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FROMM, Erich O Dogma de Cristo e Outros Ensaios sobre Religi £o

http://groups-beta.google.com/group/digitalsource ERICH FROMM O DOGMA DE CRISTO e Outros Ensaios Sôbre Religião, Psicologia e Cultura 2ª edição Tradução de WALTENSIR DUTRA ZAHAR EDITORES RIO DE JANEIRO Título original: The Dogma of Christ Psychology and Culture. and Other Essays on Religion, Publicado em 1963 por Holt, Rinehart and Winston, New York, E.U.A. Copyright 1955, 1958 e 1963 by Erich Fromm Revisão tipográfica de REVITEX 1965 Direitos para a língua portuguêsa adquiridos por ZAHAR EDITORES Rua México, 31 – Rio de Janeiro que se reservam a propriedade desta tradução Impresso no Brasil INDICE Prefácio 7 O DOGMA DE CRISTO .............................................................. 11 1 - METODOLOGIA E NATUREZA DO PROBLEMA ................ 11 2 - A FUNÇÃO SOCIOPSICOLÓGICA DA RELIGIÃO ............... 17 3 - CRISTIANISMO PRIMITIVO E O CONCEITO DE JESUS .... 25 4 - A TRANSFORMAÇÃO DO CRISTIANISMO E O DOGMA HOMOOUSIANO ................................................ 48 5 - EVOLUÇÃO DO DOGMA ATÉ O CONCÍLIO DE NICÉIA .... 65 6 - OUTRA TENTATIVA DE INTERPRETAÇÃO........................ 73 7 - CONCLUSÃO ................................................................... 78 A PRESENTE CONDIÇÃO HUMANA .......................................... 81 SEXO E CARÁTER .................................................................... 89 PSICANÁLISE: CIÊNCIA OU LINHA PARTIDÁRIA? ....................105 O CARÁTER REVOLUCIONÁRIO ..............................................116 A MEDICINA E O PROBLEMA ÉTICO DO HOMEM MODERNO .131 DAS LIMITAÇÕES E PERIGOS DA PSICOLOGIA.......................146 O CONCEITO PROFÉTICO DA PAZ...........................................154 PREFÁCIO A MAIORIA dos ensaios dêste volume foi escrita nos últimos dez anos. O mais extenso, porém – O Dogma de Cristo –, foi publicado pela primeira vez, em alemão, em 1930. O Professor James Luther Adiams, da Faculdade de Teologia de Harvard, traduziu-o há vários anos, sugerindo-me publicá-lo, num volume, junto com outros trabalhos. Embora não concordasse com muitas de minhas conclusões, o professor julgava que o método e a argumentação tinham um interêsse intrínseco bastante para justificar a publicação em inglês. Hesitei muito em republicar esta manifestação antiga de meu pensamento, e as razões são óbvias. Em primeiro lugar, este ensaio foi escrito num período em que eu era rigorosamente freudiano. Desde então, minhas opiniões em Psicanálise modificaram-se bastante, e muitas das formulações dêste ensaio seriam diferentes, se as escrevesse hoje. Além disso, acentuei unilateralmente, neste trabalho, a função social da religião como substituta da satisfação real e como meio de contrôle social. Embora não se tenham modificado minhas opiniões sôbre isso, hoje eu daria maior destaque ao fato de que a história da religião reflete a história da evolução espiritual do homem. Uma segunda razão está no fato de ser-me impossível reestudar hoje a totalidade do complexo material histórico analisado neste trabalho. Além disso, muitos livros sôbre a história antiga do Cristianismo foram publicados desde 1930, e qualquer revisão de O Dogma de Cristo teria de levá-los em conta. Li muito do que se publicou desde então, e alguns escritos, como The Formation of Christian Dogma, de Martin Werner, pareciam apoiar, de forma indireta, a minha interpretação. Reescrever, porém, a totalidade dêste ensaio estava acima de minhas fôrças. Concordei com a sua publicação na forma original quando Arthur A. Cohen, da editôra Holt, Rinehart e Winston, estudioso da Teologia e da Filosofia, insistiu, juntamente com o Professor Adams, para que eu o apresentasse ao público de língua inglêsa. Desnecessário dizer que a responsabilidade dessa decisão cabe a mim sómente, e não a êles. 7 Ao que me consta, êste foi o primeiro trabalho em que se procurou transcender a interpretação psicológica dos fenômenos históricos e sociais, comum na literatura psicanalítica. Estimulou-me o trabalho sôbre o mesmo assunto, escrito por um de meus professores do Imstituto Psicanalítico de Berlim, Dr. Theodor Reik, que empregou o método tradicíonal. Procurei mostrar que não podemos compreender as pessoas pelas suas ideias e ideologias, que só podemos compreender ideias e ideologias compreendendo as pessoas que as criaram e nelas acreditam. Para isso, temos de transcender a psicologia individual e penetrar no campo da psicologia psicanalítico-social. Assim, ao tratarmos das ideologias, temos de estudar as condições sociais e econômicas das pessoas que as aceitaram e procurar identificar o que mais tarde chamei de “caráter social”. Êste estudo se ocupa particularmente da análise da situação sócio-econômica dos grupos sociais que aceitaram e difundiram os ensinamentos cristãos. Sómente à base desta análise tentamos uma interpretação psicanalítica. Quaisquer que sejam os méritos dessa interpretação, o método de aplicação da Psicanálise aos fenômenos históricos foi desenvolvido em meus livros posteriores. Embora tenha sido aperfeiçoado sob muitos aspectos, seu núcleo está em O Dogma de Cristo de tal modo que, espero, seja ainda interessante. Examinei a tradução do Professor Adams, e compreendo a dificuldade de passar para o inglês o meu alemão pesado e acadêmico. Fiz pequenas modificações de palavras, mas resisti sempre à tentação de modificar o conteúdo. Embora muitas vêzes tivesse desejado substituir minha opinião antiga pelas que hoje mantenho, pareceu-me que a revisão parcial não teria sido honesta para com o leitor. Os demais ensaios dêste livro não precisam de comentários. Em A Medicina e o Problema Ético do Homem Moderno e O Caráter Revolucionário, que na forma original eram conferências, fiz pequenas modificações para a publicação destinada a um público geral. Em Sexo e Caráter eliminei simplesmente o que me pareceu ser repetição ociosa. Agradeço ao Professor James Luther Adams pelo amor com que traduziu para o inglês O Dogma de Cristo, e a Arthur A. Cohen e Joseph Cunneet pela sua assistência editorial. E. F. Nova Iorque, 1963. 8 O DOGMA DE CRISTO 1 METODOLOGIA E NATUREZA DO PROBLEMA UMA DAS REALIZAÇÕES essenciais da Psicanálise foi ter eliminado a distinção falsa entre a psicologia social e a individual. Freud acentuou que não existe uma psicologia individual do homem isolado de seu meio social, porque o homem isolado não existe. Freud não conhecia nenhum homo psychologicus, nenhum Robinson Crusoé psicológico, como o homem econômico da teoria econômica clássica. Pelo contrário, uma de suas descobertas mais importantes foi a compreensão do desenvolvimento psicológico das primeiras relações sociais – as que se estabelecem com os pais, os irmãos e irmãs. Escreveu Freud: É verdade que a psicologia individual se ocupa do homem individual e explora os caminhos pelos quais êle procura satisfação para seus impulsos instintivos. Raramente, porém, e somente em condições excepcionais, a psicologia individual está em posição de ignorar as relações dêsse indivíduo com seu próximo. Outra pessoa está sempre envolvida na vida mental do indivíduo, seja como modêlo, como objeto, como ajuda, como adversário. Assim, desde o princípio, a psicologia individual, nesse sentido um pouco forçado, mas perfeitamente justificável das palavras, é ao mesmo tempo a psicologia social.1 Freud rompeu radicalmente com a ilusão de uma psicologia social cujo objeto era “o grupo”. Para êle, o “instinto Sigmund Freud, Group Psychology and the Analysis of the Ego, Londres: Hogarth Press, Standard Edition, XVIII, 68. 1 11 social” não era o objeto da Psicologia, tal como não o era o homem isolado, pois não constituía um instinto “original e elementar”. Êle via “o início da formação da psique num círculo mais limitado, com a família”. Mostrou que os fenômenos psicológicos existentes no grupo devem ser compreendidos à base de mecanismos psíquicos que operam no indivíduo, e não à base de um grupo.2 A diferença entre a psicologia individual e social é mais quantitativa do que qualitativa. A primeira leva em conta todos os determinantes que afetaram a sorte do indivíduo, e com isso chega a um quadro, completo ao máximo, da sua estrutura psíquica. Quanto mais se amplia a esfera da investigação psicológica – ou seja, quanto maior o número de homens cujos traços comuns permitem um agrupamento – tanto mais devemos reduzir as proporções de nosso exame da estrutura psíquica total dos membros individuais do grupo. Quanto maior, portanto, o número de temas de uma investigação na psicologia social, tanto mais limitada a visão da estrutura psíquica total de qualquer indivíduo dentro do grupo estudado. Quando não se compreende isso, surgem mal-entendidos, fàcilmente, em relação à avaliação dos resultados da investigação. Esperamos saber alguma coisa sôbre a estrutura psíquica de um membro do grupo, mas a investigação sociopsicológica estuda apenas a matriz do caráter, comum a todos os membros do grupo, sem levar em Georg Simmel mostrou, de forma notável, o engano em se aceitar o grupo como “sujeito”, como fenômeno psicológico. Diz êle: “O resultado externo unificado de muitos processos psicológicos subjetivos é interpretado como resultado de um processo psicológico unificado, isto é, de um processo da alma coletiva. A unidade do fenômeno resultante se reflete na pressuposta unidade de sua causa psicológica! O erro dessa conclusão, de que tôda a psicologia coletiva depende, em sua distinção geral, da psicologia individual, é óbvio: a unidade das ações coletivas, que parece ser apenas um lado do resultado visível, é sub-repticiamente transferida para o lado da causa íntima, do indivíduo subjetivo.” “Über der Sozialpsychologie”, Archiv für Sozilawissenshaft und Sozialpolitik, XXVI, 1908. 2 conta a estrutura de caráter total de determinado indivíduo. Êste último estudo jamais pode ser a tarefa da psicologia social, sendo possível apenas 12 quando há um amplo conhecimento do desenvolvimento do indivíduo. Se, por exemplo, numa investigação sociopsicológica, verificarmos que um grupo modifica sua atitude agressivo-hostil para com a figura do pai, passando a uma atitude passivo-submissiva, essa verificação representa alguma coisa diferente da mesma afirmação, quando feita em relação a uma pessoa, numa investigação psicológica individual. No último caso, significa que tal modificação é válida para a atitude total da pessoa, e no primeiro, que constitui uma característica média comum a todos os membros do grupo, que não desempenha necessàriamente um papel central na estrutura de caráter de cada pessoa. O valor da investigação sociopsicológica, portanto, não pode estar no fato de adquirirmos através dela um conhecimento pleno das peculiaridades psíquicas dos membros individuais, mas sómente no fato de podermos estabelecer as tendências psíquicas comuns que desempenham papel decisivo no seu desenvolvimento social. A superação da oposição teórica entre a psicologia individual e social, realizada pela Psicanálise, leva à conclusão de que o método de investigação sociopsicológica pode ser essencialmente idêntico ao método que a Psicanálíse aplica na investigação da psique individual. Será, portanto, mais prudente considerar ràpidamente as características essenciais dêsse método, e que são significativas para o presente estudo. Freud parte da opinião de que nas causas das neuroses – e o mesmo é válido para a estrutura dos instintos nas pessoas normais – a constituição sexual herdada e os fatos experimentados formam uma série complementar: Num extremo da série estão os casos sôbre os quais podemos dizer, com certeza: essas pessoas teriam adoecido qualquer que fôsse a sua experiência, quaisquer que fóssem os fatos a elas sucedidos, por mais bondosa que a vida lhes tivesse sido, devido ao seu desenvolvimento anormal da libido. No outro extremo estão os casos com veredicto oposto – as pessoas que, sem dúvida, teriam escapado à doença se a vida não lhes tivesse imposto determinadas pressões. Nos casos intermediários da série, uma mar gem maior ou menor do fator determinante (constituição sexual) se combina com uma margem menor ou maior das imposições prejudiciais da vida. Sua constituição sexual não teria provocado neurose se essas pessoas não tivessem 13 sofrido tais e tais experiências, e as vicissitudes da vida não teriam influído dramàticamente sôbre elas se a libido tivesse outra constituição.3 Para a Psicanálise, o elemento constitucional na estrutura psíquica dos normais ou dos doentes é o fator a ser observado na investigação psicológica das pessoas, embora permaneça intangível. O psicanalista preocupa-se com a experiência, e a investigação de sua influência sôbre o desenvolvimento emocional é sua finalidade primordial. A Psicanálise tem consciência, decerto, de que o desenvolvimento emocional do indivíduo é determinado mais ou menos pela sua constituição; essa consciência é uma pressuposição da Psicanálise, mas esta em si ocupa-se exclusivamente da investigação da influência da situação de vida do indivíduo sôbre o seu desenvolvimento emocional. Na prática isso significa que para o método psicanalítico um conhecimento máximo da história da pessoa – principalmente de suas experiências da primeira infância, mas não apenas estas – é uma condição essencial. Estuda a relação entre a vida da pessoa e os aspectos específicos de sua evolução emocional. Sem amplas informações sôbre a vida do indivíduo, a análise é impossível. A observação geral revela, decerto, que determinadas expressões típicas do comportamento indicam formas típicas Sigmund Freud, A General Introduction to Psychoanalysis (New York Liverigh Publishing Corp., 1943), pág. 304. Freud diz que “os dois fatores” são “constituição sexual e realizações experimentadas, ou, se quisermos, fixação da libido e frustração”; “são representados de modo que quando um predomina, o outro é, proporcionalmente menos acentuado”. 3 de vida. Seria possível deduzir essas formas pela analogia, mas tais deduções encerrariam um elemento de incerteza que limitaria a sua validade científica. O método da psicanálise individual é, portanto, um método delicadamente “histórico”: a compreensão do desenvolvimento emocional à base do conhecimento da vida do indivíduo. O método de aplicação da Psicanálise a grupos não pode ser diferente. As atitudes psíquicas comuns dos membros do grupo só devem ser compreendidas à base de seus padrões comuns. Tal como a psicologia psicanalítica individual procura 14 compreender a constelação emocional do indivíduo, também a psicologia social só pode compreender a estrutura emocional do grupo por um conhecimento exato do padrão de sua vida. A psicologia social só pode fazer afirmações sôbre as atitudes psíquicas comuns a todos, e portanto exige o conhecimento de situações de vida comuns a todos e características de todos. Se o método da psicologia social não é bàsicamente diferente da psicologia individual, há, não obstante, uma diferença que deve ser assinalada. Enquanto a pesquisa psicanalítica se ocupa primordialmente de pessoas neuróticas, a pesquisa sociopsicológica se interessa pelos grupos de pessoas normais. O neurótico caracteriza-se pelo fato de não se ter conseguido ajustar psiquicamente ao seu meio real. Pela fixação de certos impulsos emocionais, de certos mecanismos psíquicos que em determinado momento foram apropriados e adequados, êle entra em conflito com a realidade. A estrutura psíquica do neurótico é, portanto, quase totalmente ininteligivel sem o conhecimento de suas experiências da primeira infância, pois devido à sua neurose – manifestação de sua falta de ajuste ou do âmbito particular das fixações infantis – até mesmo sua posição como adulto é determinada essencialmente por essa situação de infância. Mesmo para a pessoa normal, as experiências da primeira infância são de significação decisiva. Seu caráter, no sentido amplo, é determinado por elas e sem elas torna-se incompreensível em sua totalidade. Mas como adaptou-se psiquicamente à realidade, num grau mais alto do que o neurótico, sua estrutura psíquica é em parte muito mais compreensível que a do neurótico. A psicologia social ocupa-se de pessoas normais, sôbre cuja situação psíquica a realidade tem uma influência incomparàvelmente maior do que sôbre o neurótico. Por isso, ela pode deixar de lado mesmo o conhecimento das experiencias individuais da infância dos vários membros do grupo que investiga. Do conhecimento da vida socialmente condicionada, em que tais pessoas se encontravam depois da primeira infância, a psicologia social pode obter a compreensão das atitudes psíquicas comuns a elas. A psicologia social quer investigar como certas atitudes psíquicas comuns aos membros de um grupo se relacionam às 15 suas experiências de vida que lhes são comuns. Não é por acaso que essa ou aquela direção da libido predomina numa pessoa, que o complexo de Édipo encontra esta ou aquela saída, tal como não é por acaso que as transformações nas características psíquicas ocorrem na situação psíquica de um grupo, seja na mesma classe de pessoas num período de tempo, ou simultâneamente entre classes diferentes. É tarefa da psicologia social indicar por que tais modificações ocorrem e como devem ser compreendidas, à base da experiência comum aos membros do grupo. Esta nossa investigação se ocupa com um problema bem delimitado de psicologia social, ou seja, a questão relacionada com os motivos que condicionam a evolução dos conceitos sôbre a relação de Deus Pai com Jesus, desde o início do Cristianismo até à formulação do Credo de Nicéia, no século IV. De acordo com os princípios teóricos expostos nas linhas precedentes, esta investigação visa a determinar as proporções em que a transformação em certas idéias religiosas consiste numa expressão da transformação psíquica das pessoas em causa, e as proporções em que tais transformações são condicionadas pela forma de vida. Procuraremos compreender as ideias, em têrmos dos homens e do tipo de vida que levavam, e mostrar que a evolução do dogma só pode ser compreendida através do conhecimento do inconsciente, sôbre o qual a realidade externa influi e que determina o conteúdo da consciência. O método dêste trabalho exige que se dedique um espaço relativamente grande à apresentação da situação de vida dos povos investigados, de sua situação espiritual, econômica, social e política – em suma, de suas “superfícies psíquicas”. Se parecer ao leitor que se trata de uma ênfase desproporcional, êle deverá lembrar que até mesmo nos estudos psicanalíticos dos casos é necessário dedicar grande espaço à apresentação das circunstâncias externas que cercam a pessoa. Neste trabalho, a descrição da situação cultural total das massas de povos analisadas e a apresentação de seu meio externo são mais decisivas do que a descrição da situação real, no estudo de um caso individual. A razão disso é que na natureza das coisas a reconstrução histórica, embora não deva ser muito detalhada, é incomparàvelmente mais complicada e mais ampla do que um simples relato de fatos, à medida que ocorrem na vida de uma pessoa. Acreditamos, porém, que essa desvantagem deve ser tolerada, porque é essa a única forma de se chegar a uma compreensão analítica dos fenômenos históricos. 16 Êste estudo se ocupa com um tema já tratado por um dos mais destacados representantes do estudo analítico da religião, Theodor Reik.4 As diferenças de conteúdo, que resultam necessàriamente de metodologia diversa, serão “Dogma und Zwangsidee”, Imago. XII, Cf. Dogma and Compulsion. Nueva York, International Universities Press Inc., 1951, e outros trabalhos em psicologia da religião, de Reik; E. Jones, Zur Psychoanalyse der christlichen Religion; y A. J. Storfer, Marias jungfraüliche Muttershaft. 4 examinadas ràpidamente no fim dêste ensaio, bem como as próprias diferenças metodológicas. Nossa finalidade, aqui, é compreender a transformação de certos conteúdos da consciência, tal como se manifesta nas ideias teológicas em consequencia de uma transformação dos processos inconscientes. Assim, tal como fizemos em relação ao problema metodológico, pretendemos focalizar brevemente as mais importantes descobertas da Psicanálise, em sua relação com nossa indagação. 2 A FUNÇÃO SOCIOPSICOLÓGICA DA RELIGIÃO A PSICANÁLISE é a psicologia das tendências ou impulsos. Vê o comportamento humano como condicionado e definido por impulsos emocionais, que interpreta como resultado de certos impulsos psicológicamente enraizados, e que não são objeto da observação imediata. Seguindo, desde o princípio, a classificação popular de impulsos de fome e impulsos de amor, Freud distingue entre o ego, ou a autopreservação, e os impulsos sexuais. Devido ao caráter libidinoso dos impulsos de autopreservação do ego, e devido à significação especial das tendências destruidoras na constituição psíquica do homem, Freud sugeriu 17 uma divisão diferente, levando em conta o contraste entre os impulsos mantenedores de vida e os impulsos destruidores. Essa classificação não requer, aqui, maiores comentários. O importante é o reconhecimento de certas qualidades do impulso sexual que o distinguem dos impulsos do ego. Os impulsos do sexo não são imperativos, ou seja, é possível deixar suas exigências insatisfeitas sem ameaçar com isso a própria vida, o que não seria o caso com as exigências da fome, da sêde e da necessidade de dormir. Além disso, os impulsos sexuais, e até um ponto não insignificante, podem ser satisfeitos pela imaginação e com o próprio corpo. São, portanto, muito mais independentes da realidade externa do que os impulsos do ego. Intimamente relacionadas com êste estão a transferência fácil e a capacidade de intercâmbio entre os impulsos componentes da sexualidade. A frustração de um impulso libidinal pode ser compensada, com relativa facilidade, pela substituição por outro impulso cuja satisfação é possível. Tais flexibilidade e versatilidade dos impulsos sexuais são a base da extraordinária variabilidade da estrutura psíquica, e nisso está, também, a possibilidade de as experiências individuais afetarem, de forma tão definida e marcada, a estrutura da libido. Freud vê o princípio do prazer, modificado pelo princípio da realidade, como o regulador do aparato psíquico. Diz êle: Vamos, portanto, voltar nossa atenção para uma indagação menos ambiciosa – a de revelarem ou não os homens, pelo seu comportamento, os objetivos e intenções de suas vidas. O que pretendem da vida e o que desejam realizar nela? A resposta não deixa dúvidas. Procuram a felicidade, querem tornar-se felizes e continuar felizes. Êsse objetivo tem dois aspectos, uma finalidade positiva e outra negativa. Visa, sob um aspecto, à ausência da dor e de coisas desagradáveis, e sob outro, à experiência de fortes sensações de prazer. Em seu sentido limitado, a palavra “felicidade” se relaciona apenas com os sentimentos de prazer. De acordo com essa dicotomia de finalidade, a atividade do homem se desenvolve em duas direções, segundo busque realizar – de forma principal ou mesmo exclusiva - um ou outro dêsses objetivos.5 18 O indivíduo quer experimentar – em dadas circunstâncias uma satisfação máxima da libido e um mínimo de dor. Para evitar esta, pode aceitar as transformações ou mesmo frustrações dos diferentes componentes dos impulsos sexuais. Uma renúncia semelhante aos impulsos do ego, porém, é impossível.As peculiaridades da estrutura emocional do indivíduo dependem de sua constituição psíquica e, Sigmund Freud, Civilization and its Discontents (Standard Edition), XXI, 76 5 primordialmente, de suas experiências na infância. A realidade externa, que lhe assegura a satisfação de certos impulsos, mas que obriga à renúncia de outros, é definida pela situação social existente, e na qual vive. Essa realidade social inclui a realidade mais ampla que abarca todos os membros da sociedade e a realidade limitada das classes sociais distintas. A sociedade tem uma função dupla na situação psíquica do indivíduo, frustrando-a e satisfazendo-a. As pessoas dificilmente renunciam aos impulsos por verem o perigo que resultará de sua satisfação. Geralmente, a sociedade impõe tais renúncias: primeiro, há as proibições estabelecidas à base do reconhecimento social de um perigo real para o próprio indivíduo, perigo que não percebe imediatamente e que está ligado à satisfação do impulso; segundo, há a repressão e frustração de impulsos cuja satisfação provocaria danos não ao indivíduo, mas ao grupo; e, finalmente, as renúncias feitas não no interêsse do grupo, mas apenas de uma classe dominante. A função “satisfatória” da sociedade não é menos clara do que seu papel frustrativo. O indivíduo só a aceita porque, através de sua ajuda, pode, até certo ponto, esperar conseguir satisfação e evitar sofrimento, principalmente em relação à satisfação das necessidades elementares de preservação, e, em segundo lugar, em relação à satisfação das necessidades libidinosas. O que dissemos não levou em conta as caracteristicas específicas de tôdas as sociedades conhecidas históricamente. Os membros de uma sociedade não se consultam, na realidade, para determinar o que esta pode permitir e o que deve proibir. Enquanto as fôrças produtoras da economia não são suficientes para proporcionar a todos a satisfação adequada de suas necessidades materiais e culturais (ou seja, mais do que a proteção 19 contra o perigo externo e a satisfação das necessidades elementares do ego), a classe social mais poderosa procurará obter o máximo de satisfação de suas necessidades, primeiro. O grau de satisfação que proporciona aos que são governados por ela depende do nível das possibilidades econômicas disponíveis e também do fato de que um mínimo de satisfação deve ser proporcionado aos que são governados, de modo que possam continuar a funcionar como membros cooperantes de sociedade. A estabilidade social depende relativamente pouco do uso da fôrça externa. Depende, em sua maior parte, de se encontrarem os homens numa condição psíquica que os prenda intimamente a uma situação social existente. Para isso, como já observamos, é necessário um mínimo de satisfação das necessidades naturais e culturais instintivas. A essa altura, porém, devemos notar que para a submissão psíquica das massas algo mais é necessário, algo ligado à estratificação estrutural peculiar da sociedade em classes. Quanto a isso, Freud assinalou que a impotência do homem frente à Natureza é uma repetição da situação em que o adulto se viu quando criança, quando não podia passar sem a ajuda contra fôrças superiores e estranhas, e quando seus impulsos vitais, seguindo as inclinações narcisistas, se prendiam primeiro aos objetos que lhe proporcionavam proteção e satisfação, ou seja, a mãe e o pai. Na medida em que a sociedade é impotente em relação à Natureza, a situação psíquica da infância se repete para o membro individual da sociedade, quando adulto. Transfere do pai ou da mãe um pouco de seu amor e mêdo infantis, e também um pouco de sua hostilidade, para uma figura da imaginação, para Deus. Além disso, há uma hostilidade a certas figuras reais, particularmente aos representantes da elite. Na estratificação social repete-se a situação infantil para o indivíduo. Êle vê nos governantes os poderosos, os fortes e os sábios – pessoas a serem reverenciadas. Acredita que tais pessoas lhe desejam bem, sabe também que resistir a elas representa, sempre, um castigo; fica satisfeito quando, pela sua docilidade, lhes conquista louvores. São sentimentos idênticos aos que, quando criança, experimentava pelo pai, sendo compreensível que se disponha a acreditar, sem crítica, no que lhe é dito pelos governantes, 20 tal como acreditava, na infância, em tudo o que lhe dizia o pai. A figura de Deus forma um complemento à situação: Deus é sempre o aliado dos governantes. Quando êstes, que são figuras reais, ficam expostos à crítica, podem valer-se de Deus, que em virtude de sua irrealidade despreza as críticas e pela sua autoridade confirma a autoridade da classe dominante. Nessa situação psicológica de servidão infantil está uma das principais garantias da estabilidade social. Muitos se encontram na mesma situação experimentada quando criança, impotentes frente ao pai, e os mesmos mecanismos funcionam nos dois casos. Essa situação psíquica se consolida através de muitas medidas, significativas e complicadas, tomadas pela elite, cuja função é manter e fortalecer nas massas a dependência psíquica infantil e imporse a seu inconsciente como a figura do pai. Um dos principais meios de realizar êsse objetivo é a religião. Tem ela a tarefa de impedir qualquer independência psIquica da parte do povo, de intimidar intelectualmente, de provocar uma docilidade infantil, socialmente necessária, para com as autoridades. Ao mesmo tempo, tem outra função essencial: oferece às massas certa satisfação que torna a vida suficientemente tolerável e impede que elas procurem modificar sua posição, passando de filho obediente a filho rebelde. De que tipos são essas satisfações? Certamente, não são satisfações dos impulsos de autopreservação do ego, nem de melhor alimentação, nem outros prazeres materiais. Tais prazeres só são obtidos na realidade, e para isso não é preciso religião. Esta serve apenas para tornar mais fácil às massas se resignarem a muitas frustrações que a realidade apresenta. As satisfações que a religião oferece são de natureza libidinosa: ocorrem essencialmente em imaginação, porque, como já assinalamos, os impulsos libidinosos, em contraste com os impulsos do ego, permitem a satisfação na imaginação. Chegamos, agora, a uma indagação relacionada com uma das funções psíquicas da religião, e vamos assinalar, ràpidamente, os resultados mais importantes das pesquisas de Freud nessa área. Em Totem e Tabu, Freud mostrou que o deus animal do totemismo é o pai elevado, e que na proibição de manter 21 e comer o animal totem e no costume festivo e contraditório de, apesar disso, violar a proibição uma vez por ano, o homem repete a atitude ambivalente que adquiriu, quando criança, para com o pai, que é ao mesmo tempo um protetor e auxiliar e um rival opressor. Já foi mostrado, especialmente por Reik, que essa transferência para Deus da atitude infantil em relação ao pai se encontra também nas grandes religiões. A indagação formulada por Freud e seus alunos relacionava-se com a qualidade psíquica da atitude religiosa para com Deus. A resposta está em que na atitude do adulto para com Deus vemos a repetição da atitude infantil da criança para com o pai. Essa situação psíquica infantil representa o padrão da situação religiosa. Em O Futuro de Uma Ilusão, Freud passa dessa questão para outra, mais ampla. Não indaga apenas como a religião é psicológicamente possível, mas também por que ela existe ou por que tem sido necessária. A resposta que encontra leva em consideração, simultâneamente, os fatos psíquicos e sociais. Ele atribui à religião o efeito de um narcótico capaz de dar ao homem certo consolo pela sua impotência frente às fôrças da Natureza: Pois tal situação nada tem de novo. Tem seu protótipo infantil, do qual na realidade é apenas a continuação. O individuo já se encontrou, no passado, em situação de impotência semelhante: quando criança, em relação aos seus pais. Tinha razão para temêlos especialmente ao pai, e não obstante confiava na sua proteção contra os perigos conhecidos. Assim, as duas situações se assemelham naturalmente. Também nesse caso o desejo desempenha seu papel, tal como nos sonhos. O sonhador pode ser tomado de um pressentimento de morte, que, ameaça colocá-lo num túmulo. Mas o sonho sabe selecionar uma condição que transformará até mesmo o acontecimento temido na realização de um desejo: o sonhador se vê numa antiga tumba etrusca, satisfazendo com isso seus interêsses arqueológicos. Da mesma forma, o homem faz das fôrças da Natureza não apenas pessoas com as quais se pode ligar, como se lhe fóssem iguais – o que não faria justiça à esmagadora impressão que essas fórças lhe despertam –, mas sim lhes atribui um caráter paternal. Faz delas deuses, seguindo nisso, como procurei mostrar, não só um protótipo infantil, mas também um protótipo filogenético. No curso do tempo, fizeram-se as primeiras observações sôbre a regularidade e conformidade dos fenômenos naturais 22 a uma lei, e com isso as fôrças da Natureza perderam seus traços humanos. Mas a impotência do homem permanece e justamente com ela seu anseio pelo pai e os deuses. Êstes conservam sua tríplice tarefa: devem servir de exorcismos contra os terrores da Natureza, devem reconciliar o homem com a crueldade do destino, particularmente revelada pela morte, e devem compensar os sofrimentos e privações que a vida civilizada em comum impôs aos homens.6 Eis como Freud responde à pergunta: “O que constitui o poder intrínseco das doutrinas religiosas e em que circunstâncias essas doutrinas devem sua eficiencia, independentemente da aprovação racional?” Essas [idéias religiosas] apresentadas como ensinamentos não são conseqüência da experiência ou de resultados finais do raciocinio: são ilusões, a realização dos mais antigos, estranhos e prementes desejos da humanidade. O segrêdo de sua fórÇa está na intensidade dêsses desejos. Como já sabemos, a aterrorizante impressão de impotência na infância despertou a necessidade de proteção – proteção através do amor – que foi proporcionada pelo pai, e o reconhecimento de que essa impotência perduraria por tôda a vida tornou necessário apegar-se à existência de um pai – mas de um pai mais poderoso. Assim, a proteção benevolente da Divina Providência afasta nosso receio dos perigos da vida; a imposição de uma ordem moral mundial assegura o cumprimento 6 Sigmund Freud, The Future of an Illusion (Standard Edition), XXI, 17-18. das exigências da justiça, que freqüentemente permaneceram desatendidas na civilização humana; e o prolongamento da existência terrena numa vida futura proporciona a estrutura local e temporal na qual êsses desejos-realizações ocorrerão. As respostas aos enigmas que despertam a curiosidade do homem, como o início do universo ou a relação entre o corpo e a mente, se desenvolvem de conformidade com as suposições subjacentes do sistema. Representa um alívio enorme para a psique individual se os conflitos da infância, provocados pelo pai – conflitos-complexos que jamais foram totalmente superados –, são eliminados e chegam a uma solução universalmente aceita.7 23 Freud vê, portanto, a possibilidade de uma atitude religiosa na situação infantil. Vê sua necessidade relativa na impotência do homem em relação à Natureza, e conclui que, aumentando o contrôle humano sôbre a Natureza, a religião passará a ser vista como uma ilusão que se está tornando supérflua. Vamos resumir o que dissemos até agora. O homem luta por um máximo de prazer; a realidade social o obriga a renunciar a muitos dos impulsos, e a sociedade procura recompensar o indivíduo por essas renúncias, proporcionando-lhe outras satisfações inofensivas para ela, ou seja, para as classes dominantes. Tais satisfações podem, em essência, ser obtidas pela imaginação, especialmente pelas fantasias coletivas. Têm uma função importante na realidade social. Na medida em que a sociedade não permite uma satisfação real, as satisfações da imaginação servem como substitutivo e se tornam um apoio poderoso da estabilidade social. Quanto maiores as renúncias que os homens suportam na realidade, tanto mais forte deve ser o desejo de compensação. As satisfações da imaginação têm a dupla função característica de todo narcótico: agem tanto como anódino quanto como repressão de uma transformação ativa da realidade. As satisfações da imaginação ou fantasia têm uma vantagem essencial sôbre os devaneios individuais: em virtude de sua universalidade, são 7 Ibid., pág. 30. percebidas pela mente consciente como se reais fôssem. A ilusão partilhada por todos se torna uma realidade. A mais velha dessas satisfações fantasiosas coletivas é a religião. Com o desenvolvimento progressivo da sociedade, as fantasias se tornam mais complicadas e mais racionalizadas. A própria religião se torna distinta, e a seu lado surgem a poesia, a arte, a filosofia, como expressões das fantasias coletivas. Resumindo, a religião tem uma tríplice função: para tôda a humanidade serve de consôlo às privações impostas pela vida; para a grande maioria dos homens é um estímulo à aceitação emocional de sua situação de classe; e para a minoria dominante é um alívio dos sentimentos de culpa provocados pelo sofrimento daqueles a quem oprime. Nossa análise procura comprovar, em detalhe, o que se disse, examinando um pequeno segmento do desenvolvimento 24 religioso. Procuraremos mostrar que influência a realidade social teve numa situação específica, num grupo específico, e como as tendências emocionais encontraram expressão em certos dogmas, em fantasias coletivas, e mostrar ainda mais as modificações psíquicas provocadas por uma transformação na situação social. Tentaremos ver como essa modificação psíquica encontrou expressão em novas fantasias religiosas que satisfizeram certos impulsos inconscientes. Com isso, deixaremos claro como a transformação dos conceitos religiosos está intimamente ligada à experiência das várias relações infantis possíveis com o pai ou a mãe, e, ainda, com as modificações na situação social e econômica. O curso de nossa análise é determinado pelas pressuposições metodológicas já mencionadas. A finalidade será compreender o dogma à base de um estudo das pessoas, e não as pessoas à base de um estudo do dogma. Procuraremos, portanto, descrever primeiro a situação total da classe social de onde se originou a fé cristã primitiva e compreender o sentido psicológico dessa fé em têrmos da situação psíquica total dessas pessoas. Mostraremos, então, como a mentalidade do povo tornou-se diferente num período posterior. Finalmente, procuraremos compreender o sentido inconsciente da Cristologia, cristalizada como o produto final de uma evolução de trezentos anos. Vamos focalizar principalmente a fé cristã primitiva e o dogma de Nicéia. 3 CRISTIANISMO PRIMITIVO E O CONCEITO DE JESUS TODA TENTATIVA de compreender a origem do Cristianismo deve partir de uma investigação da situação econômica, social, cultural e psíquica de seus primeiros adeptos.8 25 A Palestina era parte do Império Romano e sucumbiu às condições de seu desenvolvimento econômico e social. O principado augustiano representara o fim do domínio de uma oligarquia feudal, e ajudou a proporcionar o triunfo do homem da cidade. O crescente comércio internacional não representou nenhuma melhoria para as grandes massas, nem lhes satisfez melhor as necessidades diárias: sómente uma pequena camada da classe proprietária se interessou por êle. Um proletariado desempregado e faminto, de proporções sem precedente, enchia as cidades. Depois de Roma, Jerusalém era a cidade com o maior proletariado dêsse tipo. Os artesãos, que habitualmente só trabalhavam em casa e pertenciam em grande parte ao proletariado, fizeram causa comum com os M. Rostovtzeff, Social and Economic History of the Roman Empire. Oxford, 1926; Max Weber. “Die sozialen Gründe des Untergangs der antiken Kultur”, em Gesammelte Aufsätze sur Sozial und Wirtshaftsgeschichte, 1924; E. Meyer, “Sklaverei im Alternum”, Kleine Schriften, segunda edição, vol. I; K. Kautsky, Foundations of Christianity. Russel, 1953. 8 mendigos, os trabalhadores braçais e os camponeses. Na verdade, o proletariado de Jerusalém estava em situação pior que o de Roma. Não gozava dos mesmos direitos civis dos romanos, nem tinha as suas necessidades prementes, do estômago e coração, atendidas pelos imperadores com as grandes distribuições de pão e os complicados jogos e espetáculos. A população rural achava-se esgotada pelos impostos excessivamente pesados, e se endividou a ponto de se tornar escrava ou lhe foram tomados os meios de produção ou as pequenas propriedades dos pequenos fazendeiros, que em parte foram engrossar as fileiras do proletariado urbano de Jerusalém, enquanto outros recorriam a remédios desesperados, como os levantes políticos violentos e os saques. Acima dêsse proletariado empobrecido e desesperado, surgiu em Jerusalém, como em todo o Império Romano, uma classe média econômica que, embora sofrendo sob a pressão romana, permanecia econômicamente estável. Acima dêsse grupo, havia uma pequena, mas poderosa e influente classe, a aristocracia feudal, sacerdotal e endinheirada. As distinções sociais correspondiam à severa distinção econômica entre a população palestina. Os fariseus, os saduceus e o Am Haaretz eram os grupos políticos e religiosos que representavam tais diferenças. Os saduceus representavam a classe 26 abastada e superior: “[sua] doutrina é recebida por apenas uns poucos, mas que são os de maior dignidade”.9 Embora sejam ricos, Josephus não considera aristocráticas as suas maneiras: “O comportamento dos saduceus entre si é, de certa forma, selvagem, e sua conversação é tão bárbara como se fossem estranhos.”10 Logo abaixo dessa pequena classe superior feudal estavam os The Life and Works of Flavius Josephus. The antiquities of the Jews, XVIII, 1, 4, traduzido por William Whiston. Nova York, Hol, Rinehart and Winston, Inc., 1957. 