em pesquisa que
ordenou, ou por terceiro não
autorizado.
Art. 1.266. Achando-se em terreno
aforado, o tesouro será dividido por
igual entre o descobridor e o enfiteuta,
ou será deste por inteiro quando ele
mesmo seja o descobridor.
Assim, de acordo com as determinações contidas na lei civil,
devemos entender como tesouro as coisas antigas, preciosas e
ocultas, de cujo dono não se haja memória. Isso significa que uma
das características do tesouro é o fato de ser desconhecido o seu
proprietário. Nesse caso, aquele que descobriu o tesouro deve
dividi-lo em partes iguais com o proprietário do prédio, pois, caso
contrário, poderá ser responsabilizado pelo delito tipificado no inciso
I do parágrafo único do art. 169 do Código Penal.
Dessa forma, o núcleo apropriar diz respeito ao fato de que,
embora achando o tesouro em prédio alheio, o agente toma como
sua propriedade parte que não lhe cabia, ultrapassando, assim,
aquilo a que legalmente tinha direito, tomando para si, total ou
parcialmente, a quota que pertencia ao proprietário do imóvel.
Esclarece Hungria:
“A partilha do tesouro entre o achador e o dono do prédio é
condicionada à casualidade da descoberta. Entenda-se: a
casualidade do achado influi, não para qualificar o tesouro, mas
para atribuir em partes iguais a sua propriedade pro indiviso. Se
o tesouro é encontrado, não por obra do acaso (fortuito casu),
mas opera ad hoc data, posto que sem prévia determinação ou
sem assentimento do dono do prédio, sua propriedade é
exclusivamente deste (art. 608); de modo que sua apropriação
pelo achador é furto, e não o crime de apropriação de
tesouro.”24
E arremata o grande penalista:
“Pode o tesouro achar-se escondido no solo ou em qualquer
outro local, mesmo dentro de um móvel (ex.: moedas
depositadas no escaninho secreto de uma velha arca). Não é,
porém, tesouro o depósito natural de pedras preciosas (pois tal
depósito, diversamente do tesouro enterrado, é acessorium do
solo e, como tal, ainda que descoberto casualmente por
terceiro, é propriedade inteira do dono do solo, desde que
dominus soli, dominus est coeli et inferiorum, salvo as exceções
legais).”25
Resumindo o raciocínio, o tesouro, que não possuía dono
conhecido, deve ter sido encontrado casualmente, não importando,
por exemplo, se isso ocorreu durante as escavações em um imóvel
ou mesmo se no fundo falso de um móvel antigo que se encontrava
no interior do prédio. Além disso, para que se configure a infração
penal em estudo, o agente deverá se apropriar, total ou
parcialmente, da quota que pertencia, por direito, ao proprietário do
prédio, conforme determinado pela lei civil. Assim, o fato de
encontrar casualmente um tesouro é um comportamento indiferente
ao Direito Penal. No entanto, o crime se configura quando, depois
de encontrado o tesouro, o agente se apropria da quota que caberia
ao proprietário do imóvel ou mesmo ao enfiteuta.
3.3.1
Objeto material e bem juridicamente protegido
O tipo penal que prevê o delito de apropriação de tesouro tem
por finalidade proteger o patrimônio, ainda desconhecido, mas
pertencente ao dono do prédio em que se encontrava escondido. Na
verdade, protege-se, aqui, o direito de propriedade à quota a que
tem direito o proprietário do prédio com a descoberta do tesouro.
Também se encontra sob essa proteção não somente o direito do
proprietário do prédio, como também do enfiteuta, nos termos do art.
1.266 do Código Civil.
Objeto material é o tesouro, vale dizer, o depósito antigo de
coisas preciosas, oculto e de cujo dono não haja memória.
3.3.2
Sujeito ativo e sujeito passivo
Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do delito de apropriação
de tesouro não havendo nenhuma condição ou qualidade especial
exigida pelo tipo penal.
Sujeito passivo é o proprietário do prédio onde foi encontrado o
tesouro que, nos termos do art. 1.264 do Código Civil, terá direito à
metade do tesouro achado casualmente. Conforme salienta
Magalhães Noronha, o art. 1.266 do Código Civil ao esclarecer que,
achando-se em terreno aforado, o tesouro será dividido por igual
entre o descobridor e o enfiteuta, ou será deste por inteiro quando
ele mesmo seja o descobridor, “reserva ao enfiteuta o mesmo direito
conferido ao proprietário à metade do tesouro. Neste caso, o titular
do aforamento exclui o proprietário. Dando-se a invenção, o tesouro
será dividido em duas partes iguais entre o inventor e enfiteuta, e
consequentemente, se o primeiro se apodera do tesouro, apropriase da parte que compete ao segundo.”26
3.3.3
Consumação e tentativa
Consuma-se o delito no momento em que, descoberto o
tesouro, o agente dele se apropria, agindo com animus rem sibi
habendi. A consumação, aqui, ocorrerá nos moldes do art. 168 do
Código Penal, com a diferença de que, naquele delito, a coisa alheia
veio licitamente até o agente, o que não ocorre, in casu, com a
quota que pertencia ao proprietário do imóvel.
Tendo em vista a possibilidade de ser fracionado o iter criminis,
entendemos admissível a tentativa na infração penal em estudo.
3.3.4
Elemento subjetivo
O delito de apropriação de tesouro somente pode ser praticado
dolosamente, não havendo previsão legal para a modalidade de
natureza culposa.
3.3.5
Modalidades comissiva e omissiva
O núcleo contido no tipo penal que prevê a apropriação de
tesouro poderá ser levado a efeito comissiva ou omissivamente,
dependendo da situação concreta analisada.
3.3.6
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: qualquer pessoa.
Passivo: é o proprietário do
prédio onde foi encontrado
o tesouro que, nos termos
do art. 1.264 do CC, terá
direito à metade do tesouro
achado
casualmente.
Achando-se em terreno
aforado, o tesouro será
dividido por igual entre o
descobridor e o enfiteuta,
ou será deste por inteiro
quando ele mesmo seja o
descobridor.
Objeto material
É o tesouro, vale dizer, o
depósito antigo de coisas
preciosas, oculto e de cujo dono
não haja memória.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
O
patrimônio,
ainda
desconhecido, mas pertencente
ao dono do prédio em que se
encontrava
escondido.
Na
verdade, protege-se, aqui, o
direito de propriedade à quota a
que tem direito o proprietário do
prédio com a descoberta do
tesouro. Também se encontra
sob essa proteção não somente
o direito do proprietário do
prédio, como também do
enfiteuta, nos termos do art.
1.266 do CC.
Elemento subjetivo
»
»
É o dolo.
Não há previsão legal para
a modalidade de natureza
culposa.
Modalidades
omissiva
comissiva
e
O núcleo contido no tipo penal
que prevê a apropriação de
tesouro poderá ser levado a
efeito
comissiva
ou
omissivamente, dependendo da
situação concreta analisada.
Consumação e tentativa
»
»
3.4
Consuma-se o delito no
momento
em
que,
descoberto o tesouro, o
agente dele se apropria,
agindo com animus rem
sibi habendi.
A tentativa é admissível.
Apropriação de coisa achada
O delito de apropriação de coisa achada encontra-se previsto
no inciso II do parágrafo único do art. 169, que diz, verbis:
II – quem acha coisa alheia perdida e
dela
se
apropria,
total
ou
parcialmente, deixando de restituí-la
ao dono ou legítimo possuidor ou de
entregá-la à autoridade competente,
dentro do prazo de 15 (quinze) dias.
Dessa forma, podemos destacar os seguintes elementos
contidos na mencionada infração penal: a) a conduta de se apropriar
de coisa alheia perdida; b) a apropriação pode ser total ou parcial; c)
não restituí-la ao dono ou legítimo possuidor ou não entregá-la à
autoridade competente no prazo de 15 (quinze) dias.
A conduta de se apropriar agora é dirigida finalisticamente à
coisa alheia perdida. Dessa forma, não comete o delito em estudo
se o agente estiver diante de res nullius (coisa de ninguém), ou
ainda de res derelicta (coisa abandonada). Merece ser levada a
efeito a distinção entre coisa perdida e coisa esquecida, pois coisa
perdida é aquela que seu dono ou possuidor não sabe onde
efetivamente se encontra, e coisa esquecida é aquela que,
temporariamente, foi esquecida em algum lugar conhecido pelo
dono ou possuidor. Bento de Faria esclarece que “coisas perdidas
são as que se encontram em lugar público ou de uso público, em
condições tais que façam presumir, fundadamente o seu extravio.”27
É de extrema importância à configuração do delito em exame
que a coisa seja perdida, e não esquecida ou mesmo deixada
voluntariamente em algum lugar pela própria vítima. É que, nesses
últimos casos, se o agente que as encontra resolve tê-las para si, o
delito praticado será o de furto, e não o de apropriação de coisa
achada.
Aquele que perde a coisa não perde o seu domínio. Continua a
ser seu dono, mesmo não tendo a sua posse direta.
O fato de encontrar a coisa perdida, como se percebe com
clareza, não se configura em infração penal, mas sim a vontade de
dela se apropriar, tendo conhecimento de que se encontra perdida,
ou seja, possui um dono que não abriu mão do seu domínio sobre
ela.
Não importa que essa apropriação seja total ou parcial. Assim,
aquele que acha coisa perdida e devolve, tão somente, metade
daquilo que encontrou ao seu legítimo dono deve responder pela
infração penal em estudo.
O Código Civil possui dispositivo semelhante, que obriga o
descobridor a entregar a coisa perdida por ele encontrada, dizendo,
em seu art. 1.233, parágrafo único, verbis:
Art. 1.233. Quem quer que ache coisa
alheia perdida há de restituí-la ao
dono ou legítimo possuidor.
Parágrafo único. Não o conhecendo,
o descobridor fará por encontrá-lo, e,
se não o encontrar, entregará a coisa
achada à autoridade competente.
O Código Penal determina, contudo, que essa devolução ocorra
no prazo de 15 dias. Portanto, se o agente for surpreendido com a
coisa perdida ainda no prazo legal, não se poderá concluir pelo
delito de apropriação de coisa achada, visto que, para a sua
configuração, deverá ter decorrido o prazo estipulado pela lei penal.
O reconhecimento da infração penal, outrossim, está condicionado
ao decurso do prazo legal. Antes dele, mesmo já existindo no
agente a vontade de se apropriar da coisa, o fato será atípico.
Nesse sentido, afirma Cezar Roberto Bitencourt que “somente se
configura a apropriação de coisa achada após ultrapassado o prazo
legal de quinze dias sem que o achador devolva a coisa ao dono ou
a entregue à Polícia. Assim, não excedida a faixa legal de quinze
dias, nem se tipifica o crime.”28
A entrega poderá ser realizada diretamente ao dono ou legítimo
possuidor da coisa perdida ou, sendo desconhecidos, deverá ser
entregue à autoridade competente. Pode ocorrer, e não é incomum,
que o agente encontre uma carteira que, além de documentos e
determinada importância em dinheiro, contenha, também, o
endereço de seu dono. Nesse caso, poderá o agente entregá-la
diretamente a ele.
O art. 1.234 do Código Civil, cuidando sobre o tema, determina:
Art. 1.234. Aquele que restituir a coisa
achada, nos termos do artigo
antecedente, terá direito a uma
recompensa não inferior a 5% (cinco
por cento) do seu valor, e à
indenização pelas despesas que
houver feito com a conservação e
transporte da coisa, se o dono não
preferir abandoná-la.
A autoridade a quem deverá ser entregue a coisa perdida,
mencionada no tipo penal que prevê o delito de apropriação de
coisa achada, é a judiciária ou policial.
3.4.1
Objeto material e bem juridicamente protegido
Inserido no Título II do Código Penal, que cuida dos crimes
contra o patrimônio, podemos dizer que o direito de propriedade e a
posse são os bens juridicamente protegidos pelo tipo penal que
prevê o delito de apropriação de coisa achada, haja vista a menção
expressa não só ao dono da coisa perdida, como também ao seu
legítimo possuidor.
Objeto material do delito é a coisa alheia perdida.
3.4.2
Sujeito ativo e sujeito passivo
Sujeito ativo é aquele que acha a coisa alheia perdida e dela se
apropria.
Sujeito passivo é o dono ou o legítimo possuidor, que não perde
seus direitos sobre a coisa em decorrência de sua perda.
3.4.3
Consumação e tentativa
Consuma-se o delito de apropriação de coisa achada quando o
agente, agindo com o dolo de sua apropriação, não a restitui ao
dono ou legítimo possuidor ou não a entrega à autoridade
competente no prazo de 15 dias. Assim, a consumação da infração
penal somente ocorrerá após o decurso do mencionado prazo legal.
Mesmo que o agente já tenha decidido não devolvê-la, se ainda
estiver no prazo legal, seu comportamento será considerado um
indiferente penal, pois o tipo penal, para sua configuração, encontrase condicionado ao decurso do prazo de 15 dias.
Em razão desse raciocínio, entendemos não ser possível o
reconhecimento da tentativa, uma vez que, mesmo tendo resolvido
psiquicamente não devolver a coisa achada, mas se ainda estiver
no prazo legal, se for descoberto o agente, o fato será atípico; ao
contrário, se, agindo com animus de se apropriar da coisa achada,
deixar ultrapassar o prazo de 15 dias, o delito já estará consumado.
3.4.4
Elemento subjetivo
O delito de apropriação de coisa achada somente pode ser
praticado dolosamente, não havendo previsão para a modalidade de
natureza culposa.
Assim, aquele que, tendo achado coisa perdida, retarda,
negligentemente, a sua devolução, permitindo que o prazo de 15
dias seja ultrapassado, não poderá ser responsabilizado
criminalmente pelo delito em estudo.
Imagine-se a hipótese daquele que, depois de encontrar a coisa
perdida, decide entregá-la à autoridade policial. No entanto, em
virtude de seus compromissos particulares, vai adiando a sua ida à
Delegacia de Polícia até que, sem perceber, permite que haja o
decurso do tempo legal, vale dizer, os 15 dias exigidos pelo inciso II
do parágrafo único do art. 169 do Código Penal.
Nesse caso, não se pode imputar qualquer infração penal ao
sujeito, haja vista que, embora o decurso do tempo seja
fundamental ao reconhecimento do delito, não se pode abrir mão do
elemento subjetivo, vale dizer, do dolo com que atuava o agente no
sentido de apropriar-se da coisa por ele achada.
Assim, a conjugação do elemento subjetivo (dolo) com o
decurso do tempo (prazo de 15 dias) é que permite o
reconhecimento do delito de apropriação de coisa achada.
3.4.5
Modalidades comissiva e omissiva
O delito de apropriação de coisa achada, de acordo com a
redação legal, deverá ser praticado omissivamente (omissão
própria), haja vista que o próprio tipo penal, de forma expressa,
prevê o comportamento negativo do agente, quando se vale da
expressão deixando de restituí-la ao dono ou legítimo possuidor ou
de entregá-la à autoridade competente, dentro do prazo de 15
(quinze) dias.
Isso porque o fato de encontrar a coisa perdida é considerado
um indiferente penal, ou seja, não tem qualquer importância em si
mesmo. No entanto, depois de encontrada a coisa perdida, surge o
dolo de se apropriar dela, assim agindo quando deixa de devolvê-la
a quem de direito. Por essa razão, concluímos que o núcleo
apropriar, contido no tipo penal, deverá ser entendido mediante um
comportamento omissivo, mesmo que depois do decurso do prazo
legal o agente, por exemplo, se desfaça da coisa agindo como se
fosse dono, pois, ainda assim, terá deixado de entregá-la às
pessoas determinadas pelo tipo penal.
3.5
Classificação doutrinária
Crime comum; doloso; comissivo (podendo, em algumas
hipóteses, ser considerado como omissivo próprio, como ocorre com
a apropriação de coisa achada); de dano; material; de forma livre;
instantâneo (não se descartando a possibilidade de ser considerado
como instantâneo de efeitos permanentes, caso ocorra, por
exemplo, a destruição da coisa apropriada); monossubjetivo;
plurissubsistente (como regra, pois, em algumas situações, os atos
poderão ser concentrados, devendo, pois, ser considerados
unissubsistentes).
3.6
Primariedade do agente e pequeno valor da coisa
apropriada havida por erro, caso fortuito ou força da
natureza, do tesouro e da coisa achada
O art. 170 do Código Penal determina seja aplicado ao delito de
apropriação de coisa havida por erro, caso fortuito ou força da
natureza, apropriação de tesouro e de coisa achada o § 2º do art.
155 do mesmo diploma legal.
Solicitamos a leitura do tópico correspondente ao delito de furto
para melhores esclarecimentos.
3.7
Pena, ação penal, competência para julgamento e
suspensão condicional do processo
O preceito secundário do art. 169 do Código Penal comina uma
pena de detenção, de 1 (um) mês a 1 (um) ano, ou multa, para as
três infrações penais por ele previstas: 1) apropriação de coisa
havida por erro, caso fortuito ou força da natureza; 2) apropriação
de tesouro; 3) apropriação de coisa achada.
A ação penal é de natureza pública incondicionada.
Compete ao Juizado Especial Criminal o julgamento das
infrações penais tipificadas no art. 169 do Código Penal, haja vista
que a pena máxima cominada em abstrato não ultrapassa o limite
de 2 (dois) anos, sendo possível, ainda, a realização de proposta de
suspensão condicional do processo, pois a pena mínima cominada
não supera o limite determinado pelo art. 89 da Lei nº 9.099/95, vale
dizer, um ano.
Aplicam-se ao art. 169 do Código Penal as disposições contidas
nos arts. 181, 182 e 183 do mesmo diploma repressivo, naquilo que
lhe forem pertinentes.
3.8
3.8.1
Destaque
Apropriação de coisa havida acidentalmente, apropriação
de coisa achada e Código Penal Militar
Os crimes de apropriação de coisa havida acidentalmente, que
se equivale ao delito de apropriação de coisa havida por erro, caso
fortuito ou força da natureza (art. 169, caput, do CP) e apropriação
de coisa achada também vieram previstos no Código Penal Militar
(Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969), conforme se
verifica pela leitura do seu art. 249 e parágrafo único.
3.9
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: aquele que acha a
coisa alheia perdida e dela
se apropria.
Passivo: o dono ou o
legítimo possuidor, que não
perde seus direitos sobre a
coisa em decorrência de
sua perda.
Objeto material
É a coisa alheia perdida.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
O direito de propriedade e a
posse.
Elemento subjetivo
»
»
É o dolo.
Não há previsão para a
modalidade de natureza
culposa.
Modalidades
omissiva
comissiva
e
O delito deverá ser praticado
omissivamente
(omissão
própria).
Consumação e tentativa
»
»
Consuma-se
o
delito
quando o agente, agindo
com o dolo de sua
apropriação, não a restitui
ao dono ou legítimo
possuidor ou não a entrega
à autoridade competente
no prazo de 15 dias. Assim,
a consumação da infração
penal somente ocorrerá
após
o
decurso
do
mencionado prazo legal.
Mesmo que o agente já
tenha
decidido
não
devolvê-la, se ainda estiver
no
prazo
legal,
seu
»
comportamento
será
considerado um indiferente
penal.
Em razão desse raciocínio,
entendemos que não é
possível o reconhecimento
da tentativa.
1
FARIA, Bento de. Código penal brasileiro, v. V, p. 92.
2
Cezar Roberto Bitencourt discorda da classificação de crime próprio dizendo:
“Discordamos daqueles que classificam a apropriação indébita como crime próprio,
pois não consideramos que o pressuposto da anterior posse legítima da coisa possa
ser considerado condição especial, capaz de qualificar a infração como crime próprio
(Tratado de direito penal, v. 3, p. 239).
3
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 328.
4
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 235.
5
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 139.
6
COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal – Parte especial, p. 881.
7
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 147-148.
8
MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis; SAAD, Marta. Código penal e sua
interpretação jurisprudencial, p. 847.
9
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 481-482.
10
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 149.
11
TELES, Ney Moura. Direito penal, v. 2, p. 430.
12
SALLES JÚNIOR, Romeu de Almeida. Código penal interpretado, p. 531.
13
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 493.
14
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 256.
15
MONTEIRO, Antonio Lopes. Crimes contra a previdência social, p. 31.
16
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 254-255.
17
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 257.
18
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 493-494.
19
MONTEIRO, Antonio Lopes. Crimes contra a previdência social, p. 99-100.
20
GOMES, Luiz Flávio. Crimes previdenciários, p. 59.
21
IBRAHIM, Fábio Zambitte. A extinção da punibilidade dos crimes de apropriação
indébita previdenciária e sonegação de contribuição previdenciária – Legislação
vigente
e
inovação
da
Lei
nº
11.941/2009.
Disponível
em:
<http://www.impetus.com.br>.
22
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 150.
23
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 505.
24
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 152.
25
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 152.
26
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 348.
27
FARIA, Bento de. Código penal brasileiro, p. 119.
28
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 266.
Capítulo VI
Do Estelionato e Outras
Fraudes
1.
ESTELIONATO
Estelionato
Art. 171. Obter, para si ou para
outrem, vantagem ilícita, em prejuízo
alheio, induzindo ou mantendo
alguém em erro, mediante artifício,
ardil, ou qualquer outro meio
fraudulento:
Pena – reclusão, de um a cinco anos,
e multa, de quinhentos mil réis a dez
contos de réis.
§ 1º Se o criminoso é primário, e é de
pequeno valor o prejuízo, o juiz pode
aplicar a pena conforme o disposto no
art. 155, § 2º.
§ 2º Nas mesmas penas incorre
quem:
Disposição de coisa alheia como
própria
I – vende, permuta, dá em
pagamento, em locação ou em
garantia coisa alheia como própria.
Alienação ou oneração fraudulenta
de coisa própria II – vende, permuta,
dá em pagamento ou em garantia
coisa própria inalienável, gravada de
ônus ou litigiosa, ou imóvel que
prometeu vender a terceiro, mediante
pagamento
em
prestações,
silenciando sobre qualquer dessas
circunstâncias.
Defraudação de penhor
III – defrauda, mediante alienação não
consentida pelo credor ou por outro
modo, a garantia pignoratícia, quando
tem a posse do objeto empenhado.
Fraude na entrega de coisa
IV – defrauda substância, qualidade
ou quantidade de coisa que deve
entregar a alguém. Fraude para
recebimento de indenização ou
valor do seguro V – destrói, total ou
parcialmente, ou oculta coisa própria,
ou lesa o próprio corpo ou a saúde, ou
agrava as consequências da lesão ou
doença, com o intuito de haver
indenização ou valor de seguro.
Fraude no pagamento por meio de
cheque
VI – emite cheque, sem suficiente
provisão de fundos em poder do
sacado, ou lhe frustra o pagamento.
Fraude eletrônica
§ 2º-A. A pena é de reclusão, de 4
(quatro) a 8 (oito) anos, e multa, se a
fraude é cometida com a utilização de
informações fornecidas pela vítima ou
por terceiro induzido a erro por meio
de redes sociais, contatos telefônicos
ou envio de correio eletrônico
fraudulento, ou por qualquer outro
meio fraudulento análogo.
§ 2º-B. A pena prevista no § 2º-A
deste artigo, considerada a relevância
do resultado gravoso, aumenta-se de
1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços), se o
crime é praticado mediante a
utilização de servidor mantido fora do
território nacional.
§ 3º A pena aumenta-se de um terço,
se o crime é cometido em detrimento
de entidade de direito público ou de
instituto
de
economia
popular,
assistência social ou beneficência.
Estelionato
contra
idoso
ou
vulnerável
§ 4º A pena aumenta-se de 1/3 (um
terço) ao dobro, se o crime é cometido
contra
idoso
ou
vulnerável,
considerada a relevância do resultado
gravoso.
§ 5º Somente se procede mediante
representação, salvo se a vítima for:
I – a Administração Pública, direta ou
indireta;
II – criança ou adolescente;
III – pessoa com deficiência mental;
ou IV – maior de 70 (setenta) anos de
idade ou incapaz.
1.1
Introdução
O Código Penal tipifica o delito de estelionato por meio da
seguinte redação constante de seu art. 171, caput, verbis:
Art. 171. Obter, para si ou para
outrem, vantagem ilícita, em prejuízo
alheio, induzindo ou mantendo
alguém em erro, mediante artifício,
ardil, ou qualquer outro meio
fraudulento:
Desde que surgiram as relações sociais, o homem se vale da
fraude para dissimular seus verdadeiros sentimentos, intenções, ou
seja, para, de alguma forma, ocultar ou falsear a verdade, a fim de
obter vantagens que, em tese, lhe seriam indevidas. Veja-se o
exemplo citado pela Bíblia, que ocorreu entre Jacó e seu pai Isaque.
Como seu irmão Esaú tinha o direito de primogenitura, deveria
receber a bênção de seu pai, que já se encontrava avançado em
idade, prestes a morrer. Jacó, no entanto, induzido por sua mãe,
almejando receber a bênção no lugar de seu irmão, aproveitando-se
do fato de que seu pai já não mais enxergava, se fez passar por
Esaú. Como Esaú tinha muitos pelos sobre o corpo, ao contrário de
Jacó, este, a fim de enganar o pai, cobriu as mãos e a lisura do
pescoço com pele de cabrito e foi em busca do seu propósito. A
Bíblia nos conta que Isaque, depois de colocar as mãos sobre o
corpo do filho, embora desconfiasse da voz, sentiu-se seguro por
encontrar os pelos em seu corpo e, depois de beijá-lo, abençoou-o
dizendo:
“Eis que o cheiro do meu filho é como o cheiro do campo, que o
SENHOR abençoou; Deus te dê do orvalho do céu, e da
exuberância da terra, a fartura de trigo e de mosto. Sirvam-te os
povos, e nações te reverenciem; sê senhor dos teus irmãos, e
os filhos de tua mãe se curvem a ti; maldito seja o que te
amaldiçoar, e abençoado o que te abençoar.”1
Mediante a leitura do art. 171 do Código Penal, verifica-se que
a fraude é a característica fundamental do delito de estelionato. No
entanto, sabemos que a fraude, conforme o exemplo de Jacó, pode
existir em outras situações que não importam em infração penal.
Questão delicada, portanto, diz respeito à diferença que se deve
traçar entre a fraude penal, que se encontra como elemento de
inúmeras infrações penais, e aquela de natureza civil.
Sabemos que, por exemplo, quando estamos diante de uma
compra e venda, o vendedor procura enaltecer as vantagens do seu
produto e, por outro lado, esconder aquilo que lhe é desfavorável.
Infelizmente, esse “jogo encoberto” faz parte das relações negociais.
Onde residiria, portanto, a diferença entre o “engano”, aceito e
tolerado nas relações comerciais, e o “engano” entendido como
criminoso, capaz de fazer com que o agente se veja privado de sua
liberdade? Nélson Hungria, procurando traçar a diferença entre
ilicitude penal e ilicitude civil (e, consequentemente, entre fraude
penal e fraude civil), argumenta:
“No que têm de fundamental, coincidem o delito civil e o delito
penal. Um e outro são uma rebeldia contra a ordem jurídica.
Consistem ambos num fato exterior do homem, antijurídico,
imputável a título de dolo ou culpa. A única diferença entre eles
está na maior gravidade do delito penal que, por isso mesmo,
provoca mais extensa e intensa perturbação social. Diferença
unicamente de grau ou quantidade. A este critério relativo, e
somente a ele, é que atende o direito objetivo do Estado na
diversidade formal de sua ação defensiva contra a sublevação
da vontade individual.”2
Na verdade, quem determina a gravidade da fraude e,
consequentemente, a necessidade de criação da figura típica é o
legislador, que atua movido por questões de políti-ca-criminal, que
variam de acordo com cada momento pelo qual atravessa a
sociedade. Assim, não há, na verdade, qualquer critério
predeterminado que tenha o condão de traçar, com precisão, a
diferença entre fraude civil e fraude penal, pois até a valoração de
sua intensidade é levada a efeito de acordo com o sentimento
político de cada época. Dessa forma, o que antes poderia ser
entendido como fraude de natureza civil, amanhã já poderá receber
a valoração exigida pelo Direito Penal. Portanto, estamos com
Cezar Roberto Bitencourt quando sentencia que “não há critério
científico que abstrata ou concretamente distinga, com segurança,
uma fraude da outra.”3
Sendo a fraude o ponto central do delito de estelionato,
podemos identificá-lo, outrossim, por meio dos seguintes elementos
que integram a sua figura típica: a) conduta do agente dirigida
finalisticamente à obtenção de vantagem ilícita, em prejuízo alheio;
b) a vantagem ilícita pode ser para o próprio agente ou para terceiro;
c) a vítima é induzida ou mantida em erro; d) o agente se vale de um
artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento para a consecução
do seu fim.
O crime de estelionato é regido pelo binômio vantagem
ilícita/prejuízo alheio. A conduta do agente, portanto, deve ser
dirigida a obter vantagem ilícita, em prejuízo alheio. Assim, de
acordo com a redação legal, a primeira indagação seria no sentido
de saber o significado da expressão vantagem ilícita. Ilícita é a
vantagem que não encontra amparo no ordenamento jurídico,
sendo, na verdade, contrária a ele. Se a vantagem perseguida pelo
agente fosse lícita, o fato poderia ser desclassificado para outra
infração penal, a exemplo do crime de exercício arbitrário das
próprias razões.
Além disso, discute-se a respeito da natureza dessa vantagem
ilícita. A doutrina majoritária posiciona-se no sentido de que a
expressão vantagem ilícita abrange qualquer tipo de vantagem,
tenha ou não natureza econômica. Nesse sentido, afirma Luiz Regis
Prado:
“Prevalece o entendimento doutrinário de que a referida
vantagem não necessita ser econômica, já que o legislador não
restringiu o seu alcance como o fez no tipo que define o crime
de extorsão, no qual empregou a expressão indevida vantagem
econômica.”4
Permissa vênia, não podemos concordar com essa posição,
amplamente majoritária, assumida por nossa doutrina. Isso porque,
conforme já esclarecemos ao levar a efeito o estudo do delito
tipificado no art. 159 do Código Penal, não podemos analisar os
tipos penais isoladamente, como se fossem estrelas perdidas,
afastadas de qualquer constelação. Por isso, não podemos abrir
mão, conforme já assinalado naquela oportunidade, da chamada
interpretação sistêmica. Dessa forma, encontrando-se o tipo penal
que prevê o delito de estelionato inserido no Título II do Código
Penal, correspondente aos crimes contra o patrimônio, o raciocínio
não poderia ser outro senão o de afirmar que a vantagem ilícita,
obtida pelo agente, deve ter natureza econômica. Assim, qualquer
vantagem economicamente apreciável poderá se amoldar ao delito
em estudo, seja ela a obtenção de coisa móvel, imóvel, direitos
pertencentes à vítima, enfim, qualquer vantagem em que se possa
apontar a sua essência econômica. Caso contrário, ou o fato será
atípico, ou poderá se consubstanciar em outras infrações penais em
que a fraude faça parte do tipo penal, tal como ocorre nos crimes
contra a dignidade sexual, com o delito de violação sexual mediante
fraude, tipificado no art. 215 do Código Penal, com a nova redação
que lhe foi conferida pela Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009.
Além da vantagem ilícita obtida pelo agente com o seu
comportamento, a vítima sofre prejuízo, também, de natureza
econômica. Assim, poderá tanto perder aquilo que já possuía, a
exemplo daquele que entrega determinada quantia ao estelionatário,
ou mesmo deixar de ganhar o que lhe era devido, como no caso da
vítima que, enganada pelo agente, não comparece, sendo
obrigatória a sua presença, ao local onde receberia uma premiação,
perdendo tal direito, que foi transferido ao agente, segundo
beneficiado na lista de premiações.
O caput do art. 171 do Código Penal determina que a vantagem
ilícita seja para o próprio agente ou para terceiro. Nesse caso, o
terceiro pode, inclusive, não saber que aquilo que recebe do agente
é produto de crime, não podendo ser responsabilizado pelo delito de
estelionato, a não ser que atue mediante o concurso de pessoas,
previsto pelo art. 29 do Código Penal.
A utilização da fraude pelo agente visa a induzir ou manter a
vítima em erro. Erro significa a concepção equivocada da realidade,
é um conhecimento falso do que ocorre no mundo real. Assim,
aquele que atua movido pelo erro acredita numa coisa, enquanto a
realidade é outra.
Induzir a erro é fazer nascer a representação equivocada na
vítima. O agente, mediante sua fraude, cria no espírito da vítima um
sentimento que não condiz com a realidade. Pode ocorrer,
entretanto, que a vítima já tenha incorrido, sem qualquer influência
do agente, em erro. Nesse caso, se a representação distorcida da
realidade já existia, não se poderá falar em induzimento. No entanto,
a lei penal também considera como uma das formas de se praticar o
estelionato a manutenção em erro, vale dizer, o agente, mesmo
sabendo que a vítima tinha um conhecimento equivocado da
realidade, a mantém nessa situação, com a finalidade de obter
vantagem ilícita, em seu prejuízo.
O caput do art. 171 do Código Penal aponta,
exemplificativamente, os meios pelos quais o delito poderá ser
praticado, vale dizer, o artifício e o ardil. Estes podem ser
considerados como espécies de fraudes, já que o mencionado artigo
determina seja levada a efeito a chamada interpretação analógica,
significando que a uma fórmula casuística (artifício, ardil) a lei faz
seguir uma fórmula genérica (qualquer outro meio fraudulento).
A doutrina procura distinguir o artifício do ardil, embora façam
parte do gênero fraude. Explica Noronha:
“Artifício, lexicologicamente, significa produto de arte, trabalho
de artistas. Nesse sentido, portanto, pode-se dizer haver
artifício quando há certo aparato, quando se recorre à arte, para
mistificar alguém.
Pode o artifício manifestar-se por vários modos: consistir-se em
palavras, gestos ou atos; ser ostensivo ou tácito; explícito ou
implícito; e exteriorizar-se em ação ou omissão.
Quanto ao ardil, dão-nos os dicionários os sinônimos de
astúcia, manha e sutileza. Já não é de natureza tão material
quanto o artifício, porém mais intelectual. Dirige-se diretamente
à psique do indivíduo, ou, na expressão de Manzini, à sua
inteligência ou sentimento, de modo que provoque erro
mediante falsa aparência lógica ou sentimental, isto é,
excitando ou determinando no sujeito passivo convicção,
paixão, ou emoção, e criando destarte motivos ilusórios à ação
ou omissão desejada pelo sujeito ativo.”5
Na verdade, conforme se verifica pela interpretação analógica
determinada pelo caput do art. 171 do Código Penal, artifício e ardil
fazem parte do gênero fraude, isto é, o engano, a artimanha do
agente, no sentido de fazer com que a vítima incorra em erro ou,
pelo menos, nele permaneça. Qualquer meio fraudulento utilizado
pelo agente, seja mediante dissimulações, seja até mesmo uma
reticência maliciosa, que faça a vítima incorrer em erro, já será
suficiente para o raciocínio relativo ao delito de estelionato. No que
diz respeito à reticência maliciosa, Hungria fornecia o exemplo do
colecionador que adquiria de alguém, sem qualquer experiência no
ramo de antiguidades ou raridades, uma peça de grande valor, por
preço irrisório, por desconhecer a sua importância, fazendo com que
a vítima permanecesse em erro com relação ao valor do bem que
estava sendo vendido.
Concluindo, a palavra estelionato se origina de stellio, ou seja,
camaleão, justamente pela qualidade que tem esse animal para
mudar de cor, confundindo sua presa, facilitando, assim, o bote fatal,
bem como para poder fugir, também, dos seus predadores naturais,
que não conseguem, em virtude de suas mutações, perceber a sua
presença, tal como ocorre com o estelionatário que, em razão de
seus disfarces, sejam físicos ou psíquicos, engana a vítima com sua
fraude, a fim de que tenha êxito na sua empresa criminosa.
1.2
Classificação doutrinária
Analisando a figura típica fundamental, podemos concluir que o
estelionato é um crime comum tanto com relação ao sujeito ativo
quanto ao sujeito passivo; doloso; material; comissivo e omissivo
(tendo em vista ser possível esse raciocínio através da conduta de
manter a vítima em erro); de forma livre (pois qualquer fraude pode
ser usada como meio para a prática do crime); instantâneo
(podendo, ocasionalmente, ser reconhecido como instantâneo de
efeitos permanentes, quando houver, por exemplo, a perda ou
destruição da coisa obtida por meio de fraude); de dano;
monossubjetivo; plurissubsistente; transeunte ou não transeunte
(dependendo da forma como o delito é praticado).
1.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
Mediante a incriminação do estelionato, tem-se em mira,
precipuamente, a proteção do patrimônio daquele que sofreu
prejuízo com o comportamento fraudulento empregado pelo agente.
Conforme destaca Muñoz Conde, “bem jurídico protegido
comum a todas as modalidades de estelionato é o patrimônio alheio
em qualquer de seus elementos integrantes, bens móveis ou
imóveis, direitos etc., que podem constituir o objeto material do
delito.”6
Não se pode esquecer de que, por meio da incriminação
contida no tipo penal do art. 171 do diploma repressivo, procura-se
proteger as relações sociais com a punição do comportamento
fraudulento, preservando-se, assim, a indispensável confiança que
deve existir entre os membros da sociedade.
1.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo no crime de estelionato,
pois o tipo penal não exige, para efeitos de seu reconhecimento,
qualidade ou condição especial daquele que pratica o
comportamento típico.
Da mesma forma, qualquer pessoa pode figurar como sujeito
passivo. Merece ser ressaltado que além do proprietário, aquele
que, mesmo não sendo o dominus, sofre prejuízo com o
comportamento levado a efeito pelo agente, pode ser considerado
sujeito passivo da ação criminosa.
Há necessidade, entretanto, que o sujeito passivo seja pessoa
determinada, pois, caso contrário, se for praticado contra um
número indefinido de pessoas, o delito poderá ser desclassificado
para uma das hipóteses previstas na Lei nº 1.521, de 26 de
dezembro de 1951, que dispõe sobre os crimes contra a economia
popular, ou mesmo uma das infrações penais contra a relação de
consumo, previstas pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei nº
8.078, de 11 de setembro de 1990).
O sujeito passivo do crime de estelionato deverá possuir
capacidade de discernimento para que possa, de acordo com os
elementos do tipo penal em estudo, ser induzido ou mantido em
erro. Se lhe falta essa capacidade, tal como ocorre com alguns
incapazes, o fato poderá ser desclassificado, por exemplo, para o
delito tipificado no art. 173 do Código Penal.
1.5
Consumação e tentativa
Crime material, tem-se por consumado o estelionato, em sua
modalidade básica, quando o agente consegue obter a vantagem
ilícita, em prejuízo da vítima. Há necessidade, para efeitos de
reconhecimento de consumação do estelionato, da afirmação do
binômio vantagem ilícita/prejuízo alheio. Assim, quando o agente
consegue auferir a vantagem ilícita em prejuízo da vítima, o delito
chega à sua consumação.
Se, no entanto, depois de iniciados os atos de execução
configurados na fraude empregada na prática do delito, o agente
não conseguir obter a vantagem ilícita em virtude de circunstâncias
alheias à sua vontade, o crime restará tentado.
Assim, é de vital importância apontar o momento a partir do
qual se pode entender como o início da execução, haja vista que os
atos que lhe forem antecedentes se não se constituírem, per se, em
infrações penais autônomas serão considerados um indiferente
penal.
Salienta Cezar Roberto Bitencourt:
“No estelionato, crime que requer a cooperação da vítima, o
início de sua execução se dá com o engano da vítima. Quando
o agente não consegue enganar a vítima, o simples emprego
de artifício ou ardil caracteriza apenas a prática de atos
preparatórios, não se podendo cogitar de tentativa.”7
1.6
Elemento subjetivo
O delito de estelionato somente pode ser praticado
dolosamente, não havendo previsão para a modalidade de natureza
culposa.
Dessa forma, a conduta do agente deve ser dirigida
finalisticamente a induzir ou a manter alguém em erro, mediante
artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento, a fim de obter,
para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio.
Conforme salienta Damásio de Jesus:
“É necessário que o sujeito tenha consciência da ilicitude da
vantagem que obtém da vítima. O tipo requer um segundo
elemento subjetivo, contido na expressão para si ou para
outrem.”8
Merece ressalva, ainda, o fato de que o dolo, característico do
crime de estelionato, deve surgir anteriormente à posse da coisa
pelo agente, pois, caso contrário, como já o dissemos, poderá se
configurar no delito de apropriação indébita.
1.7
Modalidades comissiva e omissiva
A conduta típica de obter vantagem ilícita em prejuízo alheio é
praticada mediante a fraude do agente, que induz ou mantém a
vítima em erro.
A indução pressupõe um comportamento comissivo, vale dizer,
o agente faz alguma coisa para que a vítima incorra em erro.
Por outro lado, a conduta de manter a vítima em erro pode ser
praticada omissivamente, isto é, o agente, sabedor do erro em que
está incorrendo a vítima, aproveita-se dessa oportunidade,
silenciando-se, a fim de obter a vantagem ilícita em prejuízo dela.
Nesse sentido, preleciona Nélson Hungria:
“Há uma analogia substancial entre o induzimento em erro e o
doloso silêncio em torno do erro preexistente. Praticamente,
tanto faz ministrar o veneno como deixar scienter que alguém o
ingira por engano [...].
A inércia é uma species do genus ‘ação’: é a própria atividade
que se refrange sobre si mesma, determinando-se ao non
facere. Tanto usa de fraude quem ativamente causa o erro para
um fim ilícito, quanto quem passivamente deixa-o persistir e
dele se aproveita.”9
1.8
Primariedade do agente e pequeno valor do prejuízo
O § 1º do art. 171 do Código Penal determina, verbis:
§ 1º Se o criminoso é primário, e é de
pequeno valor o prejuízo, o juiz pode
aplicar a pena conforme o disposto no
art. 155, § 2º.
Como se percebe pela redação do parágrafo antes transcrito,
em comparação com o § 2º do art. 155 do Código Penal, a lei penal,
embora mantendo a exigência da primariedade do agente, modificou
o segundo requisito necessário à sua aplicação.
