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ERICH FROMM
O DOGMA DE CRISTO
e
Outros Ensaios Sôbre
Religião, Psicologia e Cultura
2ª edição
Tradução de
WALTENSIR DUTRA
ZAHAR EDITORES
RIO DE JANEIRO
Título original:
The Dogma of Christ
Psychology and Culture.
and
Other
Essays
on
Religion,
Publicado em 1963 por Holt, Rinehart and Winston, New York,
E.U.A.
Copyright 1955, 1958 e 1963 by Erich Fromm
Revisão tipográfica de
REVITEX
1965
Direitos para a língua portuguêsa adquiridos por
ZAHAR EDITORES
Rua México, 31 – Rio de Janeiro
que se reservam a propriedade desta tradução
Impresso no Brasil
INDICE
Prefácio
7
O DOGMA DE CRISTO .............................................................. 11
1 - METODOLOGIA E NATUREZA DO PROBLEMA ................ 11
2 - A FUNÇÃO SOCIOPSICOLÓGICA DA RELIGIÃO ............... 17
3 - CRISTIANISMO PRIMITIVO E O CONCEITO DE JESUS .... 25
4 - A TRANSFORMAÇÃO DO CRISTIANISMO E O
DOGMA HOMOOUSIANO ................................................ 48
5 - EVOLUÇÃO DO DOGMA ATÉ O CONCÍLIO DE NICÉIA .... 65
6 - OUTRA TENTATIVA DE INTERPRETAÇÃO........................ 73
7 - CONCLUSÃO ................................................................... 78
A PRESENTE CONDIÇÃO HUMANA .......................................... 81
SEXO E CARÁTER .................................................................... 89
PSICANÁLISE: CIÊNCIA OU LINHA PARTIDÁRIA? ....................105
O CARÁTER REVOLUCIONÁRIO ..............................................116
A MEDICINA E O PROBLEMA ÉTICO DO HOMEM MODERNO .131
DAS LIMITAÇÕES E PERIGOS DA PSICOLOGIA.......................146
O CONCEITO PROFÉTICO DA PAZ...........................................154
PREFÁCIO
A MAIORIA dos ensaios dêste volume foi escrita nos últimos
dez anos. O mais extenso, porém – O Dogma de Cristo –, foi
publicado pela primeira vez, em alemão, em 1930. O Professor
James Luther Adiams, da Faculdade de Teologia de Harvard,
traduziu-o há vários anos, sugerindo-me publicá-lo, num
volume, junto com outros trabalhos. Embora não concordasse
com muitas de minhas conclusões, o professor julgava que o
método e a argumentação tinham um interêsse intrínseco
bastante para justificar a publicação em inglês. Hesitei muito
em republicar esta manifestação antiga de meu pensamento, e
as razões são óbvias.
Em primeiro lugar, este ensaio foi escrito num período em que
eu era rigorosamente freudiano. Desde então, minhas opiniões
em Psicanálise modificaram-se bastante, e muitas das
formulações dêste ensaio seriam diferentes, se as escrevesse
hoje. Além disso, acentuei unilateralmente, neste trabalho, a
função social da religião como substituta da satisfação real e
como meio de contrôle social. Embora não se tenham
modificado minhas opiniões sôbre isso, hoje eu daria maior
destaque ao fato de que a história da religião reflete a história
da evolução espiritual do homem. Uma segunda razão está no
fato de ser-me impossível reestudar hoje a totalidade do
complexo material histórico analisado neste trabalho. Além
disso, muitos livros sôbre a história antiga do Cristianismo
foram publicados desde 1930, e qualquer revisão de O Dogma
de Cristo teria de levá-los em conta. Li muito do que se
publicou desde então, e alguns escritos, como The Formation
of Christian Dogma, de Martin Werner, pareciam apoiar, de
forma indireta, a minha interpretação. Reescrever, porém, a
totalidade dêste ensaio estava acima de minhas fôrças.
Concordei com a sua publicação na forma original quando
Arthur A. Cohen, da editôra Holt, Rinehart e Winston,
estudioso da Teologia e da Filosofia, insistiu, juntamente com
o Professor Adams, para que eu o apresentasse ao público de
língua inglêsa. Desnecessário dizer que a responsabilidade
dessa decisão cabe a mim sómente, e não a êles.
7
Ao que me consta, êste foi o primeiro trabalho em que se
procurou transcender a interpretação psicológica dos
fenômenos históricos e sociais, comum na literatura
psicanalítica. Estimulou-me o trabalho sôbre o mesmo
assunto, escrito por um de meus professores do Imstituto
Psicanalítico de Berlim, Dr. Theodor Reik, que empregou o
método tradicíonal. Procurei mostrar que não podemos
compreender as pessoas pelas suas ideias e ideologias, que só
podemos compreender ideias e ideologias compreendendo as
pessoas que as criaram e nelas acreditam. Para isso, temos de
transcender a psicologia individual e penetrar no campo da
psicologia psicanalítico-social. Assim, ao tratarmos das
ideologias, temos de estudar as condições sociais e
econômicas das pessoas que as aceitaram e procurar
identificar o que mais tarde chamei de “caráter social”.
Êste estudo se ocupa particularmente da análise da situação
sócio-econômica dos grupos sociais que aceitaram e
difundiram os ensinamentos cristãos. Sómente à base desta
análise tentamos uma interpretação psicanalítica. Quaisquer
que sejam os méritos dessa interpretação, o método de
aplicação da Psicanálise aos fenômenos históricos foi
desenvolvido em meus livros posteriores. Embora tenha sido
aperfeiçoado sob muitos aspectos, seu núcleo está em O
Dogma de Cristo de tal modo que, espero, seja ainda
interessante.
Examinei a tradução do Professor Adams, e compreendo a
dificuldade de passar para o inglês o meu alemão pesado e
acadêmico. Fiz pequenas modificações de palavras, mas resisti
sempre à tentação de modificar o conteúdo. Embora muitas
vêzes tivesse desejado substituir minha opinião antiga pelas
que hoje mantenho, pareceu-me que a revisão parcial não
teria sido honesta para com o leitor.
Os demais ensaios dêste livro não precisam de comentários.
Em A Medicina e o Problema Ético do Homem Moderno e O
Caráter Revolucionário, que na forma original eram
conferências, fiz pequenas modificações para a publicação
destinada a um público geral. Em Sexo e Caráter eliminei
simplesmente o que me pareceu ser repetição ociosa.
Agradeço ao Professor James Luther Adams pelo amor com
que traduziu para o inglês O Dogma de Cristo, e a Arthur A.
Cohen e Joseph Cunneet pela sua assistência editorial.
E. F.
Nova Iorque, 1963.
8
O DOGMA DE CRISTO
1
METODOLOGIA E NATUREZA DO PROBLEMA
UMA DAS REALIZAÇÕES essenciais da Psicanálise foi ter
eliminado a distinção falsa entre a psicologia social e a
individual. Freud acentuou que não existe uma psicologia
individual do homem isolado de seu meio social, porque o
homem isolado não existe. Freud não conhecia nenhum homo
psychologicus, nenhum Robinson Crusoé psicológico, como o
homem econômico da teoria econômica clássica. Pelo
contrário, uma de suas descobertas mais importantes foi a
compreensão do desenvolvimento psicológico das primeiras
relações sociais – as que se estabelecem com os pais, os
irmãos e irmãs.
Escreveu Freud:
É verdade que a psicologia individual se ocupa do homem
individual e explora os caminhos pelos quais êle procura satisfação
para seus impulsos instintivos. Raramente, porém, e somente em
condições excepcionais, a psicologia individual está em posição de
ignorar as relações dêsse indivíduo com seu próximo. Outra pessoa
está sempre envolvida na vida mental do indivíduo, seja como
modêlo, como objeto, como ajuda, como adversário. Assim, desde o
princípio, a psicologia individual, nesse sentido um pouco forçado,
mas perfeitamente justificável das palavras, é ao mesmo tempo a
psicologia social.1
Freud rompeu radicalmente com a ilusão de uma psicologia
social cujo objeto era “o grupo”. Para êle, o “instinto
Sigmund Freud, Group Psychology and the Analysis of the Ego, Londres:
Hogarth Press, Standard Edition, XVIII, 68.
1
11
social” não era o objeto da Psicologia, tal como não o era o
homem isolado, pois não constituía um instinto “original e
elementar”. Êle via “o início da formação da psique num
círculo mais limitado, com a família”. Mostrou que os
fenômenos psicológicos existentes no grupo devem ser
compreendidos à base de mecanismos psíquicos que operam
no indivíduo, e não à base de um grupo.2
A diferença entre a psicologia individual e social é mais
quantitativa do que qualitativa. A primeira leva em conta
todos os determinantes que afetaram a sorte do indivíduo, e
com isso chega a um quadro, completo ao máximo, da sua
estrutura psíquica. Quanto mais se amplia a esfera da
investigação psicológica – ou seja, quanto maior o número de
homens cujos traços comuns permitem um agrupamento –
tanto mais devemos reduzir as proporções de nosso exame da
estrutura psíquica total dos membros individuais do grupo.
Quanto maior, portanto, o número de temas de uma
investigação na psicologia social, tanto mais limitada a visão
da estrutura psíquica total de qualquer indivíduo dentro do
grupo estudado. Quando não se compreende isso, surgem
mal-entendidos, fàcilmente, em relação à avaliação dos
resultados da investigação. Esperamos saber alguma coisa
sôbre a estrutura psíquica de um membro do grupo, mas a
investigação sociopsicológica estuda apenas a matriz do
caráter, comum a todos os membros do grupo, sem levar em
Georg Simmel mostrou, de forma notável, o engano em se aceitar o grupo
como “sujeito”, como fenômeno psicológico. Diz êle: “O resultado externo
unificado de muitos processos psicológicos subjetivos é interpretado como
resultado de um processo psicológico unificado, isto é, de um processo da
alma coletiva. A unidade do fenômeno resultante se reflete na pressuposta
unidade de sua causa psicológica! O erro dessa conclusão, de que tôda a
psicologia coletiva depende, em sua distinção geral, da psicologia
individual, é óbvio: a unidade das ações coletivas, que parece ser apenas
um lado do resultado visível, é sub-repticiamente transferida para o lado
da causa íntima, do indivíduo subjetivo.” “Über der Sozialpsychologie”,
Archiv für Sozilawissenshaft und Sozialpolitik, XXVI, 1908.
2
conta a estrutura de caráter total de determinado indivíduo.
Êste último estudo jamais pode ser a tarefa da psicologia
social, sendo possível apenas
12
quando há um amplo conhecimento do desenvolvimento do
indivíduo.
Se,
por
exemplo,
numa
investigação
sociopsicológica, verificarmos que um grupo modifica sua
atitude agressivo-hostil para com a figura do pai, passando a
uma atitude passivo-submissiva, essa verificação representa
alguma coisa diferente da mesma afirmação, quando feita em
relação a uma pessoa, numa investigação psicológica
individual. No último caso, significa que tal modificação é
válida para a atitude total da pessoa, e no primeiro, que
constitui uma característica média comum a todos os
membros do grupo, que não desempenha necessàriamente um
papel central na estrutura de caráter de cada pessoa.
O valor da investigação sociopsicológica, portanto, não pode
estar no fato de adquirirmos através dela um conhecimento
pleno das peculiaridades psíquicas dos membros individuais,
mas sómente no fato de podermos estabelecer as tendências
psíquicas comuns que desempenham papel decisivo no seu
desenvolvimento social.
A superação da oposição teórica entre a psicologia individual e
social, realizada pela Psicanálise, leva à conclusão de que o
método
de
investigação
sociopsicológica
pode
ser
essencialmente idêntico ao método que a Psicanálíse aplica na
investigação da psique individual. Será, portanto, mais
prudente considerar ràpidamente as características essenciais
dêsse método, e que são significativas para o presente estudo.
Freud parte da opinião de que nas causas das neuroses – e o
mesmo é válido para a estrutura dos instintos nas pessoas
normais – a constituição sexual herdada e os fatos
experimentados formam uma série complementar:
Num extremo da série estão os casos sôbre os quais podemos dizer,
com certeza: essas pessoas teriam adoecido qualquer que fôsse a
sua experiência, quaisquer que fóssem os fatos a elas sucedidos,
por mais bondosa que a vida lhes tivesse sido, devido ao seu
desenvolvimento anormal da libido. No outro extremo estão os
casos com veredicto oposto – as pessoas que, sem dúvida, teriam
escapado à doença se a vida não lhes tivesse imposto determinadas
pressões. Nos casos intermediários da série, uma mar gem maior
ou menor do fator determinante (constituição sexual) se combina
com uma margem menor ou maior das imposições prejudiciais da
vida. Sua constituição sexual não teria provocado neurose se essas
pessoas não tivessem
13
sofrido tais e tais experiências, e as vicissitudes da vida não teriam
influído dramàticamente sôbre elas se a libido tivesse outra
constituição.3
Para a Psicanálise, o elemento constitucional na estrutura
psíquica dos normais ou dos doentes é o fator a ser observado
na investigação psicológica das pessoas, embora permaneça
intangível. O psicanalista preocupa-se com a experiência, e a
investigação de sua influência sôbre o desenvolvimento
emocional é sua finalidade primordial. A Psicanálise tem
consciência, decerto, de que o desenvolvimento emocional do
indivíduo é determinado mais ou menos pela sua constituição;
essa consciência é uma pressuposição da Psicanálise, mas
esta em si ocupa-se exclusivamente da investigação da
influência da situação de vida do indivíduo sôbre o seu
desenvolvimento emocional. Na prática isso significa que para
o método psicanalítico um conhecimento máximo da história
da pessoa – principalmente de suas experiências da primeira
infância, mas não apenas estas – é uma condição essencial.
Estuda a relação entre a vida da pessoa e os aspectos
específicos de sua evolução emocional. Sem amplas
informações sôbre a vida do indivíduo, a análise é impossível.
A observação geral revela, decerto, que determinadas
expressões típicas do comportamento indicam formas típicas
Sigmund Freud, A General Introduction to Psychoanalysis (New York
Liverigh Publishing Corp., 1943), pág. 304. Freud diz que “os dois fatores”
são “constituição sexual e realizações experimentadas, ou, se quisermos,
fixação da libido e frustração”; “são representados de modo que quando
um predomina, o outro é, proporcionalmente menos acentuado”.
3
de vida. Seria possível deduzir essas formas pela analogia,
mas tais deduções encerrariam um elemento de incerteza que
limitaria a sua validade científica. O método da psicanálise
individual é, portanto, um método delicadamente “histórico”: a
compreensão do desenvolvimento emocional à base do
conhecimento da vida do indivíduo.
O método de aplicação da Psicanálise a grupos não pode ser
diferente. As atitudes psíquicas comuns dos membros do
grupo só devem ser compreendidas à base de seus padrões
comuns. Tal como a psicologia psicanalítica individual
procura
14
compreender a constelação emocional do indivíduo, também a
psicologia social só pode compreender a estrutura emocional
do grupo por um conhecimento exato do padrão de sua vida. A
psicologia social só pode fazer afirmações sôbre as atitudes
psíquicas comuns a todos, e portanto exige o conhecimento de
situações de vida comuns a todos e características de todos.
Se o método da psicologia social não é bàsicamente diferente
da psicologia individual, há, não obstante, uma diferença que
deve ser assinalada.
Enquanto a pesquisa psicanalítica se ocupa primordialmente
de pessoas neuróticas, a pesquisa sociopsicológica se
interessa pelos grupos de pessoas normais.
O neurótico caracteriza-se pelo fato de não se ter conseguido
ajustar psiquicamente ao seu meio real. Pela fixação de certos
impulsos emocionais, de certos mecanismos psíquicos que em
determinado momento foram apropriados e adequados, êle
entra em conflito com a realidade. A estrutura psíquica do
neurótico é, portanto, quase totalmente ininteligivel sem o
conhecimento de suas experiências da primeira infância, pois
devido à sua neurose – manifestação de sua falta de ajuste ou
do âmbito particular das fixações infantis – até mesmo sua
posição como adulto é determinada essencialmente por essa
situação de infância. Mesmo para a pessoa normal, as
experiências da primeira infância são de significação decisiva.
Seu caráter, no sentido amplo, é determinado por elas e sem
elas torna-se incompreensível em sua totalidade. Mas como
adaptou-se psiquicamente à realidade, num grau mais alto do
que o neurótico, sua estrutura psíquica é em parte muito mais
compreensível que a do neurótico. A psicologia social ocupa-se
de pessoas normais, sôbre cuja situação psíquica a realidade
tem uma influência incomparàvelmente maior do que sôbre o
neurótico. Por isso, ela pode deixar de lado mesmo o
conhecimento das experiencias individuais da infância dos
vários membros do grupo que investiga. Do conhecimento da
vida socialmente condicionada, em que tais pessoas se
encontravam depois da primeira infância, a psicologia social
pode obter a compreensão das atitudes psíquicas comuns a
elas.
A psicologia social quer investigar como certas atitudes
psíquicas comuns aos membros de um grupo se relacionam
às
15
suas experiências de vida que lhes são comuns. Não é por
acaso que essa ou aquela direção da libido predomina numa
pessoa, que o complexo de Édipo encontra esta ou aquela
saída, tal como não é por acaso que as transformações nas
características psíquicas ocorrem na situação psíquica de um
grupo, seja na mesma classe de pessoas num período de
tempo, ou simultâneamente entre classes diferentes. É tarefa
da psicologia social indicar por que tais modificações ocorrem
e como devem ser compreendidas, à base da experiência
comum aos membros do grupo.
Esta nossa investigação se ocupa com um problema bem
delimitado de psicologia social, ou seja, a questão relacionada
com os motivos que condicionam a evolução dos conceitos
sôbre a relação de Deus Pai com Jesus, desde o início do
Cristianismo até à formulação do Credo de Nicéia, no século
IV. De acordo com os princípios teóricos expostos nas linhas
precedentes, esta investigação visa a determinar as
proporções em que a transformação em certas idéias religiosas
consiste numa expressão da transformação psíquica das
pessoas em causa, e as proporções em que tais
transformações são condicionadas pela forma de vida.
Procuraremos compreender as ideias, em têrmos dos homens
e do tipo de vida que levavam, e mostrar que a evolução do
dogma só pode ser compreendida através do conhecimento do
inconsciente, sôbre o qual a realidade externa influi e que
determina o conteúdo da consciência.
O método dêste trabalho exige que se dedique um espaço
relativamente grande à apresentação da situação de vida dos
povos investigados, de sua situação espiritual, econômica,
social e política – em suma, de suas “superfícies psíquicas”. Se
parecer ao leitor que se trata de uma ênfase desproporcional,
êle deverá lembrar que até mesmo nos estudos psicanalíticos
dos casos é necessário dedicar grande espaço à apresentação
das circunstâncias externas que cercam a pessoa. Neste
trabalho, a descrição da situação cultural total das massas de
povos analisadas e a apresentação de seu meio externo são
mais decisivas do que a descrição da situação real, no estudo
de um caso individual. A razão disso é que na natureza das
coisas a reconstrução histórica, embora não deva ser muito
detalhada, é incomparàvelmente mais complicada e mais
ampla do que um simples relato de fatos, à medida que
ocorrem na vida de uma pessoa. Acreditamos, porém, que
essa desvantagem deve ser tolerada, porque é essa a única
forma de se chegar a uma compreensão analítica dos
fenômenos históricos.
16
Êste estudo se ocupa com um tema já tratado por um dos
mais destacados representantes do estudo analítico da
religião, Theodor Reik.4 As diferenças de conteúdo, que
resultam necessàriamente de metodologia diversa, serão
“Dogma und Zwangsidee”, Imago. XII, Cf. Dogma and Compulsion. Nueva
York, International Universities Press Inc., 1951, e outros trabalhos em
psicologia da religião, de Reik; E. Jones, Zur Psychoanalyse der christlichen
Religion; y A. J. Storfer, Marias jungfraüliche Muttershaft.
4
examinadas ràpidamente no fim dêste ensaio, bem como as
próprias diferenças metodológicas.
Nossa finalidade, aqui, é compreender a transformação de
certos conteúdos da consciência, tal como se manifesta nas
ideias teológicas em consequencia de uma transformação dos
processos inconscientes. Assim, tal como fizemos em relação
ao problema metodológico, pretendemos focalizar brevemente
as mais importantes descobertas da Psicanálise, em sua
relação com nossa indagação.
2
A FUNÇÃO SOCIOPSICOLÓGICA DA RELIGIÃO
A PSICANÁLISE é a psicologia das tendências ou impulsos. Vê
o comportamento humano como condicionado e definido por
impulsos emocionais, que interpreta como resultado de certos
impulsos psicológicamente enraizados, e que não são objeto
da observação imediata. Seguindo, desde o princípio, a
classificação popular de impulsos de fome e impulsos de
amor, Freud distingue entre o ego, ou a autopreservação, e os
impulsos sexuais. Devido ao caráter libidinoso dos impulsos
de autopreservação do ego, e devido à significação especial das
tendências destruidoras na constituição psíquica do homem,
Freud sugeriu
17
uma divisão diferente, levando em conta o contraste entre os
impulsos mantenedores de vida e os impulsos destruidores.
Essa classificação não requer, aqui, maiores comentários. O
importante é o reconhecimento de certas qualidades do
impulso sexual que o distinguem dos impulsos do ego. Os
impulsos do sexo não são imperativos, ou seja, é possível
deixar suas exigências insatisfeitas sem ameaçar com isso a
própria vida, o que não seria o caso com as exigências da
fome, da sêde e da necessidade de dormir. Além disso, os
impulsos sexuais, e até um ponto não insignificante, podem
ser satisfeitos pela imaginação e com o próprio corpo. São,
portanto, muito mais independentes da realidade externa do
que os impulsos do ego. Intimamente relacionadas com êste
estão a transferência fácil e a capacidade de intercâmbio entre
os impulsos componentes da sexualidade. A frustração de um
impulso libidinal pode ser compensada, com relativa
facilidade, pela substituição por outro impulso cuja satisfação
é possível. Tais flexibilidade e versatilidade dos impulsos
sexuais são a base da extraordinária variabilidade da
estrutura psíquica, e nisso está, também, a possibilidade de
as experiências individuais afetarem, de forma tão definida e
marcada, a estrutura da libido. Freud vê o princípio do prazer,
modificado pelo princípio da realidade, como o regulador do
aparato psíquico. Diz êle:
Vamos, portanto, voltar nossa atenção para uma indagação menos
ambiciosa – a de revelarem ou não os homens, pelo seu
comportamento, os objetivos e intenções de suas vidas. O que
pretendem da vida e o que desejam realizar nela? A resposta não
deixa dúvidas. Procuram a felicidade, querem tornar-se felizes e
continuar felizes. Êsse objetivo tem dois aspectos, uma finalidade
positiva e outra negativa. Visa, sob um aspecto, à ausência da dor e
de coisas desagradáveis, e sob outro, à experiência de fortes
sensações de prazer. Em seu sentido limitado, a palavra “felicidade”
se relaciona apenas com os sentimentos de prazer. De acordo com
essa dicotomia de finalidade, a atividade do homem se desenvolve
em duas direções, segundo busque realizar – de forma principal ou
mesmo exclusiva - um ou outro dêsses objetivos.5
18
O indivíduo quer experimentar – em dadas circunstâncias
uma satisfação máxima da libido e um mínimo de dor. Para
evitar esta, pode aceitar as transformações ou mesmo
frustrações dos diferentes componentes dos impulsos sexuais.
Uma renúncia semelhante aos impulsos do ego, porém, é
impossível.As peculiaridades da estrutura emocional do
indivíduo dependem de sua constituição psíquica e,
Sigmund Freud, Civilization and its Discontents (Standard Edition), XXI,
76
5
primordialmente, de suas experiências na infância. A
realidade externa, que lhe assegura a satisfação de certos
impulsos, mas que obriga à renúncia de outros, é definida
pela situação social existente, e na qual vive. Essa realidade
social inclui a realidade mais ampla que abarca todos os
membros da sociedade e a realidade limitada das classes
sociais distintas.
A sociedade tem uma função dupla na situação psíquica do
indivíduo, frustrando-a e satisfazendo-a. As pessoas
dificilmente renunciam aos impulsos por verem o perigo que
resultará de sua satisfação. Geralmente, a sociedade impõe
tais renúncias: primeiro, há as proibições estabelecidas à base
do reconhecimento social de um perigo real para o próprio
indivíduo, perigo que não percebe imediatamente e que está
ligado à satisfação do impulso; segundo, há a repressão e
frustração de impulsos cuja satisfação provocaria danos não
ao indivíduo, mas ao grupo; e, finalmente, as renúncias feitas
não no interêsse do grupo, mas apenas de uma classe
dominante.
A função “satisfatória” da sociedade não é menos clara do que
seu papel frustrativo. O indivíduo só a aceita porque, através
de sua ajuda, pode, até certo ponto, esperar conseguir
satisfação e evitar sofrimento, principalmente em relação à
satisfação das necessidades elementares de preservação, e,
em segundo lugar, em relação à satisfação das necessidades
libidinosas.
O que dissemos não levou em conta as caracteristicas
específicas de tôdas as sociedades conhecidas históricamente.
Os membros de uma sociedade não se consultam, na
realidade, para determinar o que esta pode permitir e o que
deve proibir. Enquanto as fôrças produtoras da economia não
são suficientes para proporcionar a todos a satisfação
adequada de suas necessidades materiais e culturais (ou seja,
mais do que a proteção
19
contra o perigo externo e a satisfação das necessidades
elementares do ego), a classe social mais poderosa procurará
obter o máximo de satisfação de suas necessidades, primeiro.
O grau de satisfação que proporciona aos que são governados
por ela depende do nível das possibilidades econômicas
disponíveis e também do fato de que um mínimo de satisfação
deve ser proporcionado aos que são governados, de modo que
possam continuar a funcionar como membros cooperantes de
sociedade. A estabilidade social depende relativamente pouco
do uso da fôrça externa. Depende, em sua maior parte, de se
encontrarem os homens numa condição psíquica que os
prenda intimamente a uma situação social existente. Para
isso, como já observamos, é necessário um mínimo de
satisfação das necessidades naturais e culturais instintivas. A
essa altura, porém, devemos notar que para a submissão
psíquica das massas algo mais é necessário, algo ligado à
estratificação estrutural peculiar da sociedade em classes.
Quanto a isso, Freud assinalou que a impotência do homem
frente à Natureza é uma repetição da situação em que o
adulto se viu quando criança, quando não podia passar sem a
ajuda contra fôrças superiores e estranhas, e quando seus
impulsos vitais, seguindo as inclinações narcisistas, se
prendiam primeiro aos objetos que lhe proporcionavam
proteção e satisfação, ou seja, a mãe e o pai. Na medida em
que a sociedade é impotente em relação à Natureza, a situação
psíquica da infância se repete para o membro individual da
sociedade, quando adulto. Transfere do pai ou da mãe um
pouco de seu amor e mêdo infantis, e também um pouco de
sua hostilidade, para uma figura da imaginação, para Deus.
Além disso, há uma hostilidade a certas figuras reais,
particularmente aos representantes da elite. Na estratificação
social repete-se a situação infantil para o indivíduo. Êle vê nos
governantes os poderosos, os fortes e os sábios – pessoas a
serem reverenciadas. Acredita que tais pessoas lhe desejam
bem, sabe também que resistir a elas representa, sempre, um
castigo; fica satisfeito quando, pela sua docilidade, lhes
conquista louvores. São sentimentos idênticos aos que,
quando criança, experimentava pelo pai, sendo compreensível
que se disponha a acreditar, sem crítica, no que lhe é dito
pelos governantes,
20
tal como acreditava, na infância, em tudo o que lhe dizia o pai.
A figura de Deus forma um complemento à situação: Deus é
sempre o aliado dos governantes. Quando êstes, que são
figuras reais, ficam expostos à crítica, podem valer-se de
Deus, que em virtude de sua irrealidade despreza as críticas e
pela sua autoridade confirma a autoridade da classe
dominante.
Nessa situação psicológica de servidão infantil está uma das
principais garantias da estabilidade social. Muitos se
encontram na mesma situação experimentada quando
criança, impotentes frente ao pai, e os mesmos mecanismos
funcionam nos dois casos. Essa situação psíquica se
consolida através de muitas medidas, significativas e
complicadas, tomadas pela elite, cuja função é manter e
fortalecer nas massas a dependência psíquica infantil e imporse a seu inconsciente como a figura do pai.
Um dos principais meios de realizar êsse objetivo é a religião.
Tem ela a tarefa de impedir qualquer independência psIquica
da parte do povo, de intimidar intelectualmente, de provocar
uma docilidade infantil, socialmente necessária, para com as
autoridades. Ao mesmo tempo, tem outra função essencial:
oferece às massas certa satisfação que torna a vida
suficientemente tolerável e impede que elas procurem
modificar sua posição, passando de filho obediente a filho
rebelde.
De que tipos são essas satisfações? Certamente, não são
satisfações dos impulsos de autopreservação do ego, nem de
melhor alimentação, nem outros prazeres materiais. Tais
prazeres só são obtidos na realidade, e para isso não é preciso
religião. Esta serve apenas para tornar mais fácil às massas se
resignarem a muitas frustrações que a realidade apresenta. As
satisfações que a religião oferece são de natureza libidinosa:
ocorrem essencialmente em imaginação, porque, como já
assinalamos, os impulsos libidinosos, em contraste com os
impulsos do ego, permitem a satisfação na imaginação.
Chegamos, agora, a uma indagação relacionada com uma das
funções psíquicas da religião, e vamos assinalar, ràpidamente,
os resultados mais importantes das pesquisas de Freud nessa
área. Em Totem e Tabu, Freud mostrou que o deus animal do
totemismo é o pai elevado, e que na proibição de manter
21
e comer o animal totem e no costume festivo e contraditório
de, apesar disso, violar a proibição uma vez por ano, o homem
repete a atitude ambivalente que adquiriu, quando criança,
para com o pai, que é ao mesmo tempo um protetor e auxiliar
e um rival opressor.
Já foi mostrado, especialmente por Reik, que essa
transferência para Deus da atitude infantil em relação ao pai
se encontra também nas grandes religiões. A indagação
formulada por Freud e seus alunos relacionava-se com a
qualidade psíquica da atitude religiosa para com Deus. A
resposta está em que na atitude do adulto para com Deus
vemos a repetição da atitude infantil da criança para com o
pai. Essa situação psíquica infantil representa o padrão da
situação religiosa. Em O Futuro de Uma Ilusão, Freud passa
dessa questão para outra, mais ampla. Não indaga apenas
como a religião é psicológicamente possível, mas também por
que ela existe ou por que tem sido necessária. A resposta que
encontra leva em consideração, simultâneamente, os fatos
psíquicos e sociais. Ele atribui à religião o efeito de um
narcótico capaz de dar ao homem certo consolo pela sua
impotência frente às fôrças da Natureza:
Pois tal situação nada tem de novo. Tem seu protótipo infantil, do
qual na realidade é apenas a continuação. O individuo já se
encontrou, no passado, em situação de impotência semelhante:
quando criança, em relação aos seus pais. Tinha razão para temêlos especialmente ao pai, e não obstante confiava na sua proteção
contra os perigos conhecidos. Assim, as duas situações se
assemelham naturalmente. Também nesse caso o desejo
desempenha seu papel, tal como nos sonhos. O sonhador pode ser
tomado de um pressentimento de morte, que, ameaça colocá-lo
num túmulo. Mas o sonho sabe selecionar uma condição que
transformará até mesmo o acontecimento temido na realização de
um desejo: o sonhador se vê numa antiga tumba etrusca,
satisfazendo com isso seus interêsses arqueológicos. Da mesma
forma, o homem faz das fôrças da Natureza não apenas pessoas
com as quais se pode ligar, como se lhe fóssem iguais – o que não
faria justiça à esmagadora impressão que essas fórças lhe
despertam –, mas sim lhes atribui um caráter paternal. Faz delas
deuses, seguindo nisso, como procurei mostrar, não só um
protótipo infantil, mas também um protótipo filogenético.
No curso do tempo, fizeram-se as primeiras observações sôbre a
regularidade e conformidade dos fenômenos naturais
22
a uma lei, e com isso as fôrças da Natureza perderam seus traços
humanos. Mas a impotência do homem permanece e justamente
com ela seu anseio pelo pai e os deuses. Êstes conservam sua
tríplice tarefa: devem servir de exorcismos contra os terrores da
Natureza, devem reconciliar o homem com a crueldade do destino,
particularmente revelada pela morte, e devem compensar os
sofrimentos e privações que a vida civilizada em comum impôs aos
homens.6
Eis como Freud responde à pergunta: “O que constitui o poder
intrínseco das doutrinas religiosas e em que circunstâncias
essas doutrinas devem sua eficiencia, independentemente da
aprovação racional?”
Essas [idéias religiosas] apresentadas como ensinamentos não são
conseqüência da experiência ou de resultados finais do raciocinio:
são ilusões, a realização dos mais antigos, estranhos e prementes
desejos da humanidade. O segrêdo de sua fórÇa está na
intensidade dêsses desejos. Como já sabemos, a aterrorizante
impressão de impotência na infância despertou a necessidade de
proteção – proteção através do amor – que foi proporcionada pelo
pai, e o reconhecimento de que essa impotência perduraria por
tôda a vida tornou necessário apegar-se à existência de um pai –
mas de um pai mais poderoso. Assim, a proteção benevolente da
Divina Providência afasta nosso receio dos perigos da vida; a
imposição de uma ordem moral mundial assegura o cumprimento
6
Sigmund Freud, The Future of an Illusion (Standard Edition), XXI, 17-18.
das exigências da justiça, que freqüentemente permaneceram
desatendidas na civilização humana; e o prolongamento da
existência terrena numa vida futura proporciona a estrutura local e
temporal na qual êsses desejos-realizações ocorrerão. As respostas
aos enigmas que despertam a curiosidade do homem, como o início
do universo ou a relação entre o corpo e a mente, se desenvolvem
de conformidade com as suposições subjacentes do sistema.
Representa um alívio enorme para a psique individual se os
conflitos da infância, provocados pelo pai – conflitos-complexos que
jamais foram totalmente superados –, são eliminados e chegam a
uma solução universalmente aceita.7
23
Freud vê, portanto, a possibilidade de uma atitude religiosa na
situação infantil. Vê sua necessidade relativa na impotência
do homem em relação à Natureza, e conclui que, aumentando
o contrôle humano sôbre a Natureza, a religião passará a ser
vista como uma ilusão que se está tornando supérflua.
Vamos resumir o que dissemos até agora. O homem luta por
um máximo de prazer; a realidade social o obriga a renunciar
a muitos dos impulsos, e a sociedade procura recompensar o
indivíduo por essas renúncias, proporcionando-lhe outras
satisfações inofensivas para ela, ou seja, para as classes
dominantes.
Tais satisfações podem, em essência, ser obtidas pela
imaginação, especialmente pelas fantasias coletivas. Têm uma
função importante na realidade social. Na medida em que a
sociedade não permite uma satisfação real, as satisfações da
imaginação servem como substitutivo e se tornam um apoio
poderoso da estabilidade social. Quanto maiores as renúncias
que os homens suportam na realidade, tanto mais forte deve
ser o desejo de compensação. As satisfações da imaginação
têm a dupla função característica de todo narcótico: agem
tanto como anódino quanto como repressão de uma
transformação ativa da realidade. As satisfações da
imaginação ou fantasia têm uma vantagem essencial sôbre os
devaneios individuais: em virtude de sua universalidade, são
7
Ibid., pág. 30.
percebidas pela mente consciente como se reais fôssem. A
ilusão partilhada por todos se torna uma realidade. A mais
velha dessas satisfações fantasiosas coletivas é a religião. Com
o desenvolvimento progressivo da sociedade, as fantasias se
tornam mais complicadas e mais racionalizadas. A própria
religião se torna distinta, e a seu lado surgem a poesia, a arte,
a filosofia, como expressões das fantasias coletivas.
Resumindo, a religião tem uma tríplice função: para tôda a
humanidade serve de consôlo às privações impostas pela vida;
para a grande maioria dos homens é um estímulo à aceitação
emocional de sua situação de classe; e para a minoria
dominante é um alívio dos sentimentos de culpa provocados
pelo sofrimento daqueles a quem oprime.
Nossa análise procura comprovar, em detalhe, o que se disse,
examinando um pequeno segmento do desenvolvimento
24
religioso. Procuraremos mostrar que influência a realidade
social teve numa situação específica, num grupo específico, e
como as tendências emocionais encontraram expressão em
certos dogmas, em fantasias coletivas, e mostrar ainda mais
as modificações psíquicas provocadas por uma transformação
na situação social. Tentaremos ver como essa modificação
psíquica encontrou expressão em novas fantasias religiosas
que satisfizeram certos impulsos inconscientes. Com isso,
deixaremos claro como a transformação dos conceitos
religiosos está intimamente ligada à experiência das várias
relações infantis possíveis com o pai ou a mãe, e, ainda, com
as modificações na situação social e econômica.