10 The Life and Works of Flavius Josephus, The Wars of the Jews, 11, 8, 14. 9 fariseus, representando os setores médio e inferior da população urbana, “cordiais entre si, empenhados na concórdia e na consideração ao público”.11 Ora, os fariseus vivem mesquinhamente e desprezam o refinamento na comida, seguem a orientação da razão e o que esta lhes mostra como bom o fazem. E pensam que se devem empenhar em observar os ditames da razão, na prática. Também veneram os idosos, e não são bastante ousados para contrariá-los em nada que tenham criado; e quando afirmam que tôdas as coisas são feitas pelo destino, não afastam do homem a liberdade de agir como melhor lhe parece: para êles, Deus determinou que os acontecimentos sejam provocados em parte pelo destino, em parte pelos homens que agem sôbre êles com virtude ou vício. Também acreditam que as almas têm uma fôrça imortal e que sob a terra haverá recompensa ou punições, se a vida tiver sido de vício ou de virtude. No primeiro caso, a alma ficará eternamente prisioneira, mas no segundo terá o poder de reviver e viver de novo. Devido a tais doutrinas, podem convencer a maior parte do povo, e tudo o que fazem em relação ao culto, orações e sacrifícios obedece a tais princípios.12 A descrição que Josephus faz da classe média dos fariseus mostra-a mais unificada do que na realidade. Entre êles havia elementos oriundos das camadas proletárias mais baixas que continuavam mantendo seus costumes (como por exemplo o Rabi 27 Aquiba). Ao mesmo tempo, porém, havia cidadãos urbanos de boa situação. Essa diferença social encontrou expressão sob formas diversas, evidenciando-se melhor nas contradições políticas dentro do farisaísmo, em relação à sua atitude para com o domínio romano e os movimentos revolucionários. A camada mais baixa do lumpenproletariat e dos camponeses oprimidos, a chamada Am Ha-aretz (literalmente, pessoas da terra), contrapunha-se nitidamente aos fariseus e seu séquito mais amplo. Na realidade, constituíam uma classe totalmente desarraigada pela evolução econômica: nada tinham a perder, 11 12 Ibid. Josephus, The Wars of the Jews, XVIII, 1, 3. e talvez pudessem ganhar alguma coisa. Estavam, econômica e socialmente, fora da sociedade judaica, integrada no conjunto do Império Romano. Não seguiam os fariseus nem os reverenciavam – odiavam-nos, e por sua vez eram odiados por êles. Bem característica dessa atitude é a afirmação feita por Aquiba, um dos fariseus mais importantes, oriundo do proletariado: “Quando eu era ainda um homem comum [ignorante] do Am Ha-aretz, costumava dizer que, se pudesse deitar mãos num erudito, o espancaria como a um jumento.”13 O Talmude prossegue: “O rabino diz como a um cão’, pois o asno não morde.” E êle responde: “Quando um asno morde, geralmente quebra os ossos da vítima, ao passo que o cão morde apenas a carne.” Encontramos na mesma passagem no Talmude uma série de afirmações sôbre as relações entre os fariseus e o Am Ha-aretz. O homem deve vender seus bens e conseguir a filha de um erudito para mulher, e se isso não lhe fôr possível, deve procurar obter a filha de um homem destacado. Se também isso não fôr possível, deve empenhar-se em conseguir a filha de um diretor de sinagoga, e se falhar, ainda, deve procurar a filha de um professor primário. Deve evitar casar-se com a filha de uma pessoa comum [membro do Am Ha-aretz], pois ela é uma abominação, suas mulheres são abomináveis e, sôbre suas filhas, diz-se: “Maldito seja quem dorme com uma vaca.” (Deut. 27.) Ou, como diz R. Jochanan: Pode-se partir uma pessoa comum em pedaços como um peixe... Quem dá sua filha a uma pessoa comum em 28 casamento praticamente se encadeia a um leão, pois tal como os leões, que despedaçam e devoram suas vítimas sem qualquer vergonha, assim faz a pessoa comum que dorme, de forma brutal e sem pudor, com uma môça. R. Eliezer diz: Se as pessoas comuns não precisassem de nós por motivos económicos, há muito nos teriam assassinado... A inimizade de 13 Talmude, Pesachim, 49b. uma pessoa comum para com um erudito é ainda mais intensa do que a dos pagãos para com os israelitas ... Seis coisas são veridicas em relação à pessoa comum: não podemos aceitá-la como testemunha e nem como provas, não podemos revelar-lhe um segrêdo, confiar-lhe um órfão, nem fundos para a caridade, não podemos viajar em sua companhia e não lhe devemos dizer nada quando perde alguma coisa.14 As opiniões aqui citadas (que poderiam ser consideràvelmente multiplicadas) vêm dos círculos farisaicos e mostram o ódio com que se opunham ao Am Ha-aretz, mas também a hostilidade do homem comum para com os eruditos e seu séquito.15 Foi necessário descrever a oposição, dentro do judaísmo palestino, entre a aristocracia, as classes médias e seus líderes intelectuais, de um lado, e o proletariado urbano e rural de outro, a fim de deixar claras as causas subjacentes dos movimentos políticos e religiosos como o Cristianismo primitivo. Uma apresentação mais detalhada das distinções entre os fariseus, extraordinàriamente variados, não é necessária para as finalidades dêste estudo e nos levaria muito longe de nosso objetivo. O conflito entre a classe média e o proletariado dentro do grupo farisaico aumentou, à medida que a opressão romana tornou-se mais pesada e as classes inferiores mais econômicamente esmagadas e desarraigadas. Na mesma medida, as classes inferiores da sociedade tornaram-se as defensoras dos movimentos nacionais, religiosos e revolucionários. Essas aspirações revolucionárias das massas, encontraram expressão em dois sentidos: tentativas políticas de uma revolta 29 Os trechos citados estão no Talmude, Pesachim, 48b. Cf. Fredländer, Die religiösen Bewegungen innerhalb der Judentums im Zeitalter Jesu, 1905 14 15 e emancipação, dirigidas contra sua Própria aristocracia e os romanos, e em tôdas as formas de movimentos religiosomessiânicos. Mas não existe uma separação nítida entre essas duas correntes que se movem para a liberação e a salvação – elas freqüentemente se misturam. Os próprios movimentos messiânicos assumiram formas em parte práticas e em parte meramente literárias. Os mais importantes movimentos dêsse tipo podem ser mencionados ràpidamente aqui. Pouco antes da morte de Herodes, ou seja, uma época em que além do domínio romano o povo sofria a opressão às mãos dos delegados judeus que serviam aos romanos, ocorreu em Jerusalém, sob a liderança de dois fariseus eruditos, uma revolta popular durante a qual a águia romana, à entrada do Templo, foi destruída. Os instigadores do movimento foram executados e os principais conspiradores queimados vivos. Depois da morte de Herodes, uma multidão realizou demonstrações ante seu sucessor, Arquelau, exigindo a liberdade dos prisioneiros políticos, a abolição de certos impostos e a redução do tributo anual. Tais exigências não foram atendidas. Uma grande manifestação popular, relacionada com êsses fatos, ocorreu no ano 4 a.C., e foi dissolvida com sangue, morrendo milhares de manifestantes. Não obstante, o movimento tornou-se mais forte. A revolta popular progredia. Sete semanas depois, em jerusalém, ocorríam duas novas insurreições sangrentas contra Roma. Além disso, a população rural levantou-se. No velho centro revolucionário da Galiléia, foram muitas as lutas com os romanos, e na Transjordânia houve levantes. Um antigo pastor reuniu voluntários e iniciou uma guerrilha contra os romanos. Tal era a situação no ano 4 a.C. Os romanos não tiveram facilidades em dominar as massas revoltadas. Sua vitória foi coroada com a crucificação de dois mil prisioneiros. Durante alguns anos, o país permaneceu em calma. Pouco depois da introdução, no ano 6 da era cristã, da administração romana direta, que iniciou suas atividades com um censo popular com objetivos fiscais, houve um novo movimento revolucionário. Iniciou-se, então, a separação entre as classes inferiores e médias. Embora dez anos antes os fariseus tivessem participado da revolta, desta vez surgiu uma dissensão nova, entre os grupos 30 revolucionários urbanos e rurais, de um lado, e os fariseus, do outro. As classes inferiores, urbanas e rurais, uniram-se num novo partido, ou seja, os fanáticos, enquanto a classe média, sob a liderança dos fariseus, estava preparada para uma reconciliação com os romanos. Quanto mais opressivo se tornava o jugo dos romanos e da aristocracia judaica, tanto mais crescia o desespêro das massas, e os fanáticos ganhavam novos adeptos. Até a explosão da grande revolta contra os romanos, houve choques constantes entre o povo e a administração. As ocasiões para os surtos revolucionários foram proporcionadas pelas freqüentes tentativas romanas de colocar uma estátua de César, ou a águia romana, no Templo de Jerusalém. A indignação contra tais medidas, racionalizada por motivos religiosos, vinha na realidade do ódio que as massas sentiam pelo imperador, o líder e chefe da classe dominante que as oprimia. O caráter peculiar dêsse ódio torna-se claro ao nos lembrarmos de que naquela época a reverência pelo imperador romano se generalizava por todo o império, e seu culto começava a ser a religião dominante. Quanto mais desesperada era a luta contra Roma, no nível político, tanto mais a classe média recuava e se dispunha a um acordo com os romanos, e mais radicais as classes pobres se tornavam. Ao mesmo tempo, as tendências revolucionárias perdiam seu caráter político e se transferiam para o nível das fantasias religiosas e das idéias messiânicas. Assim, um pseudomessias, Teudas, prometeu levar o povo até o Jordão e repetir o milagre de Moisés. Os judeus passariam pelo rio sem molhar os pés, mas seus perseguidores romanos se afogariam. Os dominadores viam nessas fantasias a manifestação de um perigoso fermento revolucionário e mataram os adeptos do messias, degolando também Teudas. Mas surgiram outros. Josephus nos conta um levante ocorrido sob o governador provincial Félix (anos 52 a 60 da era cristã). Seus chefes: ... iludiram e enganaram o povo sob alegação de inspiração divina, mas pretendiam inovações e modificações no govêrno. Fizeram a multidão agir como louca, e a levaram ao deserto, afirmando que Deus lhe mostraria ali os sinais da liberdade. Mas Félix viu nisso o início de uma revolta e mandou cavalarianos e infantes, armados, que eliminaram grande número dos manifestantes. Houve, porém, um falso profeta egipeio que prejudicou mais aos judeus que os outros: era um impostor, o 31 fingia-se também de profeta, tendo reunido trinta mil homens, que enganou: levou-os ao deserto até o monte chamado Monte das Oliveiras e pretendeu tomar Jerusalém pela fôrça, partindo daquele ponto.16 Os militares romanos não deram tempo às hordas revolucionárias para se penitenciarem. A maioria dos seus componentes foi morta ou aprisionada, os demais destruíramse. Muitos procuraram ocultar-se em seus lares. Não obstante, os levantes continuaram. Ora, quando tais amotinados se aquietaram, ocorreu, como num corpo enfêrmo, que outras partes ficaram sujeitas à inflamação, pois um grupo de impostores e ladrões [ou seja, de messianistas e revolucionários de maior consciência politica] se reuniu e convenceu os judeus a se revoltarem, exortando-os a afirmar sua liberdade matando os que continuassem a obedecer ao govêrno romano e dizendo que os partidários da escravidão deviam ser obrigados a abrir mão de sua inclinação. Dividiram-se em vários grupos e ficaram à espera em várias partes do país, e saqueavam as casas dos homens importantes, mataram a êstes e atearam fogo às aldeias. E isso até que tôda a Judéia sentisse os efeitos de sua loucura. A chama crescia dia a dia, até que se transformou numa 16 Josephus, The Wars of the Jews, 11, 13, 4, 5. guerra direta.17 A crescente opressão das classes inferiores das nações provocou um agravamento do conflito entre elas e as classes médias, menos oprimidas – nesse processo, as massas se radicalizaram ainda mais. A ala esquerda, dos fanáticos constituiu uma facção secreta, a dos “sicários”’, que começou, com ataques e conspirações, a exercer uma pressão terrorista sôbre os cidadãos abastados. Perseguiam sem piedade os moderados das classes superiores e médias de Jerusalém, e ao mesmo tempo invadiam, saqueavam e reduziam a cinzas as aldeias cujos habitantes se recusavam a participar dos grupos revolucionários. Os profetas e os pseudomessias não cessaram, também, sua agitação entre o povo. 32 Finalmente, no ano 66 da era cristã, irrompeu a grande revolta popular contra Roma. Apoiaram-na, a princípio, as classes inferiores e médias, que, em combates violentos, superaram as fôrças romanas. Inicialmente, a guerra foi liderada pelos proprietários e pelos homens cultos, mas sua falta de energia e sua tendência a celebrar acôrdos fizeram com que o primeiro ano de luta terminasse num fracasso, apesar das vitórias, e as massas atribuíram o infeliz resultado à direção fraca e indiferente. Seus líderes procuraram, por todos os meios, tomar o poder e colocar-se no lugar dos líderes que até então orientavam o movimento. Como êstes não deixaram suas posições voluntàriamente, ocorreu no inverno de 67-68 “uma sangrenta guerra civil e cenas abomináveis, de que sómente a Revolução Francesa se pode orgulhar”.18 Quanto mais desesperada se tornava a sua situação tanto mais as classes médias procuravam aproximar-se dos romanos. Em conseqüência, a guerra civil tornou-se mais acerba, juntamente Com a luta contra o inimigo externo.19 Enquanto o rabino Jochanan ben Sakkai, um dos principais fariseus, procurava o inimigo e fazia paz com êle, os pequenos comerciantes, artesãos e camponeses defendiam a cidade contra os Ibid., 11, 13, 6. É importante notar que Josephus, que pertencia à elite aristocrática, descreve os movimentos revolucionários com os preconceitos de que naturalmente se ressentia. 18 E. Schürer, Geschichte des jüdischen Volkes im Zeitalter Jesu Christi. 3ª Edição, 1901, I. 617. 19 Cf. T. Mommsen, History of Rome, Vol. V. 17 romanos, com grande heroísmo, durante cinco meses. Nada tinham a perder, mas também nada mais a ganhar, pois a luta contra o poderio romano era sem esperanças e tinha de terminar no colapso. Muitos dos ricos puderam salvar-se passando-se aos romanos, e embora Tito se sentisse extremamente irritado contra os judeus, aceitou os que fugiam para o seu lado. Ao mesmo tempo, as massas combativas de Jerusalém atacaram o palácio real, para onde muitos dos ricos haviam levado seus tesouros, apossaram-se do dinheiro e mataram os proprietários. A guerra romana e a guerra civil terminaram com a vitória dos romanos, acompanhada da vitória da classe dominante judaica e do colapso dos cem mil camponeses e das classes médias urbanas.20 33 Juntamente com as lutas políticas e sociais, e as tentativas messiânicas e revolucionárias, houve também os escritos populares surgidos na época e inspirados pelas mesmas tendências: a literatura apocalíptica. Apesar de sua variedade, a visão ‘do futuro nessa literatura apocalíptica é relativamente uniforme: há, primeiro, as “Lamentações do Messias” (Me. 13:7,8), que se referem a acontecimentos que não perturbarão aos eleitos – fomes, terremotos, epidemias e guerras. Vem em seguida, a “grande aflição”, profetizada em Daniel, 12:1, que não encontra paralelo senão na criação do mundo, uma época aterrorizante de sofrimentos e desgraça. Em tôda literatura apocalíptica em geral há a crença de que os eleitos serão também protegidos dessa aflição. O horror e a desolação profetizadas em Daniel, 9:27, 11:31 e 12:11 representam o indício do fim. O quadro do fim traz as velhas características proféticas. O auge será o aparecimento do Filho do Homem, em nuvens de grande esplendor e glória.21 Tal como na luta contra os romanos as diferentes classes agiram de formas diferentes, também a literatura apocalíptica surgiu em classes diversas. Apesar de certa uniformidade, isso se percebe claramente pela diferença de ênfase em elementos 20 21 Josephus, The Wars of the Jews, Vol. VI. Cf. Johannes Weiss, Das Urchristentum. Gotings, 1917. individuais das várias obras apocalípticas. Apesar da impossibilidade de uma análise detalhada, aqui, podemos citar como expressão das mesmas tendências revolucionárias, que inspiraram a ala esquerda dos defensores de Jerusalém, a exortação com que conclui o Livro de Enoque: Maldição aos que constroem seus lares com areia, pois serão derrubados de suas bases e cairão pela espada. Mas os que adquirem ouro e prata perecerão súbitamente no julgamento. Maldição aos ricos, que confiaram nas suas riquezas e delas serão separados, porque não se lembraram do Supremo nos dias do Juizo ... Maldição aos que desejaram mal aos vizinhos, pois serão recompensados de acôrdo com suas obras... Maldição aos que prestam falso testemunho ... Não temam os que sofrem, pois terão cura: uma luz brilhante os iluminará e ouvirão a voz dos céus. (Enoque, 94-96.) 34 Além dêsses movimentos religioso-messiânicos, sócio-políticos e literários, característicos da época do aparecimento do Cristianismo, outro movimento deve ser mencionado, no qual os objetivos políticos não tiveram qualquer influência e que levou diretamente ao Cristianismo, ou seja, o movimento de João Batísta, de cunho popular. A classe superior, apesar de sua persuasão, nada desejava com êle. Seus ouvintes mais atentos vinham das fileiras das massas desprezadas.22 Pregava que o reino dos céus e o dia do Juízo estavam próximos, e com êles chegariam a liberdade para os bons e a destruição para os maus. “Arrependei-vos, pois o reino dos céus está próximo”, era a essência de sua pregação. Para compreender o sentido psicológico da fé cristã primitiva em Cristo – objetivo primordial dêste estudo – era necessàrio visualizarmos o tipo de pessoas que seguiam o Cristianismo primitivo. Eram as massas dos incultos, dos pobres, do proletariado de Jerusalém, e os camponeses, que, devido à crescente opressão política e econômica e devido à restrição e ao desprêzo social, sentiam cada vez mais a necessidade de Cf. M. Dibelius. Die urchristliche Ueberlieferung von Johannes dem Taufer. Stuttgart, 1911. 22 modificar as condições existentes. Ansiavam por uma época feliz, e também abriram sentimentos de ódio e vingança contra seus governantes e contra os romanos. Vimos como eram variadas as formas dessas tendências, indo da luta política contra Roma à luta de classes em Jerusalém, das tentativas idealistas de revolução de Teudas até o movimento de João Batista e da literatura apocalíptica. Da atividade política aos sonhos messiânicos, havia todos os tipos de fenômenos diferente. No entanto, atrás de tôdas essas formas diferentes estava a mesma fôrça motora: o ódio e a esperança das massas sofredoras, provocados pela sua desgraça e pela inexorabilidade da situação sócio-econômica em que viviam. Tivesse o resultado escatológico maior ou menor conteúdo social, político ou religioso, tornava-se mais forte e quanto mais fundo penetramos nas massas analfabetas, no chamado Am Ha-aretz, o círculo dos que experimentam o presente como uma opressão “por isso têm de olhar para o futuro para a consecução de todos os seus desejos”.23 35 À medida que a esperança de melhorias reais se tornava mais desalentada, mais necessário era dar-lhe expressão em fantasias. A luta final desesperada dos fanáticos contra os romanos e o movimento de João Batista foram dois extremos, e tinham raízes no mesmo solo: o desespêro das classes inferiores. Essa camada se caracterizava psicológicamente pela esperança de uma modificação em sua situação (psicanaliticamente interpretada, esperança de um pai bom que a libertasse) e, ao mesmo tempo, um ódio feroz aos opressores, que encontrava expressão nos sentimentos dirigidos contra o imperador romano, os fariseus, os ricos em geral, e nas fantasias da punição no dia do Juízo. Vemos, no caso, uma atitude ambivalente: o povo amava, em fantasia, um pai bondoso, que o ajudaria e libertaria, e odiava o pai malvado, que o oprimia, atormentava e desprezava. Dessa 23 camada Ibid., pág. 130 das massas pobres, ignorantes e revolucionárias, o Cristianismo surgiu como um movimento messiânico-revolucionário históricamente significativo. Como João Batista, a doutrina cristã primitiva se dirigia não aos cultos e aos ricos, mas aos pobres, aos oprimidos e aos sofredores.24 Celso, adversário dos cristãos, traça um bom quadro da composição social da comunidade cristã, tal como a viu quase dois séculos mais tarde. Diz êle: Nas casas particulares vemos também os tecelões, ferreiros, lavadeiras e os serviçais mais ignorantes e bucólicos, que não ousam dizer nada na presença de seus senhores mais velhos e mais inteligentes, mas que sempre, quando ficam sózinhos com as crianças e com algumas mulheres tólas, fazem afirmações surpreendentes, como por exemplo que elas não devem prestar atenção aos seus pais e mestres, embora devam obedecer-lhes. Dizem que pais e mestres só falam tolices e não têm compreensão, que na realidade nada sabem nem podem fazer de bom, mas apenas falar. Sómente elas, essas pessoas, conhecem a forma certa 36 de viver, e, se as crianças acreditarem nelas, tam felizes e seus lares também. E se, quando estão falando, véem um dos mestres, ou uma pessoa inteligente, ou o próprio pai, aproximar-se, afastam-se cautelosamente em tôdas as direções. Os mais extremados estimulam as crianças a se rebelarem. Murmuram-lhes que junto de seus mestres não se sentem capazes de explicar nada, pois não desejam nenhum contato com professóres tolos e teimosos, totalmente corrompidos, maldosos, e que punem as crianças. Mas se estas quiserem, podem deixar seus pais e mestres e acompanhar as mulheres e crianças, que são seus companheiros, para a oficina do tecelão ou do ferreiro ou para a sala da lavadeira, e ali aprender a perfeição. E, dizendo isso, convencem as crianças.25 O quadro que Celso nos mostra, aqui, dos seguidores do Sôbre a estrutura do Cristianismo primitivo, cf. R. Knopf, Das nachapostolische Zeitalter. Tubinga, 1905; Adolph Harnack, Die Mission und Ausbreitung des Christentums. 4ª Edición, 1923, vol. I: “Kirche und Staat bis zur Gründung der Staatskirche”, Kultur der Gegenwart, 2ª Edición; “Das Urchristentum und die soziale Frage”. Preussisch Jahrebücher. 1908, vol. 131; K.Kautsky, Foundations of Christianity. Russel, 1953. 25 Origem, Contra Celsum (Londres, Cambridge University Press, 1953). 24 Cristianismo, é característico não só de sua situação social, mas também psíquica, de sua luta e ódio contra a autoridade paterna. Qual era o conteúdo da mensagem cristã primitiva?26 No primeiro plano temos a esperança escatológica. Jesus pregou a proximidade do reino de Deus. Ensinou o povo a ver em suas atividades o início dêsse reino. Não obstante, Êsse reino só se concluirá quando êle voltar em glória nas nuvens do céu, para o julgamento. Jesus parece ter anunciado essa volta rápida pouco antes de sua morte e ter confortado todos os discipulos pela sua partida com a afirmação de que entraria imediatamente numa posição supramundana em relação a Deus. As instruções de Jesus a seus discipulos são, igualmente, dominadas pelo pensamento de que o fim – cujo dia e hora, porém, ninguém sabe – está iminente. Em conseqüência, também a exortação à renúncia de todos os bens mundanos toma um lugar destacado.27 37 As condições para a entrada no reino são, em primeiro lugar, uma transformação completa do estado de espírito no qual o homem renuncia aos prazeres do mundo, nega a si mesmo e se dispõe a abrir mão de tudo o que tem para salvar sua alma. Daí a crença na graça de Deus, concedida aos humildes e pobres, e portanto a confiança em Jesus como o messias escolhido e chamado por Deus para realizar seu reino na terra. O anúncio, portanto, é dirigido aos pobres, aos sofredores, aos que têm fome e sêde de justiça... aos que desejam ser curados e redimidos, e os encontra prontos para penetrar... no reino de Deus, enquanto traz, para os satisfeitos, os ricos e os orgulhosos de sua justiça o juizo da impenitência e a danação do inferno.28 A proclamação de que o reino do céu está ao alcance de todos (Mat., 10:7) foi o germe das mais antigas pregações. Foi o que O problema do Jesus histórico não nos deve preocupar, sob êsse aspecto. O efeito social da primitiva mensagem cristã só deve ser compreendido à base das classes a que se dirigia e pelas quais era aceito; e sómente o entendimento de sua situação psíquica tem importância para nós. 27 Adolph Harnack, History of Dogma (N. York, 1961), págs. 66-67, 1. 28 Ibid., Págs. 62-63. 26 despertou a esperança entusiástica nas massas sofredoras e oprimidas. O povo sentia que tudo chegava ao fim. Acreditava que haveria tempo de difundir o Cristianismo entre todos os pagãos antes que chegasse a nova era. Se as esperanças dos outros grupos das mesmas massas oprimidas era dirigida no sentido de provocar a revolução política e social pela sua própria energia e esfôrço, os olhos da comunidade cristã primitiva estavam fixados apenas no grande acontecimento, o início miraculoso de uma nova era. O conteúdo da primitiva mensagem cristã não era um programa econômico, nem de reformas sociais, mas a promessa bendita de um futuro não distante no qual os pobres seriam ricos, os famintos satisfeitos, e os oprimidos teriam a autoridade.29 O estado de espírito dêsses primeiros cristãos entusiastas se vê claramente em Lucas, 6:20 e seguintes: Bem-aventurados os pobres, pois dêles é o reino dos céus. Bem-aventurados os famintos, porque serão satisfeitos. Bem-aventurados os que choram, porque rirão. Bem-aventurados os que são odiados, excluidos, vilipendiados e insultados por amor ao Filho do Homem! 38 Regozijaivos nesse dia, porque vossa recompensa será grande no céu; pois assim seus pais fizeram aos profetas. Maldição, porém, aos ricos, porque já receberam seu consôlo. Maldição aos que estão satisfeitos, porque terão fome. Maldição aos que riem agora, porque se lamentarão e chorarão. Tais afirmações exprimem não apenas a ansiedade e a esperança dos pobres e oprimidos em relação a um mundo nôvo e melhor, mas também seu ódio total às autoridades – os ricos, os cultos, os poderosos. O mesmo ânimo se encontra na história de um homem pobre, Lázaro, “que desejava ser alimentado com as migalhas caídas da mesa do homem rico” (Lucas, 16:21), e nas famosas palavras de Jesus: “É difícil para os ricos entrar no reino de Deus! Será mais fácil ao 29 Cf. Weiss, Das Urchristentum, pág. 55 camelo passar pelo fundo de uma agulha do que o rico entrar no reino de Deus.” (Lucas, 18:24.) O ódio aos fariseus e aos coletores de impostos percorre, como uma linha vermelha, os evangelhos, e em consequencia a opinião sôbre os fariseus, em tôda a cristandade, foi determinada por êsse ódio. Ouvimos êsse ódio aos ricos, novamente, na Epístola de Tiago, em meados do século II: Vinde agora, ricos, e chorai e lamentai as misérias que desabam sôbre vós. Vossas riquezas apodreceram e vossas vestes estão comidas pelas traças. Vosso ouro e prata enferrujaram, e sua ferrugem será uma prova contra vós, e comerá vossa carne como o fogo. Acumulastes tesouros para os últimos dias. Vêde, as ondas de trabalhadores que vos cultivaram os campos, que iludistes pela fraude, gritam, e os gritos dos camponeses atingiram os ouvidos do Senhor das Hostes. Vivestes no luxo e no prazer, engordastes vossos corações no dia da mortandade. Condenastes, matastes o homem justo; êle não vos resiste. Sêde paciente, portanto, irmão, até a chegada do Senhor... vêde, o Juiz está de pé às portas. (Tiago, 5:1 e seguintes.) Falando dêsse ódio, Kautsky diz com acêrto: “Raramente o ódio de classe do proletariado moderno atingiu tais formas como as do proletariado cristão.”30 É o ódio do Am Ha-aretz 39 pelos fariseus, dos fanáticos e dos sicários pelos ricos e pela classe média, dos perseguidores e sofredores habitantes da cidade e do campo pelos que ocupavam os altos postos e dispunham da autoridade, e que se manifestou nas rebeliões políticas pré-cristãs e nas fantasias messiânicas. Intimamente ligada a êsse ódio às autoridades espirituais e sociais está uma característica essencial da estrutura social e psíquica do Cristianismo primitivo, ou seja, seu caráter democrático e fraternal. Se a sociedade judaica da época se caracteriza por um espírito de casta extremado, que condicionava tôdas as relações sociais, a comunidade cristã primitiva era uma irmandade livre dos pobres, despreocupada 30 K. Kautsky, Der Ursprung des Christentums, pág. 345. de instituições e fórmulas. Enfrentamos uma tarefa impossivel se quisermos delinear um quadro da organização nos seus primeiros cem anos ... A comunidade é unificada apenas pelo laço comum da fé, esperança e amor. Não é o posto quem faz a pessoa, mas sempre a pessoa quem prestigia o posto... Como os primeiros cristãos se sentiam peregrinos e estranhos na terra, que necessidade havia de instituições permanentes?31 Nessa irmandade cristã primitiva, a assistência econômica e o apoio mútuos, o “comunismo pelo amor”, como diz Harnack, tinham um papel especial. Vemos, portanto, que os cristãos primitivos eram homens e mulheres pobres, incultos, que constituíam as massas oprimidas do povo judeu e, mais tarde, de outros povos. Ao invés de aumentar a impossibilidade de transformar sua situação desesperada através de meios realistas, evoluiu entre êles a esperança de que a transformação ocorreria dentro de pouco tempo, num momento, e que encontrariam então a felicidade que lhes faltava, mas que os ricos e os pobres seriam punidos de acordo com a justiça e os desejos das massas cristãs. Os primeiros cristãos eram uma irmandade de entusiastas, oprimidos social e econômicamente, unidos pela esperança e pelo ódio. 40 O que distinguia os cristãos primitivos dos camponeses e proletários que lutavam contra Roma não era a sua atitude psíquica básica. Os primeiros cristãos não eram mais “humildes” e resignados à vontade de Deus, nem mais convencidos da necessidade e inexorabilidade de sua sorte, nem mais inspirados pelo desejo de serem amados pelos seus governantes, do que os comba'tentes, militares e políticos. Os dois grupos odiavam as classes dominantes da mesma forma, esperando com igual vigor ver-lhe a queda e o início de seu próprio domínio, e de um futuro satisfatório. A diferença entre êles não estava também na premissa nem no objetivo e 31 H.. von Schubert, Grundzüge der Kirchaengeschichte. (Tübingen, 1904). direção de seus desejos, mas sómente na esfera em que procuraram atender a êstes. Enquanto os fanáticos e os sicários procuravam realizar suas aspirações na espera da realidade política, a total falta de esperança de realização levou os cristãos primitivos a formular os mesmos desejos na fantasia. A expressão disso foi a fé cristã primitiva, especialmente a ideia de Jesus e suas relações com o Deus Pai. Quais eram as idéias dêsses primeiros cristãos? O conteúdo da fé dos discípulos e a proclamação comum que os unia podem ser resumidos nas proposições seguintes. Jesus de Nazaré é o messias prometido pelos profetas. Jesus, após a sua morte, é elevado pela Ressurreição Divina à mão direita de Deus, e voltará dentro em breve para estabelecer seu reino visível sôbre a terra. Aquêle que crê em Jesus, e que tenha sido recebido na comunidade dos discípulos de Jesus, que em virtude da transformação sincera do espírito, volta-se para Deus como Pai e vive de acôrdo com os mandamentos de Jesus, é um santo de Deus, e como tal pode ter certeza do perdão, da graça de Deus e de partilhar da glória futura, ou seja, da redenção.32 “Deus o fêz tanto Senhor como Cristo” (Atos, 2:36). Essa é a mais velha doutrina de Cristo que temos, sendo portanto de grande interêsse, especialmente por ter sido posteriormente substituída por outras doutrinas mais amplas. É chamada de teoria “da adoção”, porque nela está implícito um ato de adoção. 41 A adoção é usada, aqui, em contraste com a filiação natural, proveniente do nascimento. Assim, o pensamento predominante é o de que Jesus não era o messias desde o início: em outras palavras, êle não foi desde o início o Filho de Deus, mas só veio a sê-lo por um ato definido e preciso da vontade de Deus. Isso se expressa particularmente no fato de que a afirmação contida em Salmos, 2:7: “Tu és meu filho, hoje eu te gerei”, é interpretada como relativa ao momento de 32 Adolph Harnack, History of Dogma, 1, 78 exaltação de Jesus (Atos, 13:33). Segundo um velho conceito semita, o rei é filho de Deus, seja pela descendência, seja pela adoção, como, no caso, no dia em que ascende ao trono. Está, portanto, dentro do espírito oriental dizer que Jesus, ao ser elevado à mão direita de Deus, tornou-se o Filho de Deus. Tal idéia encontra eco até mesmo em São Paulo, embora para êle o conceito de “Filho de Deus” já tenha adquirido outro sentido. Em Romanos, 1:4 diz-se do filho de Deus que êle fôra “designado Filho de Deus em potencial ... pela sua ressurreição de entre os mortos”. Temos aqui duas formas diferentes do conceito, em choque: o filho de Deus era Filho desde o início (idéia de Paulo); e Jesus, que depois da ressurreição foi elevado a Filho de Deus, ou seja, ao monarca do mundo (conceito da comunidade primitiva). A combinação difícil das duas idéias mostra claramente que os dois diferentes tipos de raciocínio se encontraram. O mais antigo, proveniente da comunidade cristã primitiva, está coerente com o fato de que a comunidade primitiva caracteriza Jesus, antes da exaltação, como um homem: “um homem comprovado por Deus através de obras e milagres e indícios poderosos, com que Deus agiu, por intermédio dêle, entre vós” (Atos, 2:2). Devemos observar que Jesus não havia realizado o milagre, mas sim Deus através dêle. Jesus foi a voz de Deus. Essa idéia predomina até certo ponto na tradição do Evangelho, onde, por exemplo, após a cura do coxo, o povo louva Deus (Marcos, 2:12). Em particular, Jesus é caracterizado como o profeta que Moisés prometeu: “O Senhor Deus criará para vós um profeta entre vossos irmãos” (Atos, 3:22, 7:37; Deut., 18:15).33 42 Vemos, assim, que o conceito de Jesus para a comunidade primitiva era o de um homem escolhido por Deus e elevado por Êle como o “messias” e, mais tarde, como “Filho de Deus”. Essa Cristologia da comunidade primitiva se assemelha, sob muitos aspectos, ao conceito do messias escolhido por Deus 33 Weiss, op. cit., pág. 85. para criar o reinado da justiça e do amor, conceito que fôra familiar entre as massas judaicas há muito tempo. Sómente em duas idéias da nova fé vamos encontrar elementos significativos de algo especificamente original: no fato de sua exaltação como Filho de Deus, sentando-se à direita do TodoPoderoso, e no fato de que êsse messias já não é o herói poderoso, vitorioso, mas sim de uma significação e uma dignidade que estão justamente no seu sofrimento, na sua morte na cruz. Na verdade, a idéia de um messias agonizante ou mesmo de um deus agonizante não era totalmente nova na consciência popular. Isaías, 53, fala dêsse sofredor servo de Deus. O Quarto Livro de Esdras também menciona um messias agonizante, embora, decerto, sob forma totalmente diferente, pois morre depois de quatrocentos anos e depois de sua vitória.34 A idéia de um deus agonizante pode ter-se divulgado entre o povo proveniente de uma fonte completamente diversa, ou seja, os cultos e mitos do Oriente Próximo (Osíris, Átis, Adônis). O destino do homem encontra seu protótipo na paixão de um deus que sofre na terra, morre e se eleva novamente. Êsse deus permitirá partilharem da abençoada imortalidade a todos os que se unirem a êle nos mistérios ou mesmo se identificarem com êle.35 Talvez houvesse também tradições esotéricas judaicas de um deus ou de um messias agonizante, mas êsses precursores não explicam a influência enorme que o ensinamento sôbre o salvador crucificado e sofredor teve imediatamente sôbre as massas judaicas, e dentro em pouco também sôbre as massas pagãs. 43 Na comunidade primitiva'de entusiastas, Jesus era, portanto, um homem exaltado, após a sua morte, em Deus, que dentro em pouco voltaria para executar o julgamento, para tornar felizes os que sofriam e punir os dominadores. Cf. Salmos, 22 e Oséias, 6. F. Cumont, “Die orientalisclien Religionem in ihrem Einfluss auf die europãischen Religionem des Altertums”, Kultur der Gegen,wart (1923), Vol. 1, parte III, pág. 1; cf. também Weiss, op. cit., pág. 70. 34 35 Temos, já agora, um conhecimento da superfície psíquica dos seguidores do Cristianismo primitivo suficiente para tentarmos nossa interpretação dessas primeiras afirmações cristológicas. Os inebriados por essa idéia eram pessoas atormentadas e desesperadas, cheias de ódio pelos seus opressores judaicos e pagãos, sem qualquer perspectiva de melhor futuro. Uma mensagem, que lhes permitisse projetar na fantasia tudo o que a realidade lhes negava teve um fascínio extremo. Se aos fanáticos nada mais restava que morrer na batalha sem esperança, os seguidores do Cristo podiam sonhar com seu objetivo sem que a realidade lhes mostrasse imediatamente a desesperança de seus desejos. Colocando a fantasia em lugar da realidade, a mensagem cristã satisfazia as aspirações de esperança e vingança, e, embora deixasse de aliviar a fome, proporcionava uma satisfação fantasiosa de bastante significação para os oprimidos.36 44 Devemos acrescentar aqui uma observação sóbre um problema que tem sido objeto de várias polémicas – até que ponto o Cristianismo pode ser compreendido como um movimento revolucionário de classe. Kautsky, em Vorläufer des neuen Sozialismus (Stuttgart, 1895), e posteriormente em Foundations of Christianity, expôs a opinião de que o Cristianismo é um movimento da classe proletária, que em essência, porém, sua significação está na sua atividade prática, ou seja, no trabalho caritativo e não em seus “fanatismos pios”. Kautsky ignora o fato de que um movimento pode ter uma origem de classe sem a existência de motivos sociais e econômicos na consciência de seus instigadores. Seu desprêzo pela significação histórica das idéias religiosas demonstra sua total falta de compreensão do sentido da satisfação fantasiosa dentro do processo social. Sua interpretação do material histórico é tão banal que se torna fácil a Troeltsch e Harnack refutar, aparentemente, o materialismo histórico. Ples, como Kautsky, não colocam no centro da indagação o problema da relação de classe que condicionou o Cristianismo mas sim o problema do papel desempenhado por essas relações de classe na consciência e ideologia dos primeiros cristãos. Embora Kautsky ignore o verdadeiro problema, as bases de classe do Cristianismo primitivo são, não obstante, tão claras que as tentativas tortuosas, especialmente de Troeltsch (em seu Social Teaching of the Christian Churches), de afastá-las revelam claramente as tendências políticas do autor. 