No crime de furto, exige a lei que a coisa furtada seja de
pequeno valor, dado este de natureza eminentemente objetiva,
tendo os Tribunais convencionado, conforme já dissemos
anteriormente quando do estudo do art. 155 do Código Penal, ser
aquele em torno de um salário mínimo, vigente à época dos fatos.
Na hipótese do crime de estelionato, a redação legal faz
menção a prejuízo de pequeno valor, devendo-se levar em
consideração, aqui, a pessoa da vítima, ao contrário do que ocorre
no delito de furto.
No entanto, a redação legal não podia ser outra, uma vez que,
diferentemente do objeto material do furto, que é a coisa alheia
móvel, no estelionato, de abrangência maior, o art. 171 utiliza a
expressão prejuízo alheio, que pode se estender não somente às
coisas móveis, como também imóveis, direitos economicamente
apreciáveis etc.
Assim, se o criminoso for primário e de pequeno valor o
prejuízo, que também deve girar em torno de um salário mínimo, o
juiz poderá substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuíla de um a dois terços ou aplicar somente a pena de multa.
Para maiores informações a respeito dos critérios de aplicação
das alternativas legais, remetemos o leitor aos comentários
produzidos quando do estudo do crime de furto.
1.9
Modalidades especiais de estelionato
O § 2º do art. 171 do Código Penal, cuidando das modalidades
especiais de estelionato, prevê os delitos de: I – disposição de coisa
alheia como própria; II – alienação ou oneração fraudulenta de coisa
própria; III – defraudação de penhor; IV – fraude na entrega de
coisa; V – fraude para recebimento de indenização ou valor de
seguro; VI – fraude no pagamento por meio de cheque.
Como subespécies de estelionato, devemos interpretá-las
levando em consideração os elementos informadores daquela figura
típica. Assim, a fraude será o meio utilizado pelo agente, em todas
essas figuras típicas, a fim de que obtenha uma vantagem ilícita em
prejuízo alheio. O dolo é o elemento subjetivo característico de
todas as infrações penais catalogadas pelos incisos do § 2º do art.
171 do Código Penal, não havendo previsão para a modalidade de
natureza culposa.
Em razão de suas particularidades, faremos a análise,
isoladamente, de cada uma dessas modalidades.
1.9.1
Disposição de coisa alheia como própria
O inciso I do § 2º do art. 171 do Código Penal diz que incorrerá
nas mesmas penas cominadas à modalidade fundamental de
estelionato aquele que vende, permuta, dá em pagamento, em
locação ou em garantia coisa alheia como própria, atribuindo a esta
figura típica o nomen iuris de disposição de coisa alheia como
própria.
Crime comum, tanto com relação ao sujeito ativo quanto ao
sujeito passivo, pode ser praticado por qualquer pessoa, não se
exigindo nenhuma qualidade ou condição especial.
Como se percebe pela redação legal, os comportamentos
vender, permutar, dar em pagamento, em locação ou em garantia
pressupõem, como regra geral, que sejam praticados por quem não
é proprietário da coisa. Assim, o agente, objetivando obter a
vantagem ilícita, utiliza fraude, fazendo-se passar pelo proprietário
do bem, causando prejuízo à vítima.
A coisa alheia mencionada pelo tipo penal pode ser móvel ou
imóvel. A consumação ocorre quando, efetivamente, consegue a
vantagem ilícita em prejuízo alheio, sendo possível, como acontece
com a modalidade fundamental de estelionato, o raciocínio
correspondente à tentativa.
Um detalhe merece destaque nessa infração penal. Não é
incomum que o autor da subtração de uma coisa alheia procure dela
se desfazer a fim de conseguir o valor a ela correspondente. Dessa
forma, normalmente, quando o agente pratica um crime de furto ou,
mesmo, de roubo, subtraindo da vítima a coisa móvel, ele procura,
logo em seguida, vendê-la, permutá-la, entregá-la em pagamento
etc., tal como mencionado no artigo em estudo. Nesse caso, teria
ele que responder pelas duas infrações penais, vale dizer, pela
subtração anterior (furto, roubo etc.), e pelo delito de estelionato,
quando se fizer passar pelo proprietário da coisa, a fim de conseguir
obter a vantagem ilícita?
Nesse raciocínio, temos que destacar, inicialmente, que o delito
tipificado no inciso I do § 2º do art. 171 do Código Penal só se
verifica se o agente, como nos diz a rubrica, dispuser de coisa
alheia como própria. Portanto, a fraude é o meio utilizado pelo
agente na disposição da coisa, consistindo no fato de fazer-se
passar pelo seu proprietário. Se o agente vende, permuta, dá em
pagamento, em locação ou em garantia coisa que, sabidamente,
não lhe pertencia, não poderá ser responsabilizado pelo estelionato
se esse fato era do total conhecimento da vítima.
No exemplo fornecido, imagine-se que o agente tenha furtado
um televisor e, agora, querendo transformá-lo em dinheiro, procura
a vítima e, sob o argumento de estar passando por dificuldades
financeiras, dizendo que havia acabado de pagar as prestações
correspondentes ao mencionado televisor, fazendo-se passar pelo
seu legítimo proprietário, a convence de comprá-lo. Nesse caso,
conforme já indagamos anteriormente, haveria concurso de crimes?
Em resposta a essa indagação, duas posições se formaram.
A primeira, à qual nos filiamos, aplica ao caso vertente o
raciocínio relativo ao antefato e ao pós-fato impuníveis. Caso o
agente, a fim de subtrair o aludido televisor, tivesse ingressado na
residência da vítima, por esse fato anterior, que, por si só, já se
consubstanciaria no delito de violação de domicílio, não poderia ser
punido, encontrando-se numa relação de meio a fim, aplicando-se,
aqui, o princípio da consunção. Da mesma forma, como já o
dissemos anteriormente, se o agente que subtraiu o televisor o
vendesse a terceira pessoa, fazendo-se passar pelo seu
proprietário, não poderia responder pelo estelionato, devendo ser
este último comportamento considerado um pós-fato impunível.
Nesse sentido, Fragoso esclarece:
“Os fatos posteriores que significam um aproveitamento e por
isso ocorrem regularmente depois do fato anterior são por este
consumidos. É o que ocorre nos crimes de intenção, em que
aparece especial fim de agir. A venda pelo ladrão da coisa
furtada como própria não constitui estelionato.”10
Em sentido contrário, afirma Assis Toledo:
“Se o agente vende a coisa para terceiro de boa-fé, comete
estelionato em concurso material, com o antecedente furto, por
empreender nova lesão autônoma contra vítima diferente,
através de conduta não compreendida como consequência
natural e necessária da primeira.”11
1.9.2
Alienação ou oneração fraudulenta de coisa própria
O inciso II do § 2º do art. 171 do Código Penal previu como
subespécie de estelionato o comportamento daquele que vende,
permuta, dá em pagamento ou em garantia coisa própria inalienável,
gravada de ônus ou litigiosa, ou imóvel que prometeu vender a
terceiro, mediante pagamento em prestações, silenciando sobre
qualquer dessas circunstâncias.
Aqui, ao contrário da infração penal anteriormente analisada, a
coisa é própria, vale dizer, pertence mesmo ao agente. O inciso, que
prevê o delito de alienação ou oneração fraudulenta de coisa
própria, contém duas partes distintas, ligadas pelos comportamentos
de vender, permutar ou dar em pagamento ou em garantia,
praticados pelo agente. A primeira parte diz respeito à coisa própria
inalienável, gravada de ônus ou litigiosa. A coisa, mencionada pelo
tipo penal, pode ser móvel ou imóvel. A segunda parte refere-se,
especificamente, a imóvel que prometeu vender a terceiro.
A fraude, no delito em estudo, é caracterizada pelo silêncio, ou
seja, o agente vende, permuta, dá em pagamento ou em garantia
aqueles bens que lhe pertencem, omitindo, no entanto, que estão
gravados de ônus, ou que existe litígio pendente sobre a coisa, ou
mesmo que o imóvel já foi prometido a terceiro, mediante
pagamento em prestações.
A promessa de compra e venda não se encontra no rol dos
comportamentos tipificados pela lei penal, que somente previu as
condutas de vender, permutar, dar em pagamento ou em garantia.
Nesse sentido, esclarece Cezar Roberto Bitencourt:
“A promessa de venda não é abrangida como forma de crime
nos conceitos de venda, permuta, dação em pagamento do art.
171, § 2º, do CP. Assim, o silêncio do promitente vendedor
sobre o fato de estar o imóvel arrestado em execução, por
exemplo, não tipifica o crime de alienação fraudulenta de coisa
própria. Essa proibição tipificada refere-se expressamente ao
ato de vender, que não se confunde com o mero compromisso
de compra e venda (este não passa de obrigação de fazer). Só
recorrendo à analogia seria possível enquadrar a promessa de
venda no art. 171, § 2º, II, do CP, mas a incriminação analógica
é vedada pelo direito penal moderno.”12
Apesar da precisão de raciocínio do renomado professor
gaúcho, embora o fato de prometer vender não se amolde ao inciso
II do § 2º do art. 171 do Código Penal, dependendo do caso
concreto, poderá se subsumir à figura típica fundamental do
estelionato, se com essa promessa de venda o agente obteve
vantagem ilícita em prejuízo alheio.
Somente poderá ser sujeito ativo o proprietário da coisa própria
inalienável ou do imóvel prometido a terceiro, sendo, portanto,
nesse caso, considerado como próprio. Ao contrário, qualquer
pessoa poderá figurar como sujeito passivo, sendo, aqui,
considerado sob esse enfoque, um delito comum.
A consumação ocorre com a prática efetiva de qualquer um dos
comportamentos típicos, vale dizer, quando o agente vende,
permuta, dá em pagamento ou em garantia. Tratando-se de crime
plurissubsistente, será possível o raciocínio correspondente à
tentativa.
Se na transação civil o agente esclarece que a coisa inalienável
está gravada de ônus ou é objeto de litígio, o fato será atípico com
relação a esse delito, podendo, dependendo da situação concreta,
se configurar em outra infração penal, a exemplo do art. 179 do
Código Penal, que prevê o delito de fraude à execução.
1.9.3
Defraudação de penhor
O crime de defraudação de penhor veio tipificado no inciso III
do § 2º do art. 171, que diz: defrauda, mediante alienação não
consentida pelo credor ou por outro modo, a garantia pignoratícia,
quando tem a posse do objeto empenhado.
O art. 1.431 do Código Civil define o penhor, verbis:
Art. 1.431. Constitui-se o penhor pela
transferência efetiva da posse que,
em garantia do débito ao credor ou a
quem o represente, faz o devedor, ou
alguém por ele, de uma coisa móvel,
suscetível de alienação.
Pela redação do art. 1.431 do Código Civil, verifica-se que é da
natureza do penhor a transferência efetiva da posse de uma coisa
móvel de propriedade do devedor, como garantia do débito ao
credor.
No entanto, o parágrafo único do mencionado artigo prevê os
efeitos da chamada clausula constituti, dizendo:
Parágrafo único. No penhor rural,
industrial, mercantil e de veículos, as
coisas empenhadas continuam em
poder do devedor, que as deve
guardar e conservar.
Nesses casos, quando não houver transferência da posse da
coisa móvel ao credor pignoratício, permanecendo, outrossim, com
o devedor, é que se poderá levar a efeito o raciocínio
correspondente ao delito de defraudação de penhor.
A conduta de defraudar pode se configurar quando o agente
aliena a coisa móvel que está em seu poder, como ocorre nas
hipóteses de venda, doação, troca etc., como também, de acordo
com a regra genérica contida no aludido inciso, quando a consome,
desvia, enfim, pratica qualquer comportamento que venha fraudar a
garantia dada em penhor, sendo esses os momentos de
consumação do delito, ou seja, com a efetiva defraudação. Por se
cuidar de um crime plurissubsistente, será possível o raciocínio
correspondente à tentativa, a exemplo daquele que, ao tentar
vender a terceira pessoa o bem móvel penhorado, é surpreendido e
impedido de levar a efeito a transação criminosa.
O consentimento do credor pignoratício na alienação da coisa
afasta a tipicidade do fato.
Sujeito ativo, conforme salienta Alberto Silva Franco, “é o
devedor que conserva em sua posse o objeto empenhado e o
vende, desvia, oculta, ou, de algum outro modo, o subtrai ao vínculo
de garantia da dívida.”13 Sujeito passivo é o credor pignoratício.
1.9.4
Fraude na entrega de coisa
O inciso IV do § 2º do art. 171 do Código Penal prevê o delito
de fraude na entrega de coisa, responsabilizando criminalmente
aquele que defrauda substância, qualidade ou quantidade de coisa
que deve entregar a alguém.
Esclarece Álvaro Mayrink da Costa:
“O ato de defraudar substância significa alterar a natureza da
coisa corpórea, ou a sua qualidade (importa que o objeto
entregue seja inferior, pois se for de espécie superior inexiste
ilícito penal), ou quantidade (refere-se a número, peso e
dimensões).”14
A coisa defraudada pode ser móvel ou imóvel.
Consuma-se o delito no momento em que a coisa defraudada é
entregue à vítima, sendo que a defraudação em si, modificando a
substância, a qualidade ou a quantidade da coisa, antes da sua
efetiva entrega ao agente, é considerada ato preparatório.
No entanto, pode ocorrer que, depois de defraudada a coisa, o
agente dê início à execução do delito, tentando entregá-la ao sujeito
passivo, quando é interrompido por circunstâncias alheias à sua
vontade, podendo, portanto, ser responsabilizado pela tentativa.
Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do delito de fraude na
entrega da coisa, desde que tenha a obrigação de entregá-la a
alguém, não se exigindo nenhuma qualidade ou condição especial
ao seu reconhecimento; sujeito passivo, que pode também ser
qualquer pessoa, é aquele que tinha o direito de receber a coisa em
perfeito estado, sem que fosse defraudada a sua substância,
qualidade ou quantidade.
Tratando-se de substância ou produto alimentício destinado a
consumo, o delito será aquele tipificado no art. 272 do Código
Penal; se houver alteração de produtos destinados a fins
terapêuticos ou medicinais, a infração penal será a prevista no art.
273 do diploma repressivo; se o agente fornecer substância
medicinal em desacordo com receita médica, será responsabilizado
pelo delito tipificado no art. 280 do Código Penal.
1.9.5
Fraude para recebimento de indenização ou valor de
seguro
O delito de fraude para recebimento de indenização ou valor de
seguro, muito comum nos dias de hoje, encontra-se previsto no
inciso V do § 2º do art. 171 do Código Penal, responsabilizando
criminalmente aquele que destrói, total ou parcialmente, ou oculta
coisa própria, ou lesa o próprio corpo ou a saúde, ou agrava as
consequências da lesão ou doença, com o intuito de haver
indenização ou valor de seguro.
Pela redação contida no mencionado inciso, podemos destacar
dois comportamentos distintos, que atingem objetos materiais
diversos. No primeiro deles, o agente destrói, total ou parcialmente,
ou oculta coisa própria, a exemplo daquele que, almejando receber
o valor do seguro, faz com que seu automóvel caia em um
precipício, destruindo-o completamente. Nesse caso, o veículo
contra o qual foi dirigida a conduta do agente é o objeto material de
sua ação.
A conduta do agente poderá ser dirigida contra a sua própria
pessoa, causando lesão ao seu corpo ou à sua saúde, podendo,
ainda, agravar as consequências da lesão ou da doença. Nesse
caso, o agente somente será punido em virtude da finalidade
especial com que atua, vale dizer, com o intuito de haver
indenização ou valor de seguro, pois, caso contrário, se fosse sua
intenção, tão somente, o autoflagelo, seu comportamento seria
atípico, uma vez que a autolesão encontra-se no rol das condutas
consideradas um indiferente penal, ou seja, não gozam do status
que o Direito Penal exige a fim de merecer a sua proteção.
A expressão com o intuito de haver indenização ou valor de
seguro demonstra a natureza formal da infração penal. Dessa
forma, basta que o agente, por exemplo, destrua uma coisa de sua
propriedade, que pode ser móvel ou imóvel, a fim de receber o valor
correspondente ao seguro para que o crime reste consumado. Aqui,
no entanto, temos que fazer uma observação importante, pois o fato
de destruir uma coisa ou, mesmo, de mutilar-se com a intenção de
receber, por exemplo, a indenização ou o valor do seguro, não tem o
condão de consumar, por si só, a infração penal, pois, para nós, são
considerados como atos preparatórios. Entendemos que o início da
execução ocorre quando o agente, efetivamente, leva a efeito o
pedido de indenização ou pagamento do seguro, mesmo que não o
receba, posto o seu recebimento seria considerado mero
exaurimento do crime.
Embora possuindo a natureza de crime formal, tratando-se,
também, de um delito plurissubsistente, cujo iter criminis poderá ser
fracionado, entendemos possível o reconhecimento da tentativa,
embora haja discussão doutrinária, pois, conforme esclarece
Noronha:
“A admissibilidade da tentativa não é assunto pacífico, pois
muitos acham que o delito de perigo não a comporta. Ainda que
o tenhamos como tal, cremos perfeitamente configurável à
tentativa. Com efeito, o crime, em uma das hipóteses, consiste
na danificação de coisa, e o dano admite tentativa, pois é um
crime material, suscetível de fracionamento. O agravar as
consequências da lesão ou doença exigirá muitas vezes uma
série de atos, até que produza o evento buscado pelo
delinquente e que lhe proporcionará vantagem indevida. Nem
sempre, portanto, se tratará de delito de execução simples, que
se completa com um único ato (unico actu perficiuntur), pois
pode apresentar execução material prolongada, que admite
fracionamento.”15
Sujeito ativo é o proprietário da coisa móvel ou imóvel, ou
aquele que pratica a autolesão, que possui um contrato de seguro
com o sujeito passivo. Sujeito passivo é o segurador, responsável
pelo pagamento da indenização, pois a fraude tem por finalidade
atingir o seu patrimônio.
1.9.6
Fraude no pagamento por meio de cheque
O inciso VI do § 2º do art. 171 do Código Penal prevê o
comportamento daquele que emite cheque, sem suficiente provisão
de fundos em poder do sacado, ou lhe frustra o pagamento.
De todas as subespécies de estelionato, talvez essa seja a
mais comum nos dias de hoje. A primeira observação a ser feita,
antes mesmo de levarmos a efeito a análise sucinta dos elementos
que informam o delito em estudo, é no sentido de que somente
poderá ser responsabilizado pelo delito de estelionato, na
modalidade de fraude no pagamento por meio de cheque, o agente
que tiver agido dolosamente quando da sua emissão. Isso significa
que aquele que por descuido, pelo fato de controlar mal o saldo em
sua conta-corrente, emitir um cheque acreditando na suficiência de
fundos quando, na realidade, não possuía, não poderá responder
pelo delito em questão, pois não há previsão para a modalidade
culposa dessa infração penal.
O tipo penal em estudo prevê dois comportamentos distintos.
No primeiro, o agente emite cheque conhecendo, de antemão, a
insuficiência de fundos em poder do sacado. O cheque, na
qualidade de título de crédito, entendido como ordem de pagamento
à vista, permite que o beneficiário dirija-se até o banco sacado a fim
de efetuar o levantamento da importância nele consignada ou,
mesmo, que leve a efeito o depósito em conta-corrente. O cheque
pós-datado perde a natureza de ordem de pagamento à vista, pois o
seu emitente, ao determinar o seu depósito em data futura,
implicitamente, afirma não ter suficiência de fundos no momento de
sua emissão. Assim, desnatura-se essa modalidade de estelionato
em virtude da ausência de fraude, pois, na verdade, a emissão do
cheque pós-datado somente fez o papel de nota promissória, com a
característica da possibilidade de ser depositado ou sacado
diretamente na instituição financeira. Nesse sentido, já se
posicionou o Supremo Tribunal Federal, por meio da Súmula nº 246:
Súmula nº 246. Comprovado não ter
havido fraude, não se configura o
crime de emissão de cheque sem
fundos.
A ausência de provisão suficiente de fundos deve ocorrer no
momento da emissão do cheque, ou seja, a partir do momento em
que o agente o coloca em circulação, entregando-o a terceiro, e não
com o seu simples preenchimento. Conforme esclarece Guilherme
de Souza Nucci:
“Se possuir provisão de fundos, mas esta for alterada antes da
apresentação do título, recor-re-se à segunda figura (frustrar o
pagamento). Por outro lado, se o agente possuir cheque
especial, é natural que o pagamento feito pelo banco, ainda que
resulte em saldo negativo, não configura o delito. E mais:
contando o emitente com seu limite de cheque especial – e
emitido o cheque com valor que não ultrapasse o referido limite
–, caso o banco recuse o pagamento, por razões de política
institucional, o crime também não se configura.”16
Aqui, podemos acrescentar que se o agente emite cheque com
valor superior ao seu limite de cheque especial, sabedor de que não
seria pago pelo banco sacado, deverá responder pelo delito em
exame.
Se a cártula preenchida disser respeito à conta-corrente já
encerrada, o crime será aquele previsto no caput do art. 171 do
Código Penal, e não no do inciso VI de seu § 2º, da mesma forma
que aquele que falsifica a assinatura em cheque de terceiro que
chegou ilicitamente a seu poder.
A segunda modalidade característica desse delito diz respeito à
frustração ilegítima do pagamento. Conforme salientado
anteriormente, para que se configure o delito por meio dessa
modalidade, é preciso que o emitente tenha fundos suficientes em
poder do sacado, pois, caso contrário, o fato se subsumirá ao
primeiro comportamento, vale dizer, emissão de cheque sem
suficiente provisão de fundos.
Pode-se frustrar o pagamento mediante diversas formas, a
exemplo daquele que determina a sua sustação perante o sacado,
ou mesmo encerrando sua conta-corrente, ou retirando, depois da
emissão do cheque, os valores depositados, tornando insuficientes
os fundos etc.
Embora exista controvérsia no que diz respeito ao momento de
consumação do delito, a posição doutrinária majoritária, amparada
no entendimento esposado pela Súmula nº 52117 do Supremo
Tribunal Federal, é no sentido de reconhecê-la no momento em que
ocorre a recusa do sacado em efetuar o pagamento do cheque, seja
em virtude da ausência de suficiência de fundos, seja, por exemplo,
pela contraordem determinada pelo agente.
É admissível a tentativa, principalmente se nos valermos de
exemplos construídos em “laboratório.” Assim, nos exemplos
fornecidos por Damásio de Jesus, pode ocorrer que “não obstante a
ausência ou insuficiência de provisão de fundos, o banco sacado
honra o cheque, pagando-o. Pode ocorrer também que um terceiro
deposite na conta do emitente a quantia constante do título.”18 Esses
casos, como se percebe sem muito esforço, dificilmente redundarão
em ação penal, haja vista que a suposta vítima sequer terá
conhecimento das intenções do agente em não honrar o
pagamento. No entanto, não afastam o raciocínio relativo à
possibilidade do conatus (tentativa).
Sujeito ativo é o emitente do cheque sem suficiente provisão de
fundos, bem como o emitente que lhe frustra o pagamento. Sujeito
passivo é o tomador do cheque, vale dizer, aquele em favor de
quem foi emitido, podendo se tratar de pessoa física ou jurídica.
1.9.7
Fraude eletrônica. Modalidade qualificada de estelionato e
causa de aumento de pena a ele relativa
Dizem os §§ 2º-A e 2º-B, introduzidos ao art. 171 do Código
Penal através da Lei nº 14.155, de 27 de maio de 2021, verbis:
§ 2º-A. A pena é de reclusão, de 4
(quatro) a 8 (oito) anos, e multa, se a
fraude é cometida com a utilização de
informações fornecidas pela vítima ou
por terceiro induzido a erro por meio
de redes sociais, contatos telefônicos
ou envio de correio eletrônico
fraudulento, ou por qualquer outro
meio fraudulento análogo.
§ 2º-B. A pena prevista no § 2º-A
deste artigo, considerada a relevância
do resultado gravoso, aumenta-se de
1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços), se o
crime é praticado mediante a
utilização de servidor mantido fora do
território nacional.
O § 2º-A transcrito acima prevê uma modalidade qualificada de
estelionato em virtude dos meios utilizados pelo agente para levar a
efeito a infração penal. Assim, de acordo com a redação legal, a
vítima ou o terceiro são induzidos a erro, e o agente se utiliza das
informações por eles fornecidas, através: a) da redes sociais b)
contatos telefônicos; c) envio de correio eletrônico fraudulento; d) ou
por qualquer outro meio fraudulento análogo.
Rogério Sanches Cunha, com precisão, exemplificando cada
uma dessas situações, nos esclarece:
“a) por meio de redes sociais: atualmente são muito comuns
os anúncios promovidos em redes sociais como Facebook e
Instagram. Não raro, são anúncios fraudulentos, manobras
ardilosas para atrair pessoas que forneçam seus dados;
b) por contatos telefônicos: são também muito comuns as
fraudes cometidas por meio telefônico. Um exemplo recorrente
envolve os cartões de crédito. O fraudador telefona para
alguém e afirma, por exemplo, que a instituição financeira
detectou indícios de fraude com o cartão dessa pessoa. Pede a
ela que confirme dados e digite a senha do cartão. Com a
senha à disposição, o agente faz compras, efetua saques, toma
empréstimos etc.;
c) pelo envio de correio eletrônico fraudulento: neste caso,
a vítima recebe um e-mail fraudulento, muitas vezes imitando
os caracteres de empresas ou organizações conhecidas e, a
partir do acesso por meio do link disponibilizado, o
estelionatário pode obter os dados pessoais e bancários
inseridos em formulários eletrônicos;
d) por qualquer outro meio fraudulento análogo: nesta
fórmula analógica se inserem quaisquer outras práticas
fraudulentas cometidas por meios eletrônicos ou informáticos,
como páginas na internet, por exemplo, em que a vítima não é
diretamente abordada pelo estelionatário, como nas
modalidades anteriores, mas é induzida em erro por fatores
diversos (simulação de um estabelecimento comercial
regularmente constituído; cópia de outra página conceituada
etc.).
Nesses casos, ao contrário do que acontece no furto, a vítima,
ao fornecer informações que possibilitam a prática do crime, integra
diretamente o ardil preparado pelo estelionatário para obter a
vantagem indevida. Ilustremos com exemplos ambas as figuras para
bem diferenciá-las:
a)
b)
Aproveitando a vulnerabilidade de pessoas que utilizam
uma rede pública de internet, um hacker intercepta a
conexão e obtém dados de acesso a contas bancárias.
Com esses dados à disposição, acessa as contas e
transfere quantias em dinheiro para outra conta da qual
efetua saques. É um caso típico de furto mediante fraude,
no qual a manobra ardilosa (interceptar os dados
transmitidos entre o usuário e o ponto de conexão) é
utilizada para que as vítimas sejam despojadas de seus
bens sem que nada percebam.
Pretendendo adquirir um televisor, um indivíduo faz uma
pesquisa na internet e encontra a página de uma
conhecida rede varejista na qual o produto está sendo
anunciado por um preço muito abaixo das concorrentes.
Insere seus dados pessoais e bancários sem saber que, na
verdade, se trata de uma página clonada, que apenas
copia os caracteres da famosa rede varejista, para induzir
as pessoas em erro. Efetuado o pagamento, o dinheiro é
creditado ao autor da fraude, que evidentemente não
pretende entregar o produto anunciado. Nesse exemplo, ao
contrário do anterior, a vítima tem participação direta, pois,
induzida por um anúncio enganoso, fornece os dados para
que o autor da fraude possa obter a vantagem. Trata-se,
portanto, de estelionato”19.
Importante essa distinção trazida pelo querido amigo e colega
de Ministério Público, uma vez que, no estelionato, como é da sua
própria natureza, o ardil, a fraude, o engodo são levados a efeito a
fim de fazer com que a própria vítima entregue a vantagem ilícita ao
agente; no furto com fraude, ao contrário, embora também, tais
meios são utilizados para que o próprio agente possa praticar a
subtração da coisa.
Já o § 2º-B diz que a pena prevista no mencionado § 2º-A do
art. 171 do Código Penal, considerada a relevância do resultado
gravoso, aumenta-se de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços), se o
crime é praticado mediante a utilização de servidor mantido fora do
território nacional.
Aqui, a relevância do resultado gravoso fará com que o julgador
aplique a causa especial de aumento de pena entre os patamares
mínimo (um terço) e máximo (dois terços), desde que o crime seja
praticado mediante a utilização de servidor mantido fora do território
nacional, dificultando, assim, a investigação dos fatos ocorridos.
1.10
Causas especiais de aumento de pena
Diz o § 3º do art. 171 do Código Penal, verbis:
§ 3º A pena aumenta-se de um terço,
se o crime é cometido em detrimento
de entidade de direito público ou de
instituto
de
economia
popular,
assistência social ou beneficência.
Verifica-se, portanto, que a majorante leva em consideração o
sujeito passivo da infração penal, entendendo ser mais reprovável o
comportamento daquele que pratica o delito de estelionato, previsto
no caput do art. 171 do Código Penal, bem como em suas demais
modalidades tipificadas no § 2º do mesmo artigo, quando couber,
em detrimento de: a) entidade de direito público; b) instituto de
economia popular; c) instituto de assistência social; d) instituto de
beneficência.
A razão de ser do aumento de pena diz respeito ao fato de que
todas as entidades arroladas pelo parágrafo prestam serviços
fundamentais à sociedade. Assim, o comportamento do agente,
causando prejuízo a essas entidades, atinge, reflexamente, a
sociedade. Na verdade, embora a entidade prejudicada seja
determinada, o número de pessoas que sofre com a conduta do
agente é indeterminado.
Entidades de direito público interno são a União, os Estados, os
Municípios, o Distrito Federal, suas autarquias e entidades
paraestatais. Instituto de economia popular, conforme esclarece
Hungria, “é todo aquele que serve a direto interesse econômico do
povo ou indeterminado número de pessoas (bancos populares,
cooperativas, caixas Raiffeisen, sociedades de mutualismo etc.).
Instituto de assistência social ou de beneficência é o que atende a
fins de filantropia, de solidariedade humana, de caridade, de
altruístico socorro aos necessitados em geral, de desinteressado
melhoramento moral ou educacional.”20
O Superior Tribunal de Justiça, por intermédio da Súmula 24,
consolidou seu entendimento nesse sentido:
Súmula nº 24. Aplica-se ao crime de
estelionato, em que figure como
vítima
entidade
autárquica
da
Previdência Social, a qualificadora21
do § 3º do art. 171 do Código Penal.
Em 27 de maio de 2021, foi publicada a Lei nº 14.155, dando
nova redação ao § 4º do artigo 171 do Código Penal, dizendo:
§ 4º A pena aumenta-se de 1/3 (um
terço) ao dobro, se o crime é cometido
contra
idoso
ou
vulnerável,
considerada a relevância do resultado
gravoso.
De acordo com a redação legal, trata-se de majorante que
deverá ser aplicada no terceiro momento do critério trifásico previsto
pelo art. 68 do Código Penal.
Idoso, para fins de reconhecimento e aplicação da causa
especial de aumento de pena em estudo, é aquele com idade igual
ou superior a 60 (sessenta) anos, conforme preconiza o art. 1º da
Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso).
Para a aplicação da majorante, é preciso que haja prova nos
autos da idade da vítima, que pode ser produzida através de
certidão de nascimento, carteira de habilitação de motorista,
documento de identidade etc., conforme determina o parágrafo
único do art. 155 do Código de Processo Penal, que diz que
somente quanto ao estado das pessoas serão observadas as
restrições estabelecidas pela lei civil.
Além disso, para que o aumento seja aplicado, é preciso que o
agente saiba, efetivamente, a idade da vítima, pois, caso contrário,
poderá ser reconhecido o erro de tipo.
Por vulnerável, devem ser entendidos aqueles elencados pelo
art. 217-A do diploma repressivo, isto é, o menor de 14 (quatorze)
anos, e os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o
necessário discernimento para a prática do ato. O paralelo com o
referido art. 217-A do Código Penal se faz necessário, tendo em
vista que a lei tão somente se utilizou do termo vulnerável, para
efeito de aplicação da referida causa especial de aumento de pena.
1.11
Pena, ação penal e suspensão condicional do processo
A pena cominada ao delito de estelionato, seja para o caput ou
para as modalidades previstas pelo § 2º do art. 171 do Código
Penal, é de reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa.
A pena é de reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa, se
a fraude é cometida com a utilização de informações fornecidas pela
vítima ou por terceiro induzido a erro por meio de redes sociais,
contatos telefônicos ou envio de correio eletrônico fraudulento, ou
por qualquer outro meio fraudulento análogo, nos termos do § 2º-A,
inserido ao art. 171 do Código Penal por meio da Lei nº 14.155, de
27 de maio de 2021.
Se o criminoso for primário e de pequeno valor o prejuízo, terá
aplicação o § 2º do art. 155 do Código Penal, podendo o juiz
substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a
dois terços ou aplicar somente a pena de multa.
A pena será aumentada em um terço se o crime for cometido
em detrimento de entidade de direito público ou de instituto de
economia popular, assistência social ou beneficência, conforme
determinação contida no § 3º do art. 171 do Código Penal. A pena
também será aumentada de 1/3 (um terço) ao dobro, se o crime é
cometido contra idoso ou vulnerável, considerada a relevância do
resultado gravoso.
A pena prevista no § 2º-A deste artigo, considerada a relevância
do resultado gravoso, aumenta-se de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois
terços), se o crime é praticado mediante a utilização de servidor
mantido fora do território nacional, conforme § 2º-B, também
acrescentado ao art. 171 do Código Penal através da Lei nº 14.155,
de 27 de maio de 2021.
Aplica-se ao crime de estelionato a imunidade penal de caráter
pessoal prevista no art. 181 do diploma repressivo, que diz:
Art. 181. É isento de pena quem
comete qualquer dos crimes previstos
neste título, em prejuízo:
I – do cônjuge, na constância da
sociedade conjugal;
II – de ascendente ou descendente,
seja o parentesco legítimo ou
ilegítimo, seja civil ou natural.
Não se aplicará o mencionado artigo ao crime de estelionato,
nos termos dos incisos II e III do art. 183 do Código Penal: a) ao
estranho que participa do crime; b) se o crime é praticado contra
pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos.
A ação penal, como regra, será de iniciativa pública
condicionada a representação, conforme o disposto no § 5º, inserido
no art. 171 do Código Penal através da Lei nº 13.964, de 24 de
dezembro de 2019, que diz:
§ 5º Somente se procede mediante
representação, salvo se a vítima for:
I – a Administração Pública, direta ou
indireta;
II – criança ou adolescente;
III – pessoa com deficiência mental;
ou
IV – maior de 70 (setenta) anos de
idade ou incapaz.
No que diz respeito à possibilidade de aplicação retroativa da
exigência de representação trazida pela Lei nº 13.964, de 24 de
dezembro de 2019, assim se manifestou o STJ:
“1. A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal e as Turmas
que compõem a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça,
diante da utilização crescente e sucessiva do habeas corpus,
passaram a restringir a sua admissibilidade quando o ato ilegal
for passível de impugnação pela via recursal própria, sem
olvidar a possibilidade de concessão da ordem, de ofício, nos
casos de flagrante ilegalidade. 2. A Lei n. 13.964/2019, de 24
de dezembro de 2019, conhecida como “Pacote Anticrime”,
alterou substancialmente a natureza da ação penal do crime de
estelionato (art. 171, § 5º, do Código Penal), sendo, atualmente,
processado mediante ação penal pública condicionada à
representação do ofendido, salvo se a vítima for: a
Administração Pública, direta ou indireta; criança ou
adolescente; pessoa com deficiência mental; maior de 70 anos
de idade ou incapaz. 3. Observa-se que o novo comando
normativo apresenta caráter híbrido, pois, além de incluir a
representação do ofendido como condição de procedibilidade
para a persecução penal, apresenta potencial extintivo da
punibilidade, sendo tal alteração passível de aplicação
retroativa por ser mais benéfica ao réu. Contudo, além do
silêncio do legislador sobre a aplicação do novo entendimento
aos processos em curso, tem-se que seus efeitos não podem
atingir o ato jurídico perfeito e acabado (oferecimento da
denúncia), de modo que a retroatividade da representação no
crime de estelionato deve se restringir à fase policial, não
alcançando o processo. Do contrário, estar-se-ia conferindo
efeito distinto ao estabelecido na nova regra, transformando-se
a representação em condição de prosseguibilidade e não
procedibilidade. Doutrina: Manual de Direito Penal: parte
especial (arts. 121 ao 361). Rogério Sanches Cunha – 12. ed.
rev., atual. e ampl. Salvador: Editora JusPodivm, 2020, p. 413.
4. Ademais, na hipótese, há manifestação da vítima no sentido
de ver o acusado processado, não se exigindo para tal efeito,
consoante a jurisprudência desta Corte, formalidade para
manifestação do ofendido. 5. Conforme pacífica jurisprudência
desta Corte Superior, fixada a pena corporal nos patamares
delineados no art. 44, § 2º, do Código Penal, compete ao
julgador a escolha do modo de aplicação da benesse legal.
Além disso, não é socialmente recomendável a aplicação da
multa substitutiva em crimes cujo o tipo penal prevê multa
cumulativa com a pena privativa de liberdade. 6. Habeas corpus
não conhecido (HC 573.093/SC, Rel. Min. Reynaldo Soares da
Fonseca, 5ª T., j. 09/06/2020, DJe 18/06/2020).
Será possível a confecção de proposta de suspensão
condicional do processo desde que o crime não tenha sido cometido
em detrimento de entidade de direito público ou de instituto de
economia popular, assistência social ou beneficência, uma vez que,
sendo aplicada a causa de aumento prevista no § 3º do art. 171 do
Código Penal, a pena mínima ultrapassará o limite de um ano,
estipulado pelo art. 89 da Lei nº 9.099/95.
1.12
Destaques
1.12.1
Torpeza bilateral (fraude nos negócios ilícitos ou imorais)
Existe uma máxima civilista que diz: nemo auditur propriam
turpitudinem allegans (ninguém é ouvido, alegando a própria
torpeza).
O art. 883 do Código Civil, atento ao velho brocardo, ao cuidar
do pagamento indevido, assevera:
Art. 883. Não terá direito à repetição
aquele que deu alguma coisa para
obter fim ilícito, imoral, ou proibido por
lei.
Washington de Barros Monteiro, discorrendo sobre o tema,
esclarece:
“Se alguém dá alguma coisa para alcançar objetivo imoral ou
ilícito (um crime, por exemplo), jamais terá direito à repetição. A
imoralidade do seu objetivo, a torpeza de sua finalidade e o
desonesto de sua atitude privam-no de todo auxílio jurídico. O
direito não transige com a indignidade; ao contrário, põe-se
sempre de acordo com os fins éticos, que inspiram e animam a
ordem jurídica. E por isso a baixeza revelada pelo solvens
priva-o da tutela legal.”22
Percebe-se, portanto, que, de acordo com a disposição legal,
ao Direito Civil não interessa tutelar aquele que agiu de forma torpe.
Sabe-se, também, que o Direito Civil é um minus em comparação
ao Direito Penal.
Dessa forma, se a própria lei civil não protege aquele que agiu
de maneira torpe, impedindo que se veja restituído daquilo que
efetivamente pagou a fim de alcançar o seu propósito ilícito, poderia
o Direito Penal protegê-lo, a exemplo do que ocorre com o delito de
estelionato?
Sabemos que no tipo penal que prevê o crime de estelionato
temos o patrimônio como bem juridicamente protegido. A vítima,
portanto, se vê resguardada da perda patrimonial em razão da
ameaça da pena exercida pelo mais repressor de todos os ramos do
ordenamento jurídico – o Direito Penal.
No entanto, aquele que também agia de forma torpe, buscando
uma finalidade ilícita ou imoral, poderia ver também protegido seu
patrimônio, com a punição daquele que, mediante fraude,
prometendo, por exemplo, executar uma ação ilícita em benefício da
suposta vítima, causou-lhe lesão patrimonial?
Existe controvérsia doutrinária no que diz respeito à punição do
agente pelo delito de estelionato quando ocorrer, no caso concreto,
a chamada torpeza bilateral. Hungria, com seu brilhantismo e
imaginação, oferece uma coleção de exemplos nesse sentido, a
saber:
“Um
indivíduo,
inculcando-se
assassino
profissional,
ardilosamente obtém de outro certa quantia para matar um seu
inimigo, sem que jamais tivesse o propósito de executar o
crime: um falso vendedor de produtos farmacêuticos impinge,
por bom preço, a uma faiseuse d’anges, como eficiência
abortiva, substâncias inócuas; a cafetina recebe dinheiro do
velho libertino, prometendo levar-lhe à alcova uma virgem,
quando na realidade o que lhe vem a proporcionar é uma jovem
meretriz; o simulado falsário capta o dinheiro de outrem, a
pretexto de futura entrega de cédulas falsas ou em troca de
máquina para fabricá-las, vindo a verificar-se que aquelas não
existem ou esta não passa de um truque (conto da guitarra); o
vigarista consegue trocar por bom dinheiro o paco que o otário
julga conter uma fortuna, de que se vai locupletar à custa da
ingenuidade daquele; o cliente da prostituta não lhe paga o
pretium carnis, tendo ocultado não dispor de dinheiro para fazêlo.”23
Entendemos que, nesses casos, não seria possível a punição
do agente pelo crime de estelionato, sob pena de incorrermos em
absurdos jurídicos. Assim, por exemplo, somente ficaria livre da
punição pelo estelionato o agente que, no exemplo fornecido por
Hungria, viesse, efetivamente, a matar a pessoa para qual havia
sido contratado ou que fornecesse a substância efetivamente
abortiva etc.
Se o próprio Direito Civil não se ocupa dessas questões que
envolvem a torpeza da suposta vítima, conforme se verifica pela
leitura do citado art. 883, que dirá o Direito Penal!
Ainda seguindo as lições de Hungria:
“O patrimônio individual cuja lesão fraudulenta constitui o
estelionato é o juridicamente protegido, e somente goza da
proteção do direito o patrimônio que serve a um fim legítimo,
dentro de sua função econômico-social. Desde o momento que
ele é aplicado a um fim ilícito ou imoral, a lei, que é a expressão
do direito como mínimo ético indispensável ao convívio social,
retira-lhe o arrimo, pois, de outro modo, estaria faltando a sua
própria finalidade.”24
Dessa forma, filiamo-nos à posição assumida por um dos
maiores penalistas que nosso país já conheceu.