O curso de nossa análise é determinado pelas pressuposições
metodológicas já mencionadas. A finalidade será compreender
o dogma à base de um estudo das pessoas, e não as pessoas à
base de um estudo do dogma. Procuraremos, portanto,
descrever primeiro a situação total da classe social de onde se
originou a fé cristã primitiva e compreender o sentido
psicológico dessa fé em têrmos da situação psíquica total
dessas pessoas. Mostraremos, então, como a mentalidade do
povo tornou-se diferente num período posterior. Finalmente,
procuraremos compreender o sentido inconsciente da
Cristologia, cristalizada como o produto final de uma evolução
de trezentos anos. Vamos focalizar principalmente a fé cristã
primitiva e o dogma de Nicéia.
3
CRISTIANISMO PRIMITIVO E O CONCEITO DE
JESUS
TODA TENTATIVA de compreender a origem do Cristianismo
deve partir de uma investigação da situação econômica,
social, cultural e psíquica de seus primeiros adeptos.8
25
A Palestina era parte do Império Romano e sucumbiu às
condições de seu desenvolvimento econômico e social. O
principado augustiano representara o fim do domínio de uma
oligarquia feudal, e ajudou a proporcionar o triunfo do homem
da cidade. O crescente comércio internacional não
representou nenhuma melhoria para as grandes massas, nem
lhes satisfez melhor as necessidades diárias: sómente uma
pequena camada da classe proprietária se interessou por êle.
Um proletariado desempregado e faminto, de proporções sem
precedente, enchia as cidades. Depois de Roma, Jerusalém
era a cidade com o maior proletariado dêsse tipo. Os artesãos,
que habitualmente só trabalhavam em casa e pertenciam em
grande parte ao proletariado, fizeram causa comum com os
M. Rostovtzeff, Social and Economic History of the Roman Empire. Oxford,
1926; Max Weber. “Die sozialen Gründe des Untergangs der antiken
Kultur”, em Gesammelte Aufsätze sur Sozial und Wirtshaftsgeschichte,
1924; E. Meyer, “Sklaverei im Alternum”, Kleine Schriften, segunda edição,
vol. I; K. Kautsky, Foundations of Christianity. Russel, 1953.
8
mendigos, os trabalhadores braçais e os camponeses. Na
verdade, o proletariado de Jerusalém estava em situação pior
que o de Roma. Não gozava dos mesmos direitos civis dos
romanos, nem tinha as suas necessidades prementes, do
estômago e coração, atendidas pelos imperadores com as
grandes distribuições de pão e os complicados jogos e
espetáculos.
A população rural achava-se esgotada pelos impostos
excessivamente pesados, e se endividou a ponto de se tornar
escrava ou lhe foram tomados os meios de produção ou as
pequenas propriedades dos pequenos fazendeiros, que em
parte foram engrossar as fileiras do proletariado urbano de
Jerusalém,
enquanto
outros
recorriam
a
remédios
desesperados, como os levantes políticos violentos e os
saques. Acima dêsse proletariado empobrecido e desesperado,
surgiu em Jerusalém, como em todo o Império Romano, uma
classe média econômica que, embora sofrendo sob a pressão
romana, permanecia econômicamente estável. Acima dêsse
grupo, havia uma pequena, mas poderosa e influente classe, a
aristocracia feudal, sacerdotal e endinheirada. As distinções
sociais correspondiam à severa distinção econômica entre a
população palestina. Os fariseus, os saduceus e o Am Haaretz eram os grupos políticos e religiosos que representavam
tais diferenças. Os saduceus representavam a classe
26
abastada e superior: “[sua] doutrina é recebida por apenas
uns poucos, mas que são os de maior dignidade”.9 Embora
sejam ricos, Josephus não considera aristocráticas as suas
maneiras: “O comportamento dos saduceus entre si é, de certa
forma, selvagem, e sua conversação é tão bárbara como se
fossem estranhos.”10
Logo abaixo dessa pequena classe superior feudal estavam os
The Life and Works of Flavius Josephus. The antiquities of the Jews, XVIII,
1, 4, traduzido por William Whiston. Nova York, Hol, Rinehart and
Winston, Inc., 1957.
10 The Life and Works of Flavius Josephus, The Wars of the Jews, 11, 8, 14.
9
fariseus, representando os setores médio e inferior da
população urbana, “cordiais entre si, empenhados na
concórdia e na consideração ao público”.11
Ora, os fariseus vivem mesquinhamente e desprezam o refinamento
na comida, seguem a orientação da razão e o que esta lhes mostra
como bom o fazem. E pensam que se devem empenhar em observar
os ditames da razão, na prática. Também veneram os idosos, e não
são bastante ousados para contrariá-los em nada que tenham
criado; e quando afirmam que tôdas as coisas são feitas pelo
destino, não afastam do homem a liberdade de agir como melhor
lhe parece: para êles, Deus determinou que os acontecimentos
sejam provocados em parte pelo destino, em parte pelos homens
que agem sôbre êles com virtude ou vício. Também acreditam que
as almas têm uma fôrça imortal e que sob a terra haverá
recompensa ou punições, se a vida tiver sido de vício ou de virtude.
No primeiro caso, a alma ficará eternamente prisioneira, mas no
segundo terá o poder de reviver e viver de novo. Devido a tais
doutrinas, podem convencer a maior parte do povo, e tudo o que
fazem em relação ao culto, orações e sacrifícios obedece a tais
princípios.12
A descrição que Josephus faz da classe média dos fariseus
mostra-a mais unificada do que na realidade. Entre êles havia
elementos oriundos das camadas proletárias mais baixas que
continuavam mantendo seus costumes (como por exemplo o
Rabi
27
Aquiba). Ao mesmo tempo, porém, havia cidadãos urbanos de
boa situação. Essa diferença social encontrou expressão sob
formas diversas, evidenciando-se melhor nas contradições
políticas dentro do farisaísmo, em relação à sua atitude para
com o domínio romano e os movimentos revolucionários.
A camada mais baixa do lumpenproletariat e dos camponeses
oprimidos, a chamada Am Ha-aretz (literalmente, pessoas da
terra), contrapunha-se nitidamente aos fariseus e seu séquito
mais amplo. Na realidade, constituíam uma classe totalmente
desarraigada pela evolução econômica: nada tinham a perder,
11
12
Ibid.
Josephus, The Wars of the Jews, XVIII, 1, 3.
e talvez pudessem ganhar alguma coisa. Estavam, econômica
e socialmente, fora da sociedade judaica, integrada no
conjunto do Império Romano. Não seguiam os fariseus nem os
reverenciavam – odiavam-nos, e por sua vez eram odiados por
êles. Bem característica dessa atitude é a afirmação feita por
Aquiba, um dos fariseus mais importantes, oriundo do
proletariado: “Quando eu era ainda um homem comum
[ignorante] do Am Ha-aretz, costumava dizer que, se pudesse
deitar mãos num erudito, o espancaria como a um jumento.”13
O Talmude prossegue: “O rabino diz como a um cão’, pois o
asno não morde.” E êle responde: “Quando um asno morde,
geralmente quebra os ossos da vítima, ao passo que o cão
morde apenas a carne.” Encontramos na mesma passagem no
Talmude uma série de afirmações sôbre as relações entre os
fariseus e o Am Ha-aretz.
O homem deve vender seus bens e conseguir a filha de um erudito
para mulher, e se isso não lhe fôr possível, deve procurar obter a
filha de um homem destacado. Se também isso não fôr possível,
deve empenhar-se em conseguir a filha de um diretor de sinagoga,
e se falhar, ainda, deve procurar a filha de um professor primário.
Deve evitar casar-se com a filha de uma pessoa comum [membro
do Am Ha-aretz], pois ela é uma abominação, suas mulheres são
abomináveis e, sôbre suas filhas, diz-se: “Maldito seja quem dorme
com uma vaca.” (Deut. 27.)
Ou, como diz R. Jochanan:
Pode-se partir uma pessoa comum em pedaços como um peixe...
Quem dá sua filha a uma pessoa comum em
28
casamento praticamente se encadeia a um leão, pois tal como os
leões, que despedaçam e devoram suas vítimas sem qualquer
vergonha, assim faz a pessoa comum que dorme, de forma brutal e
sem pudor, com uma môça.
R. Eliezer diz:
Se as pessoas comuns não precisassem de nós por motivos
económicos, há muito nos teriam assassinado... A inimizade de
13
Talmude, Pesachim, 49b.
uma pessoa comum para com um erudito é ainda mais intensa do
que a dos pagãos para com os israelitas ... Seis coisas são veridicas
em relação à pessoa comum: não podemos aceitá-la como
testemunha e nem como provas, não podemos revelar-lhe um
segrêdo, confiar-lhe um órfão, nem fundos para a caridade, não
podemos viajar em sua companhia e não lhe devemos dizer nada
quando perde alguma coisa.14
As opiniões aqui citadas (que poderiam ser consideràvelmente
multiplicadas) vêm dos círculos farisaicos e mostram o ódio
com que se opunham ao Am Ha-aretz, mas também a
hostilidade do homem comum para com os eruditos e seu
séquito.15
Foi necessário descrever a oposição, dentro do judaísmo
palestino, entre a aristocracia, as classes médias e seus
líderes intelectuais, de um lado, e o proletariado urbano e
rural de outro, a fim de deixar claras as causas subjacentes
dos movimentos políticos e religiosos como o Cristianismo
primitivo. Uma apresentação mais detalhada das distinções
entre os fariseus, extraordinàriamente variados, não é
necessária para as finalidades dêste estudo e nos levaria
muito longe de nosso objetivo.
O conflito entre a classe média e o proletariado dentro do
grupo farisaico aumentou, à medida que a opressão romana
tornou-se mais pesada e as classes inferiores mais
econômicamente esmagadas e desarraigadas. Na mesma
medida, as classes inferiores da sociedade tornaram-se as
defensoras
dos
movimentos
nacionais,
religiosos
e
revolucionários.
Essas aspirações revolucionárias das massas, encontraram
expressão em dois sentidos: tentativas políticas de uma
revolta
29
Os trechos citados estão no Talmude, Pesachim, 48b.
Cf. Fredländer, Die religiösen Bewegungen innerhalb der Judentums im
Zeitalter Jesu, 1905
14
15
e emancipação, dirigidas contra sua Própria aristocracia e os
romanos, e em tôdas as formas de movimentos religiosomessiânicos. Mas não existe uma separação nítida entre essas
duas correntes que se movem para a liberação e a salvação –
elas freqüentemente se misturam. Os próprios movimentos
messiânicos assumiram formas em parte práticas e em parte
meramente literárias.
Os mais importantes movimentos dêsse tipo podem ser
mencionados ràpidamente aqui.
Pouco antes da morte de Herodes, ou seja, uma época em que
além do domínio romano o povo sofria a opressão às mãos dos
delegados judeus que serviam aos romanos, ocorreu em
Jerusalém, sob a liderança de dois fariseus eruditos, uma
revolta popular durante a qual a águia romana, à entrada do
Templo, foi destruída. Os instigadores do movimento foram
executados e os principais conspiradores queimados vivos.
Depois da morte de Herodes, uma multidão realizou
demonstrações ante seu sucessor, Arquelau, exigindo a
liberdade dos prisioneiros políticos, a abolição de certos
impostos e a redução do tributo anual. Tais exigências não
foram atendidas. Uma grande manifestação popular,
relacionada com êsses fatos, ocorreu no ano 4 a.C., e foi
dissolvida com sangue, morrendo milhares de manifestantes.
Não obstante, o movimento tornou-se mais forte. A revolta
popular progredia. Sete semanas depois, em jerusalém,
ocorríam duas novas insurreições sangrentas contra Roma.
Além disso, a população rural levantou-se. No velho centro
revolucionário da Galiléia, foram muitas as lutas com os
romanos, e na Transjordânia houve levantes. Um antigo
pastor reuniu voluntários e iniciou uma guerrilha contra os
romanos.
Tal era a situação no ano 4 a.C. Os romanos não tiveram
facilidades em dominar as massas revoltadas. Sua vitória foi
coroada com a crucificação de dois mil prisioneiros.
Durante alguns anos, o país permaneceu em calma. Pouco
depois da introdução, no ano 6 da era cristã, da
administração romana direta, que iniciou suas atividades com
um censo popular com objetivos fiscais, houve um novo
movimento revolucionário.
Iniciou-se, então, a separação entre as classes inferiores e
médias. Embora dez anos antes os fariseus tivessem
participado da revolta, desta vez surgiu uma dissensão nova,
entre os grupos
30
revolucionários urbanos e rurais, de um lado, e os fariseus, do
outro. As classes inferiores, urbanas e rurais, uniram-se num
novo partido, ou seja, os fanáticos, enquanto a classe média,
sob a liderança dos fariseus, estava preparada para uma
reconciliação com os romanos. Quanto mais opressivo se
tornava o jugo dos romanos e da aristocracia judaica, tanto
mais crescia o desespêro das massas, e os fanáticos
ganhavam novos adeptos. Até a explosão da grande revolta
contra os romanos, houve choques constantes entre o povo e
a administração. As ocasiões para os surtos revolucionários
foram proporcionadas pelas freqüentes tentativas romanas de
colocar uma estátua de César, ou a águia romana, no Templo
de Jerusalém. A indignação contra tais medidas, racionalizada
por motivos religiosos, vinha na realidade do ódio que as
massas sentiam pelo imperador, o líder e chefe da classe
dominante que as oprimia. O caráter peculiar dêsse ódio
torna-se claro ao nos lembrarmos de que naquela época a
reverência pelo imperador romano se generalizava por todo o
império, e seu culto começava a ser a religião dominante.
Quanto mais desesperada era a luta contra Roma, no nível
político, tanto mais a classe média recuava e se dispunha a
um acordo com os romanos, e mais radicais as classes pobres
se tornavam. Ao mesmo tempo, as tendências revolucionárias
perdiam seu caráter político e se transferiam para o nível das
fantasias religiosas e das idéias messiânicas. Assim, um
pseudomessias, Teudas, prometeu levar o povo até o Jordão e
repetir o milagre de Moisés. Os judeus passariam pelo rio sem
molhar os pés, mas seus perseguidores romanos se afogariam.
Os dominadores viam nessas fantasias a manifestação de um
perigoso fermento revolucionário e mataram os adeptos do
messias, degolando também Teudas. Mas surgiram outros.
Josephus nos conta um levante ocorrido sob o governador
provincial Félix (anos 52 a 60 da era cristã). Seus chefes:
... iludiram e enganaram o povo sob alegação de inspiração divina,
mas pretendiam inovações e modificações no govêrno. Fizeram a
multidão agir como louca, e a levaram ao deserto, afirmando que
Deus lhe mostraria ali os sinais da liberdade. Mas Félix viu nisso o
início de uma revolta e mandou cavalarianos e infantes, armados,
que eliminaram grande número dos manifestantes.
Houve, porém, um falso profeta egipeio que prejudicou mais aos
judeus que os outros: era um impostor, o
31
fingia-se também de profeta, tendo reunido trinta mil homens, que
enganou: levou-os ao deserto até o monte chamado Monte das
Oliveiras e pretendeu tomar Jerusalém pela fôrça, partindo daquele
ponto.16
Os militares romanos não deram tempo às hordas
revolucionárias para se penitenciarem. A maioria dos seus
componentes foi morta ou aprisionada, os demais destruíramse. Muitos procuraram ocultar-se em seus lares. Não
obstante, os levantes continuaram.
Ora, quando tais amotinados se aquietaram, ocorreu, como num
corpo enfêrmo, que outras partes ficaram sujeitas à inflamação,
pois um grupo de impostores e ladrões [ou seja, de messianistas e
revolucionários de maior consciência politica] se reuniu e
convenceu os judeus a se revoltarem, exortando-os a afirmar sua
liberdade matando os que continuassem a obedecer ao govêrno
romano e dizendo que os partidários da escravidão deviam ser
obrigados a abrir mão de sua inclinação. Dividiram-se em vários
grupos e ficaram à espera em várias partes do país, e saqueavam
as casas dos homens importantes, mataram a êstes e atearam fogo
às aldeias. E isso até que tôda a Judéia sentisse os efeitos de sua
loucura. A chama crescia dia a dia, até que se transformou numa
16
Josephus, The Wars of the Jews, 11, 13, 4, 5.
guerra direta.17
A crescente opressão das classes inferiores das nações
provocou um agravamento do conflito entre elas e as classes
médias, menos oprimidas – nesse processo, as massas se
radicalizaram ainda mais. A ala esquerda, dos fanáticos
constituiu uma facção secreta, a dos “sicários”’, que começou,
com ataques e conspirações, a exercer uma pressão terrorista
sôbre os cidadãos abastados. Perseguiam sem piedade os
moderados das classes superiores e médias de Jerusalém, e
ao mesmo tempo invadiam, saqueavam e reduziam a cinzas as
aldeias cujos habitantes se recusavam a participar dos grupos
revolucionários. Os profetas e os pseudomessias não
cessaram, também, sua agitação entre o povo.
32
Finalmente, no ano 66 da era cristã, irrompeu a grande revolta
popular contra Roma. Apoiaram-na, a princípio, as classes
inferiores e médias, que, em combates violentos, superaram as
fôrças romanas. Inicialmente, a guerra foi liderada pelos
proprietários e pelos homens cultos, mas sua falta de energia e sua
tendência a celebrar acôrdos fizeram com que o primeiro ano de
luta terminasse num fracasso, apesar das vitórias, e as massas
atribuíram o infeliz resultado à direção fraca e indiferente. Seus
líderes procuraram, por todos os meios, tomar o poder e colocar-se
no lugar dos líderes que até então orientavam o movimento. Como
êstes não deixaram suas posições voluntàriamente, ocorreu no
inverno de 67-68 “uma sangrenta guerra civil e cenas abomináveis,
de que sómente a Revolução Francesa se pode orgulhar”.18 Quanto
mais desesperada se tornava a sua situação tanto mais as classes
médias procuravam aproximar-se dos romanos. Em conseqüência,
a guerra civil tornou-se mais acerba, juntamente Com a luta contra
o inimigo externo.19
Enquanto o rabino Jochanan ben Sakkai, um dos principais
fariseus, procurava o inimigo e fazia paz com êle, os pequenos
comerciantes, artesãos e camponeses defendiam a cidade contra os
Ibid., 11, 13, 6. É importante notar que Josephus, que pertencia à elite
aristocrática, descreve os movimentos revolucionários com os preconceitos
de que naturalmente se ressentia.
18 E. Schürer, Geschichte des jüdischen Volkes im Zeitalter Jesu Christi. 3ª
Edição, 1901, I. 617.
19 Cf. T. Mommsen, History of Rome, Vol. V.
17
romanos, com grande heroísmo, durante cinco meses.
Nada tinham a perder, mas também nada mais a ganhar, pois a
luta contra o poderio romano era sem esperanças e tinha de
terminar no colapso. Muitos dos ricos puderam salvar-se
passando-se aos romanos, e embora Tito se sentisse extremamente
irritado contra os judeus, aceitou os que fugiam para o seu lado.
Ao mesmo tempo, as massas combativas de Jerusalém atacaram o
palácio real, para onde muitos dos ricos haviam levado seus
tesouros, apossaram-se do dinheiro e mataram os proprietários. A
guerra romana e a guerra civil terminaram com a vitória dos
romanos, acompanhada da vitória da classe dominante judaica e
do colapso dos cem mil camponeses e das classes médias
urbanas.20
33
Juntamente com as lutas políticas e sociais, e as tentativas
messiânicas e revolucionárias, houve também os escritos
populares surgidos na época e inspirados pelas mesmas
tendências: a literatura apocalíptica. Apesar de sua variedade,
a visão ‘do futuro nessa literatura apocalíptica é relativamente
uniforme: há, primeiro, as “Lamentações do Messias” (Me.
13:7,8), que se referem a acontecimentos que não perturbarão
aos eleitos – fomes, terremotos, epidemias e guerras. Vem em
seguida, a “grande aflição”, profetizada em Daniel, 12:1, que
não encontra paralelo senão na criação do mundo, uma época
aterrorizante de sofrimentos e desgraça. Em tôda literatura
apocalíptica em geral há a crença de que os eleitos serão
também protegidos dessa aflição. O horror e a desolação
profetizadas em Daniel, 9:27, 11:31 e 12:11 representam o
indício do fim. O quadro do fim traz as velhas características
proféticas. O auge será o aparecimento do Filho do Homem,
em nuvens de grande esplendor e glória.21
Tal como na luta contra os romanos as diferentes classes
agiram de formas diferentes, também a literatura apocalíptica
surgiu em classes diversas. Apesar de certa uniformidade, isso
se percebe claramente pela diferença de ênfase em elementos
20
21
Josephus, The Wars of the Jews, Vol. VI.
Cf. Johannes Weiss, Das Urchristentum. Gotings, 1917.
individuais das várias obras apocalípticas. Apesar da
impossibilidade de uma análise detalhada, aqui, podemos
citar como expressão das mesmas tendências revolucionárias,
que inspiraram a ala esquerda dos defensores de Jerusalém, a
exortação com que conclui o Livro de Enoque:
Maldição aos que constroem seus lares com areia, pois serão
derrubados de suas bases e cairão pela espada. Mas os que
adquirem ouro e prata perecerão súbitamente no julgamento.
Maldição aos ricos, que confiaram nas suas riquezas e delas serão
separados, porque não se lembraram do Supremo nos dias do Juizo
... Maldição aos que desejaram mal aos vizinhos, pois serão
recompensados de acôrdo com suas obras... Maldição aos que
prestam falso testemunho ... Não temam os que sofrem, pois terão
cura: uma luz brilhante os iluminará e ouvirão a voz dos céus.
(Enoque, 94-96.)
34
Além dêsses movimentos religioso-messiânicos, sócio-políticos
e literários, característicos da época do aparecimento do
Cristianismo, outro movimento deve ser mencionado, no qual
os objetivos políticos não tiveram qualquer influência e que
levou diretamente ao Cristianismo, ou seja, o movimento de
João Batísta, de cunho popular. A classe superior, apesar de
sua persuasão, nada desejava com êle. Seus ouvintes mais
atentos vinham das fileiras das massas desprezadas.22
Pregava que o reino dos céus e o dia do Juízo estavam
próximos, e com êles chegariam a liberdade para os bons e a
destruição para os maus. “Arrependei-vos, pois o reino dos
céus está próximo”, era a essência de sua pregação.
Para compreender o sentido psicológico da fé cristã primitiva
em Cristo – objetivo primordial dêste estudo – era necessàrio
visualizarmos o tipo de pessoas que seguiam o Cristianismo
primitivo. Eram as massas dos incultos, dos pobres, do
proletariado de Jerusalém, e os camponeses, que, devido à
crescente opressão política e econômica e devido à restrição e
ao desprêzo social, sentiam cada vez mais a necessidade de
Cf. M. Dibelius. Die urchristliche Ueberlieferung von Johannes dem
Taufer. Stuttgart, 1911.
22
modificar as condições existentes. Ansiavam por uma época
feliz, e também abriram sentimentos de ódio e vingança contra
seus governantes e contra os romanos. Vimos como eram
variadas as formas dessas tendências, indo da luta política
contra Roma à luta de classes em Jerusalém, das tentativas
idealistas de revolução de Teudas até o movimento de João
Batista e da literatura apocalíptica. Da atividade política aos
sonhos messiânicos, havia todos os tipos de fenômenos
diferente. No entanto, atrás de tôdas essas formas diferentes
estava a mesma fôrça motora: o ódio e a esperança das
massas sofredoras, provocados pela sua desgraça e pela
inexorabilidade da situação sócio-econômica em que viviam.
Tivesse o resultado escatológico maior ou menor
conteúdo social, político ou religioso, tornava-se mais forte e
quanto mais fundo penetramos nas massas analfabetas, no
chamado Am Ha-aretz, o círculo dos que experimentam o
presente como uma opressão “por isso têm de olhar para o
futuro para a consecução de todos os seus desejos”.23
35
À medida que a esperança de melhorias reais se tornava mais
desalentada, mais necessário era dar-lhe expressão em
fantasias. A luta final desesperada dos fanáticos contra os
romanos e o movimento de João Batista foram dois extremos,
e tinham raízes no mesmo solo: o desespêro das classes
inferiores. Essa camada se caracterizava psicológicamente
pela esperança de uma modificação em sua situação
(psicanaliticamente interpretada, esperança de um pai bom
que a libertasse) e, ao mesmo tempo, um ódio feroz aos
opressores, que encontrava expressão nos sentimentos
dirigidos contra o imperador romano, os fariseus, os ricos em
geral, e nas fantasias da punição no dia do Juízo. Vemos, no
caso, uma atitude ambivalente: o povo amava, em fantasia,
um pai bondoso, que o ajudaria e libertaria, e odiava o pai
malvado, que o oprimia, atormentava e desprezava.
Dessa
23
camada
Ibid., pág. 130
das
massas
pobres,
ignorantes
e
revolucionárias, o Cristianismo surgiu como um movimento
messiânico-revolucionário históricamente significativo. Como
João Batista, a doutrina cristã primitiva se dirigia não aos
cultos e aos ricos, mas aos pobres, aos oprimidos e aos
sofredores.24 Celso, adversário dos cristãos, traça um bom
quadro da composição social da comunidade cristã, tal como a
viu quase dois séculos mais tarde. Diz êle:
Nas casas particulares vemos também os tecelões, ferreiros,
lavadeiras e os serviçais mais ignorantes e bucólicos, que não
ousam dizer nada na presença de seus senhores mais velhos e
mais inteligentes, mas que sempre, quando ficam sózinhos com as
crianças e com algumas mulheres tólas, fazem afirmações
surpreendentes, como por exemplo que elas não devem prestar
atenção aos seus pais e mestres, embora devam obedecer-lhes.
Dizem que pais e mestres só falam tolices e não têm compreensão,
que na realidade nada sabem nem podem fazer de bom, mas
apenas falar. Sómente elas, essas pessoas, conhecem a forma certa
36
de viver, e, se as crianças acreditarem nelas, tam felizes e seus
lares também. E se, quando estão falando, véem um dos mestres,
ou uma pessoa inteligente, ou o próprio pai, aproximar-se,
afastam-se cautelosamente em tôdas as direções. Os mais
extremados estimulam as crianças a se rebelarem. Murmuram-lhes
que junto de seus mestres não se sentem capazes de explicar nada,
pois não desejam nenhum contato com professóres tolos e
teimosos, totalmente corrompidos, maldosos, e que punem as
crianças. Mas se estas quiserem, podem deixar seus pais e mestres
e acompanhar as mulheres e crianças, que são seus companheiros,
para a oficina do tecelão ou do ferreiro ou para a sala da lavadeira,
e ali aprender a perfeição. E, dizendo isso, convencem as
crianças.25
O quadro que Celso nos mostra, aqui, dos seguidores do
Sôbre a estrutura do Cristianismo primitivo, cf. R. Knopf, Das
nachapostolische Zeitalter. Tubinga, 1905; Adolph Harnack, Die Mission
und Ausbreitung des Christentums. 4ª Edición, 1923, vol. I: “Kirche und
Staat bis zur Gründung der Staatskirche”, Kultur der Gegenwart, 2ª
Edición; “Das Urchristentum und die soziale Frage”. Preussisch
Jahrebücher. 1908, vol. 131; K.Kautsky, Foundations of Christianity.
Russel, 1953.
25 Origem, Contra Celsum (Londres, Cambridge University Press, 1953).
24
Cristianismo, é característico não só de sua situação social,
mas também psíquica, de sua luta e ódio contra a autoridade
paterna.
Qual era o conteúdo da mensagem cristã primitiva?26
No primeiro plano temos a esperança escatológica. Jesus pregou a
proximidade do reino de Deus. Ensinou o povo a ver em suas
atividades o início dêsse reino. Não obstante, Êsse reino só se
concluirá quando êle voltar em glória nas nuvens do céu, para o
julgamento. Jesus parece ter anunciado essa volta rápida pouco
antes de sua morte e ter confortado todos os discipulos pela sua
partida com a afirmação de que entraria imediatamente numa
posição supramundana em relação a Deus.
As instruções de Jesus a seus discipulos são, igualmente,
dominadas pelo pensamento de que o fim – cujo dia e hora, porém,
ninguém sabe – está iminente. Em conseqüência, também a
exortação à renúncia de todos os bens mundanos toma um lugar
destacado.27
37
As condições para a entrada no reino são, em primeiro lugar, uma
transformação completa do estado de espírito no qual o homem
renuncia aos prazeres do mundo, nega a si mesmo e se dispõe a
abrir mão de tudo o que tem para salvar sua alma. Daí a crença na
graça de Deus, concedida aos humildes e pobres, e portanto a
confiança em Jesus como o messias escolhido e chamado por Deus
para realizar seu reino na terra. O anúncio, portanto, é dirigido aos
pobres, aos sofredores, aos que têm fome e sêde de justiça... aos
que desejam ser curados e redimidos, e os encontra prontos para
penetrar... no reino de Deus, enquanto traz, para os satisfeitos, os
ricos e os orgulhosos de sua justiça o juizo da impenitência e a
danação do inferno.28
A proclamação de que o reino do céu está ao alcance de todos
(Mat., 10:7) foi o germe das mais antigas pregações. Foi o que
O problema do Jesus histórico não nos deve preocupar, sob êsse
aspecto. O efeito social da primitiva mensagem cristã só deve ser
compreendido à base das classes a que se dirigia e pelas quais era aceito; e
sómente o entendimento de sua situação psíquica tem importância para
nós.
27 Adolph Harnack, History of Dogma (N. York, 1961), págs. 66-67, 1.
28 Ibid., Págs. 62-63.
26
despertou a esperança entusiástica nas massas sofredoras e
oprimidas. O povo sentia que tudo chegava ao fim. Acreditava
que haveria tempo de difundir o Cristianismo entre todos os
pagãos antes que chegasse a nova era. Se as esperanças dos
outros grupos das mesmas massas oprimidas era dirigida no
sentido de provocar a revolução política e social pela sua
própria energia e esfôrço, os olhos da comunidade cristã
primitiva estavam fixados apenas no grande acontecimento, o
início miraculoso de uma nova era. O conteúdo da primitiva
mensagem cristã não era um programa econômico, nem de
reformas sociais, mas a promessa bendita de um futuro não
distante no qual os pobres seriam ricos, os famintos
satisfeitos, e os oprimidos teriam a autoridade.29
O estado de espírito dêsses primeiros cristãos entusiastas se
vê claramente em Lucas, 6:20 e seguintes:
Bem-aventurados os pobres, pois dêles é o reino dos céus.
Bem-aventurados os famintos, porque serão satisfeitos.
Bem-aventurados os que choram, porque rirão. Bem-aventurados
os que são odiados, excluidos, vilipendiados e insultados por amor
ao Filho do Homem!
38
Regozijaivos nesse dia, porque vossa recompensa será grande no
céu; pois assim seus pais fizeram aos profetas.
Maldição, porém, aos ricos, porque já receberam seu consôlo.
Maldição aos que estão satisfeitos, porque terão fome.
Maldição aos que riem agora, porque se lamentarão e chorarão.
Tais afirmações exprimem não apenas a ansiedade e a
esperança dos pobres e oprimidos em relação a um mundo
nôvo e melhor, mas também seu ódio total às autoridades – os
ricos, os cultos, os poderosos. O mesmo ânimo se encontra na
história de um homem pobre, Lázaro, “que desejava ser
alimentado com as migalhas caídas da mesa do homem rico”
(Lucas, 16:21), e nas famosas palavras de Jesus: “É difícil
para os ricos entrar no reino de Deus! Será mais fácil ao
29
Cf. Weiss, Das Urchristentum, pág. 55
camelo passar pelo fundo de uma agulha do que o rico entrar
no reino de Deus.” (Lucas, 18:24.) O ódio aos fariseus e aos
coletores de impostos percorre, como uma linha vermelha, os
evangelhos, e em consequencia a opinião sôbre os fariseus,
em tôda a cristandade, foi determinada por êsse ódio.
Ouvimos êsse ódio aos ricos, novamente, na Epístola de Tiago,
em meados do século II:
Vinde agora, ricos, e chorai e lamentai as misérias que desabam
sôbre vós. Vossas riquezas apodreceram e vossas vestes estão
comidas pelas traças. Vosso ouro e prata enferrujaram, e sua
ferrugem será uma prova contra vós, e comerá vossa carne como o
fogo. Acumulastes tesouros para os últimos dias. Vêde, as ondas de
trabalhadores que vos cultivaram os campos, que iludistes pela
fraude, gritam, e os gritos dos camponeses atingiram os ouvidos do
Senhor das Hostes. Vivestes no luxo e no prazer, engordastes
vossos corações no dia da mortandade. Condenastes, matastes o
homem justo; êle não vos resiste. Sêde paciente, portanto, irmão,
até a chegada do Senhor... vêde, o Juiz está de pé às portas. (Tiago,
5:1 e seguintes.)
Falando dêsse ódio, Kautsky diz com acêrto: “Raramente o
ódio de classe do proletariado moderno atingiu tais formas
como as do proletariado cristão.”30 É o ódio do Am Ha-aretz
39
pelos fariseus, dos fanáticos e dos sicários pelos ricos e pela
classe média, dos perseguidores e sofredores habitantes da
cidade e do campo pelos que ocupavam os altos postos e
dispunham da autoridade, e que se manifestou nas rebeliões
políticas pré-cristãs e nas fantasias messiânicas.
Intimamente ligada a êsse ódio às autoridades espirituais e
sociais está uma característica essencial da estrutura social e
psíquica do Cristianismo primitivo, ou seja, seu caráter
democrático e fraternal. Se a sociedade judaica da época se
caracteriza por um espírito de casta extremado, que
condicionava tôdas as relações sociais, a comunidade cristã
primitiva era uma irmandade livre dos pobres, despreocupada
30
K. Kautsky, Der Ursprung des Christentums, pág. 345.
de instituições e fórmulas.
Enfrentamos uma tarefa impossivel se quisermos delinear um
quadro da organização nos seus primeiros cem anos ... A
comunidade é unificada apenas pelo laço comum da fé, esperança e
amor. Não é o posto quem faz a pessoa, mas sempre a pessoa quem
prestigia o posto... Como os primeiros cristãos se sentiam
peregrinos e estranhos na terra, que necessidade havia de
instituições permanentes?31
Nessa irmandade cristã primitiva, a assistência econômica e o
apoio mútuos, o “comunismo pelo amor”, como diz Harnack,
tinham um papel especial.
Vemos, portanto, que os cristãos primitivos eram homens e
mulheres pobres, incultos, que constituíam as massas
oprimidas do povo judeu e, mais tarde, de outros povos. Ao
invés de aumentar a impossibilidade de transformar sua
situação desesperada através de meios realistas, evoluiu entre
êles a esperança de que a transformação ocorreria dentro de
pouco tempo, num momento, e que encontrariam então a
felicidade que lhes faltava, mas que os ricos e os pobres
seriam punidos de acordo com a justiça e os desejos das
massas cristãs. Os primeiros cristãos eram uma irmandade de
entusiastas, oprimidos social e econômicamente, unidos pela
esperança e pelo ódio.
40
O que distinguia os cristãos primitivos dos camponeses e
proletários que lutavam contra Roma não era a sua atitude
psíquica básica. Os primeiros cristãos não eram mais
“humildes” e resignados à vontade de Deus, nem mais
convencidos da necessidade e inexorabilidade de sua sorte,
nem mais inspirados pelo desejo de serem amados pelos seus
governantes, do que os comba'tentes, militares e políticos. Os
dois grupos odiavam as classes dominantes da mesma forma,
esperando com igual vigor ver-lhe a queda e o início de seu
próprio domínio, e de um futuro satisfatório. A diferença entre
êles não estava também na premissa nem no objetivo e
31
H.. von Schubert, Grundzüge der Kirchaengeschichte. (Tübingen, 1904).
direção de seus desejos, mas sómente na esfera em que
procuraram atender a êstes. Enquanto os fanáticos e os
sicários procuravam realizar suas aspirações na espera da
realidade política, a total falta de esperança de realização
levou os cristãos primitivos a formular os mesmos desejos na
fantasia. A expressão disso foi a fé cristã primitiva,
especialmente a ideia de Jesus e suas relações com o Deus
Pai.
Quais eram as idéias dêsses primeiros cristãos?
O conteúdo da fé dos discípulos e a proclamação comum que os
unia podem ser resumidos nas proposições seguintes. Jesus de
Nazaré é o messias prometido pelos profetas. Jesus, após a sua
morte, é elevado pela Ressurreição Divina à mão direita de Deus, e
voltará dentro em breve para estabelecer seu reino visível sôbre a
terra. Aquêle que crê em Jesus, e que tenha sido recebido na
comunidade dos discípulos de Jesus, que em virtude da
transformação sincera do espírito, volta-se para Deus como Pai e
vive de acôrdo com os mandamentos de Jesus, é um santo de
Deus, e como tal pode ter certeza do perdão, da graça de Deus e de
partilhar da glória futura, ou seja, da redenção.32
“Deus o fêz tanto Senhor como Cristo” (Atos, 2:36). Essa é a
mais velha doutrina de Cristo que temos, sendo portanto de
grande interêsse, especialmente por ter sido posteriormente
substituída por outras doutrinas mais amplas. É chamada de
teoria “da adoção”, porque nela está implícito um ato de
adoção.