36 A investigação psicanalítica da fé cristológica da comunidade cristã primitiva nos suscita agora as seguintes perguntas: Qual a significação que tinha para os primeiros cristãos a fantasia de um homem agonizante elevado a deus? Por que essa fantasia conquistou os corações de tantos milhares, em tão curto tempo? Quais as suas fontes inconscientes, e que necessidades emocionais satisfazia? Primeiro, a questão mais importante: um homem é elevado a deus; é adotado por Deus. Como Reik observa corretamente, temos aqui o velho mito da rebelião do filho, a manifestação de impulsos hostis para com o Deus Pai. Compreendemos agora qual a significação que êsse mito teve para os seguidores do Cristianismo primitivo. Essas pessoas odiavam intensamente as autoridades que lhes impunham um poder “paternal”. Os sacerdotes, eruditos, aristocratas, em suma, todos os governantes que as excluíam do gozo da vida e que em seu mundo emocional desempenhavam o papel do pai severo, proibidor, ameaçador, atormentador, tinham, portanto, de odiar também êsse Deus que era um aliado de seus opressores e permitia que sofressem e fôssem oprimidos. Desejavam governar por si, ser os senhores, mas conseguir isso na realidade, derrubando e destruindo pela fôrça os atuais senhores, lhes parecia impossível. Por isso, satisfizeram seus desejos na fantasia. Conscientemente, não ousavam matar o Deus paternal. O ódio consciente ficava reservado às autoridades, e não à figura do pai, do ser divino. Mas a hostilidade inconsciente ao pai divino manifestou-se na fantasia do Cristo. Colocaram um homem ao lado de Deus e fizeram dêle um co-regente, com Deus, o pai. Êsse homem que se tornou deus, e com quem, como humanos, se podiam identificar, representava seus desejos de Édipo; era um símbolo de sua hostilidade inconsciente para com Deus, o pai, pois se um homem se podia tornar Deus, êste último ficaria privado de sua privilegiada posição paternal de ser único e inatingível. A crença na elevação de um homem a deus foi, 45 portanto, a manifestação de um desejo inconsciente de eliminação do pai divino. Nisso reside a significação do fato de ter a comunidade primitiva cristã seguido a doutrina da adoção, a teoria da elevação do homem a Deus. Nessa doutrina, a hostilidade a Deus encontrou sua manifestação, enquanto a doutrina que mais tarde teve maior popularidade e tornou-se dominante – a de que Jesus sempre foi um deus – expressava a eliminação dêsses desejos hostis para com Deus (o que analisaremos, detalhadamente, mais adiante). Os fiéis se identificavam com êsse filho, podiam identificar-se com êle porque era um ser humano sofredor, tal como êles. Essa a base do poder de fascinação e do efeito sôbre as massas, revelada pela idéia de um homem sofredor elevado a deus: sómente com um ser sofredor elas se podiam identificar. Milhares de homens antes dêle haviam sido crucificados, torturados e humilhados. Se viram nesse homem crucificado um ser elevado a deus, é porque, no inconsciente, consideravam-se o deus crucificado. O apocalipse pré-cristão mencionava um Messias vitorioso e forte. Era o representante dos desejos e fantasia de uma classe oprimida, mas que sob muitos aspectos sofria menos, e ainda abrigava a esperança de vitória. A classe de onde saiu a comunidade cristã primitiva, e na qual o Cristianismo dos primeiros 100 ou 150 anos teve grande êxito, não se podia ídentíficar com êsses messias fortes e poderosos. Seu messias só podia ser sofredor, crucificado. A figura do salvador sofredor foi formada de tríplice modo: primeiro, no sentido que acabamos de mencionar; segundo, pelo fato de que parte dos desejos de eliminação do Deus Pai se transferiu para o filho. No mito do deus agonizante (Adônis, Átis, Osíris), era a morte do próprio deus que se imaginava. No mito cristão primitivo, o pai é morto pela figura do filho. Mas, finalmente, a fantasia do filho crucificado tinha uma terceira função: como os crentes entusiastas estavam imbuídos de ódio e desejo de eliminação – conscientemente, contra seus opressores, inconscientemente, contra o Deus Pai –, identificaram-se com o crucificado.Também êles sofreram a morte na cruz e expiavam dessa forma seus desejos de eliminação do pai, Pela sua morte, Jesus expiava a culpa de todos, e os primeiros 46 cristãos precisavam muito dessa expiação. Devido à sua situação geral, os desejos agressivos e eliminatórios em relação ao pai eram particularmente ativos. A essência da fantasia cristã primitiva, porém – em contraste com a fé posterior, católica, de que já nos ocuparemos –, parece estar não na expiação masoquista através da autoaniquilação, mas no deslocamento do pai pela identificação com Jesus sofredor. Para o entendimento pleno da essência psíquica da crença no Cristo, devemos considerar o fato de que naquela época o Império Romano se dedicava, cada vez mais, ao culto do imperador, que transcendia às fronteiras nacionais. Psicológicamente, êle se relacionava intimamente com o monoteísmo, a crença num Deus Pai justo e bom. Se os pagãos freqüentemente se referiam ao Cristianismo como ateísmo, num sentido psicológico mais profundo, tinham razão, pois essa fé no homem sofredor elevado a deus era uma fantasia de uma classe sofredora e oprimida que desejava derrubar as fôrças dominantes – Deus, imperador e pai – colocando-se no lugar delas. Se as principais acusações dos pagãos aos cristãos incluíam a de que cometiam crimes de Édipo, tal acusação era, na realidade, uma infâmia sem sentido. Mas o inconsciente dos acusadores havia compreendido bem o sentido inconsciente do mito de Cristo, seus desejos edípicos e sua hostilidade disfarçada a Deus Pai, ao imperador e à autoridade.37 Resumindo: para compreender a evolução posterior do dogma, é necessário compreender primeiro a característica peculiar da Cristologia primitiva, seu caráter de adoção. A crença de que As acusações de assassinato ritual e de licenciosidade sexual podem ser compreendidas da mesma forma. 37 um homem foi elevado a deus é uma expressão do impulso inconsciente de hostilidade para com o pai, presente nas massas. Proporcionava uma possibilidade de identificação e a esperança correspondente de que dentro em breve se iniciaria a nova era em que os sofredores e oprimidos seriam os dominadores e seriam, com isso, felizes. Como era possível, e na realidade ocorria, a identificação com Jesus, por ser êle um 47 homem sofredor, surgia a possibilidade de uma organização comunal sem autoridades, estatutos o burocracia, unida pela identificação comum com o Jesus sofredor elevado a deus. A crença primitiva cristã, da adoção, nasceu das massas; foi a manifestação de suas tendências revolucionárias, e oferecia uma satisfação aos seus anseios mais fortes. Isso explica por que num espaço de tempo extra ordinàriamente curto ela se tornou a religião, também, das massas pagãs oprimidas (embora, dentro em pouco, não apenas delas). 4 A TRANSFORMAÇÃO DO CRISTIANISMO E O DOGMA HOMOOUSIANO AS CRENÇAS primitivas relacionadas com Ãtis Jesus sofreram uma modificação. O homem elevado a Deus tornouse o Filho do Homem que sempre fôra Deus e existira antes de tôda a criação, uno com Deus e, ao mesmo tempo, dêle distinto. Houve nessa transformação de idéias sôbre Jesus também um sentido sociopsicológico, tal como o demonstra em relação à teoria da adoção? Teremos a resposta a essa pergunta estudando os povos que, duzentos ou trezentos anos mais tarde, criaram êsse dogma e nêle acreditaram. Dessa forma, podemos compreender sua situação real de vida e seus aspectos psíquicos. As questões mais importantes são as seguintes: quem eram os cristãos nos primeiros séculos depois de Cristo? Permaneceu o Cristianismo como a religião dos judeus da Palestina, sofredores e entusiastas, ou quem os substitui, ou se une a êles? A primeira grande modificação na composição dos crentes ocorreu quando a propaganda cristã voltou-se para os pagãos e, numa grande campanha vitoriosa, conquistou adeptos entre êles em quase todo o Império Romano. A significação na modificação de nacionalidade entre os seguidores do Cristianismo não deve ser subestimada, mas não desempenhou papel decisivo enquanto a composição social da comunidade cristã não se modificou essencialmente, enquanto continuou sendo constituída dos pobres, 48 dos oprimidos, dos incultos, que experimentavam o mesmo sofrimento, o mesmo ódio e a mesma esperança. O julgamento de Paulo sobre a comunidade coríntia é válido, sem dúvida, para a segunda e terceira gerações da maioria das comunidades cristãs, bem como para o período apostólico: “Considerai vossa vocação, irmãos, pois não muitos de vós fostes prudentes pelos padrões do mundo, nem muitos foram poderosos, nem muitos foram nobres de origem. Mas Deus escolheu os tolos do mundo para confundir os sábios, Deus escolheu os fracos no mundo para confundir os fortes, Deus escolheu os humildes e desprezados no mundo, e até mesmo as coisas que não são, para levar ao nada as coisas que são” (1 Cor., 1:26-28).38 Mas embora a grande maioria dos adeptos que Paulo conquistou para o Cristianismo no primeiro século fôsse ainda de gente das classes mais baixas – pequenos artesãos, escravos e emancipados – gradualmente outro elemento 38 Knopf, Das nachapostolische Zeitalter, pág. 64. social, os educados e os ricos, começou a se infiltrar nas comunidades. Paulo, na verdade, foi um dos primeiros líderes cristãos não-oriundos das classes inferiores. Era filho de um rico cidadão romano, fôra fariseu e portanto um dos intelectuais que desprezavam os cristãos e era por êles odiado. Não era um proletário ignorante e inimigo da ordem politica, nem alguém a quem a continuação dessa ordem fôsse indiferente, ou que esperasse a sua destruição. Estivera, desde o início, muito próximo dos podêres governamentais, tivera mais experiência das bênçãos da sagrada ordem para não ter uma idéia diferente do valor ético do Estado do que, digamos, um membro do partido dos fanáticos, ou mais ainda do que seus colegas fariseus, que viam no domínio romano no máximo um mal menor, comparado com os Herodes meio judeus.39 Com sua propaganda, Paulo dirigiu-se primordialmente às camadas sociais mais baixas, mas certamente também a algumas pessoas abastadas e cultas, especialmente os comerciantes, que pelas suas viagens tiveram grande significação na difusão do 49 Cristianismo.40 Mas até que o século II estivesse bem avançado, parte substancial das comunidades pertencia às classes inferiores. Isso se evidencia por certos trechos da literatura original que, como a Epístola de Tiago ou o Livro da Revelação, respiram um ódio flamejante aos poderosos e aos ricos. A forma despretensiosa dessas peças literárias e o teor geral da escatologia mostram que “os membros das comunhões [cristãs] do período pós-apostólico vinham principalmente, ainda, das fileiras dos pobres e servos”.41 39 40 Weiss, op. cit., pág. 132. Cf. Knopf, op. cit., pág. 70. Knopf, op. cit., págs. 69 e segs. As admoestações do São Hipólito ainda revelam o rigorismo ético e a hostilidade à vida da classe média, tal como se vê pelo capítulo 41 (citado por Harnack, Die Mission und Ausbreitung des Christentums, I, 300). “Faziam-se, igualmente, indagações sôbre as profissões e ocupações dos que se apresentavam para ser admitidos à fé. Se o homem fôsse um proxeneta ou alcoviteiro, teria de desistir de sua 41 Em meados do século II, o Cristianismo começou a conquistar adeptos entre as classes média e superior do Império Romano. 50 Foram, principalmente, as mulheres de posição destacada e os comerciantes que se encarregaram da propaganda. O Cristianismo difundiu-se em seus círculos e gradualmente penetrou na aristocracia dominante. Ao término do século 11, o Cristianismo já havia deixado de ser a religião dos artesãos pobres e dos escravos. E quando, com Constantino, tornou-se a religião do Estado, já se havia constituído na religião de grandes círculos da classe dominante do Império Romano.42 ocupação ou ser recusado; se fôsse, escultor ou pintor, teria de se comprometer a não fazer ídolos; se não desistisse, seria recusado. Se fôsse ator ou mimico, devia desistir ou ser recusado. Um professor de jovens devia desistir, mas se não tivesse outra ocupação lhe seria permitido continuar. O corredor, que disputa corridas freqüentes, também deveria desistir ou ser recusado. O gladiador ou treinador de gladiadores, ou O caçador (nas exibições com feras), ou qualquer pessoa ligada a essas exibições, ou o funcionário encarregado de espetáculos de gladiadores deviam desistir ou ser rejeitados. O soldado devia aprender a não matar homens, e a recusar-se a isso, se lhe fôsse ordenado; caso contrário, seria rejeitado. O comandante militar ou o magistrado civil que usa a púrpura deve renunciar ou ser recusado. Se um catecúmeno ou um crente procuram tornar-se soldados, devem ser rejeitados, porque desprezaram Deus. A prostituta ou o homem licencioso ou o que se tenha mutilado ou qualquer outro que faça coisas impossiveis de mencionar devem ser recusados. O feiticeiro, o adivinho, o profeta, o utilizador de versos mágicos, o saltimbanco, o charlatão, o fazedor de amuletos devem desistir ou ser rejeitados. A concubina que seja escrava e tenha criado seus filhos e sido fiel a seu senhor pode ser admitida, mas se tiver falhado nessas coisas terá de ser recusada. O homem que tiver uma concubina deve casar-se legalmente com ela, se não o fizer, deve ser recusado. Se tivermos omitido qualquer coisa, os fatos instruirão vosso espírito. Pois todos nós temos o Espírito de Deus.” 42 Um exemplo do caráter da comunidade em Roma nos é proporcionado por Knopf, na descrição do desenvolvimento da composição social da Igreja Cristã nos três primeiros séculos. Paulo, na Epístola aos Filipenses (4:22), pede que suas saudações sejam transmitidas “especialmente aos da Casa de César”. O fato de que as sentenças de morte impostas por Nero aos cristãos (mencionadas por Tácito, Anais, XV, 44), pelo esfolamento, mordidas de cães, crucificação, queimados vivos, só podiam ser usadas contra os humiliores e não contra os honestores (os mais destacados) mostra que os cristãos do período pertenciam principalmente às classes inferiores, embora algumas pessoas ricas e destacadas já se pudessem ter unido a êles. Um trecho citado por Knopf, de I Clament, 38:2, mostra como a composição da igreja pós-apostólica se havia modificado grandemente: “Os ricos devem ajudar aos pobres e os pobres devem agradecer a Deus por lhes ter dado alguém que possa ajudar as suas necessidades.” Não observamos, aqui, nenhum traço da animosidade contra os ricos, presente em outros documentos. É essa a forma pela qual se pode falar numa igreja onde os ricos e importantes não são raros, e onde também cumprem com seus deveres para com os pobres (Knopf, op. cit., pág. 65). O fato de que no ano 96 da era cristã, oito meses antes de sua morte, Donúciano fêz executar seu primo, o Cônsul Tito Flávio, e mandou para o exílio a primeira mulher do primo (punindo-o, provàvelmente, e à mulher, com certeza, por se terem passado ao Cristianismo), mostra que já no fim do século I os cristãos de Roma haviam penetrado na casa do imperador. O número crescente de cristãos ricos e destacados naturalmente criou tensões e diferenças nas igrejas. Uma dessas, surgidas desde logo, foi o problema da liberação dos escravos pelos senhores cristãos. Isso se evidencia pela exortação de Paulo aos escravos para que não busquem a emancipação. Mas como no curso de sua evolução o Cristianismo tornouse, cada vez mais, a fé dos grupos dominantes, essas tensões se intensificaram. “Os ricos não se confraternizam muito bem com os escravos, os emancipados e proletários, especialmente em público. Os pobres, por sua vez, vêem os ricos como tendo certa ligação com o diabo.” (Knopf, op. cit., pág. 81.) Kermas nos dá um bom quadro da nova composição social: “Os que têm muitos negócios também pecam muito, enriquecendo em seu comércio e não servindo ao Senhor em nada.” (sim., VII, 9.) Êstes são os que eram fiéis, mas se tOrnaram ricos e honrados entre os pagãos; por isso assumiram grandes ares e se tornaram superiores, abandonaram a verdade e separaram-se dos justos, vivendo junto com os pagãos porque isso lhes parecia melhor.” (Sim., IX, 1).) “Os ricos se aproximam com dificuldade dos servos de Deus, temendo que êstes lhes peçam alguma coisa.” (Sim., XX, 2.) Parece que sómente depois dos Antoninos os ricos e destacados, as pessoas de sangue e meios, ingressaram na Igreja Cristã, como o entende, justamente, Eusébio, num trecho conhecido, onde afirma que “durante o reinado de Cômodo as questões [dos cristãos] se tornaram mais fáceis, e pela graça divina a paz envolveu as igrejas através de todo o mundo ... e grande número até mesmo dos que moram em Roma, importantes pela sua riqueza e nascimento, progride na salvação de sua alma com todos os seus servos e parentes”. (Eusébio, História Eclesiástica, Livro V, 21, l.) Assim, na principal metrópole do mundo, o Cristianismo deixara de ser uma religião dos pobres e escravos. A partir de então, seu poder de atração se fêz sentir nos diferentes grupos de posses e educação. 51 Quando já se haviam passado 250 a 300 anos do nascimento do Cristianismo, os adeptos dessa fé eram totalmente diferentes dos primeiros cristãos. já não eram os judeus, com a crença – mais apaixonada do que em qualquer outro povo – de que uma época messiânica chegaria dentro em breve. Eram antes gregos, romanos, sírios, gálios – em suma, membros de tôdas as nações do Império Romano. Mais importante do que essa modificação na nacionalidade foi a diferença social. Na realidade, os escravos, artesãos e o “proletariado miserável”, ou seja, as massas das classes inferiores, continuavam a constituir o grosso da comunhão cristã, mas o Cristianismo se tornara, ao mesmo tempo, também a religião das classes destacadas e dominantes do Império Romano. Juntamente com essa modificação na estrutura social das igrejas cristãs devemos examinar a situação econômica e política geral do Império Romano, que sofrera uma transformação fundamental durante o mesmo período. As diferenças nacionais dentro do império mundial estavam desaparecendo. Até mesmo um estrangeiro podia tornar-se cidadão romano (Edito de Caracala, 212). 52 Ao mesmo tempo o culto do imperador funcionava como um laço unificador, igualando as diferenças nacionais. O desenvolvimento econômico caracteriza-se por um processo de feudalização gradual, mas progressiva. As novas relações, ao se consolidarem ao término do século III, já não conheciam o trabalho livre, mas tão-sómente o trabalho compulsório dentro dos grupos de situação que se haviam tornado hereditários, na população rural e nas colônias, bem como nos grupos de artesãos e corporações e também (como todos sabem) entre os patricios que se haviam tornado os principais responsáveis pelos impostos. Assim, concluiu-se o circulo. O desenvolvimento retorna ao ponto de onde partira. A ordem medieval se restabelecia.43 A expressão política dessa economia em declínio, que retornava a uma “economia natural” delimitada pela propriedade, era a monarquia absoluta, tal como a criaram Diocleciano e Constantino. Desenvolveu-se um sistema hierárquico com dependências infinitas, no alto do qual estava a pessoa do imperador divino, a quem as massas deviam reverenciar e amar. Num período relativamente curto, o Império Romano tornou-se um Estado feudal elassista, com uma ordem rigidamente estabelecida, na qual as fileiras mais baixas não podiam ter esperança de se elevar, devido à estagnação provocada pela recessão da capacidade produtiva, que tornava o desenvolvimento progressivo impossível. O sistema social foi estabilizado e regulamentado do alto, sendo imperativo tornar mais fácil ao indivíduo colocado nas camadas inferiores tolerar sua situação. Era essa, em essência, a situação social no Império Romano, a partir do início do século III. A transformação que o Cristianismo, especialmente o conceito de Cristo e sua relação com o Deus Pai, sofreu desde seus primeiros dias até essa época deve ser compreendida principalmente à luz dessa transformação social e da transformação psíquica por ela condicionada, bem como da nova função sociológica que o Cristianismo teve de assumir. O elemento vital na situação não será, simplesmente, compreendido, 53 se pensar que “a” religião cristã se difundia e ganhou para seus princípios a grande maioria da população do Império Romano. Na verdade, houve antes uma transformação da religião original em outra, mas a nova religião católica tinha boas razões para ocultar essa transformação. Vamos assinalar agora quais as transformações sofridas pelo Eduard Meyer. “Sklaverei in Alternum”, Kleine Schriften. 2ª edição, 1924, I, 81. 43 Cristianismo durante os três primeiros séculos, e como a nova religião se distinguia da antiga. O aspecto mais importante é que as esperanças escatológicas que haviam constituído o centro da fé e da esperança da comunidade primitiva desapareceram gradualmente. A essência da pregação missionária da comunhão primitiva era “o reino de Deus está ao nosso alcance”. As pessoas se preparavam para o reino, tinham até mesmo esperanças de conhecê-lo e duvidavam se no pouco tempo de que dispunham antes do seu advento seria possível proclamar a mensagem cristã à maioria do mundo pagão. A fé de Paulo ainda está imbuída de anseios escatológicos, mas com êle o momento previsto para o advento do reino do Céu começa já a ser adiado para o futuro. Para Paulo, a consumação final estava assegurada pela elevação do messias, e a última luta, ainda por ocorrer, perdia sua significação em vista do que já acontecera. Mas na evolução subseqüente, a crença no estabelecimento imediato daquele reino tendia, cada vez mais, a desaparecer: “O que percebemos é antes o desaparecimento gradual de um elemento original, o Entusiasta e Apocalíptico, ou seja, da consciência certa de uma posse imediata do Espírito Divino, e a esperança de uma conquista futura do presente.”44 54 Se a princípio, as duas concepções, a escatológica e a espiritual, estavam intimamente ligadas, com ênfase sôbre a 44 Harnack, History of Dogma, 1, 49. Harnack ressalta que, originalmente, duas opiniões correlatas predominaram, em relação à finalidade da vida de Cristo, ou da natureza e meios de salvação. A salvação era concebida como uma participação no reino glorioso do Cristo, cujo advento era iminente, e tudo o mais se considerava como uma preparação para essa realidade certa. Ao mesmo tempo, porém, a atenção se voltava para as condições e determinações de Deus, estabelecidas por Cristo, que deram ao homem a certeza do reino dos Céus. O perdão do pecado, a justiça, o conhecimento, a fé, etc. são considerados, no caso, e as próprias bençãos, na medida em que têm um resultado certo como vida no reino de Cristo, ou, mais precisamente, como vida eterna, podem ser tidas como a salvação (Ibid., págs. 129-130). primeira, com o tempo se foram lentamente separando. A esperança escatológica reduziu-se aos poucos, o núcleo da fé cristã afastou-se do segundo advento do Cristo e “passou, necessàriamente, a residir no primeiro advento, em virtude do qual a salvação já estava preparada para o homem, e o homem para a salvação”.45 O processo de propagação do entusiasmo cristão primitivo apagou-se ràpidamente. Na verdade, na história pústerior do Cristianismo (dos montanistas até os anabatistas) houve freqüentes tentativas de reviver êsse entusiasmo, com seus anseios escatológicos, tentativas oriundas dos grupos econômica, social e psiquicamente oprimidos, e que na sua luta pela liberdade se assemelhavam aos primeiros cristãos. Mas a Igreja não admitia mais essas tentativas revolucionárias, desde que, no curso do século II, conquistara a vitória decisiva. A partir de então, o pêso da mensagem não estava na idéia de que o reino de Cristo era iminente, na expectativa de que o dia do Juízo e a volta de Jesus ocorreriam sem demora. Os cristãos já não se voltavam para o futuro ou a história, mas sim para trás. O fato decisivo já ocorrera. O aparecimento de Jesus já representara o milagre. O mundo histórico, real, já não necessitava transformação: externamente, poderia permanecer como estava, na sociedade, no Direito, no Estado, na economia – pois a salvação se tornara interior, espiritual, não-histórica, uma questão individual assegurada pela fé em Jesus. A esperança de uma libertação real, histórica, foi substituída pela fé na libertação espiritual, já completa. O interêsse histórico foi substituído pelo interêsse cosmológico. Juntamente com êle, as exigências éticas desapareceram. O primeiro século de Cristianismo foi caracterizado pelos postulados éticos rigorosos, pela crença de que a comunidade cristã era principalmente uma irmandade para a vida santa- Êsse rigorismo ético prático é substituído pela graça dispensada pela Igreja. Intimamente ligada à renúncia da prática ética rigorosa estava a crescente aproximação dos cristãos com o Estado. “O 45 Ibid., pág. 130. 55 século II da existência da Igreja Cristã já mostra tôdas as linhas de evolução no sentido de uma reconciliação como o Estado e a sociedade.”46 Até mesmo as perseguições ocasionais dos cristãos pelo Estado não afetavam, nem por alto, tal evolução. Embora tivesse havido tentativas, aqui e ali, de manter a velha'ética rigorosa, contrária ao Estado e à vida da classe média. A grande maioria dos cristãos, especialmente os principais bispos, decidiu de modo diverso. Bastava, agora, ter Deus no coração e confessar sua fé quando a confissão pública perante as autoridades era inevitável. Bastava fugir ao culto dos ídolos, e os cristãos podiam dedicar-se a tôdas as atividades honrosas. Podiam entrar em contato externo com o culto dos ídolos e conduzir-se prudente e cautelosamente, de modo a não se contaminar nem arriscar-se a contaminar os outros. A Igreja adotava essa atitude desde o principio do século III. O Estado, com isso, ganhou numerosos cidadãos, obedientes, cumpridores dos deveres e conscienciosos, que, longe de causar-lhe dificuldades, apoiavam a ordem e a paz na sociedade ... Desde que abandonou sua atitude rigida e negativa, em relação ao mundo, a Igreja transformou-se numa fôrça de apoio e de reforma do Estado. Estabelecendo uma comparação com um fenômeno moderno, podemos dizer que os fanáticos, alienados do mundo, que esperavam o Estado celestial do futuro, tornaram-se revisionistas da ordem de vida existente.47 Essa transformação fundamental do Cristianismo, passando de religião dos oprimidos a religião dos governantes e das massas por êles oprimidas, da expectativa da iminência do dia do Juízo e de uma nova era para uma fé na redenção já consumada, de um postulado de vida pura e moral para a satisfação da consciência através dos meios eclesiásticos da graça, da hostilidade ao Estado para um acôrdo cordial com êle – tudo isso está intimamente ligado à grande transformação final que vamos descrever. O Cristianismo, que fôra a religião de uma comunidade de irmãos iguais, sem hierarquia ou burocracia, tornou-se Harnack, “Kirche uns Staat bis zur Gründung der Staatskirche”, Kultur der Gegenwart, vol. I, parte IV, pág. 1, 2ª edição, pág. 239. 47 Harnack, op. cit., pág. 143. 46 56 “a Igreja”, um reflexo da imagem da monarquia absoluta do Império Romano. No século I não existia nem mesmo uma autoridade externa claramente definida nas comunidades cristãs, que se formavam baseadas na independência e liberdade do cristão individual, em relação às questões de fé. O século II caracterizou-se pelo desenvolvimento gradual de uma união eclesiástica com os líderes autoritários e assim, também, pelo estabelecimento de uma doutrina sistemática da fé, a que o cristão individual se tinha de submeter. Originalmente, não era a Igreja, mas tão-sómente Deus, que podia perdoar os pecados. Mais tarde, Extra eclesiam nulla salus; sómente a Igreja oferecia proteção contra qualquer perda da graça. Como instituição, a Igreja tornou-se sagrada em virtude de seu dom, tornou-se uma entidade moral que educa para a salvação. Essa função se limita aos padres, especialmente ao episcopado, “que na sua unidade garante a legitimidade da Igreja e recebeu a jurisdição de perdoar os pecados”.48 Essa transformação da irmandade livre numa organização hierárquica indica claramente a modificação psíquica ocorrida.49 Tal como os primeiros cristãos estavam imbuídos de ódio e desprêzo pelos governantes, pelos ricos e educados, em suma, por tôda a autoridade, também os cristãos do século III estavam imbuídos de reverência, amor e fidelidade para com as novas autoridades religiosas. Tal como o Cristianismo se transformou, sob todos os aspectos, nos três primeiros séculos de sua existência, tornando-se uma nova religião, em comparação com a original, o mesmo ocorreu com o conceito de Jesus. No Cristianismo primitivo predominava a doutrina da adoção, ou seja, a crença de que o homem Jesus fôra elevado a um deus. Com a evolução da Igreja, o conceito da natureza de Jesus modificou-se: o homem não foi elevado a deus, mas o deus desceu para se fazer homem. Essa a base do novo conceito de 48 49 Cipriano Epístola 69, 11. Cf. Harnack, History of Dogma, 11, 67-94. Cristo, que culminou na doutrina de Atanásio, adotada pelo Concílio de Nicéia: Jesus, o Filho de Deus, gerado pelo Pai antes de todo o tempo, uno em sua natureza com o Pai. A interpretação ariana de que Jesus e o Deus 57 Pai eram realmente de natureza semelhante, mas não idêntica, é rejeitada em favor da tese lógicamente contraditória de que as duas naturezas, Deus e o Filho, são una, ou seja, da afirmação de uma dualidade que é simultâneamente uma unidade. Qual o sentido dessa transformação no conceito de Jesus e sua relação com Deus Pai, e que relação tem a transformação do dogma com a modificação ocorrida na totalidade da religião? O Cristianismo primitivo era hostil à autoridade e ao Estado. Satisfazia, na imaginação, os desejos revolucionários das classes inferiores, hostis ao pai. O Cristianismo que passou a ser a religião oficial do Império Romano, 300 anos depois, tinha uma função social totalmente diversa. Pretendia ser, ao mesmo tempo, uma religião dos líderes e dos liderados; dos governantes e dos governados. O Cristianismo fazia o que o culto do imperador e o Mitraísmo não conseguiram, ou seja, a integração das massas no sistema absolutista do Império Romano. A situação revolucionária que predominou até o século II desapareceu. A regressão econômica se fêz sentir, a Idade Média começou a nascer. A situação econômica levou a um sistema de laços e dependências sociais que atingiu o auge, politicamente, no absolutismo romano-bizantino. O nôvo Cristianismo passou a ser dirigido pela classe dominante. O nôvo dogma de Jesus, foi criado e formulado por êsse grupo dominante e seus representantes intelectuais, e não pelas massas. O elemento decisivo foi a transformação da idéia do homem que se torna deus para a idéia do deus que se torna homem. Como o nôvo conceito do Filho, que era na realidade uma segunda pessoa ao lado de Deus e ao mesmo tempo uno com êle, modificou a tensão entre Deus e seu Filho, harmonizando- a, e como evitou o conceito de que um homem podia tornar-se Deus, eliminou da fórmula o caráter revolucionário da doutrina antiga, ou seja, a hostilidade ao pai. O crime de Édipo, encerrado na fórmula antiga, a substituição do pai pelo filho, foi eliminado no Cristianismo nôvo. O Pai continuava intocado em sua posição. Quem estava a seu lado, agora, não era um homem, mas seu único Filho gerado, existente antes de tôda a criação. O próprio Jesus tornou-se Deus sem destronar Deus, porque sempre fôra um componente de Deus. Até agora, compreendemos apenas o ponto negativo: porque Jesus já não podia ser o homem elevado a deus, o homem colocado 58 à direita do pai. A necessidade de reconhecimento do pai, de subordinação passiva a êle, poderia ter sido satisfeita pelo grande competidor do Cristianismo, o culto do imperador. Por que o Cristianismo, e não o culto do imperador, tornou-se a religião oficial do Império Romano? Porque o Cristianismo tinha uma qualidade que o tornava melhor para a função social que devia desempenhar, ou seja, a fé no Filho de Deus crucificado. As massas sofredoras e oprimidas se identificavam com êle em proporções maiores. Mas a satisfação fantasiosa modificou-se. As massas já não se identificavam com o homem crucificado para destronar o pai, em imaginação, mas antes para gozar seu amor e graça. A idéia de que um homem se fêz deus era símbolo das tendências agressivas, ativas, hostis ao pai. A idéia de que Deus tornou-se homem foi transformada num símbolo de um laço terno e passivo com o pai. As massas experimentaram satisfação no fato de que seu representante, o Jesus crucificado, se elevara, tornando-se um deus preexistente. Já não se esperava uma transformação histórica iminente, mas acreditava-se, antes, que a libertação já ocorrera, de que o fato esperado já acontecera. O povo rejeitava a fantasia que representava a hostilidade ao pai e aceita, em seu lugar, outra, conciliadora, que colocava o filho ao lado do pai pela vontade livre) dêste. A transformação teológica é um reflexo de transformação sociológica, ou seja, da função social do Cristianismo. Longe de ser uma religião de rebeldes e revolucionários, essa crença das classes dominantes tinha como objetivo manter as massas na obediência. Mas como a velha representação revolucionária era conservada, a necessidade emocional das massas ficava satisfeita, de uma forma nova. A submissão passiva substituiu a hostilidade ativa ao pai. Não foi necessário afastar o pai, já que o filho era, na verdade, igual a Deus, desde o início, precisamente porque o próprio Deus o havia “criado”. A possibilidade real de identificação com um deus que sofrera, e que não obstante desde o princípio estivera no céu, e ao mesmo tempo de eliminar as tendências hostis ao pai, é a base da vitória do Cristianismo sôbre o culto do imperador. Além do mais, as transformações na atitude para com as figuras reais do pai – os sacerdotes, o imperador e especialmente os governantes – correspondiam a essa modificação na atitude para com o Deus Pai. 59 A situação psíquica das massas católicas do século IV era diversa, em relação aos cristãos primitivos, no que concerne ao ódio pelas autoridades, inclusive o deus pai. Êsse ódio torna-se inconsciente, ou apenas relativamente consciente – o povo abandonara a atitude revolucionária. A razão disso está na transformação da realidade social. Tôda esperança de derrubada dos governantes e de vitória da classe pobre era tão insustentável que, do ponto de vista psíquico, teria sido inútil e antieconômico persistir na atitude de ódio. Se era impossível derrubar o pai, então a melhor fuga psíquica era submeter-se a êle, amá-lo e receber dêle amor. Essa transformação foi o resultado inevitável da derrota final da classe oprimida. Mas era impossível o desaparecimento dos impulsos agressivos, que também não podiam ter diminuído, pois sua causa real, a opressão pelos governantes, não desaparecera nem diminuíra. Onde estavam, portanto? Foram desviados de seus objetivos anteriores – os pais, as autoridades – e dirigidos de nôvo para o individuo. A identificação com o Jesus sofredor e crucificado oferecia uma excelente oportunidade para isso. No dogma católico, a ênfase não se fazia mais, como na doutrina cristã primitiva, na derrubada do pai, mas na autoaniquilação do filho. A agressão original, dirigida contra o pai, passou a voltar-se contra o indivíduo, e com isso proporcionou um escoadouro inofensivo à estabilidade social. Mas isso só era possível em relação com outra transformação. Para os primeiros cristãos, as autoridades e os ricos eram as pessoas más a serem punidas pela sua maldade. Sem dúvida os cristãos primitivos não estavam isentos de sentimentos de culpa provocados pela sua hostilidade para com o pai, e a identifícação com Jesus sofredor também serviu para expiar sua agressão. Mas sem dúvida para êles a ênfase não estava nos sentimentos de culpa nem na reação masoquista e purgadora. Para as massas católicas, surgidas posteriormente, a situação se modificara. Para elas, os governantes já não eram culpados do mal e sofrimento – eram, antes, os próprios sofredores os culpados. Deveriam censurarse, se eram infelizes. Sómente pela expiação constante, sómente pelo sofrimento pessoal poderiam expiar a culpa e conquistar o amor e perdão de Deus e de seus representantes na terra. Pelo sofrimento e pela autocastração 60 era possível escapar ao opressivo sentimento de culpa e ter possibilidade de encontrar perdão e amor. 50 A Igreja Católica percebeu como acelerar e fortalecer, de forma magistral, êsse processo de transformação da acusação a Deus e aos governantes numa acusação do próprio eu. Intensificou o sentimento de culpa das massas a ponto de Cf. observações de Freud, em Civilization and its Discontents (Standard Edition), XXI, 123 e segs. 50 torná-lo insuportável. Com isso, atingiu um duplo objetivo: primeiro, ajudou a afastar as acusações e a agressão das autoridades, desviando-as para as massas sofredoras; segundo, ofereceu-se a essas massas sofredoras como um pai bom e amante, já que os sacerdotes concediam perdão e expiação ao sentimento de culpa que êles mesmos haviam provocado. Cultivou, engenhosamente, a condição psíquica da qual ela e a classe dominante obtinham uma dupla vantagem: o desvio da agressão das massas e a segurança de sua dependência, gratidão e amor. Para os governantes, porém, a fantasia do Jesus sofredor tinha não apenas essa função social, mas também uma importante função psíquica. Amenizava-lhes os sentimentos de culpa provocados pela desgraça e sofrimento das massas a quem oprimiam e exploravam. Identificando-se com Jesus sofredor, os grupos exploradores podiam, êles mesmos, penitenciar-se. Podiam reconfortar-se com a idéia de que, como o único filho de Deus sofrera voluntàriamente, o sofrimento para as massas era uma graça de Deus, e portanto não tinham razão para se acusarem de causar êsse sofrimento. A transformação do dogma cristológico, bem como o de tôda a religião cristã, correspondeu simplesmente à função sociológica da religião em geral, à manutenção da estabilidade social pela preservação dos interêsses das classes dominantes. Para os primeiros cristãos, foi um sonho abençoado e satisfatório o de criar a fantasia de que as autoridades odiadas seriam derrubadas em breve e que os pobres e sofredores passariam à condição de senhores e atingiriam a felicidade. Depois de sua derrota final, e depois que todas as suas esperanças se revelaram inúteis, as massas satisfizeram-se com uma fantasia na qual aceitavam a 61 responsabilidade de todo o Sofrimento. Podiam, porém, penitenciar-se de seus pecados pelo sofrido, esperando então ser amadas por um deus pai. Êste se revelara um pai amante quando, na forma do filho, tornou-se homem sofredor. Os outros desejos de felicidade, e não apenas de perdão, foram satisfeitos na fantasia de uma vida posterior abençoada, de um além-mundo que devia substituir a condição históricamente feliz prevista para êste mundo e ambicionada pelos primeiros cristãos. Em nossa interpretação da fórmula homoousiana não chegamos, ainda, ao seu sentido excepcional o final. A experiência analítica nos leva a esperar que atrás da contradição lógica da fórmula, ou seja, de que dois são igual a um, deve ocultar-se um sentido inconsciente específico a que o dogma deve sua significação e fascínio. Êsse sentido mais profundo e inconsciente da doutrina homoousiana se torna claro ao nos lembrarmos de um fato simples: há uma situação real na qual essa fórmula tem sentido, a situação da criança no ventre da mãe. Mãe e filho são, então, dois sêres e, ao mesmo tempo, um. Chegamos, assim, ao problema central da transformação da idéia da relação de Jesus – e Deus Pai. Não sómente o filho modificou-se, mas também o pai. O pai forte e poderoso tornou-se a mãe agasalhadora e protetora; o filho, outrora sofredor e passivo, tornou-se a criança pequena. Sob a forma do Deus paternal dos judeus, que vencera a luta com as divindades maternais do Oriente Próximo, surge novamente a figura divina da Grande Mãe, e torna-se a figura dominante do Cristianismo medieval. A significação que a divindade maternal tem para o Cristianismo Católico, a partir do século IV, torna-se clara, primeiro, no papel que a Igreja, como tal, começa a desempenhar; e, segundo, no culto de Maria.51 Mostramos que no Cristianismo primitivo a idéia de uma igreja era ainda estranha. Sómente no curso do desenvolvimento histórico a Igreja se torna gradualmente uma organização hierárquica, uma instituição sagrada, mais do que a simples soma de seus membros. A Igreja é a intermediária da salvação, os fiéis são 51 Cf, A- J. Storfer, Marias jugfräullisches Mutterschaft. (Berlim, 1913). seus filhos, ela é a Grande Mãe 62 através da qual, exclusivamente, pode o homem atingir a segurança e a bem-aventurança. Igualmente reveladora é a revivescência da figura da divindade materna no culto de Maria, que representa a divindade materna que evoluiu independentemente, separando-se do Deus Pai. Nela, as qualidades maternais, que haviam sido sempre inconscientemente uma parte do Deus Pai, passaram a ser experimentadas cônscia e claramente, e simbólicamente representadas. Pelo Nôvo Testamento, Maria não está elevada acima da esfera dos homens comuns. Com o desenvolvimento da Cristologia, as idéias a seu respeito assumiram uma importância cada vez maior. Quanto mais a figura do Jesus humano e histórico se apagava em favor do Filho de Deus preexistente tanto mais deificada era Maria. Embora, segundo o Nôvo Testamento, Maria continuasse a ter filhos de seu casamento com José, Epifânio discordou disso, acusando essa versão de herética e frívola. Na polêmica nestoriana, chegou-se em 431 a uma decisão contra Nestório, afirmando que Maria não só era a mãe de Cristo, mas também a mãe de Deus, e em fins do século IV surgiu um culto de Maria, a quem os homens se dirigiam e a quem rezavam. Aproximadamente na mesma época a representação de Maria nas artes plásticas também começou a desempenhar um papel destacado, e cada vez maior. Os séculos posteriores atribuíram sempre mais destaque à mãe de Deus, e seu culto tornou-se mais exuberante e geral. Ergueram-se altares a ela, e suas imagens eram mostradas em tôda parte. De beneficiária da graça, ela passou a conceder graças.52 Maria e o menino Jesus A ligação entre o culto de Maria e o culto das divindades maternais pagãs já foi examinada numerosas vêzes. Um exempo particularmente claro disso está nas Coliridianas, que, como sacerdotisas de Maria, carregam os doces na procissão solene, no dia consagrado a ela, tal como no culto da rainha canaanita do céu, mencionado por Jeremias. Cf Rösch 52 tornaram-se o símbolo da Idade Média Católica. A plena significação da fantasia coletiva da Madona só se torna clara através dos resultados das investigações psicanalíticas clínicas. 