No entanto, a posição hoje majoritária entende pela existência
do delito de estelionato, não importando a má-fé do ofendido, ou
seja, se a sua finalidade também era torpe (ilegal, imoral etc.).
Fernando Capez, adepto dessa segunda corrente, resume suas
ideias argumentando que a punição do agente que obteve a
vantagem deve ser levada a efeito pelo Direito Penal porque: “a) o
autor revela maior temibilidade, pois, ilude a vítima e lhe causa
prejuízo; b) não existe compensação de condutas no Direito Penal,
devendo punir-se o sujeito ativo e, se for o caso, também a vítima;
c) a boa-fé do lesado não constitui elemento do tipo do crime de
estelionato; d) o dolo do agente não pode ser eliminado apenas
porque houve má-fé, pois a consciência e vontade finalística de
quem realiza a conduta independe da intenção da vítima.”25
Deve-se frisar, no entanto, que nem sempre que a vítima quiser
“levar vantagem” sobre o agente, profissional do crime e, com isso,
vier a ser prejudicada, o fato poderá ser considerado hipótese de
torpeza bilateral.
Imagine-se o exemplo daquele que, afirmando morar em uma
cidade distante da capital, aborda a vítima trazendo consigo um
bilhete que dizia estar premiado. Sob o argumento de que não
poderia esperar a abertura da instituição bancária responsável pelo
pagamento do prêmio, pois deveria viajar imediatamente, estando,
inclusive, com sua passagem já comprada, indaga se a vítima quer
comprá-lo por um preço inferior ao que seria efetivamente pago.
Buscando o lucro fácil, a vítima, supondo estar aproveitando “uma
oportunidade”, anui ao pedido e compra o bilhete falso. Nesse caso,
não vemos torpeza na conduta da vítima, a ponto de afastar-lhe a
proteção do Direito Penal. Havia, sim, é obvio, a intenção de lucrar
em virtude da suposta necessidade pela qual passava o
estelionatário. Não houve, aqui, qualquer comportamento ilícito,
razão pela qual, embora almejando o lucro fácil, estaria afastada a
torpeza bilateral, permitindo-se a punição do agente pelo crime de
estelionato.
Ao contrário, imagine-se alguém sendo julgado pelo delito de
estelionato porque a vítima havia sido por ele enganada, pagando
por uma remessa de substâncias entorpecentes que nunca chegou.
Seria um absurdo jurídico, com a devida vênia das posições em
contrário.
Embora o Código Civil englobe a finalidade imoral do agente
como impeditiva da repetição, entendemos que a torpeza bilateral
somente se aplica aos atos considerados ilícitos. Assim, por
exemplo, se o agente contrata os serviços de uma prostituta e,
depois do ato sexual, confessa que não possui condições
financeiras para pagar-lhe, como a prostituição em si pode ser
considerada um comportamento lícito, isto é, que não contraria o
ordenamento jurídico-penal, entendemos ser possível, aqui, a sua
punição pelo crime de estelionato, ao contrário, como vimos,
daquele que paga por uma remessa de substância entorpecente,
que nunca chegará, pois, se efetivamente recebesse a “mercadoria”,
estaria praticando um comportamento penalmente ilícito.
1.12.2
Estelionato e falsidade documental
Não é incomum que o agente, a fim de obter a vantagem ilícita,
em prejuízo alheio, utilize falsidade documental, sendo esta,
portanto, o meio hábil para que possa ter êxito na empresa
criminosa.
Nesse caso, indaga-se: Deveria o agente responder pelas duas
infrações penais, em concurso de crimes? Na verdade, aqui se
formaram cinco posições.
A primeira, defendida por Hungria, entende que, em virtude da
natureza formal do delito de falso, o agente deveria ser tão somente
por ele responsabilizado, afastando-se, outrossim, a punição pelo
delito de estelionato, pois que, segundo o renomado penalista:
“Quando a um crime formal se segue o dano efetivo, não surge
novo crime: o que acontece é que ele se exaure, mas
continuando a ser único e o mesmo (à parte a sua maior
punibilidade, quando a lei expressamente o declare). A
obtenção de lucro ilícito mediante falsum não é mais que um
estelionato qualificado pelo meio (IMPALOMENI). É um
estelionato que, envolvendo uma ofensa à fé pública, adquire o
nomen juris de ‘falsidade’. Se alguém se limita, ao enganar
outrem numa transação, a pagar, por exemplo, com cédulas
falsas, ou a servir-se de uma falsa cambial de terceiro, o crime
único que comete é o de introdução de moeda falsa ou de uso
de documento falso.”26
A segunda posição entende pelo concurso material de crimes,
haja vista que, no momento anterior à sua utilização, como meio
para a prática do estelionato, já estava consumada a falsidade
documental, sem falar que as mencionadas infrações penais
ofendem bens jurídicos diferentes, vale dizer, o delito de falsidade
documental atinge a fé pública, enquanto o estelionato atinge o
patrimônio. Poderá ainda ser considerada a distância temporal entre
a prática do falso e a sua utilização no crime de estelionato.
A terceira posição adota a tese do concurso formal de crimes
quando o falso é um meio para a prática do crime de estelionato.
A quarta posição, em nossa opinião a que melhor atende às
exigências de política criminal, afirma que o crime-fim (estelionato)
deverá absorver o crime-meio (falsidade documental). Na verdade, o
agente somente levou a efeito a falsidade documental para que
pudesse ter sucesso na prática do crime de estelionato, razão pela
qual deverá responder tão somente por esta última infração penal. O
maior problema nesse raciocínio é que, em muitas situações, as
penas previstas para o crime-meio serão maiores do que aquelas
previstas para o delito-fim. Assim, considerando que a gravidade da
infração penal é medida pela pena a ela cominada que,
consequentemente, deverá variar de acordo com a importância do
bem jurídico protegido, o agente seria punido, algumas vezes, por
infração de menor gravidade, enquanto a de maior gravidade ficaria
impune, a exemplo do que ocorre com o estelionato praticado
mediante a falsificação de um documento público, prevista no art.
297 do Código Penal, que comina uma pena de reclusão de 2 (dois)
a 6 (seis) anos, e multa, enquanto o estelionato, considerado como
o fim último do agente, tipificado no art. 171 do Código Penal,
comina uma pena de reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa.
Podemos considerar, ainda, como quinta posição, aquela
assumida pelo Superior Tribunal de Justiça, constante da Súmula nº
17, que diz:
Súmula nº 17. Quando o falso se
exaure no estelionato, sem mais
potencialidade lesiva, é por este
absorvido.
Assim, de acordo com o entendimento sumulado, somente se
poderá cogitar de absorção do crime-meio (falsidade) pelo crime-fim
(estelionato) quando não restar, depois da sua utilização, qualquer
potencialidade ofensiva. Assim, por exemplo, aquele que, depois de
encontrar um cheque em branco, adquirir uma mercadoria qualquer,
pelo fato de ter-se esgotado a sua potencialidade lesiva, a falsidade
relativa à emissão do cheque ficaria absorvida pelo estelionato. Ao
contrário, imagine-se a hipótese daquele que, mediante a utilização
de uma carteira de identidade falsa, adquirisse a mesma mercadoria
em prestações. A carteira de identidade falsa, utilizada para que
pudesse abrir o crediário em seu nome e, com isso, trazer prejuízo
ao proprietário da coisa, pois não era a sua intenção honrar com os
pagamentos, ainda tinha potencialidade lesiva, ou seja, ainda
poderia ser utilizada na prática de outros delitos, razão pela qual
deverá ser reconhecido o concurso de crimes, discutindo-se se
formal ou material.
1.12.3
Estelionato e apropriação indébita
Já tivemos oportunidade de destacar a diferença entre os
crimes de estelionato e apropriação indébita quando fizemos a
análise deste último. Assim, para efeitos de consolidação de
raciocínio, podemos afirmar que no estelionato o dolo do agente
surge antes que ele tenha a posse da coisa; ao contrário, para que
se configure a apropriação indébita, é preciso que o agente, nos
termos do art. 168 do Código Penal, já esteja com a posse ou
detenção da coisa, surgindo, depois disso, a vontade de dela se
apropriar.
Conforme destaca Hungria:
“Na apropriação indébita, o dolo é subsequens; no estelionato é
antecedens. Para que se reconheça o estelionato, é
imprescindível que o emprego dos meios fraudulentos seja a
causa da entrega da coisa. Assim, quando, licitamente obtida a
posse da coisa, o agente dispõe dela ut dominus e, em seguida,
usa de meios fraudulentos para dissimular a apropriação
indébita, este é o nomen juris que prevalece, e não o
estelionato.”27
Merece frisar que, além do momento de surgimento do dolo,
também se pode dizer que o objeto do estelionato é muito mais
extenso do que o da apropriação indébita, haja vista que, neste
último caso, somente pode ser objeto de apropriação a coisa alheia
móvel, enquanto no estelionato a lei penal menciona a obtenção de
vantagem ilícita, podendo esta se traduzir em móveis, ou até mesmo
imóveis.
Para maiores detalhes, remetemos o leitor ao tópico
correspondente aos destaques do crime de apropriação indébita.
1.12.4
Estelionato e jogo de azar
Pode ocorrer que, durante a prática de um jogo de azar, a
vítima seja enganada pelo agente, que se vale de meios
fraudulentos com o fim de obter vantagem ilícita em seu prejuízo.
Nesse caso, poderia o agente responder pelo delito de estelionato
ou seria aplicado, aqui, o raciocínio levado a efeito anteriormente,
correspondente à torpeza bilateral?
À primeira vista, poderíamos concluir que, sendo ilícito o jogo
de azar, deveria ser aplicado o raciocínio relativo à torpeza bilateral,
não podendo o Estado, outrossim, tutelar relações que lhe fossem
contrárias. No entanto, no que diz respeito especificamente ao jogo
de azar, o Código Civil regulamentou tal situação dizendo, em seu
art. 814, verbis:
Art. 814. As dívidas de jogo ou de
aposta não obrigam a pagamento;
mas não se pode recobrar a quantia,
que voluntariamente se pagou, salvo
se foi ganha por dolo, ou se o
perdente é menor ou interdito.
Em razão da expressão salvo se foi ganha por dolo, entende-se
que, nessa hipótese, se a vítima sofreu prejuízo no jogo em virtude
da fraude utilizada pelo agente, como a própria lei civil ressalva a
possibilidade de sua recuperação, também seria razoável permitirse a punição do agente pelo delito de estelionato.
Nesse sentido, já decidiu o Supremo Tribunal Federal, em
acórdão relatado pelo Min. Cordeiro Guerra, publicado na RTJ,
85/1.050, conforme ementa abaixo transcrita:
“No estelionato o meio de ataque ao
patrimônio é a astúcia, o engodo e a
fraude. No jogo de azar a fraude,
eliminando o fator sorte, tira ao sujeito
passivo toda a possibilidade de
ganho. O jogo torna-se, então,
simples roupagem, para mise-enscène, destinada a ocultar o
expediente de que se serve o
criminoso para iludir a vítima
(Desembargador Manoel da Costa
Leite – in Manual das Contravenções
Penais). O jogo da chapinha, ou o
‘jogo do pinguim’ são formas do
estelionato e não mera contravenção
do art. 50 da Lei das Contravenções
Penais.”
Na verdade, há de ser ressalvada a possibilidade da prática do
estelionato quando se estiver diante de jogos considerados lícitos;
ao contrário, na hipótese de jogos ilícitos, mantendo-se o argumento
expendido quando do estudo da torpeza bilateral, não haverá
infração penal a ser perseguida pelo Estado.
1.12.5
Estelionato e furto de energia elétrica
Merece destaque, no que diz respeito à energia elétrica, que o
fato poderá se configurar no delito de furto ou mesmo no crime de
estelionato, dependendo do momento em que a corrente é desviada
em benefício do agente.
Dessa forma, aquele que desvia a corrente elétrica antes que
ela passe pelo registro comete o delito de furto. É o que ocorre,
normalmente, naquelas hipóteses em que o agente traz a energia
para sua casa diretamente do poste, fazendo aquilo que
popularmente é chamado de “gato.” A fiação é puxada, diretamente,
do poste de energia elétrica para o lugar onde se quer usá-la, sem
que passe por qualquer medidor.
Ao contrário, se a ação do agente consiste, como adverte
Noronha:
“Em modificar o medidor, para acusar um resultado menor do
que o consumido, há fraude, e o crime é estelionato,
subentendido, naturalmente, o caso em que o agente está
autorizado, por via de contrato, a gastar energia elétrica. Usa
ele, então, de artifício que induzirá a vítima a erro ou engano,
com o resultado fictício, do que lhe advém vantagem ilícita.”28
1.12.6
Estelionato e curandeirismo
O crime de curandeirismo vem tipificado no art. 284 e incisos do
Código Penal, assim redigidos, verbis:
Art. 284. Exercer o curandeirismo:
I – prescrevendo, ministrando ou
aplicando, habitualmente, qualquer
substância;
II – usando gestos, palavras ou
qualquer outro meio;
III – fazendo diagnósticos;
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a
2 (dois) anos.
A diferença fundamental entre o curandeiro e o estelionatário
reside no fato de que aquele acredita que com suas fórmulas,
poções, gestos etc. conseguirá, realmente, resolver os problemas
(físicos, psicológicos, amorosos etc.) que acometem a vítima,
enquanto o estelionatário as utiliza sabendo que nada resolverá,
pois almeja, tão somente, aproveitar-se do momento de fraqueza
pelo qual passa a vítima, a fim de obter alguma vantagem ilícita em
prejuízo desta.
1.12.7
Estelionato e inimputabilidade da vítima
Para que se possa levar a efeito o raciocínio relativo ao crime
de estelionato, é preciso que a vítima seja induzida ou mesmo
mantida em erro pelo agente que, para tanto, se vale do emprego de
fraude.
O erro, como já dissemos anteriormente, significa um
conhecimento equivocado da realidade. Dessa forma, somente
podem ter um conhecimento equivocado aqueles que tiverem
capacidade de discernimento, o que não ocorre com os
inimputáveis.
Assim, se o agente pratica o crime em detrimento de um
inimputável, que não tenha capacidade de discernimento, o crime de
estelionato restará afastado, desclassifi-cando-se o fato para uma
outra figura típica, a exemplo do delito de abuso de incapazes,
tipificado no art. 173 do Código Penal, assim redigido: Abusar, em
proveito próprio ou alheio, de necessidade, paixão ou inexperiência
de menor, ou da alienação ou debilidade mental de outrem,
induzindo qualquer deles à prática de ato suscetível de produzir
efeito jurídico, em prejuízo próprio ou de terceiro.
Conforme ressalta Cezar Roberto Bitencourt:
“Se a vítima não tiver capacidade de autodeterminação, como a
criança ou o débil mental, o crime será o do art. 173 do CP. Se,
no entanto, não tiver capacidade natural de ser iludida, como,
por exemplo, ébrio em estado de coma, o crime será o de
furto.”29
1.12.8
Crime impossível
A fraude é a característica fundamental do delito de estelionato.
Pode ocorrer, no entanto, que o agente, a fim de obter uma
vantagem ilícita, em prejuízo alheio, se valha de uma fraude
grosseira, chegando mesmo a ser risível. Nesse caso, poderia
responder pela tentativa de estelionato?
O art. 17 do Código Penal cuida do chamado crime impossível
dizendo:
Art. 17. Não se pune a tentativa
quando, por ineficácia absoluta do
meio ou por absoluta impropriedade
do objeto, é impossível consumar-se o
crime.
Entendemos que a fraude grosseira, perceptível à primeira vista
como incapaz de enganar qualquer pessoa de inteligência normal,
se amolda ao raciocínio correspondente ao crime impossível. O
meio utilizado, portanto, para que se possa levar a efeito o raciocínio
correspondente ao crime impossível, deve ser absolutamente
incapaz de induzir ou manter a vítima em erro, pois, se for relativa
essa possibilidade, poderemos concluir pela tentativa.
Portanto, não há necessidade de que o meio utilizado pelo
agente na prática do estelionato seja uma “obra de arte”, contanto
que seja hábil o suficiente para enganar as pessoas, induzindo-as
ou mantendo-as em erro.
O Superior Tribunal de Justiça, por meio da Súmula nº 73, no
que diz respeito à falsificação grosseira de papel-moeda, assim se
manifestou:
Súmula nº 73. A utilização de papelmoeda grosseiramente falsificado
configura, em tese, o crime de
estelionato, da competência da
Justiça Estadual.
Uma observação deve ser feita com relação ao entendimento
sumular. Quando o Tribunal Superior faz menção a papel-moeda
grosseiramente falsificado, está se referindo àquele que, embora
não possa ser tipificado como delito de moeda falsa, cujas penas
cominadas são quase três vezes maiores do que as previstas para o
estelionato, se presta para iludir, enganar as pessoas, não havendo,
pois, que se falar em crime impossível.
Caso a falsificação seja tão grosseira a ponto de não conseguir
enganar o mais simplório dos cidadãos, o fato deverá ser tratado
como hipótese de crime impossível.
1.12.9
Endosso em cheque sem suficiente provisão de fundos
Aquele que endossa um cheque sabidamente sem suficiente
provisão de fundos pratica o delito tipificado no inciso VI do § 2º do
art. 171 do Código Penal? Existe controvérsia doutrinária também
nesse sentido.
Noronha, de um lado,
comportamento do endossante:
entende
pela
tipicidade
do
“O endossador pode cometer o crime em apreço. É exato falar
a lei em emissão – emite cheque. Mas a expressão deve ser
tomada em sentido amplo, considerando-se o fim que aquela
teve em vista.”30
Damásio de Jesus, em sentido contrário ao de Noronha, afirma:
“Não cremos possa o endossante ser sujeito ativo do crime, não
obstante opiniões em contrário. Sem recurso à analogia,
proibida na espécie, não se pode afirmar que a conduta de
endossar ingressa no núcleo emitir, considerando-se o endosso
como segunda emissão.”31
Somos partidários da última posição, haja vista que, conforme
salientado por Damásio de Jesus, não se pode compreender no
núcleo emitir, característico da fraude no pagamento por meio de
cheque, a conduta de endossar.
A nosso ver, aquele que, conhecedor da ausência de suficiência
de fundos, endossa o cheque entregando-o à terceira pessoa
deverá responder pelo crime de estelionato, em sua modalidade
fundamental, prevista no caput do art. 171 do Código Penal.
1.12.10 A Súmula nº 554 do STF
A Súmula nº 554 do STF possui a seguinte redação:
Súmula nº 554. O pagamento de
cheque emitido sem provisão de
fundos, após o recebimento
denúncia,
não
obsta
prosseguimento da ação penal.
da
ao
Numa interpretação a contrario sensu da referida Súmula,
chegamos à conclusão de que não será possível o início da ação
penal se o agente efetuar o pagamento relativo ao cheque por ele
emitido sem suficiente provisão de fundos, até o recebimento da
denúncia.
Saliente-se, contudo, que a referida Súmula já havia sido
publicada anteriormente à vigência da nova parte geral do Código
Penal, que inovou nosso ordenamento jurídico com a criação do
instituto do arrependimento posterior como causa obrigatória de
redução da pena, quando haja reparação do dano ou restituição da
coisa, nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça, até o
recebimento da denúncia ou da queixa.
A indagação que surge agora é a seguinte: Terá aplicação a
súmula nº 554 do STF, mesmo diante do instituto do arrependimento
posterior?
A maior parte de nossos doutrinadores entende de forma
positiva, opinando pela aplicação da Súmula nos casos específicos
de cheques emitidos sem suficiente provisão de fundos, ficando as
demais situações regidas pelo art. 16 do Código Penal, quando a
ele se amoldarem.
Pronunciando-se sobre essa questão, decidiu o STF:
“O advento do art. 16 da nova Parte Geral do Código Penal não
é incompatível com a aplicação das Súmulas 246 e 554, que
devem ser entendidas complementarmente aos casos em que
se verifiquem os seus pressupostos. Não há justa causa para a
ação penal, se pago o cheque emitido sem suficiente provisão
de fundos, antes da propositura da ação penal, a proposta
acusatória não demonstra que houve fraude no pagamento por
meio de cheque, não configurando, portanto, o crime do art.
171, § 2º, VI, do Código Penal.”32
O entendimento sumulado e ratificado posteriormente pelo STF
diz respeito tão somente aos cheques emitidos sem suficiente
provisão de fundos, e não àqueles falsamente preenchidos por
estelionatários que não praticam, como sabemos, a infração penal
prevista no inciso VI do § 2º do art. 171 do Código Penal, mas, sim,
aquela tipificada em seu caput.
Nessa hipótese, embora fique afastada a aplicação da Súmula
nº 554, que impede o início da persecutio criminis in judicio, poderá
o agente beneficiar-se com a redução relativa ao arrependimento
posterior, caso venha a reparar o dano por ele causado até o
recebimento da denúncia.
1.12.11 Cola eletrônica e estelionato
A imprensa tem divulgado, com certa frequência, a prática
daquilo que se convencionou chamar de cola eletrônica. Candidatos
prestavam concursos públicos, provas vestibulares etc. com um
“ponto” de escuta no ouvido, onde as respostas das questões lhe
eram repassadas por algum expert, que as corrigia em outro
ambiente.
Antes do advento da Lei nº 12.550, de 15 de dezembro de
2011, que criou o delito de fraudes em certames de interesse
público, inserindo o art. 311-A no Código Penal, nossos Tribunais
Superiores entendiam como atípico esse comportamento, não
visualizando o delito de estelionato, como preconizava parte de
nossa doutrina.
Hoje, a discussão perdeu o sentido, uma vez que existe tipo
penal específico, ou seja, o art. 311-A do Código Penal, razão pela
qual a anotação somente tem interesse em termos de aplicação da
lei penal, ou seja, os fatos que antecederam a entrega em vigor da
Lei nº 12.550, de 15 de dezembro de 2011 são considerados
atípicos, não se podendo retroagir a fim de alcançá-los, somente
havendo responsabilidade penal para aqueles cometidos após a
entrada em vigor do citado diploma legal.
Nesse sentido, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:
“A conduta de fraudar concurso público por meio da utilização
da cola eletrônica praticada antes da vigência da Lei nº
12.550/2011, nada obstante contenha alto grau de reprovação
social, na linha da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
e desta Egrégia Corte, é atípica” (HC 208.969/SP, Habeas
Corpus 2011/0128966-5, 5ª T., Rel. Min. Moura Ribeiro, DJe
11/11/2013).
1.12.12 Estelionato e Código Penal Militar
O crime de estelionato também veio previsto no Código Penal
Militar (Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969), conforme
se verifica pela leitura do seu art. 251.
1.12.13 Estelionato e Estatuto do Torcedor
O art. 41-E, que foi incluído no Estatuto do Torcedor (Lei nº
10.671, de 15 de maio de 2003), pela Lei nº 12.299, de 27 de julho
de 2010, criou uma modalidade específica de fraude, punindo com
pena de reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos e multa, aquele que
fraudar, por qualquer meio, ou contribuir para que se fraude, de
qualquer forma, o resultado de competição esportiva.
1.12.14 Estelionato e Sistema Financeiro Nacional
O art. 6º da Lei nº 7.492, de 16 de junho de 1986, que define os
crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, comina uma pena de
reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa, para aquele que induz
ou mantém em erro, sócio, investidor ou repartição pública,
relativamente à operação ou situação financeira, sonegando-lhe
informação ou prestando-a falsamente.
1.12.15 Estelionato e falência
O art. 168 da Lei que regula a recuperação judicial, a
extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária
(Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005) pune com pena de
reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa, quem praticar, antes
ou depois da sentença que decretar a falência, conceder a
recuperação judicial ou homologar a recuperação extrajudicial, ato
fraudulento de que resulte ou possa resultar prejuízo aos credores,
com o fim de obter ou assegurar vantagem indevida para si ou para
outrem.
1.12.16 Competência para processo e julgamento e Súmulas dos
Tribunais Superiores
Súmula nº 521 – STF. O foro
competente para o processo e o
julgamento dos crimes de estelionato,
sob a modalidade da emissão dolosa
de cheque sem provisão de fundos, é
o do local onde se deu a recusa do
pagamento pelo sacado.
Súmula nº 244 – STJ. Compete ao
foro do local da recusa processar e
julgar o crime de estelionato mediante
cheque sem provisão de fundos.
Súmula nº 48 – STJ. Compete ao
juízo do local da obtenção da
vantagem ilícita processar e julgar
crime
de
estelionato
cometido
mediante falsificação de cheque.
1.12.17 Competência do estelionato praticado mediante depósito,
mediante emissão de cheques sem suficiente provisão de
fundos em poder do sacado ou com o pagamento frustrado
ou mediante transferência de valores
Diz o §4º, do art. 70 do Código de Processo Penal, com a
redação que lhe foi conferida pela Lei nº 14.155, de 27 de maio de
2021, verbis:
Art. 70 (...)
§ 4º. Nos crimes previstos no art. 171
do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de
dezembro de (Código Penal), quando
praticados
mediante
depósito,
mediante emissão de cheques sem
suficiente provisão de fundos em
poder do sacado ou com o pagamento
frustrado ou mediante transferência
de valores, a competência será
definida pelo local do domicílio da
vítima, e, em caso de pluralidade de
vítimas, a competência firmar-se-á
pela prevenção.”
1.12.17.1 Jurisprudência em teses do Superior Tribunal de Justiça,
edição nº 84: Crimes contra o Patrimônio III – Estelionato
1)
2)
Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais
potencialidade lesiva, é por este absorvido. (Súmula nº
17/STJ)
O princípio da insignificância é inaplicável ao crime de
estelionato quando cometido contra a Administração
Pública, uma vez que a conduta ofende o patrimônio
público, a moral administrativa e a fé pública, possuindo
elevado grau de reprovabilidade.
3)
4)
5)
6)
7)
8)
Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar
crime de estelionato praticado mediante falsificação das
guias de recolhimento das contribuições previdenciárias,
quando não ocorrente lesão à autarquia federal. (Súmula nº
107/STJ)
O delito de estelionato previdenciário (art. 171, § 3º, do
CP), praticado pelo próprio beneficiário, tem natureza de
crime permanente uma vez que a ofensa ao bem jurídico
tutelado é reiterada, iniciando-se a contagem do prazo
prescricional com o último recebimento indevido da
remuneração.
O delito de estelionato previdenciário, praticado para que
terceira pessoa se beneficie indevidamente, é crime
instantâneo com efeitos permanentes, iniciando-se a
contagem do prazo prescricional a partir da primeira
parcela do pagamento relativo ao benefício indevido.
Aplica-se a regra da continuidade delitiva (art. 71 do CP) ao
crime de estelionato previdenciário praticado por terceiro,
que após a morte do beneficiário segue recebendo o
benefício regularmente concedido ao segurado, como se
este fosse, sacando a prestação previdenciária por meio de
cartão magnético todos os meses.
A devolução à Previdência Social da vantagem percebida
ilicitamente, antes do recebimento da denúncia, não
extingue a punibilidade do crime de estelionato
previdenciário, podendo, eventualmente, caracterizar
arrependimento posterior, previsto no art. 16 do CP.
O ressarcimento integral do dano no crime de estelionato,
na sua forma fundamental (art. 171, caput, do CP), não
enseja a extinção da punibilidade, salvo nos casos de
emissão de cheque sem fundos, em que a reparação
9)
10)
11)
12)
13)
1.13
ocorra antes do oferecimento da denúncia (art. 171, § 2º,
VI, do CP).
O delito de estelionato é consumado no local em que se
verifica o prejuízo à vítima.
Compete ao foro do local da recusa processar e julgar o
crime de estelionato mediante cheque sem provisão de
fundos. (Súmula nº 244/STJ)
A emissão de cheques pré-datados, como garantia de
dívida e não como ordem de pagamento à vista, não
constitui crime de estelionato previsto no art. 171, § 2º, VI,
do CP, uma vez que a matéria deixa de ter interesse penal
quando não há fraude, conforme a Súmula nº 246/STF.
O pagamento de cheque emitido sem provisão de fundos,
após o recebimento da denúncia, não obsta ao
prosseguimento da ação penal. (Súmula nº 554/STF)
A utilização de papel-moeda grosseiramente falsificado
configura, em tese, o crime de estelionato, da competência
da Justiça Estadual. (Súmula nº 73/STJ)
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: qualquer pessoa.
Passivo: qualquer pessoa
(desde que determinada e
com
capacidade
discernimento).
de
Objeto material
Quaisquer elementos (bens
móveis ou imóveis, direitos etc.)
do patrimônio alheio.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
Patrimônio alheio.
Elemento subjetivo
»
É o dolo.
»
Não há previsão para a
modalidade de natureza
culposa.
Modalidades
omissiva
»
»
»
comissiva
e
A conduta típica de obter
vantagem
ilícita
em
prejuízo alheio é praticada
mediante a fraude do
agente, que induz ou
mantém a vítima em erro.
A indução pressupõe um
comportamento comissivo.
Por outro lado, a conduta
de manter a vítima em erro
pode
ser
praticada
omissivamente.
Consumação e tentativa
»
»
»
Tem-se por consumado o
estelionato,
em
sua
modalidade básica, quando
o agente consegue obter a
vantagem
ilícita,
em
prejuízo da vítima.
Há
necessidade,
para
efeitos de reconhecimento
de
consumação
do
estelionato, da afirmação
do
binômio
vantagem
ilícita/prejuízo alheio.
Se, no entanto, depois de
iniciados os atos de
execução configurados na
fraude
empregada
na
prática do delito, o agente
não conseguir obter a
vantagem ilícita em virtude
de circunstâncias alheias à
sua vontade, o crime
restará tentado.
2.
DUPLICATA SIMULADA
Duplicata simulada Art. 172. Emitir
fatura, duplicata ou nota de venda que
não corresponda à mercadoria
vendida, em quantidade ou qualidade,
ou ao serviço prestado.
Pena – detenção, de 2 (dois) a 4
(quatro) anos, e multa.
Parágrafo único. Nas mesmas penas
incorrerá aquele que falsificar ou
adulterar a escrituração do Livro de
Registro de Duplicatas.
2.1
Introdução
O preceito secundário do art. 172 do Código Penal comina uma
pena de detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa, para
aquele que, de acordo com a nova redação dada pela Lei nº 8.137,
de 27 de dezembro de 1990, emitir fatura, duplicata ou nota de
venda que não corresponda à mercadoria vendida, em quantidade
ou qualidade, ou ao serviço prestado.
A Lei nº 5.474, de 18 de julho de 1968, que dispõe sobre as
duplicatas e dá outras providências, determina, em seus arts. 1º e
2º, verbis:
Art. 1º Em todo contrato de compra e
venda
mercantil
entre
partes
domiciliadas no território brasileiro,
com prazo não inferior a 30 (trinta)
dias, contada da data da entrega ou
despacho
das
mercadorias,
o
vendedor extrairá a respectiva fatura
para apresentação ao comprador.
§ 1º A fatura discriminará as
mercadorias vendidas ou, quando
convier
ao
vendedor,
indicará
somente os números e valores das
notas parciais expedidas por ocasião
das vendas, despachos ou entregas
das mercadorias.
Art. 2º No ato da emissão da fatura,
dela poderá ser extraída uma
duplicata para circulação como efeito
comercial, não sendo admitida
qualquer outra espécie de título de
crédito para documentar o saque do
vendedor pela importância faturada ao
comprador.
Analisando a figura típica do art. 172 do Código Penal,
podemos apontar os seguintes elementos: a) a conduta de emitir
fatura, duplicata ou nota de venda; b) a falta de correspondência
com a mercadoria vendida, em quantidade ou qualidade, ou com o
serviço prestado.
O núcleo emitir, utilizado pelo delito em estudo, tem o
significado de colocar em circulação. Wille Duarte Costa,
dissertando sobre o tema, esclarece:
“A duplicata é um título de crédito causal e à ordem, que pode
ser criada no ato da extração da fatura, para circulação como
efeito comercial, decorrente da compra e venda mercantil ou da
prestação de serviços, não sendo admitida outra espécie de
título de crédito para documentar o saque do vendedor ou
prestador de serviços pela importância faturada ao comprador
ou ao beneficiário dos serviços.
A duplicata admite o aceite do devedor e não é cópia ou
segunda via da fatura. Nela não se discriminam as mercadorias
vendidas ou serviços prestados, o que deve ser feito na nota
fiscal ou na fatura correspondente. Como título de crédito à
ordem que é, pode circular por via do endosso, mas o sacador
não pode eximir-se da garantia de pagamento ao endossar a
duplicata. Embora seja um título causal, não é a duplicata título
representativo de mercadorias ou de serviços. Exige uma
provisão determinada, que se consubstancia no valor da
compra e venda de mercadorias ou da prestação de serviços,
discriminados na fatura e na nota fiscal. Sem tal provisão a
duplicata torna-se sem lastro e é chamada de fria, constituindose em crime de estelionato previsto no art. 172 do Código
Penal, por emissão de duplicata simulada.”33
A fatura, duplicata ou nota de venda colocada em circulação,
para que se configure na infração penal em estudo, não deve
corresponder à mercadoria vendida, em quantidade ou qualidade,
ou ao serviço prestado. Assim, inexiste sintonia quantitativa quando,
por exemplo, o comerciante vende determinada quantidade de
mercadoria e faz consignar outra; da mesma forma, não haverá
correspondência qualitativa quando vende determinada mercadoria
e consigna outra, de qualidade diferente. Também existe infração
penal quando o prestador de serviços faz inserir serviço diverso do
efetivamente prestado.
Guilherme de Souza Nucci, com acerto, ressalta:
“Por uma imprecisão lamentável, deixou-se de constar
expressamente no tipo que a emissão de fatura, duplicata ou
nota por venda ou serviço inexistente também é crime.
Mencionou-se a emissão que não corresponda à mercadoria
vendida ou ao serviço prestado, como se efetivamente uma
venda ou um serviço tivesse sido realizado. Não faria sentido,
no entanto, punir o emitente por alterar a quantidade ou
qualidade da venda feita e não punir o comerciante que
nenhuma venda fez, emitindo a duplicata, a fatura ou a nota
assim mesmo. Portanto, é de se incluir no contexto a ‘venda
inexistente’ ou o ‘serviço não prestado’. Trata-se de decorrência
natural da interpretação extensiva que se pode – e deve – fazer
do tipo penal.”34
2.2
Classificação doutrinária
Crime próprio, haja vista que o tipo penal delimita o sujeito ativo
àqueles que podem emitir fatura, duplicata ou nota fiscal; doloso;
comissivo (podendo ser praticado via omissão imprópria, na
hipótese de o agente gozar do status de garantidor); formal; de
perigo;
de
forma
livre;
instantâneo;
monossubjetivo;
plurissubsistente; não transeunte.
2.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
O patrimônio é o bem juridicamente protegido pelo delito de
duplicata simulada, tipificado no art. 172 do Código Penal.
Objeto material é a fatura, duplicata ou nota de venda que não
corresponda à mercadoria vendida, em quantidade ou qualidade, ou
ao serviço prestado.
2.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
O sujeito ativo é aquele que emite a fatura, duplicata ou nota de
venda que não corresponda à mercadoria vendida, em quantidade
ou qualidade, ou ao serviço prestado.
O sujeito passivo, conforme esclarece Cezar Roberto
Bitencourt:
“É o recebedor, isto é, quem desconta a duplicata, aquele que
aceita a duplicata como caução, e também o sacado de boa-fé,
que corre o risco de ser protestado. Não é indispensável,
registre-se, a participação na figura delituosa da pessoa contra
quem a duplicata foi emitida. Havendo coautoria entre o
emitente e aceitante, sujeito passivo será quem fez o desconto,
e não o sacado.”35
2.5
Consumação e tentativa
Consuma-se a infração penal em estudo no momento em que a
duplicata é colocada em circulação, sendo apresentada para
desconto, não havendo necessidade de efetivo prejuízo a terceiro.
Para a maioria de nossos doutrinadores, é impossível a
tentativa, pois, conforme afirma Ney Moura Teles, “no momento em
que o título é remetido para a obtenção do aceite ou com seu
endosso, já está consumado. Se, entretanto, foi apenas preenchido
mas permanece em poder do agente, houve apenas atos
preparatórios, impuníveis.”36 Luiz Regis Prado37 afirma ser
impossível a tentativa em razão de o fato se tratar de crime
unissubsistente.
Em sentido contrário, Cezar Roberto Bitencourt38 não descarta
a possibilidade de tentativa, devendo ser analisada caso a caso,
pois, segundo o professor gaúcho, trata-se de infração cujo iter
criminis pode ser fracionado, posição à qual nos filiamos.
Não podemos concordar com a posição assumida por Luiz
Regis Prado quando afirma ser unissubsistente o delito tipificado no
art. 172 do Código Penal. É possível visualizar a hipótese de
fracionamento do iter criminis, destacando-se as fases da cogitação,
dos atos preparatórios, bem como o início da execução, não
havendo, segundo entendemos, concentração dos atos. Dessa
forma, a casuística é que ditará a regra sobre a possibilidade ou
impossibilidade de ocorrência da tentativa, não se podendo, de
antemão, descartá-la.
2.6
Elemento subjetivo
O tipo penal do art. 172 do diploma repressivo somente poderá
ser praticado dolosamente, devendo o agente, portanto, dirigir
finalisticamente sua conduta no sentido de emitir fatura, duplicata ou
nota de venda que não corresponda à mercadoria vendida, em
quantidade ou qualidade, ou ao serviço prestado.
Não há previsão, portanto, para a modalidade de natureza
culposa. Assim, aquele que, por descuido, vier a emitir fatura,
duplicata ou nota de venda em desacordo com a mercadoria
vendida não poderá ser responsabilizado pelo delito em estudo.
2.7
Modalidades comissiva e omissiva
A conduta de emitir fatura, duplicata ou nota de venda que não
corresponda à mercadoria vendida ou ao serviço prestado somente
pode ser praticada comissivamente.
No entanto, dependendo da hipótese concreta, será possível
que o garantidor, devendo e podendo agir, dolosamente, nada faça
para impedir a prática da infração penal, devendo, outrossim, nos
termos do § 2º do art. 13 do Código Penal, por ela responder.
2.8
Falsificação ou adulteração na escrituração do Livro de
Registro de Duplicatas
A exigência para a criação do Livro de Registro de Duplicatas
veio prevista no art. 19 e seus parágrafos, da Lei nº 5.474, de 18 de
julho de 1968, assim redigidos:
Art. 19. A adoção do regime de
vendas de que trata o art. 2º desta lei
obriga o vendedor a ter e escriturar o
Livro de Registro de Duplicatas.
§ 1º No Registro de Duplicatas serão
escrituradas, cronologicamente, todas
as duplicatas emitidas, com o número
de ordem, data e valor das faturas
originárias e data de sua expedição;
nome e domicílio do comprador;
anotações
das
reformas;
prorrogações e outras circunstâncias
necessárias.
§ 2º Os Registros de Duplicatas, que
não
poderão
conter
emendas,
borrões, rasuras ou entrelinhas,
deverão ser conservados nos próprios
estabelecimentos.
§ 3º O Registro de Duplicatas poderá
ser substituído por qualquer sistema
mecanizado, desde que os requisitos
deste artigo sejam observados.
O parágrafo único do art. 172 do Código Penal diz que incorrerá
nas mesmas penas cominadas ao delito de duplicata simulada
aquele que falsificar ou adulterar a escrituração do Livro de Registro
de Duplicatas.
A falsificação é o comportamento praticado pelo agente no
sentido de inserir dados inexatos no Livro de Registro de Duplicatas,
a exemplo do que ocorre com a falsidade ideológica. Assim, o Livro
de Registro de Duplicatas é perfeito; entretanto, a ideia nele lançada
é falsa. A conduta de adulterar diz respeito a modificar o conteúdo já
existente.
Luiz Regis Prado alerta que o legislador não agiu com
propriedade:
“Ao inserir a figura no art. 172, já que se aplica a ela toda a
principiologia do delito de falsum, e a hipótese em questão é de
falsidade de documento particular, equiparado a documento
público (art. 297, § 2º). Ademais, a referida conduta gravita em
torno da expedição da duplicata, sendo absorvida pelo delito
definido no caput do crime em exame, por se tratar de antefato
ou pós-fato impunível.”39
2.9
Pena e ação penal
A pena cominada ao delito de duplicata simulada é de
detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa, sendo idêntica para
aquele que falsifica ou adultera a escrituração do Livro de Registro
de Duplicatas, conforme parágrafo único do art. 172 do Código
Penal.
A ação penal é de iniciativa pública incondicionada.
Deverão ser observadas, no entanto, as disposições contidas
nos arts. 181, 182 e 183 do Código Penal.
2.10
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: é aquele que emite a
fatura, duplicata ou nota de
venda
que
não
corresponda à mercadoria
vendida, em quantidade ou
qualidade, ou ao serviço
prestado.
Passivo: “é o recebedor,
isto é, quem desconta a
duplicata,
aquele
que
aceita a duplicata como
caução, e também o
sacado de boa-fé, que
corre o risco de ser
protestado.
Não
é
indispensável, registre-se,
a participação na figura
delituosa da pessoa contra
quem a duplicata foi
emitida. Havendo coautoria
entre
o
emitente
e
aceitante, sujeito passivo
será quem fez o desconto,
e
não
o
sacado”
(BITENCOURT, 2004, p.
304).
Objeto material
É a fatura, duplicata ou nota de
venda que não corresponda à
mercadoria
vendida,
em
quantidade ou qualidade, ou ao
serviço prestado.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
O patrimônio.
Elemento subjetivo
»
»
É o dolo.
Não há previsão para a
modalidade de natureza
culposa.
Modalidades
omissiva
»
»
comissiva
e
A
conduta
do
delito
somente
pode
ser
praticada comissivamente.
No entanto, dependendo
da hipótese concreta, será
possível que o garantidor,
devendo e podendo agir,
dolosamente, nada faça
para impedir a prática da
infração penal, devendo,
outrossim, nos termos do
art. 13, § 2º, do CP, por ela
responder.
Consumação e tentativa
»
Consuma-se a infração
penal em estudo no
momento
em
que
a
duplicata é colocada em
circulação,
sendo
apresentada
para
desconto, não havendo
necessidade de efetivo
prejuízo a terceiro.