41
A adoção é usada, aqui, em contraste com a filiação natural,
proveniente
do
nascimento.
Assim,
o
pensamento
predominante é o de que Jesus não era o messias desde o
início: em outras palavras, êle não foi desde o início o Filho de
Deus, mas só veio a sê-lo por um ato definido e preciso da
vontade de Deus. Isso se expressa particularmente no fato de
que a afirmação contida em Salmos, 2:7: “Tu és meu filho,
hoje eu te gerei”, é interpretada como relativa ao momento de
32
Adolph Harnack, History of Dogma, 1, 78
exaltação de Jesus (Atos, 13:33).
Segundo um velho conceito semita, o rei é filho de Deus, seja
pela descendência, seja pela adoção, como, no caso, no dia em
que ascende ao trono. Está, portanto, dentro do espírito
oriental dizer que Jesus, ao ser elevado à mão direita de Deus,
tornou-se o Filho de Deus. Tal idéia encontra eco até mesmo
em São Paulo, embora para êle o conceito de “Filho de Deus”
já tenha adquirido outro sentido. Em Romanos, 1:4 diz-se do
filho de Deus que êle fôra “designado Filho de Deus em
potencial ... pela sua ressurreição de entre os mortos”. Temos
aqui duas formas diferentes do conceito, em choque: o filho de
Deus era Filho desde o início (idéia de Paulo); e Jesus, que
depois da ressurreição foi elevado a Filho de Deus, ou seja, ao
monarca do mundo (conceito da comunidade primitiva). A
combinação difícil das duas idéias mostra claramente que os
dois diferentes tipos de raciocínio se encontraram. O mais
antigo, proveniente da comunidade cristã primitiva, está
coerente com o fato de que a comunidade primitiva caracteriza
Jesus, antes da exaltação, como um homem: “um homem
comprovado por Deus através de obras e milagres e indícios
poderosos, com que Deus agiu, por intermédio dêle, entre vós”
(Atos, 2:2). Devemos observar que Jesus não havia realizado o
milagre, mas sim Deus através dêle. Jesus foi a voz de Deus.
Essa idéia predomina até certo ponto na tradição do
Evangelho, onde, por exemplo, após a cura do coxo, o povo
louva Deus (Marcos, 2:12). Em particular, Jesus é
caracterizado como o profeta que Moisés prometeu: “O Senhor
Deus criará para vós um profeta entre vossos irmãos” (Atos,
3:22, 7:37; Deut., 18:15).33
42
Vemos, assim, que o conceito de Jesus para a comunidade
primitiva era o de um homem escolhido por Deus e elevado
por Êle como o “messias” e, mais tarde, como “Filho de Deus”.
Essa Cristologia da comunidade primitiva se assemelha, sob
muitos aspectos, ao conceito do messias escolhido por Deus
33
Weiss, op. cit., pág. 85.
para criar o reinado da justiça e do amor, conceito que fôra
familiar entre as massas judaicas há muito tempo. Sómente
em duas idéias da nova fé vamos encontrar elementos
significativos de algo especificamente original: no fato de sua
exaltação como Filho de Deus, sentando-se à direita do TodoPoderoso, e no fato de que êsse messias já não é o herói
poderoso, vitorioso, mas sim de uma significação e uma
dignidade que estão justamente no seu sofrimento, na sua
morte na cruz. Na verdade, a idéia de um messias agonizante
ou mesmo de um deus agonizante não era totalmente nova na
consciência popular. Isaías, 53, fala dêsse sofredor servo de
Deus. O Quarto Livro de Esdras também menciona um
messias agonizante, embora, decerto, sob forma totalmente
diferente, pois morre depois de quatrocentos anos e depois de
sua vitória.34 A idéia de um deus agonizante pode ter-se
divulgado entre o povo proveniente de uma fonte
completamente diversa, ou seja, os cultos e mitos do Oriente
Próximo (Osíris, Átis, Adônis).
O destino do homem encontra seu protótipo na paixão de um deus
que sofre na terra, morre e se eleva novamente. Êsse deus
permitirá partilharem da abençoada imortalidade a todos os que se
unirem a êle nos mistérios ou mesmo se identificarem com êle.35
Talvez houvesse também tradições esotéricas judaicas de um
deus ou de um messias agonizante, mas êsses precursores
não explicam a influência enorme que o ensinamento sôbre o
salvador crucificado e sofredor teve imediatamente sôbre as
massas judaicas, e dentro em pouco também sôbre as massas
pagãs.
43
Na comunidade primitiva'de entusiastas, Jesus era, portanto,
um homem exaltado, após a sua morte, em Deus, que dentro
em pouco voltaria para executar o julgamento, para tornar
felizes os que sofriam e punir os dominadores.
Cf. Salmos, 22 e Oséias, 6.
F. Cumont, “Die orientalisclien Religionem in ihrem Einfluss auf die
europãischen Religionem des Altertums”, Kultur der Gegen,wart (1923),
Vol. 1, parte III, pág. 1; cf. também Weiss, op. cit., pág. 70.
34
35
Temos, já agora, um conhecimento da superfície psíquica dos
seguidores do Cristianismo primitivo suficiente para
tentarmos nossa interpretação dessas primeiras afirmações
cristológicas. Os inebriados por essa idéia eram pessoas
atormentadas e desesperadas, cheias de ódio pelos seus
opressores judaicos e pagãos, sem qualquer perspectiva de
melhor futuro. Uma mensagem, que lhes permitisse projetar
na fantasia tudo o que a realidade lhes negava teve um
fascínio extremo.
Se aos fanáticos nada mais restava que morrer na batalha
sem esperança, os seguidores do Cristo podiam sonhar com
seu objetivo sem que a realidade lhes mostrasse
imediatamente a desesperança de seus desejos. Colocando a
fantasia em lugar da realidade, a mensagem cristã satisfazia
as aspirações de esperança e vingança, e, embora deixasse de
aliviar a fome, proporcionava uma satisfação fantasiosa de
bastante significação para os oprimidos.36
44
Devemos acrescentar aqui uma observação sóbre um problema que tem
sido objeto de várias polémicas – até que ponto o Cristianismo pode ser
compreendido como um movimento revolucionário de classe. Kautsky, em
Vorläufer des neuen Sozialismus (Stuttgart, 1895), e posteriormente em
Foundations of Christianity, expôs a opinião de que o Cristianismo é um
movimento da classe proletária, que em essência, porém, sua significação
está na sua atividade prática, ou seja, no trabalho caritativo e não em seus
“fanatismos pios”. Kautsky ignora o fato de que um movimento pode ter
uma origem de classe sem a existência de motivos sociais e econômicos na
consciência de seus instigadores. Seu desprêzo pela significação histórica
das idéias religiosas demonstra sua total falta de compreensão do sentido
da satisfação fantasiosa dentro do processo social. Sua interpretação do
material histórico é tão banal que se torna fácil a Troeltsch e Harnack
refutar, aparentemente, o materialismo histórico. Ples, como Kautsky, não
colocam no centro da indagação o problema da relação de classe que
condicionou o Cristianismo mas sim o problema do papel desempenhado
por essas relações de classe na consciência e ideologia dos primeiros
cristãos. Embora Kautsky ignore o verdadeiro problema, as bases de classe
do Cristianismo primitivo são, não obstante, tão claras que as tentativas
tortuosas, especialmente de Troeltsch (em seu Social Teaching of the
Christian Churches), de afastá-las revelam claramente as tendências
políticas do autor.
36
A investigação psicanalítica da fé cristológica da comunidade
cristã primitiva nos suscita agora as seguintes perguntas:
Qual a significação que tinha para os primeiros cristãos a fantasia
de um homem agonizante elevado a deus?
Por que essa fantasia conquistou os corações de tantos milhares,
em tão curto tempo?
Quais as suas fontes inconscientes, e que necessidades emocionais
satisfazia?
Primeiro, a questão mais importante: um homem é elevado a
deus; é adotado por Deus. Como Reik observa corretamente,
temos aqui o velho mito da rebelião do filho, a manifestação
de impulsos hostis para com o Deus Pai. Compreendemos
agora qual a significação que êsse mito teve para os
seguidores do Cristianismo primitivo. Essas pessoas odiavam
intensamente as autoridades que lhes impunham um poder
“paternal”. Os sacerdotes, eruditos, aristocratas, em suma,
todos os governantes que as excluíam do gozo da vida e que
em seu mundo emocional desempenhavam o papel do pai
severo,
proibidor,
ameaçador,
atormentador,
tinham,
portanto, de odiar também êsse Deus que era um aliado de
seus opressores e permitia que sofressem e fôssem oprimidos.
Desejavam governar por si, ser os senhores, mas conseguir
isso na realidade, derrubando e destruindo pela fôrça os
atuais senhores, lhes parecia impossível. Por isso, satisfizeram
seus desejos na fantasia. Conscientemente, não ousavam
matar o Deus paternal. O ódio consciente ficava reservado às
autoridades, e não à figura do pai, do ser divino. Mas a
hostilidade inconsciente ao pai divino manifestou-se na
fantasia do Cristo. Colocaram um homem ao lado de Deus e
fizeram dêle um co-regente, com Deus, o pai. Êsse homem que
se tornou deus, e com quem, como humanos, se podiam
identificar, representava seus desejos de Édipo; era um
símbolo de sua hostilidade inconsciente para com Deus, o pai,
pois se um homem se podia tornar Deus, êste último ficaria
privado de sua privilegiada posição paternal de ser único e
inatingível. A crença na elevação de um homem a deus foi,
45
portanto, a manifestação de um desejo inconsciente de
eliminação do pai divino.
Nisso reside a significação do fato de ter a comunidade
primitiva cristã seguido a doutrina da adoção, a teoria da
elevação do homem a Deus. Nessa doutrina, a hostilidade a
Deus encontrou sua manifestação, enquanto a doutrina que
mais tarde teve maior popularidade e tornou-se dominante – a
de que Jesus sempre foi um deus – expressava a eliminação
dêsses desejos hostis para com Deus (o que analisaremos,
detalhadamente, mais adiante). Os fiéis se identificavam com
êsse filho, podiam identificar-se com êle porque era um ser
humano sofredor, tal como êles. Essa a base do poder de
fascinação e do efeito sôbre as massas, revelada pela idéia de
um homem sofredor elevado a deus: sómente com um ser
sofredor elas se podiam identificar. Milhares de homens antes
dêle haviam sido crucificados, torturados e humilhados. Se
viram nesse homem crucificado um ser elevado a deus, é
porque, no inconsciente, consideravam-se o deus crucificado.
O apocalipse pré-cristão mencionava um Messias vitorioso e
forte. Era o representante dos desejos e fantasia de uma
classe oprimida, mas que sob muitos aspectos sofria menos, e
ainda abrigava a esperança de vitória. A classe de onde saiu a
comunidade cristã primitiva, e na qual o Cristianismo dos
primeiros 100 ou 150 anos teve grande êxito, não se podia
ídentíficar com êsses messias fortes e poderosos. Seu messias
só podia ser sofredor, crucificado. A figura do salvador
sofredor foi formada de tríplice modo: primeiro, no sentido que
acabamos de mencionar; segundo, pelo fato de que parte dos
desejos de eliminação do Deus Pai se transferiu para o filho.
No mito do deus agonizante (Adônis, Átis, Osíris), era a morte
do próprio deus que se imaginava. No mito cristão primitivo, o
pai é morto pela figura do filho.
Mas, finalmente, a fantasia do filho crucificado tinha uma
terceira função: como os crentes entusiastas estavam
imbuídos de ódio e desejo de eliminação – conscientemente,
contra seus opressores, inconscientemente, contra o Deus Pai
–, identificaram-se com o crucificado.Também êles sofreram a
morte na cruz e expiavam dessa forma seus desejos de
eliminação do pai, Pela sua morte, Jesus expiava a culpa de
todos, e os primeiros
46
cristãos precisavam muito dessa expiação. Devido à sua
situação geral, os desejos agressivos e eliminatórios em
relação ao pai eram particularmente ativos.
A essência da fantasia cristã primitiva, porém – em contraste
com a fé posterior, católica, de que já nos ocuparemos –,
parece estar não na expiação masoquista através da autoaniquilação, mas no deslocamento do pai pela identificação
com Jesus sofredor.
Para o entendimento pleno da essência psíquica da crença no
Cristo, devemos considerar o fato de que naquela época o
Império Romano se dedicava, cada vez mais, ao culto do
imperador, que transcendia às fronteiras nacionais.
Psicológicamente, êle se relacionava intimamente com o
monoteísmo, a crença num Deus Pai justo e bom. Se os
pagãos freqüentemente se referiam ao Cristianismo como
ateísmo, num sentido psicológico mais profundo, tinham
razão, pois essa fé no homem sofredor elevado a deus era uma
fantasia de uma classe sofredora e oprimida que desejava
derrubar as fôrças dominantes – Deus, imperador e pai –
colocando-se no lugar delas. Se as principais acusações dos
pagãos aos cristãos incluíam a de que cometiam crimes de
Édipo, tal acusação era, na realidade, uma infâmia sem
sentido. Mas o inconsciente dos acusadores havia
compreendido bem o sentido inconsciente do mito de Cristo,
seus desejos edípicos e sua hostilidade disfarçada a Deus Pai,
ao imperador e à autoridade.37
Resumindo: para compreender a evolução posterior do dogma,
é necessário compreender primeiro a característica peculiar da
Cristologia primitiva, seu caráter de adoção. A crença de que
As acusações de assassinato ritual e de licenciosidade sexual podem ser
compreendidas da mesma forma.
37
um homem foi elevado a deus é uma expressão do impulso
inconsciente de hostilidade para com o pai, presente nas
massas. Proporcionava uma possibilidade de identificação e a
esperança correspondente de que dentro em breve se iniciaria
a nova era em que os sofredores e oprimidos seriam os
dominadores e seriam, com isso, felizes. Como era possível, e
na realidade ocorria, a identificação com Jesus, por ser êle um
47
homem sofredor, surgia a possibilidade de uma organização
comunal sem autoridades, estatutos o burocracia, unida pela
identificação comum com o Jesus sofredor elevado a deus. A
crença primitiva cristã, da adoção, nasceu das massas; foi a
manifestação de suas tendências revolucionárias, e oferecia
uma satisfação aos seus anseios mais fortes. Isso explica por
que num espaço de tempo extra ordinàriamente curto ela se
tornou a religião, também, das massas pagãs oprimidas
(embora, dentro em pouco, não apenas delas).
4
A TRANSFORMAÇÃO DO CRISTIANISMO E O
DOGMA HOMOOUSIANO
AS CRENÇAS primitivas relacionadas com Ãtis Jesus
sofreram uma modificação. O homem elevado a Deus tornouse o Filho do Homem que sempre fôra Deus e existira antes de
tôda a criação, uno com Deus e, ao mesmo tempo, dêle
distinto.
Houve nessa transformação de idéias sôbre Jesus também um
sentido sociopsicológico, tal como o demonstra em relação à
teoria da adoção? Teremos a resposta a essa pergunta
estudando os povos que, duzentos ou trezentos anos mais
tarde, criaram êsse dogma e nêle acreditaram. Dessa forma,
podemos compreender sua situação real de vida e seus
aspectos psíquicos.
As questões mais importantes são as seguintes: quem eram os
cristãos nos primeiros séculos depois de Cristo? Permaneceu o
Cristianismo como a religião dos judeus da Palestina,
sofredores e entusiastas, ou quem os substitui, ou se une a
êles?
A primeira grande modificação na composição dos crentes
ocorreu quando a propaganda cristã voltou-se para os pagãos
e, numa grande campanha vitoriosa, conquistou adeptos entre
êles em quase todo o Império Romano. A significação na
modificação de nacionalidade entre os seguidores do
Cristianismo não deve ser subestimada, mas não
desempenhou papel decisivo enquanto a composição social da
comunidade cristã não se modificou essencialmente, enquanto
continuou sendo constituída dos pobres,
48
dos oprimidos, dos incultos, que experimentavam o mesmo
sofrimento, o mesmo ódio e a mesma esperança.
O julgamento de Paulo sobre a comunidade coríntia é válido,
sem dúvida, para a segunda e terceira gerações da maioria
das comunidades cristãs, bem como para o período apostólico:
“Considerai vossa vocação, irmãos, pois não muitos de vós fostes
prudentes pelos padrões do mundo, nem muitos foram poderosos,
nem muitos foram nobres de origem. Mas Deus escolheu os tolos
do mundo para confundir os sábios, Deus escolheu os fracos no
mundo para confundir os fortes, Deus escolheu os humildes e
desprezados no mundo, e até mesmo as coisas que não são, para
levar ao nada as coisas que são” (1 Cor., 1:26-28).38
Mas embora a grande maioria dos adeptos que Paulo
conquistou para o Cristianismo no primeiro século fôsse ainda
de gente das classes mais baixas – pequenos artesãos,
escravos e emancipados – gradualmente outro elemento
38
Knopf, Das nachapostolische Zeitalter, pág. 64.
social, os educados e os ricos, começou a se infiltrar nas
comunidades. Paulo, na verdade, foi um dos primeiros líderes
cristãos não-oriundos das classes inferiores. Era filho de um
rico cidadão romano, fôra fariseu e portanto um dos
intelectuais que desprezavam os cristãos e era por êles odiado.
Não era um proletário ignorante e inimigo da ordem politica, nem
alguém a quem a continuação dessa ordem fôsse indiferente, ou
que esperasse a sua destruição. Estivera, desde o início, muito
próximo dos podêres governamentais, tivera mais experiência das
bênçãos da sagrada ordem para não ter uma idéia diferente do
valor ético do Estado do que, digamos, um membro do partido dos
fanáticos, ou mais ainda do que seus colegas fariseus, que viam no
domínio romano no máximo um mal menor, comparado com os
Herodes meio judeus.39
Com sua propaganda, Paulo dirigiu-se primordialmente às
camadas sociais mais baixas, mas certamente também a
algumas pessoas abastadas e cultas, especialmente os
comerciantes, que pelas suas viagens tiveram grande
significação na difusão do
49
Cristianismo.40 Mas até que o século II estivesse bem
avançado, parte substancial das comunidades pertencia às
classes inferiores. Isso se evidencia por certos trechos da
literatura original que, como a Epístola de Tiago ou o Livro da
Revelação, respiram um ódio flamejante aos poderosos e aos
ricos. A forma despretensiosa dessas peças literárias e o teor
geral da escatologia mostram que “os membros das
comunhões [cristãs] do período pós-apostólico vinham
principalmente, ainda, das fileiras dos pobres e servos”.41
39
40
Weiss, op. cit., pág. 132.
Cf. Knopf, op. cit., pág. 70.
Knopf, op. cit., págs. 69 e segs. As admoestações do São Hipólito ainda
revelam o rigorismo ético e a hostilidade à vida da classe média, tal como
se vê pelo capítulo 41 (citado por Harnack, Die Mission und Ausbreitung
des Christentums, I, 300). “Faziam-se, igualmente, indagações sôbre as
profissões e ocupações dos que se apresentavam para ser admitidos à fé.
Se o homem fôsse um proxeneta ou alcoviteiro, teria de desistir de sua
41
Em meados do século II, o Cristianismo começou a conquistar
adeptos entre as classes média e superior do Império Romano.
50
Foram, principalmente, as mulheres de posição destacada e
os comerciantes que se encarregaram da propaganda. O
Cristianismo difundiu-se em seus círculos e gradualmente
penetrou na aristocracia dominante. Ao término do século 11,
o Cristianismo já havia deixado de ser a religião dos artesãos
pobres e dos escravos. E quando, com Constantino, tornou-se
a religião do Estado, já se havia constituído na religião de
grandes círculos da classe dominante do Império Romano.42
ocupação ou ser recusado; se fôsse, escultor ou pintor, teria de se
comprometer a não fazer ídolos; se não desistisse, seria recusado. Se fôsse
ator ou mimico, devia desistir ou ser recusado. Um professor de jovens
devia desistir, mas se não tivesse outra ocupação lhe seria permitido
continuar. O corredor, que disputa corridas freqüentes, também deveria
desistir ou ser recusado. O gladiador ou treinador de gladiadores, ou O
caçador (nas exibições com feras), ou qualquer pessoa ligada a essas
exibições, ou o funcionário encarregado de espetáculos de gladiadores
deviam desistir ou ser rejeitados. O soldado devia aprender a não matar
homens, e a recusar-se a isso, se lhe fôsse ordenado; caso contrário, seria
rejeitado. O comandante militar ou o magistrado civil que usa a púrpura
deve renunciar ou ser recusado. Se um catecúmeno ou um crente
procuram tornar-se soldados, devem ser rejeitados, porque desprezaram
Deus. A prostituta ou o homem licencioso ou o que se tenha mutilado ou
qualquer outro que faça coisas impossiveis de mencionar devem ser
recusados. O feiticeiro, o adivinho, o profeta, o utilizador de versos
mágicos, o saltimbanco, o charlatão, o fazedor de amuletos devem desistir
ou ser rejeitados. A concubina que seja escrava e tenha criado seus filhos
e sido fiel a seu senhor pode ser admitida, mas se tiver falhado nessas
coisas terá de ser recusada. O homem que tiver uma concubina deve
casar-se legalmente com ela, se não o fizer, deve ser recusado. Se tivermos
omitido qualquer coisa, os fatos instruirão vosso espírito. Pois todos nós
temos o Espírito de Deus.”
42 Um exemplo do caráter da comunidade em Roma nos é proporcionado
por Knopf, na descrição do desenvolvimento da composição social da Igreja
Cristã nos três primeiros séculos. Paulo, na Epístola aos Filipenses (4:22),
pede que suas saudações sejam transmitidas “especialmente aos da Casa
de César”.
O fato de que as sentenças de morte impostas por Nero aos cristãos
(mencionadas por Tácito, Anais, XV, 44), pelo esfolamento, mordidas de
cães, crucificação, queimados vivos, só podiam ser usadas contra os
humiliores e não contra os honestores (os mais destacados) mostra que os
cristãos do período pertenciam principalmente às classes inferiores,
embora algumas pessoas ricas e destacadas já se pudessem ter unido a
êles. Um trecho citado por Knopf, de I Clament, 38:2, mostra como a
composição da igreja pós-apostólica se havia modificado grandemente: “Os
ricos devem ajudar aos pobres e os pobres devem agradecer a Deus por
lhes ter dado alguém que possa ajudar as suas necessidades.” Não
observamos, aqui, nenhum traço da animosidade contra os ricos, presente
em outros documentos. É essa a forma pela qual se pode falar numa igreja
onde os ricos e importantes não são raros, e onde também cumprem com
seus deveres para com os pobres (Knopf, op. cit., pág. 65). O fato de que no
ano 96 da era cristã, oito meses antes de sua morte, Donúciano fêz
executar seu primo, o Cônsul Tito Flávio, e mandou para o exílio a
primeira mulher do primo (punindo-o, provàvelmente, e à mulher, com
certeza, por se terem passado ao Cristianismo), mostra que já no fim do
século I os cristãos de Roma haviam penetrado na casa do imperador. O
número crescente de cristãos ricos e destacados naturalmente criou
tensões e diferenças nas igrejas. Uma dessas, surgidas desde logo, foi o
problema da liberação dos escravos pelos senhores cristãos. Isso se
evidencia pela exortação de Paulo aos escravos para que não busquem a
emancipação. Mas como no curso de sua evolução o Cristianismo tornouse, cada vez mais, a fé dos grupos dominantes, essas tensões se
intensificaram. “Os ricos não se confraternizam muito bem com os
escravos, os emancipados e proletários, especialmente em público. Os
pobres, por sua vez, vêem os ricos como tendo certa ligação com o diabo.”
(Knopf, op. cit., pág. 81.)
Kermas nos dá um bom quadro da nova composição social: “Os que têm
muitos negócios também pecam muito, enriquecendo em seu comércio e
não servindo ao Senhor em nada.” (sim., VII, 9.) Êstes são os que eram
fiéis, mas se tOrnaram ricos e honrados entre os pagãos; por isso
assumiram grandes ares e se tornaram superiores, abandonaram a
verdade e separaram-se dos justos, vivendo junto com os pagãos porque
isso lhes parecia melhor.” (Sim., IX, 1).) “Os ricos se aproximam com
dificuldade dos servos de Deus, temendo que êstes lhes peçam alguma
coisa.” (Sim., XX, 2.) Parece que sómente depois dos Antoninos os ricos e
destacados, as pessoas de sangue e meios, ingressaram na Igreja Cristã,
como o entende, justamente, Eusébio, num trecho conhecido, onde afirma
que “durante o reinado de Cômodo as questões [dos cristãos] se tornaram
mais fáceis, e pela graça divina a paz envolveu as igrejas através de todo o
mundo ... e grande número até mesmo dos que moram em Roma,
importantes pela sua riqueza e nascimento, progride na salvação de sua
alma com todos os seus servos e parentes”. (Eusébio, História Eclesiástica,
Livro V, 21, l.)
Assim, na principal metrópole do mundo, o Cristianismo deixara de ser
uma religião dos pobres e escravos. A partir de então, seu poder de atração
se fêz sentir nos diferentes grupos de posses e educação.
51
Quando já se haviam passado 250 a 300 anos do nascimento
do Cristianismo, os adeptos dessa fé eram totalmente
diferentes dos primeiros cristãos. já não eram os judeus, com
a crença – mais apaixonada do que em qualquer outro povo –
de que uma época messiânica chegaria dentro em breve. Eram
antes gregos, romanos, sírios, gálios – em suma, membros de
tôdas as nações do Império Romano. Mais importante do que
essa modificação na nacionalidade foi a diferença social. Na
realidade, os escravos, artesãos e o “proletariado miserável”,
ou seja, as massas das classes inferiores, continuavam a
constituir o grosso da comunhão cristã, mas o Cristianismo se
tornara, ao mesmo tempo, também a religião das classes
destacadas e dominantes do Império Romano.
Juntamente com essa modificação na estrutura social das
igrejas cristãs devemos examinar a situação econômica e
política geral do Império Romano, que sofrera uma
transformação fundamental durante o mesmo período. As
diferenças nacionais dentro do império mundial estavam
desaparecendo. Até mesmo um estrangeiro podia tornar-se
cidadão romano (Edito de Caracala, 212).
52
Ao mesmo tempo o culto do imperador funcionava como um
laço unificador, igualando as diferenças nacionais. O
desenvolvimento econômico caracteriza-se por um processo de
feudalização gradual, mas progressiva.
As novas relações, ao se consolidarem ao término do século III, já
não conheciam o trabalho livre, mas tão-sómente o trabalho
compulsório dentro dos grupos de situação que se haviam tornado
hereditários, na população rural e nas colônias, bem como nos
grupos de artesãos e corporações e também (como todos sabem)
entre os patricios que se haviam tornado os principais responsáveis
pelos impostos. Assim, concluiu-se o circulo. O desenvolvimento
retorna ao ponto de onde partira. A ordem medieval se
restabelecia.43
A expressão política dessa economia em declínio, que
retornava a uma “economia natural” delimitada pela
propriedade, era a monarquia absoluta, tal como a criaram
Diocleciano e Constantino. Desenvolveu-se um sistema
hierárquico com dependências infinitas, no alto do qual estava
a pessoa do imperador divino, a quem as massas deviam
reverenciar e amar. Num período relativamente curto, o
Império Romano tornou-se um Estado feudal elassista, com
uma ordem rigidamente estabelecida, na qual as fileiras mais
baixas não podiam ter esperança de se elevar, devido à
estagnação provocada pela recessão da capacidade produtiva,
que tornava o desenvolvimento progressivo impossível.
O sistema social foi estabilizado e regulamentado do alto,
sendo imperativo tornar mais fácil ao indivíduo colocado nas
camadas inferiores tolerar sua situação.
Era essa, em essência, a situação social no Império Romano, a
partir do início do século III. A transformação que o
Cristianismo, especialmente o conceito de Cristo e sua relação
com o Deus Pai, sofreu desde seus primeiros dias até essa
época deve ser compreendida principalmente à luz dessa
transformação social e da transformação psíquica por ela
condicionada, bem como da nova função sociológica que o
Cristianismo teve de assumir. O elemento vital na situação
não será, simplesmente, compreendido,
53
se pensar que “a” religião cristã se difundia e ganhou para
seus princípios a grande maioria da população do Império
Romano. Na verdade, houve antes uma transformação da
religião original em outra, mas a nova religião católica tinha
boas razões para ocultar essa transformação.
Vamos assinalar agora quais as transformações sofridas pelo
Eduard Meyer. “Sklaverei in Alternum”, Kleine Schriften. 2ª edição,
1924, I, 81.
43
Cristianismo durante os três primeiros séculos, e como a nova
religião se distinguia da antiga.
O aspecto mais importante é que as esperanças escatológicas
que haviam constituído o centro da fé e da esperança da
comunidade primitiva desapareceram gradualmente. A
essência da pregação missionária da comunhão primitiva era
“o reino de Deus está ao nosso alcance”. As pessoas se
preparavam para o reino, tinham até mesmo esperanças de
conhecê-lo e duvidavam se no pouco tempo de que dispunham
antes do seu advento seria possível proclamar a mensagem
cristã à maioria do mundo pagão. A fé de Paulo ainda está
imbuída de anseios escatológicos, mas com êle o momento
previsto para o advento do reino do Céu começa já a ser
adiado para o futuro. Para Paulo, a consumação final estava
assegurada pela elevação do messias, e a última luta, ainda
por ocorrer, perdia sua significação em vista do que já
acontecera. Mas na evolução subseqüente, a crença no
estabelecimento imediato daquele reino tendia, cada vez mais,
a desaparecer: “O que percebemos é antes o desaparecimento
gradual de um elemento original, o Entusiasta e Apocalíptico,
ou seja, da consciência certa de uma posse imediata do
Espírito Divino, e a esperança de uma conquista futura do
presente.”44
54
Se a princípio, as duas concepções, a escatológica e a
espiritual, estavam intimamente ligadas, com ênfase sôbre a
44 Harnack, History of Dogma, 1, 49. Harnack ressalta que, originalmente,
duas opiniões correlatas predominaram, em relação à finalidade da vida de
Cristo, ou da natureza e meios de salvação. A salvação era concebida como
uma participação no reino glorioso do Cristo, cujo advento era iminente, e
tudo o mais se considerava como uma preparação para essa realidade
certa. Ao mesmo tempo, porém, a atenção se voltava para as condições e
determinações de Deus, estabelecidas por Cristo, que deram ao homem a
certeza do reino dos Céus. O perdão do pecado, a justiça, o conhecimento,
a fé, etc. são considerados, no caso, e as próprias bençãos, na medida em
que têm um resultado certo como vida no reino de Cristo, ou, mais
precisamente, como vida eterna, podem ser tidas como a salvação (Ibid.,
págs. 129-130).
primeira, com o tempo se foram lentamente separando. A
esperança escatológica reduziu-se aos poucos, o núcleo da fé
cristã afastou-se do segundo advento do Cristo e “passou,
necessàriamente, a residir no primeiro advento, em virtude do
qual a salvação já estava preparada para o homem, e o
homem para a salvação”.45
O processo de propagação do entusiasmo cristão primitivo
apagou-se ràpidamente. Na verdade, na história pústerior do
Cristianismo (dos montanistas até os anabatistas) houve
freqüentes tentativas de reviver êsse entusiasmo, com seus
anseios escatológicos, tentativas oriundas dos grupos
econômica, social e psiquicamente oprimidos, e que na sua
luta pela liberdade se assemelhavam aos primeiros cristãos.
Mas a Igreja não admitia mais essas tentativas
revolucionárias, desde que, no curso do século II, conquistara
a vitória decisiva. A partir de então, o pêso da mensagem não
estava na idéia de que o reino de Cristo era iminente, na
expectativa de que o dia do Juízo e a volta de Jesus
ocorreriam sem demora. Os cristãos já não se voltavam para o
futuro ou a história, mas sim para trás. O fato decisivo já
ocorrera. O aparecimento de Jesus já representara o milagre.
O mundo histórico, real, já não necessitava transformação:
externamente, poderia permanecer como estava, na sociedade,
no Direito, no Estado, na economia – pois a salvação se
tornara interior, espiritual, não-histórica, uma questão
individual assegurada pela fé em Jesus. A esperança de uma
libertação real, histórica, foi substituída pela fé na libertação
espiritual, já completa. O interêsse histórico foi substituído
pelo interêsse cosmológico. Juntamente com êle, as exigências
éticas desapareceram. O primeiro século de Cristianismo foi
caracterizado pelos postulados éticos rigorosos, pela crença de
que a comunidade cristã era principalmente uma irmandade
para a vida santa- Êsse rigorismo ético prático é substituído
pela graça dispensada pela Igreja. Intimamente ligada à
renúncia da prática ética rigorosa estava a crescente
aproximação dos cristãos com o Estado. “O
45
Ibid., pág. 130.
55
século II da existência da Igreja Cristã já mostra tôdas as
linhas de evolução no sentido de uma reconciliação como o
Estado e a sociedade.”46 Até mesmo as perseguições
ocasionais dos cristãos pelo Estado não afetavam, nem por
alto, tal evolução. Embora tivesse havido tentativas, aqui e ali,
de manter a velha'ética rigorosa, contrária ao Estado e à vida
da classe média.
A grande maioria dos cristãos, especialmente os principais bispos,
decidiu de modo diverso. Bastava, agora, ter Deus no coração e
confessar sua fé quando a confissão pública perante as autoridades
era inevitável. Bastava fugir ao culto dos ídolos, e os cristãos
podiam dedicar-se a tôdas as atividades honrosas. Podiam entrar
em contato externo com o culto dos ídolos e conduzir-se prudente e
cautelosamente, de modo a não se contaminar nem arriscar-se a
contaminar os outros. A Igreja adotava essa atitude desde o
principio do século III. O Estado, com isso, ganhou numerosos
cidadãos, obedientes, cumpridores dos deveres e conscienciosos,
que, longe de causar-lhe dificuldades, apoiavam a ordem e a paz na
sociedade ... Desde que abandonou sua atitude rigida e negativa,
em relação ao mundo, a Igreja transformou-se numa fôrça de apoio
e de reforma do Estado. Estabelecendo uma comparação com um
fenômeno moderno, podemos dizer que os fanáticos, alienados do
mundo, que esperavam o Estado celestial do futuro, tornaram-se
revisionistas da ordem de vida existente.47
Essa transformação fundamental do Cristianismo, passando
de religião dos oprimidos a religião dos governantes e das
massas por êles oprimidas, da expectativa da iminência do dia
do Juízo e de uma nova era para uma fé na redenção já
consumada, de um postulado de vida pura e moral para a
satisfação da consciência através dos meios eclesiásticos da
graça, da hostilidade ao Estado para um acôrdo cordial com
êle – tudo isso está intimamente ligado à grande
transformação final que vamos descrever. O Cristianismo, que
fôra a religião de uma comunidade de irmãos iguais, sem
hierarquia ou burocracia, tornou-se
Harnack, “Kirche uns Staat bis zur Gründung der Staatskirche”, Kultur
der Gegenwart, vol. I, parte IV, pág. 1, 2ª edição, pág. 239.
47 Harnack, op. cit., pág. 143.
46
56
“a Igreja”, um reflexo da imagem da monarquia absoluta do
Império Romano.
No século I não existia nem mesmo uma autoridade externa
claramente definida nas comunidades cristãs, que se
formavam baseadas na independência e liberdade do cristão
individual, em relação às questões de fé. O século II
caracterizou-se pelo desenvolvimento gradual de uma união
eclesiástica com os líderes autoritários e assim, também, pelo
estabelecimento de uma doutrina sistemática da fé, a que o
cristão individual se tinha de submeter. Originalmente, não
era a Igreja, mas tão-sómente Deus, que podia perdoar os
pecados. Mais tarde, Extra eclesiam nulla salus; sómente a
Igreja oferecia proteção contra qualquer perda da graça. Como
instituição, a Igreja tornou-se sagrada em virtude de seu dom,
tornou-se uma entidade moral que educa para a salvação.
Essa função se limita aos padres, especialmente ao
episcopado, “que na sua unidade garante a legitimidade da
Igreja e recebeu a jurisdição de perdoar os pecados”.48 Essa
transformação da irmandade livre numa organização
hierárquica indica claramente a modificação psíquica
ocorrida.49 Tal como os primeiros cristãos estavam imbuídos
de ódio e desprêzo pelos governantes, pelos ricos e educados,
em suma, por tôda a autoridade, também os cristãos do
século III estavam imbuídos de reverência, amor e fidelidade
para com as novas autoridades religiosas.
Tal como o Cristianismo se transformou, sob todos os
aspectos, nos três primeiros séculos de sua existência,
tornando-se uma nova religião, em comparação com a
original, o mesmo ocorreu com o conceito de Jesus. No
Cristianismo primitivo predominava a doutrina da adoção, ou
seja, a crença de que o homem Jesus fôra elevado a um deus.