63 Sándor Radó assinalou o significado extraordinário que o temor da fome, de um lado, e a felicidade da satisfação oral, de outro, desempenham na vida psíquica do indivíduo: os tormentos da fome tornam-se uma antecipação psíquica de “castigos” posteriores, e pela escola da punição tornam-se o mecanismo primitivo do autocastigo, que finalmente atinge na melancolia uma significação fatidica. Atrás do mêdo sem limite da pauperização, provocado pela melancolia, está oculto nada mais do que o médo da fome. Êsse mêdo é a reação da vitalidade do resíduo do ego normal ao ato melancólico da expiação ou pena, que ameaça a vida, impôsto pela Igreja. Mamar no seio, porém, permanece como o exemplo luminoso da oferenda infalível e do perdão, do amor. Não foi, certamente, por acaso que a Madona com a criança tornou-se o símbolo de uma religião poderosa e através de sua mediação o símbolo de tôda uma época de nossa cultura ocidental. Na minha opinião, a derivação do sentido da expiação do complexo de culpa e perdão da experiência infantil de óio, fome e mamar no seio resolve nosso enigma da indagação de como a esperança de absolvição e amor constitui, talvez, a configuração mais poderosa que encontramos nos altos níveis da vida psiquica humana.53 O estudo de Radó torna perfeitamente clara a ligação entre a fantasia do Jesus sofredor e a do Jesus menino no seio da mãe. Ambas são uma expressão do desejo de perdão e expiação. Na fantasia do Jesus crucificado, o perdão é conseguido por uma submissão passiva, autocastradora, ao pai. Na fantasia do menino Jesus no seio da Madona, o elemento masoquista está ausente, e em lugar do pai (Th. St. D., 1888, págs. 278 e segs.), que interpreta o doce ou bólo como um símbolo fálico e vê na adoração de Maria pelas Colilidianas uma manifestação idêntica à da Astarde oriental-fenícia. Cf. Ver Realen zyklopädie für die protestantische Theologie und Kirche, vol. XII. Leipzig, 1915 53 Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse, XIlI 445. encontramos a mãe que, enquanto pacifica a criança, concede o perdão e expiação. O mesmo sentimento feliz constitui o sentido inconsciente do dogma homoousiano, a fantasia da criança abrigada no ventre. A fantasia da grande mãe clemente é a satisfação ótima que a Igreja Católica tinha a oferecer. Quanto mais as massas sofriam, tanto mais sua situação real se assemelhava à de Jesus sofredor, tanto e mais a figura da criança feliz e sugando o seio devia e podia surgir simultâneamente com a figura do Jesus sofredor. Mas isso significa também que os homens tinham de 64 reglredir a uma atitude passiva, infantil. Essa posição impedia a revolta ativa; era a atitude psíquica correspondente ao homem da sociedade medieval hieràrquicamente estruturada, um ser humano que se via na dependência dos governantes, que esperava conseguir dêles sua subsistência mínima, e para quem a fome era uma prova de seus pecados. 5 EVOLUÇÃO DO DOGMA ATÉ O CONCíLIO DE NICÉIA ATÉ AGORA, acompanhamos as transformações nos conceitos de Cristo e sua relação com o Deus Pai, desde o início, na fé cristã primitiva, até o dogma de Nicéia, e tentamos mostrar os motivos dessa transformação. O desenvolvimento teve várias fases intermediárias, porém, que se caracterizam pelas diferentes formulações surgidas até a época do Concílio de Nicéia. Essa evolução se processa pela contradição, e isso só pode ser dialèticamente compreendido juntamente com a evolução gradual do Cristianismo, de uma religião revolucionária para uma religião conivente com o Estado. Demonstrar que as diferentes formulações do dogma correspondem, em cada época, a uma classe particular e suas necessidades constitui um estudo especial. Não obstante, as características básicas serão indicadas aqui. O Cristianismo do século II, que já iniciara seu “revisionismo”, caracterizava-se por uma batalha em duas frentes: numa, as tendências revolucionárias que ainda se faziam sentir com certa fôrça, em vários lugares, e que era necessário eliminar; na outra, as tendências que se inclinavam a uma evolução demasiado rápida na direção da conformidade social, na verdade mais rápida do que a evolução social permitia e que também precisava ser eliminada. As massas só podiam evoluir gradual e lentamente da esperança num Jesus revolucionário para a fé num Jesus que apoiava o Estado. A mais forte expressão das tendências cristãs primitivas foi o montanismo. Originalmente, constituiu êle um esfôrço prodigioso do profeta frígio Montano na segunda metade do século II 65 e foi uma reação contra as tendências de conformidade do Cristianismo, reação essa que procurou restabelecer o entusiasmo cristão primitivo. Montano desejava afastar os cristãos de suas relações sociais e estabelecer, através de seus adeptos, uma nova comunidade, à parte do mundo, comunidade que devia preparar-se para a descida da “Jerusalém superior”. O montanismo foi uma vivescência do espírito cristão primitivo, mas o processo de transformação do Cristianismo já havia ido muito longe, de modo que essa tendência revolucionária foi combatida como heresia pelas autoridades da Igreja, que agiram como os bailios do Estado romano. (O comportamento de Lutero para com os camponeses e os anabatistas revoltados foi semelhante, sob muitos aspectos.) Os gnósticos, por sua vez, eram os representantes intelectuais da classe média abastada e helenística. Segundo Harnack, o gnosticismo representou a “secularização aguda” do Cristianismo, e antecipou uma evolução que continuaria por mais 150 anos. Naquele momento, foi atacado pela Igreja oficial, juntamente com o montanismo, mas sómente uma interpretação não-dialética pode ignorar o fato de que a luta da Igreja contra o montanismo foi muito diferente, em caráter, da luta travada contra o gnosticismo. O montanismo foi combatido porque era um ressurgimento de um movimento já dominado e perigoso para os atuais líderes do Cristianismo. O gnosticismo foi combatido porque desejava realizar, com excessiva rapidez, e subitamente demais, os seus princípios, e por anunciar o segrêdo da futura evolução cristã antes que a consciência das massas a pudesse aceitar. As idéias gnósticas de fé, especialmente seus conceitos cristológicos e escatológicos, correspondem exatamente às expectativas que devemos formular à base de nosso estudo do pano de fundo sócio-psicológico do desenvolvimento dogmático. Não é de surpreender que o gnosticismo negue inteiramente a escatologia cristã primitiva, especialmente o segundo advento de Cristo e a ressurreição da carne, e espere do futuro apenas a libertação do espírito de seu revestimento material. Essa rejeição cabal da escatologia, realizada no Catolicismo 150 anos mais tarde, era, na época, prematura, Os conceitos escatológicos continuavam sendo mantidos pelos apologistas, que sob outros aspectos já se haviam distanciado muito das concepções cristãs primitivas. Êsse 66 remanescente foi considerado “arcaico” por Harnack, mas necessário, na época, para a satisfação das massas. Outra doutrina do gnosticismo, intimamente ligada a essa rejeição da escatologia, deve ser notada: a importância atribuída à discrepância entre o Deus supremo e o criador do mundo, e a afirmativa de que “o mundo presente nasceu da queda do homem, ou de um empreendimento hostil a Deus, e, portanto, é produto de um ser intermediário ou maléfico”.54 O sentido dessa tese é claro: se a criação, ou seja, o mundo histórico, tal como encontra expressão na vida social e política, é maléfico desde o início, se é obra de um Deus intermediário, indiferente ou fraco, então na verdade não pode ser redimido e tôdas as esperanças escatológicas do Cristianismo primitivo serão falsas e infundadas. O gnosticismo rejeitava a transformação coletiva real e a redenção da humanidade, colocando em seu lugar um ideal individual de conhecimento, dividindo os homens dentro de linhas religiosas e espirituais, em classes e castas definidas. As divisões sociais e econômicas eram consideradas como boas e determinadas por Deus. Os homens eram divididos em espirituais, que gozavam das mais altas bênçãos; psíquicos, que partilhavam das bênçãos menores; e hílicos, que haviam caído totalmente em declínio. Foi a rejeição da redenção coletiva e a afirmação de uma estratificação de classe da sociedade, como a estabelecida posteriormente pelo Catolicismo na separação entre os leigos e o clero, e entre a vida das pessoas comuns e a dos monges. Qual era, então, o conceito dos gnósticos sôbre Jesus e sua relação com o Deus Pai? Sustentavam que ... o Éon celestial, Cristo, e a aparição humana dêsse Éon devem ser claramente diferenciados. Aquêles que, como Basílides, não reconheciam qualquer união real entre Cristo e o homem Jesus, consideravam-no apenas um homem terreno. Outros, como alguns dos valentianos, ensinavam que o corpo de Jesus era uma formação psíquica celestial, e nascida do ventre de Maria apenas na aparência. Finalmente, um terceiro grupo, como Saturino, declarava que tôda a aparência visível de Cristo era um fantasma, e portanto negava o nascimento do Cristo.55 67 Qual o significado dessas concepções? Elas eliminam principalmente a idéia cristã original de que um homem real (cujo caráter como revolucionário e hostil ao pai já 54 55 Harnack, History of Dogma, 1, 258. Ibid., págs. 259-260. analisamos) tornou-se um deus. As diferentes tendências gnósticas são apenas manifestações das diferentes possibilidades dessa eliminação. Tôdas elas negam que Cristo fôsse um homem real, mantendo com isso a inviolabilidade do deus pai. A ligação com o conceito da redenção também é clara. É improvável que êste mundo, mau por natureza, se torne bom, tal como é improvável que o homem real se possa tornar deus; isso significa a impossibilidade igual de que alguma coisa na situação social existente possa ser modificada. É um êrro julgar que a tese gnóstica – de que Deus o Criador, do Velho Testamento, não é o Deus mais alto, mas um deus inferior – é expressão de tendências particularmente hostis ao pai. Os gnósticos tinham de afirmar a inferioridade do Deus Criador para demonstrar a tese da imutabilidade do mundo e da sociedade humana, e para êles essa afirmação não era, portanto, a expressão de hostilidade para com o pai. Sua tese, em contraste com a dos primeiros cristãos, tratava de um deus alheio a êles, o Jeová judaico, a quem os gregos não tinham motivos para respeitar. Para êles, destronar essa divindade judaica não constituía nem pressupunha nenhuma emoção particularmente hostil para com o pai. A Igreja Católica, que combateu o montanismo como um remanescente perigoso do gnosticismo, uma antecipação prematura do que viria a acontecer, evoluiu lenta, mas continuamente, no sentido da realização final de seu objetivo, no século IV. Os apologistas foram os primeiros a elaborar uma teoria para essa evolução. Criaram dogmas – foram os primeiros a usar êsse têrmo no sentido técnico – nos quais a nova atitude para com Deus e a sociedade encontrou expressão. Na verdade, não foram tão radicais quanto os gnósticos: conservaram, como já dissemos, as idéias escatológicas e com isso estabeleceram uma ligação com o Cristianismo primitivo. Sua doutrina de Jesus e sua relação com o Deus Pai, porém, estavam intimamente relacionadas com a posição gnóstica e encerravam a semente do dogma de Nicéia. Procuraram apresentar o Cristianismo como a mais alta filosofia, “formularam o conteúdo do Evangelho de modo a atrair o bom-senso 68 de todos os pensadores sérios e todos os homens inteligentes da época”.56 Embora os apologistas não ensinassem que a matéria é maligna, não fizeram, porém, de Deus a origem direta do mundo, mas personificaram a inteligência divina e a colocaram entre Deus e o mundo. Uma tese, embora menos radical do que a tese gnóstica correspondente, opõe-se da mesma forma à redenção histórica. O Logos, extraído por Deus de Si mesmo para a criação, e produzido por um ato voluntário, era para êles o Filho de Deus. Não estava separado de Deus, sendo antes o resultado do próprio desdobramento de Deus; era, também Deus e Senhor, sua personalidade tivera um início, era uma criatura em relação a Deus. E, não obstante, sua subordinação não estava em sua natureza e sim na sua origem. Essa Cristologia do Logos dos apologistas era, em essência, idêntica ao dogma de Nicéia. A teoria da adoção, autoritária, relacionada com o homem que se tornou deus, foi afastada, e Jesus tornou-se o único Filho de Deus, preexistente, uno com êle na natureza e não obstante uma segunda pessoa a seu lado.Nossa interpretação dessa fonte da doutrina de Nicéia é válida, portanto, para a Cristologia do Logos, precursora decisiva do nôvo Cristianismo Católico. A assimilação da Cristologia do Logos pela fé da Igreja... envolveu uma transformação da fé em doutrina, com características filosóficas gregas; colocou em segundo plano as velhas idéias escatológicas; e, na verdade, suprimiu-as; substituiu o Cristo da história por um Cristo conceptual, um princípio, e transformou o Cristo histórico num fenômeno. Levou os cristãos à “Natureza” e à grandeza naturalista, ao invés da grandeza pessoal e moral; deu à fé dos cristãos, de uma vez por tôdas, a direção no sentido da contemplação das idéias e dogmas, preparando com isso o caminho para a vida monástica e, também, para um Cristianismo tutorado de leigos imperfeitos e trabalhadores. Legitimou centenas de questões de cosmologia e da natureza do mundo como questões religiosas, e exigiu uma resposta definida, sob pena de perda da 56 Harnack, op. cit., II, 110. salvação. Isso levou a uma situação em que, ao invés de pregar a fé, pregava-se a fé na fé e se limitava a religião, embora 69 ostensivamente ela estivesse sendo ampliada. Aperfeiçoando a aliança com a ciência, essa doutrina fêz do Cristianismo uma religião mundial, e na verdade uma religião cosmopolita, e preparou caminho para o Edito de Constantino.57 Dessa forma, na Cristologia do Logos, a semente definitiva do dogma católico-cristão foi criada. O reconhecimento e adoção dêsse dogma não se fêz, porém, sem uma luta séria contra as idéias que o contrariavam, e atrás das quais estavam ocultos os remanescentes das opiniões do Cristianismo primitivo, e seu espírito. A êsse conceito foi dado o nome de monarquíanismo (primeiramente por Tertuliano). Dentro do monarquianismo podemos distinguir duas tendências: a da adoção e a modalista. O monarquianismo adocionista considerava Jesus um ser humano que se tornou deus. Os modalistas sustentavam que Jesus era apenas uma manifestação do Deus Pai, não um deus juntamente com êle. Ambas as tendências, portanto, afirmavam a monarquia de Deus: para uma, o homem era inspirado pelo espírito divino, enquanto Deus permanecia inviolável como o ser único; para outra, o Filho era apenas uma manifestação do Pai, preservando, ainda, a monarquia de Deus. Embora os dois ramos do monarquianismo parecessem opor-se, a oposição era na realidade muito menos aguda. Harnack assinala que as duas opiniões, sob muitos aspectos, coincidem e a interpretação psicanalítica torna perfeitamente inteligíveis as afinidades entre elas. Já dissemos que o sentido inconsciente do conceito de adoção é o desejo de substituir o deus pai. Se o homem pode tornar-se Deus e ser entronizado à direita de Deus, então Deus está destronado. A mesma tendência, porém, é clara no dogma modalista; se Jesus fôsse apenas uma manifestação de Deus, então certamente o próprio Deus Pai foi crucificado, sofreu e morreu – opinião que 57 Harnack, Lehrbuch der Dogmengeshichte (6.ª ed., 1922), pág. 155. recebeu o nome de patripassianismo. Nessa concepção modalística reconhecemos uma afinidade clara com os velhos mitos do Oriente Próximo, do deus moribundo (Átis, Adônis, Osíris), que implica uma hostilidade inconsciente ao deus pai. 70 Trata-se precisamente do inverso daquilo em que poderia crer uma interpretação que ignorava a situação psíquica dos partidários do dogma. O monarquianismo, seja adocionista ou modalista, significa não um aumento da reverência a Deus, mas o oposto – o desejo de sua substituição, expresso na deificação de um homem ou na crucificação do próprio Deus. Do que já dissemos compreende-se plenamente que Harnack ressalte, como um dos pontos essenciais de concordância dos dois movimentos do monarquianismo, o fato de representarem a concepção escatológica em oposição à concepção naturalista, da pessoa de Cristo. Vimos que a primeira idéia, de que Jesus voltará para estabelecer o novo reino, era parte essencial da crença cristã primitiva, revolucionária e hostil ao pai. Não nos surpreende, portanto, verificar que êsse conceito também existe nos dois movimentos monarquianistas, cuja relação com a doutrina cristã primitiva já foi demonstrada. Nem nos surpreende que Tertuliano e Orígenes afirmem que a maioria dos cristãos pensava em têrmos monarquianistas, pois entendemos que a luta contra ambos os tipos de monarquianismo era essencialmente uma expressão da luta contra as tendências, ainda enraizadas nas massas, de hostilidade ao deus pai e ao Estado. Deixamos de lado as nuanças individuais dentro de evolução dogmática e nos voltamos para a grande divergência que teve uma solução preliminar no Concílio de Nicéia, ou seja, a controvérsia entre Ário e Atanásio. O primeiro ensinava que Deus é Uno, ao lado de quem não há outro, e que seu Filho era um ser independente, diferindo em essência do Pai. Não era o verdadeiro Deus e tinha qualidades divinas apenas como dons, e apenas em parte. Como não era eterno, seu conhecimento não era perfeito. Portanto, não tinha direito às mesmas honras do Pai. Mas fôra criado antes do mundo como instrumento para a criação de outros sêres, criado pela vontade de Deus como ser independente. Atanásio contrastava o Filho, que pertencia a Deus, com o mundo: era produto da essência de Deus, partilhava totalmente a natureza do Pai e tinha a mesma essência que o Pai, formando com Deus uma unidade rigorosa. Identificamos fàcilmente, atrás dessa oposição entre Ário e Atanásio, a velha controvérsia entre o conceito monarquiano e a Cristologia do Logos dos apologistas (embora Atanásio tivesse 71 feito pequenas modificações na doutrina do Logos, com novas formulações), a luta entre as tendências revolucionárias hostis ao deus pai e o movimento conformista que apoiava o pai e o Estado, renunciando à libertação coletiva e histórica. O último triunfou, finalmente, no século IV, quando o Cristianismo tornou-se a religião oficial do Império Romano. Ário, discípulo de Luciano, que por sua vez era discípulo de Paulo de Samosata, um dos defensores destacados da adoção, já não representava essa doutrina em sua forma pura e original, mas sim de mistura com elementos da Cristologia do Logos. E não poderia ser de outro modo, já que a evolução do Cristianismo, distanciando-se do entusiasmo primitivo e aproximando-se da Igreja Católica, havia atingido um ponto em que o velho conflito só podia ser combatido na linguagem e no clima das opiniões eclesiásticas. Se a controvérsia entre Atanásio e Ário parecia girar em tôrno de uma pequena discordância (se Deus e seu Filho são da mesma natureza, ou de natureza igual, homoousiana, ou homoiousiana), a pequenez dessa discordância foi, precisamente, a conseqüência da vitória, já então quase completa, sôbre as tendências cristãs primitivas. Atrás dêsse debate, porém, está nada menos do que o conflito entre as tendências revolucionárias e reacionárias. O dogma ariano foi uma das manifestações finais do movimento cristão primitivo; a vitória de Atanásio selou a derrota da religião e das esperanças dos pequenos artesãos, camponeses e proletários da Palestina. Procuramos mostrar, a largas pinceladas, como as várias fases da evolução dogmática estiveram de acôrdo com a tendência geral da evolução religiosa desde a fé cristã primitiva até o dogma de Nicéia. Seria uma tarefa atraente, que devemos abandonar neste estudo, mostrar também a situação social dos grupos em cada fase. Valeria a pena estudar, também, as razões pelas quais nove décimos do Oriente e os alemães aderiram ao arianismo. Acreditamos, porém, ter mostrado de forma suficiente que as várias fases da evolução do dogma e tanto o seu início como o fim só podem ser compreendidos à base de transformações na situação social real e na função do Cristianismo. 72 6 OUTRA TENTATIVA DE INTERPRETAÇÃO QUAIS AS diferenças de método e conteúdo entre o presente estudo e o de Theodor Reik, sôbre o mesmo assunto? Reik procede metodológicamente. O objeto especial de sua investigação é o dogma, particularmente o dogma cristológico. Como se “ocupa de estabelecer o paralelo entre a religião e a neurose de compulsão e mostrar as ligações entre os dois fenômenos em exemplos simples”, procura mostrar, “especialmente nesse exemplo representativo, que o dogma religioso na história evolucionária da humanidade corresponde ao pensamento obsessivo neurótico, a expressão mais significativa do pensamento irracional compulsivo”. Os processos psíquicos que levaram à construção e desenvolvimento do dogma seguem o mecanismo psíquico do pensamento obsessivo, e os mesmos motivos predominam em ambos. “Na formulação do dogma, estão envolvidos os mesmos mecanismos defensivos que existem nos processos compulsivos do indivíduo.” Como desenvolve Reik sua tese sôbre a analogia fundamental entre o dogma e a compulsão? Primeiro, à base de sua idéia da analogia entre a religião e as neuroses de compulsão, procura encontrar essa concordância em todos os aspectos individuais, de ambos os fenômenos, e portanto também entre o pensamento religioso e o pensamento compulsivo. Volta-se, então, para a evolução do dogma e vê como é elevado ao longo das linhas de uma luta continuada sôbre pequenas dissensões. Não lhe parece rebuscado interpretar essa surpreendente semelhança entre a evolução do dogma e o pensamento obsessivo como prova da identidade dos dois fenômenos. Assim, o desconhecido se explica pelo conhecido; a evolução do dogma é compreendida dentro das mesmas leis que governam os processos neuróticocompulsivos. A hipótese de uma relação mais íntima entre os dois fenômenos é fortalecida pelo fato de que no dogma cristológico em particular a relação para com o 73 Deus Pai, com sua ambivalência básica, desempenha um papel surpreendente e especial. Na atitude metodológica de Reik há certas suposições não mencionadas explicitamente, mas de exposição necessária para a crítica de seu método. A mais importante é a seguinte: como uma religião, no caso o Cristianismo, é concebida e apresentada como uma entidade, os adeptos dessa religião são considerados como uma entidade unificada, e as massas são, por isso, tratadas como se constituíssem um único homem, um indivíduo. Como a sociologia organicista, que concebia a sociedade como uma entidade viva e compreendia os diferentes grupos dentro da sociedade como partes diferentes de um mesmo corpo, referindo-se assim aos olhos, pele, cabeça, etc., da sociedade, Reik adota um conceito também organicista – não no sentido anatômico, mas sim psicológico. Além disso, não procura investigar as massas, cuja unidade supõe, na sua situação de vida real. Supõe que as massas são idênticas, e trata apenas das idéias e ideologias por elas produzidas, não se ocupando concretamente de homens vivos e sua situação psíquica. Não interpreta as ideologias como criadas pelos homens; reconstrói êstes, partindo das ideolo'gias. Consequentemente, seu método é relevante para a história do dogma, e não como método para o estudo da história religiosa e social. Assim, assemelha-se bastante não sómente à sociologia organicista, mas também a um método de pesquisa religiosa orientado exclusivamente para a história das idéias, que já foi abandonado até mesmo por muitos historiadores da religião, como Harnack por exemplo. Com seu método, Reik apóia implicitamente a interpretação teológica, que o conteúdo de seu trabalho rejeita conscientemente e explicitamente. Êsse ponto de vista teológico, ressalta a unidade da religião cristã – na verdade, o Catolicismo pretende a imutabilidade, e se adotarmos como método a análise do Cristianismo como se fôsse uma pessoa viva, seremos levados lógicamente à posição ortodoxa católica. A metodologia que focalizamos é de grande significação na investigação do dogma cristão, porque é decisiva para o conceito da ambivalência, central no trabalho de Reik. Se a hipótese de um sujeito unificado é ou não aceitável, é problema que só pode ser solucionado depois de uma investigação – que falta 74 em Reik e da situação psíquica, social e econômica, das “superfícies psíquicas” do grupo. O têrmo ambivalência só se aplica quando há um conflito de impulsos dentro do mesmo indivíduo, ou talvez dentro de um grupo de indivíduos relativamente homogéneos. Se o homem ama e odeia, simultâneamente, outra pessoa, podemos falar de ambivalência. Mas se, quando há dois homens, um ama e o outro odeia um terseiro homem, os dois são opostos. Podemos analisar por que um ama e o outro odeia, mas seria errôneo e confuso falar de ambivalência. Quando, dentro de um grupo, encontramos a presença simultânea de impulsos contraditórios, sómente uma investigação da’ situação realista do grupo pode mostrar se atrás de sua aparente unidade é possível encontrar diferentes subgrupos, cada qual com desejos diferentes, e combatendo entre si. A ambivalência aparente poderia ser, na realidade, um conflito entre diferentes subgrupos. Um exemplo serve para ilustrar êsse ponto. Imaginemos que, dentro de várias centenas ou num milhar de anos, um psicanalista, usando o método de Reik, faça um estudo da história política da Alemanha depois da Revolução de 1913, e particularmente a disputa sôbre as côres da bandeira alemã. Julgaria que houve na Alemanha um grupo, os monarquistas, favorável à bandeira prêto-branco-vermelha; outro, os republicanos, que insistia na bandeira prêto–vermelhodourada; e ainda outro, que desejava uma bandeira vermelha – e que se chegou então a um acôrdo, fazendo a bandeira nacional em vermelho-prêto-dourado e a bandeira comercial dos navios em prêto-branco-vermelho, com um canto prêtovermelho-dourado. Nosso analista imaginário examinaria primeiro a racionalização e verificaria que um grupo justificava seu desejo de uma bandeira prêto-branco-vermelha com a alegação de que essas côres são mais visíveis no mar do que o prêto-vermelho-dourado. Indicaria qual a significação que a atitude para com o pai teve nessa batalha (monarquia ou república), e prosseguiria procurando descobrir a analogia com o pensamento de um neurótico compulsivo. Citaria então exemplos de dúvidas sôbre a côr justa (o exemplo mencionado por Reik, do paciente que quebrava a cabeça em relação às gravatas brancas ou pretas, aplica-se muito bem, no caso) que se originam no conflito dos impulsos ambivalentes, e veria na disputa sôbre as côres da bandeira e no acôrdo final um fenômeno análogo ao pensamento obsessivo condicionado pelas mesmas causas. 75 Ninguém que compreenda as circunstâncias reais duvidará de que a dedução da analogia seria falsa. É claro que houve diferentes grupos cujos diferentes interêsses, reais e efetivos, estavam em conflito entre si, que a luta sôbre a bandeira era uma luta entre grupos de orientação diferente, tanto psiquicamente como econômicamente, e que se trata, no caso, de coisa totalmente diferente de um “conflito de ambivalência”. O acôrdo da bandeira não foi o resultado de um conflito de ambivalência, mas sim o compromisso entre duas pretensões diferentes de grupos sociais que lutavam entre si. Que diferenças substanciais resultam dessa diferença metodológica? Tanto na interpretação do conteúdo do dogma cristológico como na avaliação psicológica do dogma como tal, o método diferente leva a resultados diferentes. Há um ponto de partida comum, a interpretação da fé cristã primitiva como manifestação da hostilidade ao pai. Na interpretação da evolução posterior do dogma, porém, chegamos a uma conclusão precisamente oposta à de Reik. Considera êle o gnosticismo como um movimento no qual os impulsos de revolta, apoiados pela religião do filho, que era o Cristianismo, predominou ao extremo, degradando com isso o deus pai. Procuramos mostrar que, pelo contrário, o gnosticismo eliminou as tendências revolucionárias do Cristianismo primitivo. O êrro de Reik parece-nos vir do fato de, pelo seu método, observar êle sómente a fórmula gnóstica da eliminação do deus pai judaico, ao invés de examinar o gnosticismo como um todo, e no qual uma significação totalmente diferente pode ser atribuída à fórmula da hostilidade para com Jeová. A interpretação de uma evolução dogmática posterior leva a resultados igualmente contrários. Reik vê na doutrina da preexistência de Jesus a sobrevivência e a conquista da hostilidade cristã original ao pai. Em oposição direta a essa idéia, procurei mostrar que na idéia da preexistência de Jesus a hostilidade original para com o pai é substituída por uma tendência oposta e conciliadora. Vemos que a interpretação psicanalítica leva, aqui, a dois conceitos opostos do sentido inconsciente de diferentes formulações do dogma. Essa oposição certamente não depende de qualquer diferença nas pressuposições psicanalíticas, como tais. Baseia-se apenas na diferença no método de aplicar a Psicanálise aos fenômenos sociopsicológicos. 76 As conclusões a que chegamos nos parecem corretas porque, ao contrário das conclusões de Reik, não se originam na interpretação de uma fórmula religiosa isolada, mas sim no exame dessa fórmula em sua ligação com a situação real de vida dos homens que a defendem. Não menos importante é nossa discordância, resultante da mesma diferença metodológica, com respeito à interpretação da significação psicológica do dogma como tal. Reik vê no dogma a expressão mais significativa do pensamento compulsivo popular, e procura mostrar “que os processos psíquicos que levam ao estabelecimento e desenvolvimento do dogma seguem, coerentemente, os mecanismos psíquicos do pensamento compulsivo, que os mesmos motivos predominam numa área, como na outra”. Julga êle que a evolução do dogma está condicionada por uma atitude ambivalente em relação ao pai. Para Reik, a hostilidade para com o pai atinge seu primeiro ponto alto no gnosticismo. Os apologistas em seguida, desenvolvem uma Cristologia do Logos, em que o propósito inconsciente de substituir o Deus Pai pelo Cristo é simbolizado claramente, embora a vitória dos impulsos inconscientes seja impedida por fortes correntes defensivas. Tal como na neurose compulsiva, onde duas tendências opostas predominam alternadamente, segundo Reik as mesmas tendências contraditórias aparecem na evolução do dogma, que segue as mesmas leis da neurose. Mostramos, em detalhe, a fonte do êrro de Reik. Ignora êle o fato de que o sujeito psicológico não é, no caso, um homem, e nem mesmo um grupo com uma estrutura psíquica relativamente unificada e imutável, mas antes diferentes grupos com diferentes interêsses sociais e psíquicos. Os vários dogmas são uma expressão, exatamente, dêsses interêsses opostos, e a vitória de um dogma não é resultado de um conflito psicológico íntimo análogo ao do indivíduo, mas o resultado, antes, de uma evolução histórica que, em conseqüência de circunstâncias externas totalmente diferentes (como a estagnação e retrocesso da economia e das fôrças sociais e políticas a ela ligadas), leva à vitória de um movimento e à derrota de outro. Reik vê o dogma como expressão do pensamento compulsivo, e o ritual como expressão da ação compulsiva coletiva. É sem dúvida certo que no dogma cristão, bem como em muitos outros dogmas, a ambivalência para com o pai tem um papel 77 importante, mas isso não comprova ser o dogma um pensamento compulsivo. Tentamos mostrar precisamente como as variações do desenvolvimento do dogma, que a princípio sugere o pensamento compulsivo, exigem, na verdade, uma explicação diferente. O dogma é, em grande parte, condicionado pelos motivos políticos e sociais realistas. Serve como uma espécie de bandeira, e o reconhecimento da bandeira é a confissão de participação em determinado grupo. Compreende-se, assim, que as religiões suficientemente consolidadas por elementos extra-religiosos (como o judaísmo é pelo seu elemento étnico) podem prescindir quase totalmente de um sistema de dogmas, no sentido católico. É evidente, porém, que tal função orgânica do dogma não é a única, e êste estudo procurou mostrar a significação social que deve ser atribuída ao dogma pelo fato de que na fantasia êle satisfaz as exigências dos crentes, e funciona como uma satisfação real. Como as satisfações simbólicas são condensadas em forma de um dogma em que as massas devem acreditar, de acôrdo com a autoridade dos sacerdotes e governantes, parece-nos que o dogma deve ser comparado a uma sugestão poderosa, experimentada subjetivamente como uma realidade, devido ao consenso entre os crentes. Para que o dogma atinja o inconsciente, o conteúdo que não é capaz de ser percebido conscientemente deve ser eliminado e apresentado em formas racionalizadas e aceitáveis. 7 CONCLUSÃO VAMOS RESUMIR o que nosso estudo mostrou sôbre o sentido das transformações ocorridas na evolução do dogma de Cristo. A fé cristã primitiva no homem sofredor que se tornou deus tinha sua significação central no desejo implícito de derrubar o deus pai ou seus representantes terrestres. A figura do Jesus sofredor originou-se primordialmente na necessidade de identificação da parte das massas sofredoras e apenas secundàriamente foi determinada pela necessidade de expiação do crime 78 de agressão contra o pai. Os seguidores dessa fé eram homens que, devido à sua situação de vida, estavam imbuídos de ódio aos seus governantes e de esperança de felicidade. A transformação na situação econômica e na composição social da comunidade cristã alterou a atitude psíquica dos crentes. O dogma evoluiu, a idéia do homem que se torna deus transformou-se na idéia do deus que se faz homem. O pai já não devia ser derrubado, e não são os governantes que têm a responsabilidade do sofrimento das massas. A agressão já não é dirigida às autoridades, mas à pessoa dos próprios sofredores. A satisfação está no perdão e amor que o pai oferece a seus filhos submissos, e, simultâneamente, na posição paternal e régia que Jesus sofredor assume, permanecendo ao mesmo tempo o representante das massas sofredoras. Jesus torna-se finalmente Deus sem derrubar Deus, porque sempre foi Deus. Atrás disso está uma regressão ainda mais profunda, que encontra expressão no dogma hoinoousiano: o Deus paternal, cujo perdão só pode ser obtido pelo sofrimento, se transforma na mãe cheia de graça, que alimenta o filho, abriga-o em seu ventre, e com isso proporciona o perdão. Descrita psicológicamente, a transformação que ocorre é a passagem de uma atitude hostil para com o pai para uma atitude passiva e masoquisticamente dócil, e, finalmente, para a da criança amada pela mãe. Se tal evolução ocorre no indivíduo, indica uma enfermidade psíquica. Ocorre, porém, num período de séculos, e não afeta a totalidade da estrutura psíquica dos indivíduos, mas apenas um segmento comum a todos. Não é a manifestação de perturbação patológica, mas sim a adaptação a uma determinada situação social. Para as massas que conservaram um resto de esperança na derrubada dos governantes, a fantasia cristã primitiva era adequada e satisfatória, como o foi o dogma católico para as massas da Idade Média. A causa da evolução está na transformação da situação sócio-econômica ou no retrocesso das fôrças econômicas e suas conseqüências sociais. Os ideólogos das classes dominantes fortaleceram e aceleraram essa evolução sugerindo satisfações simbólicas às massas, guiando sua agressão para canais socialmente inofensivos. O catolicismo significou a volta disfarçada à religião da Grande Mãe, que havia sido derrotada por Jeová. Sómente o protestantismo voltou-se para o deus pai.58 79 Coloca-se êle no início de uma época social que permite uma atitude ativa da parte das massas, em contraste com a atitude passivamente infantil da Idade Média.59 80 Pessoalmente, Lutero se caracterizava por essa atitude ambivalente em relação ao pai; o encontro, em parte cheio de amor e em parte cheio de ódio, entre êle e as figuras do pai constituía o ponto central de sua situação psiquica. 