»
Existe controvérsia sobre a
possibilidade de tentativa.
Para nós, a casuística é
que ditará a regra sobre a
possibilidade
ou
impossibilidade
de
ocorrência da tentativa, não
se podendo, de antemão,
descartá-la.
3.
ABUSO DE INCAPAZES
Abuso de incapazes
Art. 173. Abusar, em proveito próprio
ou alheio, de necessidade, paixão ou
inexperiência de menor, ou da
alienação ou debilidade mental de
outrem, induzindo qualquer deles à
prática de ato suscetível de produzir
efeito jurídico, em prejuízo próprio ou
de terceiro:
Pena – reclusão, de dois a seis anos,
e multa.
3.1
Introdução
O art. 173 do Código Penal comina uma pena de reclusão, de 2
(dois) a 6 (seis) anos, e multa, para quem abusar, em proveito
próprio ou alheio, de necessidade, paixão ou inexperiência de
menor, ou da alienação ou debilidade mental de outrem, induzindo
qualquer deles à prática de ato suscetível de produzir efeito jurídico,
em prejuízo próprio ou de terceiro.
De acordo com a redação legal, podemos destacar os
seguintes elementos que integram o delito de abuso de incapazes:
a) conduta de abusar; b) em proveito próprio ou alheio; c) de
necessidade, paixão ou inexperiência de menor, ou da alienação ou
debilidade mental de outrem; d) indução à prática de ato suscetível
de produzir efeito jurídico; e) prejuízo próprio ou de terceiro.
O núcleo abusar é utilizado pelo texto legal no sentido de se
aproveitar, tirar proveito, partido, vantagem da necessidade, paixão
ou inexperiência de menor, ou da alienação ou debilidade mental de
outrem.
O comportamento praticado contra o menor ou o alienado ou
débil mental deve ser levado a efeito em proveito próprio ou mesmo
de terceira pessoa. Existe controvérsia a respeito da natureza desse
proveito. Conforme já salientamos anteriormente, a exemplo do que
ocorre com o art. 171 do Código Penal, o art. 173 do mesmo
estatuto repressivo encontra-se inserido em seu Título II,
correspondente aos crimes contra o patrimônio. Aqui, no entanto,
devemos fazer uma distinção entre proveito e prejuízo, uma vez que
somente este último deve ter natureza patrimonial, tendo em vista a
inserção do art. 173 no Título mencionado. O proveito pode ter
qualquer natureza, até mesmo moral. O prejuízo, ao contrário, para
que se mantenha a objetividade jurídica do artigo, deverá, sem
qualquer sombra de dúvida, ser patrimonial.
Noronha exemplifica, apontando a finalidade do agente que
atua causando um prejuízo patrimonial à vítima, mas que não tinha,
ele próprio, a intenção de obter qualquer proveito dessa natureza:
“Mas esse proveito deverá ser obrigatoriamente patrimonial?
Cremos que não, por isso que o delito não deixa de ser contra o
patrimônio, ainda que o proveito seja puramente moral. Se certo
homem, inimigo de uma família, abusa das paixões do menor, a
ela pertencente, induzindo-o a praticar ato que lhe pode
acarretar a ruína, sem que com isso obtenha lucro, não deixa
de praticar o crime em análise. O delito é patrimonial, porque o
patrimônio é que foi a objetividade jurídica atingida, nada
importando que o agente não tenha auferido vantagem
econômica. O que, a nosso ver, não pode deixar de ser
patrimonial, como dissemos, é o prejuízo da vítima ou de
terceiro. Consequentemente, embora na imensa maioria dos
casos, o proveito seja patrimonial, não cremos que o crime se
desfigure se, ocorrendo todos seus elementos, o proveito não
for dessa natureza.”40
Além disso, o proveito deverá ser injusto, pois, se for devido,
poderá cogitar-se do crime de exercício arbitrário das próprias
razões.
O abuso pode ser dirigido contra menor ou contra alienado ou
débil mental. Se for praticado contra menor, ou seja, aquele que
ainda não completou os 18 (dezoito) anos, o agente se aproveita de
sua necessidade, paixão ou inexperiência, que o torna mais
vulnerável. O agente abusa, portanto, dessas situações de
fragilidade – necessidade, paixão ou inexperiência –, sendo o seu
comportamento mais reprovável. Por necessidade devemos
entender, seguindo as lições de Paulo José da Costa Júnior, como
“qualquer exigência existencial, orgânica, intelectual ou moral.”41 A
paixão, aqui, deve ser entendida como aquele sentimento
arrebatador, que não permite que a vítima tome decisões de forma
racional, agindo impulsionada, quase que de forma dependente às
solicitações do agente. A inexperiência deve ser tomada no sentido
de reconhecer a imaturidade da vítima, a sua falta de “maldade”
para compreender os atos que, se forem praticados, importarão em
prejuízo para si ou para outrem. É a falta de prática da vida ou,
conforme esclarece Cezar Roberto Bitencourt, é a “ausência de
conhecimentos gerais que permitam aquilatar adequadamente todas
as circunstâncias que autorizem uma tomada de decisão no mundo
socioeconômico ou, melhor dito, em toda e qualquer ação,
transação, atividade.”42
A lei penal também protege os alienados ou débeis mentais,
não havendo que se perquirir de sua necessidade, paixão ou
inexperiência, somente avaliáveis na hipótese de ser a vítima menor
de 18 anos.
No entanto, em ambas as hipóteses, o agente deverá saber que
está lidando com um menor de 18 anos ou com pessoa alienada ou
débil mental, pois, caso contrário, poderá incorrer no chamado erro
de tipo, afastando-se a tipicidade de seu comportamento no que diz
respeito ao crime de abuso de incapazes, podendo, contudo,
dependendo do meio por ele utilizado, ser responsabilizado
penalmente pelo crime de estelionato, previsto no caput do art. 171
do Código Penal.
Há necessidade de se fazer a prova nos autos da menoridade
da vítima por meio de documento hábil (certidão de nascimento,
carteira de identidade etc.), bem como da sua debilidade mental, a
não ser, nesse último caso, que seja tão evidente a ponto de ser
dispensado laudo pericial.
O comportamento do agente deve ser dirigido no sentido de
fazer com que a vítima pratique um ato suscetível de produzir efeito
jurídico, em prejuízo próprio ou de terceiro. Luiz Regis Prado
ressalta que:
“Ato suscetível de produzir efeito jurídico é elemento normativo
do tipo de injusto. Questiona-se, destarte, se o ato
juridicamente nulo, decorrente da absoluta incapacidade da
parte, pode integrar o delito, havendo discrepância da doutrina
nesse sentido. No entanto, se fosse admissível a tese de que o
delito não se consuma pela absoluta incapacidade da vítima, o
crime aqui em análise perderia a razão de ser e o art. 173
tornar-se-ia letra morta. É pacífico, porém, o entendimento de
que não há crime quando o ato perpetrado pela vítima é
absolutamente nulo e de nenhum efeito jurídico, por causa
diversa da sua incapacidade, já que o tipo legal exige que o
aludido ato possa acarretar efeitos no mundo do Direito.”43
O prejuízo, sempre de natureza patrimonial, poderá ser sofrido
pelo menor, pelo alienado ou débil mental, ou, ainda, por terceira
pessoa, em razão do ato praticado por aqueles.
Podemos citar como exemplos de atos que causam prejuízo ao
incapaz, ou mesmo à terceira pessoa, o da menor que, apaixonada
por seu namorado, atendendo ao pedido deste último, vende as
joias que lhe foram presenteadas em seu aniversário de 15 anos,
para que ele compre uma motocicleta, ou o do agente que induz
pessoa de idade avançada, em estado senil e doente, a outorgar-lhe
escritura de imóvel de sua propriedade.
3.2
Classificação doutrinária
Crime comum com relação ao sujeito ativo e próprio no que diz
respeito ao sujeito passivo, pois somente os incapazes podem
figurar nessa condição; doloso; formal (haja vista que a sua
consumação ocorre com a efetiva prática, pelo incapaz, de ato
suscetível de produzir efeito jurídico, em prejuízo próprio ou de
terceiro, não se exigindo, contudo, a sua ocorrência); comissivo
(podendo ser praticado por meio de omissão imprópria, na hipótese
de o agente gozar status de garantidor); de forma livre; instantâneo
(podendo, caso o prejuízo sofrido seja irreversível, ser considerado
instantâneo
de
efeitos
permanentes);
monossubjetivo;
plurissubsistente; não transeunte.
3.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
Bem juridicamente protegido é o patrimônio do incapaz, ou de
terceira pessoa que poderia ser prejudicada por meio de seu ato.
Objeto material é o menor ou o alienado ou débil mental, contra
quem é dirigida a conduta praticada pelo agente.
3.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
Com relação ao sujeito ativo, cuida-se de crime comum,
podendo ser praticado por qualquer pessoa, não exigindo o tipo
penal qualquer qualidade ou condição especial ao seu
reconhecimento.
Ao contrário, o sujeito passivo, de acordo com a redação legal,
somente pode ser o menor ou o alienado ou débil mental, que é
induzido pelo sujeito ativo a praticar o ato suscetível de produzir
efeito jurídico, em prejuízo próprio ou de terceiro.
Embora exista controvérsia, entendemos que o menor
emancipado não poderá figurar como sujeito passivo do delito em
estudo, haja vista que, com a sua emancipação, deixa de gozar do
status de incapaz, nos termos do parágrafo único do art. 5º do
Código Civil, que diz que cessará, para os menores, a incapacidade:
I – pela concessão dos pais, ou de um deles na falta do outro,
mediante instrumento público, independentemente de homologação
judicial, ou por sentença do juiz, ouvido o tutor, se o menor tiver 16
(dezesseis) anos completos; II – pelo casamento; III – pelo exercício
de emprego público efetivo; IV – pela colação de grau em curso de
ensino superior; V – pelo estabelecimento civil ou comercial, ou pela
existência de relação de emprego, desde que, em função deles, o
menor com 16 (dezesseis) anos completos tenha economia própria.
3.5
Consumação e tentativa
O delito se consuma quando o incapaz pratica o ato para o qual
fora induzido, não havendo necessidade de, efetivamente, sofrer
prejuízo patrimonial com seu comportamento que, se vier a
acontecer, será considerado mero exaurimento do crime.
Tratando-se de um crime plurissubsistente, torna-se
perfeitamente possível o raciocínio relativo à tentativa, a exemplo
daquele que é impedido, por terceira pessoa, de praticar o ato que
tinha a potencialidade de produzir efeitos jurídicos em seu prejuízo
ou de terceiro, depois de ter sido induzido pelo agente.
3.6
Elemento subjetivo
O delito de abuso de incapazes só pode ser praticado
dolosamente, não havendo previsão para a modalidade de natureza
culposa.
Assim, se o agente, negligentemente, permite que o incapaz
venha a praticar um ato, por exemplo, que lhe possa causar
prejuízo, o fato será considerado um indiferente penal, podendo o
agente, dependendo do caso que se apresente e da sua ligação
com o incapaz, ser responsabilizado na esfera cível, caso o prejuízo
venha, efetivamente, a ocorrer.
Para a doutrina majoritária, além do dolo, pode-se visualizar no
tipo penal do art. 173 o fim específico de obter o proveito indevido
para si ou para terceiro.
O erro, no que diz respeito à menoridade da vítima ou à sua
alienação ou debilidade mental, terá o condão de afastar o dolo,
eliminando-se, consequentemente, a tipicidade do fato, em virtude
da regra contida no art. 20 do Código Penal, que prevê o chamado
erro de tipo.
3.7
Modalidades comissiva e omissiva
A conduta de abusar, cometida mediante a indução de incapaz
à prática de ato suscetível de produzir efeito jurídico, em prejuízo
próprio ou de terceiro, pressupõe um comportamento comissivo,
vale dizer, o agente faz alguma coisa no sentido de incutir no
incapaz a ideia que, se praticada, trará a ele ou a terceira pessoa
prejuízos patrimoniais.
No entanto, o garantidor poderá responder pelo delito em
virtude de sua omissão se, podendo, dolosamente, nada fizer para
evitar a prática do ato pelo incapaz, almejando, por exemplo, o
prejuízo deste último.
Assim, o delito poderá ser praticado comissivamente, ou
mediante omissão imprópria do agente garantidor.
3.8
Pena e ação penal
O preceito secundário do art. 173 do Código Penal comina uma
pena de reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.
A ação penal é de iniciativa pública incondicionada, à exceção
das hipóteses arroladas pelo art. 182 do Código Penal, que preveem
a necessidade de representação, observada a ressalva contida no
art. 183 do mesmo diploma repressivo.
Aplica-se ao crime de abuso de incapazes a imunidade penal
de caráter pessoal prevista no art. 181 do Código Penal, exceto
quanto ao estranho que participa do crime, bem como quando o
delito for praticado contra pessoa com idade igual ou superior a 60
(sessenta) anos (incisos II e III do art. 183 do CP).
3.9
3.9.1
Destaques
Abuso de pessoa e Código Penal Militar
O crime de abuso de pessoa veio previsto no Código Penal
Militar (Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969), conforme
se verifica pela leitura do seu art. 252. Embora a rubrica e a redação
típica sejam um pouco diferentes daquela constante no art. 173 do
Código Penal, também se visualiza, no tipo apontado, a proteção de
incapazes, dizendo:
Art. 252. Abusar, em proveito próprio
ou alheio, no exercício de função, em
unidade,
repartição
ou
estabelecimento
militar,
da
necessidade, paixão ou inexperiência,
ou da doença ou deficiência mental de
outrem, induzindo-o à prática de ato
que produza efeito jurídico, em
prejuízo próprio ou de terceiro, ou em
detrimento da administração militar:
Pena – reclusão, de dois a seis anos.
3.9.2
Estatuto do Idoso
O art. 102 do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741, de 1º de outubro
de 2003) prevê uma modalidade especial de abuso, cominando uma
pena de reclusão de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, para aquele que
induz pessoa idosa sem discernimento de seus atos a outorgar
procuração para fins de administração de bens ou deles dispor
livremente.
3.10
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: qualquer pessoa.
Passivo: somente pode ser
o menor ou o alienado ou
débil
mental,
que
é
induzido pelo sujeito ativo a
praticar o ato suscetível de
produzir efeito jurídico, em
prejuízo próprio ou de
terceiro. Embora exista
controvérsia, entendemos
que o menor emancipado
não poderá figurar como
sujeito passivo do delito em
estudo.
Objeto material
É o menor ou o alienado ou
débil mental, contra quem é
dirigida a conduta praticada
pelo agente.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
É o patrimônio do incapaz ou de
terceira pessoa que poderia ser
prejudicada por meio de seu
ato.
Elemento subjetivo
»
É o dolo.
»
»
Não há previsão para a
modalidade de natureza
culposa.
Para a doutrina majoritária,
além do dolo, pode-se
visualizar o fim específico
de obter o proveito indevido
para si ou para terceiro.
Modalidades
omissiva
comissiva
e
O delito poderá ser praticado
comissivamente, ou mediante
omissão imprópria do agente
garantidor.
Consumação e tentativa
»
»
O delito se consuma
quando o incapaz pratica o
ato para o qual fora
induzido, não havendo
necessidade
de,
efetivamente,
sofrer
prejuízo patrimonial com
seu comportamento que,
se vier a acontecer, será
considerado
mero
exaurimento do crime.
Tratando-se de um crime
plurissubsistente, torna-se
perfeitamente possível o
raciocínio
relativo
à
tentativa.
4.
INDUZIMENTO À ESPECULAÇÃO
Induzimento à especulação Art.
174. Abusar, em proveito próprio ou
alheio, da inexperiência ou da
simplicidade ou inferioridade mental
de outrem, induzindo-o à prática de
jogo ou aposta, ou à especulação com
títulos ou mercadorias, sabendo ou
devendo saber que a operação é
ruinosa:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três)
anos, e multa.
4.1
Introdução
O art. 174 do Código Penal comina pena de reclusão, de 1 (um)
a 3 (três) anos, e multa, para aquele que abusar, em proveito próprio
ou alheio, da inexperiência ou da simplicidade ou inferioridade
mental de outrem, induzindo-o à prática de jogo ou aposta, ou à
especulação com títulos ou mercadorias, sabendo ou devendo
saber que a operação é ruinosa.
Assim, podemos destacar os seguintes elementos que integram
a mencionada figura típica: a) a conduta de abusar; b) em proveito
próprio ou alheio; c) da inexperiência ou simplicidade ou
inferioridade mental de outrem; d) indução à prática de jogo ou
aposta, ou à especulação com títulos ou mercadorias; e)
conhecimento, real ou potencial, de que a operação é ruinosa.
O núcleo abusar é utilizado pelo texto legal no sentido de fazer
mal uso, aproveitar-se, tirar proveito, partido, vantagem da
inexperiência ou simplicidade ou inferioridade mental de outrem.
A possibilidade de levar essas pessoas à ruína, mediante a
prática de jogo ou aposta, ou especulando-se com títulos ou
mercadorias, deve trazer algum proveito ao agente ou à terceira
pessoa. Da mesma forma que no artigo anterior, embora o tipo
penal tenha por finalidade proteger o patrimônio dessas pessoas
que, em virtude de suas condições pessoais, se tornam mais
vulneráveis, o proveito buscado pelo agente pode ter outra natureza,
que não a patrimonial, devendo, no entanto, ser injusto.
Inexperiência, conforme disserta Guilherme de Souza Nucci, é:
“Caracterizada pela falta de vivência, própria das pessoas de
pouca idade ou ingênuas; a simplicidade fundamenta-se pela
franqueza, sinceridade e falta de afetação ou malícia nas
atitudes, o que é típico de pessoas crédulas e confiantes no
bom caráter alheio; a inferioridade mental deve ser interpretada,
nos dias atuais, simplesmente como a situação de pessoas
portadoras de doenças mentais ou algum tipo de
desenvolvimento mental incompleto ou retardado.”44
O abuso levado a efeito pelo agente deve ser dirigido no
sentido de induzir aquelas pessoas que, em virtude de suas
condições pessoais (inexperiência, simplicidade ou inferioridade
mental), são mais facilmente manipuladas a fazer aquilo que lhes é
sugerido, ou seja, jogar, apostar ou especular com títulos ou
mercadorias, sendo do conhecimento daquele que tais
comportamentos conduzirão a vítima à ruína. Tem-se procurado
distinguir o jogo da aposta, ressaltando-se que, naquele, o resultado
depende da maior ou menor habilidade do jogador, a exemplo do
que ocorre no pôquer, e nesta o resultado independe de qualquer
habilidade por parte do apostador, como ocorre com as corridas de
cavalos, roleta etc. Além do jogo e da aposta, a conduta do agente
pode ser dirigida a induzir a vítima a especular com títulos ou
mercadorias, a exemplo dos investimentos realizados na Bolsa de
Valores e de Mercadorias.
Para que o fato seja típico, o agente tem que saber, ou pelo
menos ter a possibilidade de saber, que a conduta praticada pela
vítima, isto é, o ato de jogar, apostar ou especular com títulos ou
mercadorias, a levará à ruína. Se o agente não tiver esse
conhecimento, o fato será considerado atípico, da mesma forma que
aquele que induz a vítima a assumir algum desses comportamentos
porque acredita, mesmo equivocadamente, que trará algum lucro
para ela, quando, na verdade, a conduz à ruína.
4.2
Classificação doutrinária
Crime comum com relação ao sujeito ativo e próprio no que diz
respeito ao sujeito passivo, pois somente as pessoas inexperientes,
simples ou inferiores mentalmente podem figurar nessa condição;
doloso; formal (haja vista que a sua consumação ocorre quando a
vítima pratica algum dos comportamentos para os quais foi induzida,
independentemente de ter sido, em razão disso, levada à ruína);
comissivo (podendo, contudo, ser praticado através da omissão
imprópria do agente, que gozava do status de garantidor); de forma
vinculada (uma vez que a lei determina que a indução deve ser
dirigida ao jogo, aposta ou à especulação com títulos ou
mercadorias); instantâneo (podendo seus efeitos serem
permanentes); monossubjetivo; plurissubsistente; não transeunte.
4.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
O tipo penal do art. 174 do diploma repressivo tem por
finalidade proteger o patrimônio. Entretanto, essa proteção
patrimonial é dirigida especialmente àquelas pessoas que, em
virtude de inexperiência, simplicidade ou inferioridade mental,
podem ser levadas à ruína, caso se aventurem, depois de induzidas
pelo agente, à pratica de jogos ou apostas, ou à especulação com
títulos ou mercadorias, sendo estas o objeto material do delito em
estudo.
4.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do delito tipificado no
art. 174 do Código Penal, não havendo necessidade de que o
agente possua qualquer qualidade ou condição especial.
O sujeito passivo, conforme observa Alberto Silva Franco, “é a
pessoa inexperiente, simples ou de inferioridade mental. Em regra, é
o menor, ou o homem rústico, ignorante, idoso ou ingênuo.”45
4.5
Consumação e tentativa
Consuma-se o delito no momento em que a vítima leva a efeito
o comportamento a que fora induzida pelo agente, vale dizer,
quando efetivamente participa do jogo, aposta ou especula com
títulos ou mercadorias, independentemente da produção efetiva do
resultado ruinoso ao seu patrimônio que, se ocorrer, será
considerado mero exaurimento do crime.
Tratando-se de crime plurissubsistente, torna-se possível o
raciocínio relativo à tentativa.
4.6
Elemento subjetivo
O delito de induzimento à especulação só pode ser praticado
dolosamente, não havendo previsão para a modalidade de natureza
culposa.
Assim, aquele que, imprudentemente, induz a vítima, por
exemplo, a especular na Bolsa de Valores e de Mercadorias
acreditando que faria um bom negócio, quando, na verdade, tudo
indicava no sentido contrário, não poderá ser responsabilizado pelo
delito em estudo.
Para a doutrina majoritária, além do dolo, pode-se visualizar no
tipo penal do art. 174 o fim específico de obter o proveito indevido,
para si ou para outrem, da ruína da vítima.
O dolo deve abranger todos os elementos que integram a figura
típica. Assim, o agente deverá ter conhecimento de que induz
pessoa inexperiente, simples ou inferior mentalmente, pois, caso
contrário, poderá ser alegado o erro de tipo, afastando-se o dolo e,
consequentemente, a infração penal em exame.
O tipo penal utiliza, ainda, a expressão sabendo ou devendo
saber que a operação é ruinosa. Luiz Regis Prado, interpretando
essa expressão, aduz, corretamente, que:
“O legislador quis frisar que, ainda quando o agente não tenha
certeza do insucesso da especulação, conhece fatos que
autorizam a prognosticar o fracasso daquele empreendimento.
A fraude, em tal expressão, consiste em induzir a vítima à
especulação, não obstante a contraindicação desses fatos, que
não podiam ter escapado, de modo algum, ao entendimento do
agente.”46
4.7
Modalidades comissiva e omissiva
A conduta de abusar, praticada com a finalidade de induzir a
vítima à prática de jogo, aposta, ou à especulação com títulos ou
mercadorias, pressupõe um comportamento comissivo.
No entanto, o garantidor poderá responder pelo delito em
virtude de sua omissão se, podendo, dolosamente, nada fizer para
evitar a prática, pelo garantido, dos comportamentos previstos pelo
tipo penal em exame, que o levarão à ruína, sendo essa, também, a
sua intenção.
Assim, o delito poderá ser praticado comissivamente ou
mediante omissão imprópria do agente garantidor.
4.8
Pena, ação penal e suspensão condicional do processo
A pena cominada para o delito de induzimento à especulação é
de reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.
A ação penal é de iniciativa pública incondicionada, à exceção
das hipóteses arroladas no art. 182 do Código Penal, que preveem
a necessidade de representação, observada a ressalva contida no
art. 183 do mesmo diploma repressivo.
Aplica-se ao crime de induzimento à especulação a imunidade
penal de caráter pessoal prevista no art. 181 do Código Penal,
exceto quanto ao estranho que participa do crime, bem como
quando o delito for praticado contra pessoa com idade igual ou
superior a 60 (sessenta) anos (incisos II e III do art. 183 do CP).
Será possível a proposta de suspensão condicional do
processo, tendo em vista que a pena mínima cominada ao delito em
estudo não ultrapassa o limite determinado pelo art. 89 da Lei nº
9.099/95.
4.9
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: qualquer pessoa.
Passivo: “é a pessoa
inexperiente, simples ou de
inferioridade mental. Em
regra, é o menor, ou o
homem rústico, ignorante,
idoso
ou
ingênuo”
(FRANCO, 1997, p. 2.786).
Objeto material
Pessoas que, em virtude de
inexperiência, simplicidade ou
inferioridade mental, podem ser
levadas à ruína, caso se
aventurem, depois de induzidas
pelo agente, à prática de jogos
ou apostas, ou à especulação
com títulos ou mercadorias.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
O patrimônio.
Elemento subjetivo
»
»
É o dolo.
Não há previsão para a
modalidade de natureza
culposa.
Modalidades
omissiva
comissiva
e
»
»
A conduta pressupõe um
comportamento comissivo.
No entanto, o garantidor
poderá responder pelo
delito em virtude de sua
omissão
se,
podendo,
dolosamente, nada fizer
para evitar a prática, pelo
garantido,
dos
comportamentos previstos
pelo tipo penal em exame,
que o levarão à ruína,
sendo essa, também, a sua
intenção.
Consumação e tentativa
»
Consuma-se o delito no
momento em que a vítima
leva
a
efeito
o
»
comportamento a que fora
induzida
pelo
agente,
independentemente
da
produção
efetiva
do
resultado ruinoso ao seu
patrimônio que, se ocorrer,
será considerado mero
exaurimento do crime.
É admissível a tentativa.
5.
FRAUDE NO COMÉRCIO
Fraude no comércio Art. 175.
Enganar, no exercício de atividade
comercial,
o
adquirente
ou
consumidor:
I – vendendo, como verdadeira ou
perfeita, mercadoria falsificada ou
deteriorada;
II – entregando uma mercadoria por
outra:
Pena – detenção, de seis meses a
dois anos, ou multa.
§ 1º Alterar em obra que lhe é
encomendada a qualidade ou o peso
de metal ou substituir, no mesmo
caso, pedra verdadeira por falsa ou
por outra de menor valor; vender
pedra falsa por verdadeira; vender,
como precioso, metal de outra
qualidade: Pena – reclusão, de um a
cinco anos, e multa.
§ 2º É aplicável o disposto no art. 155,
§ 2º.
5.1
Introdução
O Código Penal comina uma pena de detenção, de 6 (seis)
meses a 2 (dois) anos, ou multa, para aquele que enganar, no
exercício de atividade comercial, o adquirente ou consumidor: I –
vendendo, como verdadeira ou perfeita, mercadoria falsificada ou
deteriorada; II – entregando uma mercadoria por outra.
Antes de analisarmos a mencionada figura típica, faz-se mister
ressaltar que parte de nossos doutrinadores entende pela
revogação do inciso I do art. 175 do Código Penal pelo inciso IX do
art. 7º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, assim redigido:
Art. 7º Constitui crime contra as
relações de consumo:
IX – vender, ter em depósito para
vender ou expor à venda ou, de
qualquer forma, entregar matériaprima ou mercadoria, em condições
impróprias ao consumo.
O Código de Defesa do Consumidor explicita, em seu art. 18, §
6º, serem impróprios ao uso e consumo: I – os produtos cujos
prazos de validade estejam vencidos; II – os produtos deteriorados,
alterados, adulterados, avariados, falsificados, corrompidos,
fraudados, nocivos à vida ou à saúde, perigosos ou, ainda, aqueles
em desacordo com as normas regulamentares de fabricação,
distribuição ou apresentação; III – os produtos que, por qualquer
motivo, se revelem inadequados ao fim a que se destinam.
Luiz Regis Prado, posicionando-se favoravelmente à revogação
do inciso I do art. 175 do Código Penal, aduz que, “se a lei posterior,
disciplinando os crimes perpetrados nas relações de consumo,
tratou da venda pelo comerciante de mercadoria falsificada ou
deteriorada, como se fosse verdadeira ou perfeita, não subsiste
dúvida de que a norma anterior encontra-se revogada.”47
Em sentido contrário, Cezar Roberto Bitencourt afirma pela
manutenção do art. 175 do Código Penal, esclarecendo:
“Consideramos que as leis posteriores não regularam
inteiramente a mesma matéria, sendo, assim, impossível admitir
a revogação tácita do dispositivo em exame do Código Penal.
Com efeito, casuisticamente, devem-se confrontar os diversos
diplomas legais e resolver a questão por meio do conflito
aparente de normas e aplicar, in concreto, aquela que
contemplar todas as elementares típicas.”48
Filiamo-nos ao pensamento de Luiz Regis Prado, pois também
entendemos que a lei que definiu os crimes contra a ordem
tributária, econômica e contra as relações de consumo (Lei nº
8.137/90) regulou inteiramente a matéria constante do inciso I do
art. 175 do Código Penal, pois cuidou tanto da falsificação quanto da
deterioração de mercadoria.
No entanto, faremos a análise de todos os incisos de forma
global. Podemos destacar os seguintes elementos que integram o
tipo penal do art. 175 do Código Penal: a) a conduta de enganar; b)
no exercício da atividade comercial; c) adquirente ou consumidor; d)
vendendo, como verdadeira ou perfeita, mercadoria falsificada ou
deteriorada; e) entregando uma mercadoria por outra.
O núcleo enganar é utilizado no sentido de induzir em erro,
iludir, burlar.
Tal engano é praticado no exercício de atividade comercial, vale
dizer, o comerciante (que exerce o comércio) e o comerciário
(empregado no comércio).
A finalidade do comportamento é a de induzir o adquirente ou
consumidor da mercadoria a erro, fazendo com que compre, como
verdadeira ou perfeita, mercadoria falsificada ou deteriorada. Falsa
é a mercadoria que não é original; a deteriorada é a mercadoria que,
embora original, se encontra danificada, estragada. Nesse caso,
somente se amolda ao delito em estudo a conduta de vender,
prevista no inciso I do art. 175 do Código Penal, não sendo típicas,
por exemplo, as condutas de doar, trocar etc.
Também engana o adquirente ou consumidor aquele que lhe
entrega uma mercadoria por outra ou, como diz o ditado popular,
vende “gato por lebre.” Conforme as lições de Damásio de Jesus, o
segundo fato delituoso consiste em “o sujeito entregar uma
mercadoria por outra, enganando o adquirente ou consumidor
quanto à essência da coisa (palha de café em lugar de café), sua
qualidade (vinho de segunda em lugar de vinho de primeira) ou
quantidade (medida, peso ou número).”49
Tratando-se de substâncias alimentícias ou produtos
alimentícios, ou destinados a fins terapêuticos ou medicinais, o
agente poderá responder pelos delitos previstos nos arts. 272 e 273
do Código Penal.
5.2
Classificação doutrinária
Crime próprio com relação ao sujeito ativo, pois somente o
comerciante e o comerciário podem praticá-lo, e comum no que diz
respeito ao sujeito passivo, podendo qualquer pessoa figurar nessa
condição; doloso; comissivo (podendo ser praticado via omissão
imprópria, na hipótese de o agente gozar do status de garantidor);
material; de dano; de forma livre; instantâneo; monossubjetivo;
plurissubsistente; não transeunte.
5.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
O patrimônio é o bem juridicamente protegido pelo delito de
fraude no comércio, tipificado no art. 175 do Código Penal.
Conforme salienta Cezar Roberto Bitencourt:
“Subsidiariamente, protege-se também a moralidade das
relações comerciais, buscando preservar a honestidade e a
boa-fé que devem orientar toda a atividade comercial, que é
vital para a satisfação de grande parte das necessidades
materiais da coletividade.”50
Objeto material é a mercadoria sobre a qual recai a conduta
praticada pelo agente.
5.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
Existe controvérsia no que diz respeito a quem poderia ser o
sujeito ativo do crime de fraude no comércio.
Hungria entendia que somente o comerciante e o comerciário
poderiam gozar desse status, uma vez que o tipo penal do art. 175
faz menção a exercício de atividade comercial que, segundo o
renomado penalista, “não quer dizer senão exercício profissional de
comércio, por conta própria ou de outrem.”51
Em sentido contrário, afirma Noronha:
“Inútil a distinção entre atividade e ato, pois é certo que a
primeira se compõe da reunião, grupo ou coleção de atos.
Pratica o delito em espécie não só o comerciante estabelecido,
matriculado etc., como qualquer pessoa que pratique um
daqueles fatos, no exercício de atividade comercial. Essa
atividade não se caracteriza pela qualidade da pessoa, mas
pelo ato em si, pelo ato tomado em sentido objetivo.”52
Entendemos que a razão está com Hungria. Pelo próprio
nomen iuris da infração penal, vale dizer, fraude no comércio, que
indica a natureza do delito a ser estudado, percebe-se que a
qualidade de comerciante ou comerciário é indispensável à sua
configuração, tratando-se, pois, de crime próprio com relação ao
sujeito ativo, posição também adotada por Rogério Sanches Cunha
quando diz que o delito sub examen só pode ser praticado “por
quem exerça atividade comercial (exercício habitual, contínuo e
profissional do comércio). Se praticado ato de comércio por
particular, que não o exerça, outra figura delituosa poderá estar
configurada (art. 171, § 2º, IV)”53.
Sujeito passivo, de acordo com a indicação legal, é o
adquirente ou o consumidor, dele não se exigindo qualquer
qualidade ou condição especial, cuidando-se, aqui, de crime
comum.
5.5
Consumação e tentativa
A consumação do delito de fraude no comércio ocorre a partir
do momento em que a vítima percebe que recebeu mercadoria
falsificada, deteriorada, trocada etc.
Se ao tentar fazer a entrega, a vítima percebe que se cuida de
mercadoria falsificada, não a aceitando, o agente poderá ser
responsabilizado pela tentativa, haja vista tratar-se de crime
plurissubsistente, no qual é possível fracionar-se o iter criminis.
Assim, tendo em vista o fato de que o tipo penal do art. 175 se
encontra também no Título II do Código Penal, relativo aos crimes
contra o patrimônio, e considerando a sua classificação como crime
material, temos que, somente quando se efetivar a lesão no
patrimônio da vítima, com o pagamento da mercadoria falsificada,
deteriorada, trocada etc., é que se pode ter por consumado o delito.
Caso isso não ocorra, será possível o raciocínio correspondente à
tentativa.
5.6
Elemento subjetivo
O delito de fraude no comércio somente pode ser praticado
dolosamente, não havendo previsão para a modalidade de natureza
culposa.
Assim, aquele que, por desatenção, entrega ao adquirente uma
mercadoria diferente da que fora efetivamente comprada, não
poderá ser responsabilizado criminalmente.
O dolo deverá abranger, outrossim, todos os elementos que
integram a definição típica. Dessa forma, aquele que, depois de
vender uma mercadoria ao consumidor, acreditando na sua
originalidade, descobre que, na verdade, era um produto falsificado,
extremamente parecido com o original, cujas diferenças eram
imperceptíveis, não pratica o delito de fraude no comércio, podendo
alegar, em seu benefício, o chamado erro de tipo, excluindo-se o
seu dolo e, consequentemente, a própria infração penal.
5.7
Modalidade qualificada
O § 1º do art. 175 do Código Penal prevê uma modalidade
qualificada do delito de fraude no comércio, verbis:
§ 1º Alterar em obra que lhe é
encomendada a qualidade ou o peso
de metal ou substituir, no mesmo
caso, pedra verdadeira por falsa ou
por outra de menor valor; vender
pedra falsa por verdadeira; vender,
como precioso, metal de outra
qualidade.
Dessa forma, podemos visualizar na modalidade qualificada de
fraude no comércio quatro comportamentos que podem ser levados
a efeito, os quais, dada a sua maior gravidade, são punidos com
uma pena de reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa, a saber:
a)
b)
c)
d)
alteração em obra que lhe é encomendada a qualidade ou
peso do metal;
substituição, no mesmo caso, de pedra verdadeira por falsa
ou por outra de menor valor;
venda de pedra falsa por verdadeira;
venda, como precioso, de metal de outra qualidade.
Assim, por exemplo, pratica o delito na primeira modalidade
aquele que, contratado para fazer uma pulseira de ouro, a produz
com ouro de qualidade ou peso inferior ao encomendado; na
segunda modalidade, o agente substitui, v.g., na obra que havia sido
encomendada e paga pelo adquirente, a esmeralda, cujo objetivo
era realçar os olhos da escultura, por uma pedra falsificada, da
mesma tonalidade; na terceira e na quarta hipóteses, a venda é da
pedra e do metal em si, em que o agente faz a entrega, por
exemplo, no lugar do ouro, de uma peça de latão, e de vidro no
lugar do diamante.
Merece ressaltar que somente cometerá o delito em estudo se
o comportamento do agente trouxer efetivo prejuízo à vítima. Assim,
aquele que, contratado para fazer uma pulseira personalizada,
coloca quantidade superior de ouro, obviamente não responde pelo
delito em exame.
5.8
Modalidades comissiva e omissiva
A infração penal, tanto em sua modalidade fundamental quanto
nas hipóteses qualificadas, pressupõe um comportamento positivo
do agente, vale dizer, o agente faz alguma coisa no sentido de
fraudar o comércio, praticando uma das condutas previstas nos
incisos I e II, bem como no § 1º do art. 175 do Código Penal.
No entanto, o agente que gozar do status de garantidor,
sabedor da fraude, podendo, deverá agir no sentido de impedir que
o garantido sofra dano em seu patrimônio, pois, caso contrário, se,
dolosamente, vier a se omitir, querendo a produção do resultado,
deverá ser responsabilizado pelo crime de fraude no comércio, haja
vista que o § 2º do art. 13 do Código Penal assevera que a omissão
é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir a fim
de evitar o resultado.
5.9
Criminoso primário e pequeno valor da mercadoria
Aplica-se, aqui, tudo o que foi dito quando do estudo do delito
de furto, valendo ressaltar que se o criminoso for primário e de
pequeno valor, por exemplo, a mercadoria falsificada, deteriorada,
trocada etc., o juiz poderá substituir a pena de reclusão pela de
detenção, diminuí-la de um a dois terços ou aplicar somente a pena
de multa, tendo em vista a determinação contida no § 2º do art. 175
do Código Penal.
5.10
Pena, ação penal, competência para julgamento e
suspensão condicional do processo
A pena é de detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, ou
multa, para a modalidade fundamental de fraude no comércio,
sendo cominada uma pena de reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos,
e multa, para a forma qualificada prevista pelo § 2º do art. 175 do
Código Penal.
A ação penal é de iniciativa pública, à exceção das hipóteses
arroladas pelo art. 182 do Código Penal, que preveem a
necessidade de representação, observada a ressalva contida no art.
183 do mesmo diploma repressivo.
Aplica-se ao crime de fraude no comércio a imunidade penal de
caráter pessoal prevista no art. 181 do Código Penal, exceto quanto
ao estranho que participa do crime, bem como quando o delito for
praticado contra pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta)
anos (incisos II e III do art. 183 do CP).
Compete ao Juizado Especial Criminal o julgamento do crime
de fraude no comércio, quando praticado em sua modalidade
fundamental, haja vista que a pena máxima cominada em abstrato
não ultrapassa o limite de 2 (dois) anos, previsto pelo art. 61 da Lei
nº 9.099/95, com a nova redação que lhe foi dada pela Lei nº
11.313, de 28 de junho de 2006.
Será possível a confecção de proposta de suspensão
condicional do processo mesmo para a modalidade qualificada de
fraude no comércio, uma vez que a pena mínima a ela cominada
atende ao limite previsto pelo art. 89 da Lei nº 9.099/95.
5.11
5.11.1
Destaques
Vítima que recebe uma pedra em vez da mercadoria
comprada
Não é incomum os jornais noticiarem golpes aplicados nos
centros das grandes cidades. Muitas vezes, a vítima, com a
finalidade de comprar um produto por preço inferior ao de mercado,
acreditando estar fazendo uma boa economia, negocia com
pessoas desconhecidas, que não trabalham em qualquer casa
comercial.
Um dos golpes que se tornaram mais comuns nos dias de hoje
é aquele em que é oferecido à vítima um aparelho eletrônico a preço
inferior ao de mercado. O agente se intitula, falsamente, funcionário
de alguma loja comercial e convence a vítima a comprar o aparelho,
que vem lacrado, em caixa original. A vítima, satisfeita com a oferta,
fecha negócio com o meliante.
Ao chegar em casa, empolgada com o produto adquirido, abre
avidamente a embalagem e, para sua surpresa, somente encontra
uma pedra, envolvida em pedaços de jornal.
Nesse
caso,
pergunta-se:
O
agente
deveria
ser
responsabilizado pelo delito de fraude no comércio pelo fato de ter
entregado uma mercadoria por outra? A resposta, aqui, só pode ser
negativa.
Inicialmente, o agente que “vendeu a pedra” não se amolda ao
conceito de comerciante ou, mesmo, de comerciário, não podendo
figurar, assim, como sujeito ativo do delito em estudo. Além disso, o
inciso II do art. 175 do Código Penal fala em mercadoria, sendo
certo que pedra não se amolda ao conceito de mercadoria.
O crime, portanto, será aquele tipificado no caput do art. 171 do
Código Penal, cuja pena é superior à do delito de fraude no
comércio.
5.11.2
Compra de produtos falsos em bancas de camelô
A
economia
denominada
informal
vem
crescendo
assustadoramente nos últimos tempos, fruto da incapacidade do
Estado de gerar empregos. Assim, cada vez mais pessoas se
enveredam pelo caminho do trabalho autônomo, prestando serviços,
vendendo produtos, enfim, tentando, de alguma forma, sobreviver
numa sociedade cruel e capitalista, que é incapaz de levar a efeito
uma divisão de rendas.
O número de vendedores ambulantes e camelôs tem
aumentado. Como é cediço, em muitas ou em quase todas as
barracas de camelôs, são vendidos produtos “importados” do
Paraguai ou da China, reconhecidamente falsificados. Imagine-se
que a vítima, querendo comprar um tênis próprio para a prática de
corrida, vá até um desses camelôs e adquira o produto desejado,
sabendo-o falso, mas extremamente parecido com o original.