Com a evolução da Igreja, o conceito da natureza de Jesus
modificou-se: o homem não foi elevado a deus, mas o deus
desceu para se fazer homem. Essa a base do novo conceito de
48
49
Cipriano Epístola 69, 11.
Cf. Harnack, History of Dogma, 11, 67-94.
Cristo, que culminou na doutrina de Atanásio, adotada pelo
Concílio de Nicéia: Jesus, o Filho de Deus, gerado pelo Pai
antes de todo o tempo, uno em sua natureza com o Pai. A
interpretação ariana de que Jesus e o Deus
57
Pai eram realmente de natureza semelhante, mas não
idêntica, é rejeitada em favor da tese lógicamente contraditória
de que as duas naturezas, Deus e o Filho, são una, ou seja, da
afirmação de uma dualidade que é simultâneamente uma
unidade. Qual o sentido dessa transformação no conceito de
Jesus e sua relação com Deus Pai, e que relação tem a
transformação do dogma com a modificação ocorrida na
totalidade da religião?
O Cristianismo primitivo era hostil à autoridade e ao Estado.
Satisfazia, na imaginação, os desejos revolucionários das
classes inferiores, hostis ao pai. O Cristianismo que passou a
ser a religião oficial do Império Romano, 300 anos depois,
tinha uma função social totalmente diversa. Pretendia ser, ao
mesmo tempo, uma religião dos líderes e dos liderados; dos
governantes e dos governados. O Cristianismo fazia o que o
culto do imperador e o Mitraísmo não conseguiram, ou seja, a
integração das massas no sistema absolutista do Império
Romano. A situação revolucionária que predominou até o
século II desapareceu. A regressão econômica se fêz sentir, a
Idade Média começou a nascer. A situação econômica levou a
um sistema de laços e dependências sociais que atingiu o
auge, politicamente, no absolutismo romano-bizantino. O
nôvo Cristianismo passou a ser dirigido pela classe
dominante. O nôvo dogma de Jesus, foi criado e formulado
por êsse grupo dominante e seus representantes intelectuais,
e não pelas massas. O elemento decisivo foi a transformação
da idéia do homem que se torna deus para a idéia do deus que
se torna homem.
Como o nôvo conceito do Filho, que era na realidade uma
segunda pessoa ao lado de Deus e ao mesmo tempo uno com
êle, modificou a tensão entre Deus e seu Filho, harmonizando-
a, e como evitou o conceito de que um homem podia tornar-se
Deus, eliminou da fórmula o caráter revolucionário da
doutrina antiga, ou seja, a hostilidade ao pai. O crime de
Édipo, encerrado na fórmula antiga, a substituição do pai pelo
filho, foi eliminado no Cristianismo nôvo. O Pai continuava
intocado em sua posição. Quem estava a seu lado, agora, não
era um homem, mas seu único Filho gerado, existente antes
de tôda a criação.
O próprio Jesus tornou-se Deus sem destronar Deus, porque
sempre fôra um componente de Deus.
Até agora, compreendemos apenas o ponto negativo: porque
Jesus já não podia ser o homem elevado a deus, o homem
colocado
58
à direita do pai. A necessidade de reconhecimento do pai, de
subordinação passiva a êle, poderia ter sido satisfeita pelo
grande competidor do Cristianismo, o culto do imperador. Por
que o Cristianismo, e não o culto do imperador, tornou-se a
religião oficial do Império Romano? Porque o Cristianismo
tinha uma qualidade que o tornava melhor para a função
social que devia desempenhar, ou seja, a fé no Filho de Deus
crucificado. As massas sofredoras e oprimidas se
identificavam com êle em proporções maiores. Mas a
satisfação fantasiosa modificou-se. As massas já não se
identificavam com o homem crucificado para destronar o pai,
em imaginação, mas antes para gozar seu amor e graça. A
idéia de que um homem se fêz deus era símbolo das
tendências agressivas, ativas, hostis ao pai. A idéia de que
Deus tornou-se homem foi transformada num símbolo de um
laço terno e passivo com o pai. As massas experimentaram
satisfação no fato de que seu representante, o Jesus
crucificado, se elevara, tornando-se um deus preexistente. Já
não se esperava uma transformação histórica iminente, mas
acreditava-se, antes, que a libertação já ocorrera, de que o
fato esperado já acontecera. O povo rejeitava a fantasia que
representava a hostilidade ao pai e aceita, em seu lugar,
outra, conciliadora, que colocava o filho ao lado do pai pela
vontade livre) dêste.
A transformação teológica é um reflexo de transformação
sociológica, ou seja, da função social do Cristianismo. Longe
de ser uma religião de rebeldes e revolucionários, essa crença
das classes dominantes tinha como objetivo manter as massas
na obediência. Mas como a velha representação revolucionária
era conservada, a necessidade emocional das massas ficava
satisfeita, de uma forma nova. A submissão passiva
substituiu a hostilidade ativa ao pai. Não foi necessário
afastar o pai, já que o filho era, na verdade, igual a Deus,
desde o início, precisamente porque o próprio Deus o havia
“criado”. A possibilidade real de identificação com um deus
que sofrera, e que não obstante desde o princípio estivera no
céu, e ao mesmo tempo de eliminar as tendências hostis ao
pai, é a base da vitória do Cristianismo sôbre o culto do
imperador. Além do mais, as transformações na atitude para
com as figuras reais do pai – os sacerdotes, o imperador e
especialmente os governantes – correspondiam a essa
modificação na atitude para com o Deus Pai.
59
A situação psíquica das massas católicas do século IV era
diversa, em relação aos cristãos primitivos, no que concerne
ao ódio pelas autoridades, inclusive o deus pai. Êsse ódio
torna-se inconsciente, ou apenas relativamente consciente – o
povo abandonara a atitude revolucionária. A razão disso está
na transformação da realidade social. Tôda esperança de
derrubada dos governantes e de vitória da classe pobre era tão
insustentável que, do ponto de vista psíquico, teria sido inútil
e antieconômico persistir na atitude de ódio. Se era impossível
derrubar o pai, então a melhor fuga psíquica era submeter-se
a êle, amá-lo e receber dêle amor. Essa transformação foi o
resultado inevitável da derrota final da classe oprimida.
Mas
era
impossível
o
desaparecimento
dos
impulsos
agressivos, que também não podiam ter diminuído, pois sua
causa real, a opressão pelos governantes, não desaparecera
nem diminuíra. Onde estavam, portanto? Foram desviados de
seus objetivos anteriores – os pais, as autoridades – e dirigidos
de nôvo para o individuo. A identificação com o Jesus sofredor
e crucificado oferecia uma excelente oportunidade para isso.
No dogma católico, a ênfase não se fazia mais, como na
doutrina cristã primitiva, na derrubada do pai, mas na autoaniquilação do filho. A agressão original, dirigida contra o pai,
passou a voltar-se contra o indivíduo, e com isso proporcionou
um escoadouro inofensivo à estabilidade social.
Mas isso só era possível em relação com outra transformação.
Para os primeiros cristãos, as autoridades e os ricos eram as
pessoas más a serem punidas pela sua maldade. Sem dúvida
os cristãos primitivos não estavam isentos de sentimentos de
culpa provocados pela sua hostilidade para com o pai, e a
identifícação com Jesus sofredor também serviu para expiar
sua agressão. Mas sem dúvida para êles a ênfase não estava
nos sentimentos de culpa nem na reação masoquista e
purgadora.
Para
as
massas
católicas,
surgidas
posteriormente, a situação se modificara. Para elas, os
governantes já não eram culpados do mal e sofrimento – eram,
antes, os próprios sofredores os culpados. Deveriam censurarse, se eram infelizes. Sómente pela expiação constante,
sómente pelo sofrimento pessoal poderiam expiar a culpa e
conquistar o amor e perdão de Deus e de seus representantes
na terra. Pelo sofrimento e pela autocastração
60
era possível escapar ao opressivo sentimento de culpa e ter
possibilidade de encontrar perdão e amor. 50
A Igreja Católica percebeu como acelerar e fortalecer, de forma
magistral, êsse processo de transformação da acusação a
Deus e aos governantes numa acusação do próprio eu.
Intensificou o sentimento de culpa das massas a ponto de
Cf. observações de Freud, em Civilization and its Discontents (Standard
Edition), XXI, 123 e segs.
50
torná-lo insuportável. Com isso, atingiu um duplo objetivo:
primeiro, ajudou a afastar as acusações e a agressão das
autoridades, desviando-as para as massas sofredoras;
segundo, ofereceu-se a essas massas sofredoras como um pai
bom e amante, já que os sacerdotes concediam perdão e
expiação ao sentimento de culpa que êles mesmos haviam
provocado. Cultivou, engenhosamente, a condição psíquica da
qual ela e a classe dominante obtinham uma dupla vantagem:
o desvio da agressão das massas e a segurança de sua
dependência, gratidão e amor.
Para os governantes, porém, a fantasia do Jesus sofredor
tinha não apenas essa função social, mas também uma
importante função psíquica. Amenizava-lhes os sentimentos
de culpa provocados pela desgraça e sofrimento das massas a
quem oprimiam e exploravam. Identificando-se com Jesus
sofredor, os grupos exploradores podiam, êles mesmos,
penitenciar-se. Podiam reconfortar-se com a idéia de que,
como o único filho de Deus sofrera voluntàriamente, o
sofrimento para as massas era uma graça de Deus, e portanto
não tinham razão para se acusarem de causar êsse
sofrimento.
A transformação do dogma cristológico, bem como o de tôda a
religião cristã, correspondeu simplesmente à função
sociológica da religião em geral, à manutenção da estabilidade
social pela preservação dos interêsses das classes
dominantes. Para os primeiros cristãos, foi um sonho
abençoado e satisfatório o de criar a fantasia de que as
autoridades odiadas seriam derrubadas em breve e que os
pobres e sofredores passariam à condição de senhores e
atingiriam a felicidade. Depois de sua derrota final, e depois
que todas as suas esperanças se revelaram inúteis, as massas
satisfizeram-se com uma fantasia na qual aceitavam a
61
responsabilidade de todo o Sofrimento. Podiam, porém,
penitenciar-se de seus pecados pelo sofrido, esperando então
ser amadas por um deus pai. Êste se revelara um pai amante
quando, na forma do filho, tornou-se homem sofredor. Os
outros desejos de felicidade, e não apenas de perdão, foram
satisfeitos na fantasia de uma vida posterior abençoada, de
um além-mundo que devia substituir a condição
históricamente feliz prevista para êste mundo e ambicionada
pelos primeiros cristãos.
Em nossa interpretação da fórmula homoousiana não
chegamos, ainda, ao seu sentido excepcional o final. A
experiência analítica nos leva a esperar que atrás da
contradição lógica da fórmula, ou seja, de que dois são igual a
um, deve ocultar-se um sentido inconsciente específico a que
o dogma deve sua significação e fascínio. Êsse sentido mais
profundo e inconsciente da doutrina homoousiana se torna
claro ao nos lembrarmos de um fato simples: há uma situação
real na qual essa fórmula tem sentido, a situação da criança
no ventre da mãe. Mãe e filho são, então, dois sêres e, ao
mesmo tempo, um.
Chegamos, assim, ao problema central da transformação da
idéia da relação de Jesus – e Deus Pai. Não sómente o filho
modificou-se, mas também o pai. O pai forte e poderoso
tornou-se a mãe agasalhadora e protetora; o filho, outrora
sofredor e passivo, tornou-se a criança pequena. Sob a forma
do Deus paternal dos judeus, que vencera a luta com as
divindades maternais do Oriente Próximo, surge novamente a
figura divina da Grande Mãe, e torna-se a figura dominante do
Cristianismo medieval.
A significação que a divindade maternal tem para o
Cristianismo Católico, a partir do século IV, torna-se clara,
primeiro, no papel que a Igreja, como tal, começa a
desempenhar; e, segundo, no culto de Maria.51 Mostramos que
no Cristianismo primitivo a idéia de uma igreja era ainda
estranha. Sómente no curso do desenvolvimento histórico a
Igreja se torna gradualmente uma organização hierárquica,
uma instituição sagrada, mais do que a simples soma de seus
membros. A Igreja é a intermediária da salvação, os fiéis são
51
Cf, A- J. Storfer, Marias jugfräullisches Mutterschaft. (Berlim, 1913).
seus filhos, ela é a Grande Mãe
62
através da qual, exclusivamente, pode o homem atingir a
segurança e a bem-aventurança.
Igualmente reveladora é a revivescência da figura da divindade
materna no culto de Maria, que representa a divindade
materna que evoluiu independentemente, separando-se do
Deus Pai. Nela, as qualidades maternais, que haviam sido
sempre inconscientemente uma parte do Deus Pai, passaram
a ser experimentadas cônscia e claramente, e simbólicamente
representadas.
Pelo Nôvo Testamento, Maria não está elevada acima da esfera
dos homens comuns. Com o desenvolvimento da Cristologia,
as idéias a seu respeito assumiram uma importância cada vez
maior. Quanto mais a figura do Jesus humano e histórico se
apagava em favor do Filho de Deus preexistente tanto mais
deificada era Maria. Embora, segundo o Nôvo Testamento,
Maria continuasse a ter filhos de seu casamento com José,
Epifânio discordou disso, acusando essa versão de herética e
frívola. Na polêmica nestoriana, chegou-se em 431 a uma
decisão contra Nestório, afirmando que Maria não só era a
mãe de Cristo, mas também a mãe de Deus, e em fins do
século IV surgiu um culto de Maria, a quem os homens se
dirigiam e a quem rezavam. Aproximadamente na mesma
época a representação de Maria nas artes plásticas também
começou a desempenhar um papel destacado, e cada vez
maior. Os séculos posteriores atribuíram sempre mais
destaque à mãe de Deus, e seu culto tornou-se mais
exuberante e geral. Ergueram-se altares a ela, e suas imagens
eram mostradas em tôda parte. De beneficiária da graça, ela
passou a conceder graças.52 Maria e o menino Jesus
A ligação entre o culto de Maria e o culto das divindades maternais
pagãs já foi examinada numerosas vêzes. Um exempo particularmente
claro disso está nas Coliridianas, que, como sacerdotisas de Maria,
carregam os doces na procissão solene, no dia consagrado a ela, tal como
no culto da rainha canaanita do céu, mencionado por Jeremias. Cf Rösch
52
tornaram-se o símbolo da Idade Média Católica.
A plena significação da fantasia coletiva da Madona só se
torna clara através dos resultados das investigações
psicanalíticas clínicas.
63
Sándor Radó assinalou o significado extraordinário que o
temor da fome, de um lado, e a felicidade da satisfação oral,
de outro, desempenham na vida psíquica do indivíduo:
os tormentos da fome tornam-se uma antecipação psíquica de
“castigos” posteriores, e pela escola da punição tornam-se o
mecanismo primitivo do autocastigo, que finalmente atinge na
melancolia uma significação fatidica. Atrás do mêdo sem limite da
pauperização, provocado pela melancolia, está oculto nada mais do
que o médo da fome. Êsse mêdo é a reação da vitalidade do resíduo
do ego normal ao ato melancólico da expiação ou pena, que ameaça
a vida, impôsto pela Igreja. Mamar no seio, porém, permanece
como o exemplo luminoso da oferenda infalível e do perdão, do
amor. Não foi, certamente, por acaso que a Madona com a criança
tornou-se o símbolo de uma religião poderosa e através de sua
mediação o símbolo de tôda uma época de nossa cultura ocidental.
Na minha opinião, a derivação do sentido da expiação do complexo
de culpa e perdão da experiência infantil de óio, fome e mamar no
seio resolve nosso enigma da indagação de como a esperança de
absolvição e amor constitui, talvez, a configuração mais poderosa
que encontramos nos altos níveis da vida psiquica humana.53
O estudo de Radó torna perfeitamente clara a ligação entre a
fantasia do Jesus sofredor e a do Jesus menino no seio da
mãe. Ambas são uma expressão do desejo de perdão e
expiação. Na fantasia do Jesus crucificado, o perdão é
conseguido por uma submissão passiva, autocastradora, ao
pai. Na fantasia do menino Jesus no seio da Madona, o
elemento masoquista está ausente, e em lugar do pai
(Th. St. D., 1888, págs. 278 e segs.), que interpreta o doce ou bólo como
um símbolo fálico e vê na adoração de Maria pelas Colilidianas uma
manifestação idêntica à da Astarde oriental-fenícia. Cf. Ver Realen
zyklopädie für die protestantische Theologie und Kirche, vol. XII. Leipzig,
1915
53 Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse, XIlI 445.
encontramos a mãe que, enquanto pacifica a criança, concede
o perdão e expiação. O mesmo sentimento feliz constitui o
sentido inconsciente do dogma homoousiano, a fantasia da
criança abrigada no ventre.
A fantasia da grande mãe clemente é a satisfação ótima que a
Igreja Católica tinha a oferecer. Quanto mais as massas
sofriam, tanto mais sua situação real se assemelhava à de
Jesus sofredor, tanto e mais a figura da criança feliz e
sugando o seio devia e podia surgir simultâneamente com a
figura do Jesus sofredor. Mas isso significa também que os
homens tinham de
64
reglredir a uma atitude passiva, infantil. Essa posição impedia
a revolta ativa; era a atitude psíquica correspondente ao
homem da sociedade medieval hieràrquicamente estruturada,
um ser humano que se via na dependência dos governantes,
que esperava conseguir dêles sua subsistência mínima, e para
quem a fome era uma prova de seus pecados.
5
EVOLUÇÃO DO DOGMA ATÉ O CONCíLIO DE
NICÉIA
ATÉ AGORA, acompanhamos as transformações nos conceitos
de Cristo e sua relação com o Deus Pai, desde o início, na fé
cristã primitiva, até o dogma de Nicéia, e tentamos mostrar os
motivos dessa transformação. O desenvolvimento teve várias
fases intermediárias, porém, que se caracterizam pelas
diferentes formulações surgidas até a época do Concílio de
Nicéia. Essa evolução se processa pela contradição, e isso só
pode ser dialèticamente compreendido juntamente com a
evolução gradual do Cristianismo, de uma religião
revolucionária para uma religião conivente com o Estado.
Demonstrar que as diferentes formulações do dogma
correspondem, em cada época, a uma classe particular e suas
necessidades constitui um estudo especial. Não obstante, as
características básicas serão indicadas aqui.
O Cristianismo do século II, que já iniciara seu “revisionismo”,
caracterizava-se por uma batalha em duas frentes: numa, as
tendências revolucionárias que ainda se faziam sentir com
certa fôrça, em vários lugares, e que era necessário eliminar;
na outra, as tendências que se inclinavam a uma evolução
demasiado rápida na direção da conformidade social, na
verdade mais rápida do que a evolução social permitia e que
também precisava ser eliminada. As massas só podiam evoluir
gradual e lentamente da esperança num Jesus revolucionário
para a fé num Jesus que apoiava o Estado.
A mais forte expressão das tendências cristãs primitivas foi o
montanismo. Originalmente, constituiu êle um esfôrço
prodigioso do profeta frígio Montano na segunda metade do
século II
65
e foi uma reação contra as tendências de conformidade do
Cristianismo, reação essa que procurou restabelecer o
entusiasmo cristão primitivo. Montano desejava afastar os
cristãos de suas relações sociais e estabelecer, através de seus
adeptos, uma nova comunidade, à parte do mundo,
comunidade que devia preparar-se para a descida da
“Jerusalém superior”. O montanismo foi uma vivescência do
espírito cristão primitivo, mas o processo de transformação do
Cristianismo já havia ido muito longe, de modo que essa
tendência revolucionária foi combatida como heresia pelas
autoridades da Igreja, que agiram como os bailios do Estado
romano. (O comportamento de Lutero para com os
camponeses e os anabatistas revoltados foi semelhante, sob
muitos aspectos.)
Os gnósticos, por sua vez, eram os representantes intelectuais
da classe média abastada e helenística. Segundo Harnack, o
gnosticismo representou a “secularização aguda” do
Cristianismo, e antecipou uma evolução que continuaria por
mais 150 anos. Naquele momento, foi atacado pela Igreja
oficial, juntamente com o montanismo, mas sómente uma
interpretação não-dialética pode ignorar o fato de que a luta
da Igreja contra o montanismo foi muito diferente, em caráter,
da luta travada contra o gnosticismo. O montanismo foi
combatido porque era um ressurgimento de um movimento já
dominado e perigoso para os atuais líderes do Cristianismo. O
gnosticismo foi combatido porque desejava realizar, com
excessiva rapidez, e subitamente demais, os seus princípios, e
por anunciar o segrêdo da futura evolução cristã antes que a
consciência das massas a pudesse aceitar.
As idéias gnósticas de fé, especialmente seus conceitos
cristológicos e escatológicos, correspondem exatamente às
expectativas que devemos formular à base de nosso estudo do
pano de fundo sócio-psicológico do desenvolvimento
dogmático. Não é de surpreender que o gnosticismo negue
inteiramente a escatologia cristã primitiva, especialmente o
segundo advento de Cristo e a ressurreição da carne, e espere
do futuro apenas a libertação do espírito de seu revestimento
material. Essa rejeição cabal da escatologia, realizada no
Catolicismo 150 anos mais tarde, era, na época, prematura,
Os conceitos escatológicos continuavam sendo mantidos pelos
apologistas, que sob outros aspectos já se haviam distanciado
muito das concepções cristãs primitivas. Êsse
66
remanescente foi considerado “arcaico” por Harnack, mas
necessário, na época, para a satisfação das massas.
Outra doutrina do gnosticismo, intimamente ligada a essa
rejeição da escatologia, deve ser notada: a importância
atribuída à discrepância entre o Deus supremo e o criador do
mundo, e a afirmativa de que “o mundo presente nasceu da
queda do homem, ou de um empreendimento hostil a Deus, e,
portanto, é produto de um ser intermediário ou maléfico”.54 O
sentido dessa tese é claro: se a criação, ou seja, o mundo
histórico, tal como encontra expressão na vida social e
política, é maléfico desde o início, se é obra de um Deus
intermediário, indiferente ou fraco, então na verdade não pode
ser redimido e tôdas as esperanças escatológicas do
Cristianismo primitivo serão falsas e infundadas. O
gnosticismo rejeitava a transformação coletiva real e a
redenção da humanidade, colocando em seu lugar um ideal
individual de conhecimento, dividindo os homens dentro de
linhas religiosas e espirituais, em classes e castas definidas.
As divisões sociais e econômicas eram consideradas como
boas e determinadas por Deus. Os homens eram divididos em
espirituais, que gozavam das mais altas bênçãos; psíquicos,
que partilhavam das bênçãos menores; e hílicos, que haviam
caído totalmente em declínio. Foi a rejeição da redenção
coletiva e a afirmação de uma estratificação de classe da
sociedade, como a estabelecida posteriormente pelo
Catolicismo na separação entre os leigos e o clero, e entre a
vida das pessoas comuns e a dos monges.
Qual era, então, o conceito dos gnósticos sôbre Jesus e sua
relação com o Deus Pai? Sustentavam que
... o Éon celestial, Cristo, e a aparição humana dêsse Éon devem
ser claramente diferenciados. Aquêles que, como Basílides, não
reconheciam qualquer união real entre Cristo e o homem Jesus,
consideravam-no apenas um homem terreno. Outros, como alguns
dos valentianos, ensinavam que o corpo de Jesus era uma
formação psíquica celestial, e nascida do ventre de Maria apenas
na aparência. Finalmente, um terceiro grupo, como Saturino,
declarava que tôda a aparência visível de Cristo era um fantasma, e
portanto negava o nascimento do Cristo.55
67
Qual o significado dessas concepções? Elas eliminam
principalmente a idéia cristã original de que um homem real
(cujo caráter como revolucionário e hostil ao pai já
54
55
Harnack, History of Dogma, 1, 258.
Ibid., págs. 259-260.
analisamos) tornou-se um deus. As diferentes tendências
gnósticas
são
apenas
manifestações
das
diferentes
possibilidades dessa eliminação. Tôdas elas negam que Cristo
fôsse um homem real, mantendo com isso a inviolabilidade do
deus pai. A ligação com o conceito da redenção também é
clara. É improvável que êste mundo, mau por natureza, se
torne bom, tal como é improvável que o homem real se possa
tornar deus; isso significa a impossibilidade igual de que
alguma coisa na situação social existente possa ser
modificada. É um êrro julgar que a tese gnóstica – de que
Deus o Criador, do Velho Testamento, não é o Deus mais alto,
mas um deus inferior – é expressão de tendências
particularmente hostis ao pai. Os gnósticos tinham de afirmar
a inferioridade do Deus Criador para demonstrar a tese da
imutabilidade do mundo e da sociedade humana, e para êles
essa afirmação não era, portanto, a expressão de hostilidade
para com o pai. Sua tese, em contraste com a dos primeiros
cristãos, tratava de um deus alheio a êles, o Jeová judaico, a
quem os gregos não tinham motivos para respeitar. Para êles,
destronar essa divindade judaica não constituía nem
pressupunha nenhuma emoção particularmente hostil para
com o pai.
A Igreja Católica, que combateu o montanismo como um
remanescente perigoso do gnosticismo, uma antecipação
prematura do que viria a acontecer, evoluiu lenta, mas
continuamente, no sentido da realização final de seu objetivo,
no século IV. Os apologistas foram os primeiros a elaborar
uma teoria para essa evolução. Criaram dogmas – foram os
primeiros a usar êsse têrmo no sentido técnico – nos quais a
nova atitude para com Deus e a sociedade encontrou
expressão. Na verdade, não foram tão radicais quanto os
gnósticos: conservaram, como já dissemos, as idéias
escatológicas e com isso estabeleceram uma ligação com o
Cristianismo primitivo. Sua doutrina de Jesus e sua relação
com o Deus Pai, porém, estavam intimamente relacionadas
com a posição gnóstica e encerravam a semente do dogma de
Nicéia. Procuraram apresentar o Cristianismo como a mais
alta filosofia, “formularam o conteúdo do Evangelho de modo a
atrair o bom-senso
68
de todos os pensadores sérios e todos os homens inteligentes
da época”.56
Embora os apologistas não ensinassem que a matéria é
maligna, não fizeram, porém, de Deus a origem direta do
mundo, mas personificaram a inteligência divina e a
colocaram entre Deus e o mundo. Uma tese, embora menos
radical do que a tese gnóstica correspondente, opõe-se da
mesma forma à redenção histórica. O Logos, extraído por
Deus de Si mesmo para a criação, e produzido por um ato
voluntário, era para êles o Filho de Deus. Não estava separado
de Deus, sendo antes o resultado do próprio desdobramento
de Deus; era, também Deus e Senhor, sua personalidade
tivera um início, era uma criatura em relação a Deus. E, não
obstante, sua subordinação não estava em sua natureza e sim
na sua origem.
Essa Cristologia do Logos dos apologistas era, em essência,
idêntica ao dogma de Nicéia. A teoria da adoção, autoritária,
relacionada com o homem que se tornou deus, foi afastada, e
Jesus tornou-se o único Filho de Deus, preexistente, uno com
êle na natureza e não obstante uma segunda pessoa a seu
lado.Nossa interpretação dessa fonte da doutrina de Nicéia é
válida, portanto, para a Cristologia do Logos, precursora
decisiva do nôvo Cristianismo Católico.
A assimilação da Cristologia do Logos pela fé da Igreja... envolveu
uma transformação da fé em doutrina, com características
filosóficas gregas; colocou em segundo plano as velhas idéias
escatológicas; e, na verdade, suprimiu-as; substituiu o Cristo da
história por um Cristo conceptual, um princípio, e transformou o
Cristo histórico num fenômeno. Levou os cristãos à “Natureza” e à
grandeza naturalista, ao invés da grandeza pessoal e moral; deu à
fé dos cristãos, de uma vez por tôdas, a direção no sentido da
contemplação das idéias e dogmas, preparando com isso o caminho
para a vida monástica e, também, para um Cristianismo tutorado
de leigos imperfeitos e trabalhadores. Legitimou centenas de
questões de cosmologia e da natureza do mundo como questões
religiosas, e exigiu uma resposta definida, sob pena de perda da
56
Harnack, op. cit., II, 110.
salvação. Isso levou a uma situação em que, ao invés de pregar a
fé, pregava-se a fé na fé e se limitava a religião, embora
69
ostensivamente ela estivesse sendo ampliada. Aperfeiçoando a
aliança com a ciência, essa doutrina fêz do Cristianismo uma
religião mundial, e na verdade uma religião cosmopolita, e
preparou caminho para o Edito de Constantino.57
Dessa forma, na Cristologia do Logos, a semente definitiva do
dogma católico-cristão foi criada. O reconhecimento e adoção
dêsse dogma não se fêz, porém, sem uma luta séria contra as
idéias que o contrariavam, e atrás das quais estavam ocultos
os remanescentes das opiniões do Cristianismo primitivo, e
seu espírito. A êsse conceito foi dado o nome de
monarquíanismo (primeiramente por Tertuliano). Dentro do
monarquianismo podemos distinguir duas tendências: a da
adoção e a modalista.
O monarquianismo adocionista considerava Jesus um ser
humano que se tornou deus. Os modalistas sustentavam que
Jesus era apenas uma manifestação do Deus Pai, não um
deus juntamente com êle. Ambas as tendências, portanto,
afirmavam a monarquia de Deus: para uma, o homem era
inspirado pelo espírito divino, enquanto Deus permanecia
inviolável como o ser único; para outra, o Filho era apenas
uma manifestação do Pai, preservando, ainda, a monarquia de
Deus. Embora os dois ramos do monarquianismo parecessem
opor-se, a oposição era na realidade muito menos aguda.
Harnack assinala que as duas opiniões, sob muitos aspectos,
coincidem e a interpretação psicanalítica torna perfeitamente
inteligíveis as afinidades entre elas. Já dissemos que o sentido
inconsciente do conceito de adoção é o desejo de substituir o
deus pai. Se o homem pode tornar-se Deus e ser entronizado
à direita de Deus, então Deus está destronado. A mesma
tendência, porém, é clara no dogma modalista; se Jesus fôsse
apenas uma manifestação de Deus, então certamente o
próprio Deus Pai foi crucificado, sofreu e morreu – opinião que
57
Harnack, Lehrbuch der Dogmengeshichte (6.ª ed., 1922), pág. 155.
recebeu o nome de patripassianismo. Nessa concepção
modalística reconhecemos uma afinidade clara com os velhos
mitos do Oriente Próximo, do deus moribundo (Átis, Adônis,
Osíris), que implica uma hostilidade inconsciente ao deus pai.
70
Trata-se precisamente do inverso daquilo em que poderia crer
uma interpretação que ignorava a situação psíquica dos
partidários do dogma. O monarquianismo, seja adocionista ou
modalista, significa não um aumento da reverência a Deus,
mas o oposto – o desejo de sua substituição, expresso na
deificação de um homem ou na crucificação do próprio Deus.
Do que já dissemos compreende-se plenamente que Harnack
ressalte, como um dos pontos essenciais de concordância dos
dois movimentos do monarquianismo, o fato de representarem
a concepção escatológica em oposição à concepção
naturalista, da pessoa de Cristo. Vimos que a primeira idéia,
de que Jesus voltará para estabelecer o novo reino, era parte
essencial da crença cristã primitiva, revolucionária e hostil ao
pai. Não nos surpreende, portanto, verificar que êsse conceito
também existe nos dois movimentos monarquianistas, cuja
relação com a doutrina cristã primitiva já foi demonstrada.
Nem nos surpreende que Tertuliano e Orígenes afirmem que a
maioria dos cristãos pensava em têrmos monarquianistas,
pois entendemos que a luta contra ambos os tipos de
monarquianismo era essencialmente uma expressão da luta
contra as tendências, ainda enraizadas nas massas, de
hostilidade ao deus pai e ao Estado.
Deixamos de lado as nuanças individuais dentro de evolução
dogmática e nos voltamos para a grande divergência que teve
uma solução preliminar no Concílio de Nicéia, ou seja, a
controvérsia entre Ário e Atanásio. O primeiro ensinava que
Deus é Uno, ao lado de quem não há outro, e que seu Filho
era um ser independente, diferindo em essência do Pai. Não
era o verdadeiro Deus e tinha qualidades divinas apenas como
dons, e apenas em parte. Como não era eterno, seu
conhecimento não era perfeito. Portanto, não tinha direito às
mesmas honras do Pai. Mas fôra criado antes do mundo como
instrumento para a criação de outros sêres, criado pela
vontade de Deus como ser independente. Atanásio contrastava
o Filho, que pertencia a Deus, com o mundo: era produto da
essência de Deus, partilhava totalmente a natureza do Pai e
tinha a mesma essência que o Pai, formando com Deus uma
unidade rigorosa.
Identificamos fàcilmente, atrás dessa oposição entre Ário e
Atanásio, a velha controvérsia entre o conceito monarquiano e
a Cristologia do Logos dos apologistas (embora Atanásio
tivesse
71
feito pequenas modificações na doutrina do Logos, com novas
formulações), a luta entre as tendências revolucionárias hostis
ao deus pai e o movimento conformista que apoiava o pai e o
Estado, renunciando à libertação coletiva e histórica. O último
triunfou, finalmente, no século IV, quando o Cristianismo
tornou-se a religião oficial do Império Romano. Ário, discípulo
de Luciano, que por sua vez era discípulo de Paulo de
Samosata, um dos defensores destacados da adoção, já não
representava essa doutrina em sua forma pura e original, mas
sim de mistura com elementos da Cristologia do Logos. E não
poderia ser de outro modo, já que a evolução do Cristianismo,
distanciando-se do entusiasmo primitivo e aproximando-se da
Igreja Católica, havia atingido um ponto em que o velho
conflito só podia ser combatido na linguagem e no clima das
opiniões eclesiásticas. Se a controvérsia entre Atanásio e Ário
parecia girar em tôrno de uma pequena discordância (se Deus
e seu Filho são da mesma natureza, ou de natureza igual,
homoousiana, ou homoiousiana), a pequenez dessa
discordância foi, precisamente, a conseqüência da vitória, já
então quase completa, sôbre as tendências cristãs primitivas.
Atrás dêsse debate, porém, está nada menos do que o conflito
entre as tendências revolucionárias e reacionárias. O dogma
ariano foi uma das manifestações finais do movimento cristão
primitivo; a vitória de Atanásio selou a derrota da religião e
das esperanças dos pequenos artesãos, camponeses e
proletários da Palestina.
Procuramos mostrar, a largas pinceladas, como as várias
fases da evolução dogmática estiveram de acôrdo com a
tendência geral da evolução religiosa desde a fé cristã
primitiva até o dogma de Nicéia. Seria uma tarefa atraente,
que devemos abandonar neste estudo, mostrar também a
situação social dos grupos em cada fase. Valeria a pena
estudar, também, as razões pelas quais nove décimos do
Oriente e os alemães aderiram ao arianismo. Acreditamos,
porém, ter mostrado de forma suficiente que as várias fases
da evolução do dogma e tanto o seu início como o fim só
podem ser compreendidos à base de transformações na
situação social real e na função do Cristianismo.
72
6
OUTRA TENTATIVA DE INTERPRETAÇÃO
QUAIS AS diferenças de método e conteúdo entre o presente
estudo e o de Theodor Reik, sôbre o mesmo assunto?
Reik procede metodológicamente. O objeto especial de sua
investigação é o dogma, particularmente o dogma cristológico.
Como se “ocupa de estabelecer o paralelo entre a religião e a
neurose de compulsão e mostrar as ligações entre os dois
fenômenos em exemplos simples”, procura mostrar,
“especialmente nesse exemplo representativo, que o dogma
religioso
na
história
evolucionária
da
humanidade
corresponde ao pensamento obsessivo neurótico, a expressão
mais significativa do pensamento irracional compulsivo”. Os
processos
psíquicos
que
levaram
à
construção
e
desenvolvimento do dogma seguem o mecanismo psíquico do
pensamento obsessivo, e os mesmos motivos predominam em
ambos. “Na formulação do dogma, estão envolvidos os
mesmos mecanismos defensivos que existem nos processos
compulsivos do indivíduo.”
Como desenvolve Reik sua tese sôbre a analogia fundamental
entre o dogma e a compulsão?
Primeiro, à base de sua idéia da analogia entre a religião e as
neuroses de compulsão, procura encontrar essa concordância
em todos os aspectos individuais, de ambos os fenômenos, e
portanto também entre o pensamento religioso e o
pensamento compulsivo. Volta-se, então, para a evolução do
dogma e vê como é elevado ao longo das linhas de uma luta
continuada sôbre pequenas dissensões. Não lhe parece
rebuscado interpretar essa surpreendente semelhança entre a
evolução do dogma e o pensamento obsessivo como prova da
identidade dos dois fenômenos. Assim, o desconhecido se
explica pelo conhecido; a evolução do dogma é compreendida
dentro das mesmas leis que governam os processos neuróticocompulsivos. A hipótese de uma relação mais íntima entre os
dois fenômenos é fortalecida pelo fato de que no dogma
cristológico em particular a relação para com o
73
Deus Pai, com sua ambivalência básica, desempenha um
papel surpreendente e especial.