59 Cf. Frazer, The Golden Bough; e também o conceito, relacionado com o nosso, em Storfer, op. cit. 58 A PRESENTE CONDIÇÃO HUMANA QUANDO O MUNDO medieval foi destruído, o homem ocidental parecia aproximar-se da realização final de seus mais ardentes sonhos e visões. Libertara-se da autoridade de uma Igreja totalitária, do pêso do pensamento tradicional, das limitações geográficas de nosso mundo então apenas meio descoberto. Criou uma nova ciência que levou, finalmente, à libertação de fôrças produtivas até então desconhecidas e à completa transformação do mundo material. Criou sistemas políticos que pareciam garantir o desenvolvimento livre e produtivo do indivíduo, reduziu as horas de trabalho em proporções tais que o homem ocidental pôde gozar horas de lazer de que seus antepassados nem sonhavam. Apesar disso, onde nos encontramos hoje? O perigo de uma guerra capaz de destruir tudo paira sôbre a humanidade, perigo não superado pelas hesitantes tentativas dos governos de evitá-lo. Mesmo que os representantes políticos do homem tenham ainda bastante bom-senso para impedir uma guerra, a condição humana está longe da realização das esperanças dos séculos XVI, XVII e XVIII. O caráter do homem foi rnoldado pelas exigências do mundo que construiu com as próprias mãos. Nos séculos XVIII e XIX, o caráter social da classe média revelava fortes tendências à exploração e ao entesouramento. Êsse caráter foi determinado pelo desejo de explorar os outros e poupar os ganhos, para obter dêles novos lucros. No século XX, o caráter do homem revela considerável passividade e uma identificação com os valôres do mercado. O homem contemporâneo é, sem dúvida, passivo durante 81 a maioria do seu tempo de lazer. É um consumidor eterno, que “aceita” bebidas, alimentos, cigarros, conferências, panoramas, livros, cinema – tudo isso é consumido, engolido. O mundo é um grande objeto de seu apetite, uma garrafa grande, uma maçã grande, um seio grande. O homem tornouse o amamentado, o que espera sempre – e o eternamente desapontado. Na medida em que o homem moderno não é consumidor, passa a ser negociante. Nosso sistema econômico está centralizado na função do mercado que determina o valor de tôdas as mercadorias e regula a parcela de todos no produto social. Não é a fôrça, nem a tradição, nem a fraude ou os truques que governam as atividades econômicas do homem. Êle pode produzir e vender, o dia do mercado é o dia do Juízo para o êxito de seus esforços. Não sómente as mercadorias são oferecidas e vendidas no mercado, como também o trabalho tornou-se uma mercadoria, transacionada no mercado nas mesmas condições de concorrência justa. Mas o sistema mercantil desdobrou-se além da esfera económica das mercadorias e trabalho. O homem transformou a si mesmo numa mercadoria, e sente a sua vida como um capital a ser investido com lucro. Se consegui-lo, terá “êxito” e sua vida tem um sentido; se não, “é um fracasso”. Seu “valor” está na sua vendabilidade, não nas suas qualidades humanas de amor e razão, não em sua capacidade artística. Daí o seu senso de valôres depender de fatôres estranhos – do seu êxito, segundo a opinião dos outros. Daí a sua dependência dêsses outros, e sua segurança está na conformidade, em não se distanciar jamais dois passos da manada. Não é, porém, apenas o mercado que determina o caráter do homem moderno. Outro fator, intimamente relacionado com a função mercantil, é a forma de produção industrial. As emprêsas tornam-se cada vez maiores, o número de pessoas por elas empregadas como trabalhadores ou funcionários aumenta sem cessar. A propriedade é distinguida da administração e os gigantes industriais são governados por uma burocracia profissional interessada principalmente no funcionamento perfeito e na expansão da emprêsa, e não na ambição pessoal do lucro em si. Que tipo de homem, portanto, necessita nossa sociedade a fim de funcionar sem atrito? Precisa de homens que cooperem fàcilmente dentro de grandes grupos, que desejem consumir 82 mais e mais, e cujos gostos padronizados possam ser fàcilmente influenciados e previstos. Necessita de homens que se sintam livres e independentes, não sujeitos a nenhuma autoridade, princípio ou consciencia, e não obstante estejam dispostos a receber ordens, fazer o que dêles se espera, enquadrar-se na máquina social sem atrito. Homens que possam ser guiados sem a fôrça, liderados sem líder, movidos sem objetivo, exeto o objetivo de estar em marcha, de funcionar, de avançar. O industrialismo moderno conseguiu produzir êsse tipo de homem – o autômato, o homem alienado, de tal maneira que seus atos e suas fôrças se tornaram estranhos a êle. Permanecem acima dêle e contra êle, governando-o ao invés de serem por êle governados. As fôrças de sua vida foram transformadas em coisas e instituições, que por sua vez se tornaram ídolos. São sentidas não como resultado dos esforços do homem, mas como algo destacado dêle, que êle cultua e a que se submete. O homem alienado se inclina ante o trabalho de suas mãos. Seus ídolos representam suas próprias fôrças vitais, de forma alienada. O homem se sente não como o portador ativo de suas forças e riquezas, mas como uma “coisa” empobrecida, dependente de outras coisas fora dêle, e nas quais projetou sua substância vital. Os sentimentos sociais do homem são projetados no Estado. Como cidadão, êle se dispõe até mesmo a dar sua vida pela de seu companheiro; como pessoa, é governado pelo interésse egoísta em si mesmo. Tendo feito do Estado a representação de seus sentimentos sociais, cultua-o e aos seus símbolos. Projeta seu senso de poder, inteligência e coragem em seus líderes e os adora como ídolos. Como trabalhador, funcionário ou administrador, o homem moderno está alienado do trabalho. O operário tornou-se um átomo econômico que dança segundo a música da administração automatizada. Não tem parte na planificação do processo de trabalho, não partilha de seu resultado, e raramente tem contato com o produto total. O administrador, por sua vez, está em contato com o produto total, mas alienado dêle como coisa concreta, útil. Sua finalidade é empregar lucrativamente o capital investido por outros. A mercadoria é apenas a materialização do capital e não algo que como entidade concreta, tenha importância para êle. O administrador tornou-se um burocrata que trata das coisas, dos 83 números e dos sêres humanos como simples objetos de sua atividade. Sua manipulação é chamada de preocupação comm as relações humanas, embora o administrador trate das relações mais inumanas, entre autômatos que se tornaram abstrações. Nosso consumo é igualmente alienado, determinado pelos refrões publicitários e não pelas nossas necessidades reais, nosso paladar, nossos olhos ou nossos ouvidos. A falta de sentido e a alienação do trabalho resultam no desejo de ociosidade completa. O homem odeia sua vida de trabalho porque ela o faz sentir-se prisioneiro e equivocado. Seu ideal se torna a ociosidade absoluta – na qual, êle não tenha de fazer nada, onde tudo se processa de acôrdo com um refrão publicitário: “Você aperta o botão, nós fazemos o resto.” Essa tendência é reforçada pelo tipo de consumo necessário para a expansão do mercado interno, levando a um princípio que Huxley expressou sucintamente em seu Brave New World. Uma das afirmações que estamos habituados a ouvir desde a infância é: “não deixe para amanhã o que é possível fazer hoje”. Se eu não adiar a satisfação do meu desejo (e estou condicionado a desejar apenas o que posso obter), não tenho conflitos, nem dúvidas; nenhuma decisão a tomar; jamais estarei a sós comigo mesmo, porque estou sempre ocupado – trabalhando ou me divertindo. Não tenho necessidade de estar consciente de mim, pois estou constantemente absorvido pelo consumo. Sou um sistema de desejos e satisfações; tenho de trabalhar para satisfazer meus desejos – e êstes são constantemente estimulados e dirigidos pela máquina econômica. Alegamos serem nossos os objetivos da tradição judaicocristã: o amor de Deus e o de nossos vizinhos. Ouvimos dizer que atravessamos um período de promissora renascença religiosa. Nada poderia estar mais longe da verdade. Usamos símbolos pertencentes a uma tradição religiosa autêntica e nos transformamos em fórmulas, que servem às finalidades do homem alienado. A religião tornou-se uma concha vazia, foi transformada num sistema de auto-serviço para aumentar a nossa capacidade de êxito. Deus tornou-se um sócio nos negócios. A Fôrça do Pensamento Positivo é a sucessora de Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas. 84 O amor do homem é um fenômeno raro, também. Autômatos não amam, homens alienados não se importam com o amor. O que os peritos em amor e os conselheiros matrimoniais louvam é uma relação entre duas pessoas que se manipulam com as técnicas adequadas e cujo amor é essencialmente um egoísmo a dois – um abrigo contra uma solidão que sem isso seria insuportável. O que devemos, então, esperar do futuro? Se ignorarmos os pensamentos que são apenas os produtos de nossos desejos, receio que tenhamos de admitir que a possibilidade mais provável é ainda a de que a discrepância entre a inteligência técnica e a razão levará o mundo a uma guerra atômica. A conseqüência mais provável dessa guerra é a destruição da civilização industrial e o regresso do mundo ao nível agrário primitivo. Ou, se a destruição não fôr tão completa quanto muitos especialistas no assunto supõem, o resultado será a necessidade de que o vencedor organize e domine todo o mundo. Isso só poderia ocorrer num Estado centralizado baseado na fôrça, e pouca diferença faria se Washington ou Moscou fossem a sede de tal govêrno. Infelizmente, nem mesmo a superação do perigo de guerra encerra a promessa de um futuro brilhante. Na evolução do capitalismo e do comunismo, como a imaginamos nos próximos cinqüenta ou cem anos, os processos que levam à alienação humana continuarão. Ambos os sistemas se estão transformando em sociedades administrativas, com habitantes bem alimentados, bem vestidos, com os desejos satisfeitos e sem ter anseios que não possam ser atendidos. Os homens são, cada vez mais, autômatos que fazem máquinas que agem como homens e produzem homens que agem como máquinas; sua razão deteriora, enquanto sua inteligência aumenta, criando com isso a perigosa situação de dar aos homens um formidável poderio material, sem a prudência de saber usá-lo. Apesar do aumento crescente da produção e do confôrto, o homem perde dia a dia o senso de si mesmo, passando a sentir que sua vida é sem sentido, embora êsse sentimento seja, em grande parte, inconsciente. No século XIX o problema era a morte de Deus; no século XX, o problema é a morte do homem. No século XIX a inumanidade significava crueldade; 85 no século XX, significa a alienação esquizóide. O perigo do passado era tornarem-se os homens escravos. O perigo do futuro é que êles se podem tornar autômatos. É certo que os autômatos não se rebelam, mas, levando em conta a natureza do homem, êle não pode viver como um robô e continuar mentalmente sadio – destrúirá o mundo e a si mesmo, porque já não poderá suportar a monotonia de uma vida sem sentido. Qual a alternativa à guerra e ao automatismo? A resposta talvez pudesse ser dada, de forma fundamental, modificando- se a frase de Emerson “As coisas dominam o homem e governam a humanidade”, e dizendo-se “Coloquemos a humanidade no domínio, para que possa governar as coisas”. É outra forma de dizer que o homem deve superar a alienação que faz dêle um adorador de ídolos, impotente e irracional. Isso significa, na esfera psicológica, que tem de superar as atitudes mercantis e passivas, que hoje o dominam, e escolher um caminho maduro e produtivo. Deve readquirir o senso do eu, deve ser capaz de amar e tornar seu trabalho uma atividade concreta e com sentido. Deve sair da orientação materialista e chegar a um nível em que os valôres espirituais – amor, verdade e justiça – se tornem realmente fundamentais. Mas qualquer tentativa de modificar apenas um aspecto da vida, o homem ou o espiritual, está destinada ao fracasso. Na verdade, o progresso que ocorre apenas numa esfera destrói o progresso em tôdas as esferas. O evangelho que se ocupa apenas da salvação espiritual levou à Igreja Católica Romana. A Revolução Francesa, com sua preocupação exclusiva com a reforma política, levou a Robespierre e Napoleão. O socialismo, na medida em que se ocupou apenas da transformação econômica, levou ao stalinismo. Aplicando o princípio da transformação simultânea a tôdas as esferas de vida, devemos pensar nas modificações econômicas e políticas necessárias à superação da realidade psicológica da alienação. Devemos conservar os progressos tecnológicos da produção em grande escala, com a máquina e a automatização. Mas devemos descentralizar o trabalho e o Estado, dando-lhes proporções humanas, admitindo a centralização apenas na medida necessária às exigencias da indústria. Na esfera econômica, precisamos de uma democracia industrial, 86 um socialismo democrático caracterizado pela coadministração por todos os que trabalham numa emprêsa, a fim de permitir-lhes uma participação ativa e responsável. É possível encontrar formas de participação que permitam essa realização. Na esfera política, podemos estabelecer a democracia efetiva criando milhares de grupos de contato direto, que sejam bem informados, realizem discussões sérias e cujas decisões sejam integradas numa nova “câmara baixa”. O renascimento cultural terá de combinar um trabalho educativo para os jovens, a educação de adultos e um nôvo sistema de arte popular e ritual secular, através de tôda a nação. Tal como o homem primitivo estava impotente frente às fôrças naturais, também o homem moderno se encontra desarvorado frente às forças sociais e econômicas por êle mesmo criadas. Adora a obra de suas mãos, curva-se aos novos ídolos, e não obstante jura por Deus que lhe ordenou a destruição de todos os ídolos. O homem só pode proteger-se das consequencias de sua própria loucura criando uma sociedade sadia que se conforme às suas necessidades, necessidades essas que devem ter raízes nas próprias condições da existência. Uma sociedade na qual os homens estabeleçam entre si relações de amor, na qual se liguem pelos laços de fraternidade e solidariedade, ao invés dos laços de sangue e terra; uma sociedade que lhes dê a possibilidade de transcender a Natureza, criando e não destruindo, na qual todos atinjam a um sentido do eu, pela consciência de sua fôrça e não pela conformidade, na qual exista um sistema de orientação e dedicação sem lhe exigir a deformação da realidade e a adoração dos ídolos. A construção dessa sociedade significa um passo à frente, significa o fim da história “humanóide”, a fase na qual o homem ainda não chegou a ser plenamente humano. Não representará o “fim dos dias”, a “conclusão”, o estado de harmonia perfeita no qual não há problemas nem conflitos. Pelo contrário, é destino do homem ter sua existência perturbada pelas contradições que tem de enfrentar sem poder jamais resolvê-las. Quando tiver superado o estado primitivo do sacrifício humano, seja na forma ritual dos sacrifícios humanos dos astecas ou na forma secular da guerra, quando fôr capaz de regular suas relações com a Natureza razoàvelmente, e não cegamente, 87 quando as coisas se tiverem realmente tornado servas, e não ídolos, êle enfrentará problemas e conflitos realmente humanos, terá de ser corajoso, aventureiro, imaginativo, capaz de sofrimento e de alegria, mas sua fôrça estará a serviço da vida, não a serviço da morte. A nova fase da história humana, se chegar a ocorrer, será um nôvo comêço, e não um fim. 88 SEXO E CARÁTER A TESE da existência de diferenças inatas entre os dois sexos, que resultam necessàriamente em diferenças de caráter, é muito antiga. O Velho Testamento estabelece, como peculiaridade e maldição da mulher, que seu “desejo seja apenas para teu marido e êle te dominará”, e do homem que terá de trabalhar em suor e sofrimento. Mas até mesmo a afirmativa bíblica encerra, virtualmente, a tese oposta: o homem foi criado à semelhança de Deus, e sómente como punição pela desobediência original – homens e mulheres foram criados como iguais, em relação à sua responsabilidade moral – recebeu a maldição do conflito mútuo e da diferença eterna. Os dois aspectos, o da diferença básica e o da identidade básica, foram repetidos através dos séculos – certas épocas ou escolas filosóficas ressaltam uma tese, outras a tese oposta. O problema assumiu maior significação nas discussões filosóficas e políticas dos séculos XVIII e XIX. Representantes da filosofia do Iluminismo afirmaram não haver distinções inatas entre os sexos (l’âme n’a pas de sexe) ; que as diferenças porventura existentes eram condicionadas pela educação, eram - como hoje diríamos – diferenças culturais. Os filósofos românticos de princípios do século XIX, por sua vez, ressaltavam o ponto oposto. Analisaram a diversidade de caráter entre homens e mulheres, e disseram que esta era, fundamentalmente, conseqüência de diferenças biológicas e fisiológicas inatas. Afirmaram que tais diferenças de caráter existiriam em qualquer cultura concebível. A despeito dos méritos das respectivas argumentações e a análise dos românticos teve, freqüentemente, profundidade. 89 Ambos encerravam uma implicação política. Os filósofos do Iluminismo, particularmente os franceses, queriam ressaltar a igualdade social, e até certo ponto também política, entre homem e mulher. Acentuaram a falta de diferenças inatas como argumento a seu favor. Os românticos, que eram reacionários políticos, usaram a análise da essência (Wesen) da natureza do homem como prova da necessidade da desigualdade política e social. Embora atribuíssem qualidades muito admiráveis “à mulher”, insistiam em que suas características a tornavam incapaz de participar na vida social e política em pé de igualdade com os homens. A luta política pela igualdade feminina não terminou no século XIX, nem se concluiu então a discussão teórica sôbre o caráter inato ou o caráter cultural dessas diferenças. Na Psicologia moderna, Freud tornou-se o representante mais destacado do ponto de vista dos românticos. Enquanto o argumento dêstes fôra elaborado em linguagem filosófica, o de Freud se baseava na observação científica dos pacientes pela Psicanálise. Supunha êle que as diferenças anatômicas entre os sexos era a causa de diferenças de caráter inalteráveis. “A anatomia é a sua desgraça”, diz êle da mulher, parafraseando uma afirmação de Napoleão. Segundo Freud, a menina, ao descobrir que não tem o órgão genital masculino, fica profundamente chocada e impressionada, sentindo que lhe falta alguma coisa, e inveja o homem por ter algo que o destino lhe negou, e, ainda, que no curso normal de sua evolução ela tentará superar o sentimento de inferioridade e inveja substituindo o órgão genital masculino por outras coisas – marido, filhos, bens. No caso de uma evolução neurótica, ela não conseguirá realizar essas substituições satisfatórias. Continua invejando o homem, não abandona o desejo de ser homem, torna-se homossexual ou odeia os homens, ou busca compensações culturalmente admitidas. Até mesmo no caso de evolução normal, a qualidade trágica da sorte feminina jamais desaparece totalmente – persegue-a o desejo de obter algo que permanece inalcançável por tôda a vida. Embora os psicanalistas ortodoxos conservassem essa teoria de Freud como uma das pedras fundamentais de seu sistema psicológico, outro grupo de analistas, culturalmente orientados, 90 discutiu as descobertas de Freud. Mostrou os erros, tanto clínicos como teóricos, do raciocínio freudiano, assinalando as experiências culturais e pessoais das mulheres na sociedade moderna, que provocaram os traços de caráter explicados por êle em têrmos biológicos. A opinião dêsse grupo de psicanalistas teve confirmação nas descobertas dos antropólogos. Não obstante, existe o perigo de que certos adeptos das teorias antropológica progressista e psicanalítica recuem a ponto de negar totalmente que as diferenças biológicas tenham qualquer efeito na estrutura do caráter. Podem ser levados a isso pela mesma motivação encontrada nos representantes do Iluminismo francês. Como a ênfase sôbre as diferenças inatas é usada como argumento pelos inimigos da igualdade da mulher, parece necessário provar que há apenas causas culturais para qualquer diferença que se possa observar empiricamente. É importante reconhecer que nessa controvérsia existe uma importante questão filosófica. A tendência para negar qualquer diferença de caráter entre os sexos pode ser provocada pela aceitação implícita de uma das premissas da filosofia antiigualitária: a fim de pretender a igualdade, é necessário provar que não há diferenças de caráter entre os sexos, exceto as provocadas pelas condições sociais existentes. Um dos grupos fala de diferenças, ao passo que os reacionários realmente pretendem dizer deficiências e, mais especificamente, as deficiências que tornam impossível partilhar da plena igualdade com o grupo dominante. Assim, a pretensa inteligência limitada e a falta de faculdade de organização e de juízo crítico ou abstrato das mulheres foram alegadas como razões para impedir sua plena igualdade com os homens. Uma escola de pensamento afirmava que elas possuem intuição, amor, ete., mas que essas qualidades não pareciam torná-las mais capazes de enfrentar as tarefas da sociedade moderna. O mesmo se diz, com freqüência, das minorias como a dos negros ou judeus. Dessa forma, o psicólogo e o antropólogo foram levados à necessidade de demonstrar que entre os sexos ou grupos raciais não havia diferenças fundamentais capazes de impedir-lhes a participar da plena igualdade. Devido a essa posição, os pensadores liberais se inclinaram a reduzir ao mínimo a existência de quaisquer distinções. 91 Embora os liberais provassem que não existem diferenças capazes de justificar a desigualdade política, econômica e social, deixaram-se levar a uma posição defensiva estratègicamente desfavorável. Para provar o fato de que não existem diferenças socialmente prejudiciais não é necessário sustentar a inexistência de diferenças. A questão será, então, adequadamente, a seguinte: qual a utilização dada às diferenças, reais ou súpostas, e a que finalidades políticas servem? Admitindo que as mulheres tenham certas distinções de caráter em relação aos homens, que significa isso? Nossa tese é a de que certas distinções biológicas provocam outras distinções de caráter; que tais diferenças se fundem com as provocadas diretamente pelos fatôres sociais; que êstes são muito mais fortes em seu efeito e podem aumentar, eliminar ou inverter diferenças de origem biológica; e que, finalmente, as diferenças de caráter entre os sexos, quando não determinadas diretamente pela cultura, jamais constituem diferenças de valor. Em outras palavras, o caráter tipico dos homens e das mulheres na cultura ocidental é determinado pelos seus respectivos papéis sociais, mas há uma coloração nesse caráter que resulta das diferenças de sexo. Tal coloração é insignificante, em relação às diferenças de origem social, mas não deve ser ignorada. A suposição implícita em grande parte do pensamento reacionário é a de que a igualdade pressupõe uma ausência de diferenças entre pessoas e grupos sociais. Elas evidentemente existem, em relação a quase tudo o que importa na vida, e por isso a conclusão é que não pode haver igualdade. Quando, inversamente, os liberais negam o fato de haver grandes diferenças nos dons mentais e físicos, e condições acidentais de personalidade favoráveis ou desfavoráveis apenas contribuem para que seus adversários aparentem ter, aos olhos do homem comum, razão. O conceito de igualdade, tal como se desenvolveu na tradição judaico-cristã e na tradição progressista moderna, significa que todos os homens são iguais na capacidade humana que se relaciona com o gozo da liberdade e felicidade. Significa, ainda, que como conseqüência política dessa igualdade básica nenhum homem será usado como meio para as finalidades de outro homem, e nenhum grupo será 92 meio para as finalidades de outro grupo. Todo homem é um universo em si, e sómente para seus objetivos. Sua finalidade é a realização de seu ser, incluindo as peculiaridades mesmas que o caracterizam e distinguem dos outros. Assim, a igualdade é a base do pleno desenvolvimento das diferenças, e resulta no desenvolvimento da individualidade. Embora existam várias diferenças biológicas cuja importância para as diferenças de caráter entre homem e mulher bem poderíamos examinar, êste ensaio apenas se ocupará principalmente de uma delas. Nosso objetivo, aqui, não é tanto examinar a totalidade do problema das diferenças de caráter entre os sexos mas ilustrar a tese geral. Vamos focalizar principalmente os papéis do homem e da mulher nas relações sexuais e procurar mostrar que essa diferença resulta em certas diferenças de caráter – que apenas dão côr às principais distinções provocadas pelos papéis sociais diversos do homem e da mulher. A fim de funcionar sexualmente, o homem precisa de ereção e de ser capaz de conservá-la durante a relação até atingir o orgasmo. A fim de satisfazer a mulher, deve ser capaz de conservar a ereção por um período suficientemente prolongado para que também ela tenha o orgasmo. Isso significa que para satisfazer sexualmente a mulher o homem tem de demonstrar sua capacidade de ter e manter a ereção. A mulher, por sua vez, para satisfazer sexualmente o homem nada precisa demonstrar. Na verdade, sua excitação pode aumentar o prazer masculino. Certas alterações físicas nos seus órgãos sexuais podem tornar mais fáceis as relações. Como só levamos em conta as reações puramente sexuais e não as sutis reações psíquicas de personalidades distintas, a realidade é que o homem precisa da ereção para satisfazer a mulher; a mulher de nada precisa para satisfazer o homem, a não ser certa boa-vontade. E, falando de boa-vontade, é importante notar que a capacidade que tem a mulher de satisfazer sexualmente o homem depende da sua vontade – é uma decisão consciente que pode tomar no momento que desejar. A capacidade masculina, porém, não é simplesmente uma função de sua vontade. Na realidade, êle pode ter desejo sexual e ereção contra a vontade, e pode ser impotente apesar de um ardente 93 desejo em contrário. Além disso, da parte do homem a inabilidade de funcionar é um fato que não pode ser disfarçado. A falta de reação total ou parcial na mulher, embora freqüentemente percebida pelo homem, não é tão evidente, permitindo uma grande margem de disfarce. Se a mulher o consente, o homem pode ter certeza de satisfazer-se sempre que desejar. Mas a situação da mulher é totalmente diferente; o mais ardente desejo sexual de sua parte não levará à satisfação, a menos que o homem tenha também por ela um desejo suficiente para provocar a ereção. E, mesmo durante o ato sexual, a mulher depende, para sua plena satisfação, da capacidade masculina de levá-la ao orgasmo. Assim, para satisfazer sua companheira o homem tem de provar alguma coisa; a mulher, não. Dessa diferença nos respectivos papéis sexuais segue-se uma outra – a diferença nas suas ansiedades específicas em relação à função sexual. A ansiedade está localizada no ponto mesmo em que as posições do homem e da mulher são vulneráveis. A posição do homem é vulnerável na medida em que tem de provar alguma coisa, ou seja, na medida em que é potencialmente capaz de falhar. Para êle, as relações sexuais têm sempre a côr de uma prova, de um exame. Sua ansiedade específica é a de falhar. Mêdo da castração é o caso extremo – mêdo de tornar-se orgânicamente, e portanto permanentemente, incapaz de funcionar. A vulnerabilidade da mulher, por sua vez, está na dependência do homem; o elemento de insegurança relacionado com suas funções sexuais está não em falhar, mas em não se realizar, em se frustrar, em não ter contrôle completo do processo que leva à satísfação sexual. Não é de surpreender, assim, que as ansiedades do homem e da mulher se refiram a esferas diferentes – a do homem ao seu ego, seu prestígio, seu valor aos olhos da mulher; a da mulher, à sua satisfação e prazer sexual.60 O leitor poderá indagar: não são essas ansiedades características apenas das personalidades neuróticas? Não tem o homem 94 normal certeza de sua potência? Não tem a mulher normal confiança em seu companheiro? Não se trata, no caso, do homem moderno, altamente nervoso e sexualmente inseguro? Não estariam o homem e a mulher das cavernas, com sua sexualidade primitiva e não estragada, livres dessas dúvidas e ansiedades? À primeira vista, assim poderia parecer. O homem que se preocupa constantemente com sua potência representa certo tipo de personalidade neurótica, tal como a mulher que está Distinção semelhante, em relação às diferenças nos temores sexuais das crianças, é estabelecida por Karen Horney, “Die Angst vor der Frau”, Zeitsche Psychoanal. XIII (1932), 1-18. 60 constantemente temerosa de ficar insatisfeita, ou que sofre com a sua dependência. Como ocorre freqüentemente, no caso a diferença entre o “neurótico” e o “normal” é freqüentemente de grau e consciencia, e não de essência. O que no neurótico é uma ansiedade consciente e permanente, no chamado homem normal é uma ansiedade relativamente ignorada e quantitativamente insignificante. O mesmo ocorre na mulher. Além disso, nos indivíduos normais, a ansiedade não é despertada por certos incidentes que sempre provocam ansiedade manifesta nos neuróticos. O homem normal não tem dúvida de sua potência. A mulher normal não tem mêdo de ser sexualmente frustrada pelo homem que escolheu para companheiro. A escolha de um homem em quem possa confiar sexualmente é parte essencial de seu instinto sexual sadio. Mas isso não altera o fato de que potencialmente o homem pode falhar, e a mulher, jamais. A mulher depende do desejo do homem, e não o homem do desejo feminino. Há ainda outro elemento significativo, para determinar a presença de ansiedade, e de ansiedades diferentes, no homem e na mulher normais. A diferença entre sexos é a base da mais antiga e elementar divisão da humanidade em grupos separados. Homens e mulheres precisam uns dos outros para a manutenção da raça e da família, bem como para a satisfação de seus desejos sexuais. Mas em qualquer situação na qual os dois grupos diferentes se necessitam, haverá não só elementos de harmonia, cooperação e satisfação mútua, mas também de luta e desarmonia. A relação sexual entre os sexos dificilmente poderia estar lívre de antagonismo e de hostilidade potenciais. Os homens e as 95 mulheres têm, juntamente com a capacidade de amar-se, uma capacidade semelhante de odiar. Em qualquer relação entre homem e mulher, o elemento de antagonismo é uma potencialidade, e dessa potencialidade mesma o elemento de ansiedade surge por vêzes. O ser amado pode transformar-se em inimigo, e nesse caso os pontos vulneráveis do homem e da mulher, respectivamente, são ameaçados. O tipo de ansiedade e ameaça, porém, é diferente no homem e na mulher. Se a principal ansiedade do homem é a de falhar, de não executar o que dêle se espera, o impulso destinado a protegê-lo dessa ansiedade é o desejo de prestígio. O homem está profundamente imbuído do anseio de provar constantemente, a si e à mulher que ama, a tôdas as outras mulheres e a todos os outros homens, que corresponde a qualquer expectativa que se mantenha em relação a êle. Procura proteção contra o mêdo de falhar sexualmente, competindo em tôdas as outras esferas da vida nas quais o poder, a fôrça física e a inteligência são úteis para assegurar o êxito. Intimamente relacionada com êsse desejo de prestígio está a sua atitude de competição em relação aos outros homens. Tendo mêdo de um possível fracasso, êle tende a provar que é melhor do que qualquer outro homem. O Dom Juan o faz diretamente no âmbito sexual, o homem médio o faz indiretamente – matando maior número de inimigos, caçando maior número de búfalos, ganhando mais dinheiro ou tendo maior êxito em outros setores do que seus concorrentes. O moderno sistema social e econômico baseia-se nos princípios da concorrência e do êxito. As ideologias louvam-lhe o valor, e por essas e outras circunstâncias o anseio de prestígio e competição está firmemente implantado no ser humano médio que vive na cultura ocidental. Mesmo que não houvesse diferenças nos respectivos papéis sexuais, essas ansiedades existiriam nos homens e nas mulheres, devido aos fatôres sociais. O impacto dessas fontes sociais é tão grande que podemos duvidar se, em têrmos quantitativos, há qualquer predomínio acentuado do anseio de prestígio no homem, em conseqüência dos fatôres sexuais que focalizamos. A questão de primordial importância, porém, não são as proporções em que a concorrência é aumentada pelas fontes sexuais, mas sim a necessidade de 96 reconhecer-se a presença de outros fatôres, além do social, no estímulo à competição. A busca masculina de prestígio lança alguma luz sôbre a qualidade específica da vaidade do homem. Afirma-se, geralmente, ser a mulher mais vaidosa do que o homem. Embora o inverso possa ser verdade, o que importa não é a diferença em quantidade, mas sim na natureza da vaidade. A característica essencial da vaidade masculina é o exibicionismo, a demonstração do bom “executor” que êle é. O homem anseia por afirmar que não tem mêdo de falhar. Sua vaidade parece colorir tôda a sua atividade. Provàvelmente não haverá nenhuma realização do homem, desde o ato do amor até o ato mais corajoso numa batalha ou no pensamento, que não esteja permeado, em proporções diferentes, dessa vaidade típica masculina. Outro aspecto do anseio que tem o homem de prestígio é sua sensibilidade ao ridículo.Até mesmo o covarde pode tornar-se herói pelo mêdo de ser ridicularizado pelas mulheres, e o receio de perder a vida pode ser menor do que o mêdo ao ridículo. Na verdade, isso é típico da essência do heroísmo masculino, e que não é maior do que o heroísmo de que são capazes as mulheres, mas sim diferente, por estar impregnado da vaidade masculina. Outro resultado da precária posição do homem em relação à mulher e seu mêdo do ridículo feminino é o ódio potencial que experimenta por ela. Êsse ódio contribui para um anseio que tem também uma função defensiva: dominar a mulher, ter poder sôbre ela, fazê-la sentir-se fraca e inferior. Se o homem consegue isso, não precisa ter mêdo dela. Se ela tiver mêdo dêle; mêdo de ser morta, espancada, ou passar fome – não poderá ridicularizá-lo. O poder sôbre uma pessoa não depende da intensidade da paixão experimentada nem do funcionamento da produtividade sexual e emocional. O poder depende de fatôres mantidos com tal segurança que jamais possa surgir uma dúvida sôbre a capacidade ou a competência. Incidentalmente, a promessa de poder sôbre a mulher é o conforto que o mito bíblico, de tendências patriarcais, oferece ao homem, ainda quando Deus o amaldiçoa. Voltando ao problema da vaidade, afirmamos que a vaidade feminina difere, qualitativamente, da vaidade masculina. 97 Esta se resume em mostrar o que o homem pode fazer, em provar que jamais falha; a vaidade da mulher é caracterizada essencialmente pela necessidade de atrair e de provar a si mesma que é capaz de atrair. Na verdade, o homem precisa exercer atração, sexualmente, sôbre a mulher, a fim de conquistá-la. Isso é particularmente exato numa cultura em que gostos e sentimentos distintos estão implícitos na atração sexual. Mas há outras formas pelas quais o homem pode conquistar a mulher e levá-la a ser sua companheira sexual: simples fôrça física ou, o que é mais significativo, poder social e riqueza. Suas oportunidades de satisfação sexual não dependem exclusivamente da capacidade de exercer atração sexual. Nem a fôrça nem as promessas podem dar potência sexual a um homem. O esfôrço feminino para atrair é uma exigência do seu papel sexual, e sua vaidade ou preocupação com a aparência resulta disso. O mêdo feminino da dependência, ou frustração, de um papel que a obriga a esperar freqüentemente leva a um desejo que Freud acentuou bastante: o de ter o órgão genital masculino.61 A raiz disso, porém, não está em sentir a mulher, primordialmente, que lhe falta alguma coisa, que ela é inferior ao homem por falta de um pênis. Embora em muitos casos haja outras razões, o desejo feminino de ter um penis surge freqüentemente do anseio de não ser dependente, de não ter suas atividades limitadas, de não ficar exposta ao perigo da frustração. Tal como o desejo masculino de ser mulher pode Cf. Clara Thompson, “What is Penis Envy?”, e a discussão que se segue, por Janet Rioch, Proceedings of the Assoemition for the Advancement of Psychoanalysis, Boston Meeting, 1942. 61 resultar dessa vontade de se ver livre do pêso da prova, o desejo feminino de ter um pênis pode resultar do anseio de superar a própria dependência. E também, em circunstâncias especiais, mas não raras, não sómente o pênis serve como um símbolo de independência, mas, na satisfação das tendências sádico-agressivas, também simboliza uma arma com a qual ferir os homens ou as outras mulheres.62 98 Se a principal arma do homem contra a mulher é seu poder físico e social sôbre ela, então a principal arma da mulher é a possibilidade de ridicularizar o homem. A forma mais radical disso é tornar o homem impotente. Há muitas formas, sutis e cruas, pelas quais a mulher faz isso. Tais formas vão de uma expectativa explícita ou implícita de um fracasso até a frieza e a uma espécie de espasmo vaginal que torna a cópula fisicamente impossível. O desejo de castrar o homem não parece desempenhar o papel sumamente importante que Freud lhe atribui. A castração é, na verdade, uma forma de tornar o homem impotente e surge freqüentemente quando as tendências destruidoras e sádicas são acentuadas. Mas o principal objetivo da hostilidade feminina parece ser não o dano fisico, mas funcional, a interferência na capacidade masculina de realizar o ato. A hostilidade específica do homem é sobrepor-se pela fôrça física, pela fôrça política ou econômica; a da mulher é solapar, pelo ridículo e pelo desprêzo. A mulher pode ter filhos, o homem não. Dêsse ponto de vista patriarcal, Freud supõe, caracteristicamente, que a mulher inveja o órgão masculino, sem observar a possibilidade de que os homens sintam inveja da capacidade feminina de ter filhos. Essa interpretação unilateral não vem apenas da premissa masculina de que os homens são superiores, mas também resulta da atitude de uma civilização altamente técnica e industrial, na qual a produtividade natural não é muito Na homossexualidade feminina, um aspecto significativo do quadro parece ser a combinação da tendência a ser ativa, em contraste com o papel dependente passivo, juntamente com as tendências destruidoras. 62 valorizada. Não obstante, se considerarmos os períodos iniciais da história humana, quando a vida dependia essencialmente da produtividade na Natureza, e não da produtividade técnica, o fato de partilharem as mulheres êsse dom com a terra e com as fêmeas dos animais deve ter sido extremamente impressionante. O homem é estéril, em têrmos puramente naturalistas. Numa cultura em que a principal ênfase recai sôbre a produtividade natural, seria de supor que o homem se sentisse inferior à mulher, especialmente quando seu papel na produção dos filhos não era compreendido. Podemos supor que os homens admiravam as mulheres por essa capacidade que lhes faltava, que estavam maravilhados com ela e a invejavam. O homem não podia produzir, podia apenas matar animais e comê-los, ou matar inimigos para ter segurança, ou assimilar-lhes a fôrça através de algum processo mágico. 99 Sem discutir a situação dêsses fatôres nas comunidades exclusivamente agrárias, examinaremos ràpidamente os efeitos de algumas importantes transformações históricas. Um dêsses feitos mais significativos foi a crescente aplicação da técnica à produção. A inteligência foi usada, cada vez mais, para aperfeiçoar e aumentar os vários meios de vida que originalmente dependiam apenas das dádivas da Natureza. Embora as mulheres tivessem um dom original que as tornava superiores aos homens, êstes a princípio compensaram tal falta usando sua habilidade na destruição, e mais tarde empregando seu intelecto como base da produtividade técnica. Em suas fases iniciais, isso se relacionava intimamente com a mágica; mais tarde, o homem, pela fôrça de seu pensamento, produziu coisas materiais. Sua capacidade de produção técnica superou com o tempo a dependência da produção natural. Ao invés de desenvolvermos mais êsse ponto, remetemos o leitor simplesmente aos escritos de Bachofen, Morgan e Briffault, que reuniram e analisaram brilhantemente o material antropológico que, embora não lhes comprove as teses, sugere fortemente que em várias fases da história primitiva existiram certas culturas nas quais a organização social se centralizava em tôrno da mãe, e nas quais as deusas maternais, identificadas com a produtividade da Natureza, eram o centro das idéias religiosas do homem.63 Uma ilustração bastará. O mito babilônico da criação começa com a existência de uma deusa-mãe – Tiamate – que governa o universo. Seu domínio, porém, é ameaçado pelos seus filhos, que planejam rebelar-se e derrubá-la. Como líder dessa luta buscam alguém que possa igualá-la em fôrça. Chegam, finalmente, a um acôrdo em relação a Marduque, mas antes da escolha definitiva exigem que se submeta a uma prova. Qual prova? Apresentara-lhe um pano, que tem de, “com o poder de sua bôca”, fazer desaparecer e reaparecer de nôvo, com uma palavra. Com uma palavra o líder escolhido destrói o pano e com uma palavra o cria novamente. Sua liderança 100 é confirmada. Derrota a deusa-mãe e com seu corpo cria o céu e a terra. Qual o sentido dessa prova? Para que o deus masculino iguale a fôrça da deusa, necessita da qualidade que a faz superior – o poder de criar. A prova destina-se a confirmar que êle tem êsse poder, bem como o poder caracteristicamente masculino de destruir, a forma pela qual o homem tradicionalmente modificou a Natureza. Êle primeiro destrói, depois recria, um objeto material – mas o faz com sua palavra e não, como a mulher, com o seu ventre. A produtividade natural é substituída pela mágica do pensamento e dos processos verbais. O mito da criação bíblico começa onde o mito babilônico termina. Quase todos os traços da supremacia da deusa já Ver também Frieda Fromm-Reichmann, “Notes on the Mother Role in the Family Group”, Bulletin of the Menninger Clinic, IV (1940), 132-148. 63 estão eliminados. A criação começa com a mágica de Deus, a mágica da criação pela palavra. Repete-se o tema da criação masculina, e, contràriamente à realidade, o homem não nasce da mulher, e sim a mulher é feita do homem.64 O mito bíblico é uma ode ao triunfo do homem, negando que as mulheres façam nascer os homens, e invertendo as relações naturais. Na maldição de Deus, temos novamente a afirmação da supremacia do homem. A função criadora da mulher é reconhecida, mas terá de ser exercida em sofrimento. O homem destina-se ao trabalho, ou seja, à produção, e assim substitui a produtividade original da mulher, mesmo que isso também tenha de ser feito com suor e lágrimas. Examinamos, com alguma minúcia, o fenômeno dos remanescentes matriarcais na história da religião para ilustrar um ponto importante neste contexto – o fato de que a mulher tem a capacidade da produção natural que falta ao homem, estéril nesse nível. Em certos períodos da história essa superioridade da mulher é admitida conscientemente; em outros tôda a ênfase recai sôbre a produtividade mágica e técnica do homem. Não obstante, parece que inconscientemente, ainda hoje, essa diferença não perdeu totalmente o sentido; no recôndito do 101 homem existe uma admiração pela mulher, por essa capacidade que falta a êle, e que inveja e teme. Em seu caráter há a necessidade de um esfôrço permanente de compensação dessa falta; e, no recôndito da mulher, há um sentimento de superioridade em relação ao homem, pela sua “esterilidade”. Até agora, tratamos certas distinções de caráter entre homens e mulheres, resultantes de suas diferenças sexuais. Significa isso que os traços como a dependência excessiva, de um lado, e o anseio de prestígio e competição, de outro, sejam causados essencialmente pelas diferenças de sexo? Devem “o” homem e Compara-se o mito grego de Atena nascendo da cabeça de Zeus, e a interpretação dêsse mito, bem como dos remanescentes da religião matriarcal na mitologia grega, feita por Bachofen e Otto. 64 “a” mulher exibir êsses traços, de forma que, se tiverem traços característicos do outro sexo, isso se deva explicar pela presença de um componente homossexual? Não admitimos essas conclusões. A diferença sexual influi na personalidade do homem e da mulher médios, e essa influência pode ser comparada à clave ou tom em que uma melodia é escrita, e não à própria melodia. Além disso, referese sómente ao homem e à mulher médios, e varia em cada pessoa. Essas diferenças “naturais” fundem-se com as diferenças provocadas pela cultura específica em que vive a pessoa. Hoje, por exemplo, o anseio de prestígio e sucesso pelo homem tem muito menos relação com os papéis sexuais do que com os papéis sociais. A sociedade é organizada de modo que necessàriamente produz tais anseios, tenham êles ou não suas raízes em peculiaridades masculinas ou femininas específicas. O anseio de prestígio, que encontramos no homem moderno desde o fim da Idade Média, é condicionado principalmente pelo sistema social e econômico, e não por seu papel sexual. O mesmo ocorre em relação à dependência das mulheres. Ocorre que os padrões culturais e formas sociais podem criar tendências ideológicas que correm paralelas a tendências idênticas enraizadas em fontes totalmente outras, como as diferenças sexuais. Se tal fôr o caso, as tendências paralelas se fundem numa só, como se idênticas fôssem as suas fontes. Os anseios de prestígio e dependência, embora produtos da cultura, determinam a totalidade da personalidade. A personalidade individual fica, assim, reduzida a um segmento da totalidade da gama das potencialidades humanas. Mas as diferenças de caráter, embora tenham raízes em diferenças naturais, 102 não são dêsse tipo. A razão disso está no fato de que mais profunda do que a diferença é a igualdade dos sexos, o fato de que homens e mulheres são, acima de tudo, sêres humanos partilhando das mesmas potencialidades, dos mesmos desejos e mesmos temores. O que existe nêles de diverso, decorrente de diferenças naturais, não representa uma diferença fundamental. Dá às suas personalidades, fundamentalmente semelhantes, pequenas diferenças de ênfase numa ou noutra tendência, surgidas empiricamente como um colorido. As distinções provocadas pelas diferenças sexuais não constituem base para atribuir ao homem e à mulher papéis diferentes em nenhuma sociedade. É evidente hoje que quaisquer diferenças existentes entre os sexos são relativamente insignificantes em relação às diferenças de caráter que encontramos entre pessoas do mesmo sexo. As diferenças sexuais não influenciam a capacidade de fazer trabalhos de qualquer espécie. É certo que realizações extremamente diversas podem ser coloridas, em sua qualidade, pelas características sexuais – um sexo pode ser mais bem dotado para determinado tipo de trabalho –, mas o mesmo ocorre quando os extrovertidos são comparados aos introvertidos, ou os tipos pícnicos aos tipos astênicos. Seria um êrro fatal julgar as distinções sociais, econômicas e políticas segundo essas características. Em comparação com as influências sociais gerais que formam os padrões masculinos ou femininos, é claro que as experiências individuais e, do ponto de vista social, acidentais são altamente significativas. Essas experiências pessoais, por sua vez, se fundem com os padrões culturais, reforçando – e por vêzes também reduzindo – seus efeitos. A influência dos fatôres sociais e pessoais excede em fôrça a dos fatôres “naturais” que examinamos aqui. Constitui uma triste ilustração dos tempos a necessidade que experimentamos de assinalar que as diferenças provocadas pelo papel masculino ou feminino não se prestam a qualquer julgamento de valor, do ponto de vista social ou moral. Em si, não são boas nem más, desejáveis ou desagradáveis. O mesmo traço surgirá como uma característica positiva numa personalidade quando certas condições existirem, e como característica negativa noutra personalidade, sob condições diferentes. 