Em seu primeiro teste com o produto, vem a decepção, pois ele
se rasga depois de 30 minutos de intensa corrida. Indignado, o
sujeito vai até o vendedor e o ameaça com o art. 175 do Código
Penal, sob o argumento de que a mercadoria era falsificada.
Pergunta-se: O camelô deverá responder pelo delito tipificado no
art. 175, I, do Código Penal por ter vendido uma mercadoria
sabidamente falsificada? A resposta, aqui, também deve ser
negativa, pois o agente, para que responda pelo artigo em estudo,
deverá ter agido com fraude, ou seja, embora a mercadoria fosse
realmente falsificada, havia sido vendida como verdadeira, o que
não aconteceu no caso concreto.
O camelô, nesse caso, poderá responder pela receptação, pois
a coisa por ele vendida era produto de crime, previsto pela Lei nº
9.279, de 14 de maio de 1996, que regula direitos e obrigações
relativos à propriedade industrial.
Da mesma forma, o comprador que, sabendo da origem ilícita
da mercadoria, ainda assim a adquiriu, deverá também responder
pela receptação, haja vista ser possível a hipótese de receptação de
receptação, conforme veremos mais adiante.
5.12
Quadro-resumo
Sujeitos
»
Ativo: existe controvérsia
no que diz respeito sobre
quem poderia ser o sujeito
ativo do crime de fraude no
comércio. Hungria entende
que somente o comerciante
e o comerciário poderiam
gozar esse status. Em
sentido contrário, entende
Noronha (1980, p. 445):
“Pratica o delito em espécie
não só o comerciante
estabelecido, matriculado
etc., como qualquer pessoa
que pratique um daqueles
fatos, no exercício de
atividade comercial. Essa
atividade
não
se
caracteriza pela qualidade
da pessoa, mas pelo ato
em si, pelo ato tomado em
sentido
objetivo”.
Entendemos que a razão
está com Hungria, pois se
percebe que a qualidade
de
comerciante
ou
comerciário é indispensável
à configuração do delito,
tratando-se,
de
crime
próprio com relação ao
sujeito ativo.
»
Passivo: é o adquirente ou
o consumidor, dele não se
exigindo
qualquer
qualidade ou condição
especial,
cuidando-se,
aqui, de crime comum.
Objeto material
É a mercadoria sobre a qual
recai a conduta praticada pelo
agente.
Bem(ns)
protegido(s)
O patrimônio.
juridicamente
Elemento subjetivo
»
»
É o dolo.
Não há previsão para a
modalidade de natureza
culposa.
Modalidades
omissiva
»
»
comissiva
e
A infração penal pressupõe
um comportamento positivo
do agente.
No entanto, o agente que
gozar
do
status
de
garantidor, sabedor da
fraude, podendo, deverá
agir no sentido de impedir
que o garantido sofra dano
em seu patrimônio, pois,
caso
contrário,
se,
dolosamente, vier a se
omitir,
querendo
a
produção do resultado,
deverá
ser
responsabilizado
pelo
crime
de
fraude
no
comércio.
Consumação e tentativa
»
A consumação do delito de
fraude no comércio ocorre
a partir do momento em
que a vítima percebe que
recebeu
mercadoria
falsificada,
deteriorada,
trocada etc.
»
Admite-se a possibilidade
de tentativa.
6.
OUTRAS FRAUDES
Outras fraudes
Art. 176. Tomar refeição em
restaurante, alojar-se em hotel ou
utilizar-se de meio de transporte sem
dispor de recursos para efetuar o
pagamento.
Pena – detenção, de quinze dias a
dois meses, ou multa.
Parágrafo único. Somente se
procede mediante representação, e o
juiz pode, conforme as circunstâncias,
deixar de aplicar a pena.
6.1
Introdução
Comparativamente às demais infrações penais inseridas no
Capítulo VI, correspondente ao estelionato e outras fraudes, o
comportamento tipificado pelo art. 176 do Código Penal foi o que
mereceu, abstratamente, a menor reprovação, haja vista a
cominação de uma pena de detenção, de 15 (quinze) dias a 2 (dois)
meses, ou multa, para aquele que tomar refeição em restaurante,
alojar-se em hotel ou utilizar-se de meio de transporte sem dispor de
recursos para efetuar o pagamento.
Pela leitura do tipo penal, podemos destacar os seguintes
elementos: a) conduta de tomar refeição em restaurante; b) alojar-se
em hotel; c) utilização de meio de transporte; d) indisponibilidade de
recursos necessários para efetuar o pagamento.
A lei penal aduz o comportamento de tomar refeição em
restaurante, devendo ser entendida a palavra restaurante em seu
sentido amplo, abrangendo lanchonetes, pensões, bares etc. Assim,
qualquer lugar que tenha a finalidade de servir refeições, não
importando a sua natureza, poderá ser alvo da ação do agente.
Imagine-se a hipótese daqueles quiosques localizados nas praias do
Nordeste, que servem todo o tipo de refeição, principalmente frutos
do mar. Mesmo que ali não se tenha, efetivamente, constituída uma
pessoa jurídica, a pessoa física responsável poderá figurar como
vítima desse delito. Noronha ainda adverte que “a lei fala em
refeições, referindo-se, destarte, ao ato de tomar alimentos, e
destes não nos parece lícito excluir as bebidas. Nada há também no
texto que exija a consumação total, pois, consumidos parcialmente
os alimentos, tomou--se refeição, consoante seus termos.”54
Merece destaque, ainda, o fato de que a conduta de tomar
refeição em restaurante sem dispor de recursos para efetuar o
pagamento, para a maioria de nossos doutrinadores,55 deve ser
levada a efeito no próprio estabelecimento (restaurante, pensão, bar
etc.), não podendo ocorrer, por exemplo, na residência do agente.
Assim, tem-se entendido que aquele que faz um pedido de refeição
para ser entregue em sua residência deverá responder pelo delito
tipificado no caput do art. 171 do Código Penal, o que não nos
parece ser a melhor conclusão, em virtude da pena cominada ao
delito de estelionato (reclusão, de um a cinco anos, e multa), em
comparação àquela prevista no tipo penal do art. 176 do mesmo
diploma legal (detenção, de 15 dias a dois meses, ou multa). Dessa
forma, será melhor para o agente ser servido, com toda gentileza,
pelos garçons que prestam serviço no estabelecimento comercial
que, além do prato principal, também se alimentará com uma
sobremesa etc., do que receber a comida, muitas vezes já fria, em
sua própria residência, pois sua pena será infinitamente superior,
não sendo possível, até mesmo, a concessão de perdão judicial,
conforme previsto no parágrafo único do mencionado art. 176.
Acreditamos que se a fraude empregada se deu para que o
agente pudesse tomar refeição, seja ou não no próprio restaurante
ou em qualquer outro estabelecimento do gênero, o delito será
aquele previsto pelo art. 176 do Código Penal, e não o delito de
estelionato, tipificado no caput do art. 171 do diploma repressivo.
O art. 176 do Código Penal arrola também a conduta de alojarse em hotel sem dispor de recursos para efetuar o pagamento das
diárias. Hotel, aqui, tem o sentido de qualquer lugar destinado a
receber hóspedes, podendo-se incluir os motéis, hospedarias,
estalagens, pensões, pousadas, campings etc. Para que a conduta
de alojar-se se aperfeiçoe, é preciso que o agente efetivamente se
hospede, com a utilização do local destinado a esse fim, podendo o
quarto ser individual, coletivo ou outros similares, não importando o
tempo de sua permanência, sendo possível, até mesmo, que o
agente sequer permaneça alojado por um período completo, vale
dizer, 24 horas. Imagine-se a hipótese daquele que, querendo
descansar por algumas horas, bem como tomar banho, se hospede
em um hotel e ali permaneça por um período de seis horas,
aproximadamente. Não podemos, nesse caso, afastar a tipicidade
de seu comportamento, haja vista ter-se alojado, mesmo que por
curto período, naquele estabelecimento.
O último comportamento típico diz respeito à utilização de meio
de transporte sem dispor de recursos para efetuar o pagamento. Por
meio de transporte podemos entender todo aquele utilizado para
locomover-se, transportar pessoas de um lugar para o outro, não se
exigindo que esse meio seja sempre terrestre, podendo-se amoldar
a esse conceito o transporte aéreo, marítimo etc. Assim, por
exemplo, aquele que utiliza os serviços de táxi, sabendo não ter
condições financeiras para o pagamento da corrida, responde pela
infração penal em estudo, da mesma forma que aquele que contrata
os serviços de um barqueiro para que o transporte a uma cidade
onde o acesso só se faz possível por esse meio.
É fundamental que o agente, ao praticar um dos
comportamentos típicos, não disponha de recursos para efetuar o
pagamento. Como bem observado por Luiz Regis Prado:
“A essência da fraude consiste, portanto, no fato de o sujeito
ativo silenciar-se sobre a impossibilidade de solver as despesas
efetuadas, ludibriando a vítima ou o seu preposto, que lhe
fornece a comida, a hospedagem ou o transporte solicitado,
acreditando que o agente disponha de dinheiro para custeá-las.
O sujeito ativo comporta-se como um freguês honesto que
honrará o compromisso assumido.”56
6.2
Classificação doutrinária
Crime comum com relação ao sujeito ativo e próprio no que diz
respeito ao sujeito passivo; doloso; material; de dano; comissivo
(podendo ser praticado via omissão imprópria, na hipótese de o
agente gozar do status de garantidor); de forma livre; instantâneo
(ou instantâneo de efeitos permanentes, como na hipótese onde o
agente consome a refeição); monossubjetivo; plurissubsistente;
transeunte ou não transeunte (dependendo da hipótese concreta).
6.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
O patrimônio é o bem juridicamente protegido pelo tipo penal do
art. 176 do diploma repressivo. A lei protege aqui, especificamente,
aquelas pessoas – físicas ou jurídicas – que estão, em razão de
suas atividades com o público em geral, mais expostas a esse tipo
de fraude.
Objeto material pode ser a pessoa ou a coisa contra a qual é
dirigida a conduta praticada pelo sujeito ativo.
6.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
Qualquer pessoa pode ser o sujeito ativo do delito em exame,
não se exigindo nenhuma qualidade ou condição especial.
O sujeito passivo, ao contrário, é somente quem presta o
serviço que deve ser pago, podendo ser tanto uma pessoa física
quanto uma pessoa jurídica. Merece frisar que não necessariamente
aquele que vem a ser enganado com a fraude sofre a lesão
patrimonial, como é o caso do garçom que serve ao sujeito ativo
acreditando no pagamento, ou mesmo do gerente de hotel que
permite a hospedagem do agente. Aqui, embora com dois sujeitos
passivos, haverá crime único.
6.5
Consumação e tentativa
Consuma-se o crime no momento em que o agente pratica
qualquer dos comportamentos previstos pelo tipo penal, vale dizer,
quando, efetivamente, toma refeição, aloja--se em hotel ou utiliza-se
de meio de transporte sem que, para tanto, disponha de recursos
suficientes para efetuar o pagamento.
Hungria esclarece que o Código Penal, inspirado na lei
francesa, havia criado um delito tipicamente material. Assim, diz o
grande penalista:
“Para o summatum opus, é necessário, pelo menos, a tomada
parcial da refeição no restaurante, a ocupação do cômodo do
hotel por um espaço relevante de tempo, ou a utilização do
meio de transporte, por menor que tenha sido o percurso. Antes
disso, o que pode haver é simples tentativa, perfeitamente
concebível na espécie, como in exemplis: já tendo sido trazida a
refeição, ou ao entrar o agente no quarto do hotel ou no veículo
de transporte, é descoberto (por aviso de terceiro ou outra
circunstância) o plano da burla, que, assim, se frustra. Tanto a
superveniência de dano é indispensável que, se,
intercorrentemente, um terceiro efetuar o pagamento da
refeição, da hospedagem ou transporte, inexistirá o crime por
falta de objeto.”57
6.6
Elemento subjetivo
As condutas previstas no tipo do art. 176 do Código Penal
somente podem ser praticadas dolosamente, não havendo, pois,
previsão para a modalidade de natureza culposa.
O dolo deve compreender todos os elementos contidos na
definição típica, pois o erro sobre qualquer um deles poderá se
configurar
na
hipótese
de
erro
de
tipo,
afastando,
consequentemente, a tipicidade do comportamento.
Assim, imagine-se a hipótese daquele que vai tomar refeição
em um restaurante e somente depois de lhe ser entregue a conta
percebe que não possuía recursos suficientes para pagá-la, pois
havia esquecido sua carteira.
Em virtude desse raciocínio, podemos concluir, como é
característico das hipóteses de fraude, que o dolo do agente deve
surgir antes da obtenção da vantagem, mantendo, no caso em
exame, a vítima em erro, pois acredita que será paga pelos serviços
prestados, quando na verdade isso não ocorrerá.
6.7
Modalidades comissiva e omissiva
As condutas previstas no tipo penal do art. 176 do estatuto
repressivo pressupõem um comportamento comissivo. No entanto, é
possível a formulação da hipótese na qual o agente, na qualidade
de garantidor, podendo, dolosamente, nada faz para impedir a lesão
patrimonial sofrida pela vítima.
Assim, imagine-se a hipótese em que um segurança,
contratado por um restaurante, indignado com o tratamento que vem
recebendo de seu patrão, perceba a presença de um agente
conhecido pelos golpes que aplica em casas do gênero, onde se
alimenta e bebe fartamente e, depois, vai embora sem pagar a
conta. O segurança, já sabendo de antemão que seu patrão seria
vítima do delito em estudo, querendo causar-lhe esse prejuízo, não
impede que o agente pratique, normalmente, o golpe a que estava
acostumado, fartando-se com a refeição oferecida. O segurança, na
qualidade de garantidor, conforme a alínea b do § 2º do art. 13 do
Código Penal, responderá pelo resultado que devia e podia, mas
não tentou evitar, vale dizer, o delito tipificado no art. 176 do Código
Penal, praticando a infração penal mediante sua omissão imprópria.
6.8
Pena, ação penal, competência para julgamento,
suspensão condicional do processo e perdão judicial
O preceito secundário do art. 176 do Código Penal comina uma
pena de detenção, de 15 (quinze) dias a 2 (dois) meses, ou multa.
A ação penal, de acordo com a determinação contida em seu
parágrafo único, é de iniciativa pública condicionada à
representação do ofendido.
Poderá ser aplicada a imunidade penal de caráter pessoal
prevista no art. 181 do Código Penal, com as ressalvas contidas no
art. 183 do mesmo diploma repressivo.
O processo e o julgamento do delito tipificado no art. 176 do
Código Penal serão, pelo menos inicialmente, de competência do
Juizado Especial Criminal, haja vista que a pena máxima a ele
cominada não ultrapassa o limite previsto pelo art. 61 da Lei nº
9.099/95.
Tendo em vista a pena mínima cominada, será possível a
realização de proposta de suspensão condicional do processo, nos
termos do art. 89 da Lei nº 9.099/95.
Será possível a concessão de perdão judicial, de acordo com o
parágrafo único do art. 176 do Código Penal.
6.9
6.9.1
Destaques
Princípio da insignificância
Será perfeitamente possível a aplicação do princípio da
insignificância às hipóteses previstas pelo tipo penal do art. 176,
afastando-se, pois, com a sua adoção, a tipicidade material,
avaliada em sede de tipicidade conglobante.
Assim, segundo nossa posição, é atípico o comportamento
daquele que, depois de solicitar, por exemplo, uma “coxinha de
galinha”, sem que, para tanto, dispusesse de recursos para efetuar
o pagamento, é surpreendido, logo após a sua ingestão, pelo
proprietário do estabelecimento; da mesma forma aquele que, sem
condições para comprar um vale-transporte, resolve se aventurar,
ingressando no veículo coletivo, contando com a abertura da porta
no momento oportuno para a sua saída.
6.9.2
Dia do pendura
Tradicionalmente, os estudantes de Direito, no dia 11 de agosto,
data em que foram inaugurados os cursos jurídicos no Brasil,
criados pelo Imperador Dom Pedro I, reú-nem-se para a prática
daquilo que ficou conhecido como “pendura.”
Luiz Flávio Borges D’Urso, pesquisando sobre as origens e o
ritual do “pendura”, esclarece:
“De origem não muito bem definida, conta-se que o pendura
pode ter nascido de uma antiga prática dos proprietários que
formulavam convites para que os acadêmicos, seus clientes,
viessem brindar a fundação dos cursos jurídicos, no dia 11 de
agosto, em seus restaurantes, oferecendo-lhes, gentilmente,
refeição e bebida.
Com o passar dos tempos, os convites diminuíram e foram
acabando, obrigando assim que os acadêmicos se auto
convidassem. Graças a essa iniciativa, a tradição foi mantida
até nossos dias, consistindo em comer, beber e não pagar,
solicitando que a conta seja ‘pendurada’. Tudo isso, é claro,
envolvido num imenso clima de festa.
Ritual – O verdadeiro pendura, segundo a tradição, deve ser
iniciado discretamente, com a entrada no restaurante, sem
alarde, em pequenos grupos, para não chamar a atenção. As
roupas devem ser compatíveis com o local escolhido.
Deve-se procurar uma mesa em local central, quanto mais
visível melhor. Prossegue-se, com bastante calma, observandose cuidadosamente o cardápio, inclusive os preços, que sabe
não irá desembolsar. O pedido deve ser normal, discreto, sem
exageros, admitindo-se inclusive camarões e lagostas.
Quanto à bebida, os jovens devem ser comedidos, pois dela
necessitam para aquecer suas cordas vocais, preparando-as
para o discurso de agradecimento ao gentil convite da casa.
Todavia, a bebida em demasia pode transformar o discurso e o
pendura num desastre.
Ao final, quando satisfeitos, após evidentemente a inevitável
sobremesa, pede-se a conta, lembrando-se de um detalhe que
faz parte da tradição e não pode ser desrespeitado, que é o
pagamento dos 10% da gorjeta do garçom.
Após isso, o líder e orador deverá levantar-se e começar a
discursar, sempre saudando o estabelecimento e seu
proprietário, agradecendo o convite e a hospitalidade,
enaltecendo a data, os colegas, a faculdade de origem, o
Direito e a Justiça, tudo isso, sob o estímulo dos aplausos e
brindes dos demais colegas do grupo.
Esse é o verdadeiro pendura, que pode ser aceito ou rejeitado.
Caso aceito, ficará um sabor de algo faltante! Agora, se
rejeitado, deve partir dos estudantes de Direito a iniciativa de
chamar a polícia e de preferência dirigindo-se todos à
Delegacia mais próxima, o que lhes dará alguma vantagem pela
neutralidade do terreno.”58
Não é preciso dizer mais nada quanto à técnica do “pendura”,
depois das brilhantes lições do renomado advogado criminalista,
como lembrança do marco fundamental que foi a data do início dos
cursos jurídicos em nosso país.
No entanto, se levado a ferro e fogo, o comportamento narrado
se amolda à figura típica constante do art. 176 do Código Penal.
6.10
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: qualquer pessoa.
Passivo: é somente quem
presta o serviço que deve
ser pago, podendo ser
tanto uma pessoa física
quanto
uma
pessoa
jurídica.
Objeto material
Pode ser a pessoa ou a coisa
contra a qual é dirigida a
conduta praticada pelo sujeito
ativo.
Bem(ns)
protegido(s)
O patrimônio.
juridicamente
Elemento subjetivo
»
»
É o dolo.
Não há previsão para a
modalidade de natureza
culposa.
Modalidades
omissiva
»
»
comissiva
e
As condutas previstas no
tipo penal pressupõem um
comportamento comissivo.
No entanto, é possível a
formulação da hipótese na
qual o agente, na qualidade
de garantidor, podendo,
dolosamente, nada faz
para impedir a lesão
patrimonial
vítima.
sofrida
pela
Consumação e tentativa
»
»
Consuma-se o crime no
momento em que o agente
pratica
qualquer
dos
comportamentos previstos
pelo tipo penal, sem que,
para tanto, disponha de
recursos suficientes para
efetuar o pagamento.
A tentativa é admissível.
7.
FRAUDES
E
ABUSOS
NA
FUNDAÇÃO
ADMINISTRAÇÃO DE SOCIEDADE POR AÇÕES
Fraudes e abusos na fundação ou
administração de sociedade por
ações.
Art. 177. Promover a fundação de
sociedade por ações fazendo, em
prospecto ou em comunicação ao
público ou à assembleia, afirmação
falsa sobre a constituição da
sociedade,
ou
ocultando
fraudulentamente fato a ela relativo:
Pena – reclusão, de um a quatro
anos, e multa, se o fato não constitui
crime contra a economia popular.
§ 1º Incorrem na mesma pena, se o
fato não constitui crime contra a
economia popular:
OU
I – o diretor, o gerente ou o fiscal de
sociedade por ações, que, em
prospecto, relatório, parecer, balanço
ou comunicação ao público ou à
assembleia, faz afirmação falsa sobre
as
condições
econômicas
da
sociedade,
ou
oculta
fraudulentamente, no todo ou em
parte, fato a elas relativo;
II – o diretor, o gerente ou o fiscal que
promove, por qualquer artifício, falsa
cotação das ações de outros títulos da
sociedade;
III – o diretor ou o gerente que toma
empréstimo à sociedade ou usa, em
proveito próprio ou de terceiro, dos
bens ou haveres sociais, sem prévia
autorização da assembleia geral;
IV – o diretor ou o gerente que
compra ou vende, por conta da
sociedade, ações por ela emitidas,
salvo quando a lei o permite;
V – o diretor ou o gerente que, como
garantia de crédito social, aceita em
penhor ou em caução ações da
própria sociedade;
VI – o diretor ou o gerente que, na
falta de balanço, em desacordo com
este, ou mediante balanço falso,
distribui lucros ou dividendos fictícios;
VII – o diretor, o gerente ou o fiscal
que, por interposta pessoa, ou
conluiado com acionista, consegue a
aprovação de conta ou parecer;
VIII – o liquidante, nos casos dos nºs I,
II, III, IV, V e VII;
IX – o representante da sociedade
anônima estrangeira, autorizada a
funcionar no País, que pratica os atos
mencionados nos nºs I e II, ou dá falsa
informação ao Governo.
§ 2º Incorre na pena de detenção, de
6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e
multa, o acionista que, a fim de obter
vantagem para si ou para outrem,
negocia o voto nas deliberações de
assembleia geral.
7.1
Introdução
O delito de fraudes e abusos na fundação ou administração da
sociedade por ações veio previsto pelo tipo penal do art. 177, §§ 1º
e 2º, do diploma repressivo.
Em razão da diversidade dos comportamentos considerados
graves, ligados diretamente à sociedade por ações, cuja
regulamentação veio prevista pela Lei nº 6.404, de 15 de dezembro
de 1976, o mencionado art. 177 do Código Penal, juntamente com
os nove incisos constantes de seu § 1º e o § 2º trouxeram as
previsões típicas que, em virtude das diferenças existentes entre
elas, deverão ser analisadas isoladamente, para melhor
compreensão dos tipos penais.
As infrações penais constantes do caput do art. 177 e do seu §
1º são de natureza subsidiária, devendo ser aplicadas somente se o
fato não constitui crime contra a economia popular, tendo em vista a
disposição expressa contida no preceito secundário do caput do
mencionado artigo. Já o § 2º do art. 177 do Código Penal, por não
dizer respeito a infrações penais ligadas à economia popular, não
possui essa natureza subsidiária, aplicando-se na qualidade de
norma principal.
7.2
Promover a fundação de sociedade por ações fazendo,
em prospecto ou em comunicação ao público ou à
assembleia, afirmação falsa sobre a constituição da
sociedade, ou ocultando fraudulentamente fato a ela
relativo
O núcleo promover, ligado à ideia de fundação de sociedade
por ações, diz respeito à criação, constituição. No entanto, essa
finalidade de criação da sociedade por ações é entendida como
criminosa em virtude do fato de ter o agente levado a efeito, em
prospecto ou em comunicação ao público ou à assembleia,
afirmação falsa sobre a constituição da sociedade, ou ocultando
fraudulentamente fato a ela relativo.
Conforme adverte Ney Moura Teles:
“A conduta é realizada no processo de fundação da sociedade.
O agente, em comunicação oral ou escrita – inclusive por meio
de prospecto, imprensa escrita ou outra – ao público ou aos
integrantes da assembleia de fundação, faz afirmação falsa
sobre os termos da constituição da sociedade ou oculta fato
relevante sobre ela, fraudulentamente.”59
O prospecto tem uma finalidade específica na Lei de Sociedade
por Ações (Lei nº 6.404/76) e deve conter o determinado pelo art. 84
do referido diploma legal, verbis:
Art. 84. O prospecto deverá
mencionar, com precisão e clareza, as
bases da companhia e os motivos que
justifiquem a expectativa de bom êxito
do empreendimento, e em especial:
I – o valor do capital social a ser
subscrito, o modo de sua realização e
a existência ou não de autorização
para aumento futuro;
II – a parte do capital a ser formada
com bens, a discriminação desses
bens e o valor a eles atribuído pelos
fundadores;
III – o número, as espécies e classes
de ações em que se dividirá o capital;
o valor nominal das ações, e o preço
da emissão das ações;
IV – a importância da entrada a ser
realizada no ato da subscrição;
V – as obrigações assumidas pelos
fundadores, os contratos assinados
no interesse da futura companhia e as
quantias já despendidas e por
despender;
VI – as vantagens particulares, a que
terão direito os fundadores ou
terceiros, e o dispositivo do projeto do
estatuto que as regula;
VII – a autorização governamental
para constituir-se a companhia, se
necessária;
VIII – as datas de início e término da
subscrição
e
as
instituições
autorizadas a receber as entradas;
IX – a solução prevista para o caso de
excesso de subscrição;
X – o prazo dentro do qual deverá
realizar-se
a
assembleia
de
constituição da companhia, ou a
preliminar para avaliação dos bens, se
for o caso;
XI – o nome, nacionalidade, estado
civil, profissão e residência dos
fundadores, ou, se pessoa jurídica, a
firma ou denominação, nacionalidade
e sede, bem como o número e
espécie de ações que cada um
houver subscrito;
XII
–
a
instituição
financeira
intermediária do lançamento, em cujo
poder ficarão depositados os originais
do prospecto e do projeto de estatuto,
com os documentos a que fizerem
menção, para exame de qualquer
interessado.
Cuida-se de tipo penal subsidiário que somente terá aplicação
quando o fato não se configurar em crime contra a economia
popular, previsto pela Lei nº 1.521/51.
7.2.1
Classificação doutrinária
Crime próprio, tanto com relação ao sujeito ativo quanto ao
sujeito passivo; doloso; comissivo (na modalidade promover) e
omissivo próprio (no que diz respeito à conduta de ocultar); formal;
instantâneo; de forma livre; monossubjetivo; plurissubsistente; não
transeunte (como regra).
7.2.2
Objeto material e bem juridicamente protegido
Inserido no Título II do Código Penal, o crime de fraudes e
abusos na fundação ou administração de sociedade por ações tem
por finalidade a proteção do patrimônio, sendo este, portanto, o bem
juridicamente protegido pelo tipo.
O objeto material é o prospecto ou a comunicação feita ao
público ou à assembleia que contenha a afirmação falsa sobre a
constituição da sociedade ou mesmo a omissão fraudulenta.
7.2.3
Sujeito ativo e sujeito passivo
O sujeito ativo é aquele que fundou a sociedade por ações.
Os sujeitos passivos podem ser as pessoas físicas ou jurídicas
que subscreveram o capital.
7.2.4
Consumação e tentativa
Conforme lições de Noronha:
“O legislador, no presente dispositivo, estruturou um crime
formal. Não se exige, para a consumação, resultado externo ou
estranho à ação do agente. Esta, por si só, é bastante para
integralizar o delito. Comunicada, pelos meios indicados na lei,
a afirmação ou a omissão falsa, o crime está consumado, ainda
que nenhuma ação seja subscrita.”60
7.2.5
Elemento subjetivo
O delito tipificado no caput do art. 177 do Código Penal
somente pode ser praticado dolosamente, não havendo previsão
para a modalidade de natureza culposa.
7.2.6
Modalidades comissiva e omissiva
O núcleo promover pressupõe um comportamento comissivo
por parte do agente, enquanto ocultar traduz uma omissão própria.
7.2.7
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: é aquele que fundou
a sociedade por ações.
Passivo: podem ser as
pessoas físicas ou jurídicas
que
subscreveram
o
capital.
Objeto material
É
o
prospecto
ou
a
comunicação feita ao público ou
à assembleia que contenha a
afirmação
falsa
sobre
a
constituição da sociedade ou
mesmo a omissão fraudulenta.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
O patrimônio.
Elemento subjetivo
»
»
É o dolo.
Não há previsão para a
modalidade de natureza
culposa.
Modalidades
omissiva
comissiva
e
O núcleo promover pressupõe
um comportamento comissivo
por parte do agente, enquanto
ocultar traduz uma omissão
própria.
Consumação e tentativa
“O legislador, no presente
dispositivo, estruturou um crime
formal. Não se exige, para a
consumação, resultado externo
ou estranho à ação do agente.
Esta, por si só, é bastante para
integralizar
o
delito.
Comunicada,
pelos
meios
indicados na lei, a afirmação ou
a omissão falsa, o crime está
consumado,
ainda
que
nenhuma ação seja subscrita”
(NORONHA, 1980, p. 471).
7.3
O diretor, o gerente ou o fiscal de sociedade por ações
que, em prospecto, relatório, parecer, balanço ou
comunicação ao público ou à assembleia, faz afirmação
falsa sobre as condições econômicas da sociedade, ou
oculta fraudulentamente, no todo ou em parte, fato a elas
relativo
O inciso I do § 1º do art. 177 do Código Penal traduz outra
infração penal ligada à sociedade por ações dizendo que incorrerá
nas mesmas penas previstas para o caput, desde que o fato não
constitua crime contra a economia popular, o diretor, o gerente ou o
fiscal de sociedade por ações, que, em prospecto, relatório, parecer,
balanço ou comunicação ao público ou à assembleia, faz afirmação
falsa sobre as condições econômicas da sociedade, ou oculta
fraudulentamente, no todo ou em parte, fato a elas relativo.
A situação prevista no mencionado inciso I é similar àquela
contida no caput do art. 177 do Código Penal. A diferença reside,
precipuamente, em que, no fato narrado pelo inciso I, a sociedade já
está constituída e os agentes apontados pelo tipo penal, vale dizer,
o diretor, o gerente ou fiscal, afirmam falsamente sobre as
condições econômicas da sociedade ou ocultam, fraudulentamente,
no todo ou em parte, fato a ela relativo, utilizando, para tanto,
prospecto, relatório, parecer, balanço, ou qualquer outro tipo de
comunicação ao público ou à assembleia.
Prospecto é o documento previsto pela Lei nº 6.404/76.
Relatório, segundo Hungria:
“É o compte rendu dos negócios sociais no exercício findo.
Parecer, no sentido restrito da lei, é a exposição que deve ser
apresentada pelo ‘conselho fiscal’ [...]. Balanço é o documento
em que se resume, ao fim de cada ano ou exercício social,
após o inventário do ativo e passivo, a situação real da
sociedade.”61
O art. 133 da Lei das Sociedades por Ações, com as inclusões
promovidas pela Lei nº 10.303, de 31 de outubro de 2001, elenca os
documentos que devem ser apresentados pelos administradores, a
saber: I – o relatório da administração sobre os negócios sociais e
os principais fatos administrativos do exercício findo; II – a cópia das
demonstrações financeiras; III – o parecer dos auditores
independentes, se houver; IV – o parecer do conselho fiscal,
inclusive votos dissidentes, se houver; e V – demais documentos
pertinentes a assuntos incluídos na ordem do dia.
Cuida-se de tipo penal subsidiário, que somente terá aplicação
quando o fato não se configurar em crime contra a economia
popular, previsto pela Lei nº 1.521/51.
7.3.1
Classificação doutrinária
Crime próprio, tanto com relação ao sujeito ativo quanto ao
sujeito passivo; doloso; comissivo (na modalidade fazer afirmação
falsa) e omissivo próprio (no que diz respeito à conduta de ocultar);
formal;
instantâneo;
de
forma
livre;
monossubjetivo;
plurissubsistente; não transeunte (como regra).
7.3.2
Objeto material e bem juridicamente protegido
O crime de fraudes e abusos na fundação ou administração de
sociedade por ações tem por finalidade a proteção do patrimônio,
sendo este, portanto, o bem juridicamente protegido pelo tipo.
O objeto material é o prospecto, o relatório, o parecer, o
balanço ou a comunicação feito(a) ao público ou à assembleia que
contenha a afirmação falsa sobre as condições econômicas da
sociedade, ou onde foram ocultos fraudulentamente, no todo ou em
parte, fatos a elas relativo.
7.3.3
Sujeito ativo e sujeito passivo
O inciso I do § 1º do art. 177 do Código Penal aponta os seus
sujeitos ativos, a saber: o diretor, o gerente ou o fiscal da sociedade
por ações.
Sujeitos passivos podem ser as pessoas físicas ou jurídicas que
subscreveram o capital.
7.3.4
Consumação e tentativa
Consuma-se o delito quando da expedição do prospecto ou da
apresentação do relatório, do parecer, do balanço ou da
comunicação, ao público ou à assembleia, que contenha a
afirmação falsa sobre as condições econômicas da sociedade, ou
que oculta fraudulentamente, no todo ou em parte, fato a ela
relativo.
Tratando-se de crime plurissubsistente, será possível o
reconhecimento da tentativa, mesmo na modalidade ocultar, embora
não seja de fácil configuração.
7.3.5
Elemento subjetivo
O delito tipificado no inciso I do § 1º do art. 177 do Código
Penal somente pode ser praticado dolosamente, não havendo
previsão para a modalidade de natureza culposa.
Assim, aquele que se esquece, negligentemente, de colocar um
dado importante numa comunicação ao público ou à assembleia não
pratica o delito em estudo.
7.3.6
Modalidades comissiva e omissiva
O núcleo fazer (afirmação falsa sobre as condições econômicas
da sociedade) pressupõe um comportamento comissivo por parte do
agente, enquanto ocultar (no todo ou em parte, fato a elas relativo)
traduz uma omissão própria.
7.3.7
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: diretor, o gerente ou
o fiscal da sociedade por
ações.
Passivo: podem ser as
pessoas físicas ou jurídicas
que
subscreveram
o
capital.
Objeto material
É o prospecto, o relatório, o
parecer, o balanço ou a
comunicação feito(a) ao público
ou à assembleia que contenha
a afirmação falsa sobre as
condições
econômicas
da
sociedade, ou onde foram
ocultos fraudulentamente, no
todo ou em parte, fatos a elas
relativo.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
O patrimônio.
Elemento subjetivo
»
»
É o dolo.
Não há previsão para a
modalidade de natureza
culposa.
Modalidades
omissiva
comissiva
e
O núcleo fazer (afirmação falsa
sobre as condições econômicas
da sociedade) pressupõe um
comportamento comissivo por
parte do agente, enquanto
ocultar (no todo ou em parte,
fato a elas relativo) traduz uma
omissão própria.
Consumação e tentativa
»
Consuma-se
o
delito
quando da expedição do
prospecto
ou
da
»
7.4
apresentação do relatório,
do parecer, do balanço ou
da
comunicação,
ao
público ou à assembleia,
que contenha a afirmação
falsa sobre as condições
econômicas da sociedade,
ou
que
oculta
fraudulentamente, no todo
ou em parte, fato a ela
relativo.
Será
possível
o
reconhecimento
da
tentativa,
mesmo
na
modalidade ocultar, embora
não
seja
de
fácil
configuração.
O diretor, o gerente ou o fiscal que promove, por
qualquer artifício, falsa cotação das ações ou de outros
títulos da sociedade
De acordo com as precisas lições de Cezar Roberto Bitencourt:
“A conduta tipificada é promover, mediante qualquer artifício,
falsa cotação de ações ou de outros títulos de sociedade.
Cotação falsa é a que não corresponde ao valor regular do
mercado, determinado pela ‘oferta e procura’. A falsa cotação
das ações produz indicação inverídica sobre a situação
econômica de qualquer companhia, induzindo erro aos que
transacionarem com a empresa. A falsa cotação tanto pode ser
para aumentar como para diminuir o valor das ações.
Esse crime só pode ser praticado em relação a empresas cujos
títulos tenham cotação regular no mercado de ações, na
medida em que somente estes podem ser objeto de cotação
falsa ou correta.”62
Artifício é o ardil, a fraude utilizada pelo agente no sentido de
fazer com que os sujeitos passivos acreditem na falsa cotação, seja
ela para mais ou, mesmo, para menos.
Cuida-se de tipo penal subsidiário, que somente terá aplicação
quando o fato não se configurar em crime contra a economia
popular, previsto pela Lei nº 1.521/51.
7.4.1
Classificação doutrinária
Crime próprio, tanto com relação ao sujeito ativo quanto ao
sujeito passivo; doloso; comissivo (tendo em vista o núcleo
promover); formal; instantâneo; de forma livre; monossubjetivo;
plurissubsistente; não transeunte (como regra).
7.4.2
Objeto material e bem juridicamente protegido
O crime de fraudes e abusos na fundação ou administração de
sociedade por ações tem por finalidade a proteção do patrimônio,
sendo este, portanto, o bem juridicamente protegido pelo tipo.
Objeto material são as ações ou outros títulos da sociedade
cotados falsamente pelo agente.
7.4.3
Sujeito ativo e sujeito passivo
Os sujeitos ativos são o diretor, o gerente ou o fiscal que
promovem, por qualquer artifício, falsa cotação das ações ou de
outros títulos da sociedade.
Os sujeitos passivos podem ser os acionistas, terceiros que
sofram dano com a prática criminosa ou, ainda, a própria sociedade
por ações.
7.4.4
Consumação e tentativa
Consuma-se o delito com a efetiva promoção da falsa cotação
das ações ou de outros títulos da sociedade.
Tratando-se de crime plurissubsistente, torna-se admissível o
raciocínio relativo à tentativa.
7.4.5
Elemento subjetivo
O delito tipificado no inciso II do § 1º do art. 177 do Código
Penal somente pode ser praticado dolosamente, não havendo
previsão para a modalidade de natureza culposa.
7.4.6
Modalidade comissiva
A conduta de promover pressupõe um comportamento
comissivo levado a efeito pelo agente.
7.4.7
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: é o diretor, o gerente
ou o fiscal que promove,
por qualquer artifício, falsa
cotação das ações ou de
outros títulos da sociedade.
Passivo: podem ser os
acionistas, terceiros que
sofram dano com a prática
criminosa ou, ainda, a
própria
sociedade
por
ações.
Objeto material
São as ações ou outros títulos
da
sociedade
cotados
falsamente pelo agente.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
O patrimônio.
Elemento subjetivo
»
»
É o dolo.
Não há previsão para a
modalidade de natureza
culposa.
Modalidades
omissiva
comissiva
e
A
conduta
de
promover
pressupõe um comportamento
comissivo levado a efeito pelo
agente.
Consumação e tentativa
»
»
7.5
Consuma-se o delito com a
efetiva promoção da falsa
cotação das ações ou de
outros títulos da sociedade.
Admite-se a tentativa.
O diretor ou o gerente que toma empréstimo à sociedade
ou usa, em proveito próprio ou de terceiro, dos bens ou
haveres sociais, sem prévia autorização da assembleia
geral
Tanto o diretor quanto o gerente são gestores da sociedade por
ações. Não podem, outrossim, valer-se dos poderes que possuem
para utilizar os bens e haveres sociais em seu benefício, mesmo
que não causem, efetivamente, qualquer tipo de prejuízo à referida
sociedade.
Conforme salienta Noronha:
“Empréstimo, diz o legislador, usando expressão genérica,
designativa de contrato, pelo qual alguém entrega objeto, que
deve ser restituído depois em espécie ou em gênero.
Ao dispositivo penal repugna o simples uso do patrimônio
social, que a lei coloca ao lado do empréstimo. Não pode o
diretor ou o gerente usar dos bens e haveres sociais, quer em
benefício próprio, quer no de terceiros. O patrimônio da
sociedade, em relação àqueles administradores, são bens
alheios. Têm eles a guarda e a administração, não podendo
tomá-los emprestado ou usá-los sem prévia autorização da
assembleia geral.”63
7.5.1
Classificação doutrinária
Crime próprio, tanto com relação ao sujeito ativo quanto ao
sujeito passivo; doloso; comissivo (tomar empréstimo à sociedade
ou usar, em proveito próprio ou de terceiro, bens ou haveres sociais,
sem prévia autorização da assembleia, pressupõe um
comportamento positivo do agente); de forma vinculada (uma vez
que o tipo penal aponta o modo pelo qual o delito pode ser
praticado); monossubjetivo; plurissubsistente; transeunte ou não
transeunte (dependendo da hipótese concreta).
7.5.2
Objeto material e bem juridicamente protegido
O crime de fraudes e abusos na fundação ou administração de
sociedade por ações tem por finalidade a proteção do patrimônio,
sendo este, portanto, o bem juridicamente protegido pelo tipo. No
caso do inciso III do § 2º do art. 177, busca-se proteger o patrimônio
da sociedade por ações.
Objeto material é o empréstimo tomado pelo diretor ou pelo
gerente, ou bens ou haveres sociais por ele utilizados.
7.5.3
Sujeito ativo e sujeito passivo
O sujeito ativo, de acordo com a redação constante do inciso III
do § 1º do art. 177 do Código Penal, é o diretor ou o gerente da
sociedade por ações.
O sujeito passivo é a própria sociedade por ações, bem como
os seus acionistas.
7.5.4
Consumação e tentativa
Consuma-se o delito em estudo no momento em que o agente,
efetivamente, toma o empréstimo à sociedade ou usa, em proveito
próprio ou de terceiro, os bens ou haveres sociais sem prévia
autorização da assembleia geral. Assim, por exemplo, o simples fato
de usar um bem, seja ele móvel ou imóvel, pertencente à sociedade
por ações, sem a necessária e prévia autorização da assembleia
geral, tem o condão de configurar o delito, mesmo que isso não
tenha trazido, em tese, qualquer prejuízo à sociedade.