Na atitude metodológica de Reik há certas suposições não
mencionadas explicitamente, mas de exposição necessária
para a crítica de seu método. A mais importante é a seguinte:
como uma religião, no caso o Cristianismo, é concebida e
apresentada como uma entidade, os adeptos dessa religião
são considerados como uma entidade unificada, e as massas
são, por isso, tratadas como se constituíssem um único
homem, um indivíduo. Como a sociologia organicista, que
concebia a sociedade como uma entidade viva e compreendia
os diferentes grupos dentro da sociedade como partes
diferentes de um mesmo corpo, referindo-se assim aos olhos,
pele, cabeça, etc., da sociedade, Reik adota um conceito
também organicista – não no sentido anatômico, mas
sim psicológico. Além disso, não procura investigar as massas,
cuja unidade supõe, na sua situação de vida real. Supõe que
as massas são idênticas, e trata apenas das idéias e ideologias
por elas produzidas, não se ocupando concretamente de
homens vivos e sua situação psíquica. Não interpreta as
ideologias como criadas pelos homens; reconstrói êstes,
partindo das ideolo'gias. Consequentemente, seu método é
relevante para a história do dogma, e não como método para o
estudo da história religiosa e social. Assim, assemelha-se
bastante não sómente à sociologia organicista, mas também a
um método de pesquisa religiosa orientado exclusivamente
para a história das idéias, que já foi abandonado até mesmo
por muitos historiadores da religião, como Harnack por
exemplo. Com seu método, Reik apóia implicitamente a
interpretação teológica, que o conteúdo de seu trabalho rejeita
conscientemente e explicitamente. Êsse ponto de vista
teológico, ressalta a unidade da religião cristã – na verdade, o
Catolicismo pretende a imutabilidade, e se adotarmos como
método a análise do Cristianismo como se fôsse uma pessoa
viva, seremos levados lógicamente à posição ortodoxa católica.
A metodologia que focalizamos é de grande significação na
investigação do dogma cristão, porque é decisiva para o
conceito da ambivalência, central no trabalho de Reik. Se a
hipótese de um sujeito unificado é ou não aceitável, é
problema que só pode ser solucionado depois de uma
investigação – que falta
74
em Reik e da situação psíquica, social e econômica, das
“superfícies psíquicas” do grupo. O têrmo ambivalência só se
aplica quando há um conflito de impulsos dentro do mesmo
indivíduo, ou talvez dentro de um grupo de indivíduos
relativamente homogéneos. Se o homem ama e odeia,
simultâneamente,
outra
pessoa,
podemos
falar
de
ambivalência. Mas se, quando há dois homens, um ama e o
outro odeia um terseiro homem, os dois são opostos. Podemos
analisar por que um ama e o outro odeia, mas seria errôneo e
confuso falar de ambivalência. Quando, dentro de um grupo,
encontramos
a
presença
simultânea
de
impulsos
contraditórios, sómente uma investigação da’ situação realista
do grupo pode mostrar se atrás de sua aparente unidade é
possível encontrar diferentes subgrupos, cada qual com
desejos diferentes, e combatendo entre si. A ambivalência
aparente poderia ser, na realidade, um conflito entre
diferentes subgrupos.
Um exemplo serve para ilustrar êsse ponto. Imaginemos que,
dentro de várias centenas ou num milhar de anos, um
psicanalista, usando o método de Reik, faça um estudo da
história política da Alemanha depois da Revolução de 1913, e
particularmente a disputa sôbre as côres da bandeira alemã.
Julgaria que houve na Alemanha um grupo, os monarquistas,
favorável à bandeira prêto-branco-vermelha; outro, os
republicanos, que insistia na bandeira prêto–vermelhodourada; e ainda outro, que desejava uma bandeira vermelha
– e que se chegou então a um acôrdo, fazendo a bandeira
nacional em vermelho-prêto-dourado e a bandeira comercial
dos navios em prêto-branco-vermelho, com um canto prêtovermelho-dourado. Nosso analista imaginário examinaria
primeiro a racionalização e verificaria que um grupo
justificava seu desejo de uma bandeira prêto-branco-vermelha
com a alegação de que essas côres são mais visíveis no mar do
que o prêto-vermelho-dourado. Indicaria qual a significação
que a
atitude para com o pai teve nessa batalha (monarquia ou
república), e prosseguiria procurando descobrir a analogia
com o pensamento de um neurótico compulsivo. Citaria então
exemplos de dúvidas sôbre a côr justa (o exemplo mencionado
por Reik, do paciente que quebrava a cabeça em relação às
gravatas brancas ou pretas, aplica-se muito bem, no caso) que
se originam no conflito dos impulsos ambivalentes, e veria na
disputa sôbre as côres da bandeira e no acôrdo final um
fenômeno análogo ao pensamento obsessivo condicionado
pelas mesmas causas.
75
Ninguém que compreenda as circunstâncias reais duvidará de
que a dedução da analogia seria falsa. É claro que houve
diferentes grupos cujos diferentes interêsses, reais e efetivos,
estavam em conflito entre si, que a luta sôbre a bandeira era
uma luta entre grupos de orientação diferente, tanto
psiquicamente como econômicamente, e que se trata, no caso,
de coisa totalmente diferente de um “conflito de
ambivalência”. O acôrdo da bandeira não foi o resultado de
um conflito de ambivalência, mas sim o compromisso entre
duas pretensões diferentes de grupos sociais que lutavam
entre si.
Que diferenças substanciais resultam dessa diferença
metodológica? Tanto na interpretação do conteúdo do dogma
cristológico como na avaliação psicológica do dogma como tal,
o método diferente leva a resultados diferentes.
Há um ponto de partida comum, a interpretação da fé cristã
primitiva como manifestação da hostilidade ao pai. Na
interpretação da evolução posterior do dogma, porém,
chegamos a uma conclusão precisamente oposta à de Reik.
Considera êle o gnosticismo como um movimento no qual os
impulsos de revolta, apoiados pela religião do filho, que era o
Cristianismo, predominou ao extremo, degradando com isso o
deus pai. Procuramos mostrar que, pelo contrário, o
gnosticismo eliminou as tendências revolucionárias do
Cristianismo primitivo. O êrro de Reik parece-nos vir do fato
de, pelo seu método, observar êle sómente a fórmula gnóstica
da eliminação do deus pai judaico, ao invés de examinar o
gnosticismo como um todo, e no qual uma significação
totalmente diferente pode ser atribuída à fórmula da
hostilidade para com Jeová. A interpretação de uma evolução
dogmática posterior leva a resultados igualmente contrários.
Reik vê na doutrina da preexistência de Jesus a sobrevivência
e a conquista da hostilidade cristã original ao pai. Em
oposição direta a essa idéia, procurei mostrar que na idéia da
preexistência de Jesus a hostilidade original para com o pai é
substituída por uma tendência oposta e conciliadora. Vemos
que a interpretação psicanalítica leva, aqui, a dois conceitos
opostos do sentido inconsciente de diferentes formulações do
dogma. Essa oposição certamente não depende de qualquer
diferença nas pressuposições psicanalíticas, como tais.
Baseia-se apenas na diferença no método de aplicar a
Psicanálise aos fenômenos sociopsicológicos.
76
As conclusões a que chegamos nos parecem corretas porque,
ao contrário das conclusões de Reik, não se originam na
interpretação de uma fórmula religiosa isolada, mas sim no
exame dessa fórmula em sua ligação com a situação real de
vida dos homens que a defendem.
Não menos importante é nossa discordância, resultante da
mesma diferença metodológica, com respeito à interpretação
da significação psicológica do dogma como tal. Reik vê no
dogma a expressão mais significativa do pensamento
compulsivo popular, e procura mostrar “que os processos
psíquicos que levam ao estabelecimento e desenvolvimento do
dogma seguem, coerentemente, os mecanismos psíquicos do
pensamento compulsivo, que os mesmos motivos predominam
numa área, como na outra”. Julga êle que a evolução do
dogma está condicionada por uma atitude ambivalente em
relação ao pai. Para Reik, a hostilidade para com o pai atinge
seu primeiro ponto alto no gnosticismo. Os apologistas em
seguida, desenvolvem uma Cristologia do Logos, em que o
propósito inconsciente de substituir o Deus Pai pelo Cristo é
simbolizado claramente, embora a vitória dos impulsos
inconscientes seja impedida por fortes correntes defensivas.
Tal como na neurose compulsiva, onde duas tendências
opostas predominam alternadamente, segundo Reik as
mesmas tendências contraditórias aparecem na evolução do
dogma, que segue as mesmas leis da neurose. Mostramos, em
detalhe, a fonte do êrro de Reik. Ignora êle o fato de que o
sujeito psicológico não é, no caso, um homem, e nem mesmo
um grupo com uma estrutura psíquica relativamente
unificada e imutável, mas antes diferentes grupos com
diferentes interêsses sociais e psíquicos. Os vários dogmas são
uma expressão, exatamente, dêsses interêsses opostos, e a
vitória de um dogma não é resultado de um conflito
psicológico íntimo análogo ao do indivíduo, mas o resultado,
antes, de uma evolução histórica que, em conseqüência de
circunstâncias externas totalmente diferentes (como a
estagnação e retrocesso da economia e das fôrças sociais e
políticas a ela ligadas), leva à vitória de um movimento e à
derrota de outro.
Reik vê o dogma como expressão do pensamento compulsivo,
e o ritual como expressão da ação compulsiva coletiva. É sem
dúvida certo que no dogma cristão, bem como em muitos
outros dogmas, a ambivalência para com o pai tem um papel
77
importante, mas isso não comprova ser o dogma um
pensamento compulsivo. Tentamos mostrar precisamente
como as variações do desenvolvimento do dogma, que a
princípio sugere o pensamento compulsivo, exigem, na
verdade, uma explicação diferente.
O dogma é, em grande parte, condicionado pelos motivos
políticos e sociais realistas. Serve como uma espécie de
bandeira, e o reconhecimento da bandeira é a confissão de
participação em determinado grupo. Compreende-se, assim,
que as religiões suficientemente consolidadas por elementos
extra-religiosos (como o judaísmo é pelo seu elemento étnico)
podem prescindir quase totalmente de um sistema de dogmas,
no sentido católico.
É evidente, porém, que tal função orgânica do dogma não é a
única, e êste estudo procurou mostrar a significação social
que deve ser atribuída ao dogma pelo fato de que na fantasia
êle satisfaz as exigências dos crentes, e funciona como uma
satisfação real. Como as satisfações simbólicas são
condensadas em forma de um dogma em que as massas
devem acreditar, de acôrdo com a autoridade dos sacerdotes e
governantes, parece-nos que o dogma deve ser comparado a
uma sugestão poderosa, experimentada subjetivamente como
uma realidade, devido ao consenso entre os crentes. Para que
o dogma atinja o inconsciente, o conteúdo que não é capaz de
ser percebido conscientemente deve ser eliminado e
apresentado em formas racionalizadas e aceitáveis.
7
CONCLUSÃO
VAMOS RESUMIR o que nosso estudo mostrou sôbre o
sentido das transformações ocorridas na evolução do dogma
de Cristo.
A fé cristã primitiva no homem sofredor que se tornou deus
tinha sua significação central no desejo implícito de derrubar
o deus pai ou seus representantes terrestres. A figura do
Jesus sofredor originou-se primordialmente na necessidade de
identificação da parte das massas sofredoras e apenas
secundàriamente foi determinada pela necessidade de
expiação do crime
78
de agressão contra o pai. Os seguidores dessa fé eram homens
que, devido à sua situação de vida, estavam imbuídos de ódio
aos seus governantes e de esperança de felicidade. A
transformação na situação econômica e na composição social
da comunidade cristã alterou a atitude psíquica dos crentes.
O dogma evoluiu, a idéia do homem que se torna deus
transformou-se na idéia do deus que se faz homem. O pai já
não devia ser derrubado, e não são os governantes que têm a
responsabilidade do sofrimento das massas. A agressão já não
é dirigida às autoridades, mas à pessoa dos próprios
sofredores. A satisfação está no perdão e amor que o pai
oferece a seus filhos submissos, e, simultâneamente, na
posição paternal e régia que Jesus sofredor assume,
permanecendo ao mesmo tempo o representante das massas
sofredoras. Jesus torna-se finalmente Deus sem derrubar
Deus, porque sempre foi Deus.
Atrás disso está uma regressão ainda mais profunda, que
encontra expressão no dogma hoinoousiano: o Deus paternal,
cujo perdão só pode ser obtido pelo sofrimento, se transforma
na mãe cheia de graça, que alimenta o filho, abriga-o em seu
ventre, e com isso proporciona o perdão. Descrita
psicológicamente, a transformação que ocorre é a passagem
de uma atitude hostil para com o pai para uma atitude
passiva e masoquisticamente dócil, e, finalmente, para a da
criança amada pela mãe. Se tal evolução ocorre no indivíduo,
indica uma enfermidade psíquica. Ocorre, porém, num
período de séculos, e não afeta a totalidade da estrutura
psíquica dos indivíduos, mas apenas um segmento comum a
todos. Não é a manifestação de perturbação patológica, mas
sim a adaptação a uma determinada situação social. Para as
massas que conservaram um resto de esperança na
derrubada dos governantes, a fantasia cristã primitiva era
adequada e satisfatória, como o foi o dogma católico para as
massas da Idade Média. A causa da evolução está na
transformação da situação sócio-econômica ou no retrocesso
das fôrças econômicas e suas conseqüências sociais. Os
ideólogos das classes dominantes fortaleceram e aceleraram
essa evolução sugerindo satisfações simbólicas às massas,
guiando sua agressão para canais socialmente inofensivos.
O catolicismo significou a volta disfarçada à religião da
Grande Mãe, que havia sido derrotada por Jeová. Sómente o
protestantismo voltou-se para o deus pai.58
79
Coloca-se êle no início de uma época social que permite uma
atitude ativa da parte das massas, em contraste com a atitude
passivamente infantil da Idade Média.59
80
Pessoalmente, Lutero se caracterizava por essa atitude ambivalente em
relação ao pai; o encontro, em parte cheio de amor e em parte cheio de
ódio, entre êle e as figuras do pai constituía o ponto central de sua
situação psiquica.
59 Cf. Frazer, The Golden Bough; e também o conceito, relacionado com o
nosso, em Storfer, op. cit.
58
A PRESENTE CONDIÇÃO HUMANA
QUANDO O MUNDO medieval foi destruído, o homem
ocidental parecia aproximar-se da realização final de seus
mais ardentes sonhos e visões. Libertara-se da autoridade de
uma Igreja totalitária, do pêso do pensamento tradicional, das
limitações geográficas de nosso mundo então apenas meio
descoberto. Criou uma nova ciência que levou, finalmente, à
libertação de fôrças produtivas até então desconhecidas e à
completa transformação do mundo material. Criou sistemas
políticos que pareciam garantir o desenvolvimento livre e
produtivo do indivíduo, reduziu as horas de trabalho em
proporções tais que o homem ocidental pôde gozar horas de
lazer de que seus antepassados nem sonhavam.
Apesar disso, onde nos encontramos hoje?
O perigo de uma guerra capaz de destruir tudo paira sôbre a
humanidade, perigo não superado pelas hesitantes tentativas
dos governos de evitá-lo. Mesmo que os representantes
políticos do homem tenham ainda bastante bom-senso para
impedir uma guerra, a condição humana está longe da
realização das esperanças dos séculos XVI, XVII e XVIII.
O caráter do homem foi rnoldado pelas exigências do mundo
que construiu com as próprias mãos. Nos séculos XVIII e XIX,
o caráter social da classe média revelava fortes tendências à
exploração e ao entesouramento. Êsse caráter foi determinado
pelo desejo de explorar os outros e poupar os ganhos, para
obter dêles novos lucros. No século XX, o caráter do homem
revela considerável passividade e uma identificação com os
valôres do mercado. O homem contemporâneo é, sem dúvida,
passivo durante
81
a maioria do seu tempo de lazer. É um consumidor eterno,
que “aceita” bebidas, alimentos, cigarros, conferências,
panoramas, livros, cinema – tudo isso é consumido, engolido.
O mundo é um grande objeto de seu apetite, uma garrafa
grande, uma maçã grande, um seio grande. O homem tornouse o amamentado, o que espera sempre – e o eternamente
desapontado.
Na medida em que o homem moderno não é consumidor,
passa a ser negociante. Nosso sistema econômico está
centralizado na função do mercado que determina o valor de
tôdas as mercadorias e regula a parcela de todos no produto
social. Não é a fôrça, nem a tradição, nem a fraude ou os
truques que governam as atividades econômicas do homem.
Êle pode produzir e vender, o dia do mercado é o dia do Juízo
para o êxito de seus esforços. Não sómente as mercadorias
são oferecidas e vendidas no mercado, como também o
trabalho tornou-se uma mercadoria, transacionada no
mercado nas mesmas condições de concorrência justa. Mas o
sistema mercantil desdobrou-se além da esfera económica das
mercadorias e trabalho. O homem transformou a si mesmo
numa mercadoria, e sente a sua vida
como um capital a ser investido com lucro. Se consegui-lo,
terá “êxito” e sua vida tem um sentido; se não, “é um
fracasso”. Seu “valor” está na sua vendabilidade, não nas suas
qualidades humanas de amor e razão, não em sua capacidade
artística. Daí o seu senso de valôres depender de fatôres
estranhos – do seu êxito, segundo a opinião dos outros. Daí a
sua dependência dêsses outros, e sua segurança está na
conformidade, em não se distanciar jamais dois passos da
manada.
Não é, porém, apenas o mercado que determina o caráter do
homem moderno. Outro fator, intimamente relacionado com a
função mercantil, é a forma de produção industrial. As
emprêsas tornam-se cada vez maiores, o número de pessoas
por elas empregadas como trabalhadores ou funcionários
aumenta sem cessar. A propriedade é distinguida da
administração e os gigantes industriais são governados por
uma burocracia profissional interessada principalmente no
funcionamento perfeito e na expansão da emprêsa, e não na
ambição pessoal do lucro em si.
Que tipo de homem, portanto, necessita nossa sociedade a fim
de funcionar sem atrito? Precisa de homens que cooperem
fàcilmente dentro de grandes grupos, que desejem consumir
82
mais e mais, e cujos gostos padronizados possam ser
fàcilmente influenciados e previstos. Necessita de homens que
se sintam livres e independentes, não sujeitos a nenhuma
autoridade, princípio ou consciencia, e não obstante estejam
dispostos a receber ordens, fazer o que dêles se espera,
enquadrar-se na máquina social sem atrito. Homens que
possam ser guiados sem a fôrça, liderados sem líder, movidos
sem objetivo, exeto o objetivo de estar em marcha, de
funcionar, de avançar. O industrialismo moderno conseguiu
produzir êsse tipo de homem – o autômato, o homem alienado,
de tal maneira que seus atos e suas fôrças se tornaram
estranhos a êle. Permanecem acima dêle e contra êle,
governando-o ao invés de serem por êle governados. As fôrças
de sua vida foram transformadas em coisas e instituições, que
por sua vez se tornaram ídolos. São sentidas não como
resultado dos esforços do homem, mas como algo destacado
dêle, que êle cultua e a que se submete. O homem alienado se
inclina ante o trabalho de suas mãos. Seus ídolos
representam suas próprias fôrças vitais, de forma alienada. O
homem se sente não como o portador ativo de suas forças e
riquezas, mas como uma “coisa” empobrecida, dependente de
outras coisas fora dêle, e nas quais projetou sua substância
vital.
Os sentimentos sociais do homem são projetados no Estado.
Como cidadão, êle se dispõe até mesmo a dar sua vida pela de
seu companheiro; como pessoa, é governado pelo interésse
egoísta em si mesmo. Tendo feito do Estado a representação
de seus sentimentos sociais, cultua-o e aos seus símbolos.
Projeta seu senso de poder, inteligência e coragem em seus
líderes e os adora como ídolos. Como trabalhador, funcionário
ou administrador, o homem moderno está alienado do
trabalho.
O operário tornou-se um átomo econômico que dança
segundo a música da administração automatizada. Não tem
parte na planificação do processo de trabalho, não partilha de
seu resultado, e raramente tem contato com o produto total. O
administrador, por sua vez, está em contato com o produto
total, mas alienado dêle como coisa concreta, útil. Sua
finalidade é empregar lucrativamente o capital investido por
outros. A mercadoria é apenas a materialização do capital e
não algo que como entidade concreta, tenha importância para
êle. O administrador tornou-se um burocrata que trata das
coisas, dos
83
números e dos sêres humanos como simples objetos de sua
atividade. Sua manipulação é chamada de preocupação comm
as relações humanas, embora o administrador trate das
relações mais inumanas, entre autômatos que se tornaram
abstrações.
Nosso consumo é igualmente alienado, determinado pelos
refrões publicitários e não pelas nossas necessidades reais,
nosso paladar, nossos olhos ou nossos ouvidos.
A falta de sentido e a alienação do trabalho resultam no desejo
de ociosidade completa. O homem odeia sua vida de trabalho
porque ela o faz sentir-se prisioneiro e equivocado. Seu ideal
se torna a ociosidade absoluta – na qual, êle não tenha de
fazer nada, onde tudo se processa de acôrdo com um refrão
publicitário: “Você aperta o botão, nós fazemos o resto.” Essa
tendência é reforçada pelo tipo de consumo necessário para a
expansão do mercado interno, levando a um princípio que
Huxley expressou sucintamente em seu Brave New World.
Uma das afirmações que estamos habituados a ouvir desde a
infância é: “não deixe para amanhã o que é possível fazer
hoje”. Se eu não adiar a satisfação do meu desejo (e estou
condicionado a desejar apenas o que posso obter), não tenho
conflitos, nem dúvidas; nenhuma decisão a tomar; jamais
estarei a sós comigo mesmo, porque estou sempre ocupado –
trabalhando ou me divertindo. Não tenho necessidade de estar
consciente de mim, pois estou constantemente absorvido pelo
consumo. Sou um sistema de desejos e satisfações; tenho de
trabalhar para satisfazer meus desejos – e êstes são
constantemente estimulados e dirigidos pela máquina
econômica.
Alegamos serem nossos os objetivos da tradição judaicocristã: o amor de Deus e o de nossos vizinhos. Ouvimos dizer
que atravessamos um período de promissora renascença
religiosa. Nada poderia estar mais longe da verdade. Usamos
símbolos pertencentes a uma tradição religiosa autêntica e
nos transformamos em fórmulas, que servem às finalidades do
homem alienado. A religião tornou-se uma concha vazia, foi
transformada num sistema de auto-serviço para aumentar a
nossa capacidade de êxito. Deus tornou-se um sócio nos
negócios. A Fôrça do Pensamento Positivo é a sucessora de
Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas.
84
O amor do homem é um fenômeno raro, também. Autômatos
não amam, homens alienados não se importam com o amor. O
que os peritos em amor e os conselheiros matrimoniais
louvam é uma relação entre duas pessoas que se manipulam
com as técnicas adequadas e cujo amor é essencialmente um
egoísmo a dois – um abrigo contra uma solidão que sem isso
seria insuportável.
O que devemos, então, esperar do futuro? Se ignorarmos os
pensamentos que são apenas os produtos de nossos desejos,
receio que tenhamos de admitir que a possibilidade mais
provável é ainda a de que a discrepância entre a inteligência
técnica e a razão levará o mundo a uma guerra atômica. A
conseqüência mais provável dessa guerra é a destruição da
civilização industrial e o regresso do mundo ao nível agrário
primitivo. Ou, se a destruição não fôr tão completa quanto
muitos especialistas no assunto supõem, o resultado será a
necessidade de que o vencedor organize e domine todo o
mundo. Isso só poderia ocorrer num Estado centralizado
baseado na fôrça, e pouca diferença faria se Washington ou
Moscou fossem a sede de tal govêrno.
Infelizmente, nem mesmo a superação do perigo de guerra
encerra a promessa de um futuro brilhante. Na evolução do
capitalismo e do comunismo, como a imaginamos nos
próximos cinqüenta ou cem anos, os processos que levam à
alienação humana continuarão. Ambos os sistemas se estão
transformando
em
sociedades
administrativas,
com
habitantes bem alimentados, bem vestidos, com os desejos
satisfeitos e sem ter anseios que não possam ser atendidos.
Os homens são, cada vez mais, autômatos que fazem
máquinas que agem como homens e produzem homens que
agem como máquinas; sua razão deteriora, enquanto sua
inteligência aumenta, criando com isso a perigosa situação de
dar aos homens um formidável poderio material, sem a
prudência de saber usá-lo.
Apesar do aumento crescente da produção e do confôrto, o
homem perde dia a dia o senso de si mesmo, passando a
sentir que sua vida é sem sentido, embora êsse sentimento
seja, em grande parte, inconsciente. No século XIX o problema
era a morte de Deus; no século XX, o problema é a morte do
homem. No século XIX a inumanidade significava crueldade;
85
no século XX, significa a alienação esquizóide. O perigo do
passado era tornarem-se os homens escravos. O perigo do
futuro é que êles se podem tornar autômatos. É certo que os
autômatos não se rebelam, mas, levando em conta a natureza
do homem, êle não pode viver como um robô e continuar
mentalmente sadio – destrúirá o mundo e a si mesmo, porque
já não poderá suportar a monotonia de uma vida sem sentido.
Qual a alternativa à guerra e ao automatismo? A resposta
talvez pudesse ser dada, de forma fundamental, modificando-
se a frase de Emerson “As coisas dominam o homem e
governam a humanidade”, e dizendo-se “Coloquemos a
humanidade no domínio, para que possa governar as coisas”.
É outra forma de dizer que o homem deve superar a alienação
que faz dêle um adorador de ídolos, impotente e irracional.
Isso significa, na esfera psicológica, que tem de superar as
atitudes mercantis e passivas, que hoje o dominam, e escolher
um caminho maduro e produtivo. Deve readquirir o senso do
eu, deve ser capaz de amar e tornar seu trabalho uma
atividade concreta e com sentido. Deve sair da orientação
materialista e chegar a um nível em que os valôres espirituais
– amor, verdade e justiça – se tornem realmente
fundamentais. Mas qualquer tentativa de modificar apenas
um aspecto da vida, o homem ou o espiritual, está destinada
ao fracasso. Na verdade, o progresso que ocorre apenas numa
esfera destrói o progresso em tôdas as esferas. O evangelho
que se ocupa apenas da salvação espiritual levou à Igreja
Católica Romana. A Revolução Francesa, com sua
preocupação exclusiva com a reforma política, levou a
Robespierre e Napoleão. O socialismo, na medida em que se
ocupou apenas da transformação econômica, levou ao
stalinismo.
Aplicando o princípio da transformação simultânea a tôdas as
esferas de vida, devemos pensar nas modificações econômicas
e políticas necessárias à superação da realidade psicológica da
alienação. Devemos conservar os progressos tecnológicos da
produção em grande escala, com a máquina e a
automatização. Mas devemos descentralizar o trabalho e o
Estado, dando-lhes proporções humanas, admitindo a
centralização apenas na medida necessária às exigencias da
indústria. Na esfera econômica, precisamos de uma
democracia industrial,
86
um
socialismo
democrático
caracterizado
pela
coadministração por todos os que trabalham numa emprêsa, a
fim de permitir-lhes uma participação ativa e responsável. É
possível encontrar formas de participação que permitam essa
realização. Na esfera política, podemos estabelecer a
democracia efetiva criando milhares de grupos de contato
direto, que sejam bem informados, realizem discussões sérias
e cujas decisões sejam integradas numa nova “câmara baixa”.
O renascimento cultural terá de combinar um trabalho
educativo para os jovens, a educação de adultos e um nôvo
sistema de arte popular e ritual secular, através de tôda a
nação.
Tal como o homem primitivo estava impotente frente às fôrças
naturais, também o homem moderno se encontra desarvorado
frente às forças sociais e econômicas por êle mesmo criadas.
Adora a obra de suas mãos, curva-se aos novos ídolos, e não
obstante jura por Deus que lhe ordenou a destruição de todos
os ídolos. O homem só pode proteger-se das consequencias de
sua própria loucura criando uma sociedade sadia que se
conforme às suas necessidades, necessidades essas que
devem ter raízes nas próprias condições da existência. Uma
sociedade na qual os homens estabeleçam entre si relações de
amor, na qual se liguem pelos laços de fraternidade e
solidariedade, ao invés dos laços de sangue e terra; uma
sociedade que lhes dê a possibilidade de transcender a
Natureza, criando e não destruindo, na qual todos atinjam a
um sentido do eu, pela consciência de sua fôrça e não pela
conformidade, na qual exista um sistema de orientação e
dedicação sem lhe exigir a deformação da realidade e a
adoração dos ídolos.
A construção dessa sociedade significa um passo à frente,
significa o fim da história “humanóide”, a fase na qual o
homem ainda não chegou a ser plenamente humano. Não
representará o “fim dos dias”, a “conclusão”, o estado de
harmonia perfeita no qual não há problemas nem conflitos.
Pelo contrário, é destino do homem ter sua existência
perturbada pelas contradições que tem de enfrentar sem
poder jamais resolvê-las. Quando tiver superado o estado
primitivo do sacrifício humano, seja na forma ritual dos
sacrifícios humanos dos astecas ou na forma secular da
guerra, quando fôr capaz de regular suas relações com a
Natureza razoàvelmente, e não cegamente,
87
quando as coisas se tiverem realmente tornado servas, e não
ídolos, êle enfrentará problemas e conflitos realmente
humanos, terá de ser corajoso, aventureiro, imaginativo,
capaz de sofrimento e de alegria, mas sua fôrça estará a
serviço da vida, não a serviço da morte. A nova fase da
história humana, se chegar a ocorrer, será um nôvo comêço, e
não um fim.
88
SEXO E CARÁTER
A TESE da existência de diferenças inatas entre os dois sexos,
que resultam necessàriamente em diferenças de caráter, é
muito antiga. O Velho Testamento estabelece, como
peculiaridade e maldição da mulher, que seu “desejo seja
apenas para teu marido e êle te dominará”, e do homem que
terá de trabalhar em suor e sofrimento. Mas até mesmo a
afirmativa bíblica encerra, virtualmente, a tese oposta: o
homem foi criado à semelhança de Deus, e sómente como
punição pela desobediência original – homens e mulheres
foram criados como iguais, em relação à sua responsabilidade
moral – recebeu a maldição do conflito mútuo e da diferença
eterna. Os dois aspectos, o da diferença básica e o da
identidade básica, foram repetidos através dos séculos –
certas épocas ou escolas filosóficas ressaltam uma tese,
outras a tese oposta.
O problema assumiu maior significação nas discussões
filosóficas e políticas dos séculos XVIII e XIX. Representantes
da filosofia do Iluminismo afirmaram não haver distinções
inatas entre os sexos (l’âme n’a pas de sexe) ; que as
diferenças porventura existentes eram condicionadas pela
educação, eram - como hoje diríamos – diferenças culturais.
Os filósofos românticos de princípios do século XIX, por sua
vez, ressaltavam o ponto oposto. Analisaram a diversidade de
caráter entre homens e mulheres, e disseram que esta era,
fundamentalmente, conseqüência de diferenças biológicas e
fisiológicas inatas. Afirmaram que tais diferenças de caráter
existiriam em qualquer cultura concebível.
A despeito dos méritos das respectivas argumentações e a
análise dos românticos teve, freqüentemente, profundidade.
89
Ambos encerravam uma implicação política. Os filósofos do
Iluminismo, particularmente os franceses, queriam ressaltar a
igualdade social, e até certo ponto também política, entre
homem e mulher. Acentuaram a falta de diferenças inatas
como argumento a seu favor. Os românticos, que eram
reacionários políticos, usaram a análise da essência (Wesen)
da natureza do homem como prova da necessidade da
desigualdade política e social. Embora atribuíssem qualidades
muito admiráveis “à mulher”, insistiam em que suas
características a tornavam incapaz de participar na vida social
e política em pé de igualdade com os homens.
A luta política pela igualdade feminina não terminou no século
XIX, nem se concluiu então a discussão teórica sôbre o
caráter inato ou o caráter cultural dessas diferenças. Na
Psicologia moderna, Freud tornou-se o representante mais
destacado do ponto de vista dos românticos. Enquanto o
argumento dêstes fôra elaborado em linguagem filosófica, o de
Freud se baseava na observação científica dos pacientes pela
Psicanálise. Supunha êle que as diferenças anatômicas entre
os sexos era a causa de diferenças de caráter inalteráveis. “A
anatomia é a sua desgraça”, diz êle da mulher, parafraseando
uma afirmação de Napoleão. Segundo Freud, a menina, ao
descobrir que não tem o órgão genital masculino, fica
profundamente chocada e impressionada, sentindo que lhe
falta alguma coisa, e inveja o homem por ter algo que o
destino lhe negou, e, ainda, que no curso normal de sua
evolução ela tentará superar o sentimento de inferioridade e
inveja substituindo o órgão genital masculino por outras
coisas – marido, filhos, bens. No caso de uma evolução
neurótica, ela não conseguirá realizar essas substituições
satisfatórias. Continua invejando o homem, não abandona o
desejo de ser homem, torna-se homossexual ou odeia os
homens, ou busca compensações culturalmente admitidas.
Até mesmo no caso de evolução normal, a qualidade trágica
da sorte feminina jamais desaparece totalmente – persegue-a
o desejo de obter algo que permanece inalcançável por tôda a
vida.
Embora os psicanalistas ortodoxos conservassem essa teoria
de Freud como uma das pedras fundamentais de seu sistema
psicológico, outro grupo de analistas, culturalmente
orientados,
90
discutiu as descobertas de Freud. Mostrou os erros, tanto
clínicos como teóricos, do raciocínio freudiano, assinalando as
experiências culturais e pessoais das mulheres na sociedade
moderna, que provocaram os traços de caráter explicados por
êle em têrmos biológicos. A opinião dêsse grupo de
psicanalistas teve confirmação nas descobertas dos
antropólogos.
Não obstante, existe o perigo de que certos adeptos das teorias
antropológica progressista e psicanalítica recuem a ponto de
negar totalmente que as diferenças biológicas tenham
qualquer efeito na estrutura do caráter. Podem ser levados a
isso pela mesma motivação encontrada nos representantes do
Iluminismo francês. Como a ênfase sôbre as diferenças inatas
é usada como argumento pelos inimigos da igualdade da
mulher, parece necessário provar que há apenas causas
culturais para qualquer diferença que se possa observar
empiricamente.
É importante reconhecer que nessa controvérsia existe uma
importante questão filosófica. A tendência para negar
qualquer diferença de caráter entre os sexos pode ser
provocada pela aceitação implícita de uma das premissas da
filosofia antiigualitária: a fim de pretender a igualdade, é
necessário provar que não há diferenças de caráter entre os
sexos, exceto as provocadas pelas condições sociais
existentes. Um dos grupos fala de diferenças, ao passo que os
reacionários realmente pretendem dizer deficiências e, mais
especificamente, as deficiências que tornam impossível
partilhar da plena igualdade com o grupo dominante. Assim, a
pretensa inteligência limitada e a falta de faculdade de
organização e de juízo crítico ou abstrato das mulheres foram
alegadas como razões para impedir sua plena igualdade com
os homens. Uma escola de pensamento afirmava que elas
possuem intuição, amor, ete., mas que essas qualidades não
pareciam torná-las mais capazes de enfrentar as tarefas da
sociedade moderna. O mesmo se diz, com freqüência, das
minorias como a dos negros ou judeus. Dessa forma, o
psicólogo e o antropólogo foram levados à necessidade de
demonstrar que entre os sexos ou grupos raciais não havia
diferenças fundamentais capazes de impedir-lhes a participar
da plena igualdade. Devido a essa posição, os pensadores
liberais se inclinaram a reduzir ao mínimo a existência de
quaisquer distinções.
91
Embora os liberais provassem que não existem diferenças
capazes de justificar a desigualdade política, econômica e
social, deixaram-se levar a uma posição defensiva
estratègicamente desfavorável. Para provar o fato de que não
existem diferenças socialmente prejudiciais não é necessário
sustentar a inexistência de diferenças. A questão será, então,
adequadamente, a seguinte: qual a utilização dada às
diferenças, reais ou súpostas, e a que finalidades políticas
servem? Admitindo que as mulheres tenham certas distinções
de caráter em relação aos homens, que significa isso?
Nossa tese é a de que certas distinções biológicas provocam
outras distinções de caráter; que tais diferenças se fundem
com as provocadas diretamente pelos fatôres sociais; que
êstes são muito mais fortes em seu efeito e podem aumentar,
eliminar ou inverter diferenças de origem biológica; e que,
finalmente, as diferenças de caráter entre os sexos, quando
não determinadas diretamente pela cultura, jamais
constituem diferenças de valor. Em outras palavras, o caráter
tipico dos homens e das mulheres na cultura ocidental é
determinado pelos seus respectivos papéis sociais, mas há
uma coloração nesse caráter que resulta das diferenças de
sexo. Tal coloração é insignificante, em relação às diferenças
de origem social, mas não deve ser ignorada.