103 Assim, as formas negativas nas quais o temor masculino de falhar e sua necessidade de prestígio se podem manifestar são óbvias: vaidade, falta de seriedade, presunção, inconstância. Mas parece igualmente óbvio que os mesmos traços podem resultar em traços muito positivos: iniciativa, atividade, coragem. O mesmo se aplica às características femininas que descrevemos, e que podem resultar, como freqüentemente resultam, em sua incapacidade de “viver por si mesma” emocionalmente, pràticamente, intelectualmente. Mas que, em outras condições, podem fazer dela a fonte de paciência, intensidade de amor, encanto erótico, constância. O resultado positivo ou negativo de uma ou outra característica depende da estrutura do caráter, como um todo, da pessoa em questão. Entre os fatôres de personalidade que levam a um resultado positivo ou negativo estão, por exemplo, a ansiedade e a autoconfiança, a inclinação a destruir ou a construir. Mas não basta assinalar um ou dois dos traços mais isolados; sómente o todo da estrutura do caráter determina se uma das características masculinas ou femininas será um traço negativo ou positivo. Êsse princípio é idêntico ao que Klages introduziu em seu sistema grafológico. Qualquer traço isolado na escrita pode ter um sentido positivo ou negativo, de acôrdo com o que êle chama de forminiveau (nível da forma), da personalidade total. Se o caráter de uma pessoa pode ser considerado como “ordeiro”, isso pode significar uma de duas coisas: indica algo positivo, como seja, a pessoa não é desordenada, é capaz de organizar sua vida; ou indica algo negativo, ou seja, que a pessoa é pedante, estéril, sem iniciativa. Evidentemente, o traço de “ordeiro” está na raiz de ambas as conseqüências positivas ou negativas, mas o resultado é determinado por vários outros fatôres da personalidade total. Êstes, por sua vez, dependem das condições externas que tendem a restringir a vida ou a contribuir para um desenvolvimento generoso. 104 PSICANÁLISE: CIÊNCIA OU LINHA PARTIDÁRIA? A PSICANÁLISE freudiana é um tratamento para a cura da neurose e uma teoria científica sôbre a natureza do homem – e todos sabem disso. O que se sabe menos é que ela constitui também um “movimento”, com uma organização internacional de linhas rigorosamente hierárquicas, regras estritas para a inscrição e que por muitos anos foi dirigida por um comitê secreto, constituído de Freud e mais seis outros. Êsse movimento revelou, ocasionalmente e através de alguns de seus representantes, um fanatismo habitualmente só encontrado nas burocracias religiosas e políticas. A comparação mais próxima que se pode fazer da Psicanálise com outra teoria científica, no que se relaciona com o aspecto revolucionário, é o paralelo com a teoria de Darwin, cujo impacto sôbre o pensamento moderno foi ainda mais poderoso que o da Psicanálise. Mas existe um “movimento” darwinista que determine quem se pode chamar de “darwinista”, seja rigorosamente organizado e lute fanàticamente pela pureza da doutrina de Darwin? Desejo, primeiramente, demonstrar algumas expressões mais drásticas e infelizes dêsse espírito de “linha partidária”, em relação à biografia que Ernest Jones escreveu de Freud.65 Isso me parece indicado por duas razões: primeiro, o fanatismo partidário de Jones levou-o a grotescos ataques póstumos a Ernest Jones, The Life and Work of Sigmund Freud (Nova York, Basic Books, Ine., 1953-1957). 65 105 homens que discordaram de Freud; e, segundo, muitos comentaristas do livro aceitaram seus dados sem crítica ou indagação. A “revisão” que Jones faz da história introduz na ciência um método que até então só esperávamos encontrar na “história” stalinista. Os stalinistas chamam aos que discordaram e se rebelaram de “traidores” e “espiões” do capitalismo. O Dr. Jones faz o mesmo no àmbito psiquiátrico, afirmando que Rank e Ferenczi, os dois homens mais ligados a Freud e que mais tarde discordaram dêle sob certos aspectos, foram psicóticos durante muitos anos. A sugestão é de que sómente sua insanidade lhes explica o crime de discordarem de Freud e, no caso de Ferenczi, de que as queixas contra o tratamento áspero e intolerante que lhe deu Freud são provas, ipso facto, de psicose. Em primeiro lugar, devemos notar que por Muitos anos antes de ocorrer a “traição” de Rank ou Ferenczi houve no comitê secreto lutas e ciúmes violentos entre Abraham, Jones e, sob certo aspecto, também Eitingon, de um lado, e Rank e Ferenczi, do outro. Já em 1924, quando Rank publicou seu livro sôbre o trauma da natalidade, que Freud recebeu cordialmente na época, Abraham, “estimulado ao saber das críticas de Freud”, levantou a suspeita de que Rank seguia o caminho da “traição” de Jung. Embora Freud recebesse com tolerância, inicialmente, as novas teorias de Rank, mais tarde, provàvelmente sob a influência das intrigas e insinuações do grupo de Jones, e também devido à recusa de Rank em modificar suas linhas teóricas, rompeu com êle. Na época Freud disse que a neurose de Rank era responsável por alguns de seus desvios, tinha origem nos cinco anos posteriores à Primeira Guerra Mundial, e que durante quinze anos “não lhe ocorrera que Rank precisava ser analisado”. Mesmo que assim fôsse, Freud falou de neurose, e não de psicose. Jones sugere que Freud reprimiu o conhecimento de que Rank sofria de “psicose maníaco-depressiva”, conhecimento que Freud supostamente tivera “anos antes”. Tendo em vista a afirmação de Freud, acima mencionada, a sugestão de Jones não parece muito convincente. (E também porque a única 106 referência ao suposto conhecimento de Freud está numa carta por êle escrita a Ferenczi no mesmo ano, e não anos antes.) Tôda uma história é inventada para explicar a existência dessa suposta psicose. Suas bases estariam nos cinco anos posteriores à Primeira Guerra Mundial, durante os quais Rank trabalhou muito, e com êxito, na direção de uma casa editôra de livros de Psicanálise, em Viena. Êsses cinco anos, “nos quais Rank continuou nesse ritmo furioso, devem ter constituído um fator em seu colapso mental subseqüente”. Para um psiquiatra, para não falar de um psicanalista, explicar uma psicose maníaco-depressiva como conseqüência, em parte, de excesso de trabalho é realmente surpreendente. Em 1923 “o espírito maléfico da dissensão” havia surgido. Naquela época, Freud culpou Jones e Abraham pela desintegração do comitê central. Mas Jones acabaria superando seus rivais. “Foi sómente depois de alguns anos que as verdadeiras causas da questão se tornaram manifestas: ou seja, o colapso na integração mental de Rank e Ferenczí.” Isso nos leva à afirmação suprema. Os derrotados na luta internacional, Rank e Ferenczi, haviam abrigado o germe da psicose por muitos anos, mas tais germes só se tornaram manifestos quando os dois discordaram de Freud. Quando se recusaram a apaziguar Freud, a psicose revelouse! Como Jones diz com uma franqueza reconfortante, a esperança de Freud, “... ao fundar o Comitê, era de que seis de nós tinhamos condições para ocupar o lugar.” Verificou-se depois, porém, que sómente quatro as tinham. Dois dos membros, Rank e Ferenczi, não puderam manter-se até o fim. Rank, de modo dramático ... e Ferenczi, mais gradualmente, em fins de sua vida, revelaram manifestações psicóticas que entre outros indícios incluíam um afastamento das idéias de Freud e suas doutrinas. As sementes de uma psicose destruidora, invisível durante tanto tempo, germinaram finalmente. Se o que diz Jones é certo, foi realmente um descuído surpreendente da parte de Freud não ter visto a evolução psicótica de dois dos seus discípulos e amigos mais íntimos, senão quando o conflito se manifestou. Jones não procura dar provas objetivas de sua afirmação, sôbre a propalada psicose maníaco-depressiva 107 de Rank. Temos apenas a sua palavra, ou seja, a palavra de um homem que fêz intrigas contra Rank e suspeitou de sua lealdade, durante muitos anos, na luta dentro da côrte que cercava Freud. Há muitas provas em contrário. Cito apenas uma declaração do Dr. Harry Bone, psicanalista de Nova York que conheceu Rank desde 1932 e estêve em contato freqüente com êle até a sua morte: Em tôdas as numerosas vêzes e variadas situações em que tive a oportunidade de vê-lo em ação e em repouso, não percebi qualquer indício de psicose ou de outra anormalidade mental.66 Rank, por fim, rompeu abertamente com Freud, o que Ferenczi jamais fêz. É portanto ainda mais surpreendente que Ferenczi seja acusado por Jones de traição. Como no caso de Jung e Rank, a história da traição começou, ao que se supõe, com uma viagem fatal à América. Quando Ferenczi quis ir a Nova York, uma “previsão intuitiva, provàvelmente baseada na seqüência infeliz de visitas semelhantes por Jung e Rank”, levou Jones a aconselhar-lhe que desistisse. Não obstante, com o apoio de Freud, Ferenczi partiu para os Estados Unidos e o “resultado justificou minhas [de Jones] previsões. Ferenczi jamais voltou a ser o mesmo, depois daquela visita, embora se passassem outros quatro –ou cinco anos até que sua 66 Comunicação pessoal. depressão mental se tornasse evidente a Freud”. Nos anos seguintes, as rivalidades e intrigas fantásticas entre Jones e Ferenczi, ao que parece, continuaram. Ferenczi suspeitou que Jones mentia e ambicionava, por motivos financeiros, unir as nações anglo-saxônicas sob seu cetro. Segundo Jones, “Freud foi, por isso, influenciado negativamente em relação a mim”. Mas as fôrças anti-Ferenczi parecem ter levado a melhor, no fim. Freud escreveu a Ferenczi, em dezembro de 1929: Você afastou-se, aparentemente, de mim nos últimos anos, mas espero que não o tenha feito a ponto de que se possa esperar a criação de uma nova análise, oposta, pelo meu Paladino e GrãoVizir secreto! 108 Qual a essência das dissensões teóricas entre Freud e Ferenczi? Êste último se impressionara muito pela importância da falta de bondade dos pais, e acreditava que, Para ser curado, o paciente necessitava de mais do que “interpretações”, necessitava do tipo de amor fraternal que lhe havia sido negado quando criança. Ferenczi modificou sua atitude para com o paciente, passando de observador frio a ser humano participante e amante, e entusiasmou-se com os resultados terapêuticos da nova atitude. Freud, a princípio, pareceu receber com tolerância a inovação. Mas sua atitude modificou-se, ao que tudo indica, porque Ferenczi não se dispôs a apaziguá-lo imediatamente, e também porque as suspeitas lançadas sôbre êle pela facção de Jones fizeram sentir seus efeitos. Ferenczi viu Freud pela última vez em 1932, antes do Congresso em Wiesbaden. Essa visita foi realmente trágica. Freud resumiu suas impressões finais do homem que fôra seu seguidor e amigo dedicado desde os primeiros anos do movimento, num telegrama a Eitingon: “Ferenczi inacessível, impressão insatisfatória.” Ferenczi disse à Dra. Clara Thompson,67 imediatamente depois da visita, no trem que os levou de Viena à Alemanha, que o encontro fôra “terrível”, e que Freud lhe dissera que podia ler seu trabalho no congresso psicanalista em Wiesbaden, mas devia prometer que não o publicaria, Pouco depois, Ferenczi revelava os primeiros sintomas da anemia aguda que causaria sua morte, no ano seguinte. Algum tempo antes de seu último encontro com Freud, Ferenczi dissera à Sra. Izette de Forest68 que se sentira triste e magoado pelo tratamento sêco e agressivo que recebera de Freud.69 Tal atitude de Freud revela uma intolerância acentuada. Não obstante, a incapacidade que êle mostrava de perdoar a um antigo amigo, que dêle se afastara, evidencia-se ainda 109 mais expressivamente no ódio e no desprêzo com que se referiu a Alfred Adler, por ocasião da morte dêste: Para um menino judeu nascido num subúrbio vienense, a morte em Aberdeen é um feito excepcional, uma prova de como conseguiu fazer carreira. O mundo realmente o recompensou generosamente pelo serviço de contradizer a Psicanálise. No caso de Ferenczi, chamar sua atitude de “frieza”’ ou “quase inimizade”, como lzette de Forest fêz em The Leaven of Love, é uma caracterização bastante moderada. Jones, porém, que nega haver em Freud traços de qualquer autoritarismo ou intolerância, declara simplesmente que não há nada de verdade na história dessa hostilidade, “embora seja altamente provável que o próprio Ferenczi, em seu estado de alucinação final, acreditasse nela”. Aluna e discípula de Ferenczi, hoje diretora do William Alanson White Institute of Psychiatry, Psychoanalysis and Psychology, em Nova York. 68 Aluna e amiga de Ferenczi, psicanalista e autora de The Leaven of Love, que encerra uma excelente exposição das idéias de Ferenczi sôbre a técnica psicanalítica. 69 Comunicação pessoal. 67 Algumas semanas antes de sua morte, Ferenczi mandou a Freud congratulações pelo seu aniversário, mas supostamente “a perturbação mental fizera progressos rápidos nos últimos meses”. Segundo Jones (que não menciona fontes), Ferenczi relatou que um de seus pacientes americanos o havia analisado e com isso o curara de todos os seus problemas, e que tal paciente lhe mandava mensagens através do Atlântico. Jones, porém, é obrigado a admitir que Ferenczi sempre acreditara firmemente na telepatia, o que elimina a “prova” de sua loucura. A única “prova” existente é “a alucinação sôbre a suposta hostilidade de Freud”. Jones supõe, aparentemente, que sómente uma mente enfêrma pode acusar Freud de autoritarismo e hostilidade. Jones leva a história da suposta psicose de Ferenczi, cujos germes teriam existido desde muito antes, a um clímax. Quando a moléstia atingiu a espinha dorsal e o cérebro, isso, segundo Jones, sem dúvida foi “exacerbado pelas suas tendências psicóticas latentes”. Numa de suas últimas cartas a Freud, depois da ascensão de Hitler ao poder, Ferenczi lhe sugeria que fôsse para a Inglaterra. Jones interpreta êsse conselho realista como indício de que “havia certo método em sua loucura”. Finalmente, já próximo do fim, ocorreram manifestações paranóicas e até mesmo homicidas, seguidas pela morte súbita a 24 de maio.” Jones não alega conhecer os detalhes pessoalmente, nem proporciona qualquer indício ou prova da psicose de Ferenczi ou das “manifestações paranóicas e até mesmo homicidas”. Em vista disso, e das afirmações seguintes, as declarações de Jones sôbre a psicose de Rank e Ferenczi devem ser consideradas como inverídicas e sob a suspeita de invenção, motivada por velhos ciúmes pessoais e pelo desejo de poupar a Freud a crítica de ter sido áspero e mau para com homem profundamente dedicado a êle. (Não pretendo acusar o Dr. jones de insinceridade consciente; mas os impulsos inconscientes podem derrotar as intenções conscientes, e é exatamente disso que se ocupa a Psicanálise.) 110 Jones não viu Ferenczi nos últimos anos de sua doença. Mas a Dra. Clara Thompson, que o acompanhou desde 1932 até o dia de sua morte, declara: “exceto pelos sintomas de sua doença física, não havia nada de psicótico em suas reações, que eu tivesse observado. Visitei-o regularmente, e conversei com êle, e não houve um único incidente, além das dificuldades de memória, que consubstanciasse as afirmações de Jones sôbre a psicose ou as inclinações homicidas de Ferenczi. O Dr. Michael Balint, um dos discípulos mais fiéis de Ferenczi e o executor de seu legado literário, também discorda da afirmação do Dr. Jones. Diz êle: Apesar da séria condição neurológica [relacionada com a anemia aguda] sua mente permaneceu clara até o fim, e posso afirmá-lo pela experiência pessoal, pois o vi freqüentemente durante os últimos meses, pràticamente uma ou duas vêzes por semana.70 A enteada de Ferenczi, a Sra. Elma Lauvrik, que também o acompanhou até a morte, escreveu-me confirmando totalmente as declarações da Dr.a Thompson e do Dr. Balint. Fiz uma descrição tão detalhada das afirmações fantásticas do Dr. Jones, em parte para defender a memória de homens bem dotados e dedicados, que já não se podem defender, em 111 parte para mostrar, com exemplo concreto, o espírito partidarista que se encontra em certos círculos do movimento psicanalítico. As suspeitas que se possam ter formulado antes, de que o movimento psicanalítico encerra tal espírito partidário, são confirmadas pelo trabalho de Jones, especialmente pelo tratamento dado a Rank e Ferenczi no terceiro volume. Surge, agora, uma indagação: como pôde a Psicanálise, uma 70 Comunicação pessoal. teoria e uma terapêutica, transformar-Se num movimento fanático dêsse tipo? A resposta só pode ser encontrada pelo exame dos motivos de Freud na evolução do movimento psicanalítico. Na verdade, visto superficialmente, Freud foi apenas o criador de um nôvo tratamento das doenças mentais, e a tal questão dedicou seu principal interêsse e todos os seus esforços. Mas se olharmos mais de perto verificaremos que atrás dêsse conceito de terapêutica médica para a cura de neurose há uma intenção totalmente diferente, raramente expressa por Freud, e provàvelmente nem mesmo consciente. Êsse conceito oculto e implícito se ocupava primordialmente não da cura da doença mental, mas de algo transcendente ao conceito da cura e enfermidade. Que era? Certamente não era a Medicina. Freud escreveu: Depois de quarenta anos de atividade médica, meu autoconhecimento me diz que jamais fui médico, no devido sentido. Tornei-me médico ao ser obrigado a me desviar de meu objetivo inicial, e o triunfo de minha vida está em ter, depois de uma longa e tortuosa viagem, encontrado o caminho para minha finalidade original. Qual foi essa finalidade original que Freud reencontrou? Êle o diz claramente, no mesmo parágrafo: “Em minha juventude, senti uma necessidade esmagadora de compreender um pouco dos enigmas do mundo em que vivemos, e talvez mesmo de contribuir para a sua solução.” Interêsse pelos enigmas do mundo e desejo de contribuir para a sua solução eram intensos em Freud quando na escola secundária, especialmente durante os últimos anos, e êle próprio diz: “Sob a influência poderosa de um companheiro de escola, de um rapaz um pouco mais velho que chegou a se 112 destacar mais tarde na política, surgiu-me o desejo de estudar Direito, como êle, e de dedicar-me a atividades sociais.” Êsse colega de escola, Heinrich Braun, tornou-se o líder do movimento socialista. Como Freud diz noutro lugar, nessa época foram nomeados pelo Imperador os primeiros ministros burgueses, o que despertou grande alegria entre a classe média liberal, particularmente entre a intelligentsia judaica. Naquela época, Freud já se tinha interessado muito pelos problemas do socialismo, pela possibilidade de ser no futuro um líder político, e pretendia estudar Direito como um primeiro passo nessa direção. Mesmo quando trabalhou como assistente num laboratório fisiológico, sentia que se tinha de dedicar a uma causa. Em 1881 escreveu à sua noiva: A Filosofia, que sempre me pareceu como meu objetivo e refúgio da velhice, aumenta cada dia de atração, tal como as questões humanas em conjunto, ou qualquer causa a que possa dar minha dedicação a qualquer preço. Mas o temor da incerteza das questões políticas e locais me afasta dessa esfera. O interêsse de Freud pela política usando a palavra “interêsse” num sentido bastante amplo e sua identificação com líderes que eram conquistadores ou grandes benfeitores da humanidade não surgiram apenas nos últimos anos da escola secundária. Já como rapaz tivera grande admiração por Aníbal, que o levou a uma identificação que perdurou durante tôda a sua vida, como se vê fàcilmente pelos seus escritos. A identificação de Freud com Moisés foi talvez ainda mais profunda e perdurável. Há provas disso. Basta dizer, aqui, que Freud se identificou com Moisés, que levou uma massa ignorante a uma vida melhor, vida de razão e contrôle das paixões. Outro indício da mesma atitude foi o interêsse de Freud, em 1910, pela Fraternidade Internacional de Ética e Cultura. Jones relata que Freud perguntou a Jung o que pensava sôbre seu ingresso nessa fraternidade, e sómente depois da resposta negativa abandonou a idéia. Não obstante, o Movimento Psicanalítico Internacional, fundado pouco depois, viria a ser uma continuação daquele plano. Quais os objetivos e qual o dogma dêsse movimento? Freud o expressou com clareza nesta frase: “Onde houver Id, 113 haverá Ego.” Seu objetivo era o contrôle das paixões irracionais pela razão, a libertação do homem em relação à paixão dentro das possibilidades humanas. Estudou as fontes das paixões a fim de ajudar o homem a dominá-las. Sua finalidade era a verdade, o conhecimento da realidade; para êle, êsse conhecimento era a única luz orientadora do homem na terra. Esses objetivos eram tradicionais ao Racionalismo, ao Iluminismo, e à Ética puritana. Foi o gênio de Freud que os ligou com uma nova compreensão psicológica da dimensão das fontes ocultas e irracionais da ação humana. Em muitas das formulações de Freud é visível que seu interêsse transcendia à cura médica em si. Êle fala do tratamento psicanalítico como a “libertação do ser humano”, e do analista como aquêle que deve servir de “modêlo” e agir como um “professor”. E afirmar que a “relação entre o analista e o paciente se baseia no amor da verdade, ou seja, no reconhecimento da verdade, que impede qualquer tipo de fraude ou engano”. Que se segue de tudo isso? Embora conscientemente Freud fôsse apenas um cientista e um terapeuta, inconscientemente era – e desejava ser – um dos grandes líderes ético-culturais do século XX. Queria conquistar o mundo com seu dogma racionalista e puritano, e levar o homem à única salvação – e muito limitada – de que era capaz: a conquista da paixão pelo intelecto. Para Freud, isso – e não a religião ou qualquer solução política, como o socialismo – era a única resposta válida ao problema do homem. O movimento de Freud estava imbuído do entusiasmo do racionalismo e liberalismo dos séculos XVIII e XIX. O destino trágico de Freud foi ter êsse movimento se püpularizado, depois da Primeira Guerra Mundial, entre a classe média urbana e a intelligentsia, às quais faltava fé no radicalismo político ou filosófico. Assim, a Psicanálise substituiu o interêsse radical filosófico ou político, tornando-se um nôvo credo que pouco exigia de seus adeptos, a não ser o aprendizado da nomenclatura. Foi exatamente essa função que tornou a Psicanálise tão popular hoje. A burocracia que herdou o legado de Freud capitaliza sôbre essa popularidade, mas herdou pouco de sua 114 grandeza e de seu verdadeiro radicalismo. Seus membros lutaram entre si, com intrigas e maquinações mesquinhas, e o mito “oficial” sôbre Ferenczi e Rank serve apenas para eliminar os dois únicos discípulos de imaginação e Poder criador entre o grupo original que perdurou, depois das defecções de Adler e Jung. No meu entender, porém, para que a Psicanálise desenvolva e siga as descobertas básicas de Freud, terá de rever, do ponto de vista do pensamento humanista e dialético, muitas de suas teorias concebidas dentro do espírito do materialismo fisiológico do século XIX. Essa tradução de Freud a uma nova clave deve basear-se numa interpretação dinâmica do homem, proveniente de uma compreensão das condições específicas da existência humana. As finalidades humanísticas de Freud, transcendendo a enfermidade e o tratamento, poderão então encontrar uma expressão mais nova e mais adequada, mas somente se a Psicanálise deixar de ser governada por uma burocracia estéril e reconquistar na ousadia original, na pesquisa da verdade. 115 O CARATER REVOLUCIONÁRIO O CONCEITO do “caráter revolucionário” é político e psicológico. Sob êsse aspecto, assemelha-se ao conceito do caráter autoritário, introduzido na Psicologia há cêrca de trinta anos, e que combinava uma categoria política, a da estrutura autoritária no Estado e família, com uma categoria psicológica, a estrutura do caráter, que forma a base dessa estrutura política e social. O conceito do caráter autoritário nasceu de certos interêsses políticos. Aproximadamente em 1930 na Alemanha, desejávamos saber as possibilidades de ser Hitler derrotado pela maioria da população.71 Na época, a maior parte da população alemã, especialmente os trabalhadores e funcionários, era contra o nazismo. Estava ao lado da democracia, como o demonstraram as eleições políticas e sindicais. A questão era se lutaria pelas suas idéias, no caso de ser isso necessário. A premissa era a de que ter uma opinião é uma coisa, ter uma convicção é outra. Ou, em outras palavras, qualquer pessoa pode adotar uma opinião, como pode aprender uma língua ou costume estrangeiro, mas sómente as opiniões arraigadas na estrutura do caráter da pessoa, atrás da qual está a energia encerrada em seu caráter – sómente essas opiniões se tornam convicções. O efeito das idéias, que são fáceis de aceitar se proclamadas pela maioria, depende em grande parte da estrutura O estudo foi dirigido por mim e teve vários colaboradores, Inclusive o Dr. Schachtel. O Dr. P. Lazarsfeld colaborou como conselheiro estatístico do Instituto de Pesquisas Sociais da Universidade de Frankfurt, então dirigido pelo Dr. M. Horkheimer. 71 116 de caráter de uma pessoa numa situaÇão crítica. O caráter, como disse Heráclito e Freud demonstrou é o destino do homem. A estrutura do caráter decide qual a idéia que o homem escolherá, e decide também a fôrça da idéia escolhida. Isso tem realmente grande importância no conceito freudiano do caráter – o de que êle transcende o conceito tradicional de comportamento e se relaciona com o comportamento dinâmicamente carregado, de modo que o homem não sómente pensa de certa forma como também seu pensamento mesmo é proveniente de suas inclinações e emoções. A pergunta que fizemos, naquela época, foi: até que ponto os trabalhadores e funcionários alemães têm uma estrutura de caráter que se opõe ao autoritarismo nazista? E isso implicava outra questão: até que ponto os trabalhadores e empregados alemães, na hora crítica, combaterão o nazismo? Fêz-se um estudo e o resultado foi que, falando de modo geral, 10% dos trabalhadores e funcionários alemães tinham o que chamaríamos de estrutura de caráter autoritária; cêrca de 15% tinham uma estrutura de caráter democrática, e a grande maioria – cêrca de 75% – era de pessoas com uma estrutura de caráter representando uma mistura dêsses extremos.72 A suposição teórica foi a de que os autoritários seriam nazistas ardentes, os “democráticos” seriam militantes antinazistas, e a maioria nem uma coisa nem outra. Tais suposições teóricas revelaram-se mais ou menos certas, como os fatos ocorridos O método usado foi o exame das respostas individuais a um questionário aberto, interpretando o sentido não-intencional, inconsciente, e em contraposição à resposta explícita. Se a resposta à pergunta, por exemplo, “que homens mais admira na História?” fôsse “Alexandre o Grande, Napoleão, César, Marx e Lênin”, isso era interpretado como resposta “autoritária”, porque a combinação mostra uma admiração por ditadores e líderes militares. Se a resposta fôsse “Sócrates, Pasteur, Kant, Marx e Lênin”, era classificada como democrática, porque revelava a admiração por benfeitores da humanidade, e não por pessoas dotadas de poder. 72 entre 1933 e 1945 mostraram.73 117 Para nosso objetivo aqui, basta dizer que a estrutura de caráter autoritária encontra-se na pessoa cujo senso de fôrça e identidade baseia-se numa subordinação simbiótica às autoridades, e ao mesmo tempo um domínio simbiótico dos que estão submetidos à sua autoridade. Ou seja, o caráter autoritário sente-se mais forte quando pode submeter-se a uma autoridade e ser parte dela, desde que seja (e até certo ponto apoiado na realidade) exagerada, deificada, e quando ao mesmo tempo pode crescer pelo fato de incorporar os que lhe estão sujeitos à autoridade. É um estado de simbiose sádicomasoquista, que lhe dá uma sensação de fôrça e de identidade. Sendo parte de algo grande (qualquer que seja), êle se torna grande. Se estivesse sózinho, se reduziria a nada. Por essa simples razão, uma ameaça à autoridade e uma anieaça à estrutura autoritária são, para o caráter autoritário, uma ameaça a si mesmo – à sua sanidade. Por isso, êle é forçado a lutar contra tal ameaça como lutaria contra um perigo à sua vida ou sanidade. Referindo-me agora ao conceito de caráter revolucionário, gostaria de começar mostrando o que não me parece que êsse caráter seja. Evidentemente, não se trata de uma pessoa que participa de revoluções. Tal é exatamente a distinção entre comportamento e caráter no sentido dinâmico freudiano. Qualquer pessoa pode, por várias razões, participar de uma revolução, a despeito do que sinta, desde que aja pela revolução. Mas o fato de agir como revolucionário pouco nos revela do seu caráter. A segunda coisa que o caráter revolucionário não me parece ser é um pouco mais complicada. Êle não é um rebelde. Que O assunto foi tratado posteriormente, e com melhor método do que no estudo original, num trabalho de T. W. Adorno e outros, The Authoritarian Personality (N. York, Harper & Row, 1950). 73 entendo por isso?74 Defino o rebelde como a pessoa profundamente ressentida contra a autoridade Por não ser apreciada, amada, aceita. O rebelde deseja derrubar a autoridade devido ao seu ressentimento e, em conseqüência, constituir-se na autoridade, em substituição à derrubada. Muito freqüentemente, no momento mesmo em que atinge tal objetivo, torna-se amigo da própria autoridade que combatia tão acerbamente, antes. 118 O tipo caracterológico do rebelde é bem conhecido na história política do século XX. Tome-se, por exemplo, uma figura como Ramsay MacDonald, que começou como pacifista e um homem que tinha objeções de consciência. Quando conquistou poder suficiente, deixou o Partido Trabalhista para unir-se às próprias autoridades que combatera durante tantos anos, dizendo a seu amigo e ex-camarada, Snowdon, no dia em que ingressou no Govêrno Nacional: “Hoje, tôda duquesa em Londres desejará beijar-me nas duas faces.” Temos aqui o tipo clássico de rebelde que usa a rebelião para tornar-se autoridade. São necessários anos, por vêzes, para atingir isso; outras vêzes, as coisas correm mais rápidas. Se tomarmos, por exemplo, uma personalidade como o infeliz Laval, na França, que começou como rebelde, podemos lembrar que um curto espaço transcorreu até que êle adquirisse bastante capital político para poder vender-se. Há muitos outros a mencionar, mas o mecanismo psicológico é sempre o mesmo. Poderíamos dizer que a vida política do século XX é um cemitério encerrando os túmulos morais de pessoas que começaram como revolucionários e revelaram-se apenas rebeldes oportunistas. Há ainda uma coisa que o caráter revolucionário não é, e um pouco mais complicada do que o conceito do rebelde: não é Tratei dêsse problema mais detalhadamente em meu livro anterior, O Mêdo à Liberdade, de 1941. [Publicado por esta editóra, na Biblioteca de Ciências Sociais. N. dos E.] 74 um fanático. Os revolucionários, no sentido de comportamento, são freqüentemente fanáticos, e nesse ponto a diferença entre o comportamento político e a estrutura de caráter é bastante evidente – pelo menos, tal como vejo o caráter do revolucionário. Que entendo por fanático? Não quero dizer com isso o homem que tem uma convicção. (Poderia dizer que hoje tornou-se moda chamar a todos os que têm uma convicção de “fanáticos” e a todos que não a têm, ou cuja convicção é fàcilmente modificável, de “realistas”.) Creio ser possível descrever o fanático clinicamente como a pessoa excessivamente narcisista – na realidade, a pessoa que está próxima da psicose (depressão, freqüentemente unida a tendências paranóicas,), uma pessoa completamente desligada, como qualquer psicótico, do mundo exterior. Mas o fanático encontrou uma solução que o salva da psicose evidente. Escolheu uma causa, qualquer que seja – política, religiosa ou 119 outra – e a endeusou. Fêz dela um ídolo, e, pela completa submissão a êle, adquire um apaixonado senso da vida, um sentido para a vida, pois em sua submissão se identifica com o ídolo, que endeusou e transformou num absoluto. Se quiséssemos escolher um símbolo para o fanático, seria o do gêlo candente. É a pessoa apaixonada e extremamente fria ao mesmo tempo. Está desligada do mundo, e ao mesmo tempo cheia de uma paixão escaldante, a paixão da participação e da submissão ao Absoluto. Para reconhecer o caráter do fanático devemos ouvir não tanto o que êle diz, mas observar o brilho particular em seu olhar, a paixão fria que é o paradoxo do fanático, ou seja, uma total falta de correlação fundida a uma adoração apaixonada do seu ídolo. O fanático está próximo daquilo que os profetas chamam de “adorador de ídolo”. Desnecessário dizer que êle sempre teve um papel de relêvo na história, e freqÜentemente fingiu de revolucionário, e o que diz é precisamente – ou parece ser – o que um revolucionário diria. Procurei explicar o que não me parece ser o caráter revolucionário. Creio que o conceito caracterológico do revolucionário é hoje importante – tão importante, talvez, quanto o conceito do caráter autoritário. Realmente, vivemos numa época de revoluções, iniciada há cêrca de trezentos anos, desde as rebeliões políticas dos inglêses, franceses e americanos, e que continuou com as revoluções sociais na Rússia, China e presentemente – na América Latina. Nesta era revolucionária, a palavra “revolucionário” não tem atrativos em muitas partes do mundo, como qualificação positiva para muitos movimentos políticos. Na verdade, todos os movimentos que usam tal palavra alegam objetivos muito semelhantes, ou seja, o de que lutam pela liberdade e independência. Mas na realidade alguns o fazem, outros não; e por isso entendo que alguns na realidade lutam pela independência, noutros os refrões revolucionários são usados para combater os regimes autoritários, em mãos de uma elite diferente. Como definir uma revolução? Poderíamos defini-la no sentido do dicionário, afirmando simplesmente que é a derrubada, pacífica ou violenta, de qualquer govêrno e sua substituição por um nôvo govêrno. É, evidentemente, uma definição 120 política muito formal, e sem qualquer sentido particular. Poderíamos, num senso mais marxista, definir a revolução como a substituiÇão de uma ordem existente por outra históricamente mais progressista. Surge, naturalmente, a indagação de quem pode decidir o que é “históricamente mais progressista”. Habitualmente é o vencedor, pelo menos em seu próprio país. Finalmente, poderíamos definir a revolução no sentido psicológico, afirmando que ela é um movimento político liderado por pessoas de caráter revolucionário, e que atrai pessoas de caráter revolucionário. Não se trata de uma grande definição, mas é útil do ponto de vista dêste ensaio, já que coloca tôda a ênfase na questão que vamos agora debater: que é o caráter revolucionário? O traço mais fundamental do “caráter revolucionário” é ser independente – é ser livre. É fácil compreender que a independência é o oposto da ligação simbiótica aos poderosos, que ocupam posições superiores, e aos impotentes, que ocupam posições inferiores, como mencionei ao falar do caráter autoritário. Mas isso não esclarece bastante o que entendemos por “independente” e “liberdade”. A dificuldade está precisamente no fato de que as palavras “liberdade” e “independência” são usadas hoje com a implicação de que num sistema democrático todos são livres e independentes. Êsse conceito de liberdade e independência tem suas raízes na revolução da classe média contra a ordem feudal, e adquiriu nova fôrça contrastando com os regimes totalitários. Durante a ordem feudal e absolutista, o indivíduo não era nem livre nem independente. Estava sujeito a regras tradicionais ou arbitrárias, às ordens dos que estavam acima dêle. As revoluções burguesas vitoriosas na Europa e na América deram liberdade política e independência ao indivíduo. Era uma “liberdade em relação a alguma coisa” uma independência em relação às autoridades políticas. Foi, sem dúvida, um progresso importante, muito embora o industrialismo de hoje tenha criado novas formas de dependência, nas limitadoras burocracias que contrastam com a iniciativa e a independência sem peias do homem de negócios do século XIX. O problema da independência e liberdade, porém, é muito mais profundo do que no sentido acima. Na realidade, o problema da independência é o aspecto mais fundamental da 121 evolução humana, desde que o vejamos em tôda a sua profundidade e alcance. O recém-nascido está ainda intimamente ligado ao seu meio ambiente. Para êle, o Mundo exterior não existe ainda como uma realidade isolada dêle. Mesmo quando a criança pode reconhecer os objetos continua por muito tempo impotente, e não poderia sobreviver sem a ajuda da mãe e do pai. A impotência prolongada do ser humano, em contraste com a do animal, é uma base dessa evolução, mas também ensina a criança a apoiar-se no poder – e a temê-lo. Normalmente, no período que vai do nascimento à puberdade, os pais são os que representam o poder e seu duplo aspecto: ajuda e punição. Na época da puberdade, o jovem atinge uma fase de evolução na qual pode prover-se (certamente nas sociedades agrárias mais simples) e não deve necessàriamente sua existência social aos seus pais. Pode tornar-se econômicamente independente dêles. Em muitas sociedades primitivas a independência (particularmente em relação à mãe) se manifesta pelos ritos de iniciação que, não obstante, não modificam a dependência do clã, em seu aspecto masculino. A maturidade sexual é outro fator para estimular o processo de emancipação dos pais. O desejo e a satisfação sexual unem uma pessoa às demais, fora de sua família. O ato sexual, em si, não depende do auxílio da mãe ou do pai, e nêle o jovem se sente totalmente êle mesmo. Até mesmo nas sociedades em que a satisfação do ato sexual é adiada até cinco ou dez anos depois da puberdade, o desejo sexual despertado cria anseios de independência e provoca conflitos com a autoridade paterna e as autoridades sociais. A pessoa normal adquire êsse grau de independência muitos anos após a puberdade. Mas o fato inegável é que tal independência, muito embora a pessoa possa ganhar a vida, casar-se e ter filhos, não significa que se tenha tornado realmente livre e independente. Continua sendo, como adulto, bastante impotente e procura encontrar fôrças que o protejam e lhe proporcionem sentimento de segurança. O preço pago por êsse auxílio é tornar-se dependente dêle, perder sua liberdade e reduzir o processo de seu crescimento. Toma seus pensamentos de empréstimo a êle, seus sentimentos, objetivos e valôres – embora viva sob a ilusão de ser quem pensa, sente e faz as escolhas. 