Tal como acontece em outras passagens de nosso
ordenamento jurídico-penal, a exemplo do prefeito que utiliza
indevidamente, em proveito próprio ou alheio, bens, rendas ou
serviços públicos (inciso II do art. 1º do Decreto-Lei nº 201/67), no
inciso III do § 1º do art. 177 do Código Penal, reprova-se
penalmente o comportamento daquele que, em virtude do cargo ou
função ocupada, tem maior facilidade e poder para se valer dos
bens pertencentes à sociedade por ações.
Tratando-se de crime plurissubsistente, como regra, será
admissível o raciocínio relativo à tentativa.
7.5.5
Elemento subjetivo
O delito tipificado no inciso III do § 1º do art. 177 do Código
Penal somente pode ser praticado dolosamente, não havendo
previsão para a modalidade de natureza culposa.
7.5.6
Modalidades comissiva e omissiva
A conduta de tomar empréstimo à sociedade ou usar, em
proveito próprio ou de terceiro, os bens ou haveres sociais, sem
prévia autorização da assembleia geral, pressupõe um
comportamento positivo por parte do agente.
No entanto, poderá ser levado a efeito o raciocínio
correspondente à omissão imprópria se o garantidor, dolosamente,
nada fizer para impedir que o agente pratique um dos
comportamentos previstos pelo inciso em estudo.
7.5.7
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: é o diretor ou o
gerente da sociedade por
ações.
Passivo: é a própria
sociedade por ações, bem
como os seus acionistas.
Objeto material
É o empréstimo tomado pelo
diretor ou pelo gerente, ou bens
ou haveres sociais por ele
utilizados.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
O patrimônio da sociedade por
ações.
Elemento subjetivo
»
»
É o dolo.
Não há previsão para a
modalidade de natureza
culposa.
Modalidades
omissiva
»
»
comissiva
e
A conduta de tomar
empréstimo ou usar os
bens ou haveres sociais
pressupõe
um
comportamento positivo por
parte do agente.
No entanto, poderá ser
levado a efeito o raciocínio
correspondente à omissão
imprópria se o garantidor,
dolosamente, nada fizer
para impedir que o agente
pratique
um
dos
comportamentos previstos
pelo inciso em estudo.
Consumação e tentativa
»
»
7.6
Consuma-se o delito no
momento em que o agente,
efetivamente,
toma
o
empréstimo à sociedade ou
usa, em proveito próprio ou
de terceiro, os bens ou
haveres sociais sem prévia
autorização da assembleia
geral.
Será
admissível
o
raciocínio
relativo
à
tentativa.
O diretor ou o gerente que compra ou vende, por conta
da sociedade, ações por ela emitidas, salvo quando a lei
o permite
Determina o art. 30 da Lei nº 6.404/76, verbis:
Art. 30. A companhia não poderá
negociar com as próprias ações.
§ 1º Nessa proibição não se
compreendem:
a) as operações de resgate,
reembolso ou amortização previstas
em lei;
b) a aquisição, para permanência em
tesouraria ou cancelamento, desde
que até o valor do saldo de lucros ou
reservas, exceto a legal, e sem
diminuição do capital social, ou por
doação;
c) a alienação das ações adquiridas
nos termos da alínea b e mantidas em
tesouraria;
d) a compra quando, resolvida a
redução
do
capital
mediante
restituição, em dinheiro, de parte do
valor das ações, o preço destas em
bolsa for inferior ou igual à
importância que deve ser restituída.
§ 2º A aquisição das próprias ações
pela companhia aberta obedecerá,
sob pena de nulidade, às normas
expedidas pela Comissão de Valores
Mobiliários, que poderá subordiná-la à
prévia autorização em cada caso.
§ 3º A companhia não poderá receber
em garantia as próprias ações, salvo
para assegurar a gestão dos seus
administradores.
§ 4º As ações adquiridas nos termos
da alínea b do § 1º, enquanto
mantidas em tesouraria, não terão
direito a dividendo nem a voto.
§ 5º No caso da alínea d do § 1º, as
ações adquiridas serão retiradas
definitivamente de circulação.
Conforme esclarece Cezar Roberto Bitencourt:
“As condutas proibidas estão representadas pelos verbos
nucleares ‘comprar’ (adquirir por meio oneroso) e ‘vender’
(alienar ou ceder por preço determinado). Essa proibição
abrange todas as formas de transações capazes de produzir
efeitos econômicos. Comprar e vender, nesse caso, têm o
sentido de qualquer negócio que produza os efeitos
econômicos de compra e venda.”64
Como verificamos anteriormente, mediante a transcrição do art.
30 da Lei nº 6.404/76, embora a sociedade não possa, como regra,
negociar com as próprias ações, tal situação é excepcionada pelo
seu § 1º. Assim, o administrador que atuar nos moldes do referido §
1º da Lei de Sociedade por Ações não praticará um comportamento
penalmente relevante e, consequentemente, restará afastada a
tipicidade correspondente ao inciso IV do § 1º do art. 177 do Código
Penal.
7.6.1
Classificação doutrinária
Crime próprio, tanto com relação ao sujeito ativo quanto ao
sujeito passivo; doloso; comissivo (tendo em vista os núcleos
comprar e vender); material; instantâneo; de forma vinculada;
monossubjetivo; plurissubsistente; não transeunte (como regra).
7.6.2
Objeto material e bem juridicamente protegido
O patrimônio da sociedade por ações é o bem juridicamente
protegido pelo inciso IV do § 1º do art. 177 do Código Penal.
Objeto material são as ações compradas ou vendidas.
7.6.3
Sujeito ativo e sujeito passivo
O sujeito ativo, de acordo com a redação constante do inciso IV
do § 1º do art. 177 do Código Penal, é o diretor ou o gerente da
sociedade por ações.
O sujeito passivo é a própria sociedade por ações, bem como
os seus acionistas.
7.6.4
Consumação e tentativa
Consuma-se o delito no instante em que o agente efetiva a
transação de compra ou venda, por conta da sociedade, de ações
por ela emitidas, sem a permissão legal.
Por se tratar de um crime plurissubsistente, no qual é possível
visualizar o fracionamento do iter criminis, será admissível, como
regra, a tentativa.
7.6.5
Elemento subjetivo
O delito tipificado no inciso IV do § 1º do art. 177 do Código
Penal somente pode ser praticado dolosamente, não havendo
previsão para a modalidade de natureza culposa.
7.6.6
Modalidades comissiva e omissiva
A conduta de comprar ou vender pressupõe um comportamento
positivo por parte do agente.
No entanto, poderá ser levado a efeito o raciocínio
correspondente à omissão imprópria se o garantidor, dolosamente,
nada fizer para impedir que o agente pratique um dos
comportamentos previstos pelo inciso em estudo.
7.6.7
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: é o diretor ou o
gerente da sociedade por
ações.
Passivo: é a própria
sociedade por ações, bem
como os seus acionistas.
Objeto material
As ações
vendidas.
Bem(ns)
protegido(s)
compradas
ou
juridicamente
O patrimônio da sociedade por
ações.
Elemento subjetivo
»
»
É o dolo.
Não há previsão para a
modalidade de natureza
culposa.
Modalidades
omissiva
»
»
comissiva
e
A conduta de comprar ou
vender
pressupõe
um
comportamento positivo por
parte do agente.
No entanto, poderá ser
levado a efeito o raciocínio
correspondente à omissão
imprópria se o garantidor,
dolosamente, nada fizer
para impedir que o agente
pratique
um
dos
comportamentos previstos
pelo inciso em estudo.
Consumação e tentativa
»
»
7.7
Consuma-se o delito no
instante em que o agente
efetiva a transação de
compra ou venda, por
conta da sociedade, de
ações por ela emitidas,
sem a permissão legal.
Será admissível, como
regra, a tentativa.
O diretor ou o gerente que, como garantia de crédito
social, aceita em penhor ou em caução ações da própria
sociedade
Determina o § 3º do art. 30 da Lei nº 6.404/76:
§ 3º A companhia não poderá receber
em garantia as próprias ações, salvo
para assegurar a gestão dos seus
administradores.
Assevera Noronha que a razão do dispositivo é clara, pois que
por intermédio dele se impede:
“Que a sociedade venha a receber, como garantia de crédito
que possui, ações dela mesma. Seria, então, credora e fiadora
ao mesmo tempo, o que é inadmissível.
Para haver o crime, é necessário tenha a sociedade crédito
contra acionista ou contra terceiro, e que, como garantia desse
crédito, o diretor ou o gerente aceite ações da própria
sociedade. São eles então os sujeitos ativos do delito, que
manifestamente é fraude.”65
Penhor é um direito real que se configura, nos termos do art.
1.431 do Código Civil, na transferência efetiva da posse que, em
garantia do débito ao credor ou a quem o represente, faz o devedor,
ou alguém por ele, de uma coisa móvel (no caso, as ações da
própria sociedade) suscetível de alienação; caução, a seu turno,
seria o depósito levado a efeito a fim de assegurar uma obrigação
assumida.
7.7.1
Classificação doutrinária
Crime próprio, tanto com relação ao sujeito ativo quanto ao
sujeito passivo; doloso; comissivo (tendo em vista o núcleo aceitar);
material; instantâneo; de forma vinculada;
plurissubsistente; não transeunte (como regra).
7.7.2
monossubjetivo;
Objeto material e bem juridicamente protegido
O patrimônio da sociedade por ações é o bem juridicamente
protegido pelo inciso V do § 1º do art. 177 do Código Penal.
Objeto material são as ações que foram aceitas em penhor ou
caução.
7.7.3
Sujeito ativo e sujeito passivo
O sujeito ativo, de acordo com a redação constante do inciso V
do § 1º do art. 177 do Código Penal, é o diretor ou o gerente da
sociedade por ações.
O sujeito passivo é a própria sociedade por ações, bem como
seus acionistas.
7.7.4
Consumação e tentativa
Consuma-se o delito no instante em que o agente efetiva a
transação, aceitando como garantia de crédito as ações da própria
sociedade em penhor ou em caução. Por se tratar de um crime
plurissubsistente, no qual é possível visualizar o fracionamento do
iter criminis, será admissível, como regra, a tentativa.
7.7.5
Elemento subjetivo
O delito tipificado no inciso V do § 1º do art. 177 do Código
Penal somente pode ser praticado dolosamente, não havendo
previsão para a modalidade de natureza culposa.
7.7.6
Modalidades comissiva e omissiva
O núcleo aceitar pressupõe um comportamento comissivo por
parte do agente, no entanto, poderá se configurar a omissão
imprópria quando o garantidor, dolosamente, nada fizer para impedir
a transação ilícita.
7.7.7
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: é o diretor ou o
gerente da sociedade por
ações.
Passivo: é a própria
sociedade por ações, bem
como seus acionistas.
Objeto material
São as ações que foram aceitas
em penhor ou caução.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
O patrimônio da sociedade por
ações.
Elemento subjetivo
»
»
É o dolo.
Não há previsão para a
modalidade de natureza
culposa.
Modalidades
omissiva
comissiva
e
O núcleo aceitar pressupõe um
comportamento comissivo por
parte do agente, no entanto,
poderá se configurar a omissão
imprópria quando o garantidor,
dolosamente, nada fizer para
impedir a transação ilícita.
Consumação e tentativa
»
»
7.8
Consuma-se o delito no
instante em que o agente
efetiva
a
transação,
aceitando como garantia de
crédito as ações da própria
sociedade em penhor ou
em caução.
Será admissível, como
regra, a tentativa.
O diretor ou o gerente que, na falta de balanço, em
desacordo com este, ou mediante balanço falso, distribui
lucros ou dividendos fictícios
O art. 202 da Lei de Sociedade por ações cuida dos chamados
dividendos obrigatórios, dizendo, com a redação que lhe foi dada
pela Lei nº 10.303, de 2001, que os acionistas têm o direito de
receber como dividendo obrigatório, em cada exercício, a parcela
dos lucros estabelecida no estatuto ou, se este for omisso, a
importância determinada de acordo com seus parágrafos.
O que a lei penal quer evitar, por intermédio do inciso VI do § 1º
do art. 177 do diploma repressivo, é a distribuição de lucros ou
dividendos fictícios, ou seja, que não correspondam com a realidade
dos lucros da sociedade por ações.
Conforme lições de Hungria:
“Para verificação de lucros líquidos, é indispensável o balanço
ao fim de cada ano social. Se há distribuição de dividendos sem
prévio balanço ou em descordo com este, a fraude é
reconhecível prima facie. No caso do balanço falso, porém, é
preciso distinguir entre a hipótese de falsidade intencional e a
de inexatidão por erro de avaliação ou contabilidade, que tenha
passado despercebido ao diretor ou gerente: no primeiro caso,
haverá o crime de que ora se trata em concurso com o de
falsidade material ou ideológica (arts. 299 ou 304); no segundo,
nenhum crime poderá ser reconhecido. Balanço falso é o
balanço fraudulento, como tal se entendendo, na espécie,
aquele que, artificialmente, apresenta majoração dos valores
ativos ou minoração dos valores passivos, de modo a fazer
supor um lucro inexistente ou superior ao que realmente
existe.”66
7.8.1
Classificação doutrinária
Crime próprio, tanto com relação ao sujeito ativo quanto ao
sujeito passivo; doloso; comissivo (tendo em vista o núcleo distribuir
– lucros ou dividendos fictícios); material; instantâneo; de forma
vinculada; monossubjetivo; plurissubsistente; não transeunte (como
regra).
7.8.2
Objeto material e bem juridicamente protegido
O patrimônio da sociedade por ações é o bem juridicamente
protegido pelo inciso VI do § 1º do art. 177 do Código Penal.
Objeto material são os lucros ou dividendos fictícios distribuídos
pelo agente.
7.8.3
Sujeito ativo e sujeito passivo
O sujeito ativo, de acordo com a redação constante do inciso VI
do § 1º do art. 177 do Código Penal, é o diretor ou o gerente da
sociedade por ações.
O sujeito passivo é a própria sociedade por ações, bem como
seus acionistas.
7.8.4
Consumação e tentativa
Consuma-se o delito quando o agente, efetivamente, leva a
efeito a distribuição dos lucros ou dividendos fictícios. Distribuir deve
ser entendido no sentido de entregar, repassar os lucros ou
dividendos fictícios aos acionistas.
Por se tratar de um crime plurissubsistente no qual é possível
visualizar o fracionamento do iter criminis, será admissível, como
regra, a tentativa.
7.8.5
Elemento subjetivo
O delito tipificado no inciso VI do § 1º do art. 177 do Código
Penal somente pode ser praticado dolosamente, não havendo
previsão para a modalidade de natureza culposa.
7.8.6
Modalidades comissiva e omissiva
O núcleo distribuir pressupõe um comportamento comissivo por
parte do agente. No entanto, poderá se configurar a omissão
imprópria quando o garantidor, dolosamente, nada fizer para impedir
a distribuição de lucros ou dividendos fictícios.
7.8.7
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: é o diretor ou o
gerente da sociedade por
ações.
Passivo: é a própria
sociedade por ações, bem
como seus acionistas.
Objeto material
São os lucros ou dividendos
fictícios
distribuídos
pelo
agente.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
O patrimônio da sociedade por
ações.
Elemento subjetivo
»
»
É o dolo.
Não há previsão para a
modalidade de natureza
culposa.
Modalidades
omissiva
»
»
comissiva
e
O
núcleo
distribuir
pressupõe
um
comportamento comissivo
por parte do agente.
No entanto, poderá se
configurar
a
omissão
imprópria
quando
o
garantidor,
dolosamente,
nada fizer para impedir a
distribuição de lucros ou
dividendos fictícios.
Consumação e tentativa
»
Consuma-se
o
delito
quando
o
agente,
efetivamente, leva a efeito
a distribuição dos lucros ou
»
7.9
dividendos
fictícios.
Distribuir
deve
ser
entendido no sentido de
entregar,
repassar
os
lucros
ou
dividendos
fictícios aos acionistas.
Será admissível, como
regra, a tentativa.
O diretor, o gerente ou o fiscal que, por interposta
pessoa, ou conluiado com acionista, consegue a
aprovação de conta ou parecer
Cuidando da assembleia geral, o art. 132 da Lei nº 6.404/76
determina:
Art. 132. Anualmente, nos quatro
primeiros meses seguintes ao término
do exercício social, deverá haver uma
assembleia geral para:
I
–
tomar
as
contas
dos
administradores, examinar, discutir e
votar as demonstrações financeiras;
Competirá à assembleia geral, portanto, a aprovação das
contas apresentadas pelos administradores da sociedade por ações,
conforme nos esclarece, ainda, o art. 134 do mencionado diploma
legal.
Analisando o tipo penal em estudo, José Henrique Pierangeli,
com precisão, aduz:
“A prática do crime se realiza mediante duas condutas: a
primeira é de pessoa, a quem os administradores ou o fiscal
cedem suas ações para que o cessionário vote na assembleia
geral em seu favor; a segunda consiste em corromper
acionistas, pessoas que têm direito a voto, para que votem de
conformidade com o desejado pelos administradores ou fiscal.
Mas há burla também quando ocorre aliciamento de acionista
verdadeiro, isto é, autêntico, que mediante suborno vota pela
aprovação de ditas contas. O tipo penal fala em conluio que
significa conspiração, trama, maquinação, e que aqui tem bem
o sentido de trama urdida, que tem por fim a aprovação da
matéria submetida à assembleia geral. Conta e parecer devem
estar em contraste com a verdade, e a sua aprovação
representa uma lesão ou perigo de lesão, ao interesse da
sociedade ou de outrem.”67
7.9.1
Classificação doutrinária
Crime próprio, tanto com relação ao sujeito ativo quanto ao
sujeito passivo; doloso; comissivo; formal; instantâneo; de forma
livre; monossubjetivo; plurissubsistente; não transeunte.
7.9.2
Objeto material e bem juridicamente protegido
O patrimônio da sociedade por ações é o bem juridicamente
protegido pelo inciso VII do § 1º do art. 177 do Código Penal.
O objeto material é a conta ou parecer que foi aprovada(o)
indevidamente.
7.9.3
Sujeito ativo e sujeito passivo
Os sujeitos ativos, de acordo com a redação legal, são o diretor, o
gerente ou o fiscal. O sujeito passivo é a própria sociedade por
ações, bem como seus acionistas.
7.9.4
Consumação e tentativa
Consuma-se o delito com a efetiva aprovação, pela assembleia
geral, das contas ou parecer fraudulentos.
Por se tratar de um crime plurissubsistente, no qual é possível
visualizar o fracionamento do iter criminis, será admissível, como
regra, a tentativa.
7.9.5
Elemento subjetivo
O delito tipificado no inciso VII do § 1º do art. 177 do Código
Penal somente pode ser praticado dolosamente, não havendo
previsão para a modalidade de natureza culposa.
7.9.6
Modalidade comissiva
A conduta narrada pelo inciso em estudo pressupõe um
comportamento positivo praticado pelo agente.
7.9.7
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: é o diretor, o gerente
ou o fiscal.
Passivo:
a
própria
sociedade por ações, bem
como seus acionistas.
Objeto material
A conta ou parecer que foi
aprovada(o) indevidamente.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
O patrimônio da sociedade.
Elemento subjetivo
»
»
É o dolo.
Não há previsão para a
modalidade de natureza
culposa.
Modalidades
omissiva
comissiva
e
A conduta narrada pelo inciso
em estudo pressupõe um
comportamento
positivo
praticado pelo agente.
Consumação e tentativa
Consuma-se o delito com a
efetiva
aprovação,
pela
assembleia geral, das contas ou
parecer
fraudulentos.
Será
admissível, como regra, a
tentativa.
7.10
O liquidante, nos casos dos nºs I, II, III, IV, V e VII
Os arts. 208 a 218 da Lei nº 6.404/76 cuidam da liquidação da
sociedade por ações, que poderá ocorrer judicial ou
extrajudicialmente, competindo ao liquidante representar a
companhia e praticar todos os atos necessários à liquidação,
inclusive alienar bens móveis ou imóveis, transigir, receber e dar
quitação (art. 211).
A figura do liquidante é de tal importância e responsabilidade,
que entendeu por bem a lei penal incluí-lo em todas as figuras
típicas previstas pelos incisos I, II, III, IV, V e VII. Como se percebe,
somente nas hipóteses previstas pelo inciso VI do § 1º do art. 177
do Código Penal, que não lhe dizem respeito, é que o liquidante não
poderá figurar como sujeito ativo do delito de fraudes e abusos na
fundação ou administração de sociedade por ações.
Cuida-se, in casu, do chamado tipo penal primariamente
remetido, no qual o intérprete, para que possa compreender e
aplicar o tipo penal em questão, deverá, obrigatoriamente, deslocarse para as demais figuras típicas por ele indicadas.
7.10.1
Classificação doutrinária
A correspondente a cada inciso já analisado, constante do § 1º
do art. 177 do Código Penal.
7.10.2
Objeto material e bem juridicamente protegido
Verificar cada inciso objeto de análise.
7.10.3
Sujeito ativo e sujeito passivo
O sujeito ativo é o liquidante, cujo comportamento deverá ser
aferido em cada infração penal prevista pelos incisos I, II, III, IV, V e
VII, do § 1º do art. 177 do Código Penal.
O sujeito passivo é a própria sociedade por ações, bem como
seus acionistas.
7.10.4
Consumação e tentativa
Deverão ser verificadas, isoladamente, em cada infração penal
já analisada, cuja autoria poderá ser atribuída ao liquidante, nos
termos do inciso VIII do § 1º do art. 177 do Código Penal.
7.10.5
Elemento subjetivo
Em todas as infrações penais cuja autoria se possa atribuir ao
liquidante, exige-se o comportamento doloso do agente, não
havendo previsão legal para a modalidade de natureza culposa.
7.10.6
Modalidades comissiva e omissiva
Verificar os comentários levados a efeito quando do estudo dos
incisos I, II, III, IV, V e VII do § 1º do art. 177 do estatuto repressivo.
7.11
O representante da sociedade anônima estrangeira,
autorizada a funcionar no País, que pratica os atos
mencionados nos nºs I e II, ou dá falsa informação ao
Governo
Aplicam-se ao representante da sociedade anônima
estrangeira, autorizada a funcionar no País, os incisos I e II do § 1º
do art. 177 do Código Penal. Além dessas infrações penais, também
será responsabilizado criminalmente o mencionado representante
que der falsa informação ao Governo, aqui entendido como o
Governo brasileiro.
Trata-se, na sua primeira parte, de um tipo penal primariamente
remetido, cujo conceito já foi explicitado quando do estudo do inciso
anterior.
Dissertando sobre a infração penal em estudo, observa
Mirabete:
“As sociedades anônimas estrangeiras podem funcionar no
Brasil, legalmente, com a autorização, mediante decreto, do
Governo (art. 64 do Decreto-Lei nº 2.627/40), devendo manter
no país um representante com plenos poderes para tratar e
resolver qualquer questão (art. 67). Pode esse representante
cometer os crimes de fraude sobre as condições econômicas
da sociedade e de falsa cotação de ações ou títulos da
sociedade (art. 177, § 1º, incisos I e II). Pode, ainda, dar falsa
informação a respeito da sociedade ao Governo, respondendo
criminalmente pelo fato. Exige-se que esteja consciente da
falsidade da informação, sendo necessário que se refira esta a
fato ou circunstância relevantes.”68
7.11.1
Classificação doutrinária
Verificar classificação doutrinária relativa aos incisos I e II do §
1º do art. 177 do Código Penal, no que diz respeito à primeira parte
do inciso sub examen.
No que diz respeito à segunda parte do inciso IX do § 1º do art.
177 do Código Penal, trata-se de crime próprio, tanto com relação
ao sujeito ativo quanto ao sujeito passivo; doloso; comissivo;
material; instantâneo; monossubjetivo; plurissubsistente; não
transeunte.
7.11.2
Objeto material e bem juridicamente protegido
Nos casos dos incisos I e II do § 1º do art. 177 do diploma
repressivo, vide notas a eles correspondentes.
Quanto ao fato de dar falsa informação ao Governo, bens
juridicamente protegidos, in casu, seguindo as lições de Guilherme
de Souza Nucci, são “o patrimônio societário e também a
credibilidade das informações que interessam ao Estado.”69
7.11.3
Sujeito ativo e sujeito passivo
O sujeito ativo é o representante de sociedade anônima
estrangeira, autorizada a funcionar no País, que pratica os atos
mencionados nos incisos I e II do § 1º do art. 177 do Código Penal,
ou dá falsa informação ao Governo.
O sujeitos passivos são a sociedade anônima, os acionistas,
nas hipóteses previstas pelos referidos incisos I e II, bem como o
Estado, quando o agente dá falsa informação ao Governo.
7.11.4
Consumação e tentativa
Verificar os momentos consumativos referentes aos incisos I e II
do § 1º do art. 177 do Código Penal.
Quanto à segunda parte, o delito se consuma quando o
representante de sociedade anônima estrangeira, efetivamente,
fornece, entrega, dá ao Governo falsa informação.
7.11.5
Elemento subjetivo
O delito tipificado no inciso IX do § 1º do art. 177 do Código
Penal somente pode ser praticado dolosamente, não havendo
previsão para a modalidade de natureza culposa.
7.11.6
Modalidades comissiva e omissiva
Verificar os modelos de comportamentos referentes aos incisos
I e II do § 1º do art. 177 do Código Penal.
O núcleo dar, constante da segunda parte do inciso IX em
análise, pressupõe um comportamento comissivo por parte do
agente.
7.12
Pena, ação penal, extinção da punibilidade e suspensão
condicional do processo
A pena cominada ao delito de fraudes e abusos na fundação ou
administração de sociedade por ações é de reclusão, de 1 (um) a 4
(quatro) anos, e multa, se o fato não constitui crime contra a
economia popular.
A ação penal é de iniciativa pública incondicionada.
Ressalta Mirabete:
“Pelo art. 3º do Decreto-Lei nº 697, de 23/3/69, extinguiu-se a
punibilidade dos crimes previstos no art. 177 do Código Penal
para as emissões contábeis relativas a títulos registrados na
forma do Decreto-Lei nº 286, de 28/2/67, exceto para os que
não cumprissem, dentro de determinado
determinações daquele diploma legal.”70
prazo,
as
Será possível a confecção de proposta de suspensão
condicional do processo, nos termos do art. 89 da Lei nº 9.099/95.
7.13
Negociação de voto
O delito de negociação de voto veio tipificado no § 2º do art.
177 do Código Penal, com a seguinte redação, verbis:
§ 2º Incorre na pena de detenção, de
seis meses a dois anos, e multa, o
acionista que, a fim de obter
vantagem para si ou para outrem,
negocia o voto nas deliberações de
assembleia geral.
Há discussão doutrinária sobre a vigência do mencionado
parágrafo. Noronha entende que, “com a redação dada pela Lei nº
10.303, de 31 de outubro de 2001, introduziu-se uma figura nova na
sistemática das sociedades por ações, qual seja, a do acordo de
acionistas (art. 118 e parágrafos), derrogando o § 2º do art. 177 do
estatuto penal.”71
Guilherme de Souza Nucci, com razão, posiciona-se em sentido
contrário, argumentando:
“O acordo de acionistas e a punição civil estabelecida para
quem abusar do direito de votar são insuficientes para revogar
uma lei penal. Esta somente é considerada revogada de
maneira expressa ou quando outra lei penal discipline
inteiramente a matéria. O fato de haver possibilidade de o
acionista ser responsável, respondendo pelos danos causados,
pelo voto abusivo ou poder fazer acordos lícitos com outros
acionistas não elide o delito, que tem por finalidade punir aquele
que, fraudulentamente, busca obter vantagem para si ou para
outrem em detrimento dos demais acionistas e da sociedade.”72
8.
EMISSÃO IRREGULAR DE CONHECIMENTO DE DEPÓSITO
OU WARRANT
Emissão irregular de conhecimento
de depósito ou warrant Art. 178.
Emitir conhecimento de depósito ou
warrant,
em
desacordo
com
disposição legal:
Pena – reclusão, de um a quatro
anos, e multa.
8.1
Introdução
O tipo penal do art. 178 do diploma repressivo, que prevê o
delito de emissão irregular de conhecimento de depósito ou
“warrant”, comina uma pena de reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro)
anos, e multa, para aquele que emitir conhecimento de depósito ou
warrant, em desacordo com disposição legal.
Wille Duarte Costa, dissertando sobre o tema, esclarece:
“Os armazéns-gerais são estabelecimentos próprios para
depósito e conservação de mercadorias. Não basta armazenar,
é preciso ter conhecimento suficiente para conservar a
mercadoria, principalmente tratando-se de produtos perecíveis.
Garantido pela estocagem e conservação de seus produtos, o
depositante passa a ter com o estabelecimento depositário um
valor geralmente considerável, que pode por ele, depositante,
ser negociado. Daí que, quando o interessado procura o
armazém-geral e nele deposita suas mercadorias, pode pedir
que sejam emitidos, a seu favor, títulos de crédito em garantia
do depósito feito e que são o conhecimento de depósito e o
warrant.”73
E continua o renomado autor, dizendo:
“O conhecimento de depósito é um título de crédito
correspondente às mercadorias depositadas no armazém-geral.
O warrant é o instrumento de penhor sobre a mesma
mercadoria. Os dois títulos são emitidos quando solicitados pelo
depositante e nascem unidos, mas separáveis à vontade.
São títulos causais, pois só decorrem de depósito de produtos
ou mercadorias em armazéns-gerais. São também títulos à
ordem, pelo que qualquer deles pode circular por endosso.”74
Após esses esclarecimentos indispensáveis à compreensão do
tipo em estudo, podemos apontar os seguintes elementos que
compõem a infração penal: a) a conduta de emitir conhecimento de
depósito ou warrant; b) em desacordo com disposição legal.
O núcleo emitir é utilizado no sentido de fazer circular
conhecimento de depósito ou warrant. No entanto, a sua emissão
somente pode ser entendida como criminosa quando levada a efeito
em desacordo com disposição legal, vale dizer, quando é realizada
contrariamente ao Decreto nº 1.102, de 21 de novembro de 1903,
que, embora com mais de cem anos de vigência, ainda continua
regulando a matéria.
Trata-se, portanto, de norma penal em branco, cujo
complemento ao seu preceito primário deverá ser encontrado no
mencionado Decreto nº 1.102, de 21 de novembro de 1903, que
instituiu regras para o estabelecimento de empresas de armazénsgerais, determinando direitos e obrigações dessas empresas.
Hungria aponta como irregular a emissão, de acordo com o
aludido decreto presidencial, quando:
“a) a empresa de armazém geral não esteja legalmente
constituída; b) inexistir autorização do governo federal para a
emissão; c) serem os títulos arbitrariamente negociados pela
própria empresa emissora; d) não existirem em depósito as
mercadorias especificadas, ou não corresponderem as
existentes, em qualidade, quantidade ou peso, às mencionadas
nos títulos; e) tenha sido emitido mais de um título duplo sobre
as mesmas mercadorias, salvo o disposto no art. 20 do Decreto
nº 1.102.”75
Além disso, deverão ser observados, quando da emissão do
conhecimento de depósito ou warrant, os requisitos constantes do
art. 15 do referido decreto.
8.2
Classificação doutrinária
Crime próprio, tanto no que diz respeito ao sujeito ativo quanto
ao sujeito passivo; doloso; comissivo (podendo ser praticado via
omissão imprópria, na hipótese de o agente gozar do status de
garantidor); formal; de forma livre; instantâneo; monossubjetivo;
plurissubsistente; não transeunte.
8.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
O patrimônio é o bem juridicamente protegido pelo tipo penal
que prevê o delito de emissão irregular de conhecimento de
depósito ou warrant.
Objeto material é o conhecimento de depósito ou warrant
emitido em desacordo com a disposição legal.
8.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
O sujeito ativo é o emitente do conhecimento de depósito ou
warrant, em desacordo com disposição legal, sendo ele, quase
sempre, o depositário da mercadoria.
O sujeito passivo, conforme aponta Luiz Regis Prado, “é o
portador ou o endossatário dos títulos.”
8.5
Consumação e tentativa
Consuma-se o delito no momento em que são colocados em
circulação os títulos correspondentes ao conhecimento de depósito
ou warrant.
Embora a posição majoritária seja no sentido de não permitir o
reconhecimento da tentativa, entendemos que a infração penal em
estudo encontra-se no rol daquelas consideradas plurissubsistentes,
podendo-se, consequentemente, fracionar o iter criminis. Dessa
forma, somente a análise do caso concreto nos permitirá concluir,
com a necessária convicção, se o agente, efetivamente, colocou em
circulação os títulos, consumando o delito, ou se a infração penal
permaneceu na fase do conatus.
8.6
Elemento subjetivo
O delito de emissão irregular de conhecimento de depósito ou
warrant somente poderá ser praticado dolosamente, não havendo,
outrossim, previsão para a modalidade de natureza culposa.
Dessa forma, ao fazer a emissão do conhecimento de depósito
ou warrant, o agente deverá ter conhecimento de que o faz
contrariando as determinações contidas no Decreto nº 1.102, de 21
de novembro de 1903, pois, caso contrário, seu erro poderá
conduzir à atipicidade do fato, nos termos do art. 20 do Código
Penal.
8.7
Modalidades comissiva e omissiva
A conduta de emitir conhecimento de depósito ou warrant, em
desacordo com disposição legal, somente pode ser praticada
comissivamente.
No entanto, dependendo da hipótese concreta, será possível
que o garantidor, devendo e podendo agir, dolosamente, nada faça
para impedir a prática da infração penal, devendo, portanto, nos
termos do § 2º do art. 13 do Código Penal, por ela responder.
8.8
Pena, ação penal e suspensão condicional do processo
A pena cominada para o delito de emissão irregular de
conhecimento de depósito ou warrant, tipificado no art. 178 do
Código Penal, é de reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
A ação penal é de iniciativa pública incondicionada.
Deverão ser observadas, no entanto, as disposições contidas
nos arts. 181, 182 e 183 do Código Penal.
Tendo em vista a pena mínima cominada ao delito em estudo,
torna-se possível a confecção de proposta de suspensão
condicional do processo, nos termos do art. 89 da Lei nº 9.099/95.
8.9
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: é o emitente do
conhecimento de depósito
ou warrant, em desacordo
com
disposição
legal,
sendo ele, quase sempre, o
depositário da mercadoria.
Passivo: é o portador ou o
endossatário dos títulos.
Objeto material
É o conhecimento de depósito
ou
warrant
emitido
em
desacordo com a disposição
legal.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
O patrimônio.
Elemento subjetivo
»
»
É o dolo.
Não há previsão para a
modalidade de natureza
culposa.
Modalidades
omissiva
»
»
comissiva
e
A conduta somente pode
ser
praticada
comissivamente.
No entanto, dependendo
da hipótese concreta, será
possível que o garantidor,
devendo e podendo agir,
dolosamente, nada faça
para impedir a prática da
infração penal, devendo,
portanto, por ela responder.
Consumação e tentativa
»
»
Consuma-se o delito no
momento em que são
colocados em circulação os
títulos correspondentes ao
conhecimento de depósito
ou warrant.
Embora
a
posição
majoritária seja no sentido
de
não
permitir
o
reconhecimento
da
tentativa, entendemos que
a infração penal em estudo
encontra-se
no
rol
daquelas
consideradas
plurissubsistentes,
podendo-se,
consequentemente,
fracionar o iter criminis.
9.
FRAUDE À EXECUÇÃO
Fraude à execução Art. 179. Fraudar
execução,
alienando,
desviando,
destruindo ou danificando bens, ou
simulando dívidas:
Pena – detenção, de seis meses a
dois anos, ou multa.
Parágrafo único. Somente se
procede mediante queixa.
9.1
Introdução
O delito de fraude à execução veio previsto no art. 179 do
Código Penal, cujo preceito secundário comina uma pena de
detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, ou multa, para aquele
que fraudar execução, alienando, desviando, destruindo ou
danificando bens, ou simulando dívidas.
Assim, de acordo com a redação típica, podemos destacar os
seguintes elementos: a) a conduta de fraudar execução; b) através
da alienação, desvio, destruição ou danificação de bens, ou, ainda,
simulando dívidas.
O ponto de partida para o nosso raciocínio é justamente
apontar a partir de quando a conduta praticada pelo sujeito poderá
ser considerada típica. O art. 179 do Código Penal menciona
expressamente vários comportamentos destinados a fraudar
execução. Dessa forma, somente se poderá reconhecer como típica
a conduta do agente quando se estiver diante de uma execução
judicial, afastando-se, portanto, as demais ações constantes do
processo de conhecimento, bem como do processo cautelar.
A conduta, portanto, diz respeito a fraudar processo de
execução judicial.
Uma vez identificado o processo judicial que se pretende
preservar, evitando a fraude praticada pelo agente, devemos
responder a outra pergunta: O processo de execução se aperfeiçoa
com a sua simples distribuição em juízo ou com a efetiva citação do
executado?
Podemos citar três artigos do Código de Processo Civil (Lei nº
13.105, de 16 de março de 2015), que poderão trazer luz à nossa
resposta:
Art. 238. Citação é o ato pelo qual
são convocados o réu, o executado
ou o interessado para integrar a
relação processual.
Parágrafo único. A citação será
efetivada em até 45 (quarenta e cinco)
dias a partir da propositura da ação.
Art. 239. Para a validade do processo
é indispensável a citação do réu ou do
executado, ressalvadas as hipóteses
de indeferimento da petição inicial ou
de improcedência liminar do pedido.
Art. 240. A citação válida, ainda
quando
ordenada
por
juízo
incompetente, induz litispendência,
torna litigiosa a coisa e constitui em
mora o devedor, ressalvado o
disposto nos arts. 397 e 398 da Lei nº
10.406, de 10 de janeiro de 2002
(Código Civil).
Por meio dessas passagens percebe-se, com clareza, a
importância da citação. Sem ela, o agente, geralmente, não toma
conhecimento de que existe alguma ação judicial proposta em face
da sua pessoa; sem ela, não pode se defender, pois,
desconhecendo a ação judicial, consequentemente, não pode trazer
ao crivo do Judiciário seus argumentos; também, até a citação, não
há como afirmar que existe litígio sobre a coisa.
Portanto, para que se possa iniciar o raciocínio correspondente
ao delito tipificado no art. 179 do Código Penal, será preciso, além
da necessária distribuição da execução judicial, que o executado
tenha sido citado, formando-se, assim, a relação jurídico-processual.76
Nesse sentido, adverte Cezar Roberto Bitencourt:
“A fraude à execução é crime de que só cogita a lei penal na
pendência de uma lide civil, que só tem lugar após a citação do
devedor para o processo de execução.”77
Em sentido contrário, não exigindo a citação para efeitos de
configuração do delito em estudo, professa Hungria:
“Não é indispensável que haja uma sentença, bastando no caso
de títulos executivos pré-cons-tituídos, o ajuizamento da ação, e
deste tenha conhecimento o devedor. Em qualquer caso, é
necessária a ciência inequívoca do devedor, ainda que
extrajudicialmente, de que seus bens estão na iminência de
penhora, bem como a vontade de frustrar a execução, em
prejuízo do credor exequente (ou dos que possam vir, em
concurso à execução).”78
A execução proposta em juízo pode ter como fundamento um
título judicial ou mesmo extrajudicial.
Com a finalidade de fraudar a execução, o agente pode alienar,
desviar, destruir ou danificar bens, bem como simular dívidas.
Por alienação devem ser compreendidos todos os atos que
importem em transferência de domínio, a exemplo do que ocorre
com a compra e venda, doação etc. Faz-se mister ressaltar que nem
toda alienação, praticada durante o curso da ação de execução
judicial, poderá ser considerada fraudulenta, pois, para tanto, se
exige a presença do necessário elemento subjetivo, vale dizer, a
finalidade de fraudar a execução, que deverá ser devidamente
demonstrada. Poderá ocorrer que o executado, por exemplo, não
tendo outro meio de subsistência, se desfaça da coisa para que
proveja a sua manutenção e de sua família. Enfim, o que se proíbe
é a alienação fraudulenta de bens móveis, imóveis, ou mesmo de
créditos.
O desvio importa em sonegar os bens à penhora, praticando
atos que visem a ocul-tá-los, a exemplo daquele que esconde seus
bens para que não sejam descobertos pelo oficial de justiça.
A conduta de destruir é empregada pelo texto legal no sentido
de eliminar, aniquilar, fazer extinguir o bem.
Danificar, entendido aqui com o mesmo sentido de deteriorar, é
estragar, arruinar a coisa, que ainda existe, com a sua utilidade
diminuída ou eliminada, o que faz com que se reduza,
consequentemente, o seu valor.
Salienta Noronha que tanto “a danificação como a destruição
não necessitam ser integrais, bastando o sejam parcialmente,
ocorrendo a fraude desde que elas tornem o bem insuficiente para o
cumprimento da obrigação.”79
Por meio da simulação de dívida, o agente, fraudulentamente,
produz o aumento do seu passivo. Hungria dizia que, “nesse caso, é
necessário que o crédito fictício (cujo titular é coautor do crime)
provoque o concurso de credores e o rateio do ativo, em prejuízo
dos credores legítimos. Antes disso, o que pode haver é simples
tentativa.”80
Não haverá crime se a conduta do agente recair sobre bens
impenhoráveis, haja vista que, por intermédio do delito em estudo,
busca-se garantir a execução com a penhora dos bens necessários
ao pagamento do débito existente. Se o bem não pode ser
penhorado, consequentemente, qualquer comportamento do agente
que recaia sobre ele (destruindo-o, alienando-o etc.) deverá ser
considerado um indiferente penal, uma vez que não faria parte,
dada a sua natureza, do processo de execução.
9.2
Classificação doutrinária
Crime próprio, tanto com relação ao sujeito ativo quanto ao
sujeito passivo; doloso; comissivo (podendo, dependendo do caso
concreto, ser praticado via omissão imprópria); de forma livre;
instantâneo (não se descartando a possibilidade de ser considerado
como instantâneo de efeitos permanentes); de dano; material;
monossubjetivo; plurissubsistente; não transeunte.
9.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
Bem juridicamente protegido pelo tipo penal do art. 179 do
diploma repressivo é o patrimônio. Embora inserido no Título II do
Código Penal, correspondente aos crimes contra o patrimônio, o art.
179, que prevê o delito de fraude à execução, também tem como
finalidade, mesmo que mediata, proteger a administração da
Justiça, punindo aqueles que visam a desrespeitar as decisões
judiciais.
Objeto material é o bem alienado, desviado, destruído ou
danificado, com a finalidade de fraudar a execução.