A suposição implícita em grande parte do pensamento
reacionário é a de que a igualdade pressupõe uma ausência de
diferenças entre pessoas e grupos sociais. Elas evidentemente
existem, em relação a quase tudo o que importa na vida, e por
isso a conclusão é que não pode haver igualdade. Quando,
inversamente, os liberais negam o fato de haver grandes
diferenças nos dons mentais e físicos, e condições acidentais
de personalidade favoráveis ou desfavoráveis apenas
contribuem para que seus adversários aparentem ter, aos
olhos do homem comum, razão. O conceito de igualdade, tal
como se desenvolveu na tradição judaico-cristã e na tradição
progressista moderna, significa que todos os homens são
iguais na capacidade humana que se relaciona com o gozo da
liberdade e felicidade. Significa, ainda, que como
conseqüência política dessa igualdade básica nenhum homem
será usado como meio para as finalidades de outro homem, e
nenhum grupo será
92
meio para as finalidades de outro grupo. Todo homem é um
universo em si, e sómente para seus objetivos. Sua finalidade
é a realização de seu ser, incluindo as peculiaridades mesmas
que o caracterizam e distinguem dos outros. Assim, a
igualdade é a base do pleno desenvolvimento das diferenças, e
resulta no desenvolvimento da individualidade.
Embora existam várias diferenças biológicas cuja importância
para as diferenças de caráter entre homem e mulher bem
poderíamos examinar, êste ensaio apenas se ocupará
principalmente de uma delas. Nosso objetivo, aqui, não é
tanto examinar a totalidade do problema das diferenças de
caráter entre os sexos mas ilustrar a tese geral. Vamos
focalizar principalmente os papéis do homem e da mulher nas
relações sexuais e procurar mostrar que essa diferença resulta
em certas diferenças de caráter – que apenas dão côr às
principais distinções provocadas pelos papéis sociais diversos
do homem e da mulher.
A fim de funcionar sexualmente, o homem precisa de ereção e
de ser capaz de conservá-la durante a relação até atingir o
orgasmo. A fim de satisfazer a mulher, deve ser capaz de
conservar a ereção por um período suficientemente
prolongado para que também ela tenha o orgasmo. Isso
significa que para satisfazer sexualmente a mulher o homem
tem de demonstrar sua capacidade de ter e manter a ereção. A
mulher, por sua vez, para satisfazer sexualmente o homem
nada precisa demonstrar. Na verdade, sua excitação pode
aumentar o prazer masculino. Certas alterações físicas nos
seus órgãos sexuais podem tornar mais fáceis as relações.
Como só levamos em conta as reações puramente sexuais e
não as sutis reações psíquicas de personalidades distintas, a
realidade é que o homem precisa da ereção para satisfazer a
mulher; a mulher de nada precisa para satisfazer o homem, a
não ser certa boa-vontade. E, falando de boa-vontade, é
importante notar que a capacidade que tem a mulher de
satisfazer sexualmente o homem depende da sua vontade – é
uma decisão consciente que pode tomar no momento que
desejar. A capacidade masculina, porém, não é simplesmente
uma função de sua vontade. Na realidade, êle pode ter desejo
sexual e ereção contra a vontade, e pode ser impotente apesar
de um ardente
93
desejo em contrário. Além disso, da parte do homem a
inabilidade de funcionar é um fato que não pode ser
disfarçado. A falta de reação total ou parcial na mulher,
embora freqüentemente percebida pelo homem, não é tão
evidente, permitindo uma grande margem de disfarce. Se a
mulher o consente, o homem pode ter certeza de satisfazer-se
sempre que desejar. Mas a situação da mulher é totalmente
diferente; o mais ardente desejo sexual de sua parte não
levará à satisfação, a menos que o homem tenha também por
ela um desejo suficiente para provocar a ereção. E, mesmo
durante o ato sexual, a mulher depende, para sua plena
satisfação, da capacidade masculina de levá-la ao orgasmo.
Assim, para satisfazer sua companheira o homem tem de
provar alguma coisa; a mulher, não.
Dessa diferença nos respectivos papéis sexuais segue-se uma
outra – a diferença nas suas ansiedades específicas em
relação à função sexual. A ansiedade está localizada no ponto
mesmo em que as posições do homem e da mulher são
vulneráveis. A posição do homem é vulnerável na medida em
que tem de provar alguma coisa, ou seja, na medida em que é
potencialmente capaz de falhar. Para êle, as relações sexuais
têm sempre a côr de uma prova, de um exame. Sua ansiedade
específica é a de falhar. Mêdo da castração é o caso extremo –
mêdo
de
tornar-se
orgânicamente,
e
portanto
permanentemente, incapaz de funcionar. A vulnerabilidade da
mulher, por sua vez, está na dependência do homem; o
elemento de insegurança relacionado com suas funções
sexuais está não em falhar, mas em não se realizar, em se
frustrar, em não ter contrôle completo do processo que leva à
satísfação sexual. Não é de surpreender, assim, que as
ansiedades do homem e da mulher se refiram a esferas
diferentes – a do homem ao seu ego, seu prestígio, seu valor
aos olhos da mulher; a da mulher, à sua satisfação e prazer
sexual.60
O leitor poderá indagar: não são essas ansiedades
características apenas das personalidades neuróticas? Não
tem o homem
94
normal certeza de sua potência? Não tem a mulher normal
confiança em seu companheiro? Não se trata, no caso, do
homem moderno, altamente nervoso e sexualmente inseguro?
Não estariam o homem e a mulher das cavernas, com sua
sexualidade primitiva e não estragada, livres dessas dúvidas e
ansiedades?
À primeira vista, assim poderia parecer. O homem que se
preocupa constantemente com sua potência representa certo
tipo de personalidade neurótica, tal como a mulher que está
Distinção semelhante, em relação às diferenças nos temores sexuais das
crianças, é estabelecida por Karen Horney, “Die Angst vor der Frau”,
Zeitsche Psychoanal. XIII (1932), 1-18.
60
constantemente temerosa de ficar insatisfeita, ou que sofre
com a sua dependência. Como ocorre freqüentemente, no caso
a diferença entre o “neurótico” e o “normal” é freqüentemente
de grau e consciencia, e não de essência. O que no neurótico é
uma ansiedade consciente e permanente, no chamado homem
normal é uma ansiedade relativamente ignorada e
quantitativamente insignificante. O mesmo ocorre na mulher.
Além disso, nos indivíduos normais, a ansiedade não é
despertada por certos incidentes que sempre provocam
ansiedade manifesta nos neuróticos. O homem normal não
tem dúvida de sua potência. A mulher normal não tem mêdo
de ser sexualmente frustrada pelo homem que escolheu para
companheiro. A escolha de um homem em quem possa confiar
sexualmente é parte essencial de seu instinto sexual sadio.
Mas isso não altera o fato de que potencialmente o homem
pode falhar, e a mulher, jamais. A mulher depende do desejo
do homem, e não o homem do desejo feminino.
Há ainda outro elemento significativo, para determinar a
presença de ansiedade, e de ansiedades diferentes, no homem
e na mulher normais.
A diferença entre sexos é a base da mais antiga e elementar
divisão da humanidade em grupos separados. Homens e
mulheres precisam uns dos outros para a manutenção da
raça e da família, bem como para a satisfação de seus desejos
sexuais. Mas em qualquer situação na qual os dois grupos
diferentes se necessitam, haverá não só elementos de
harmonia, cooperação e satisfação mútua, mas também de
luta e desarmonia.
A relação sexual entre os sexos dificilmente poderia estar lívre
de antagonismo e de hostilidade potenciais. Os homens e as
95
mulheres têm, juntamente com a capacidade de amar-se, uma
capacidade semelhante de odiar. Em qualquer relação entre
homem e mulher, o elemento de antagonismo é uma
potencialidade, e dessa potencialidade mesma o elemento de
ansiedade surge por vêzes. O ser amado pode transformar-se
em inimigo, e nesse caso os pontos vulneráveis do homem e
da mulher, respectivamente, são ameaçados.
O tipo de ansiedade e ameaça, porém, é diferente no homem e
na mulher. Se a principal ansiedade do homem é a de falhar,
de não executar o que dêle se espera, o impulso destinado a
protegê-lo dessa ansiedade é o desejo de prestígio.
O homem está profundamente imbuído do anseio de provar
constantemente, a si e à mulher que ama, a tôdas as outras
mulheres e a todos os outros homens, que corresponde a
qualquer expectativa que se mantenha em relação a êle.
Procura proteção contra o mêdo de falhar sexualmente,
competindo em tôdas as outras esferas da vida nas quais o
poder, a fôrça física e a inteligência são úteis para assegurar o
êxito. Intimamente relacionada com êsse desejo de prestígio
está a sua atitude de competição em relação aos outros
homens. Tendo mêdo de um possível fracasso, êle tende a
provar que é melhor do que qualquer outro homem. O Dom
Juan o faz diretamente no âmbito sexual, o homem médio o
faz indiretamente – matando maior número de inimigos,
caçando maior número de búfalos, ganhando mais dinheiro
ou tendo maior êxito em outros setores do que seus
concorrentes.
O moderno sistema social e econômico baseia-se nos
princípios da concorrência e do êxito. As ideologias louvam-lhe
o valor, e por essas e outras circunstâncias o anseio de
prestígio e competição está firmemente implantado no ser
humano médio que vive na cultura ocidental. Mesmo que não
houvesse diferenças nos respectivos papéis sexuais, essas
ansiedades existiriam nos homens e nas mulheres, devido aos
fatôres sociais. O impacto dessas fontes sociais é tão grande
que podemos duvidar se, em têrmos quantitativos, há
qualquer predomínio acentuado do anseio de prestígio no
homem, em conseqüência dos fatôres sexuais que
focalizamos. A questão de primordial importância, porém, não
são as proporções em que a concorrência é aumentada pelas
fontes sexuais, mas sim a necessidade de
96
reconhecer-se a presença de outros fatôres, além do social, no
estímulo à competição.
A busca masculina de prestígio lança alguma luz sôbre a
qualidade específica da vaidade do homem. Afirma-se,
geralmente, ser a mulher mais vaidosa do que o homem.
Embora o inverso possa ser verdade, o que importa não é a
diferença em quantidade, mas sim na natureza da vaidade. A
característica essencial da vaidade masculina é o
exibicionismo, a demonstração do bom “executor” que êle é. O
homem anseia por afirmar que não tem mêdo de falhar. Sua
vaidade parece colorir tôda a sua atividade. Provàvelmente
não haverá nenhuma realização do homem, desde o ato do
amor até o ato mais corajoso numa batalha ou no
pensamento, que não esteja permeado, em proporções
diferentes, dessa vaidade típica masculina.
Outro aspecto do anseio que tem o homem de prestígio é sua
sensibilidade ao ridículo.Até mesmo o covarde pode tornar-se
herói pelo mêdo de ser ridicularizado pelas mulheres, e o
receio de perder a vida pode ser menor do que o mêdo ao
ridículo. Na verdade, isso é típico da essência do heroísmo
masculino, e que não é maior do que o heroísmo de que são
capazes as mulheres, mas sim diferente, por estar impregnado
da vaidade masculina.
Outro resultado da precária posição do homem em relação à
mulher e seu mêdo do ridículo feminino é o ódio potencial que
experimenta por ela. Êsse ódio contribui para um anseio que
tem também uma função defensiva: dominar a mulher, ter
poder sôbre ela, fazê-la sentir-se fraca e inferior. Se o homem
consegue isso, não precisa ter mêdo dela. Se ela tiver mêdo
dêle; mêdo de ser morta, espancada, ou passar fome – não
poderá ridicularizá-lo. O poder sôbre uma pessoa não depende
da intensidade da paixão experimentada nem do
funcionamento da produtividade sexual e emocional. O poder
depende de fatôres mantidos com tal segurança que jamais
possa surgir uma dúvida sôbre a capacidade ou a
competência. Incidentalmente, a promessa de poder sôbre a
mulher é o conforto que o mito bíblico, de tendências
patriarcais, oferece ao homem, ainda quando Deus o
amaldiçoa.
Voltando ao problema da vaidade, afirmamos que a vaidade
feminina difere, qualitativamente, da vaidade masculina.
97
Esta se resume em mostrar o que o homem pode fazer, em
provar que jamais falha; a vaidade da mulher é caracterizada
essencialmente pela necessidade de atrair e de provar a si
mesma que é capaz de atrair. Na verdade, o homem precisa
exercer atração, sexualmente, sôbre a mulher, a fim de
conquistá-la. Isso é particularmente exato numa cultura em
que gostos e sentimentos distintos estão implícitos na atração
sexual. Mas há outras formas pelas quais o homem pode
conquistar a mulher e levá-la a ser sua companheira sexual:
simples fôrça física ou, o que é mais significativo, poder social
e riqueza. Suas oportunidades de satisfação sexual não
dependem exclusivamente da capacidade de exercer atração
sexual. Nem a fôrça nem as promessas podem dar potência
sexual a um homem. O esfôrço feminino para atrair é uma
exigência do seu papel sexual, e sua vaidade ou preocupação
com a aparência resulta disso.
O mêdo feminino da dependência, ou frustração, de um papel
que a obriga a esperar freqüentemente leva a um desejo que
Freud acentuou bastante: o de ter o órgão genital masculino.61
A raiz disso, porém, não está em sentir a mulher,
primordialmente, que lhe falta alguma coisa, que ela é inferior
ao homem por falta de um pênis. Embora em muitos casos
haja outras razões, o desejo feminino de ter um penis surge
freqüentemente do anseio de não ser dependente, de não ter
suas atividades limitadas, de não ficar exposta ao perigo da
frustração. Tal como o desejo masculino de ser mulher pode
Cf. Clara Thompson, “What is Penis Envy?”, e a discussão que se segue,
por Janet Rioch, Proceedings of the Assoemition for the Advancement of
Psychoanalysis, Boston Meeting, 1942.
61
resultar dessa vontade de se ver livre do pêso da prova, o
desejo feminino de ter um pênis pode resultar do anseio de
superar a própria dependência. E também, em circunstâncias
especiais, mas não raras, não sómente o pênis serve como um
símbolo de independência, mas, na satisfação das tendências
sádico-agressivas, também simboliza uma arma com a qual
ferir os homens ou as outras mulheres.62
98
Se a principal arma do homem contra a mulher é seu poder
físico e social sôbre ela, então a principal arma da mulher é a
possibilidade de ridicularizar o homem. A forma mais radical
disso é tornar o homem impotente. Há muitas formas, sutis e
cruas, pelas quais a mulher faz isso. Tais formas vão de uma
expectativa explícita ou implícita de um fracasso até a frieza e
a uma espécie de espasmo vaginal que torna a cópula
fisicamente impossível. O desejo de castrar o homem não
parece desempenhar o papel sumamente importante que
Freud lhe atribui. A castração é, na verdade, uma forma de
tornar o homem impotente e surge freqüentemente quando as
tendências destruidoras e sádicas são acentuadas. Mas o
principal objetivo da hostilidade feminina parece ser não o
dano fisico, mas funcional, a interferência na capacidade
masculina de realizar o ato. A hostilidade específica do homem
é sobrepor-se pela fôrça física, pela fôrça política ou
econômica; a da mulher é solapar, pelo ridículo e pelo
desprêzo.
A mulher pode ter filhos, o homem não. Dêsse ponto de vista
patriarcal, Freud supõe, caracteristicamente, que a mulher
inveja o órgão masculino, sem observar a possibilidade de que
os homens sintam inveja da capacidade feminina de ter filhos.
Essa interpretação unilateral não vem apenas da premissa
masculina de que os homens são superiores, mas também
resulta da atitude de uma civilização altamente técnica e
industrial, na qual a produtividade natural não é muito
Na homossexualidade feminina, um aspecto significativo do quadro
parece ser a combinação da tendência a ser ativa, em contraste com o
papel dependente passivo, juntamente com as tendências destruidoras.
62
valorizada. Não obstante, se considerarmos os períodos
iniciais da história humana, quando a vida dependia
essencialmente da produtividade na Natureza, e não da
produtividade técnica, o fato de partilharem as mulheres êsse
dom com a terra e com as fêmeas dos animais deve ter sido
extremamente impressionante. O homem é estéril, em têrmos
puramente naturalistas. Numa cultura em que a principal
ênfase recai sôbre a produtividade natural, seria de supor que
o homem se sentisse inferior à mulher, especialmente quando
seu papel na produção dos filhos não era compreendido.
Podemos supor que os homens admiravam as mulheres por
essa capacidade que lhes faltava, que estavam maravilhados
com ela e a invejavam. O homem não podia produzir, podia
apenas matar animais e comê-los, ou matar inimigos para ter
segurança, ou assimilar-lhes a fôrça através de algum
processo mágico.
99
Sem discutir a situação dêsses fatôres nas comunidades
exclusivamente agrárias, examinaremos ràpidamente os
efeitos de algumas importantes transformações históricas. Um
dêsses feitos mais significativos foi a crescente aplicação da
técnica à produção. A inteligência foi usada, cada vez mais,
para aperfeiçoar e aumentar os vários meios de vida que
originalmente dependiam apenas das dádivas da Natureza.
Embora as mulheres tivessem um dom original que as tornava
superiores aos homens, êstes a princípio compensaram tal
falta usando sua habilidade na destruição, e mais tarde
empregando seu intelecto como base da produtividade técnica.
Em suas fases iniciais, isso se relacionava intimamente com a
mágica; mais tarde, o homem, pela fôrça de seu pensamento,
produziu coisas materiais. Sua capacidade de produção
técnica superou com o tempo a dependência da produção
natural.
Ao invés de desenvolvermos mais êsse ponto, remetemos o
leitor simplesmente aos escritos de Bachofen, Morgan e
Briffault, que reuniram e analisaram brilhantemente o
material antropológico que, embora não lhes comprove as
teses, sugere fortemente que em várias fases da história
primitiva existiram certas culturas nas quais a organização
social se centralizava em tôrno da mãe, e nas quais as deusas
maternais, identificadas com a produtividade da Natureza,
eram o centro das idéias religiosas do homem.63
Uma ilustração bastará.
O mito babilônico da criação começa com a existência de uma
deusa-mãe – Tiamate – que governa o universo. Seu domínio,
porém, é ameaçado pelos seus filhos, que planejam rebelar-se
e derrubá-la. Como líder dessa luta buscam alguém que possa
igualá-la em fôrça. Chegam, finalmente, a um acôrdo em
relação a Marduque, mas antes da escolha definitiva exigem
que se submeta a uma prova. Qual prova? Apresentara-lhe
um pano, que tem de, “com o poder de sua bôca”, fazer
desaparecer e reaparecer de nôvo, com uma palavra. Com
uma palavra o líder escolhido destrói o pano e com uma
palavra o cria novamente. Sua liderança
100
é confirmada. Derrota a deusa-mãe e com seu corpo cria o céu
e a terra.
Qual o sentido dessa prova? Para que o deus masculino iguale
a fôrça da deusa, necessita da qualidade que a faz superior – o
poder de criar. A prova destina-se a confirmar que êle tem
êsse poder, bem como o poder caracteristicamente masculino
de destruir, a forma pela qual o homem tradicionalmente
modificou a Natureza. Êle primeiro destrói, depois recria, um
objeto material – mas o faz com sua palavra e não, como a
mulher, com o seu ventre. A produtividade natural é
substituída pela mágica do pensamento e dos processos
verbais.
O mito da criação bíblico começa onde o mito babilônico
termina. Quase todos os traços da supremacia da deusa já
Ver também Frieda Fromm-Reichmann, “Notes on the Mother Role in
the Family Group”, Bulletin of the Menninger Clinic, IV (1940), 132-148.
63
estão eliminados. A criação começa com a mágica de Deus, a
mágica da criação pela palavra. Repete-se o tema da criação
masculina, e, contràriamente à realidade, o homem não nasce
da mulher, e sim a mulher é feita do homem.64 O mito bíblico
é uma ode ao triunfo do homem, negando que as mulheres
façam nascer os homens, e invertendo as relações naturais.
Na maldição de Deus, temos novamente a afirmação da
supremacia do homem. A função criadora da mulher é
reconhecida, mas terá de ser exercida em sofrimento. O
homem destina-se ao trabalho, ou seja, à produção, e assim
substitui a produtividade original da mulher, mesmo que isso
também tenha de ser feito com suor e lágrimas.
Examinamos, com alguma minúcia, o fenômeno dos
remanescentes matriarcais na história da religião para ilustrar
um ponto importante neste contexto – o fato de que a mulher
tem a capacidade da produção natural que falta ao homem,
estéril nesse nível. Em certos períodos da história essa
superioridade da mulher é admitida conscientemente; em
outros tôda a ênfase recai sôbre a produtividade mágica e
técnica
do
homem.
Não
obstante,
parece
que
inconscientemente, ainda hoje, essa diferença não perdeu
totalmente o sentido; no recôndito do
101
homem existe uma admiração pela mulher, por essa
capacidade que falta a êle, e que inveja e teme. Em seu caráter
há a necessidade de um esfôrço permanente de compensação
dessa falta; e, no recôndito da mulher, há um sentimento de
superioridade em relação ao homem, pela sua “esterilidade”.
Até agora, tratamos certas distinções de caráter entre homens
e mulheres, resultantes de suas diferenças sexuais. Significa
isso que os traços como a dependência excessiva, de um lado,
e o anseio de prestígio e competição, de outro, sejam causados
essencialmente pelas diferenças de sexo? Devem “o” homem e
Compara-se o mito grego de Atena nascendo da cabeça de Zeus, e a
interpretação dêsse mito, bem como dos remanescentes da religião
matriarcal na mitologia grega, feita por Bachofen e Otto.
64
“a” mulher exibir êsses traços, de forma que, se tiverem traços
característicos do outro sexo, isso se deva explicar pela
presença de um componente homossexual?
Não admitimos essas conclusões. A diferença sexual influi na
personalidade do homem e da mulher médios, e essa
influência pode ser comparada à clave ou tom em que uma
melodia é escrita, e não à própria melodia. Além disso, referese sómente ao homem e à mulher médios, e varia em cada
pessoa.
Essas diferenças “naturais” fundem-se com as diferenças
provocadas pela cultura específica em que vive a pessoa. Hoje,
por exemplo, o anseio de prestígio e sucesso pelo homem tem
muito menos relação com os papéis sexuais do que com os
papéis sociais. A sociedade é organizada de modo que
necessàriamente produz tais anseios, tenham êles ou não
suas raízes em peculiaridades masculinas ou femininas
específicas. O anseio de prestígio, que encontramos no homem
moderno desde o fim da Idade Média, é condicionado
principalmente pelo sistema social e econômico, e não por seu
papel sexual. O mesmo ocorre em relação à dependência das
mulheres. Ocorre que os padrões culturais e formas sociais
podem criar tendências ideológicas que correm paralelas a
tendências idênticas enraizadas em fontes totalmente outras,
como as diferenças sexuais. Se tal fôr o caso, as tendências
paralelas se fundem numa só, como se idênticas fôssem as
suas fontes.
Os anseios de prestígio e dependência, embora produtos da
cultura, determinam a totalidade da personalidade. A
personalidade individual fica, assim, reduzida a um segmento
da totalidade da gama das potencialidades humanas. Mas as
diferenças de caráter, embora tenham raízes em diferenças
naturais,
102
não são dêsse tipo. A razão disso está no fato de que mais
profunda do que a diferença é a igualdade dos sexos, o fato de
que homens e mulheres são, acima de tudo, sêres humanos
partilhando das mesmas potencialidades, dos mesmos desejos
e mesmos temores. O que existe nêles de diverso, decorrente
de diferenças naturais, não representa uma diferença
fundamental. Dá às suas personalidades, fundamentalmente
semelhantes, pequenas diferenças de ênfase numa ou noutra
tendência, surgidas empiricamente como um colorido. As
distinções provocadas pelas diferenças sexuais não
constituem base para atribuir ao homem e à mulher papéis
diferentes em nenhuma sociedade.
É evidente hoje que quaisquer diferenças existentes entre os
sexos são relativamente insignificantes em relação às
diferenças de caráter que encontramos entre pessoas do
mesmo sexo.
As diferenças sexuais não influenciam a capacidade de fazer
trabalhos de qualquer espécie. É certo que realizações
extremamente diversas podem ser coloridas, em sua
qualidade, pelas características sexuais – um sexo pode ser
mais bem dotado para determinado tipo de trabalho –, mas o
mesmo ocorre quando os extrovertidos são comparados aos
introvertidos, ou os tipos pícnicos aos tipos astênicos. Seria
um êrro fatal julgar as distinções sociais, econômicas e
políticas segundo essas características.
Em comparação com as influências sociais gerais que formam
os padrões masculinos ou femininos, é claro que as
experiências individuais e, do ponto de vista social, acidentais
são altamente significativas. Essas experiências pessoais, por
sua vez, se fundem com os padrões culturais, reforçando – e
por vêzes também reduzindo – seus efeitos. A influência dos
fatôres sociais e pessoais excede em fôrça a dos fatôres
“naturais” que examinamos aqui.
Constitui uma triste ilustração dos tempos a necessidade que
experimentamos de assinalar que as diferenças provocadas
pelo papel masculino ou feminino não se prestam a qualquer
julgamento de valor, do ponto de vista social ou moral. Em si,
não são boas nem más, desejáveis ou desagradáveis. O
mesmo traço surgirá como uma característica positiva numa
personalidade quando certas condições existirem, e como
característica negativa noutra personalidade, sob condições
diferentes.
103
Assim, as formas negativas nas quais o temor masculino de
falhar e sua necessidade de prestígio se podem manifestar são
óbvias: vaidade, falta de seriedade, presunção, inconstância.
Mas parece igualmente óbvio que os mesmos traços podem
resultar em traços muito positivos: iniciativa, atividade,
coragem. O mesmo se aplica às características femininas que
descrevemos, e que podem resultar, como freqüentemente
resultam, em sua incapacidade de “viver por si mesma”
emocionalmente, pràticamente, intelectualmente. Mas que, em
outras condições, podem fazer dela a fonte de paciência,
intensidade de amor, encanto erótico, constância.
O resultado positivo ou negativo de uma ou outra
característica depende da estrutura do caráter, como um todo,
da pessoa em questão. Entre os fatôres de personalidade que
levam a um resultado positivo ou negativo estão, por exemplo,
a ansiedade e a autoconfiança, a inclinação a destruir ou a
construir. Mas não basta assinalar um ou dois dos traços
mais isolados; sómente o todo da estrutura do caráter
determina se uma das características masculinas ou
femininas será um traço negativo ou positivo. Êsse princípio é
idêntico ao que Klages introduziu em seu sistema grafológico.
Qualquer traço isolado na escrita pode ter um sentido positivo
ou negativo, de acôrdo com o que êle chama de forminiveau
(nível da forma), da personalidade total. Se o caráter de uma
pessoa pode ser considerado como “ordeiro”, isso pode
significar uma de duas coisas: indica algo positivo, como seja,
a pessoa não é desordenada, é capaz de organizar sua vida; ou
indica algo negativo, ou seja, que a pessoa é pedante, estéril,
sem iniciativa. Evidentemente, o traço de “ordeiro” está na raiz
de ambas as conseqüências positivas ou negativas, mas o
resultado é determinado por vários outros fatôres da
personalidade total. Êstes, por sua vez, dependem das
condições externas que tendem a restringir a vida ou a
contribuir para um desenvolvimento generoso.
104
PSICANÁLISE: CIÊNCIA OU LINHA
PARTIDÁRIA?
A PSICANÁLISE freudiana é um tratamento para a cura da
neurose e uma teoria científica sôbre a natureza do homem – e
todos sabem disso. O que se sabe menos é que ela constitui
também um “movimento”, com uma organização internacional
de linhas rigorosamente hierárquicas, regras estritas para a
inscrição e que por muitos anos foi dirigida por um comitê
secreto, constituído de Freud e mais seis outros. Êsse
movimento revelou, ocasionalmente e através de alguns de
seus representantes, um fanatismo habitualmente só
encontrado nas burocracias religiosas e políticas.
A comparação mais próxima que se pode fazer da Psicanálise
com outra teoria científica, no que se relaciona com o aspecto
revolucionário, é o paralelo com a teoria de Darwin, cujo
impacto sôbre o pensamento moderno foi ainda mais poderoso
que o da Psicanálise. Mas existe um “movimento” darwinista
que determine quem se pode chamar de “darwinista”, seja
rigorosamente organizado e lute fanàticamente pela pureza da
doutrina de Darwin?
Desejo, primeiramente, demonstrar algumas expressões mais
drásticas e infelizes dêsse espírito de “linha partidária”, em
relação à biografia que Ernest Jones escreveu de Freud.65 Isso
me parece indicado por duas razões: primeiro, o fanatismo
partidário de Jones levou-o a grotescos ataques póstumos a
Ernest Jones, The Life and Work of Sigmund Freud (Nova York, Basic
Books, Ine., 1953-1957).
65
105
homens que discordaram de Freud; e, segundo, muitos
comentaristas do livro aceitaram seus dados sem crítica ou
indagação.
A “revisão” que Jones faz da história introduz na ciência um
método que até então só esperávamos encontrar na “história”
stalinista. Os stalinistas chamam aos que discordaram e se
rebelaram de “traidores” e “espiões” do capitalismo. O Dr.
Jones faz o mesmo no àmbito psiquiátrico, afirmando que
Rank e Ferenczi, os dois homens mais ligados a Freud e que
mais tarde discordaram dêle sob certos aspectos, foram
psicóticos durante muitos anos. A sugestão é de que sómente
sua insanidade lhes explica o crime de discordarem de Freud
e, no caso de Ferenczi, de que as queixas contra o tratamento
áspero e intolerante que lhe deu Freud são provas, ipso facto,
de psicose.
Em primeiro lugar, devemos notar que por Muitos anos antes
de ocorrer a “traição” de Rank ou Ferenczi houve no comitê
secreto lutas e ciúmes violentos entre Abraham, Jones e, sob
certo aspecto, também Eitingon, de um lado, e Rank e
Ferenczi, do outro. Já em 1924, quando Rank publicou seu
livro sôbre o trauma da natalidade, que Freud recebeu
cordialmente na época, Abraham, “estimulado ao saber das
críticas de Freud”, levantou a suspeita de que Rank seguia o
caminho da “traição” de Jung.
Embora Freud recebesse com tolerância, inicialmente, as
novas teorias de Rank, mais tarde, provàvelmente sob a
influência das intrigas e insinuações do grupo de Jones, e
também devido à recusa de Rank em modificar suas linhas
teóricas, rompeu com êle. Na época Freud disse que a neurose
de Rank era responsável por alguns de seus desvios, tinha
origem nos cinco anos posteriores à Primeira Guerra Mundial,
e que durante quinze anos “não lhe ocorrera que Rank
precisava ser analisado”.
Mesmo que assim fôsse, Freud falou de neurose, e não de
psicose. Jones sugere que Freud reprimiu o conhecimento de
que
Rank
sofria
de
“psicose
maníaco-depressiva”,
conhecimento que Freud supostamente tivera “anos antes”.
Tendo em vista a afirmação de Freud, acima mencionada, a
sugestão de Jones não parece muito convincente. (E também
porque a única
106
referência ao suposto conhecimento de Freud está numa carta
por êle escrita a Ferenczi no mesmo ano, e não anos antes.)
Tôda uma história é inventada para explicar a existência
dessa suposta psicose. Suas bases estariam nos cinco anos
posteriores à Primeira Guerra Mundial, durante os quais Rank
trabalhou muito, e com êxito, na direção de uma casa editôra
de livros de Psicanálise, em Viena. Êsses cinco anos, “nos
quais Rank continuou nesse ritmo furioso, devem ter
constituído um fator em seu colapso mental subseqüente”.
Para um psiquiatra, para não falar de um psicanalista,
explicar uma psicose maníaco-depressiva como conseqüência,
em parte, de excesso de trabalho é realmente surpreendente.
Em 1923 “o espírito maléfico da dissensão” havia surgido.
Naquela época, Freud culpou Jones e Abraham pela
desintegração do comitê central. Mas Jones acabaria
superando seus rivais. “Foi sómente depois de alguns anos
que as verdadeiras causas da questão se tornaram
manifestas: ou seja, o colapso na integração mental de Rank e
Ferenczí.” Isso nos leva à afirmação suprema. Os derrotados
na luta internacional, Rank e Ferenczi, haviam abrigado o
germe da psicose por muitos anos, mas tais germes só se
tornaram manifestos quando os dois discordaram de Freud.
Quando se recusaram a apaziguar Freud, a psicose revelouse! Como Jones diz com uma franqueza reconfortante, a
esperança de Freud, “... ao fundar o Comitê, era de que seis
de nós tinhamos condições para ocupar o lugar.” Verificou-se
depois, porém, que sómente quatro as tinham. Dois dos
membros, Rank e Ferenczi, não puderam manter-se até o fim.
Rank, de modo dramático ... e Ferenczi, mais gradualmente,
em fins de sua vida, revelaram manifestações psicóticas que
entre outros indícios incluíam um afastamento das idéias de
Freud e suas doutrinas. As sementes de uma psicose
destruidora, invisível durante tanto tempo, germinaram
finalmente.
Se o que diz Jones é certo, foi realmente um descuído
surpreendente da parte de Freud não ter visto a evolução
psicótica de dois dos seus discípulos e amigos mais íntimos,
senão quando o conflito se manifestou. Jones não procura dar
provas objetivas de sua afirmação, sôbre a propalada psicose
maníaco-depressiva
107
de Rank. Temos apenas a sua palavra, ou seja, a palavra de
um homem que fêz intrigas contra Rank e suspeitou de sua
lealdade, durante muitos anos, na luta dentro da côrte que
cercava Freud. Há muitas provas em contrário. Cito apenas
uma declaração do Dr. Harry Bone, psicanalista de Nova York
que conheceu Rank desde 1932 e estêve em contato freqüente
com êle até a sua morte:
Em tôdas as numerosas vêzes e variadas situações em que
tive a oportunidade de vê-lo em ação e em repouso, não
percebi qualquer indício de psicose ou de outra anormalidade
mental.66
Rank, por fim, rompeu abertamente com Freud, o que
Ferenczi jamais fêz. É portanto ainda mais surpreendente que
Ferenczi seja acusado por Jones de traição. Como no caso de
Jung e Rank, a história da traição começou, ao que se supõe,
com uma viagem fatal à América. Quando Ferenczi quis ir a
Nova York, uma “previsão intuitiva, provàvelmente baseada na
seqüência infeliz de visitas semelhantes por Jung e Rank”,
levou Jones a aconselhar-lhe que desistisse. Não obstante,
com o apoio de Freud, Ferenczi partiu para os Estados Unidos
e o “resultado justificou minhas [de Jones] previsões. Ferenczi
jamais voltou a ser o mesmo, depois daquela visita, embora se
passassem outros quatro –ou cinco anos até que sua
66
Comunicação pessoal.
depressão mental se tornasse evidente a Freud”.
Nos anos seguintes, as rivalidades e intrigas fantásticas entre
Jones e Ferenczi, ao que parece, continuaram. Ferenczi
suspeitou que Jones mentia e ambicionava, por motivos
financeiros, unir as nações anglo-saxônicas sob seu cetro.
Segundo Jones, “Freud foi, por isso, influenciado
negativamente em relação a mim”. Mas as fôrças anti-Ferenczi
parecem ter levado a melhor, no fim. Freud escreveu a
Ferenczi, em dezembro de 1929:
Você afastou-se, aparentemente, de mim nos últimos anos, mas
espero que não o tenha feito a ponto de que se possa esperar a
criação de uma nova análise, oposta, pelo meu Paladino e GrãoVizir secreto!
108
Qual a essência das dissensões teóricas entre Freud e
Ferenczi? Êste último se impressionara muito pela
importância da falta de bondade dos pais, e acreditava que,
Para ser curado, o paciente necessitava de mais do que
“interpretações”, necessitava do tipo de amor fraternal que lhe
havia sido negado quando criança. Ferenczi modificou sua
atitude para com o paciente, passando de observador frio a
ser humano participante e amante, e entusiasmou-se com os
resultados terapêuticos da nova atitude. Freud, a princípio,
pareceu receber com tolerância a inovação. Mas sua atitude
modificou-se, ao que tudo indica, porque Ferenczi não se
dispôs a apaziguá-lo imediatamente, e também porque as
suspeitas lançadas sôbre êle pela facção de Jones fizeram
sentir seus efeitos.
Ferenczi viu Freud pela última vez em 1932, antes do
Congresso em Wiesbaden. Essa visita foi realmente trágica.
Freud resumiu suas impressões finais do homem que fôra seu
seguidor e amigo dedicado desde os primeiros anos do
movimento, num telegrama a Eitingon: “Ferenczi inacessível,
impressão insatisfatória.” Ferenczi disse à Dra. Clara
Thompson,67 imediatamente depois da visita, no trem que os
levou de Viena à Alemanha, que o encontro fôra “terrível”, e
que Freud lhe dissera que podia ler seu trabalho no congresso
psicanalista em Wiesbaden, mas devia prometer que não o
publicaria, Pouco depois, Ferenczi revelava os primeiros
sintomas da anemia aguda que causaria sua morte, no ano
seguinte.