122 A liberdade e a independência totais só existem quando o indivíduo pensa, sente e decide por si. Só pode fazê-lo autênticamente quando atinge uma relação produtiva com o mundo exterior, que lhe permite reagir de forma autêntica. Êsse conceito de liberdade e independência encontra-se no pensamento dos místicos radicais, bem como no de Marx. O mais radical dos místicos cristãos, Meister Eckhart, diz: “Que é a minha vida? Aquilo que se afasta de dentro, por si mesmo. Aquilo que se move de fora não vive.”75 Ou: “... se o homem decide ou recebe alguma coisa do exterior, está errado. Não devemos apreender Deus nem considerá-lo fora de nós mesmos, mas como nosso e como o que está em nós.”76 Marx, num espírito semelhante, embora não teológico, diz: “O ser não se considera como independente, a menos que seja seu próprio senhor e só é seu senhor quando deve sua existência a si mesmo. O homem que vive por favor de outro considera-se um ser dependente. Mas vivo totalmente pelo favor de outra pessoa quando lhe devo não só a continuação de minha vida, mas também sua criação, quando ela é a sua fonte. Minha vida terá necessàriamente essa causa exterior, se não fôr minha própria criação.”77 Ou, como Marx disse em outro lugar: “O homem só é independente se afirma sua individualidade como homem total em tôdas as suas relações com o mundo na visão, audição, olfato, paladar, sentimento, pensamento, desejo, amor – em suma, se afirma e expressa todos os órgãos de sua individualidade.” A independência e a liberdade são a realização 75 Sermão XVII, Meister Eckhart, An Introduction to the Study of his Works, with an Anthology of his Sermons, selecionados por James A. Clark, N. York, 1957, pág. 235. 76 Ibid., pág. 189. Atitude muito parecida encontra-se no Zen-Budismo, na questão relacionada com a independência de Deus, Buda, ou de qualquer outra autoridade. 77 Karl Marx, Manuscritos Econômicos e Filosóficos, incluídos em Conceito Marxista do Homem, de Erich Fromm. [Publicado por esta editôra, na Biblioteca de Ciências Sociais. – N. dos E.] 123 da individualidade, não sómente a emancipação de coação, nem a liberdade em questões conierciais. O problema de cada pessoa é precisamente o do nível de liberdade atingido. O homem plenamente desperto, produtivo, é livre porque pode viver com autenticidade – seu ser é a fonte de sua vida. (Não deveria ser necessário dizer que isso não significa que o homem independente seja um homem isolado, pois o crescimento da personalidade ocorre no processo de relacionar-se e interessar-se pelos outros e pelo mundo. Mas essa relação é totalmente diferente da dependência.) Enquanto para Marx o problema da independência como auto-realização leva à crítica da sociedade burguesa, Freud trata do mesmo problema dentro dos limites de sua teoria, em têrmos do complexo de Édipo. Freud, acreditando que o caminho da sanidade mental está na superação da fixação incestuosa em relação à mãe, afirmou que a saúde mental e a maturidade são baseadas na emancipação e independência. Mas para êle êsse processo era iniciado pelo mêdo da castração pelo pai, e terminava incorporando as ordens e proibições paternas no próprio eu (superego). Por isso, a independência continuava parcial (ou seja, apenas em relação à mãe) ; a dependência do pai e das autoridades sociais continuava através do superego. O caráter revolucionário ídentifica-se com a humanidade e portanto transcende os estreitos limites de sua própria sociedade e pode, por isso, criticar a sua sociedade, ou qualquer outra, do ponto de vista da razão e humanidade. Não está prêso no culto paroquial da cultura em que tenha nascido, e que representa apenas um acidente de tempo e geografia. Pode examinar seu meio com os olhos abertos de um homem acordado que baseia seu critério para julgar as coisas acidentais naquilo que não é acidental (a razão), nas normas que existem na raça humana e para ela. O caráter revolucionário identifica-se com a humanidade. Encerra ainda uma profunda “reverência pela vida”, para usarmos a expressão de Albert Schweitzer, uma profunda afinidade com a vida e um profundo amor por ela. É certo, na medida em que nos assemelhamos aos outros animais, que nos apegamos 124 à vida e lutamos contra a morte. Mas o apêgo à vida é algo totalmente diferente do amor à vida. Isso será ainda mais evidente se considerarmos o fato de que há um tipo de personalidade atraída pela morte, destruição e decadência, e não pela vida. (Hitler é um bom exemplo histórico disso.) Êsse tipo de caráter pode ser chamado de necrófilo, para usarmos uma expressão de Unamuno, em sua famosa resposta, em 1936, a um general Franco, cuja frase preferida era “Viva a morte”. A atração da morte e destruição pode não ser consciente na pessoa, não obstante sua presença poder ser deduzida pelos seus atos. Estrangular, esmagar e destruir a vida dá-lhe a mesma satisfação que os amantes da vida encontram em fazer que esta se amplie, cresça, evolua. A necrofilia é uma verdadeira perversão, a de visar à destruição enquanto estamos vivos. O caráter revolucionário pensa e sente de acôrdo com o que poderíamos chamar de “sentimento crítico” – numa clave crítica, usando um símbolo musical. O refrão latino De omnibus est dubitandum (é preciso duvidar de tudo) é parte muito importante de sua reação ao mundo. Esta tendência crítica a que me refiro não é, de forma alguma, o cinismo, mas sim uma percepção da realidade, em contraste com as ficções feitas para substituir a realidade.78 O caráter não-revolucionário inclina-se, particularmente, a acreditar nas coisas ditas pela maioria. A pessoa de espírito Cf. um exame mais detalhado dessa questão em E. Fromm, Meu Encontro com Marx e Freud. [Publicado por esta editôra, em 1963. – N. dos E.] 78 crítico reagirá precisamente de forma oposta. Adotará uma atitude crítica ao ouvir o julgamento da maioria, que é o julgamento de todos e daqueles que detêm o poder. Evidentemente, se a maioria das pessoas fôsse verdadeiramente cristã, como pretende, não teria dificuldade em manter tal atitude, pois na verdade essa atitude crítica em relação aos padrões acatados foi adotada por Jesus. E foi também a de Sócrates, dos profetas e de muitos homens que, de uma forma ou de outra, reverenciamos. E sómente muito depois de sua morte – ou seja, depois de estarem suficientemente mortos, a ponto de não poderem causar problemas – é que podem ser louvados sem risco. 125 O “espírito crítico” torna a pessoa sensível ao clichê, ao chamado bom-senso que repete a mesma tolice indefinidamente, e só tem sentido porque todos o repetem. Talvez o espírito crítico a que me refiro não seja algo que se possa definir fàcilmente, mas, se realizarmos experiências conosco e com outros, descobriremos fàcilmente a pessoa que o tem. Como milhões de pessoas, por exemplo, acreditam que pela corrida atômica a paz pode ser mantida? Tôda a experiência passada contraria tal suposição. Quantas pessoas acreditam que se a sirena soar – embora se tenham construído abrigos nos grandes centros metropolitanos dos Estados Unidos – poderão salvar-se? Sabem que teriam apenas quinze minutos. Não é preciso ser alarmista para prever que essa pessoa seria pisada de morte tentando alcançar as portas do abrigo nesses quinze minutos. Mesmo assim aparentemente, milhões acreditam que os nossos famosos abrigos subterrâneos são capazes de salvá-los de bombas de 50 ou 100 megatons. Por quê? Porque não têm espírito crítico. Um menino de cinco anos (crianças dessa idade habitualmente têm uma atitude mais crítica do que os adultos), ao ouvir a mesma história, provàvelmente a colocará em dúvida. A maioria dos adultos é suficientemente “educada” para não ter espírito crítico, e por isso aceita como “exatas” idéias que são absurdos evidentes. Além de ter um espírito crítico, o caráter revolucionário tem uma relação particular com o poder. Não é um sonhador que não sabe que o poder pode matar, forçar e até mesmo perverter. Mas tem uma relação particular com o poder, em outro sentido. Para êle, o poder jamais se torna santificado, jamais toma o papel da verdade, da moral e do bem. Êsse é talvez um dos mais importantes, e não o mais importante, dos problemas de hoje: a relação que as pessoas têm com o poder. Não é uma questão de saber o que é o poder, nem o problema de falta de realismo, de subestimar o papel e as funções do poder. É uma questão de santificar ou não o poder, deixar-se impressionar moralmente ou não por êle. Quem se impressiona moralmente pelo poder jamais terá espírito crítico, jamais será um caráter revolucionário. 126 O caráter revolucionário é capaz de dizer “não”. Ou, em outras palavras, o caráter revolucionário é capaz de desobediência, que para ele pode ser uma virtude. Para explicar isso, posso partir de uma afirmação que parece bastante generalizadora: a história humana começou com um ato de desobediência e poderia terminar com um ato de desobediência. Que entendo por isso? Ao dizer que a história humana começou com um ato de desobediência, refiro-me à mitologia hebraica e grega. Na história de Adão e Eva há a ordem divina de não comer a maçã, e o homem – ou, para sermos justos, a mulher - é capaz de dizer “não”. É capaz de desobedecer e até mesmo de convencer o homem a partilhar de sua desobediência. Qual o resultado? No mito, o homem é expulso do Paraíso - ou seja, o homem é expulso de uma situação pré-individualista, préconsciente, pré-histórica e, se quisermos, pré-humana, na qual o poderíamos comparar com a situação do feto no ventre materno. É expulso do Paraíso e forçado a percorrer a estrada da história. Na linguagem do mito, êle não pode voltar. Na verdade, não é capaz de voltar. Uma vez despertada a consciência de si, uma vez cônscio de existir como homem individual, distinto da natureza, êle não pode retornar à harmonia primitiva que existia antes dessa consciência. Com seu primeiro ato de desobediência, a história do homem começa, e esse primeiro ato de desobediência é o primeiro ato de liberdade. Os gregos usavam um símbolo diferente, o de Prometeu, que rouba o fogo dos deuses e comete um crime, que comete um ato de desobediência, e com o ato de levar o fogo para o homem a história humana – ou a civilização humana – tem início. Tanto hebreus quanto gregos mostram que a emprêsa e a história humana começaram com um ato de desobediência. E por que digo que a história humana pode terminar com um ato de desobediência? Infelizmente não falo, nesse caso, de mitologia, mas da realidade. Se uma guerra atômica destruir, dentro de dois ou três anos, metade da população humana, e levar a um período de completa barbarização – ou se isso acontecer dentro de dez anos e possivelmente destruir tôda a vida na terra –, isso será provocado por um ato de desobediência. 127 Ou seja, a obediência dos homens que apertam o botão aos homens que dão as ordens, e a obediência às idéias que possibilitam pensar em têrmos dessa loucura. A desobediência é um conceito dialético, e todo ato de obediência é ao mesmo tempo um ato de desobediência. Que quero dizer com isso? Todo ato de desobediência, a menos que seja uma rebelião ôca, é a obediência a outro princípio. Desobedeço ao ídolo porque obedeço a Deus. Desobedeço a César porque obedeço a Deus, ou se falarmos numa linguagem não-teológica, porque obedeço aos princípios e valôres, à minha consciência. Posso desobedecer ao Estado porque obedeço às leis da humanidade. E se obedeço então realmente serei desobediente em relação a alguma outra coisa. A questão não é exatamente de desobediência ou obediência, mas de obediência ou desobediência em relação a quê e a quem. Do que disse acima segue-se que o caráter revolucionário, no sentido em que a expressão está sendo usada aqui, não é necessàriamente aquêle que se manifesta apenas na política. Êle existe, na verdade, na política, mas também na religião, arte e filosofia. Buda, os Profetas, Jesus, Giordano Bruno, Meister Eckhart, Galileu, Marx e Engels, Einstein, Schweitzer, Russell são carácteres revolucionários. Encontramos êsse caráter também no homem que não está em nenhum dêsses setores, num homem cujo “sim” é “sim” e cujo “não” é “não”, que é capaz de ver a realidade, tal como o menino na história de Andersen A Roupa do Imperador. Viu que o imperador estava nu, e o que disse correspondia ao que via. O século XIX talvez tenha sido o período no qual era mais fácil reconhecer a desobediência, porque foi uma época de autoridade clara, na vida familiar e no Estado. Foi, portanto, uma época de manifestação do caráter revolucionário. O século XX é um período bem diferente, e nêle o moderno sistema industrial criou o homem da organização, um sistema de burocracias imensas que insistem no funcionamento suave daqueles que controla – mas antes pela manipulação do que pela força. Os administradores dessas burocracias afirmam que essa submissão às suas ordens é voluntária e procuram convencer a todos, especialmente com a satisfação material que oferecem, que gostamos de fazer aquilo que nos mandam. O homem da organização 128 não é aquêle que desobedece, é o que nem sabe que está obedecendo. Como pode pensar em desobediência, quando não tem nem mesmo a consciência de ser obediente? É apenas um dos “rapazes”, um na multidão. É “certo”. Pensa e faz o que é razoável – mesmo que isso o mate, e a seus filhos e netos. Portanto, é muito mais difícil para o homem, na idade industrial burocrática contemporânea, ser desobediente ou desenvolver um caráter revolucionário do que o era para o homem do século XIX. Vivemos numa época em que a lógica dos balanços, a lógica da produção de coisas, foi estendida à vida dos sêres humanos, que se tornaram inúmeros, tal como as coisas. Coisas e homens são hoje quantidades no processo de produção. Repetimos: é muito dificil ser desobediente quando não se tem nem mesmo a consciência de ser obediente. Em outras palavras, quem pode desobedecer a um computador eletrônico? Como dizer “não” à filosofia cujo ideal é agir como um computador eletrônico, sem vontade, sem sentimento, sem paixão? A obediência hoje não é reconhecida como obediência, por que é racionalizada como “bom-senso”, como uma aceitação de necessidades objetivas. Se é necessário produzir, tanto no Leste como no Oeste, um armamento fantàsticamente destruidor, quem poderá desobedecer? Quem se sentiria capaz de dizer “não” se tudo lhe fôsse apresentado não como um ato de vontade, mas como um ato de necessidade objetiva? Há outro aspecto relevante na situação atual. Neste sistema industrial que, parece-me, se torna cada vez mais parecido no Ocidente e no bloco soviético, o indíviduo tem um receio mortal das grandes burocracias, da grandeza de tudo – do Estado, da burocracia industrial, da burocracia sindical. Não só tem mêdo como se sente terrivelmente pequeno. Quem é o Davi que pode dizer “não” a Golias? Quem é o pequeno homem que pode dizer “não” àquilo que se tornou, em grandeza e poder mil vêzes maior, a autoridade de há cinqüenta ou cem anos? O indivíduo está intimidado e aceita alegremente a autoridade. Aceita as ordens dadas em nome do bom-senso e da razão, para não sentir que está dominado. 129 Resumindo: entendo como caráter revolucionário não um conceito ético, mas um conceito dinâmico. Não se é “revolucionário” nesse sentido caracterológico porque se pronunciem frases revolucionárias ou se participe de uma revolução. O revolucionário, nesse sentido, é o homem que se emancipou dos laços de sangue e solo, da mãe e do pai, das lealdades para com o Estado, classe, raça, partido, religião. O caráter revolucionário é humanista no sentido de que se sente parte de toda a humanidade, e nada que seja humano lhe é estranho. Ama e respeita a vida. É um cético e um homem de fé. É cético porque suspeita das ideologias como disfarce de realidades indesejáveis. É um homem de fé porque acredita no que existe potencialmente, embora ainda não tenha nascido. Pode dizer “não” e ser desobediente precisamente porque pode dizer “sim” e obedecer a princípios genuinamente seus. Não está semi-adormecido, mas plenamente acordaddo para as realidades pessoais e sociais que o cercam. É independente, e o que é deve aos seus esforços. É livre, e não o servo de ninguém. Êsse sumário pode sugerir que descrevi a saúde mental e o bem-estar, e não o conceito do caráter revolucionário. Na realidade, a descrição dada reproduz a pessoa sadia, viva, mentalmente sã. Minha afirmação é a de que a pessoa sadia num mundo insano, o ser humano plenamente desenvolvido num mundo aleijado, a pessoa plenamente desperta num mundo semi-adormecido – é precisamente o caráter revolucionário. Quando todos estiverem acordados, não haverá mais profetas ou caracteres revolucionários – haverá apenas sêres humanos plenamente desenvolvidos. A maioria das pessoas, naturalmente, jamais teve caráter revolucionário. Mas a razão pela qual não vivemos mais nas cavernas é precisamente por ter havido sempre um número suficiente de caracteres revolucionários na história humana para nos tirar das cavernas e de seus equivalentes. Há, porém, muitos outros que pretendem ser revolucionários quando na verdade são rebeldes, autoritários ou oportunistas políticos. Creio que os psicólogos têm uma função importante no estudo das diferenças de caráter entre êsses vários tipos de ideólogos políticos. Mas para isso é preciso, receio, ter algumas das qualidades que procuramos descrever aqui: devem ter um caráter revolucionário. 130 A MEDICINA E O PROBLEMA ÉTICO DO HOMEM MODERNO QUE ENTENDEMOS por ética? A palavra vem de uma raiz que significa, originalmente, costume, e chegou a significar a ciência que trata dos ideais das correlações humanas. Essa confusão entre costume e ideais ainda existe para muita gente. A maioria das pessoas pensa hoje, conscientemente, na ética em têrmos de um ideal, de normas éticas, quando realmente julgam que o costume ou o hábito é um bem. Nós, porém, entendemos conscientemente por norma ética um “dever”, e no inconsciente realmente pensamos que o certo é aquilo que é aceito. E, como sabemos, o que é aceito é também a solução mais cômoda, exceto do ponto de vista da nossa consciência. Por vêzes, a ética se refere apenas ao comportamento, e, nesse caso, a entendemos como um código – certamente um código de comportamento desejável. É possível, decerto, dividir a ética. Falamos da ética médica, da ética comercial, da ética militar. Em todos êsses exemplos, falamos na realidade de um código de comportamento relacionado com uma determinada situação, ou nela válido. Isso é perfeitamente certo, e prefiro as pessoas que têm um código às que não o têm, e prefiro bons códigos aos maus. Mas se entendemos por ética o que significa a expressão na grande tradição filosófica ou religiosa, ela será então não um código de comportamento válido em certos setores. Segundo essa tradição, a ética se refere a uma determinada orientação, arraigada no homem e que, portanto, não é válida em relação a esta ou aquela pessoa, a esta ou 131 aqqela situação, mas a todos os sêres humanos. Na verdade, se os budistas estão certos, é válida não sómente em relação aos sêres humanos, mas a tudo o que vive. A consciência é o órgão dessa atitude ética. Se falamos da ética no sentido da grande tradição filosófica e religiosa do Oriente e Ocidente, então a ética não é um código, mas uma questão de consciência. Se aceitarmos êsse ponto de vista, não haverá uma ética médica. Existe apenas uma ética universal humana aplicada a situações humanas específicas. Se, por outro lado, separarmos a ética médica do problema universal da ética, haverá então o perigo de que a ética médica possa degenerar num código que, essencialmente, serve para proteger os interêsses dos médicos contra o interêsse dos clientes. A essa altura, é oportuno dizer alguma coisa mais sôbre a consciência. É importante ter presente uma distinção entre a consciência autoritária e a consciência humanista.79 Consciência autoritária nos parece ser, aproximadamente, o que Freud entendia pelo superego, expressão hoje muito mais popular do que “consciência”. A consciência autoritária, ou superego, é originalmente o poder do pai subjetivado e, mais tarde, a autoridade da sociedade subjetivada. Ao invés de ter mêdo dos castigos de meu pai, subjetivei suas ordens de modo que não tenho de esperar por essa experiência terrível. Ouço dentro de mim a voz dêle e não corro o risco de qualquer ocorrência desagradável. Sou advertido antecipadamente, porque meu pai está dentro de mim. Êsse conceito de autoridade subjetivada do pai e da sociedade é válido para o que muita gente considera ser a sua consciência. A explicação freudiana do mecanismo psicológico parece-me muito engenhosa e acertada. Surge, porém, uma indagação: será apenas isso, ou haverá outra, totalmente diferente? Analisei êsses dois tipos de consciências detalhadamente em Análise do Homem, 1947. [Publicado por esta editôra, na Biblioteca de Ciências Sociais. – N. dos E.] 79 Ao segundo tipo de consciência, que não é a autoridade subjetivada, dei o nome de conciência humanística, referindoa à tradição filosófica ou religiosa humanista. Essa consciência 132 é uma voz íntima que nos chama de volta a nós mesmos. Por êsse “nós mesmos” entendo a essência humana comum a todos os homens, ou seja, certas características básicas do homem que não podem ser violadas ou negadas sem consequencias sérias. Muitos cientistas consideram, atualmente, um absurdo falar de algo semelhante à “natureza do homem”. Acham que tudo depende de onde se vive. Se formos caçadores de cabeças, gostaremos de matar as pessoas e encolher-lhes o crânio. Se vivermos em Hollywood, gostaremos de ganhar dinheiro e ver nosso retrato nos jornais, e assim por diante. Acreditam não haver nada na natureza humana que nos mande fazer uma coisa e não outra. Os psicanalistas e psiquiatras, porém, devem pensar de forma diferente: podem afirmar que existem, na realidade, certos elementos básicos que são parte da natureza humana e que reagirão mais ou menos como nosso corpo se suas leis forem violadas. Se ocorre no corpo um processo patológico, habitualmente experimentamos dor; e se ocorre um processo patológico em nossas almas – ou seja, se algo ocorre em nossas almas que viola algo profundamente enraizado na natureza humana, também ocorre uma reação: experimentamos um sentimento de culpa. Ora, se a pessoa não pode dormir, toma pílulas. Se tem dores, pode tomar outras pílulas. A consciência culpada é tranqüilizada pelas muitas formas oferecidas pela nossa cultura, com êsse objetivo. Não obstante, a consciência culpada embora possa ser inconsciente tem muitos modos de se manifestar, em uma linguagem por vêzes tão penosa quanto a dor física. Os médicos e os estudantes de Medicina, como têm de tratar habitualmente da dor física e dos sintomas físicos, devem dedicar particular atenção ao que se sabe sôbre a dor mental e os sintomas mentais. Por exemplo, uma pessoa que nega completamente o que Albert Schweitzer chamou de reverência pela vida, que é totalmente cruel, desumana, sem bondade, sem amor, está no limiar da insânia. Ao prosseguir nesse caminho, tem receio de enlouquecer, e por vêzes enlouquece realmente. Apresenta, em certos casos, uma neurose que o salva da loucura. Até os piores homens da terra precisam de manter a ilusão – e talvez não seja totalmente uma ilusão – de que há nêles algo de humano e bom, porque sem isso não se sentiriam mais humanos, e sim próximos da insanidade. 133 Podemos encontrar fàcilmente exemplos surpreendentes disso. O Dr. Gustave Gilbert, psicólogo que entrevistou Goering e outros líderes nazistas prisioneiros, durante um ano, até o último dia da vida dêles, contou sua experiência. Diz-nos êle que um homem como Goering lhe implorava para ir vê-lo todos os dias e dizia: “Veja, não sou tão mau assim. Não sou tão mau como Hitler; Hitler matou mulheres e crianças, eu não. Por favor, acredite em mim.” Sabia que ia morrer. O homem a quem falava era um jovem psicólogo americano, cuja opinião a seu respeito não podia ter qualquer conseqüência. Goering não falava para um público, e mesmo assim não podia suportar a idéia de enfrentar-se, desaparecido seu poder, como um ser totalmente desumano. História semelhante é narrada por um representante da imprensa americana que viveu durante certo tempo em Moscou sôbre um homem chamado Jagoda, chefe da Polícia Secreta, antes de ser morto pelos que mais tarde também seriam mortos. Jagoda era responsável pela morte e tortura de centenas de milhares de pessoas. Segundo o jornalista, mantinha próximo de Moscou um orfanato, num dos mais belos lugares do mundo – os órfãos eram tratados com liberdade, amor, com tôda a consideração. Certo dia Jagoda disse a êsse jornalista: “Poderá fazer-me o grande favor de escrever sôbre o meu orfanato, para uma revista de Nova Iorque?” O repórter olhou-o, com surprêsa, e o chefe da Polícia Secreta explicou: “Você compreende, tenho um tio em Brooklyn, irmão de minha mãe, que lê essa revista. Se ler seu artigo, escreverá para minha mãe, e eu me sentirei melhor.” O repórter escreveu a história e em regozijo Jagoda poupou várias vidas e lhe foi grato até o fim de sua existência. O problema não era a mãe de Jagoda, mas sua consciência. Não podia suportar a desumanidade total. Um psiquiatra vienense que visitou a Alemanha Oriental conta que os psiquiatras falam, ali, de um colapso neurótico a que dão o nome de “doença dos funcionários”. Referem-se à doença que toma a forma de um colapso neurótico em funcionários comunistas que permanecem longo tempo “em serviço e que a certa altura não toleram mais. Poderíamos coligir farto material em todos os países e culturas para ilustrar o mesmo princípio, ou seja, que não é possível viver desumanamente tôda a vida sem sofrer reações severas. 134 Citei exemplos da Rússia stalinista e da Alemanha nazista, mas não quis dizer com isso que não tenhamos problemas semelhantes nos Estados Unidos, e em todo o mundo ocidental; nosso problema não é, no caso, de crueldade ou espírito de destruição, mas de tédio. A vida não tem sentido. As pessoas vivem, mas não se sentem vivas – a vida corre como areia. E a pessoa que está viva e, conscientemente ou não, sabe que não vive, sente repercussões que, se tiver conservado uma pequena sensibilidade de vida, freqüentemente resultam numa neurose. E são essas pessoas que consultam hoje os analistas. Em nível consciente, queixam-se de um casamento ou emprêgo insatisfatório, ou coisas semelhantes; mas se indagarmos o que se oculta sob tais queixas, a resposta, habitualmente, é que a vida não tem sentido. Tais pessoas sentem que vivem num mundo em que deveriam estar animados, interessados, ativos, e não obstante se sentem mortas e inumanas. Para tratar realmente do problema ético do nosso tempo o problema do homem moderno –, devo começar dizendo que, embora as normas éticas da conduta humana sejam idênticas para todos, não obstante cada época e cultura tem seus problemas particulares. Não buscarei discutir os problemas das finalidades éticas dos vários períodos, mas sim os problemas éticos do século XIX e os do século XX. Os principais problemas éticos, os principais pecados do século XIX podem, ao que me parece, ser relacionados como segue: primeiro, a exploração – o homem se alimentava de seu semelhante; fôsse a exploração do trabalhador, do camponês ou do negro no Congo ou no Sul dos Estados Unidos, o homem usava seu semelhante como alimento – não exatamente de forma canibalística, pois tinha melhor alimento, mas usava a vida, e a energia de outro homem para alimentar-se. O segundo problema moral do século XIX era o autoritarismo – os homens no poder sentiam que em virtude de sua fôrça tinham o direito de mandar e limitar os outros homens. Era a autoridade dos pais sôbre os filhos, tão bem descrita em The Way of All Flesh, de Butler, a autoridade dos homens sôbre as mulheres, dos patrões sôbre os trabalhadores, dos Estados sôbre os territórios, especialmente quando habitados por gente de côr diferente. O terceiro problema era a desigualdade. 135 Considerava-se certo que pessoas na terra (e até mesmo dentro da mesma nação) vivessem em circunstâncias materiais de completa desigualdade – e que os sexos não eram iguais, que as raças não eram iguais, apesar da suposta obediência aos preceitos do Cristianismo, que em essência é uma religião universal baseada no conceito de que somos todos filhos de Deus. Outro vício do século XIX, particularmente o da classe média, foi a sovinice – acumulação, poupança de sentimentos e coisas. Intimamente relacionada com essa atitude estava o individualismo egoísta: “meu lar é meu castelo”, “minha propriedade sou eu”. Tendemos a considerar tais vícios como peculiares do século XIX e sentimos que, realmente, progredimos muito mais do que nossos antepassados. Já não praticamos tais males e nos sentimos bem. Talvez tôda geração veja assim seus próprios problemas éticos. Tal como os franceses combateram, estratègicamente, na Segunda Guerra Mundial com as idéias da Primeira, também toda pessoa trava sua luta moral em têrmos da geração precedente. Verá, fàcilmente, como superou de forma maravilhosa certos vícios, mas não vê que a negação do que antes existia não é em si uma realização, e que numa sociedade e cultura em transformação não se reconhecem os novos vícios devido à sensação de felicidade provocada pelo desaparecimento dos velhos vícios. Voltemos aos vícios do século XIX e vejamos o que foi feito dêles. Não temos hoje, na verdade, o espírito autoritário de então. As crianças podem “expressar-se” e fazer o que lhes agrada. Os trabalhadores conversam com psicólogos, aos quais descrevem seus sentimentos, e nenhum patrão ousaria agir atualmente como o patrão de há cinqüenta anos. Mas não temos princípios, não temos nenhum senso de valôres ou padrão de valôres. Gostaria de falar, aqui, de um conceito da distinção entre a autoridade irracional e a racional. Pela primeira entendo a autoridade baseada na fôrça, física ou emocional, e cuja função é a exploração de outras pessoas, materialmente, emocionalmente ou de qualquer outra forma. A autoridade racional é a autoridade baseada na competência e cuja função é ajudar a outra 136 pessoa a realizar determinada tarefa. Creio que essas autoridades estão muito confundidas, hoje. Se Joãozinho diz à mãe “dois e dois são cinco”, ela poderá julgar que lhe está inibindo a liberdade de expressão se insistir em que dois e dois são quatro. Se fôr muito sofisticada, ela poderá até mesmo justificar-se com o raciocínio de que os sistemas matemáticos não são absolutos, de qualquer modo, de forma que “meu Joãozinho, no final das contas, tem razão”. Quando lembramos o ensaio de Thoreau, A Vida Sem Princípios, escrito há cem anos, podemos ter dificuldades em acreditar que se trata de um problema do século XX. Evidentemente, já era um problema no século XIX. Mas se isso ocorria na época de Thoreau, ocorre hoje com intensidade ainda muito maior. que Thoreau viu, com grande sensibilidade, foi que as pessoas tinham opiniões, mas não convicções, que tinham fatos, mas não princípios. Essa evolução continuou, até assumir hoje proporções assustadoras e, creio, também um papel assustador na educação. A educação progressista era uma reação contra o autoritarismo do século XIX, e, como desafio, era uma realização construtiva. Mas juntamente com certas outras tendências em nossa cultura, deteriorou num laissez-faire no qual não se reconhece nenhum princípio, nenhum valor é formulado, nem existe qualquer hierarquia. Penso não numa hierarquia de poder, mas numa hierarquia de conhecimento e respeito pelos que são mais bem informados. Hoje, enfrentamos a suposição dogmática de que a espontaneidade, originalidade e individualismo estão necessàriamente em conflito com a autoridade racional e um sentido de aceitação de padrões. Um corretivo útil para essa atitude seria o conhecimento da arte de atirar com arcos, do Zen, que tende a combinar atitudes aparentemente contraditórias.80 Quanto ao segundo vício, o do entesouramento, certamente não entesouramos hoje em dia. Isso provocaria uma catástrofe 137 nacional. Nossa economia é baseada no consumo, no dispêndio. E, naturalmente, tais transformações morais são, freqüentemente, conseqüência de certas modificações econômicas. Nossa indústria de publicidade é um apêlo constante ao dispênndio e não à poupança. Que fazemos, então? Praticamos o consumo incessante, pelo próprio consumo. Sabemos de tudo isso, não é necessário discuti-lo. Cf. o fascinante livro de Eugen Herrigel, Zen in the Art of Archery (N. York, 1943), no qual o autor – filósofo alemão – descreve suas experiências no estudo dessa arte Zen, em Tóquio, durante sete anos. 80 Uma caricatura em The New Yorker mostra bem isso: dois homens olham um carro nôvo. Um dêles diz: “Não gosto de rabo-de-peixe, você não gosta de rabo-de-peixe, mas imaginou o que aconteceria à economia americana se ninguém gostasse de rabo-de-peixe?” Na realidade nosso perigo não é o de acumular, mas é igualmente grande – somos os consumidores eternos, recebendo, recebendo, recebendo. Oito horas por dia, qualquer que seja a nossa situação, trabalhamos. Somos ativos. Em nossos momentos de lazer, porém, somos completamente preguiçosos, com a passividade de consumidores. A atitude de consumidor passou, agora, do campo da Economia para invadir cada vez mais a esfera da vida diária. Consumimos cigarros e coquetéis, livros e televisão; parecemos procurar a grande mamadeira que nos proporcione a alimentação total. E por vêzes consumimos tranqüilizantes. A desigualdade é o terceiro vício que julgamos ter superado. Realmente, a desigualdade que existia e era permitida no século XIX está desaparecendo. Apesar do muito que resta ser feito, o observador objetivo se impressionará com o progresso obtido no sentido de uma igualdade de raças na América, especialmente no período transcorrido desde a Segunda Guerra Mundial. O progresso no sentido da igualdade econômica nos Estados Unidos também tem sido considerável. Mas a que nos levará isso? Deformamos a noção de igualdade, transformando-a numa noção de “semelhança”. Que significava o conceito de “igualdade” na grande tradição humanista? Significava que somos iguais num sentido: o de que todo homem é em si uma finalidade e não deve constítuirse em meio para os objetivos de ninguém. Igualdade é a condição na qual nenhum homem deve ser transformado em meio, mas sim todo homem deve permanecer como um fim em si mesmo, a despeito de sua idade, côr, sexo. Foi essa a definição humanística da igualdade que representa a base, na verdade, para o desenvolvimento das diferenças. 138 Sómente se pudermos ser diferentes sem estarmos ameaçados de tratamento desigual, sómente então seremos iguais. Mas, que fizemos nós? Transformamos o conceito de igualdade no conceito de semelhança. Na verdade, temos mêdo de ser diferentes porque temos mêdo de não ter direito de estarmos aqui, se formos diferentes. Indaguei recentemente a um homem de seus trinta anos por que tinha mêdo de fazer algo digno em sua vida, de viver intensamente e com ímpeto. Depois de refletir um momento, respondeu-me: “Tenho realmente mêdo porque isso significaria ser muito diferente.” Infelizmente, acredito que isso ocorra com muitas pessoas. Êsse conceito de igualdade, que tem todo o prestígio, tôda a dignidade de um grande conceito filosófico e humanístico, é mal empregado num dos mais degradantes, inumanos e perigosos aspectos de nossa cultura, ou seja, o da semelhança, que significa a perda de individualidade. Podemos vê-lo perfeitamente nas relações entre os sexos. Verifica-se nos Estados Unidos que os sexos se tornaram “iguais” a um ponto em que a polaridade entre êles desapareceu, e a fagulha criadora que só se produz com a polaridade dos opostos desapareceu. Mas, a menos que essa polaridade possa existir, não pode haver criatividade, pois é com o encontro de dois pólos que a centelha criadora pode surgir. Nessa transformação dos vícios do século XIX em vícios do século XX – que são chamados de virtudes – devemos notar também a considerável eliminação do individualismo e da exploração egocêntrica. Em nenhum outro país do mundo, a exploração desapareceu nas mesmas proporções em que nos Estados Unidos. Os economistas dizem que, dentro de um prazo relativamente curto, os resultados serão ainda mais fantásticos do que hoje. O individualismo egocêntrico pràticamente não existe – ninguém quer ficar só, todos querem estar em companhia de outros, as pessoas ficam em pânico com a possibilidade de estarem sós, mesmo por pouco tempo. Tais vícios desapareceram, mas quais os surgidos em seu lugar? O homem sente-se, e sente os outros, como coisas – meras mercadorias. Experimenta a energia vital como um capital a ser investido para obtenção de lucro, e ao lucro dá o nome de êxito. Fazemos máquinas que agem como homens e produzimos 139 homens que agem como máquinas. O perigo do século XIX foi o de nos tornarmos escravos; o perigo do século XX não é o de sermos escravos, mas robôs. Originalmente, tôda a nossa produção material era um meio para a realização de um fim. Um meio para a finalidade de maior felicidade – e é o que ainda afirmamos. Mas, na realidade, a produção material tornou-se um fim em si mesma, e não sabemos realmente que fazer com ela. Vejamos apenas um exemplo; o desejo de poupar tempo. Quando temos o tempo poupado, ficamos sem saber o que fazer dêle, e buscamos meios e formas de matá-lo. E recomeçamos a poupar o tempo. O homem, em nossa cultura, julga-se não um elemento ativo, não o centro de seu mundo, não um criador de seus próprios atos, mas antes uma coisa impotente. Seus atos e suas conseqüencias se transformam em seus senhores. Veja-se o símbolo ou talvez a realidade terrível – da bomba atômica. O homem adora os produtos de suas próprias mãos, os líderes que êle mesmo faz, como se lhe fôssem superiores, e não criações dêle. Acreditamos que somos cristãos ou judeus ou o que quer que seja, mas na verdade caímos no estado de idolatria cúja melhor descrição ainda se encontra nos profetas. Não oferecemos sacrifícios a Baal ou Astarde, mas adoramos as coisas: produção, êxito; somos ingênuamente inconscientes de que somos idólatras, e pensamos ser sinceros ao falarmos de Deus. Certas pessoas chegam a tentar combinar a religião e materialismo, até que a religião se transforma no método de obter maior êxito por si mesmo, sem ajuda do psiquiatra. Na verdade, as coisas se tornaram os objetivos da preocupação final. E qual o resultado? O resultado é que o homem está vazio, infeliz, entediado. Quando falamos do tédio, as pessoas pensam, naturalmente, que êle não é agradável, mas não o consideram como problema sério. Estou convencido de que o tédio é uma das maiores torturas. Se tivéssemos de imaginar o Inferno, para nós seria o lugar onde estivéssemos continuamente entediados. Na verdade, as pessoas fazem um esfôrço fanático para evitar o tédio, correndo de uma coisa para a outra, porque tal sensação é insuportável. Quem tem a “sua” neurose e o “seu” analista, isso o ajuda a sentir-se menos entediado. Mesmo que tenha ansiedade 140 e sintomas compulsivos, êstes pelo menos são interessantes. Na verdade, estou convencido de que uma das motivações dessas coisas é a fuga ao tédio. Creio que a frase “o homem não é uma coisa” constitui o tópico central do problema ético do homem moderno. O homem não é uma coisa, e, se tentarmos transformá-lo nisso, podemos arruiná-lo. Ou, citando Simone Weil: “O poder é a capacidade de transformar o homem numa coisa porque transformamos um ser vivo num cadáver.” O cadáver é uma coisa. O homem, não. O poder final – o poder de destruir – é exatamente o poder final de transformar a vida numa coisa. O homem não pode ser montado e desmontado novamente, como as coisas. A coisa é previsível, o homem não. A coisa não pode criar, o homem pode. A coisa não tem eu, o homem tem. O homem tem a capacidade de dizer a palavra mais peculiar e difícil da língua, “eu”. As crianças só relativamente tarde aprendem essa palavra, mas depois disso dizem, sem hesitação, “eu acho”, “eu penso”, “eu faço”. E se examinarmos o que estamos realmente dizendo – a realidade do que afirmamos – verificaremos que isso não é verdade. Seria muito mais acertado dizer “algo pensa em mim”, “algo sente em mim”. Se, ao invés de perguntarmos a uma pessoa “como vai?”, perguntamos “quem és?”, ela se surpreenderá. Qual a primeira resposta que dará? Primeiro, seu nome, mas o nome nada tem a ver com a pessoa. Em seguida, diria: “eu sou médico, sou casado, pai de dois filhos”. Tais qualidades poderiam também ser atribuídas a um carro – é um sedã de quatro portas, ete. O carro não pode dizer “eu”. O que a pessoa oferece como descrição de si mesma é, na realidade, uma lista das qualidades de um objeto. Pergunte-se a alguém, ou a nós mesmos, quem somos, quem é esse “eu”. O que queremos dizer quando usamos a expressão “eu acho”? Achamos ou sentimos realmente, ou algo em nós sente? Sentimo-nos realmente como o centro do mundo, não um centro egocêntrico, mas no sentido de que somos “originais”, e por isso quero dizer que os pensamentos e os sentimentos se originam em nós? Se nos sentarmos por quinze ou vinte minutos, pela manhã, e tentarmos não pensar em nada, mas esvaziar nossa mente, veremos como nos é difícil ficar sózinhos conosco e ter um sentimento de que “isso sou eu”. 