9.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
O sujeito ativo é o devedor contra o qual está sendo promovida
a ação de execução judicial. É, portanto, o executado.
O sujeito passivo é o credor que ocupa a condição de
exequente na ação de execução judicial e que se vê lesado em seu
direito patrimonial com o comportamento praticado pelo sujeito ativo,
quando, visando a fraudar a execução, aliena, desvia, destrói,
danifica bens ou simula dívidas.
9.5
Consumação e tentativa
O delito se consuma com a prática de um dos comportamentos
previstos pelo tipo, vale dizer, quando o agente aliena, desvia,
destrói ou danifica bens, ou simula dívidas, impedindo, com isso, o
sucesso da execução promovida judicialmente.
O fundamental, para efeitos de reconhecimento da consumação
do delito, não é, por exemplo, a alienação ou destruição do bem em
si, mas sim o fato de que, com a prática de qualquer um dos
comportamentos típicos, a execução restará frustrada, dada a
insolvência do agente. Assim, ele não está proibido, por exemplo, de
dispor de seus bens, mas tão somente de fraudar a execução,
colocando-se em situação de insolvência, de modo que não tenha
como saldar sua dívida com o credor exequente.
Tratando-se de crime plurissubsistente, podendo-se fracionar o
iter criminis, entendemos perfeitamente possível o raciocínio
correspondente à tentativa.
9.6
Elemento subjetivo
O dolo é o elemento subjetivo necessário à configuração do
delito de fraude à execução, não havendo previsão para a
modalidade de natureza culposa.
Assim, a conduta do agente deve ser dirigida finalisticamente
no sentido de fraudar a execução judicial, praticando os
comportamentos previstos pelo tipo penal do art. 179 do diploma
repressivo, alienando, desviando, destruindo ou danificando bens,
ou simulando dívidas.
9.7
Modalidades comissiva e omissiva
As condutas previstas pelo tipo penal do art. 179 do diploma
repressivo pressupõem um comportamento comissivo por parte do
agente.
No entanto, poderão ser praticadas via omissão imprópria,
dependendo do caso concreto, na hipótese de o agente que,
gozando do status de garantidor, podendo, dolosamente, nada fizer
para impedir a ocorrência do resultado, almejando, assim, produzir
dano ao patrimônio do garantido.
9.8
Pena, ação penal, competência para julgamento e
suspensão condicional do processo
O preceito secundário do art. 179 do Código Penal comina uma
pena de detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, ou multa.
Deverão ser observadas as determinações contidas nos arts.
181 e 183 do Código Penal.
A ação penal, nos termos do parágrafo único do mencionado
art. 179, é de iniciativa privada. No entanto, será de iniciativa pública
incondicionada na hipótese prevista pelo § 2º do art. 24 do Código
de Processo Penal, que diz:
§ 2º Seja qual for o crime, quando
praticado em detrimento do patrimônio
ou interesse da União, Estado ou
Município, a ação será pública.
A competência para o processo e julgamento do delito de
fraude à execução será, pelo menos inicialmente, do Juizado
Especial Criminal, haja vista que a infração penal em estudo se
amolda ao conceito de menor potencial ofensivo, nos termos do art.
61 da Lei nº 9.099/95, com a nova redação que lhe foi dada pela Lei
nº 11.313, de 28 de junho de 2006.
Será possível a confecção de proposta de suspensão
condicional do processo, nos termos do art. 89 da Lei nº 9.099/95.
9.9
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: é o devedor contra o
qual está sendo promovida
a ação de execução
judicial. É, portanto, o
executado.
Passivo: é o credor que
ocupa a condição de
exequente na ação de
execução judicial e que se
vê lesado em seu direito
patrimonial.
Objeto material
É o bem alienado, desviado,
destruído ou danificado, com a
finalidade
execução.
Bem(ns)
protegido(s)
de
fraudar
a
juridicamente
É o patrimônio e, mesmo que
mediatamente, a administração
da justiça.
Elemento subjetivo
»
»
É o dolo.
Não há previsão para a
modalidade de natureza
culposa.
Modalidades
omissiva
»
»
comissiva
e
As
condutas
previstas
pressupõem
um
comportamento comissivo
por parte do agente.
No entanto, poderão ser
praticadas via omissão
imprópria.
Consumação e tentativa
»
»
O delito se consuma com a
prática
de
um
dos
comportamentos previstos
pelo tipo impedindo, com
isso,
o
sucesso
da
execução
promovida
judicialmente.
A tentativa é admissível.
1
BÍBLIA SAGRADA. Gênesis, Capítulo 27, versículos 27-29.
2
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 173.
3
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 277.
4
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 523.
5
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 365.
6
MUÑOZ CONDE, Francisco. Derecho penal – Parte especial, p. 410.
7
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 287.
8
JESUS, Damásio E. de. Direito penal, v. 2, p. 427-428.
9
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 208-209.
10
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal – Parte geral, p. 360.
11
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal, p. 54.
12
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 290.
13
FRANCO, Alberto Silva. Código penal e sua interpretação jurisprudencial, v. I, t. II, p.
2.746.
14
COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal – Parte especial, p. 940.
15
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 405.
16
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado, p. 565.
17
Súmula nº 521: O foro competente para o processo e julgamento dos crimes de
estelionato, sob a modalidade da emissão dolosa de cheque sem provisão de fundos,
é o do local onde se deu a recusa do pagamento pelo sacado.
18
JESUS, Damásio E. de. Direito penal, v. 2, p. 437.
19
CUNHA, Rogério Sanches. Lei 14.155/21 e os crimes de fraude digital. Primeiras
impressões
e
reflexos
no
CP
e
no
CPP.
In
https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2021/05/28/lei-14-15521-e-os-crimesde--fraude-digital-primeiras-impressoes-e-reflexos-no-cp-e-no-cpp/. Acessado em 29
de maio de 2021.
20
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 261.
21
Na verdade, embora a Súmula faça referência à qualificadora, como já tivemos
oportunidade de salientar anteriormente, estamos diante de uma causa especial de
aumento de pena (majorante), a ser considerada no terceiro momento do critério
trifásico de aplicação da pena, previsto no art. 68 do Código Penal.
22
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil, p. 272.
23
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 192.
24
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 192-193.
25
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, v. 2, p. 477-478.
26
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 214.
27
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 217.
28
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 232.
29
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 275.
30
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 407.
31
JESUS, Damásio E. de. Direito penal, v. 2, p. 436.
32
RTJ 119/1.063 e JUTACrim. 89/476.
33
COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito, p. 383.
34
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado, p. 569-570.
35
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 304.
36
TELES, Ney Moura. Direito penal, v. 2, p. 471.
37
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 558.
38
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 306.
39
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 559.
40
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 448.
41
COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Direito penal objetivo, p. 331.
42
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 310.
43
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 564.
44
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado, p. 572.
45
FRANCO, Alberto Silva. Código penal e sua interpretação jurisprudencial, v. 1, t. II, p.
2.786.
46
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 569.
47
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 574-575.
48
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 324.
49
JESUS, Damásio E. de. Direito penal, v. 2, p. 452.
50
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 322.
51
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 273.
52
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 445.
53
CUNHA, Sanches Rogério. Manual de direito penal – parte especial, volume único, p.
386.
54
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 463.
55
Ver, como exemplo, Cezar Roberto Bitencourt (Tratado de direito penal, v. 3, p. 329);
Guilherme de Souza Nucci (Comentários ao código penal, p. 375); Luiz Regis Prado
(Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 582); dentre outros.
56
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 581.
57
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 278.
58
D’URSO, Luiz Flávio Borges. A tradição do
<http://www.novomilenio.inf.br/festas/pendura.htm>.
59
TELES, Ney Moura. Direito penal, v. II, p. 485.
60
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 471.
61
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 286-287.
pendura.
Disponível
em:
62
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 342.
63
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 474.
64
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 345-346.
65
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 476.
66
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 291.
67
PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro – Parte especial (arts.
121 a 234), p. 588-589.
68
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal, v. 2, p. 343.
69
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado, p. 714.
70
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal, v. 2, p. 344.
71
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 480.
72
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado, p. 714.
73
COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito, p. 445.
74
COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito, p. 448.
75
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. III, p. 294.
76
Em reforço a esse raciocínio, o art. 363 do Código de Processo Penal, com a nova
redação que lhe foi dada pela Lei nº 11.719, de 20 de junho de 2008, diz que o
processo terá completada a sua formação quando realizada a citação do acusado.
77
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 362.
78
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 296-297.
79
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 477.
80
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 298.
Capítulo VII
Da Receptação
1.
RECEPTAÇÃO
Receptação
Art. 180. Adquirir, receber, transportar,
conduzir ou ocultar, em proveito
próprio ou alheio, coisa que sabe ser
produto de crime, ou influir para que
terceiro, de boa-fé, a adquira, receba
ou oculte:
Pena – reclusão, de um a quatro
anos, e multa.
Receptação qualificada
§ 1º Adquirir, receber, transportar,
conduzir, ocultar, ter em depósito,
desmontar, montar, remontar, vender,
expor à venda, ou de qualquer forma
utilizar, em proveito próprio ou alheio,
no exercício de atividade comercial ou
industrial, coisa que deve saber ser
produto de crime:
Pena – reclusão, de três a oito anos, e
multa.
§ 2º Equipara-se à atividade
comercial, para efeito do parágrafo
anterior, qualquer forma de comércio
irregular ou clandestino, inclusive o
exercido em residência.
§ 3º Adquirir ou receber coisa que, por
sua natureza ou pela desproporção
entre o valor e o preço, ou pela
condição de quem a oferece, deve
presumir-se
obtida
por
meio
criminoso:
Pena – detenção, de um mês a um
ano, ou multa, ou ambas as penas.
§ 4º A receptação é punível, ainda
que desconhecido ou isento de pena
o autor do crime de que proveio a
coisa.
§ 5º Na hipótese do § 3º, se o
criminoso é primário, pode o juiz,
tendo
em
consideração
as
circunstâncias, deixar de aplicar a
pena. Na receptação dolosa aplica-se
o disposto no § 2º do art. 155.
§ 6º Tratando-se de bens do
patrimônio da União, de Estado, do
Distrito Federal, de Município ou de
autarquia, fundação pública, empresa
pública, sociedade de economia mista
ou empresa concessionária de
serviços públicos, aplica-se em dobro
a pena prevista no caput deste artigo.
O crime de receptação encontra-se no rol dos delitos mais
praticados pela nossa sociedade, variando desde a aquisição de
pequenos produtos vendidos por camelôs e ambulantes até as mais
impressionantes, cometidas por grandes empresas, que adquirem
carregamentos inteiros de mercadorias, roubadas, quase sempre,
durante o seu transporte rodoviário.
A Lei nº 9.426, de 24 de dezembro de 1996, modificou o art.
180 do Código Penal, acrescentando novos núcleos em seu caput,
criando mais dois parágrafos (os primeiros), além de renumerá-los.
A modalidade fundamental de receptação, como não poderia
deixar de ser, encontra-se no caput do art. 180 do Código Penal. Em
seu § 1º foi prevista a receptação qualificada. Houve, também,
previsão da chamada receptação culposa, conforme se deduz do §
3º do mencionado art. 180.
Assim, podemos destacar, de acordo com os dispositivos legais
citados, três modalidades de receptação: a) simples; b) qualificada;
c) culposa.
A receptação simples será analisada ainda neste tópico, sendo
que as demais, para efeito de melhor visualização, serão estudadas
isoladamente.
Dessa forma, nos termos do preceito secundário do art. 180, o
Código Penal comina pena de reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos,
e multa, para aquele que adquirir, receber, transportar, conduzir ou
ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de
crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou
oculte.
Podemos visualizar no caput do art. 180 do Código Penal duas
espécies de receptação, a saber: a) própria; e b) imprópria.
Diz-se própria a receptação quando a conduta do agente se
amolda a um dos comportamentos previstos na primeira parte do
caput do art. 180 do Código Penal, vale dizer, quando o agente:
adquire, recebe, transporta, conduz ou oculta, em proveito próprio
ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime. Merece destacar
que as condutas de transportar e conduzir foram inseridas no caput
do art. 180 do Código Penal pela Lei nº 9.426, de 24 de dezembro
de 1996.
Denomina-se imprópria a receptação quando o agente leva a
efeito o comportamento previsto na segunda parte do caput do art.
180 do Código Penal, ou seja, quando influi para que terceiro, de
boa-fé, a adquira, receba ou oculte.
Tanto na receptação própria quanto na imprópria, seja, por
exemplo, adquirindo a coisa ou, mesmo, influenciando para que
terceiro a adquira, o agente deve saber ser a res produto de crime.
Inicialmente, tendo em vista a determinação legal, não poderá
ser considerado objeto material da receptação coisa que seja
produto de contravenção penal, pois a lei exige a prática de um
crime anterior.
Além disso, a redação constante do caput do art. 180 do Código
Penal exige que a coisa seja produto de crime. Conforme esclarece
Nélson Hungria:
“Não importa que haja sido alterada, intercorrentemente, a
individualidade da coisa, nem que esta tenha sido substituída
por outra. Assim, a aquisição do ouro resultante da fusão de
uma joia furtada é receptação, do mesmo modo que o é a
aquisição da coisa obtida com o dinheiro furtado, ou a guarda
do dinheiro alcançado com a venda da res furtiva, ou a compra
da apólice de penhor desta.”1
Dessa forma, a expressão produto de crime tem um sentido
amplo, abrangendo tudo aquilo que for originário economicamente
do delito levado a efeito anteriormente. Assim, por exemplo, aquele
que, depois de praticar um delito de extorsão mediante sequestro,
vier adquirir, com o valor do resgate, um automóvel, vendendo-o,
posteriormente, a alguém que sabia da origem ilícita de sua
aquisição, o agente que o adquiriu deverá ser responsabilizado pelo
crime de receptação.
Na receptação conhecida como própria, o sujeito pode praticar
os seguintes comportamentos: a) adquirir; b) receber; c) transportar;
d) conduzir; e e) ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que
sabe ser produto de crime.
Adquirir tem o significado legal, como bem salientado por Luiz
Regis Prado:
“De obter a propriedade da coisa, de forma onerosa, como na
compra, ou gratuita, na hipótese de doação. Inclui-se aqui a
conduta de obter o produto do autor do crime anterior como
compensação de dívida deste para com o agente. Pode,
também, a aquisição originar-se de sucessão causa mortis,
desde que o herdeiro saiba que a coisa fora obtida por meio
criminoso pelo de cujus. Pode ainda ocorrer a receptação pela
modalidade de adquirir, ainda que não haja vínculo negocial
entre o autor do crime anterior e o agente, como na hipótese do
indivíduo que se apodera da coisa atirada fora pelo ladrão que
está empreendendo fuga, com pleno conhecimento de sua
origem criminosa.”2
O núcleo receber é utilizado pelo tipo penal em estudo no
sentido de ter o agente a posse ou a detenção da coisa, para o fim
de utilizá-la em seu proveito ou de outrem. O agente, aqui, deve
procurar algum benefício mediante o recebimento da coisa que lhe
foi entregue. Se a quisesse para si, tomando-a do agente, seja a
título oneroso ou gratuito, incorreria na conduta de adquirir; por
outro lado, se sua finalidade não fosse usufruí-la, mas tão somente
prestar ao outro agente auxílio destinado a tornar seguro o proveito
do crime, o delito não poderia ser reconhecido como de receptação,
mas sim como de favorecimento real, tipificado no art. 349 do
Código Penal.
A conduta de transportar, como já o dissemos, foi inserida no
caput do art. 180 do Código Penal pela Lei nº 9.426, de 24 de
dezembro de 1996. Tal inserção se deu, principalmente, em razão
do crescimento dos casos de roubo de cargas (alimentos,
eletrodomésticos, cigarros etc.) transportadas em caminhões.
Assim, pessoas eram contratadas para, depois da prática da
subtração anterior, tão somente fazer o seu transporte até o local
determinado por aquele que as havia adquirido. Dessa forma, o
transporte passou a ser reconhecido como mais uma modalidade de
receptação. No entanto, entendemos que tal inserção não se fazia
necessária, haja vista regra relativa ao concurso de pessoas que
seria suficiente para também punir aquele que, de qualquer modo,
tivesse concorrido para o crime. Assim, aquele que fora contratado
para transportar a carga, tendo conhecimento de sua origem ilícita,
dependendo da sua situação no grupo, poderia ser considerado
coautor ou, no mínimo, partícipe do delito de receptação.
Também foi inserida no caput do art. 180 do Código Penal, pela
Lei nº 9.426/96, a conduta de conduzir. Ao que parece, o núcleo
conduzir quer dizer respeito, efetivamente, ao ato de dirigir veículos
(automóveis, motocicletas, caminhões etc.). A conduta de conduzir é
semelhante à de transportar. Transportar implica remoção,
transferência de uma coisa de um lugar para outro. Conduzir é guiar,
dirigir. Somente o caso concreto, na verdade, é que nos permitirá,
talvez, apontar o comportamento que melhor se amolde à conduta
levada a efeito pelo agente.
Ocultar tem o sentido de esconder a coisa ou, ainda, de acordo
com Noronha:
“Exprime a ação de subtraí-la das vistas de outrem; colocá-la
em lugar onde não possa ser encontrada; ou apresentá-la por
forma que torne irreconhecível, tudo fazendo difícil ou
impossível a recuperação. A ação de ocultar pressupõe
aquisição ou recebimento. É sucessiva a uma destas, vindo
indicar atuação posterior sobre a coisa que se detém.”3
Na receptação denominada imprópria, a conduta do agente é
dirigida finalisticamente a influir para que terceiro, de boa-fé,
adquira, receba ou oculte coisa que sabe ser produto de crime.
Inicialmente, vale destacar que aquele que é influenciado a
praticar qualquer dos comportamentos previstos pelo tipo – adquirir,
receber ou ocultar – deve agir de boa-fé, desconhecendo a origem
criminosa da coisa, sendo, portanto, atípica a sua conduta. Ao
contrário, se o terceiro, que fora influenciado pelo agente, tiver
conhecimento da origem criminosa da coisa, afastada a boa-fé,
também será considerado receptador.
A conduta central da receptação imprópria é o núcleo influir,
utilizado no sentido de influenciar para que terceiro, de boa-fé,
adquira, receba ou oculte. O agente, portanto, que influencia terceira
pessoa à prática de qualquer um desses comportamentos, deve
saber que a coisa oferecida é produto de crime.
Noronha afirma tratar-se de mediação criminosa:
“O agente não executa as ações incriminadas anteriormente,
mas age como mediador, para que terceiro as pratique. Influir é
incutir, estimular, inspirar, entusiasmar, excitar etc. Os meios de
que lançará mão o mediador, para influir, podem ser vários, com
eles não se preocupando a lei, que apenas tem em vista a
ação: influir.”4
Paulo José da Costa Júnior, discordando dessa posição,
esclarece:
“O agente, ao influir (persuadir, induzir, aconselhar), terminando
por convencer terceiro de boa-fé a ficar com a coisa objeto do
crime, não atua como mediador, como sustenta Noronha: é o
autor intelectual do delito, que comete o crime mesmo que a
sugestão não venha a ser acolhida.”5
Na verdade, a expressão utilizada por Noronha – mediador
criminoso – não afasta a sua condição de verdadeiro autor do delito
de receptação, uma vez que pratica o comportamento
expressamente narrado na segunda parte constante do caput do art.
180 do Código Penal. Mas pode ser considerado, realmente, um
mediador, pois, dependendo da situação concreta, pode ter agido
como uma “ponte” entre o autor do crime anterior e o terceiro que,
de boa-fé, adquiriu, recebeu ou ocultou a coisa sem ter
conhecimento de que se tratava de produto de crime.
Pode ser, inclusive, que o receptador, que havia adquirido a
coisa, sabendo tratar-se de produto de crime, influencie para que
terceiro, de boa-fé, por exemplo, a adquira. Imagine-se a hipótese
daquele que, após adquirir um televisor que havia sido roubado,
querendo guardá-lo em segurança, pede a terceiro, de boa-fé, que o
receba. A nosso ver, não estaremos diante de dois crimes de
receptação, mas de crime único, podendo-se considerar o segundo
comportamento um pós-fato impunível.
Em sentido contrário ao nosso entendimento, manifesta-se
Cezar Roberto Bitencourt, asseverando:
“A receptação descrita no caput apresenta a curiosidade de ser
um tipo misto alternativo e, ao mesmo tempo, cumulativo. Como
efeito, se o agente praticar cumulativamente as condutas de
adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar coisa produto
de crime, praticará um único crime, ocorrendo o mesmo se
influir para que terceiro de boa-fé adquira, receba ou oculte
coisa proveniente de crime. Trata-se de crimes de ação múltipla
ou de conteúdo variado. No entanto, se o agente praticar as
duas espécies de receptação – própria e imprópria –, ou seja,
primeiro adquirir a coisa que sabe ser produto de crime e
depois influenciar para que terceiro de boa-fé faça o mesmo,
cometerá dois crimes; nessas modalidades, estamos diante de
tipos mistos cumulativos, e não alternativos, como nas
circunstâncias antes relacionadas.”6
Deve ser ressaltado, ainda no que diz respeito à receptação
imprópria, que não foram inseridos os núcleos transportar e
conduzir, tal como ocorreu com a receptação própria.
1.1
Classificação doutrinária – Art. 180, caput
Analisando, tão somente, o delito de receptação tipificado no
caput do art. 180 do Código Penal, podemos concluir tratar-se de
crime comum tanto em relação ao sujeito ativo quanto ao sujeito
passivo, haja vista que o tipo penal não exige nenhuma qualidade
ou
condição
especial;
doloso;
comissivo
(podendo,
excepcionalmente, ser praticado via omissão imprópria, na hipótese
de o agente gozar do status de garantidor); omissivo próprio (na
hipótese de ocultação, dependendo do caso concreto); material (em
ambas as espécies – própria e imprópria, embora, para a maioria
dos autores, a receptação imprópria seja considerada crime formal);
instantâneo (no que diz respeito às condutas de adquirir, receber);
permanente (enquanto o agente estiver transportando, conduzindo
ou ocultando a coisa); monossubjetivo; plurissubsistente; não
transeunte (como regra).
1.2
Sujeito ativo e sujeito passivo
Qualquer pessoa pode ser o sujeito ativo do crime de
receptação, não exigindo o tipo penal do art. 180, caput, do estatuto
repressivo qualquer qualidade ou condição especial necessária ao
seu reconhecimento.
Ao contrário, por exemplo, do que ocorre com os delitos de furto
e roubo, cujos tipos penais exigem que a coisa seja alheia, o art.
180 do Código Penal somente faz menção à coisa que sabe ser
produto de crime, razão pela qual parte de nossos doutrinadores
entende ser possível, aqui, apontar também o proprietário como
sujeito ativo do delito em estudo. Damásio de Jesus, adepto desse
entendimento, exemplifica, dizendo:
“Suponha-se o caso de o sujeito realizar contrato de penhor
com terceiro, entregando-lhe como garantia um relógio, que
venha a ser furtado. Imagine que o ladrão ofereça o relógio ao
credor, que imediatamente percebe ser de sua propriedade.
Com a finalidade de frustrar a garantia pignoratícia, o
proprietário compra, por baixo preço, o objeto material. Para
nós, responde por delito de receptação, tendo em vista que está
adquirindo, em proveito próprio, coisa que sabe ser produto de
furto (art. 180, caput, 1a parte).”7
Não pode, entretanto, ser considerado sujeito ativo do delito de
receptação aquele que, de alguma forma, participou do cometimento
do delito anterior, sendo que, posteriormente, adquiriu a res,
pagando aos demais agentes a quantia que lhes correspondia, pois,
nesse caso, será considerado um pós-fato impunível. Assim,
imagine-se a hipótese daquele que, tendo, juntamente com mais
dois agentes, praticado um roubo em uma joalheria, depois da
divisão em partes iguais daquilo que fora subtraído, resolva adquirir,
mediante pagamento em dinheiro, a parte que coube aos outros
companheiros de empresa criminosa. Nesse caso, conforme
afirmamos, o seu comportamento deverá ser considerado um pósfato impunível, não podendo ser responsabilizado penalmente pela
receptação.
Qualquer pessoa, também, poderá ser o sujeito passivo do
crime de receptação, incluindo, aqui, não somente o proprietário,
mas também o possuidor da coisa, que se confundirá com o sujeito
passivo do crime anterior de onde surgiu o proveito do crime. Assim,
o sujeito passivo, por exemplo, do delito de furto será também o do
delito de receptação.
1.3
Consumação e tentativa
Consuma-se o delito, no que diz respeito à receptação própria,
quando o agente, efetivamente, pratica qualquer um dos
comportamentos previstos na primeira parte do caput do art. 180 do
Código Penal, ou seja, quando adquire, recebe, transporta, conduz
ou oculta, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto
de crime.
Assim, a entrega da coisa para o agente que pratica um dos
comportamentos típicos anteriormente narrados faz com que se
consume a infração.
Tratando-se de crime material e plurissubjetivo, será
perfeitamente possível a tentativa.
Quanto à receptação imprópria, prevista na segunda parte do
caput do art. 180 do Código Penal, a maioria de nossos autores
reconhece a sua consumação tão somente quando o agente pratica
o comportamento de influir para que terceiro, de boa-fé, adquira,
receba ou oculte a coisa, apontando, pois, a sua natureza formal.
Nesse sentido, afirma Cezar Roberto Bitencourt que “o Código
Penal não exige que o terceiro de boa-fé acabe praticando a
conduta a que o autor pretendeu induzi-lo. Assim, consuma-se a
receptação imprópria com a simples influência exercida por
aquele.”8
Apesar da força do raciocínio, ousamos dele discordar.
Entendemos que quando a lei penal usa o verbo influir, quer
significar ter influência decisiva, fazendo com que o sujeito,
efetivamente, pratique um dos comportamentos previstos pelo tipo
penal, vale dizer, adquira, receba ou oculte a coisa cuja origem
criminosa desconheça, em virtude de sua boa-fé. Influir, portanto,
quer dizer determinar com que o sujeito faça alguma coisa.
Caso essa influência não resulte na prática de qualquer das
condutas narradas pelo tipo, ou seja, na hipótese de o sujeito, já
influenciado pelo agente, não receber a coisa por circunstâncias
alheias à vontade deste, o máximo que se poderá reconhecer, aqui,
será a tentativa, pois deu início à execução da receptação imprópria
quando levou a efeito a conduta de influir, isto é, determinar, induzir,
influenciar para que o sujeito, de boa-fé, adquirisse, recebesse ou
ocultasse a coisa.
1.4
Receptação qualificada
O § 1º do art. 180 do Código Penal, com a nova redação que
lhe foi conferida pela Lei nº 9.426, de 24 de dezembro de 1996,
prevê uma modalidade qualificada de receptação, dizendo:
§ 1º Adquirir, receber, transportar,
conduzir, ocultar, ter em depósito,
desmontar, montar, remontar, vender,
expor à venda ou de qualquer forma
utilizar, em proveito próprio ou alheio,
no exercício de atividade comercial ou
industrial, coisa que deve saber ser
produto de crime:
Pena – reclusão de 3 (três) a 8 (oito)
anos, e multa.
Ab initio, existe controvérsia doutrinária quanto ao fato de se
consignar, no § 1º do art. 180 do Código Penal, uma modalidade de
receptação denominada qualificada. Isso porque, mediante a análise
da figura típica, verifica-se que o legislador, além de manter as
condutas previstas no caput do mencionado artigo, fez inserir outras
que lhe eram estranhas, fazendo com que alguns autores o
entendessem como verdadeiro tipo penal autônomo.
Nesse sentido, Damásio de Jesus afirma:
“O dispositivo não descreve causa de aumento de pena ou
qualificadora. Não contém meras circunstâncias. Cuida-se de
figura típica autônoma: menciona seis verbos que não se
encontram no caput, repete cinco condutas e apresenta dois
elementos subjetivos do tipo. Não é um simples acréscimo à
figura típica reitora da receptação.”9
Saindo em defesa da terminologia utilizada pelo legislador,
Guilherme de Souza Nucci esclarece:
“Em que pese parte da doutrina ter feito restrição à
consideração desse parágrafo como figura qualificada da
receptação, seja porque ingressaram novas condutas, seja pelo
fato de se criar um delito próprio, cujo sujeito ativo é especial,
cremos que houve acerto do legislador. Na essência, a figura do
§ 1º é, sem dúvida, uma receptação – dar abrigo a produto de
crime –, embora com algumas modificações estruturais.
Portanto, a simples introdução de condutas novas, aliás típicas
do comércio clandestino de automóveis, não tem o condão de
romper o objetivo do legislador de qualificar a receptação,
alterando as penas mínima e máxima que saltaram da faixa de
1 a 4 anos para 3 a 8 anos.”10
Somos partidários dessa última posição, haja vista que o § 1º
do art. 180 do Código Penal acrescentou dados (mesmo que sejam
condutas novas, ou qualidades especiais – comerciante ou
industrial) que não se afastam do tipo fundamental e que têm a
nítida finalidade de exercer maior juízo de reprovação quando
praticados.
Assim, a primeira característica que o torna especial em relação
ao caput do art. 180 do Código Penal diz respeito à qualidade do
autor, pois trata-se de crime próprio, somente podendo ser levado a
efeito por quem gozar do status de comerciante ou industrial, pois
as ações referidas pelo tipo penal qualificado devem ser praticadas
no exercício de atividade comercial ou industrial, mesmo que tal
comércio seja irregular ou clandestino, inclusive o exercido em
residência, conforme esclarece o § 2º do art. 180 do diploma
repressivo.
Partindo do pressuposto de que o agente se encontra no
exercício de atividade comercial ou industrial, verifica-se se houve a
prática de um dos comportamentos narrados pelo mencionado § 1º,
vale dizer, se, em proveito próprio ou alheio, ele veio a: a) adquirir;
b) receber; c) transportar; d) conduzir; e) ocultar; f) ter em depósito;
g) desmontar; h) montar; i) remontar; j) vender; l) expor à venda; m)
utilizar – coisa que deve saber ser produto de crime.
As cinco primeiras condutas já foram analisadas quando do
estudo da receptação, em sua modalidade fundamental.
Buscaremos, agora, entender as demais.
Verifica-se, pela análise dos novos comportamentos inseridos
no tipo penal que prevê a receptação qualificada, a nítida intenção
do legislador em direcionar a aludida figura típica basicamente às
hipóteses de “desmanches de carros”, tão comuns nos dias de hoje,
em oficinas clandestinas, que mantêm, em virtude de suas
atividades, um intenso comércio com carros roubados e furtados,
merecendo, assim, maior juízo de reprovação, conforme se verifica
pela pena a ele cominada, que varia entre 3 e 8 anos de reclusão, e
multa.
Ter em depósito significa armazenar, guardar, manter, conservar
a coisa recebida em proveito próprio ou de terceiro. Trata-se, nesse
caso, de infração penal de natureza permanente.
Desmontar tem o sentido de separar as peças existentes,
desencaixar, a exemplo do que acontece com aquele que é
contratado para, tão somente, separar as peças constantes de um
automóvel que havia sido objeto de subtração, ou mesmo aquelas
que fazem parte de um microcomputador que também foi produto de
crime.
Montar quer dizer juntar as peças que se encontravam
separadas do todo, encai-xando-as de modo que permitam o
funcionamento da coisa. Pode ocorrer a hipótese onde tenha havido
a subtração de peças integrantes de um determinado objeto,
produzidas por diversos fabricantes especializados, cabendo ao
agente juntá-las, encaixá-las, fazendo com que a coisa funcione da
forma para a qual fora projetada.
Remontar significa montar novamente, ou seja, o objeto já tinha
sido montado uma primeira vez, estando pronto para uso, quando
foi desmontado. Agora, o agente o remonta, permitindo o uso para o
qual fora destinado, consertando-o, reparando-o.
A conduta de vender, conforme salienta Luiz Regis Prado,
“expressa a conduta do comerciante ou industrial de transferir a
outrem, mediante pagamento, a posse da coisa obtida com o crime
antecedente.”11
Já o comportamento de expor à venda se traduz tão somente
no fato de exibir, mostrar a coisa de origem criminosa com a
finalidade de transferi-la a terceiro, mediante determinado
pagamento.
A última conduta diz respeito ao fato de o agente, de qualquer
forma, utilizar, em proveito próprio ou alheio, no exercício de
atividade comercial ou industrial, coisa que saiba ser produto de
crime. Utilizar significa, como esclarece Mirabete, “fazer uso, usar,
valer-se, empregar com utilidade, aproveitar, ganhar, lucrar.”12
A expressão de qualquer forma, utilizada no texto legal, não
permite o raciocínio da chamada interpretação analógica, uma vez
que o rol dos comportamentos proibidos pelo tipo penal em estudo é
taxativo. Essa expressão, na verdade, está ligada diretamente à
utilização da coisa que o agente deve saber ser produto de crime,
vale dizer, qualquer forma de uso que atenda aos interesses do
agente no exercício de atividade comercial ou industrial.
1.4.1
Modalidade equiparada
O § 2º do art. 180 do Código Penal, inserido pela Lei nº 9.426,
de 24 de dezembro de 1996, criou uma cláusula de equiparação
dizendo:
§ 2º Equipara-se à atividade
comercial, para efeito do parágrafo
anterior, qualquer forma de comércio
irregular ou clandestino, inclusive o
exercido em residência.
A origem dessa inserção deveu-se, basicamente, às hipóteses
de desmanches clandestinos de veículos, tão comuns nos dias de
hoje. Sua finalidade foi ampliar o conceito de atividade comercial ou
industrial, abrangendo qualquer forma de comércio, mesmo os
irregulares ou clandestinos, ainda que praticados em residência.
Com essa última indicação, buscou-se amoldar também ao
comportamento típico as conhecidas “oficinas de fundo de quintal”,
cujas atividades ilícitas são levadas a efeito na própria residência do
agente.
Alberto Silva Franco observa, ainda, que:
“A exigência contida no § 1º do art. 180 do CP, e que o torna um
crime próprio, sofre abrandamento na medida em que se
reconhece, como sujeito ativo desse delito, não apenas quem
exercita regularmente o comércio mas também aquele que o
faz de forma irregular ou até clandestina.”13
1.4.2
Classificação doutrinária – Art. 180, § 1º
Crime próprio com relação ao sujeito ativo, uma vez que o tipo
penal exige a qualidade de comerciante ou industrial, mesmo que
essas atividades sejam irregulares ou clandestinas, e comum
quanto ao sujeito passivo; doloso; comissivo e omissivo próprio
(podendo ser praticado, também, através da omissão imprópria, em
sendo o agente considerado como garantidor); material; de dano;
instantâneo; permanente (por meio das modalidades ter em
depósito,
expor
à
venda
e
ocultar);
monossubjetivo;
plurissubsistente; não transeunte (como regra).
1.4.3
Sujeito ativo e sujeito passivo
Somente aqueles que estiverem no exercício de atividade
comercial ou industrial, seja ela irregular ou clandestina, ainda que
praticada em residência, poderão figurar como sujeito ativo da
receptação qualificada, prevista pelo § 1º do art. 180 do Código
Penal, tratando-se, pois, nesse sentido, de crime próprio.
Ao contrário, qualquer pessoa poderá figurar como sujeito
passivo da receptação qualificada, não havendo nenhuma qualidade
ou condição especial exigida pelo tipo penal do § 1º do art. 180 do
diploma repressivo.
1.4.4
Consumação e tentativa
Consuma-se o delito de receptação qualificada (§ 1º do art. 180
do CP) quando o agente, efetivamente, adquire, recebe, transporta,
conduz, oculta, tem em depósito, desmonta, monta, remonta, vende,
expõe a venda ou de qualquer forma utiliza, em proveito próprio ou
alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, coisa que
deve saber ser produto de crime.
Tratando-se de crime plurissubsistente, no qual se pode
fracionar o iter criminis, será possível a tentativa.
1.5
Elemento subjetivo
O caput e o § 1º do art. 180 do Código Penal traduzem as
modalidades dolosas do delito de receptação, sendo que o seu § 3º
prevê aquela de natureza culposa.
Assim, o delito de receptação pode ser praticado dolosa ou
culposamente. No entanto, no que diz respeito às modalidades
dolosas, faz-se mister uma análise mais detida sobre o termo sabe e
a expressão deve saber, sendo que o primeiro veio consignado no
caput do art. 180 e a segunda, em seu § 1º.
Existe controvérsia doutrinária no que diz respeito à distinção
entre o termo sabe e a expressão deve saber.
Tem-se entendido, de forma esmagadoramente majoritária, que
a expressão sabe ser produto de crime é indicativa de dolo direto,
não se admitindo, aqui, o raciocínio correspondente ao dolo
eventual.
No entanto, reina a confusão quando a discussão gira em torno
da expressão que deve saber ser produto de crime, sendo que, para
alguns, deverá ser entendida como indicativa de dolo eventual e,
para outros, como modalidade culposa de comportamento.
Além disso, tem-se afirmado, ainda, que o § 1º do art. 180 do
Código Penal é ofensivo ao princípio da proporcionalidade, haja
vista que pune o agente que atua com dolo eventual (em virtude da
interpretação que se dá à expressão deve saber) de forma mais
severa do que aquele que pratica a receptação com dolo direto
(conforme expressão contida no caput do art. 180 do Código Penal).
Nesse sentido, afirma Alberto Silva Franco:
“Tendo-se por diretriz o princípio da proporcionalidade, não há
como admitir, sob o enfoque constitucional, que o legislador
ordinário estabeleça um preceito sancionatório mais gravoso
para a receptação qualificada quando o agente atua com dolo
eventual e mantenha, para a receptação do caput do art. 180,
um comando sancionador sensivelmente mais brando quando,
no caso, o autor pratica o fato criminoso com dolo direto. As
duas dimensões de subjetividade ‘dolo direto’ e ‘dolo eventual’
podem acarretar reações penais iguais, ou até mesmo, reações
penais menos rigorosas em relação ao ‘dolo eventual’. O que
não se pode reconhecer é que a ação praticada com ‘dolo
eventual’ seja três vezes mais grave – é o mínimo legal que
detecta o entendimento do legislador sobre a gravidade do fato
criminoso – do que quase a mesma atividade delituosa,
executada com dolo direto. Aí, o legislador penal afrontou, com
uma clareza solar, o princípio da proporcionalidade.”14
Ao final de sua exposição, com o apoio no magistério de
Damásio de Jesus, o renomado autor concluiu pela impossibilidade
de aplicação das penas cominadas no § 1º do art. 180 do Código
Penal e, como consequência, a aplicação daquelas previstas no
preceito secundário do caput do mencionado artigo.
Com a devida vênia, apesar da força do raciocínio do ilustre
penalista, não podemos com ele concordar.
Para nós, é certo que o termo sabe traduz o dolo direto, da
mesma forma que, segundo nossa posição, o dolo eventual é
indicado pela expressão deve saber. No entanto, a previsão
expressa do dolo eventual no § 1º do art. 180 do Código Penal não
elimina a possibilidade do raciocínio correspondente ao dolo direto.
Ao contrário, quando se menciona expressamente o dolo direto, é
sinal de que foi intenção da lei penal afastar a sua modalidade
eventual.
Devemos, pois, no § 1º do art. 180 do Código Penal, levar a
efeito a chamada interpretação extensiva, a fim de nele
compreender não somente o dolo eventual (minus), como também o
dolo direto (plus).
A preocupação da lei penal ao inserir, mesmo que com
completa ausência de técnica, a expressão que deve saber ser
produto de crime teve a finalidade de, ao contrário do que ocorre
com a sua modalidade fundamental, permitir a punição do agente
também, e não somente, a título de dolo eventual.
Nesse sentido, é a lição de Guilherme de Souza Nucci:
“Se o tipo traz a forma mais branda de dolo no tipo penal, de
modo expresso e solitário, como ocorre no § 1º, é de se supor
que o dolo direto está implicitamente previsto. O mais chama o
menos, e não o contrário. Logo, o agente comerciante ou
industrial, atuando com dolo eventual (devendo saber que a
coisa é produto de crime), responde pela figura qualificada do §
1º, com pena de reclusão de 3 a 8 anos e multa. Caso aja com
dolo direto (sabendo que a coisa é produto de crime), com mais
razão ainda deve ser punido pela figura do mencionado § 1º. Se
o dolo eventual está presente no tipo, é natural que o direto
também esteja. Se quem deve saber ser a coisa adquirida
produto de delito merece uma pena de 3 a 8 anos, com maior
justiça aquele que sabe ser a coisa produto criminoso. O
legislador pode excluir o menos grave – que é o dolo indireto –,
como o fez no caput, mas não pode incluir o menos grave,
excluindo o mais grave – que é o dolo direto, como
aparentemente fez no § 1º, sendo tarefa do intérprete extrair da
lei o seu real significado, estendendo-se o conteúdo da
expressão deve saber para abranger o sabe.”15
Existe, também, controvérsia jurisprudencial a respeito do tema.
O STJ tem decidido no sentido de que:
“A Terceira Seção desta Corte consolidou o entendimento de
que ‘não se mostra prudente a imposição da pena prevista para
a receptação simples em condenação pela prática de
receptação qualificada, pois a distinção feita pelo próprio
legislador atende aos reclamos da sociedade que representa,
no seio da qual é mais reprovável a conduta praticada no
exercício de atividade comercial’ (EREsp 772.086/RS)” (STJ,
EDcl no AgRg no AREsp 154.449/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas,
5ª T., DJe 02/02/2016).
“A jurisprudência desta Corte orienta-se no sentido de que a
pena aplicada ao delito de receptação qualificada, por
descrever conduta sobre a qual recai um maior juízo de
reprovabilidade, não pode ser equivalente à aplicada na
receptação simples” (STJ, AgRg. no AREsp 308.756/SC, Rel.a
Min.a Alderita Ramos de Oliveira, –
convocada do TJ-PE, 6a T., DJe 18/6/2013).
Desembargadora
O STF, entendendo pela falta de proporcionalidade entre as
penas cominadas no caput e no § 1º do art. 180 do Código Penal, já
se manifestou no seguinte sentido:
“Receptação simples (dolo direto) e receptação qualificada
(dolo indireto eventual). Cominação de pena mais leve para o
crime mais grave (cp, art. 180, caput) e de pena mais severa
para o crime menos grave (cp, art. 180, § 1º). Transgressão,
pelo
legislador,
dos
princípios
constitucionais
da
proporcionalidade e da individualização in abstracto da pena.