Algum tempo antes de seu último encontro com Freud,
Ferenczi dissera à Sra. Izette de Forest68 que se sentira triste e
magoado pelo tratamento sêco e agressivo que recebera de
Freud.69 Tal atitude de Freud revela uma intolerância
acentuada. Não obstante, a incapacidade que êle mostrava de
perdoar a um antigo amigo, que dêle se afastara, evidencia-se
ainda
109
mais expressivamente no ódio e no desprêzo com que se
referiu a Alfred Adler, por ocasião da morte dêste:
Para um menino judeu nascido num subúrbio vienense, a
morte em Aberdeen é um feito excepcional, uma prova de
como conseguiu fazer carreira. O mundo realmente o
recompensou generosamente pelo serviço de contradizer a
Psicanálise.
No caso de Ferenczi, chamar sua atitude de “frieza”’ ou “quase
inimizade”, como lzette de Forest fêz em The Leaven of Love, é
uma caracterização bastante moderada. Jones, porém, que
nega haver em Freud traços de qualquer autoritarismo ou
intolerância, declara simplesmente que não há nada de
verdade na história dessa hostilidade, “embora seja altamente
provável que o próprio Ferenczi, em seu estado de alucinação
final, acreditasse nela”.
Aluna e discípula de Ferenczi, hoje diretora do William Alanson White
Institute of Psychiatry, Psychoanalysis and Psychology, em Nova York.
68 Aluna e amiga de Ferenczi, psicanalista e autora de The Leaven of Love,
que encerra uma excelente exposição das idéias de Ferenczi sôbre a
técnica psicanalítica.
69 Comunicação pessoal.
67
Algumas semanas antes de sua morte, Ferenczi mandou a
Freud congratulações pelo seu aniversário, mas supostamente
“a perturbação mental fizera progressos rápidos nos últimos
meses”. Segundo Jones (que não menciona fontes), Ferenczi
relatou que um de seus pacientes americanos o havia
analisado e com isso o curara de todos os seus problemas, e
que tal paciente lhe mandava mensagens através do Atlântico.
Jones, porém, é obrigado a admitir que Ferenczi sempre
acreditara firmemente na telepatia, o que elimina a “prova” de
sua loucura. A única “prova” existente é “a alucinação sôbre a
suposta hostilidade de Freud”. Jones supõe, aparentemente,
que sómente uma mente enfêrma pode acusar Freud de
autoritarismo e hostilidade.
Jones leva a história da suposta psicose de Ferenczi, cujos
germes teriam existido desde muito antes, a um clímax.
Quando a moléstia atingiu a espinha dorsal e o cérebro, isso,
segundo Jones, sem dúvida foi “exacerbado pelas suas
tendências psicóticas latentes”. Numa de suas últimas cartas
a Freud, depois da ascensão de Hitler ao poder, Ferenczi lhe
sugeria que fôsse para a Inglaterra. Jones interpreta êsse
conselho realista como indício de que “havia certo método em
sua loucura”. Finalmente, já próximo do fim, ocorreram
manifestações paranóicas e até mesmo homicidas, seguidas
pela morte súbita a 24 de maio.” Jones não alega conhecer os
detalhes pessoalmente, nem proporciona qualquer indício ou
prova da psicose de Ferenczi ou das “manifestações
paranóicas e até mesmo homicidas”. Em vista disso, e das
afirmações seguintes, as declarações de Jones sôbre a psicose
de Rank e Ferenczi devem ser consideradas como inverídicas e
sob a suspeita de invenção, motivada por velhos ciúmes
pessoais e pelo desejo de poupar a Freud a crítica de ter sido
áspero e mau para com homem profundamente dedicado a
êle. (Não pretendo acusar o Dr. jones de insinceridade
consciente; mas os impulsos inconscientes podem derrotar as
intenções conscientes, e é exatamente disso que se ocupa a
Psicanálise.)
110
Jones não viu Ferenczi nos últimos anos de sua doença. Mas
a Dra. Clara Thompson, que o acompanhou desde 1932 até o
dia de sua morte, declara:
“exceto pelos sintomas de sua doença física, não havia nada de
psicótico em suas reações, que eu tivesse observado. Visitei-o
regularmente, e conversei com êle, e não houve um único incidente,
além das dificuldades de memória, que consubstanciasse as
afirmações de Jones sôbre a psicose ou as inclinações homicidas de
Ferenczi.
O Dr. Michael Balint, um dos discípulos mais fiéis de Ferenczi
e o executor de seu legado literário, também discorda da
afirmação do Dr. Jones. Diz êle:
Apesar da séria condição neurológica [relacionada com a
anemia aguda] sua mente permaneceu clara até o fim, e posso
afirmá-lo pela experiência pessoal, pois o vi freqüentemente
durante os últimos meses, pràticamente uma ou duas vêzes
por semana.70
A enteada de Ferenczi, a Sra. Elma Lauvrik, que também o
acompanhou até a morte, escreveu-me confirmando
totalmente as declarações da Dr.a Thompson e do Dr. Balint.
Fiz uma descrição tão detalhada das afirmações fantásticas do
Dr. Jones, em parte para defender a memória de homens bem
dotados e dedicados, que já não se podem defender, em
111
parte para mostrar, com exemplo concreto, o espírito
partidarista que se encontra em certos círculos do movimento
psicanalítico. As suspeitas que se possam ter formulado
antes, de que o movimento psicanalítico encerra tal espírito
partidário, são confirmadas pelo trabalho de Jones,
especialmente pelo tratamento dado a Rank e Ferenczi no
terceiro volume.
Surge, agora, uma indagação: como pôde a Psicanálise, uma
70
Comunicação pessoal.
teoria e uma terapêutica, transformar-Se num movimento
fanático dêsse tipo? A resposta só pode ser encontrada pelo
exame dos motivos de Freud na evolução do movimento
psicanalítico.
Na verdade, visto superficialmente, Freud foi apenas o criador
de um nôvo tratamento das doenças mentais, e a tal questão
dedicou seu principal interêsse e todos os seus esforços. Mas
se olharmos mais de perto verificaremos que atrás dêsse
conceito de terapêutica médica para a cura de neurose há
uma intenção totalmente diferente, raramente expressa por
Freud, e provàvelmente nem mesmo consciente. Êsse conceito
oculto e implícito se ocupava primordialmente não da cura da
doença mental, mas de algo transcendente ao conceito da
cura e enfermidade. Que era?
Certamente não era a Medicina. Freud escreveu:
Depois
de
quarenta anos
de
atividade
médica, meu
autoconhecimento me diz que jamais fui médico, no devido sentido.
Tornei-me médico ao ser obrigado a me desviar de meu objetivo
inicial, e o triunfo de minha vida está em ter, depois de uma longa e
tortuosa viagem, encontrado o caminho para minha finalidade
original.
Qual foi essa finalidade original que Freud reencontrou? Êle o
diz claramente, no mesmo parágrafo: “Em minha juventude,
senti uma necessidade esmagadora de compreender um pouco
dos enigmas do mundo em que vivemos, e talvez mesmo de
contribuir para a sua solução.”
Interêsse pelos enigmas do mundo e desejo de contribuir para
a sua solução eram intensos em Freud quando na escola
secundária, especialmente durante os últimos anos, e êle
próprio diz: “Sob a influência poderosa de um companheiro de
escola, de um rapaz um pouco mais velho que chegou a se
112
destacar mais tarde na política, surgiu-me o desejo de estudar
Direito, como êle, e de dedicar-me a atividades sociais.” Êsse
colega de escola, Heinrich Braun, tornou-se o líder do
movimento socialista. Como Freud diz noutro lugar, nessa
época foram nomeados pelo Imperador os primeiros ministros
burgueses, o que despertou grande alegria entre a classe
média liberal, particularmente entre a intelligentsia judaica.
Naquela época, Freud já se tinha interessado muito pelos
problemas do socialismo, pela possibilidade de ser no futuro
um líder político, e pretendia estudar Direito como um
primeiro passo nessa direção. Mesmo quando trabalhou como
assistente num laboratório fisiológico, sentia que se tinha de
dedicar a uma causa.
Em 1881 escreveu à sua noiva:
A Filosofia, que sempre me pareceu como meu objetivo e refúgio da
velhice, aumenta cada dia de atração, tal como as questões
humanas em conjunto, ou qualquer causa a que possa dar minha
dedicação a qualquer preço. Mas o temor da incerteza das questões
políticas e locais me afasta dessa esfera.
O interêsse de Freud pela política usando a palavra “interêsse”
num sentido bastante amplo e sua identificação com líderes
que eram conquistadores ou grandes benfeitores da
humanidade não surgiram apenas nos últimos anos da escola
secundária. Já como rapaz tivera grande admiração por
Aníbal, que o levou a uma identificação que perdurou durante
tôda a sua vida, como se vê fàcilmente pelos seus escritos. A
identificação de Freud com Moisés foi talvez ainda mais
profunda e perdurável. Há provas disso. Basta dizer, aqui, que
Freud se identificou com Moisés, que levou uma massa
ignorante a uma vida melhor, vida de razão e contrôle das
paixões. Outro indício da mesma atitude foi o interêsse de
Freud, em 1910, pela Fraternidade Internacional de Ética e
Cultura. Jones relata que Freud perguntou a Jung o que
pensava sôbre seu ingresso nessa fraternidade, e sómente
depois da resposta negativa abandonou a idéia. Não obstante,
o Movimento Psicanalítico Internacional, fundado pouco
depois, viria a ser uma continuação daquele plano.
Quais os objetivos e qual o dogma dêsse movimento? Freud o
expressou com clareza nesta frase: “Onde houver Id,
113
haverá Ego.” Seu objetivo era o contrôle das paixões
irracionais pela razão, a libertação do homem em relação à
paixão dentro das possibilidades humanas. Estudou as fontes
das paixões a fim de ajudar o homem a dominá-las. Sua
finalidade era a verdade, o conhecimento da realidade; para
êle, êsse conhecimento era a única luz orientadora do homem
na terra. Esses objetivos eram tradicionais ao Racionalismo,
ao Iluminismo, e à Ética puritana. Foi o gênio de Freud que os
ligou com uma nova compreensão psicológica da dimensão
das fontes ocultas e irracionais da ação humana.
Em muitas das formulações de Freud é visível que seu
interêsse transcendia à cura médica em si. Êle fala do
tratamento psicanalítico como a “libertação do ser humano”, e
do analista como aquêle que deve servir de “modêlo” e agir
como um “professor”. E afirmar que a “relação entre o analista
e o paciente se baseia no amor da verdade, ou seja, no
reconhecimento da verdade, que impede qualquer tipo de
fraude ou engano”.
Que se segue de tudo isso? Embora conscientemente Freud
fôsse apenas um cientista e um terapeuta, inconscientemente
era – e desejava ser – um dos grandes líderes ético-culturais
do século XX. Queria conquistar o mundo com seu dogma
racionalista e puritano, e levar o homem à única salvação – e
muito limitada – de que era capaz: a conquista da paixão pelo
intelecto. Para Freud, isso – e não a religião ou qualquer
solução política, como o socialismo – era a única resposta
válida ao problema do homem.
O movimento de Freud estava imbuído do entusiasmo do
racionalismo e liberalismo dos séculos XVIII e XIX. O destino
trágico de Freud foi ter êsse movimento se püpularizado,
depois da Primeira Guerra Mundial, entre a classe média
urbana e a intelligentsia, às quais faltava fé no radicalismo
político ou filosófico. Assim, a Psicanálise substituiu o
interêsse radical filosófico ou político, tornando-se um nôvo
credo que pouco exigia de seus adeptos, a não ser o
aprendizado da nomenclatura.
Foi exatamente essa função que tornou a Psicanálise tão
popular hoje. A burocracia que herdou o legado de Freud
capitaliza sôbre essa popularidade, mas herdou pouco de sua
114
grandeza e de seu verdadeiro radicalismo. Seus membros
lutaram entre si, com intrigas e maquinações mesquinhas, e o
mito “oficial” sôbre Ferenczi e Rank serve apenas para
eliminar os dois únicos discípulos de imaginação e Poder
criador entre o grupo original que perdurou, depois das
defecções de Adler e Jung. No meu entender, porém, para que
a Psicanálise desenvolva e siga as descobertas básicas de
Freud, terá de rever, do ponto de vista do pensamento
humanista e dialético, muitas de suas teorias concebidas
dentro do espírito do materialismo fisiológico do século XIX.
Essa tradução de Freud a uma nova clave deve basear-se
numa interpretação dinâmica do homem, proveniente de uma
compreensão das condições específicas da existência humana.
As finalidades humanísticas de Freud, transcendendo a
enfermidade e o tratamento, poderão então encontrar uma
expressão mais nova e mais adequada, mas somente se a
Psicanálise deixar de ser governada por uma burocracia estéril
e reconquistar na ousadia original, na pesquisa da verdade.
115
O CARATER REVOLUCIONÁRIO
O CONCEITO do “caráter revolucionário” é político e
psicológico. Sob êsse aspecto, assemelha-se ao conceito do
caráter autoritário, introduzido na Psicologia há cêrca de
trinta anos, e que combinava uma categoria política, a da
estrutura autoritária no Estado e família, com uma categoria
psicológica, a estrutura do caráter, que forma a base dessa
estrutura política e social.
O conceito do caráter autoritário nasceu de certos interêsses
políticos. Aproximadamente em 1930 na Alemanha,
desejávamos saber as possibilidades de ser Hitler derrotado
pela maioria da população.71 Na época, a maior parte da
população alemã, especialmente os trabalhadores e
funcionários, era contra o nazismo. Estava ao lado da
democracia, como o demonstraram as eleições políticas e
sindicais. A questão era se lutaria pelas suas idéias, no caso
de ser isso necessário. A premissa era a de que ter uma
opinião é uma coisa, ter uma convicção é outra. Ou, em
outras palavras, qualquer pessoa pode adotar uma opinião,
como pode aprender uma língua ou costume estrangeiro, mas
sómente as opiniões arraigadas na estrutura do caráter da
pessoa, atrás da qual está a energia encerrada em seu caráter
– sómente essas opiniões se tornam convicções. O efeito das
idéias, que são fáceis de aceitar se proclamadas pela maioria,
depende em grande parte da estrutura
O estudo foi dirigido por mim e teve vários colaboradores, Inclusive o Dr.
Schachtel. O Dr. P. Lazarsfeld colaborou como conselheiro estatístico do
Instituto de Pesquisas Sociais da Universidade de Frankfurt, então dirigido
pelo Dr. M. Horkheimer.
71
116
de caráter de uma pessoa numa situaÇão crítica. O caráter,
como disse Heráclito e Freud demonstrou é o destino do
homem. A estrutura do caráter decide qual a idéia que o
homem escolherá, e decide também a fôrça da idéia escolhida.
Isso tem realmente grande importância no conceito freudiano
do caráter – o de que êle transcende o conceito tradicional de
comportamento e se relaciona com o comportamento
dinâmicamente carregado, de modo que o homem não
sómente pensa de certa forma como também seu pensamento
mesmo é proveniente de suas inclinações e emoções.
A pergunta que fizemos, naquela época, foi: até que ponto os
trabalhadores e funcionários alemães têm uma estrutura de
caráter que se opõe ao autoritarismo nazista? E isso implicava
outra questão: até que ponto os trabalhadores e empregados
alemães, na hora crítica, combaterão o nazismo? Fêz-se um
estudo e o resultado foi que, falando de modo geral, 10% dos
trabalhadores e funcionários alemães tinham o que
chamaríamos de estrutura de caráter autoritária; cêrca de
15% tinham uma estrutura de caráter democrática, e a grande
maioria – cêrca de 75% – era de pessoas com uma estrutura
de caráter representando uma mistura dêsses extremos.72 A
suposição teórica foi a de que os autoritários seriam nazistas
ardentes, os “democráticos” seriam militantes antinazistas, e a
maioria nem uma coisa nem outra. Tais suposições teóricas
revelaram-se mais ou menos certas, como os fatos ocorridos
O método usado foi o exame das respostas individuais a um
questionário aberto, interpretando o sentido não-intencional, inconsciente,
e em contraposição à resposta explícita. Se a resposta à pergunta, por
exemplo, “que homens mais admira na História?” fôsse “Alexandre o
Grande, Napoleão, César, Marx e Lênin”, isso era interpretado como
resposta “autoritária”, porque a combinação mostra uma admiração por
ditadores e líderes militares. Se a resposta fôsse “Sócrates, Pasteur, Kant,
Marx e Lênin”, era classificada como democrática, porque revelava a
admiração por benfeitores da humanidade, e não por pessoas dotadas de
poder.
72
entre 1933 e 1945 mostraram.73
117
Para nosso objetivo aqui, basta dizer que a estrutura de
caráter autoritária encontra-se na pessoa cujo senso de fôrça
e identidade baseia-se numa subordinação simbiótica às
autoridades, e ao mesmo tempo um domínio simbiótico dos
que estão submetidos à sua autoridade. Ou seja, o caráter
autoritário sente-se mais forte quando pode submeter-se a
uma autoridade e ser parte dela, desde que seja (e até certo
ponto apoiado na realidade) exagerada, deificada, e quando ao
mesmo tempo pode crescer pelo fato de incorporar os que lhe
estão sujeitos à autoridade. É um estado de simbiose sádicomasoquista, que lhe dá uma sensação de fôrça e de
identidade. Sendo parte de algo grande (qualquer que seja), êle
se torna grande. Se estivesse sózinho, se reduziria a nada. Por
essa simples razão, uma ameaça à autoridade e uma anieaça
à estrutura autoritária são, para o caráter autoritário, uma
ameaça a si mesmo – à sua sanidade. Por isso, êle é forçado a
lutar contra tal ameaça como lutaria contra um perigo à sua
vida ou sanidade.
Referindo-me agora ao conceito de caráter revolucionário,
gostaria de começar mostrando o que não me parece que êsse
caráter seja. Evidentemente, não se trata de uma pessoa que
participa de revoluções. Tal é exatamente a distinção entre
comportamento e caráter no sentido dinâmico freudiano.
Qualquer pessoa pode, por várias razões, participar de uma
revolução, a despeito do que sinta, desde que aja pela
revolução. Mas o fato de agir como revolucionário pouco nos
revela do seu caráter.
A segunda coisa que o caráter revolucionário não me parece
ser é um pouco mais complicada. Êle não é um rebelde. Que
O assunto foi tratado posteriormente, e com melhor método do que no
estudo original, num trabalho de T. W. Adorno e outros, The Authoritarian
Personality (N. York, Harper & Row, 1950).
73
entendo por isso?74 Defino o rebelde como a pessoa
profundamente ressentida contra a autoridade Por não ser
apreciada, amada, aceita. O rebelde deseja derrubar a
autoridade devido ao seu ressentimento e, em conseqüência,
constituir-se na autoridade, em substituição à derrubada.
Muito freqüentemente, no momento mesmo em que atinge tal
objetivo, torna-se amigo da própria autoridade que combatia
tão acerbamente, antes.
118
O tipo caracterológico do rebelde é bem conhecido na história
política do século XX. Tome-se, por exemplo, uma figura como
Ramsay MacDonald, que começou como pacifista e um
homem que tinha objeções de consciência. Quando
conquistou poder suficiente, deixou o Partido Trabalhista para
unir-se às próprias autoridades que combatera durante tantos
anos, dizendo a seu amigo e ex-camarada, Snowdon, no dia
em que ingressou no Govêrno Nacional: “Hoje, tôda duquesa
em Londres desejará beijar-me nas duas faces.” Temos aqui o
tipo clássico de rebelde que usa a rebelião para tornar-se
autoridade.
São necessários anos, por vêzes, para atingir isso; outras
vêzes, as coisas correm mais rápidas. Se tomarmos, por
exemplo, uma personalidade como o infeliz Laval, na França,
que começou como rebelde, podemos lembrar que um curto
espaço transcorreu até que êle adquirisse bastante capital
político para poder vender-se. Há muitos outros a mencionar,
mas o mecanismo psicológico é sempre o mesmo. Poderíamos
dizer que a vida política do século XX é um cemitério
encerrando os túmulos morais de pessoas que começaram
como revolucionários e revelaram-se apenas rebeldes
oportunistas.
Há ainda uma coisa que o caráter revolucionário não é, e um
pouco mais complicada do que o conceito do rebelde: não é
Tratei dêsse problema mais detalhadamente em meu livro anterior, O
Mêdo à Liberdade, de 1941. [Publicado por esta editóra, na Biblioteca de
Ciências Sociais. N. dos E.]
74
um
fanático.
Os
revolucionários,
no
sentido
de
comportamento, são freqüentemente fanáticos, e nesse ponto
a diferença entre o comportamento político e a estrutura de
caráter é bastante evidente – pelo menos, tal como vejo o
caráter do revolucionário. Que entendo por fanático? Não
quero dizer com isso o homem que tem uma convicção.
(Poderia dizer que hoje tornou-se moda chamar a todos os que
têm uma convicção de “fanáticos” e a todos que não a têm, ou
cuja convicção é fàcilmente modificável, de “realistas”.)
Creio ser possível descrever o fanático clinicamente como a
pessoa excessivamente narcisista – na realidade, a pessoa que
está próxima da psicose (depressão, freqüentemente unida a
tendências
paranóicas,),
uma
pessoa
completamente
desligada, como qualquer psicótico, do mundo exterior. Mas o
fanático encontrou uma solução que o salva da psicose
evidente. Escolheu uma causa, qualquer que seja – política,
religiosa ou
119
outra – e a endeusou. Fêz dela um ídolo, e, pela completa
submissão a êle, adquire um apaixonado senso da vida, um
sentido para a vida, pois em sua submissão se identifica com
o ídolo, que endeusou e transformou num absoluto.
Se quiséssemos escolher um símbolo para o fanático, seria o
do gêlo candente. É a pessoa apaixonada e extremamente fria
ao mesmo tempo. Está desligada do mundo, e ao mesmo
tempo cheia de uma paixão escaldante, a paixão da
participação e da submissão ao Absoluto. Para reconhecer o
caráter do fanático devemos ouvir não tanto o que êle diz, mas
observar o brilho particular em seu olhar, a paixão fria que é o
paradoxo do fanático, ou seja, uma total falta de correlação
fundida a uma adoração apaixonada do seu ídolo. O fanático
está próximo daquilo que os profetas chamam de “adorador de
ídolo”. Desnecessário dizer que êle sempre teve um papel de
relêvo na história, e freqÜentemente fingiu de revolucionário, e
o que diz é precisamente – ou parece ser – o que um
revolucionário diria.
Procurei explicar o que não me parece ser o caráter
revolucionário. Creio que o conceito caracterológico do
revolucionário é hoje importante – tão importante, talvez,
quanto o conceito do caráter autoritário. Realmente, vivemos
numa época de revoluções, iniciada há cêrca de trezentos
anos, desde as rebeliões políticas dos inglêses, franceses e
americanos, e que continuou com as revoluções sociais na
Rússia, China e presentemente – na América Latina.
Nesta era revolucionária, a palavra “revolucionário” não tem
atrativos em muitas partes do mundo, como qualificação
positiva para muitos movimentos políticos. Na verdade, todos
os movimentos que usam tal palavra alegam objetivos muito
semelhantes, ou seja, o de que lutam pela liberdade e
independência. Mas na realidade alguns o fazem, outros não;
e por isso entendo que alguns na realidade lutam pela
independência, noutros os refrões revolucionários são usados
para combater os regimes autoritários, em mãos de uma elite
diferente.
Como definir uma revolução? Poderíamos defini-la no sentido
do dicionário, afirmando simplesmente que é a derrubada,
pacífica ou violenta, de qualquer govêrno e sua substituição
por um nôvo govêrno. É, evidentemente, uma definição
120
política muito formal, e sem qualquer sentido particular.
Poderíamos, num senso mais marxista, definir a revolução
como a substituiÇão de uma ordem existente por outra
históricamente mais progressista. Surge, naturalmente, a
indagação de quem pode decidir o que é “históricamente mais
progressista”. Habitualmente é o vencedor, pelo menos em seu
próprio país.
Finalmente, poderíamos definir a revolução no sentido
psicológico, afirmando que ela é um movimento político
liderado por pessoas de caráter revolucionário, e que atrai
pessoas de caráter revolucionário. Não se trata de uma grande
definição, mas é útil do ponto de vista dêste ensaio, já que
coloca tôda a ênfase na questão que vamos agora debater: que
é o caráter revolucionário?
O traço mais fundamental do “caráter revolucionário” é ser
independente – é ser livre. É fácil compreender que a
independência é o oposto da ligação simbiótica aos poderosos,
que ocupam posições superiores, e aos impotentes, que
ocupam posições inferiores, como mencionei ao falar do
caráter autoritário. Mas isso não esclarece bastante o que
entendemos por “independente” e “liberdade”. A dificuldade
está precisamente no fato de que as palavras “liberdade” e
“independência” são usadas hoje com a implicação de que
num sistema democrático todos são livres e independentes.
Êsse conceito de liberdade e independência tem suas raízes na
revolução da classe média contra a ordem feudal, e adquiriu
nova fôrça contrastando com os regimes totalitários. Durante
a ordem feudal e absolutista, o indivíduo não era nem livre
nem independente. Estava sujeito a regras tradicionais ou
arbitrárias, às ordens dos que estavam acima dêle. As
revoluções burguesas vitoriosas na Europa e na América
deram liberdade política e independência ao indivíduo. Era
uma “liberdade em relação a alguma coisa” uma
independência em relação às autoridades políticas.
Foi, sem dúvida, um progresso importante, muito embora o
industrialismo de hoje tenha criado novas formas de
dependência, nas limitadoras burocracias que contrastam
com a iniciativa e a independência sem peias do homem de
negócios do século XIX. O problema da independência e
liberdade, porém, é muito mais profundo do que no sentido
acima. Na realidade, o problema da independência é o aspecto
mais fundamental da
121
evolução humana, desde que o vejamos em tôda a sua
profundidade e alcance.
O recém-nascido está ainda intimamente ligado ao seu meio
ambiente. Para êle, o Mundo exterior não existe ainda como
uma realidade isolada dêle. Mesmo quando a criança pode
reconhecer os objetos continua por muito tempo impotente, e
não poderia sobreviver sem a ajuda da mãe e do pai. A
impotência prolongada do ser humano, em contraste com a do
animal, é uma base dessa evolução, mas também ensina a
criança a apoiar-se no poder – e a temê-lo.
Normalmente, no período que vai do nascimento à puberdade,
os pais são os que representam o poder e seu duplo aspecto:
ajuda e punição. Na época da puberdade, o jovem atinge uma
fase de evolução na qual pode prover-se (certamente nas
sociedades agrárias mais simples) e não deve necessàriamente
sua existência social aos seus pais. Pode tornar-se
econômicamente independente dêles. Em muitas sociedades
primitivas a independência (particularmente em relação à
mãe) se manifesta pelos ritos de iniciação que, não obstante,
não modificam a dependência do clã, em seu aspecto
masculino. A maturidade sexual é outro fator para estimular o
processo de emancipação dos pais. O desejo e a satisfação
sexual unem uma pessoa às demais, fora de sua família. O ato
sexual, em si, não depende do auxílio da mãe ou do pai, e nêle
o jovem se sente totalmente êle mesmo.
Até mesmo nas sociedades em que a satisfação do ato sexual é
adiada até cinco ou dez anos depois da puberdade, o desejo
sexual despertado cria anseios de independência e provoca
conflitos com a autoridade paterna e as autoridades sociais. A
pessoa normal adquire êsse grau de independência muitos
anos após a puberdade. Mas o fato inegável é que tal
independência, muito embora a pessoa possa ganhar a vida,
casar-se e ter filhos, não significa que se tenha tornado
realmente livre e independente. Continua sendo, como adulto,
bastante impotente e procura encontrar fôrças que o protejam
e lhe proporcionem sentimento de segurança. O preço pago
por êsse auxílio é tornar-se dependente dêle, perder sua
liberdade e reduzir o processo de seu crescimento. Toma seus
pensamentos de empréstimo a êle, seus sentimentos, objetivos
e valôres – embora viva sob a ilusão de ser quem pensa, sente
e faz as escolhas.
122
A liberdade e a independência totais só existem quando o
indivíduo pensa, sente e decide por si. Só pode fazê-lo
autênticamente quando atinge uma relação produtiva com o
mundo exterior, que lhe permite reagir de forma autêntica.
Êsse conceito de liberdade e independência encontra-se no
pensamento dos místicos radicais, bem como no de Marx. O
mais radical dos místicos cristãos, Meister Eckhart, diz: “Que
é a minha vida? Aquilo que se afasta de dentro, por si mesmo.
Aquilo que se move de fora não vive.”75 Ou: “... se o homem
decide ou recebe alguma coisa do exterior, está errado. Não
devemos apreender Deus nem considerá-lo fora de nós
mesmos, mas como nosso e como o que está em nós.”76
Marx, num espírito semelhante, embora não teológico, diz: “O
ser não se considera como independente, a menos que seja
seu próprio senhor e só é seu senhor quando deve sua
existência a si mesmo. O homem que vive por favor de outro
considera-se um ser dependente. Mas vivo totalmente pelo
favor de outra pessoa quando lhe devo não só a continuação
de minha vida, mas também sua criação, quando ela é a sua
fonte. Minha vida terá necessàriamente essa causa exterior, se
não fôr minha própria criação.”77
Ou, como Marx disse em outro lugar: “O homem só é
independente se afirma sua individualidade como homem
total em tôdas as suas relações com o mundo na visão,
audição, olfato, paladar, sentimento, pensamento, desejo,
amor – em suma, se afirma e expressa todos os órgãos de sua
individualidade.” A independência e a liberdade são a
realização
75 Sermão XVII, Meister Eckhart, An Introduction to the Study of his Works,
with an Anthology of his Sermons, selecionados por James A. Clark, N.
York, 1957, pág. 235.
76 Ibid., pág. 189. Atitude muito parecida encontra-se no Zen-Budismo, na
questão relacionada com a independência de Deus, Buda, ou de qualquer
outra autoridade.
77 Karl Marx, Manuscritos Econômicos e Filosóficos, incluídos em Conceito
Marxista do Homem, de Erich Fromm. [Publicado por esta editôra, na
Biblioteca de Ciências Sociais. – N. dos E.]
123
da individualidade, não sómente a emancipação de coação,
nem a liberdade em questões conierciais.
O problema de cada pessoa é precisamente o do nível de
liberdade atingido. O homem plenamente desperto, produtivo,
é livre porque pode viver com autenticidade – seu ser é a fonte
de sua vida. (Não deveria ser necessário dizer que isso não
significa que o homem independente seja um homem isolado,
pois o crescimento da personalidade ocorre no processo de
relacionar-se e interessar-se pelos outros e pelo mundo. Mas
essa relação é totalmente diferente da dependência.) Enquanto
para Marx o problema da independência como auto-realização
leva à crítica da sociedade burguesa, Freud trata do mesmo
problema dentro dos limites de sua teoria, em têrmos do
complexo de Édipo.
Freud, acreditando que o caminho da sanidade mental está na
superação da fixação incestuosa em relação à mãe, afirmou
que a saúde mental e a maturidade são baseadas na
emancipação e independência. Mas para êle êsse processo era
iniciado pelo mêdo da castração pelo pai, e terminava
incorporando as ordens e proibições paternas no próprio eu
(superego). Por isso, a independência continuava parcial (ou
seja, apenas em relação à mãe) ; a dependência do pai e das
autoridades sociais continuava através do superego.
O caráter revolucionário ídentifica-se com a humanidade e
portanto transcende os estreitos limites de sua própria
sociedade e pode, por isso, criticar a sua sociedade, ou
qualquer outra, do ponto de vista da razão e humanidade. Não
está prêso no culto paroquial da cultura em que tenha
nascido, e que representa apenas um acidente de tempo e
geografia. Pode examinar seu meio com os olhos abertos de
um homem acordado que baseia seu critério para julgar as
coisas acidentais naquilo que não é acidental (a razão), nas
normas que existem na raça humana e para ela.
O caráter revolucionário identifica-se com a humanidade.
Encerra ainda uma profunda “reverência pela vida”, para
usarmos a expressão de Albert Schweitzer, uma profunda
afinidade com a vida e um profundo amor por ela. É certo, na
medida em que nos assemelhamos aos outros animais, que
nos apegamos
124
à vida e lutamos contra a morte. Mas o apêgo à vida é algo
totalmente diferente do amor à vida. Isso será ainda mais
evidente se considerarmos o fato de que há um tipo de
personalidade atraída pela morte, destruição e decadência, e
não pela vida. (Hitler é um bom exemplo histórico disso.) Êsse
tipo de caráter pode ser chamado de necrófilo, para usarmos
uma expressão de Unamuno, em sua famosa resposta, em
1936, a um general Franco, cuja frase preferida era “Viva a
morte”.
A atração da morte e destruição pode não ser consciente na
pessoa, não obstante sua presença poder ser deduzida pelos
seus atos. Estrangular, esmagar e destruir a vida dá-lhe a
mesma satisfação que os amantes da vida encontram em fazer
que esta se amplie, cresça, evolua. A necrofilia é uma
verdadeira perversão, a de visar à destruição enquanto
estamos vivos.
O caráter revolucionário pensa e sente de acôrdo com o que
poderíamos chamar de “sentimento crítico” – numa clave
crítica, usando um símbolo musical. O refrão latino De
omnibus est dubitandum (é preciso duvidar de tudo) é parte
muito importante de sua reação ao mundo. Esta tendência
crítica a que me refiro não é, de forma alguma, o cinismo, mas
sim uma percepção da realidade, em contraste com as ficções
feitas para substituir a realidade.78
O caráter não-revolucionário inclina-se, particularmente, a
acreditar nas coisas ditas pela maioria. A pessoa de espírito
Cf. um exame mais detalhado dessa questão em E. Fromm, Meu
Encontro com Marx e Freud. [Publicado por esta editôra, em 1963. – N. dos
E.]
78
crítico reagirá precisamente de forma oposta. Adotará uma
atitude crítica ao ouvir o julgamento da maioria, que é o
julgamento de todos e daqueles que detêm o poder.
Evidentemente,
se
a
maioria
das
pessoas
fôsse
verdadeiramente cristã, como pretende, não teria dificuldade
em manter tal atitude, pois na verdade essa atitude crítica em
relação aos padrões acatados foi adotada por Jesus. E foi
também a de Sócrates, dos profetas e de muitos homens que,
de uma forma ou de outra, reverenciamos. E sómente muito
depois de sua morte – ou seja, depois de estarem
suficientemente mortos, a ponto de não poderem causar
problemas – é que podem ser louvados sem risco.
125
O “espírito crítico” torna a pessoa sensível ao clichê, ao
chamado
bom-senso
que
repete
a
mesma
tolice
indefinidamente, e só tem sentido porque todos o repetem.
Talvez o espírito crítico a que me refiro não seja algo que se
possa definir fàcilmente, mas, se realizarmos experiências
conosco e com outros, descobriremos fàcilmente a pessoa que
o tem.
Como milhões de pessoas, por exemplo, acreditam que pela
corrida atômica a paz pode ser mantida? Tôda a experiência
passada contraria tal suposição. Quantas pessoas acreditam
que se a sirena soar – embora se tenham construído abrigos
nos grandes centros metropolitanos dos Estados Unidos –
poderão salvar-se? Sabem que teriam apenas quinze minutos.
Não é preciso ser alarmista para prever que essa pessoa seria
pisada de morte tentando alcançar as portas do abrigo nesses
quinze minutos. Mesmo assim aparentemente, milhões
acreditam que os nossos famosos abrigos subterrâneos são
capazes de salvá-los de bombas de 50 ou 100 megatons. Por
quê? Porque não têm espírito crítico. Um menino de cinco
anos (crianças dessa idade habitualmente têm uma atitude
mais crítica do que os adultos), ao ouvir a mesma história,
provàvelmente a colocará em dúvida. A maioria dos adultos é
suficientemente “educada” para não ter espírito crítico, e por
isso aceita como “exatas” idéias que são absurdos evidentes.
Além de ter um espírito crítico, o caráter revolucionário tem
uma relação particular com o poder. Não é um sonhador que
não sabe que o poder pode matar, forçar e até mesmo
perverter. Mas tem uma relação particular com o poder, em
outro sentido. Para êle, o poder jamais se torna santificado,
jamais toma o papel da verdade, da moral e do bem. Êsse é
talvez um dos mais importantes, e não o mais importante, dos
problemas de hoje: a relação que as pessoas têm com o poder.
Não é uma questão de saber o que é o poder, nem o problema
de falta de realismo, de subestimar o papel e as funções do
poder. É uma questão de santificar ou não o poder, deixar-se
impressionar moralmente ou não por êle. Quem se
impressiona moralmente pelo poder jamais terá espírito
crítico, jamais será um caráter revolucionário.
126
O caráter revolucionário é capaz de dizer “não”. Ou, em outras
palavras, o caráter revolucionário é capaz de desobediência,
que para ele pode ser uma virtude. Para explicar isso, posso
partir de uma afirmação que parece bastante generalizadora:
a história humana começou com um ato de desobediência e
poderia terminar com um ato de desobediência. Que entendo
por isso? Ao dizer que a história humana começou com um
ato de desobediência, refiro-me à mitologia hebraica e grega.