141 Quero mencionar mais um ponto que se refere à diferença entre conhecer as coisas e conhecer o homem. Posso estudar o cadáver ou um órgão, e isso é uma coisa. Posso usar meu intelecto, e meus olhos também, bem como minhas máquinas e ferramentas, para estudar essa coisa. Mas se quero conhecer o homem, não posso estudá-lo dessa forma. É claro que posso tentar, e escrever algo sôbre a freqüência dêste ou daquele comportamento e sobre a porcentagem desta ou daquela característica. Grande parte da ciência da Psicologia se ocupa disso, mas, ao fazê-lo, trata o homem como uma coisa. O problema do psiquiatra e do psicanalista, porém, é o problema de que todos nos devíamos ocupar – compreender nossos vizinhos e a nós mesmos é o mesmo que compreender que o ser humano não é uma coisa. O processo dessa compreensão não pode ser realizado pelo mesmo método no qual o conhecimento das Ciências Naturais pode ser obtido. O conhecimento do homem só é possível no processo de relacionarmo-nos com êle. Sómente se eu me relacionar com o homem a quem quero conhecer, sómente no processo de nos relacionarmos com outro ser humano, poderemos realmente saber alguma coisa sôbre êle. O conhecimento final sôbre outro ser humano não pode ser expresso em pensamentos ou palavras – tal como não podemos explicar a alguém como é o gosto do vinho do Reno. Poderíamos tentar durante cem anos, mas jamais tal gôsto seria conhecido sem provar o vinho. E jamais podemos esgotar a descrição de uma personalidade, de um ser humano, em sua plena individualidade. Mas podemos conhecê-lo num ato de empatia, num ato de experiência plena, num ato de amor. Tais são as limitações da Psicologia científica, ao que me parece, quando tem como objetivo a plena compreensão dos fenômenos humanos, pela palavra ou pelo conteúdo do pensamento. É da maior importância para o psiquiatra e o psicanalista saber que sómente nessa atitude de correlação êle pode compreender alguém, e isso me parece também muito importante para o clínico-geral. O paciente, portanto, deve ser visto como um ser humano, e não apenas como “uma enfermidade”. O médico é treinado numa atitude científica, na qual observa, como se observa no estudo das Ciências Naturais. Para compreender seu paciente, 142 porém, e não tratá-lo como coisa tem de aprender outra atitude que é própria da ciência do homem: como relacionarse, na qualidade de ser humano, com outro ser humano, usando a concentração e a mais completa sinceridade. A menos que isso se faça, tôdas as frases sôbre o paciente como pessoa serão apenas conversa fiada. Quais são, portanto, as exigências éticas de nossa época? Primeiramente, superar essa “condição de coisa” – ou, usando um têrmo técnico, a “reificação” do homem. Superar o conceito de nós mesmos e dos outros como coisas, a nossa indiferença, nossa alienação em relação aos outros, à natureza e a nós mesmos. Segundo, para chegarmos outra vez a um nôvo senso do “eu”, a uma experiência do “eu sou”, ao invés de sucumbirmos ao sentimento de automato no qual temos a ilusão de que “eu sou o que penso”, quando na realidade eu não penso, sendo na verdade como a pessoa que coloca o disco na vitrola e julga estar tocando a música. Outra finalidade que podemos mencionar é a de tornar-se criador. Que é a criatividade? Poderia significar a capacidade de criar pinturas, romances, quadros, obras de arte, idéias. Decerto, isso é uma questão de aprendizado e de ambiente e, parece-me, também de genes. Mas há outra criatividade que é uma atitude, uma condição atrás de tôda a criatividade no primeiro sentido. Enquanto o primeiro tipo de criatividade é a capacidade de transmitir a experiência criadora ao plano material, à criação de algo que se pode expressar na tela ou em qualquer outro meio, a criatividade no segundo sentido refere-se a uma atitude que pode ser definida simplesmente: estar consciente e reagir. Isso parece muito simples, e pareceme que a maioria das pessoas dirá “evidentemente, estou pronto a reagir, a corresponder”. Ter consciência significa ter realmente consciência – do que uma pessoa realmente é, ter consciência de que uma rosa é uma rosa é uma rosa, como disse Gertrude Stein –, ter consciencia de uma árvore e não ter consciência dela como algo que se enquadra no conceito da palavra árvore, como a maioria das pessoas habitualmente faz. Darei um exemplo. Certo dia, uma mulher que eu estava analisando chegou à consulta muito entusiasmada. Estivera descascando ervilhas na cozinha. Disse-me: “Pela primeira vez na 143 minha vida senti que as ervilhas podem rolar.” Ora, todos sabemos disso, desde que elas estejam sôbre uma superfície lisa. Sabemos que uma bola ou qualquer outro objeto redondo rola; mas o que realmente sabemos? Sabemos, em nossa mente, que um objeto redondo, sôbre a superfície lisa, rola. Vemos o fenômeno e afirmamos que os fatos correspondem ao que sabemos; mas isso é muito diferente da experiência criadora de ver realmente o movimento. As crianças procedem assim. É por isso que podem brincar repetidamente com uma bola, porque não se entediam, porque não pensam nela, apenas a vêem e a experiência é tão maravilhosa que podem vê-las muitas vêzes. Essa capacidade de ter consciência da realidade de uma pessoa, de uma árvore, de alguma coisa, de corresponder a essa realidade, é a essência da criatividade. Creio que um dos problemas éticos de nossa época é educar os homens, as mulheres e a nós mesmos para que tenhamos consciência, e para reagirmos. Outro aspecto disso é a capacidade de ver; ver o homem no ato da relação, e não vê-lo como objeto. Em outras palavras, devemos lançar as bases de uma nova ciência do homem na qual êle seja compreendido não sómente com o método das Ciências Naturais, que tem seu lugar adequado, e se aplica também a muitos campos da Antropologia e da Psicologia, mas também no ato do amor, no ato da empatia, no ato de vê-lo como homem. Mais importante do que todos êsses fins é a necessidade de colocar o homem novamente no controle, de fazer que os meios sejam novamente meios e os fins sejam novamente fins, de reconhecer que nossas realizações no mundo do intelecto e da produção material só têm sentido se forem meios para um fim: o pleno nascimento do homem, ao se tornar êste plenamente humano. É fácil, por certo, dizer que os médicos são parte dessa cultura e sociedade, e sofrem dos mesmos problemas e defeitos de todos os demais. Devido à natureza de seu trabalho, porém, devem relacionar-se com seus pacientes; precisam aprender não sómente o método da Ciência Natural, mas também o da ciência do homem. É fato estranho que os médicos sejam diferentes; a profissão médica é um anacronismo em relação ao seu método de trabalho. Refiro-me à diferença entre a produção artesanal e a produção industrial. Na produção artesanal, tal 144 como existia na Idade Média, o homem fazia seu trabalho sózinho. Poderia ter um ajudante, ou aprendiz, ou alguém que o ajudasse, que limpasse o chão, aplainasse a madeira. Mas a tarefa essencial era feita por êle. Na moderna produção industrial, temos o oposto. Temos o princípio de um alto grau de divisão do trabalho. Ninguém faz a totalidade do produto. Os responsáveis organizam o todo, mas não o fazem; e os que fazem o trabalho específico jamais vêem o todo.Tal é o método da produção industrial. O método de trabalho do médico é ainda o do artesão. Pode ter alguns assistentes, pode ter êste ou aquêle equipamento, mas com exceção de uns poucos que procuram introduzir os métodos industriais na prática da medicina, a maioria dos médicos ainda age como artesã. São êles que vêem o paciente e assumem a responsabilidade. Além disso, há outra diferença. Todos falam hoje que trabalham para ganhar dinheiro. Compreendo que os médicos ainda pretendem que tal não é realmente a principal razão de seu trabalho, que agem no interêsse do paciente, e só incidentalmente ganham dinheiro. O artesão da Idade Média tinha a mesma atitude. Naturalmente, ganhava dinheiro, mas trabalhava, por amor à arte, e muitas vezes preferia uma recompensa menor a um trabalho entediante. A profissão médica é ainda uma vez. anacrônica, talvez ainda menos realista sob êsse aspecto do que no caso do seu processo de trabalho. Isso pode ter duas conseqüências. Pode prestar-se à hipocrisia de proclamar idéias que são tradicionais sem que exista um sentimento de fidelidade a tais idéias. Mas há também a possibilidade de que os médicos, exatamente porque seu método de trabalho ainda não foi despersonalizado, porque ainda constitui um trabalho no sentido artesanal, tenham maiores possibilidades que os homens de qualquer outra profissão. Essas possibilidades existem desde que êles reconheçam a oportunidade – a de ajudarem a nos guiar a um nôvo caminho de humanismo, a uma nova atitude de compreensão do homem, que envolve a consciência, pelo médico e pelo paciente, de que o homem não é uma coisa. 145 DAS LIMITAÇõES E PERIGOS DA PSICOLOGIA A CRESCENTE popularidade da Psicologia, em nossos dias, é recebida por muitos como um indício promissor de que nos aproximamos do postulado délfico do “Conhece-te a ti mesmo”. Sem dúvida, há certa razão nessa interpretação. A idéia do autoconhecimento tem raízes na tradição judaicocristã. É parte da atitude do Iluminismo. James e Freud tinham raízes profundas nessa tradição, e indubitàvelmente ajudaram a transmitir êsse aspecto positivo da Psicologia à nossa era presente. Mas tal fato não nos deve levar a desconhecer outros aspectos do interêsse contemporâneo pela Psicologia, que são perigosos e prejudiciais ao desenvolvimento espiritual do homem. É dêsses aspectos que nos ocuparemos agora. O conhecimento psicológico adquiriu uma função particular na sociedade capitalista, função e sentido totalmente diversos dos implícitos na frase “Conhece-te a ti mesmo”. A sociedade capitalista se centraliza em tórno do mercantilismo – do mercado de produtos e do mercado de trabalho – onde os artigos e serviços são trocados livremente, independente de padrões tradicionais e sem fôrça ou fraude. Ao invés disso, o conhecimento do cliente torna-se de principal importância para o vendedor. Se isso ocorria há cinqüenta ou cem anos, a significação do conhecimento do comprador aumentou cem vêzes nas décadas recentes. Com a crescente concentração de emprêsas e capitais, torna-se cada vez mais importante saber antecipadamente os desejos do comprador, não só conhecê-los como influenciá-los e manipulá-los. O investimento de capital na escala das modernas emprêsas gigantes não é feito por “intuição”, mas depois de uma exaustiva investigação e manipulação 146 do comprador. Além dêsse conhecimento do cliente (“psicologia do mercado”), surgiu um nôvo campo da Psicologia, baseado no desejo de compreender e manipular o trabalhador e o funcionário. Esse nôvo setor é denominado de “relações humanas”. É o resultado lógico da modificação de relações entre o capital e o trabalho. Ao invés da simples exploração, há a cooperação entre as gigantescas emprêsas e a burocracia do trabalhismo e do sindicalismo, tendo ambas chegado à conclusão de que, a longo prazo, é mais útil fazer concessões do que se combaterem mutuamente. Além disso, verificou-se também que um operário satisfeito, “feliz”, trabalha melhor e contribui mais para o funcionamento suave necessário às grandes emprêsas. Usando o interêsse popular pela Psicologia e pelas relações humanas, o operário e o funcionário são estudados e manipulados pelos psicólogos. O que Taylor fêz pela racionalização do trabalho físico, os psicólogos estão fazendo para o aspecto mental e emocional do trabalhador. Êste é transformado numa coisa e tratado e manipulado como coisa; as chamadas “relações humanas” são, na realidade, as mais inumanas, porque são “reificadas” e alienadas. Da manipulação do comprador, do operário e do funcíonário, o interêsse da Psicologia difundiu-se à manipulação de todos, tal como se vê claramente na política. A idéia da democracia centralizava-se, a princípio, em tôrno do conceito de cidadãos capazes de discernir e ter responsabilidades, mas, na prática, ela se tornou cada vez mais influenciada pelos métodos de manipulação, desenvolvidos inicialmente na pesquisa do mercado e nas “relações humanas”. Embora tudo isso seja bem conhecido, desejo agora examinar um problema mais sutil e difícil, relacionado com o interêsse pela psicologia individual, especialmente com a grande popularidade da Psicanálise. A questão, é: Até que ponto a Psicologia (conhecimento dos outros e de si mesmo) é possível? Quais os limites dêsse conhecimento e quais os perigos se tais limites não forem respeitados? Sem dúvida, o desejo de conhecer nosso próximo e a nós mesmos corresponde a uma necessidade profunda dos sêres humanos. O homem vive dentro de um contexto social. Necessita relacionar-se com outros homens, pois de contrário enlouquecerá. 147 O homem é dotado de razão e imaginação. Seu próximo e êle mesmo constituem um problema que não pode deixar de resolver, um segrêdo que deve tentar descobrir. A tentativa de compreender o homem pelo pensamento é chamada de “Psicologia” ou “o conhecimento da alma”. Psicologia, nesse sentido, é uma tentativa de compreender as fôrças subjacentes ao comportamento do homem, a evolução do caráter do homem e as circunstâncias que determinam tal evolução. Em suma, a Psicologia procura dar uma explicação racional da essência mais íntima da alma individual. Mas o conhecimento racional completo só é possível em relação às coisas que podem ser dissecadas sem serem destruídas, podem ser manipuladas sem prejuízo de sua natureza mesma, podem ser reproduzidas. O homem não é uma coisa, não pode ser dissecado sem ser destruído, não pode ser manipulado sem ser prejudicado, não pode ser reproduzido artificialmente. Conhecemos nosso próximo e a nós mesmos, e não obstante não conhecemos nem a êle nem a nós mesmos, porque não somos coisas, e nosso próximo não é uma coisa. Quanto mais fundo descemos em nosso ser ou no ser de alguém, mais nos foge o objetivo de conhecer plenamente êsse alguém. Mesmo assim, não podemos deixar de penetrar no segrêdo da alma do homem, no núcleo que constitui o “êle”. Que é, então, conhecer a nós mesmos ou conhecer outra pessoa? Em resumo, conhecer-nos significa superar as ilusões que temos sôbre nós mesmos; conhecer nosso próximo significa superar as “deformações paratáxicas” (transferência) que temos a respeito dêle. Todos nós sofremos, em proporções diferentes, de ilusões a nosso respeito. Estamos envoltos pelas fantasias sôbre nossa onisciência e onipotência, que quando crianças nos pareciam perfeitamente reais. Racionalizamos nossas motivações más como frutos da benevolência, dever ou necessidade; racionalizamos nossa fraqueza e mêdo como o serviço a boas causas, nossa falta de relações como resultado da falta de correspondência dos outros. Com nosso próximo, deformamos e racionalizamos outro tanto, fazendo-o porém na direção oposta. Nossa falta de amor faz com que êle pareça hostil, quando simplesmente é tímido; nossa submissão o transforma num monstro dominador, quando êle está simplesmente se afirmando; 148 nosso mêdo da espontaneidade faz com que êle pareça infantil, quando está realmente sendo criança e espontâneo. Conhecer mais a nosso respeito significa eliminar os muitos véus que nos ocultam, e tornar possível ver nossos vizinhos com clareza. Um véu após outro é levantado, uma deformação após outra é corrigida. A Psicologia pode mostrar-nos o que o homem não é. Não nos pode dizer o que cada homem, cada um de nós, é. A alma do homem, a essência singular de cada pessoa, jamais pode ser apreendida e descrita adequadamente. Só pode ser “conhecida” na medida em que não fôr erradamente concebida. A finalidade legítima da Psicologia, portanto, é negativa: a eliminação das deformações e ilusões; e não positiva, que seria o pleno e completo conhecimento do ser humano. Há, porém, outro caminho ao conhecimento do segrêdo do homem: não o do pensamento, mas do amor. O amor é a penetração ativa da outra pessoa, na qual o desejo de conhecer é aplacado pela união. (É o amor no sentido bíblico de daath contra ahaba.) No ato da fusão, conhecemos o próximo, conhecemo-nos a nós mesmos, conhecemos a todos – e nada “conhecemos”. Só sei de uma forma pela qual o conhecimento do que vive é possível ao homem – pela experiência da união, não por qualquer conhecimento que nosso pensamento possa ter. A única possibilidade do conhecimento pleno está no ato do amor; êsse ato transcende o pensamento, transcende as palavras. É o mergulho ousado na essência de outro – ou na minha própria essência. O conhecimento psicológico pode ser uma condição para o conhecimento total no ato do amor. Tenho de conhecer a outra pessoa e a mim mesmo objetivamente, a fim de poder ver sua realidade, ou antes, a fim de superar as ilusões, a imagem irracionalmente deformada que tenho dela. Se conheço um ser humano tal como êle é, ou antes, se sei o que êle não é, então posso conhecê-lo em sua essência última, através do ato do amor. O amor é uma realização difícil. Como tenta o homem que não conhece o amor penetrar no segrêdo de seu vizinho? Há outro caminho, desesperado, para isso: o do completo poder 149 sôbre outra pessoa, o poder que a leva a fazer o que desejo, sentir o que quero, pensar o que penso – que a transforma numa coisa de minha propriedade. O grau mais extremo dessa tentativa de conhecer está no sadismo, no desejo de fazer sofrer um ser humano, torturá-lo, forçá-lo a trair seu “segrêdo” pelo sofrimento, ou finalmente destruí-lo. Na ânsia de penetrar o segrêdo do homem está a motivação essencial da busca do que há de mais profundo e intenso na crueldade e na destruição. Um autor russo, Isaac Babel, expressou tal idéia de forma muito sucinta. Cita um companheiro, oficial na guerra civil russa, que havia pisoteado um antigo senhor até matá-lo, reproduzindo-lhe as seguintes palavras: “Com um tiro – é o que me parece –, com um tiro apenas nos livramos da pessoa... com o tiro jamais chegamos à alma, onde está a pessoa e como se revela. Mas não quero poupar-me, e por mais de uma vez pisei um inimigo durante mais de uma hora. Você compreende, quero saber o que a vida é realmente, o que ela representa em nosso caminho.”81 Embora o sadismo e o desejo de destruir sejam motivados pelo desej o de forçar o segrêdo do homem, tal caminho jamais pode alcançar o objetivo pretendido. Fazendo sofrer o próximo, aumento a distância entre mim e êle, a um ponto em que o conhecimento se torna impossível. O sadismo e a destruição são tentativas deformadas, desesperadas e trágicas, de conhecer o homem.82 O problema de conhecer o homem tem um paralelo no problema teológico de conhecer Deus. A teologia negativa postula que não posso fazer nenhuma afirmação positiva sôbre Deus. 150 Só podemos conhecer de Deus aquilo que Êle não é. Como diz Maimônides, quanto mais sei sôbre o que Deus não é, mais sei sôbre Êle. Ou como afirma Meister Eckhad: “Enquanto isso, o homem não pode saber o que Deus é, embora conheça perfeitamente o que Deus não é.” Uma conseqüência dessa teologia negativa é o misticismo. Se não posso ter pleno conhecimento de Deus no pensamento, se a teologia é, na melhor das hipóteses, negativa, o conhecimento positivo de Deus só pode ser conseguido pelo ato de união com Êle. “The Life and Adventures of Matthew Pavliehenko”, Isaac Babel, The Collected Stories (N. York, 1955, pág. 106), traduzidas para o inglês por Walter Morison. 82 Nas crianças, vemos freqüentemente às claras êsse caminho para o conhecimento, e como parte do seu desejo normal de orientar-se num mundo de realidade fisica. A criança. toma a coisa e a desmancha, para conhecê-la; ou “desmancha” um animal, separa, cruelmente, as asas de uma borboleta para conhecê-la, forçar seu segrêdo. A crueldade aparente é motivada por algo mais profundo: o desejo de conhecer o segrêdo das coisas e da vida. 81 Traduzindo êsse princípio ao campo da alma humana, poderíamos falar de uma “psicologia negativa”, e, mais ainda, que o pleno conhecimento do homem pelo pensamento é impossível, e que o pleno conhecimento só pode ocorrer com o ato do amor. Tal como o misticismo é a conseqüência lógica da teologia negativa, o amor é a conseqüência lógica da psicologia negativa. Mostrar as limitações da Psicologia é mostrar o perigo resultante da ignorância dessas limitações. O homem moderno é solitário, tem mêdo e pequena capacidade de amar. Quer estar próximo de seu vizinho, e ao mesmo tempo está muito desligado e muito distante para poder estar próximo. Seus laços marginais para com o próximo são muitos e mantidos com facilidade, mas a “relação central”, de íntimo a íntimo, dificilmente existe. Em busca da aproximação êle deseja conhecimento, e na busca dêste encontra a Psicologia, que se torna um substituto do amor, da intimidade, da união com os outros e consigo mesmo. Torna-se o refúgio do homem solitário, alienado, e não um passo na direção do ato de união. Essa função da Psicologia como substituto torna-se evidente no fenômeno da popularidade da Psicanálise, que pode ser extremamente útil na correção de deformações paratáxicas dentro de nós mesmos e em relação ao nosso próximo. Pode desfazer uma ilusão após outra, e assim libertar o caminho para o ato decisivo que sómente nós podemos realizar: a “coragem de ser”, o pulo, o ato de compromisso final. O homem, após seu nascimento físico, sofre um processo contínuo de nascimento. A saída do ventre materno é o primeiro estágio do nascimento; deixar-lhe o seio é o segundo; o braço, o terceiro. A partir de então, o processo de nascimento pode parar; a pessoa pode desenvolver-se de forma ajustada socialmente, tornar-se útil e 151 continuar natimorta, no sentido espiritual. Para que se desenvolva até aquilo que potencialmente é como ser humano, tem de continuar a nascer, ou seja, tem de continuar a eliminar os laços originais com o solo e o sangue. Tem de passar de um ato de separação ao ato seguinte. Deve abrir mão de certas defesas e passar ao ato de compromisso, preocupação, amor. Acontece freqüentemente no tratamento psicanalítico um acôrdo tácito entre o analista e o paciente, na suposição de que a Psicanálise é um método para alcançar a felicidade e maturidade, e mesmo assim evitar o pulo, o ato, a dor da separação. Levando um pouco mais longe a analogia com o pulo, a situação psicanalítica assemelha-se, por vêzes, à do homem que quer aprender a nadar, mas sente-se aterrorizado pelo momento em que tem de pular na água e, confiar no seu poder de locomover-se nela. Permanece na margem da piscina e ouve seu instrutor explicar-lhe os movimentos que tem de fazer; isto é necessário e bom; mas se o aluno prossegue, falando, ouvindo e falando, começamos a desconfiar que falar e compreender transformaram-se num substituto do temido ato. Nenhuma compreensão psicológica pode, jamais, substituir o ato, o compromisso, o pulo. Pode levar a êle, prepará-lo, torná-lo possível – essa a função legítima da Psicanálise. Mas não deve procurar tentar ser um substitutivo para o ato responsável do compromisso, ato sem o qual nenhuma modificação real ocorre no ser humano. Para que a Psicanálise seja compreendida nesse sentido, é necessária outra condição. O analista deve superar a alienação de si mesmo e em relação ao seu próximo, que predomina no homem moderno. Como já disse, o homem moderno sente-se como uma coisa, a materialização de energias a serem investidas com lucro no mercado. Experimenta seu próximo como uma coisa a ser usada numa troca lucrativa. A Psicologia, a Psiquiatria e a Psicanálise contemporâneas estão envolvidas por êsse processo universal de alienação. O paciente é considerado como uma coisa, como a soma de muitas partes. Algumas dessas partes estão estragadas e precisam de consêrto, como as peças de um automóvel. Há um defeito aqui e um defeito ali, chamados de sintomas, e o psiquiatra considera como sua função consertar os vários defeitos. Não vê o paciente como uma totalidade global, singular, que só pode ser plenamente compreendida no ato de plena relação e simpatia. Para que a Psicanálise 152 atinja suas possibilidades reais, o analista tem de superar sua própria alienação, ser capaz de estabelecer uma relação com o paciente de íntimo a íntimo, e nessa relação abrir caminho para a experiência espontânea do paciente e assim para a “compreensão” de si mesmo. Não deve considerar o paciente como um objeto, ou mesmo limitar-se a ser um “observador participante”. Deve tornar-se uno com êle e ao mesmo tempo conservar sua individualidade e objetividade, de modo a poder formular o que experimenta nesse ato de individualidade. A compreensão final não pode ser totalmente expressa em palavras, não é uma “interpretação” que descreva o paciente como um objeto com vários defeitos e explique sua gênese, mas uma percepção intuitiva. Ocorre primeiro no analista e em seguida, para que o analista tenha êxito, no paciente. Essa percepção é súbita, é um ato intuitivo que pode ser preparado por muitas percepções cerebrais, mas jamais poderá ser substituída por elas. Se a Psicanálise desenvolver-se nesse sentido, terá ainda possibilidades inesgotáveis de transformação humana e espiritual. Se permanecer envolvida pelo defeito, socialmente condicionado, da alienação, poderá remediar êsse ou aquêle sintoma, mas será apenas outro instrumento para tornar o homem mais automatizado e mais ajustado a uma sociedade alienada. 153 O CONCEITO PROFÉTICO DA PAZ MESMO QUE a paz significasse apenas a ausência da guerra, do ódio, da mortandade, da loucura, sua realização estaria entre as mais altas finalidades que o homem pode pretender. Mas para compreender o conceito profético específico da paz é necessário avançar mais alguns passos e reconhecer que tal conceito não pode ser definido apenas como a ausência da guerra, sendo, como é, espiritual e filosófico. Baseia-se na idéia profética do homem, da história, da salvação e tem suas raízes na história da criação e da desobediência a Deus tal como contada no Livro do Gênese, e culmina no conceito do tempo messiânico. Antes da queda de Adão, ou seja, antes que o homem tivesse a razão e a autoconsciência, êle vivia em harmonia total com a Natureza. “E estavam ambos nus, o homem e a mulher, e não tinham vergonha.” Estavam separados, mas faltava-lhes consciência disso. O primeiro ato de desobediência, que é também o comêço da liberdade humana, “abre seus olhos”, o homem aprende como julgar o bem e o mal, adquire consciência de si e do seu próximo. A história humana começou. Mas o homem é amaldiçoado por Deus por sua desobediência.83 Que maldição é essa? Proclamam-se a inimizade e a luta entre o homem e o animal (“e colocarei a inimizade entre ti [a serpente] e a mulher, e entre a tua semente e a semente dela; ela pisará tua cabeça e tu lhe morderás o calcanhar”), entre o homem e o solo (“maldito o chão por tua causa; em penas 83 A palavra “pecado” não consta do texto bíblico. 154 comerás dêle todos os dias de tua vida; espinhos e cardos êle produzirá para ti; e comerás a erva do campo; comerás o pão com o suor de teu rosto, até que voltes ao chão”), entre o homem e a mulher (“e teu desejo será para teu marido, e êle te dominará”), entre a mulher e a sua função natural (“e parirás com dores”). A harmonia original, pré-individualista, foi substituída pelo conflito e pela luta. O homem tem de sentir-se estranho no mundo, estranho a si e à Natureza, para poder voltar a ser uno consigo mesmo, com seu próximo, com a Natureza. Tem de sofrer a separação entre êle mesmo, como sujeito, e o mundo, como objeto, como condição para superar essa divisão mesma. Seu primeiro pecado, a desobediência, é o primeiro ato de liberdade, é o comêçó da história humana. É na história que o homem evolui, surge, desenvolve-se. Desenvolve sua razão e sua capacidade de amar. Cria-se no processo histórico iniciado com seu primeiro ato de liberdade, que foi a liberdade de desobedecer, de dizer “não”. Qual, segundo o Velho Testamento, o papel de Deus nesse processo histórico? Primeiro e mais importante: Deus não interfere na história do homem por um ato de graça, Êle não modifica a natureza do homem, não transforma seu coração. (E nisso está a diferença básica entre o conceito profético e o conceito cristão da salvação.) O homem é corrupto porque se tornou estranho e não superou essa condição. Mas tal “corrupção” está na natureza mesma da existência humana, e é o próprio homem, e não Deus, que pode desfazer a estranheza, obtendo a nova harmonia. O papel de Deus na história, segundo o Velho Testamento, limita-se a enviar mensageiros, os profetas, que 1) mostram ao homem uma nova meta espiritual; 2) mostram ao homem as alternativas à sua escolha; 3) protestam contra todos os atos e atitudes através dos quais o homem se perde e perde o caminho da salvação. O homem, porém, é livre para agir, e cabe a êle decidir. Enfrenta a escolha entre a bênção e a maldição, entre a vida e a morte. A esperança de Deus é que êle escolha a vida, mas Deus não salva o homem por um ato de graça. Tal princípio expressa-se claramente na atitude de Deus quando os hebreus pedem a Samuel para dar-lhes um rei. 155 E então todos os anciãos de Israel se reuniram e procuraram Samuel em Ramá, e lhe disseram: – Vêde, sois velho e vossos filhos não seguem vosso caminho; nomeai para nós um rei para governarnos como tôdas as nações. Mas isso desagradou a Samuel, quando disseram: – Dai-nos um rei para nos governar. E Samuel orou ao Senhor, e o Senhor disse a Samuel: – Ouve a voz do povo em tudo o que ela falar. Pois êles não te rejeitaram, mas rejeitaram a mim como seu rei. Segundo todos os atos que me fizeram, desde o dia em que os trouxe do Egito até hoje, esquecendo-me e servindo a outros deuses, assim farão contigo. Ouve, porém, a voz do povo, mas adverte-o solenemente e mostra-lhe os modos do rei que reinará sôbre êle. E Samuel repetiu para o povo as palavras do Senhor, e disse: – Será essa a forma pela qual o rei reinará sôbre vós: tomará vossos filhos e os nomeará para seus carros e para serem seus cavaleiros, e para correr à frente de seus carros; e nomeará, segundo sua vontade, os comandantes dos milhares e os comandantes dos cinqüenta, e outros para arar seu campo e colhêr sua plantação, para fazer seus instrumentos de guerra e o equipamento de seus carros. Tomará vossas filhas para serem fabricantes de perfumes, cozinheiras e padeiras. Tomará o melhor de vossos campos, vinhas e olivais, para dá-lo a seus servos. Tomará o décimo de vosso grão e de vossas vinhas para dar a seus oficiais e seus servos. Tomará vossos servos, o melhor de vosso gado e o colocará a seu serviço. Tomará o décimo de vossos rebanhos, e sereis seu escravo. E nesse dia gemereis de vosso rei, a quem escolhestes por vós mesmos; e o Senhor não vos responderá nesse dia. Mas o povo recusou-se a ouvir a voz de Samuel, e disse. – Não! queremos ter um rei para que possamos ser como tódas as nações, e que o nosso rei nos governe e vá à nossa frente e lute as nossas batalhas. E quando Samuel ouviu tôdas as palavras do povo, repetiu-as aos ouvidos do Senhor e o Senhor disse a Samuel: – Ouve a voz do povo, e dá-lhe um rei. Samuel disse então aos homens de Israel: – Ide, todos, para as vossas cidades. (I Sam., 8:4-22.) Tudo o que Samuel pode fazer é “ouvir a voz do povo”, protestar e mostrar-lhe as conseqüências de seu ato, Se apesar disso o povo se decide por uma monarquia, a decisão e a responsabilidade lhe pertencem. O mesmo princípio é mostrado, claramente, na história bíblica da libertação do Egito. Na verdade, Deus mostra a Moisés como realizar alguns milagres. Tais milagres, porém, não são 156 essencialmente diferentes dos executados pelos mágicos egípcios. O objetivo dêles é, evidentemente, dar prestígio a Moisés aos olhos do Faraó e de seu próprio povo; são concessões a Moisés devido ao seu mêdo de que o povo não compreenda sua mensagem vinda de um Deus sem nome. No aspecto essencial, porém, que é de tornar o povo – ou o Faraó – pronto para a liberdade, Deus não interfere. O Faraó continua sendo como sempre foi, e até se torna pior – seu coração “endurece”. Os hebreus também não se modificam. Tentam escapar repetidamente da liberdade, para voltar à escravidão e à segurança proporcionadas pelo Egito. Deus não lhes modifica o coração, nem modifica o coração do Faraó. Deixa os homens a si mesmos – deixa que façam sua história, que preparem sua salvação. O primeiro ato de liberdade do homem é um ato de desobediência, e através dêle o homem transcende sua união original com a Natureza, adquire consciência de si e de seu próximo e de sua condição de estranhos. No processo histórico, o homem se cria. Cresce até à autoconsciência, ao amor, à justiça e quando atinge a finalidade da compreensão plena do mundo, pelo seu poder da razão e do amor, torna-se uno novamente, desfaz o “pecado” original, volta ao Paraíso, mas no nôvo nível da individualização e da independência humana. Embora o homem tenha “pecado” no ato de desobediência, seu pecado se justifica no processo histórico. Não sofre uma corrupção de sua substância, mas seu pecado mesmo é o comêço de um processo dialético que termina com sua autocriação e auto-salvação. Essa conclusão de sua autocriação, o fim da história de luta e conflito e o comêço de uma nova história de harmonia e união, é chamada de “tempo messiânico”, “fim dos dias”, ete. O Messias não é o salvador, não foi mandado por Deus para salvar o povo ou modificar-lhe a substância corrupta. O Messias é um símbolo da própria realização humana. Quando o homem consegue a união, quando êle está pronto, o Messias surgirá. O Messias não é mais Filho de Deus do que qualquer outro homem: é o rei ungido que representa a nova época da história. A interpretação messiânica do tempo é a de uma harmonia entre homem e homem, entre homem e mulher, entre homem 157 e Natureza. A nova harmonia é diferente do paraíso, só pode ser obtida se o homem desenvolver-se plenamente, para se tornar realmente humano, se fôr capaz de amar, se conhecer a verdade e fizer a justiça, se desenvolver seu poder de razão a um ponto em que o liberte da servidão do homem e da servidão das paixões irracionais. As descrições proféticas encerram muitos símbolos da idéia da nova harmonia. A terra é novamente frutífera, as espadas se transformarão em arados, o leão e o cordeiro viverão em paz, não haverá mais guerras, tôda a humanidade estará unida em verdade e amor. A paz, na visão profética, é um aspecto do tempo messiânico. Quando o homem tiver superado a divisão que o separa do seu próximo e da Natureza, então estará realmente em paz com aquêles de quem estava separado. Para isso, o homem tem de encontrar a “expiação”; a paz é o resultado da transformação do homem, na qual a união substituiu a alienação. Assim, a idéia da paz, do ponto de vista profético, não pode ser separada da idéia da realização da humanidade do homem. A paz é mais do que uma ausência de guerra, é a harmonia e união entre homens, é a superação da divisão e da alienação. O conceito profético da paz transcende o âmbito das relações humanas. A nova harmonia se faz também entre homem e Natureza. A paz entre homem e Natureza é a harmonia entre ambos. A separação deixa de existir, o homem não é ameaçado pela Natureza nem se dispõe a dominá-la: torna-se natural, e a Natureza torna-se humana. Êle e a Natureza deixam de ser adversários e tornam-se unos. O homem sentese à vontade no mundo natural, e a Natureza torna-se parte do mundo humano. Tal é a paz no sentido profético. (A palavra hebraica para paz, shalom, que poderia ser melhor traduzida como “totalidade”, indica o mesmo sentido.) O conceito do tempo messiânico e da paz messiânica difere, evidentemente, de acôrdo com as várias fontes proféticas. Não é nosso objetivo aqui entrar em detalhes dessas diferenças. Basta mostrar, com alguns exemplos característicos, vários aspectos da idéia do tempo messiânico, em sua ligação com a idéia de paz. 158 A noção do tempo messiânico como um estado de paz com a Natureza e o fim de todo impulso de destruição é assim descrita por Isaías: O lôbo viverá com a ovelha, o leopardo com o cabrito, o bezerro e o leão juntos, e a criança irá à frente dêles. A vaca e o urso se alimentarão juntos, os filhotes estarão juntos e o leão comerá palha como o touro. A criança nova brincará no ninho da víbora, e a criança desmamada colocará a mão na toca das serpentes. Não haverá destruição em tôda a minha sagrada montanha, pois a terra estará cheia de conhecimento do Senhor, assim como as águas cobrem o mar. (Isaías, 11:6-9.) A idéia da nova harmonia do homem com a Natureza no tempo messiânico significa não sómente o fim da luta do homem contra a Natureza, mas também que esta não se furtará ao homem – será transformada na mãe amamentadora e amante. A Natureza dentro do homem deixará de ser mutilada, e a Natureza fora do homem deixará de ser estéril. Como disse Isaías: Os olhos dos cegos se abrirão, os ouvidos dos surdos ouvirão. O coxo saltará como um cervo, e a língua do mudo cantará de alegria. Pois as águas irromperão nos descampados e as correntes no deserto. A areia candente se tornará como um poço, e o chão sedento minará água; o aprisco dos chacais se transformará em pântano, a grama se transformará em caniço e juncos. E haverá uma estrada, e será chamada de Caminho Santo; os impuros não passarão por ela, os tolos ali não entrarão. Não haverá nela leões, nem animais de rapina; estas não se encontrarão ali, mas os redimidos trilharão por essa Estrada. E os resgatados do Senhor voltarão, e irão a Sião cantando; a alegria perene estará em suas cabeças, terão alegria e contentamento, as dores e suspiros desaparecerão. (Isaías, 35:510.) Ou, como diz o segundo Isaías: Vêde, faço algo de nôvo: fontes surgem, não percebeis? Elas abrirão caminho pela desolação e rios no deserto. 159 Os animais selvagens me honrarão, os chacais e os avestruzes; pois eu dei água à desolação, rios ao deserto, dei de beber ao meu povo escolhido. (Isaías, 54:19-20.) A ideia de uma nova união entre os homens, na qual o sentimento de ser estranho e de destruição desaparecerá, é expressa por Miquéias: Êle julgará entre muitos povos e decidirá pelas nações fortes e distantes; e elas transformarão suas espadas em arados, suas lanças em ancinhos; nenhuma nação levantará a espada contra outra, nem aprenderá mais a guerra. Mas cada qual se sentará sob sua vinha e sua figueira e nada as fará ter mêdo; pois a boca do Senhor das hostes falou. Pois todos os povos caminham em nome de seu deus, mas nós caminhamos em nome do Senhor nosso Deus para sempre e sempre. (Miquéias, 4:3-5.) Mas no conceito messiânico o homem não sómente deixará de destruir outro homem, como terá superado a experiência do isolamento entre uma nação e outra. Uma vez o homem atinja o estado plenamente humano, o estranho deixa de ser um estranho, e o homem deixará de ser um estranho a si mesmo. A ilusão da diferença entre as nações desaparece: já não há povos escolhidos. Amós diz: Não sois vós como etíopes para mim, ó povo de Israel? – diz o Senhor. – Não trouxe Israel da terra do Egito, os filisteus da Capadócia e os sírios de Cirene? (Amós, 9: 7.) A mesma idéia de que tôdas as nações são igualmente amadas por Deus e que não existe filho favorito é expressa, com grande beleza, também por Isaías: Nesse dia, haverá uma estrada do Egito à Assíria, e os assirios virão ao Egito, os egípcios à Assiria, e os egípcios adorarão junto com os assírios. Nesse dia Israel será o terceiro com o Egito e Assiria, uma bênção em meio da terra, a quem o Senhor das hostes bendisse, dizendo: – Abençoado seja o Egito meu povo, a Assiria, obra de minhas mãos, e Israel, meu legado. (Isaías, 19:23,24.) 160 Resumindo: a idéia profética da paz é parte de todo o conceito histórico e religioso dos profetas, que culmina em sua idéia do tempo messiânico. A paz entre homem e homem, entre homem e Natureza è mais do que a ausência da luta: é a realização de uma verdadeira harmonia e união, é a experiência da “integração” com o mundo e consigo mesmo. É o fim da alienação, o retôrno do homem a si mesmo. 161 FIM DO LIVRO