Limitações materiais que se impõem à observância do Estado,
quando da elaboração das leis. A posição de Alberto Silva
Franco, Damásio E. Jesus e de Celso, Roberto, Roberto Júnior
e Fábio Delmanto. A proporcionalidade como postulado básico
de contenção dos excessos do poder público. O due process of
law em sua dimensão substantiva (cf, art. 5º, inciso liv).
Doutrina. Precedentes. A questão das antinomias (aparentes e
reais). Critérios de superação. Interpretação ab-rogante.
Excepcionalidade. Utilização, sempre que possível, pelo Poder
Judiciário, da interpretação corretiva, ainda que desta resulte
pequena modificação no texto da lei. Medida cautelar deferida”
(HC 102.094 MC/SC, Rel. Min. Celso de Mello, DJe 2/8/2010,
Inovações Legislativas 23 a 27 ago. 2010, Informativo STF
597).
Em sentido contrário:
“Agravo regimental em recurso extraordinário com agravo.
2. Crime contra o patrimônio. Receptação qualificada (art. 180,
§ 1º, do CP).
3. Alegação de inconstitucionalidade do art. 180, § 1º, do CP.
4. A Segunda Turma já decidiu pela constitucionalidade do
referido artigo: Não há dúvida acerca do objetivo da criação da
figura típica da receptação qualificada que, inclusive, é crime
próprio relacionado à pessoa do comerciante ou do industrial. A
ideia é exatamente a de apenar mais severamente aquele que,
em razão do exercício de sua atividade comercial ou industrial,
pratica alguma das condutas descritas no referido § 1º, valendose de sua maior facilidade para tanto devido à infraestrutura
que lhe favorece” (RE 443.388/SP, Rel.ª Min.ª Ellen Gracie)
(ARE 799.649 AgR/RS, AG.REG. no Recurso Extraordinário
com Agravo, 2ª T., Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 11/4/2014).
1.6
Objeto material e bem juridicamente protegido
O tipo penal que prevê o crime de receptação tem por finalidade
proteger o patrimônio, seja ele de natureza pública ou privada.
Objeto material do delito de receptação é a coisa móvel produto
de crime, mesmo não tendo o caput ou o § 1º do art. 180 do Código
Penal feito menção a essa natureza (móvel), tal como acontece nos
delitos de furto e roubo. Isso porque, conforme salienta Hungria:
“Um imóvel não pode ser receptado, pois a receptação
pressupõe um deslocamento da res, do poder de quem a
ilegitimamente a detém para o do receptador, de modo a tornar
mais difícil a sua recuperação por quem de direito. A coisa há
de ser produto de crime, isto é, há de ter resultado, imediata ou
mediatamente, de um fato definido como crime.”16
1.7
Receptação culposa
O § 3º do art. 180 do Código Penal, embora não fazendo
consignar essa rubrica, pune a título de receptação culposa aquele
que:
§ 3º Adquirir ou receber coisa que, por
sua natureza ou pela desproporção
entre o valor e o preço, ou pela
condição de quem a oferece, deve
presumir-se
obtida
por
meio
criminoso:
Pena – detenção, de 1 (um) mês a 1
(um) ano, ou multa, ou ambas as
penas.
A primeira observação a ser feita diz respeito ao fato de que, no
mencionado § 3º do art. 180 do Código Penal, o legislador fugiu à
regra geral relativa aos crimes culposos. Isso porque a lei penal, ao
fazer menção expressa ao crime culposo, normalmente usa
expressões do tipo: se o homicídio é culposo (art. 121, § 3º); se a
lesão é culposa (art. 129, § 6º); se o crime é culposo (art. 270, § 2º)
etc.
Percebe-se, portanto, que, como regra, os tipos penais que
preveem delitos culposos são reconhecidamente abertos. No
entanto, na receptação culposa, o legislador preferiu narrar
detalhadamente os comportamentos que importam na sua
configuração, criando, pois, um tipo eminentemente fechado.
Analisando o mencionado tipo penal, podemos destacar os
núcleos adquirir e receber. Além disso, para que se possa concluir
pela receptação culposa, a coisa adquirida ou recebida pelo agente
deve presumir-se obtida por meio criminoso dadas: a) a sua
natureza; b) a desproporção entre o valor e o preço; c) a condição
de quem a oferece.
Vamos, portanto, analisar, mesmo que sucintamente, os
elementos que integram essa figura típica.
Ab initio, deve ser frisado que esses comportamentos narrados
pelo tipo penal em estudo são indicativos da inobservância do dever
objetivo de cuidado que competia ao agente. Não podemos
esquecer que estamos diante de um crime culposo e, por essa
razão, não se pode deixar de lado o raciocínio a ele correspondente.
Dessa forma, mesmo que o legislador, fugindo à regra geral,
tenha criado um tipo culposo fechado, isso não nos permite
esquecer completamente as notas fundamentais que lhe são
características e de análise obrigatória.
Assim, o “coração” do crime culposo, em nossa opinião, reside
na inobservância ao dever objetivo de cuidado, que deverá ser
apontado com clareza, para que o agente possa vir a ser
responsabilizado por essa infração penal. Podemos dizer, então,
que, embora tendo o legislador se preocupado a ponto de indicar os
comportamentos que, se praticados, indiciam a inobservância ao
dever objetivo de cuidado, isso não afasta a necessidade da sua
demonstração no caso concreto.
A partir da análise dos comportamentos indiciantes da
inobservância ao dever objetivo de cuidado, teremos oportunidade
de esclarecer melhor nosso pensamento.
Tendo em vista que os núcleos adquirir e receber já foram
estudados anteriormente, partiremos diretamente para as três
situações apontadas pelo tipo como indicadoras dessa
inobservância ao dever de cuidado.
A primeira hipótese narrada diz respeito ao fato de o agente
adquirir ou receber coisa que, por sua natureza, deve presumir-se
obtida por meio criminoso. Assim, que natureza seria essa, capaz
de indiciar (mas não presumir) a culpa do agente? Seria, na
verdade, a coisa em si, com as suas características peculiares. Ney
Moura Teles exemplifica dizendo que “peças isoladas ou acessórios
de veículos automotores oferecidos, nas ruas ou de porta em porta,
por não comerciante ou desconhecido, são coisas que, por sua
natureza, devem ser presumidas obtidas criminosamente.”17
A desproporção entre o valor e o preço oferecido à coisa pelo
agente também é indício de sua origem criminosa. É claro que,
nesse raciocínio, todos os detalhes devem ser considerados, a
exemplo da comparação entre o produto novo e o usado, o seu
estado de conservação, o tempo de uso da coisa, enfim, tudo aquilo
que deva ser compreendido para apurar o real preço de mercado.
Deve existir, portanto, como diz a lei penal, desproporção entre o
valor e o preço, de tal forma que dada essa aberração, o sujeito
deveria ter desconfiado daquilo que lhe estava sendo oferecido.
Também se considera como indício do comportamento culposo
levado a efeito pelo agente o fato de adquirir ou receber coisa que,
pela condição de quem a oferece, deve presumir-se obtida por meio
criminoso. Uma pessoa estranha, não comerciante, que venha a
oferecer ao sujeito um colar de brilhantes, mesmo que pelo preço
justo, praticado pelo mercado, sem a apresentação da nota fiscal,
comete uma atitude suspeita. Tudo deverá ser observado segundo
esse conceito amplo previsto pelo artigo. Assim, a condição de
quem a oferece poderá ser ligada à aparência (ex.: um sujeito mal
vestido, oferecendo um aparelho de som); idade (ex.: uma pessoa
com aproximadamente 18 anos, tentando vender joias valiosas);
conduta social (como no exemplo de Noronha, “se se sabe que
determinada pessoa não tem profissão definida, se não se conhece
bem a origem do dinheiro que ganha, ou se a rodeia má fama, será,
por certo, temerário aceitar-se coisa que ela oferece18”) etc.
1.8
Perdão judicial
A primeira parte do § 5º do art. 180 do Código Penal assevera
que na hipótese do § 3º, se o criminoso é primário, pode o juiz,
tendo em consideração as circunstâncias, deixar de aplicar a pena.
Cuida-se, portanto, de perdão judicial, dirigido especificamente
à receptação culposa.
Inicialmente, deverá ser reconhecida nos autos a primariedade
do agente, não se exigindo, pois, seja ele também portador de bons
antecedentes.
Nesse caso, poderá o julgador, analisando todas as
circunstâncias que envolveram o agente, concluir que a aplicação
do perdão judicial é a medida que melhor atende aos interesses de
política criminal, tratando-se, segundo entendemos, de uma
faculdade sua, e não de um direito subjetivo do acusado.
Pode ocorrer, assim, que o agente goze do status de primário,
tendo, no entanto, outros processos criminais em andamento. O juiz
deverá analisá-los de modo a ficar convencido quanto à
possibilidade da influência ou não daquelas infrações penais, para
efeito de concessão do perdão judicial, uma vez que deverão,
também, ser inseridas no conceito amplo de circunstâncias, da
mesma forma exigido pelo parágrafo sub examen.
Na verdade, no que diz respeito à receptação culposa, o
julgador terá três opções de pena, depois de concluir pela
condenação do agente ou, conforme o § 5º do art. 180 do Código
Penal, declarar a extinção da punibilidade, com base no perdão
judicial.
Se os interesses político-criminais exigirem a condenação, o
juiz aplicará: a) uma pena privativa de liberdade (detenção, de 1
[um] mês a 1 [um] ano); ou b) uma pena de multa; ou, ainda, c) as
duas, cumulativamente.
No entanto, se ao avaliar todas as circunstâncias que levaram o
agente a adquirir ou receber coisa que, por sua natureza ou pela
desproporção entre o valor e o preço, ou pela condição de quem a
oferecia, devia presumir-se obtida por meio criminoso, o julgador
entender, embora havendo provas suficientes para uma
condenação, que a medida mais adequada será a aplicação do
perdão judicial, poderá fazê-lo fundamentando, sempre, sua
decisão, a fim de extinguir a punibilidade.
Contudo, a possibilidade de aplicação do perdão judicial não
tem o condão de afastar a absolvição do agente, v.g. com base no
argumento do erro, ainda que estejamos diante de uma receptação
de natureza culposa. Imagine-se a hipótese daquele que, a título de
exemplo, adquira a coisa que possua desproporção entre o seu real
valor e o preço oferecido, sendo que, no entanto, para ele, o preço
seja o de mercado, isto é, o agente supunha, por erro, que o preço
oferecido correspondia ao real valor da coisa que era oferecida.
Nesse caso, o agente errou sobre um dos elementos que indiciariam
a sua inobservância ao dever objetivo de cuidado, afastando-se,
consequentemente, sua punição a título de culpa.
1.9
Criminoso primário e pequeno valor da coisa receptada
Na receptação dolosa, seja na sua modalidade fundamental,
prevista no caput do art. 180 do Código Penal, ou em sua forma
qualificada, nos termos do § 1º do mesmo artigo, se o criminoso for
primário e de pequeno valor a coisa receptada, o juiz poderá
substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a
dois terços ou aplicar somente a pena de multa, atendendo-se,
portanto, ao disposto na última parte do § 5º do art. 180 do estatuto
repressivo.
Dessa forma, aplica-se à receptação dolosa tudo aquilo que foi
dito quando do estudo do crime de furto de pequeno valor, para o
qual remetemos o leitor.
1.10
Bens do patrimônio da União, de Estado, do Distrito
Federal, de Município ou de autarquia, fundação pública,
empresa pública, sociedade de economia mista ou
empresa concessionária de serviços públicos
O § 6º do art. 180 do Código Penal foi modificado pela Lei nº
13.531, de 7 de dezembro de 2017, diz, textualmente:
§ 6º Tratando-se de bens do
patrimônio da União, de Estado, do
Distrito Federal, de Município ou de
autarquia, fundação pública, empresa
pública, sociedade de economia mista
ou empresa concessionária de
serviços públicos, aplica-se em dobro
a pena prevista no caput deste artigo.
(nova redação dada pela Lei nº
13.531, de 7 de dezembro de 2017)
Cuida-se, portanto, de mais uma modalidade qualificada de
receptação, dirigida especificamente às situações do caput do art.
180 do Código Penal, e não às hipóteses constantes do seu § 1º.
Assim, se o agente, por exemplo, adquire, no exercício de
atividade comercial ou industrial, bem pertencente ao Estado,
continuará a ser responsabilizado pelo delito tipificado no § 1º do
art. 180 do Código Penal, cuja pena, inclusive, é superior àquela
determinada pelo § 6º do mesmo artigo, ainda que dobrada, uma
vez que o caput passará a ter uma pena de reclusão de 2 (dois) a 8
(oito) anos, e multa, e o § 1º continuará com uma pena de reclusão,
de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa.
Merece registro, ainda, o fato de que o § 6º do art. 180 do
Código Penal traduz, realmente, uma qualificadora, e não uma
causa especial de aumento de pena, ao determinar que a pena
cominada ao caput seja aplicada em dobro.
Dessa forma, sendo condenado o agente que receptou um bem
de propriedade, por exemplo, do Município, o julgador deverá fixar a
pena-base entre os limites de 2 (dois) a 8 (oito) anos de reclusão.
Melhor seria, a fim de se manter a regra constante do Código Penal,
que determina que os aumentos em frações sejam considerados no
terceiro momento do critério trifásico de aplicação da pena, previsto
no art. 68 do Código Penal, que o legislador tivesse criado essa
modalidade qualificada consignando, expressamente, as penas
mínima e máxima a ela cominadas em abstrato.
Para que o agente possa ser responsabilizado por essa
modalidade qualificada de receptação, deverá ter o efetivo
conhecimento de que o bem ou instalações pertenciam ao
patrimônio da União, de Estado, do Distrito Federal, de Município ou
de autarquia, fundação pública, empresa pública, sociedade de
economia mista ou empresa concessionária de serviços públicos,
pois, caso contrário, seu erro permitirá o reconhecimento da
modalidade simples do delito de receptação.
Com a pena mínima duplicada, fica afastada a possibilidade de
suspensão condicional do processo, uma vez que seu limite será
superior àquele determinado pelo art. 89 da Lei nº 9.099/95.
1.11
Autonomia da receptação
O § 4º do art. 180 do Código Penal determina:
§ 4º A receptação é punível, ainda
que desconhecido ou isento de pena
o autor do crime de que proveio a
coisa.
Isso significa que, para efeitos de reconhecimento do delito de
receptação, basta que se tenha a certeza necessária da prática de
um crime anterior, não sendo preciso, sequer, apontar a sua autoria.
Também haverá receptação na hipótese em que for isento de pena
o agente que cometeu o delito anterior.
Assim, imagine-se a hipótese do agente que tenha adquirido de
um estranho uma peça valiosíssima de museu e, depois da compra
e da venda ilícita, o autor da subtração tenha desaparecido. Não se
pôde identificá-lo, inclusive, no inquérito policial que tinha por
finalidade a apuração do furto da mencionada peça. Nesse caso,
ainda deverá responder pela receptação o agente que adquiriu a
peça do autor da subtração, mesmo sendo ignorada a identidade
deste último, não se podendo, outrossim, condená-lo pelo
cometimento do delito de furto.
Também poderá ser responsabilizado pela receptação o agente
que, por exemplo, adquirir a coisa de um inimputável, daquele que
tem em seu benefício uma imunidade penal de caráter pessoal etc.
Qualquer causa, na verdade, que tenha o condão de isentar de
pena o autor da subtração, seja afastando a culpabilidade ou
mesmo a punibilidade, não impedirá o reconhecimento da
receptação.
Imagine-se a hipótese daquele que, a fim de sustentar seu
vício, subtraia de seu próprio pai um relógio, com a finalidade de
vendê-lo para, em seguida, adquirir certa quantidade de substância
entorpecente. Para tanto, vai à procura do agente que, mesmo
sabendo sobre a origem do relógio, resolve adquiri-lo. O comprador
deverá, portanto, responder pela receptação, mesmo que aquele
que vendeu a coisa seja beneficiado com a imunidade penal de
caráter pessoal prevista no inciso II do art. 181 do Código Penal.
1.12
Pena, ação penal, competência para julgamento e
suspensão condicional do processo
A pena cominada à receptação simples (caput) é de reclusão,
de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa; para a receptação qualificada
(§ 1º), reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa; e para a
receptação culposa (§ 3º), detenção, de 1 (um) mês a 1 (um) ano,
ou multa, ou ambas as penas.
A ação penal será, como regra, de iniciativa pública
incondicionada, devendo, no entanto, ser observados os arts. 182 e
183 do Código Penal.
A competência, pelo menos inicialmente, para o processo e
julgamento do crime de receptação culposa será do Juizado
Especial Criminal, tendo em vista a pena máxima cominada em
abstrato, vale dizer, um ano.
Será possível a confecção de proposta de suspensão
condicional do processo nas hipóteses de receptação simples e
culposa, uma vez que as penas mínimas a elas cominadas não
ultrapassam o limite determinado pelo art. 89 da Lei nº 9.099/95.
1.13
Destaques
1.13.1
Prova do crime anterior
A receptação é um crime acessório que necessita, para efeitos
de seu reconhecimento, da comprovação do delito anterior,
considerado principal.
Assim, por exemplo, somente se comprovado o crime anterior
(furto, roubo etc.), é que se poderá concluir pela receptação
praticada pelo agente, não importando, como vimos, se o seu autor
é desconhecido ou, mesmo, isento de pena.
Conforme esclarece James Tubenchlak:
“Exige o Código Penal, como pressuposto de alguns tipos de
injusto, a existência de um crime anterior. Daí dizer-se crimes
acessórios, que dependem dos respectivos crimes principais
para sua configuração. Dessa forma, o reconhecimento da
receptação carece da comprovação de que a coisa adquirida,
recebida ou ocultada é produto de crime (art. 180 CP).”19
Embora para que se possa concluir pela receptação não seja
preciso sequer apontar o autor do delito anterior, a prova da sua
existência deverá ser absoluta. Isso significa que, na dúvida sobre a
origem da coisa, esta deverá ser solucionada em benefício do
agente, a quem se imputa a receptação.
Não havendo, pois, prova suficiente da prática do crime
anterior, a absolvição deverá ser a única opção, sob pena de ser
infringido o princípio do in dubio pro reo.
Não há necessidade, inclusive, de ser indicada a vítima do
delito anterior, desde que se tenha a certeza de que, por exemplo, a
coisa adquirida pelo agente é produto de crime.
1.13.2
Receptação e concurso de pessoas no delito anterior
A receptação, como vimos, na qualidade de delito acessório,
necessita, obrigatoriamente, de outro, que lhe é antecedente,
reconhecido como principal.
Para que o agente responda criminalmente pela receptação
jamais poderá ter, de alguma forma, concorrido na prática do delito
anterior, pois, caso contrário, deverá ser por ele responsabilizado.
Assim, imagine-se a hipótese em que o agente convença o
sujeito a praticar um delito de roubo de algumas joias, sob o
argumento de que, obtendo sucesso na empreitada criminosa, ele
as compraria por um bom preço. O agente, inclusive, fornece todos
os dados necessários à subtração, como o endereço da vítima, o
melhor momento para o ataque, o local onde as joias estariam
guardadas etc. Dessa forma, induz alguém à prática do delito de
roubo, que vem, efetivamente, a ocorrer. Logo depois da subtração
e conforme o combinado anteriormente, o agente as adquire,
pagando o preço prometido.
Nesse caso, pergunta-se: Tendo o agente adquirido as joias
que foram objeto da subtração anterior, deveria ele responder pelo
delito de receptação? A resposta, aqui, só pode ser negativa. Isso
porque, para que se possa falar em receptação, o agente não pode,
de qualquer forma, ter concorrido no delito anterior, seja a título de
coautor ou, mesmo, como partícipe.
No caso apresentado, percebe-se, com clareza, a sua
participação no crime de roubo, na modalidade induzimento, razão
pela qual deverá responder pelo delito tipificado no art. 157, e não
por aquele previsto no art. 180, todos do Código Penal.
1.13.3
Receptação em cadeia (receptação de receptação)
Pode ocorrer que o agente, depois de ter receptado a coisa que
sabia ser produto de crime, a venda a terceiro, também conhecedor
da sua origem ilícita. Nesse caso, pergunta-se: Seria possível a
receptação de receptação, também conhecida por receptação em
cadeia? A resposta a essa indagação só pode ser positiva.
Isso porque basta a existência de um crime anterior para que se
possa levar a efeito o raciocínio correspondente à receptação,
devendo o agente que a adquiriu posteriormente ter conhecimento
da sua origem ilícita.
Hungria, com precisão, esclarece:
“É perfeitamente possível a receptação de receptação, isto é, a
mesma coisa pode ser objeto de receptações sucessivas. O
que se faz mister é que a coisa seja proveniente de crime, e
este não é apenas o crime originário, senão também a
intercorrente receptação.”20
Não comungamos, contudo, com a posição assumida pelo
grande penalista, quando diz:
“Se, entretanto, a coisa vem a ser adquirida ou recebida por
terceiro de boa-fé, que, por sua vez, a transmite a outrem, não
comete este receptação, ainda que tenha conhecimento de que
a coisa provém de crime. Houve, em tal caso, uma interrupção
ou solução de continuidade da situação patrimonial anormal
criada pelo crime originário e mantida, acaso, por intercorrente
receptação de má-fé.”21
O que não podemos confundir é a possibilidade de receptação
em cadeia, que, como o próprio nome indica, pressupõe uma série
de receptações que se seguem no tempo, com a impossibilidade de
se punir o agente que adquiriu a coisa, sabendo ser produto de
crime, de alguém que a tinha também adquirido, só que de boa-fé.
O que a lei penal exige, para efeitos de reconhecimento da
receptação, é tão somente o conhecimento do agente no que diz
respeito à origem criminosa da coisa. Se, no exemplo de Hungria, o
agente a adquire de alguém que agia de boa-fé, mas sabendo que a
coisa que lhe fora oferecida tinha origem criminosa, deverá
responder pelo delito tipificado no art. 180 do Código Penal, não se
podendo concordar, permissa vênia, com o argumento do
inigualável penalista.
1.13.4
Imputação alternativa
O delito de receptação se encontra no rol daqueles em que é
possível o raciocínio da chamada imputação alternativa.
Isso porque pode ocorrer, v.g., na hipótese em que o agente
seja surpreendido com uma coisa que tenha sido objeto de furto.
Durante as investigações policiais, também pode ocorrer a sua
recusa em prestar as declarações necessárias ao esclarecimento
dos fatos, permanecendo a dúvida, outrossim, se fora ele o autor do
furto, ou se autor do delito de receptação. Nesse caso, seguindo as
lições de Afrânio Silva Jardim, deverá o Ministério Público oferecer
denúncia com imputação alternativa, que ocorre, segundo o autor:
“Quando a peça acusatória vestibular atribui ao réu mais de
uma conduta penalmente relevante, asseverando que apenas
uma delas efetivamente terá sido praticada pelo imputado,
embora todas se apresentem como prováveis, em face da
prova do inquérito. Desta forma, fica expresso, na denúncia ou
queixa, que a pretensão punitiva se lastreia nesta ou naquela
ação narrada.”22
Nessa hipótese, a peça inicial de acusação deverá narrar os
fatos apontando, expressamente, as suas possibilidades, bem como
as incertezas quanto ao crime ocorrido, permitindo ao acusado se
defender de todos eles.
Sabe-se, portanto, que o acusado praticou um dos crimes –
furto ou receptação –, mas não se tem a certeza de qual deles.
Persistindo a dúvida até o final da instrução do processo, o acusado
deverá ser condenado pela infração penal menos grave, que deverá
ser analisada caso a caso, pois pode concorrer, por exemplo, um
furto qualificado pelo rompimento de obstáculo com a receptação,
sendo aquele, de acordo com as penas previstas pelo § 4º do art.
155 do Código Penal, mais grave do que esta última.
1.13.5
Receptação e Código Penal Militar
O crime de receptação também veio previsto no Código Penal
Militar (Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969), conforme
se verifica pela leitura dos seus arts. 254 a 256.
1.14
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: qualquer pessoa.
Passivo: qualquer pessoa.
Objeto material
Coisa que seja produto de
crime anterior, não podendo ser
fruto de contravenção penal.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
O patrimônio.
Consumação e tentativa
»
Receptação
quando
o
própria:
agente,
»
efetivamente,
adquire,
recebe, transporta, conduz
ou oculta, em proveito
próprio ou alheio, coisa que
sabe ser produto de crime.
É perfeitamente possível a
tentativa.
Receptação imprópria: a
maioria de nossos autores
reconhece
sua
consumação tão somente
quando o agente pratica o
comportamento de influir
para que terceiro, de boafé, adquira, receba ou
oculte a coisa, apontando,
pois, sua natureza formal.
Entendemos que quando a
lei penal usa o verbo influir,
quer significar ter influência
decisiva, fazendo com que
o sujeito, efetivamente,
pratique
um
dos
comportamentos previstos
pelo tipo penal, vale dizer,
adquira, receba ou oculte a
coisa cuja origem criminosa
desconheça, em virtude de
sua boa-fé. Influir, portanto,
quer dizer determinar a que
o sujeito faça alguma coisa.
2.
RECEPTAÇÃO DE ANIMAL
Receptação de animal
Art.
180-A.
Adquirir,
receber,
transportar, conduzir, ocultar, ter em
depósito ou vender, com a finalidade
de produção ou de comercialização,
semovente domesticável de produção,
ainda que abatido ou dividido em
partes, que deve saber ser produto de
crime:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5
(cinco) anos, e multa.
2.1
Introdução
O delito de receptação de animal foi inserido no Código Penal
através da Lei nº 13.330, de 2 de agosto de 2016, criando,
outrossim, o art. 180-A.
Ao contrário do que ocorreu com o delito de furto em que,
através do diploma legal citado, foi criada mais uma qualificadora,
cominando uma pena de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos se a
subtração for de semovente domesticável de produção, ainda que
abatido ou dividido em partes no local da subtração, no caso da
receptação, entendeu o legislador, de forma equivocada, permissa
venia, em criar uma figura típica autônoma, surgindo, assim, a
receptação de animal.
Se foi intenção do legislador cuidar mais rigorosamente das
situações tipificadas no art. 180-A do Código Penal, o resultado será
completamente oposto. Isso porque os fatos previstos no tipo penal
em estudo se amoldavam ao § 1º do art. 180 do estatuto repressivo,
que prevê uma pena de reclusão de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa,
ao passo que o crime de receptação de animal prevê uma pena
menor, variando de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa e, de acordo
com o princípio da especialidade, quando o agente adquirir, receber,
transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito ou vender, com a
finalidade de produção ou de comercialização, semovente
domesticável de produção, ainda que abatido ou dividido em partes,
que deve saber ser produto de crime, seu comportamento se
subsumirá ao tipo do art. 180-A do Código Penal.
Conforme as precisas lições de Rogério Sanches Cunha:
“Semovente é a definição jurídica dada ao animal criado em
grupos (bovinos, suínos, caprinos etc.) que integram o
patrimônio de alguém, passíveis, portanto, de serem objetos de
negócios jurídicos. A lei claramente não abrange os animais
selvagens, mas somente os domesticáveis, mesmo que já
abatidos ou divididos em partes. Os animais devem ser, ainda,
de produção, isto é, preparados para o abate e
comercialização. Não abrange apenas os quadrupedes, mas
também os bípedes e ápodes (animais desprovidos de
membros locomotores, como répteis)”23.
O núcleo adquirir tem o sentido de se tornar proprietário do
semovente domesticável de produção, ainda que abatido ou dividido
em partes, seja de forma onerosa ou mesmo gratuita.
Receber importa em tomar posse, sem, contudo, ser
proprietário, ou seja, sem o caráter de aquisição.
Transportar significa carregar de um lugar para outro. Conduzir
quer dizer respeito, efetivamente, ao ato de dirigir veículos
(automóveis, caminhões etc.). A conduta de conduzir é semelhante
à de transportar. Transportar implica remoção, transferência de uma
coisa de um lugar para outro. Conduzir é guiar, dirigir. Somente o
caso concreto, na verdade, é que nos permitirá, talvez, apontar o
comportamento que melhor se amolde à conduta levada a efeito
pelo agente.
Ocultar importa em esconder o objeto da receptação, impedindo
que outras pessoas tenham acesso a ele.
Ter em depósito significa armazenar, guardar, manter, conservar
a coisa recebida em proveito próprio ou de terceiro. Aqui, ao que
parece, o ter em depósito significa o armazenamento do semovente
domesticável já abatido ou dividido em partes.
Vender é entregar a outrem o objeto material da receptação
mediante remuneração.
Cuida-se, in casu, de um tipo misto alternativo, onde a prática
de mais de um comportamento importará em delito único, não
havendo que se falar, portanto, em concurso de crimes. Assim,
aquele que, por exemplo, adquire, transporta e vende o semovente
domesticável de produção já abatido, ou em partes, responderá por
um único crime de receptação de animal.
Para que um desses comportamentos analisados anteriormente
encontre moldura no art. 180-A do Código Penal é preciso que o
agente tenha atuado com a finalidade de produção ou de
comercialização.
Além disso, só haverá a infração penal sub examen se os
núcleos do tipo forem realizados quando a agente devia saber que o
semovente domesticável de produção, ainda que abatido ou dividido
em partes, era produto de crime. A expressão que deve saber,
constante da parte final do art. 180-A do Código Penal, é motivo de
intensa discussão doutrinária e jurisprudencial por conta da sua
existência no § 1º do art. 180 do mesmo diploma legal, sendo
indicativa do chamado dolo eventual, o que não afasta, obviamente,
o dolo direto, ou seja, se a lei pune aquele que devia saber (dolo
eventual) que o semovente domesticável de produção, ainda que
abatido ou dividido em partes, era produto de crime, que dirá aquele
que tinha essa certeza. É regra básica de interpretação que quem
pune o menos, pune o mais.
2.2
Classificação doutrinária
Crime comum tanto em relação ao sujeito ativo quanto ao
sujeito passivo, haja vista que o tipo penal não exige nenhuma
qualidade ou condição especial; doloso; comissivo (podendo,
excepcionalmente, ser praticado via omissão imprópria, na hipótese
de o agente gozar do status de garantidor); omissivo próprio (na
hipótese de ocultação, dependendo do caso concreto); material;
permanente (quando o agente estiver transportando, conduzindo,
ocultando ou tendo em depósito); monossubjetivo; plurissubsistente;
não transeunte (como regra).
2.3
Objeto material e bem juridicamente protegido
O tipo penal que prevê o crime de receptação de animal tem
por finalidade proteger o patrimônio, seja ele de natureza pública ou
privada. No entanto, mesmo que o bem jurídico protegido seja
precipuamente o patrimônio, podemos visualizar, ainda que de
forma mediata, a saúde pública, uma vez que os abates
clandestinos de animais, livres de qualquer fiscalização, a colocam
em risco.
Objeto material do delito em estudo é o semovente
domesticável de produção, ainda que abatido ou dividido em partes.
2.4
Sujeito ativo e sujeito passivo
Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do delito de receptação
de animal, não havendo qualquer qualidade ou condição especial
exigida pelo tipo constante do art. 180-A do Código Penal.
Da mesma forma, qualquer pessoa também poderá figurar
como sujeito passivo do crime de receptação de animal, incluindo,
aqui, não somente o proprietário, mas também o possuidor do
semovente domesticável de produção, ainda que abatido ou dividido
em partes, que se confundirá com o sujeito passivo do crime
anterior de onde surgiu o produto do crime. Assim, o sujeito passivo
do delito de furto, será também o de receptação de animal.
2.5
Consumação e tentativa
Em se tratando de um delito material, a receptação de animal
se consuma quando o agente, efetivamente, adquire, recebe,
transporta, conduz, oculta, tem em depósito ou vende semovente
domesticável de produção, ainda que abatido ou dividido em parte.
De acordo, ainda, com os ensinamentos de Rogério Sanches
Cunha:
“Para que se configure a receptação do art. 180-A, é
imprescindível a existência de delito precedente, figurando
como objeto material semovente domesticável de produção,
ainda que abatido ou dividido em partes. Esse crime
antecedente não precisa ser necessariamente de furto, mas
também roubo, extorsão, estelionato ou até mesmo outra
receptação (receptação de receptação ou receptação
sucessiva)”24.
A tentativa é admissível, tendo em vista a possibilidade de
fracionamento do iter criminis considerando as condutas previstas
no tipo.
2.6
Elemento subjetivo
O dolo é o elemento subjetivo exigido pelo tipo penal que prevê
o delito de receptação de animal, não havendo previsão para a
modalidade de natureza culposa.
Embora exista controvérsia doutrinária, a expressão “que deve
saber ser produto de crime” não induz a um delito culposo, mas sim
a uma infração penal praticada a título de dolo eventual, como já
decidiram reiteradas vezes nossos tribunais superiores ao analisar a
mesma expressão constante do § 1º do art. 180 do Código Penal,
conforme se verifica pelos julgados abaixo:
“O art. 180, § 1º, do Estatuto Repressivo é constitucional e pode
ser aplicado através da utilização da interpretação extensiva,
ampliando o significado da expressão deve saber (dolo
eventual), englobando também a expressão sabe (dolo direto).
O comerciante ou industrial que adquire, vende, expõe a venda
mercadoria que sabe ou devia saber ser de origem ilícita
responde pela figura qualificada” (STF, ARE 705.620 AgR/DF,
Rel. Min. Luiz Fux, 1ª T., DJe 11/04/2013).
“As instâncias ordinárias reconheceram que o Paciente sabia
que as coisas receptadas eram produto de crime. Portanto, se o
dolo eventual, nos termos da jurisprudência reiterada do
Superior Tribunal de Justiça, é suficiente para configurar o tipo
de receptação qualificada, com mais razão deve-se aplicar a
pena mais grave aos condenados pela prática do crime com
dolo direto, como no caso dos autos. Precedentes” (STJ, HC
193.391/SP, Rel.ª Min.ª Laurita Vaz, 5ª T., DJe 1º/08/2013).
Além dos dolos direto e eventual, podemos visualizar no tipo o
chamado especial fim de agir, consubstanciado na expressão “com
a finalidade de produção ou de comercialização”, sem o qual poderá
haver uma desclassificação do delito de receptação de animais para
uma outra figura típica.
2.7
Modalidades comissiva e omissiva
As condutas de adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar,
ter em depósito ou vender pressupõem um comportamento
comissivo por parte do agente.
Excepcionalmente, poderão ser praticadas via omissão
imprópria, desde que o agente seja considerado como garantidor.
Da mesma forma, dependendo do caso concreto, o núcleo
ocultar poderá se configurar em um crime omissivo próprio.
2.8
Pena, ação penal, competência para julgamento
A pena cominada no preceito secundário do art. 180-A do
Código Penal é de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
A ação penal é de iniciativa pública incondicionada.
A competência poderá ser da Justiça comum estadual ou
federal, dependendo de quem seja o proprietário do semovente
domesticável de produção, ainda que abatido ou dividido em partes.
2.9
Destaque
2.9.1
Novatio legis in melius
Como o delito de receptação de animais, criado pela Lei nº
13.330, de 2 de agosto de 2016, comparativamente ao crime de
receptação qualificada, previsto no art. 180, § 1º, do Código Penal,
que abrangia os comportamentos especializados pela nova lei, pode
ser considerado como uma novatio legis in melius, ou seja, uma lei
que, em virtude de ter cominado penas menores do que aquelas
previstas para a modalidade anteriormente aplicada, deve ser
aplicada retroativamente, nos termos do parágrafo único do art. 2º
do Código Penal, que diz:
Parágrafo único. A lei posterior, que
de qualquer modo favorecer o agente,
aplica-se aos fatos anteriores, ainda
que
decididos
por
sentença
condenatória transitada em julgado.
Assim, ao contrário do que pretendia o legislador, a nova lei
acabou beneficiando aqueles que praticaram a receptação de
semovente domesticável de produção, ainda que abatido ou dividido
em partes, sob a vigência da lei anterior.
2.10
Quadro-resumo
Sujeitos
»
»
Ativo: qualquer pessoa
pode ser sujeito ativo do
delito de receptação de
animal.
Passivo: qualquer pessoa
também poderá figurar
como sujeito passivo do
crime de receptação de
animal.
Objeto material
Objeto material do delito em
estudo
é
o
semovente
domesticável de produção,
ainda que abatido ou dividido
em partes.
Bem(ns)
protegido(s)
juridicamente
O tipo penal tem por finalidade
proteger o patrimônio, seja ele
de natureza pública ou privada.
No entanto, mesmo que o bem
jurídico
protegido
seja
precipuamente o patrimônio,
podemos
visualizar,
ainda,
mesmo que de forma mediata,
a saúde pública, uma vez que
os abates clandestinos de
animais, livres de qualquer
fiscalização, a colocam em
risco.
Elemento subjetivo
»
»
É o dolo.
Não há previsão para a
modalidade de natureza
culposa.
Modalidades
omissiva
»
»
comissiva
e
As condutas de adquirir,
receber,
transportar,
conduzir, ocultar, ter em
depósito
ou
vender
pressupõem
um
comportamento comissivo
por parte do agente.
Excepcionalmente,
poderão ser praticadas via
omissão imprópria, desde
que
o
agente
seja
considerado
garantidor.
como
Consumação e tentativa
»
»
Em se tratando de um
delito
material,
a
receptação de animal se
consuma quando o agente,
efetivamente,
adquire,
recebe, transporta, conduz,
oculta, tem em depósito ou
vende
semovente
domesticável de produção,
ainda que abatido ou
dividido em parte.
A tentativa é admissível.
1
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 305.
2
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 617.
3
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 499.
4
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 499.
5
COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Direito penal objetivo, p. 393.
6
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 373.
7
JESUS, Damásio E. de. Direito penal, v. 2, p. 484.
8
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 3, p. 383-384.
9
JESUS, Damásio E. de. Direito penal, v. 2, p. 487.
10
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado, p. 593.
11
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p 621.
12
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal, v. 2, p. 356.
13
FRANCO, Alberto Silva. Código penal e sua interpretação jurisprudencial, v. 1, t. II, p.
2.817.
14
FRANCO, Alberto Silva. Código penal e sua interpretação jurisprudencial, v. 1, t. II, p.
2.816.
15
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado, p. 594-595.
16
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 304.
17
TELES, Ney Moura. Direito penal, v. 2, p. 507.
18
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, p. 510.
19
TUBENCHLAK, James. Teoria do crime, p. 189.
20
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 305.
21
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII, p. 305.
22
JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal, p. 149.
23
CUNHA, Rogério Sanches. Lei 13.330/16: breves comentários. Disponível em:
<https://www.cers.com.
br/noticias-e-blogs/noticia/lei-1333016-breves-comentarios>.
Acesso em: 19 out. 2016.
24
CUNHA, Rogério Sanches. Lei 13.330/16: breves comentários. Disponível em:
<https://www.cers.com.
br/noticias-e-blogs/noticia/lei-1333016-breves-comentarios>.
Acesso em: 19 out. 2016.
Capítulo VIII
Disposições Gerais
1.
DISPOSIÇÕES GERAIS RELATIVAS AOS CRIMES CONTRA
O PATRIMÔNIO
Art. 181. É isento de pena quem
comete qualquer dos crimes previstos
neste título, em prejuízo:
I – do cônjuge, na constância da
sociedade conjugal;
II – de ascendente ou descendente,
seja o parentesco legítimo ou
ilegítimo, seja civil ou natural. Art.
182. Somente se procede mediante
representação, se o crime previsto
neste título é cometido em prejuízo:
I – do cônjuge desquitado ou
judicialmente separado;
II – de irmão, legítimo ou ilegítimo;
III – de tio ou sobrinho, com quem o
agente coabita.
Art. 183. Não se aplica o disposto nos
dois artigos anteriores:
I – se o crime é de roubo ou de
extorsão, ou, em geral, quando haja
emprego de grave ameaça ou
violência à pessoa;
II – ao estranho que participa do
crime;
III – se o crime é praticado contra
pessoa com idade igual ou superior a
60 (sessenta) anos.
1.1
Introdução
O Capítulo VIII do Título II do Código Penal cuida das
chamadas imunidades penais de caráter pessoal. Essas imunidades
podem ser absolutas ou relativas. Quando absolutas, isentam o
agente de pena, sendo, nesse caso, reconhecidas como escusas
absolutórias; se relativas, fazem a ação penal depender de
representação do ofendido ou de seu representante legal.
Muito se tem discutido sobre os fundamentos dessas
imunidades penais. Tem-se argumentado com o menor alarma
social que o delito produz quando praticado no seio familiar ou,
ainda, asseverando a menor periculosidade do agente. Na verdade,
entendemos que deve prevalecer a fundamentação de natureza
político-criminal, apontando-se como preponderante o interesse
familiar em detrimento da persecução penal às infrações dessa
natureza.
Muitas vezes, a ação penal e, consequentemente, a
condenação do autor do fato serão mais perniciosas para o grupo
familiar do que a infração penal em si. Imagine-se a hipótese em
que um filho, viciado em substâncias entorpecentes, furte um relógio
de seu pai a fim de, com ele, adquirir uma partida de drogas com o
traficante da região. A eventual condenação a uma pena privativa de
liberdade do filho que realizou a subtração do relógio de seu pai
traria um mal muito maior à vítima do que a simples perda de um
bem patrimonial. Seu lar restaria destruído ou, pelo menos,
extremamente abalado com o fato de ver um dos seus entes mais
próximos encarcerado em virtude da prática do delito de furto.
Nesse caso, deverá prevalecer o chamado controle social informal,
exercido pelos próprios membros do grupo contra aquele que
praticou a infração penal. Sua reprovação será suficiente para
resolver tais conflitos, não sendo o Direito Penal o melhor antídoto
contra esse mal, que infelizmente acontece com relativa frequência.
Hungria, com a clareza que lhe era peculiar, dissertando sobre
o tema, esclareceu os motivos pelos quais deveria a lei penal
abrigar as hipóteses que denominava impunibilidade absoluta e
punibilidade relativa:
“Por motivos de ordem polí