Na história de Adão e Eva há a ordem divina de não comer a
maçã, e o homem – ou, para sermos justos, a mulher - é capaz
de dizer “não”. É capaz de desobedecer e até mesmo de
convencer o homem a partilhar de sua desobediência. Qual o
resultado? No mito, o homem é expulso do Paraíso - ou seja, o
homem é expulso de uma situação pré-individualista, préconsciente, pré-histórica e, se quisermos, pré-humana, na
qual o poderíamos comparar com a situação do feto no ventre
materno. É expulso do Paraíso e forçado a percorrer a estrada
da história.
Na linguagem do mito, êle não pode voltar. Na verdade, não é
capaz de voltar. Uma vez despertada a consciência de si, uma
vez cônscio de existir como homem individual, distinto da
natureza, êle não pode retornar à harmonia primitiva que
existia antes dessa consciência. Com seu primeiro ato de
desobediência, a história do homem começa, e esse primeiro
ato de desobediência é o primeiro ato de liberdade.
Os gregos usavam um símbolo diferente, o de Prometeu, que
rouba o fogo dos deuses e comete um crime, que comete um
ato de desobediência, e com o ato de levar o fogo para o
homem a história humana – ou a civilização humana – tem
início.
Tanto hebreus quanto gregos mostram que a emprêsa e a
história humana começaram com um ato de desobediência.
E por que digo que a história humana pode terminar com um
ato de desobediência? Infelizmente não falo, nesse caso, de
mitologia, mas da realidade. Se uma guerra atômica destruir,
dentro de dois ou três anos, metade da população humana, e
levar a um período de completa barbarização – ou se isso
acontecer dentro de dez anos e possivelmente destruir tôda a
vida na terra –, isso será provocado por um ato de
desobediência.
127
Ou seja, a obediência dos homens que apertam o botão aos
homens que dão as ordens, e a obediência às idéias que
possibilitam pensar em têrmos dessa loucura.
A desobediência é um conceito dialético, e todo ato de
obediência é ao mesmo tempo um ato de desobediência. Que
quero dizer com isso? Todo ato de desobediência, a menos que
seja uma rebelião ôca, é a obediência a outro princípio.
Desobedeço ao ídolo porque obedeço a Deus. Desobedeço a
César porque obedeço a Deus, ou se falarmos numa
linguagem não-teológica, porque obedeço aos princípios e
valôres, à minha consciência. Posso desobedecer ao Estado
porque obedeço às leis da humanidade. E se obedeço então
realmente serei desobediente em relação a alguma outra coisa.
A questão não é exatamente de desobediência ou obediência,
mas de obediência ou desobediência em relação a quê e a
quem.
Do que disse acima segue-se que o caráter revolucionário, no
sentido em que a expressão está sendo usada aqui, não é
necessàriamente aquêle que se manifesta apenas na política.
Êle existe, na verdade, na política, mas também na religião,
arte e filosofia. Buda, os Profetas, Jesus, Giordano Bruno,
Meister Eckhart, Galileu, Marx e Engels, Einstein, Schweitzer,
Russell são carácteres revolucionários. Encontramos êsse
caráter também no homem que não está em nenhum dêsses
setores, num homem cujo “sim” é “sim” e cujo “não” é “não”,
que é capaz de ver a realidade, tal como o menino na história
de Andersen A Roupa do Imperador. Viu que o imperador
estava nu, e o que disse correspondia ao que via. O século XIX
talvez tenha sido o período no qual era mais fácil reconhecer a
desobediência, porque foi uma época de autoridade clara, na
vida familiar e no Estado. Foi, portanto, uma época de
manifestação do caráter revolucionário. O século XX é um
período bem diferente, e nêle o moderno sistema industrial
criou o homem da organização, um sistema de burocracias
imensas que insistem no funcionamento suave daqueles que
controla – mas antes pela manipulação do que pela força. Os
administradores dessas burocracias afirmam que essa
submissão às suas ordens é voluntária e procuram convencer
a todos, especialmente com a satisfação material que
oferecem, que gostamos de fazer aquilo que nos mandam. O
homem da organização
128
não é aquêle que desobedece, é o que nem sabe que está
obedecendo. Como pode pensar em desobediência, quando
não tem nem mesmo a consciência de ser obediente? É
apenas um dos “rapazes”, um na multidão. É “certo”. Pensa e
faz o que é razoável – mesmo que isso o mate, e a seus filhos e
netos. Portanto, é muito mais difícil para o homem, na idade
industrial burocrática contemporânea, ser desobediente ou
desenvolver um caráter revolucionário do que o era para o
homem do século XIX.
Vivemos numa época em que a lógica dos balanços, a lógica
da produção de coisas, foi estendida à vida dos sêres
humanos, que se tornaram inúmeros, tal como as coisas.
Coisas e homens são hoje quantidades no processo de
produção.
Repetimos: é muito dificil ser desobediente quando não se tem
nem mesmo a consciência de ser obediente. Em outras
palavras, quem pode desobedecer a um computador
eletrônico? Como dizer “não” à filosofia cujo ideal é agir como
um computador eletrônico, sem vontade, sem sentimento, sem
paixão?
A obediência hoje não é reconhecida como obediência, por que
é racionalizada como “bom-senso”, como uma aceitação de
necessidades objetivas. Se é necessário produzir, tanto no
Leste como no Oeste, um armamento fantàsticamente
destruidor, quem poderá desobedecer? Quem se sentiria capaz
de dizer “não” se tudo lhe fôsse apresentado não como um ato
de vontade, mas como um ato de necessidade objetiva?
Há outro aspecto relevante na situação atual. Neste sistema
industrial que, parece-me, se torna cada vez mais parecido no
Ocidente e no bloco soviético, o indíviduo tem um receio
mortal das grandes burocracias, da grandeza de tudo – do
Estado, da burocracia industrial, da burocracia sindical. Não
só tem mêdo como se sente terrivelmente pequeno. Quem é o
Davi que pode dizer “não” a Golias? Quem é o pequeno
homem que pode dizer “não” àquilo que se tornou, em
grandeza e poder mil vêzes maior, a autoridade de há
cinqüenta ou cem anos? O indivíduo está intimidado e aceita
alegremente a autoridade. Aceita as ordens dadas em nome do
bom-senso e da razão, para não sentir que está dominado.
129
Resumindo: entendo como caráter revolucionário não um
conceito ético, mas um conceito dinâmico. Não se é
“revolucionário” nesse sentido caracterológico porque se
pronunciem frases revolucionárias ou se participe de uma
revolução. O revolucionário, nesse sentido, é o homem que se
emancipou dos laços de sangue e solo, da mãe e do pai, das
lealdades para com o Estado, classe, raça, partido, religião. O
caráter revolucionário é humanista no sentido de que se sente
parte de toda a humanidade, e nada que seja humano lhe é
estranho. Ama e respeita a vida. É um cético e um homem de
fé.
É cético porque suspeita das ideologias como disfarce de
realidades indesejáveis. É um homem de fé porque acredita no
que existe potencialmente, embora ainda não tenha nascido.
Pode dizer “não” e ser desobediente precisamente porque pode
dizer “sim” e obedecer a princípios genuinamente seus. Não
está semi-adormecido, mas plenamente acordaddo para as
realidades pessoais e sociais que o cercam. É independente, e
o que é deve aos seus esforços. É livre, e não o servo de
ninguém.
Êsse sumário pode sugerir que descrevi a saúde mental e o
bem-estar, e não o conceito do caráter revolucionário. Na
realidade, a descrição dada reproduz a pessoa sadia, viva,
mentalmente sã. Minha afirmação é a de que a pessoa sadia
num mundo insano, o ser humano plenamente desenvolvido
num mundo aleijado, a pessoa plenamente desperta num
mundo semi-adormecido – é precisamente o caráter
revolucionário.
Quando todos estiverem acordados, não haverá mais profetas
ou caracteres revolucionários – haverá apenas sêres humanos
plenamente desenvolvidos.
A maioria das pessoas, naturalmente, jamais teve caráter
revolucionário. Mas a razão pela qual não vivemos mais nas
cavernas é precisamente por ter havido sempre um número
suficiente de caracteres revolucionários na história humana
para nos tirar das cavernas e de seus equivalentes. Há,
porém, muitos outros que pretendem ser revolucionários
quando na verdade são rebeldes, autoritários ou oportunistas
políticos. Creio que os psicólogos têm uma função importante
no estudo das diferenças de caráter entre êsses vários tipos de
ideólogos políticos. Mas para isso é preciso, receio, ter
algumas das qualidades que procuramos descrever aqui:
devem ter um caráter revolucionário.
130
A MEDICINA E O PROBLEMA ÉTICO DO
HOMEM MODERNO
QUE ENTENDEMOS por ética?
A palavra vem de uma raiz que significa, originalmente,
costume, e chegou a significar a ciência que trata dos ideais
das correlações humanas. Essa confusão entre costume e
ideais ainda existe para muita gente.
A maioria das pessoas pensa hoje, conscientemente, na ética
em têrmos de um ideal, de normas éticas, quando realmente
julgam que o costume ou o hábito é um bem. Nós, porém,
entendemos conscientemente por norma ética um “dever”, e
no inconsciente realmente pensamos que o certo é aquilo que
é aceito. E, como sabemos, o que é aceito é também a solução
mais cômoda, exceto do ponto de vista da nossa consciência.
Por vêzes, a ética se refere apenas ao comportamento, e, nesse
caso, a entendemos como um código – certamente um código
de comportamento desejável. É possível, decerto, dividir a
ética. Falamos da ética médica, da ética comercial, da ética
militar. Em todos êsses exemplos, falamos na realidade de um
código de comportamento relacionado com uma determinada
situação, ou nela válido. Isso é perfeitamente certo, e prefiro
as pessoas que têm um código às que não o têm, e prefiro
bons códigos aos maus. Mas se entendemos por ética o que
significa a expressão na grande tradição filosófica ou religiosa,
ela será então não um código de comportamento válido em
certos setores. Segundo essa tradição, a ética se refere a uma
determinada orientação, arraigada no homem e que, portanto,
não é válida em relação a esta ou aquela pessoa, a esta ou
131
aqqela situação, mas a todos os sêres humanos. Na verdade,
se os budistas estão certos, é válida não sómente em relação
aos sêres humanos, mas a tudo o que vive. A consciência é o
órgão dessa atitude ética. Se falamos da ética no sentido da
grande tradição filosófica e religiosa do Oriente e Ocidente,
então a ética não é um código, mas uma questão de
consciência.
Se aceitarmos êsse ponto de vista, não haverá uma ética
médica. Existe apenas uma ética universal humana aplicada a
situações humanas específicas. Se, por outro lado,
separarmos a ética médica do problema universal da ética,
haverá então o perigo de que a ética médica possa degenerar
num código que, essencialmente, serve para proteger os
interêsses dos médicos contra o interêsse dos clientes.
A essa altura, é oportuno dizer alguma coisa mais sôbre a
consciência. É importante ter presente uma distinção entre a
consciência autoritária e a consciência humanista.79
Consciência autoritária nos parece ser, aproximadamente, o
que Freud entendia pelo superego, expressão hoje muito mais
popular do que “consciência”. A consciência autoritária, ou
superego, é originalmente o poder do pai subjetivado e, mais
tarde, a autoridade da sociedade subjetivada. Ao invés de ter
mêdo dos castigos de meu pai, subjetivei suas ordens de modo
que não tenho de esperar por essa experiência terrível. Ouço
dentro de mim a voz dêle e não corro o risco de qualquer
ocorrência desagradável. Sou advertido antecipadamente,
porque meu pai está dentro de mim. Êsse conceito de
autoridade subjetivada do pai e da sociedade é válido para o
que muita gente considera ser a sua consciência. A explicação
freudiana do mecanismo psicológico parece-me muito
engenhosa e acertada. Surge, porém, uma indagação: será
apenas isso, ou haverá outra, totalmente diferente?
Analisei êsses dois tipos de consciências detalhadamente em Análise do
Homem, 1947. [Publicado por esta editôra, na Biblioteca de Ciências
Sociais. – N. dos E.]
79
Ao segundo tipo de consciência, que não é a autoridade
subjetivada, dei o nome de conciência humanística, referindoa à tradição filosófica ou religiosa humanista. Essa
consciência
132
é uma voz íntima que nos chama de volta a nós mesmos. Por
êsse “nós mesmos” entendo a essência humana comum a
todos os homens, ou seja, certas características básicas do
homem que não podem ser violadas ou negadas sem
consequencias
sérias.
Muitos
cientistas
consideram,
atualmente, um absurdo falar de algo semelhante à “natureza
do homem”. Acham que tudo depende de onde se vive. Se
formos caçadores de cabeças, gostaremos de matar as pessoas
e encolher-lhes o crânio. Se vivermos em Hollywood,
gostaremos de ganhar dinheiro e ver nosso retrato nos jornais,
e assim por diante. Acreditam não haver nada na natureza
humana que nos mande fazer uma coisa e não outra. Os
psicanalistas e psiquiatras, porém, devem pensar de forma
diferente: podem afirmar que existem, na realidade, certos
elementos básicos que são parte da natureza humana e que
reagirão mais ou menos como nosso corpo se suas leis forem
violadas. Se ocorre no corpo um processo patológico,
habitualmente experimentamos dor; e se ocorre um processo
patológico em nossas almas – ou seja, se algo ocorre em
nossas almas que viola algo profundamente enraizado na
natureza
humana,
também
ocorre
uma
reação:
experimentamos um sentimento de culpa. Ora, se a pessoa
não pode dormir, toma pílulas. Se tem dores, pode tomar
outras pílulas. A consciência culpada é tranqüilizada pelas
muitas formas oferecidas pela nossa cultura, com êsse
objetivo. Não obstante, a consciência culpada embora possa
ser inconsciente tem muitos modos de se manifestar, em uma
linguagem por vêzes tão penosa quanto a dor física.
Os médicos e os estudantes de Medicina, como têm de tratar
habitualmente da dor física e dos sintomas físicos, devem
dedicar particular atenção ao que se sabe sôbre a dor mental
e os sintomas mentais. Por exemplo, uma pessoa que nega
completamente o que Albert Schweitzer chamou de reverência
pela vida, que é totalmente cruel, desumana, sem bondade,
sem amor, está no limiar da insânia. Ao prosseguir nesse
caminho, tem receio de enlouquecer, e por vêzes enlouquece
realmente. Apresenta, em certos casos, uma neurose que o
salva da loucura. Até os piores homens da terra precisam de
manter a ilusão – e talvez não seja totalmente uma ilusão – de
que há nêles algo de humano e bom, porque sem isso não se
sentiriam mais humanos, e sim próximos da insanidade.
133
Podemos encontrar fàcilmente exemplos surpreendentes
disso. O Dr. Gustave Gilbert, psicólogo que entrevistou
Goering e outros líderes nazistas prisioneiros, durante um
ano, até o último dia da vida dêles, contou sua experiência.
Diz-nos êle que um homem como Goering lhe implorava para
ir vê-lo todos os dias e dizia: “Veja, não sou tão mau assim.
Não sou tão mau como Hitler; Hitler matou mulheres e
crianças, eu não. Por favor, acredite em mim.” Sabia que ia
morrer. O homem a quem falava era um jovem psicólogo
americano, cuja opinião a seu respeito não podia ter qualquer
conseqüência. Goering não falava para um público, e mesmo
assim não podia suportar a idéia de enfrentar-se,
desaparecido seu poder, como um ser totalmente desumano.
História semelhante é narrada por um representante da
imprensa americana que viveu durante certo tempo em
Moscou sôbre um homem chamado Jagoda, chefe da Polícia
Secreta, antes de ser morto pelos que mais tarde também
seriam mortos. Jagoda era responsável pela morte e tortura de
centenas de milhares de pessoas. Segundo o jornalista,
mantinha próximo de Moscou um orfanato, num dos mais
belos lugares do mundo – os órfãos eram tratados com
liberdade, amor, com tôda a consideração. Certo dia Jagoda
disse a êsse jornalista: “Poderá fazer-me o grande favor de
escrever sôbre o meu orfanato, para uma revista de Nova
Iorque?” O repórter olhou-o, com surprêsa, e o chefe da Polícia
Secreta explicou: “Você compreende, tenho um tio em
Brooklyn, irmão de minha mãe, que lê essa revista. Se ler seu
artigo, escreverá para minha mãe, e eu me sentirei melhor.”
O repórter escreveu a história e em regozijo Jagoda poupou
várias vidas e lhe foi grato até o fim de sua existência.
O problema não era a mãe de Jagoda, mas sua consciência.
Não podia suportar a desumanidade total.
Um psiquiatra vienense que visitou a Alemanha Oriental conta
que os psiquiatras falam, ali, de um colapso neurótico a que
dão o nome de “doença dos funcionários”. Referem-se à
doença que toma a forma de um colapso neurótico em
funcionários comunistas que permanecem longo tempo “em
serviço e que a certa altura não toleram mais. Poderíamos
coligir farto material em todos os países e culturas para
ilustrar o mesmo princípio, ou seja, que não é possível viver
desumanamente tôda a vida sem sofrer reações severas.
134
Citei exemplos da Rússia stalinista e da Alemanha nazista,
mas não quis dizer com isso que não tenhamos problemas
semelhantes nos Estados Unidos, e em todo o mundo
ocidental; nosso problema não é, no caso, de crueldade ou
espírito de destruição, mas de tédio. A vida não tem sentido.
As pessoas vivem, mas não se sentem vivas – a vida corre
como areia. E a pessoa que está viva e, conscientemente ou
não, sabe que não vive, sente repercussões que, se tiver
conservado
uma
pequena
sensibilidade
de
vida,
freqüentemente resultam numa neurose. E são essas pessoas
que consultam hoje os analistas. Em nível consciente,
queixam-se de um casamento ou emprêgo insatisfatório, ou
coisas semelhantes; mas se indagarmos o que se oculta sob
tais queixas, a resposta, habitualmente, é que a vida não tem
sentido. Tais pessoas sentem que vivem num mundo em que
deveriam estar animados, interessados, ativos, e não obstante
se sentem mortas e inumanas.
Para tratar realmente do problema ético do nosso tempo o
problema do homem moderno –, devo começar dizendo que,
embora as normas éticas da conduta humana sejam idênticas
para todos, não obstante cada época e cultura tem seus
problemas particulares. Não buscarei discutir os problemas
das finalidades éticas dos vários períodos, mas sim os
problemas éticos do século XIX e os do século XX.
Os principais problemas éticos, os principais pecados do
século XIX podem, ao que me parece, ser relacionados como
segue: primeiro, a exploração – o homem se alimentava de seu
semelhante; fôsse a exploração do trabalhador, do camponês
ou do negro no Congo ou no Sul dos Estados Unidos, o
homem usava seu semelhante como alimento – não
exatamente de forma canibalística, pois tinha melhor
alimento, mas usava a vida, e a energia de outro homem para
alimentar-se.
O segundo problema moral do século XIX era o autoritarismo
– os homens no poder sentiam que em virtude de sua fôrça
tinham o direito de mandar e limitar os outros homens. Era a
autoridade dos pais sôbre os filhos, tão bem descrita em The
Way of All Flesh, de Butler, a autoridade dos homens sôbre as
mulheres, dos patrões sôbre os trabalhadores, dos Estados
sôbre os territórios, especialmente quando habitados por
gente de côr diferente. O terceiro problema era a desigualdade.
135
Considerava-se certo que pessoas na terra (e até mesmo
dentro da mesma nação) vivessem em circunstâncias
materiais de completa desigualdade – e que os sexos não eram
iguais, que as raças não eram iguais, apesar da suposta
obediência aos preceitos do Cristianismo, que em essência é
uma religião universal baseada no conceito de que somos
todos filhos de Deus.
Outro vício do século XIX, particularmente o da classe média,
foi a sovinice – acumulação, poupança de sentimentos e
coisas. Intimamente relacionada com essa atitude estava o
individualismo egoísta: “meu lar é meu castelo”, “minha
propriedade sou eu”.
Tendemos a considerar tais vícios como peculiares do século
XIX e sentimos que, realmente, progredimos muito mais do
que nossos antepassados. Já não praticamos tais males e nos
sentimos bem. Talvez tôda geração veja assim seus próprios
problemas éticos. Tal como os franceses combateram,
estratègicamente, na Segunda Guerra Mundial com as idéias
da Primeira, também toda pessoa trava sua luta moral em
têrmos da geração precedente. Verá, fàcilmente, como superou
de forma maravilhosa certos vícios, mas não vê que a negação
do que antes existia não é em si uma realização, e que numa
sociedade e cultura em transformação não se reconhecem os
novos vícios devido à sensação de felicidade provocada pelo
desaparecimento dos velhos vícios.
Voltemos aos vícios do século XIX e vejamos o que foi feito
dêles. Não temos hoje, na verdade, o espírito autoritário de
então. As crianças podem “expressar-se” e fazer o que lhes
agrada. Os trabalhadores conversam com psicólogos, aos
quais descrevem seus sentimentos, e nenhum patrão ousaria
agir atualmente como o patrão de há cinqüenta anos. Mas não
temos princípios, não temos nenhum senso de valôres ou
padrão de valôres.
Gostaria de falar, aqui, de um conceito da distinção entre a
autoridade irracional e a racional. Pela primeira entendo a
autoridade baseada na fôrça, física ou emocional, e cuja
função é a exploração de outras pessoas, materialmente,
emocionalmente ou de qualquer outra forma. A autoridade
racional é a autoridade baseada na competência e cuja função
é ajudar a outra
136
pessoa a realizar determinada tarefa. Creio que essas
autoridades estão muito confundidas, hoje. Se Joãozinho diz à
mãe “dois e dois são cinco”, ela poderá julgar que lhe está
inibindo a liberdade de expressão se insistir em que dois e
dois são quatro. Se fôr muito sofisticada, ela poderá até
mesmo justificar-se com o raciocínio de que os sistemas
matemáticos não são absolutos, de qualquer modo, de forma
que “meu Joãozinho, no final das contas, tem razão”.
Quando lembramos o ensaio de Thoreau, A Vida Sem
Princípios, escrito há cem anos, podemos ter dificuldades em
acreditar que se trata de um problema do século XX.
Evidentemente, já era um problema no século XIX. Mas se
isso ocorria na época de Thoreau, ocorre hoje com intensidade
ainda muito maior. que Thoreau viu, com grande
sensibilidade, foi que as pessoas tinham opiniões, mas não
convicções, que tinham fatos, mas não princípios. Essa
evolução
continuou,
até
assumir
hoje
proporções
assustadoras e, creio, também um papel assustador na
educação. A educação progressista era uma reação contra o
autoritarismo do século XIX, e, como desafio, era uma
realização construtiva. Mas juntamente com certas outras
tendências em nossa cultura, deteriorou num laissez-faire no
qual não se reconhece nenhum princípio, nenhum valor é
formulado, nem existe qualquer hierarquia. Penso não numa
hierarquia de poder, mas numa hierarquia de conhecimento e
respeito pelos que são mais bem informados. Hoje,
enfrentamos a suposição dogmática de que a espontaneidade,
originalidade e individualismo estão necessàriamente em
conflito com a autoridade racional e um sentido de aceitação
de padrões. Um corretivo útil para essa atitude seria o
conhecimento da arte de atirar com arcos, do Zen, que tende a
combinar atitudes aparentemente contraditórias.80
Quanto ao segundo vício, o do entesouramento, certamente
não entesouramos hoje em dia. Isso provocaria uma catástrofe
137
nacional. Nossa economia é baseada no consumo, no
dispêndio. E, naturalmente, tais transformações morais são,
freqüentemente, conseqüência de certas modificações
econômicas. Nossa indústria de publicidade é um apêlo
constante ao dispênndio e não à poupança. Que fazemos,
então? Praticamos o consumo incessante, pelo próprio
consumo. Sabemos de tudo isso, não é necessário discuti-lo.
Cf. o fascinante livro de Eugen Herrigel, Zen in the Art of Archery (N.
York, 1943), no qual o autor – filósofo alemão – descreve suas experiências
no estudo dessa arte Zen, em Tóquio, durante sete anos.
80
Uma caricatura em The New Yorker mostra bem isso: dois
homens olham um carro nôvo. Um dêles diz: “Não gosto de
rabo-de-peixe, você não gosta de rabo-de-peixe, mas imaginou
o que aconteceria à economia americana se ninguém gostasse
de rabo-de-peixe?” Na realidade nosso perigo não é o de
acumular, mas é igualmente grande – somos os consumidores
eternos, recebendo, recebendo, recebendo. Oito horas por dia,
qualquer que seja a nossa situação, trabalhamos. Somos
ativos. Em nossos momentos de lazer, porém, somos
completamente
preguiçosos,
com
a
passividade
de
consumidores. A atitude de consumidor passou, agora, do
campo da Economia para invadir cada vez mais a esfera da
vida diária. Consumimos cigarros e coquetéis, livros e
televisão; parecemos procurar a grande mamadeira que nos
proporcione a alimentação total. E por vêzes consumimos
tranqüilizantes.
A desigualdade é o terceiro vício que julgamos ter superado.
Realmente, a desigualdade que existia e era permitida no
século XIX está desaparecendo. Apesar do muito que resta ser
feito, o observador objetivo se impressionará com o progresso
obtido no sentido de uma igualdade de raças na América,
especialmente no período transcorrido desde a Segunda
Guerra Mundial. O progresso no sentido da igualdade
econômica nos Estados Unidos também tem sido considerável.
Mas a que nos levará isso? Deformamos a noção de igualdade,
transformando-a numa noção de “semelhança”. Que
significava o conceito de “igualdade” na grande tradição
humanista? Significava que somos iguais num sentido: o de
que todo homem é em si uma finalidade e não deve constítuirse em meio para os objetivos de ninguém. Igualdade é a
condição na qual nenhum homem deve ser transformado em
meio, mas sim todo homem deve permanecer como um fim em
si mesmo, a despeito de sua idade, côr, sexo. Foi essa a
definição humanística da igualdade que representa a base, na
verdade, para o desenvolvimento das diferenças.
138
Sómente se pudermos ser diferentes sem estarmos ameaçados
de tratamento desigual, sómente então seremos iguais.
Mas, que fizemos nós? Transformamos o conceito de
igualdade no conceito de semelhança. Na verdade, temos
mêdo de ser diferentes porque temos mêdo de não ter direito
de estarmos aqui, se formos diferentes. Indaguei recentemente
a um homem de seus trinta anos por que tinha mêdo de fazer
algo digno em sua vida, de viver intensamente e com ímpeto.
Depois de refletir um momento, respondeu-me: “Tenho
realmente mêdo porque isso significaria ser muito diferente.”
Infelizmente, acredito que isso ocorra com muitas pessoas.
Êsse conceito de igualdade, que tem todo o prestígio, tôda a
dignidade de um grande conceito filosófico e humanístico, é
mal empregado num dos mais degradantes, inumanos e
perigosos aspectos de nossa cultura, ou seja, o da
semelhança, que significa a perda de individualidade.
Podemos vê-lo perfeitamente nas relações entre os sexos.
Verifica-se nos Estados Unidos que os sexos se tornaram
“iguais” a um ponto em que a polaridade entre êles
desapareceu, e a fagulha criadora que só se produz com a
polaridade dos opostos desapareceu. Mas, a menos que essa
polaridade possa existir, não pode haver criatividade, pois é
com o encontro de dois pólos que a centelha criadora pode
surgir.
Nessa transformação dos vícios do século XIX em vícios do
século XX – que são chamados de virtudes – devemos notar
também a considerável eliminação do individualismo e da
exploração egocêntrica. Em nenhum outro país do mundo, a
exploração desapareceu nas mesmas proporções em que nos
Estados Unidos. Os economistas dizem que, dentro de um
prazo relativamente curto, os resultados serão ainda mais
fantásticos do que hoje. O individualismo egocêntrico
pràticamente não existe – ninguém quer ficar só, todos
querem estar em companhia de outros, as pessoas ficam em
pânico com a possibilidade de estarem sós, mesmo por pouco
tempo. Tais vícios desapareceram, mas quais os surgidos em
seu lugar? O homem sente-se, e sente os outros, como coisas
– meras mercadorias. Experimenta a energia vital como um
capital a ser investido para obtenção de lucro, e ao lucro dá o
nome de êxito. Fazemos máquinas que agem como homens e
produzimos
139
homens que agem como máquinas. O perigo do século XIX foi
o de nos tornarmos escravos; o perigo do século XX não é o de
sermos escravos, mas robôs.
Originalmente, tôda a nossa produção material era um meio
para a realização de um fim. Um meio para a finalidade de
maior felicidade – e é o que ainda afirmamos. Mas, na
realidade, a produção material tornou-se um fim em si
mesma, e não sabemos realmente que fazer com ela. Vejamos
apenas um exemplo; o desejo de poupar tempo. Quando
temos o tempo poupado, ficamos sem saber o que fazer dêle, e
buscamos meios e formas de matá-lo. E recomeçamos a
poupar o tempo. O homem, em nossa cultura, julga-se não
um elemento ativo, não o centro de seu mundo, não um
criador de seus próprios atos, mas antes uma coisa
impotente. Seus atos e suas conseqüencias se transformam
em seus senhores. Veja-se o símbolo ou talvez a realidade
terrível – da bomba atômica. O homem adora os produtos de
suas próprias mãos, os líderes que êle mesmo faz, como se lhe
fôssem superiores, e não criações dêle. Acreditamos que
somos cristãos ou judeus ou o que quer que seja, mas na
verdade caímos no estado de idolatria cúja melhor descrição
ainda se encontra nos profetas. Não oferecemos sacrifícios a
Baal ou Astarde, mas adoramos as coisas: produção, êxito;
somos ingênuamente inconscientes de que somos idólatras, e
pensamos ser sinceros ao falarmos de Deus. Certas pessoas
chegam a tentar combinar a religião e materialismo, até que a
religião se transforma no método de obter maior êxito por si
mesmo, sem ajuda do psiquiatra. Na verdade, as coisas se
tornaram os objetivos da preocupação final. E qual o
resultado? O resultado é que o homem está vazio, infeliz,
entediado.
Quando falamos do tédio, as pessoas pensam, naturalmente,
que êle não é agradável, mas não o consideram como
problema sério. Estou convencido de que o tédio é uma das
maiores torturas. Se tivéssemos de imaginar o Inferno, para
nós seria o lugar onde estivéssemos continuamente
entediados. Na verdade, as pessoas fazem um esfôrço fanático
para evitar o tédio, correndo de uma coisa para a outra,
porque tal sensação é insuportável. Quem tem a “sua”
neurose e o “seu” analista, isso o ajuda a sentir-se menos
entediado. Mesmo que tenha ansiedade
140
e sintomas compulsivos, êstes pelo menos são interessantes.
Na verdade, estou convencido de que uma das motivações
dessas coisas é a fuga ao tédio.
Creio que a frase “o homem não é uma coisa” constitui o
tópico central do problema ético do homem moderno. O
homem não é uma coisa, e, se tentarmos transformá-lo nisso,
podemos arruiná-lo. Ou, citando Simone Weil: “O poder é a
capacidade de transformar o homem numa coisa porque
transformamos um ser vivo num cadáver.” O cadáver é uma
coisa. O homem, não. O poder final – o poder de destruir – é
exatamente o poder final de transformar a vida numa coisa.
O homem não pode ser montado e desmontado novamente,
como as coisas. A coisa é previsível, o homem não. A coisa não
pode criar, o homem pode. A coisa não tem eu, o homem tem.
O homem tem a capacidade de dizer a palavra mais peculiar e
difícil da língua, “eu”. As crianças só relativamente tarde
aprendem essa palavra, mas depois disso dizem, sem
hesitação, “eu acho”, “eu penso”, “eu faço”. E se examinarmos
o que estamos realmente dizendo – a realidade do que
afirmamos – verificaremos que isso não é verdade. Seria muito
mais acertado dizer “algo pensa em mim”, “algo sente em
mim”. Se, ao invés de perguntarmos a uma pessoa “como
vai?”, perguntamos “quem és?”, ela se surpreenderá. Qual a
primeira resposta que dará? Primeiro, seu nome, mas o nome
nada tem a ver com a pessoa. Em seguida, diria: “eu sou
médico, sou casado, pai de dois filhos”. Tais qualidades
poderiam também ser atribuídas a um carro – é um sedã de
quatro portas, ete.
O carro não pode dizer “eu”. O que a pessoa oferece como
descrição de si mesma é, na realidade, uma lista das
qualidades de um objeto. Pergunte-se a alguém, ou a nós
mesmos, quem somos, quem é esse “eu”. O que queremos
dizer quando usamos a expressão “eu acho”? Achamos ou
sentimos realmente, ou algo em nós sente? Sentimo-nos
realmente como o centro do mundo, não um centro
egocêntrico, mas no sentido de que somos “originais”, e por
isso quero dizer que os pensamentos e os sentimentos se
originam em nós? Se nos sentarmos por quinze ou vinte
minutos, pela manhã, e tentarmos não pensar em nada, mas
esvaziar nossa mente, veremos como nos é difícil ficar
sózinhos conosco e ter um sentimento de que “isso sou eu”.
141
Quero mencionar mais um ponto que se refere à diferença
entre conhecer as coisas e conhecer o homem. Posso estudar
o cadáver ou um órgão, e isso é uma coisa. Posso usar meu
intelecto, e meus olhos também, bem como minhas máquinas
e ferramentas, para estudar essa coisa. Mas se quero
conhecer o homem, não posso estudá-lo dessa forma. É claro
que posso tentar, e escrever algo sôbre a freqüência dêste ou
daquele comportamento e sobre a porcentagem desta ou
daquela característica. Grande parte da ciência da Psicologia
se ocupa disso, mas, ao fazê-lo, trata o homem como uma
coisa. O problema do psiquiatra e do psicanalista, porém, é o
problema de que todos nos devíamos ocupar – compreender
nossos vizinhos e a nós mesmos é o mesmo que compreender
que o ser humano não é uma coisa. O processo dessa
compreensão não pode ser realizado pelo mesmo método no
qual o conhecimento das Ciências Naturais pode ser obtido. O
conhecimento do homem só é possível no processo de
relacionarmo-nos com êle. Sómente se eu me relacionar com o
homem a quem quero conhecer, sómente no processo de nos
relacionarmos com outro ser humano, poderemos realmente
saber alguma coisa sôbre êle. O conhecimento final sôbre
outro ser humano não pode ser expresso em pensamentos ou
palavras – tal como não podemos explicar a alguém como é o
gosto do vinho do Reno. Poderíamos tentar durante cem anos,
mas jamais tal gôsto seria conhecido sem provar o vinho. E
jamais podemos esgotar a descrição de uma personalidade, de
um ser humano, em sua plena individualidade. Mas podemos
conhecê-lo num ato de empatia, num ato de experiência
plena, num ato de amor. Tais são as limitações da Psicologia
científica, ao que me parece, quando tem como objetivo a
plena compreensão dos fenômenos humanos, pela palavra ou
pelo conteúdo do pensamento. É da maior importância para o
psiquiatra e o psicanalista saber que sómente nessa atitude
de correlação êle pode compreender alguém, e isso me parece
também muito importante para o clínico-geral.
O paciente, portanto, deve ser visto como um ser humano, e
não apenas como “uma enfermidade”. O médico é treinado
numa atitude científica, na qual observa, como se observa no
estudo das Ciências Naturais. Para compreender seu paciente,
142
porém, e não tratá-lo como coisa tem de aprender outra
atitude que é própria da ciência do homem: como relacionarse, na qualidade de ser humano, com outro ser humano,
usando a concentração e a mais completa sinceridade. A
menos que isso se faça, tôdas as frases sôbre o paciente como
pessoa serão apenas conversa fiada.
Quais são, portanto, as exigências éticas de nossa época?
Primeiramente, superar essa “condição de coisa” – ou, usando
um têrmo técnico, a “reificação” do homem. Superar o
conceito de nós mesmos e dos outros como coisas, a nossa
indiferença, nossa alienação em relação aos outros, à
natureza e a nós mesmos. Segundo, para chegarmos outra vez
a um nôvo senso do “eu”, a uma experiência do “eu sou”, ao
invés de sucumbirmos ao sentimento de automato no qual
temos a ilusão de que “eu sou o que penso”, quando na
realidade eu não penso, sendo na verdade como a pessoa que
coloca o disco na vitrola e julga estar tocando a música.
Outra finalidade que podemos mencionar é a de tornar-se
criador. Que é a criatividade? Poderia significar a capacidade
de criar pinturas, romances, quadros, obras de arte, idéias.
Decerto, isso é uma questão de aprendizado e de ambiente e,
parece-me, também de genes. Mas há outra criatividade que é
uma atitude, uma condição atrás de tôda a criatividade no
primeiro sentido. Enquanto o primeiro tipo de criatividade é a
capacidade de transmitir a experiência criadora ao plano
material, à criação de algo que se pode expressar na tela ou
em qualquer outro meio, a criatividade no segundo sentido
refere-se a uma atitude que pode ser definida simplesmente:
estar consciente e reagir. Isso parece muito simples, e pareceme que a maioria das pessoas dirá “evidentemente, estou
pronto a reagir, a corresponder”. Ter consciência significa ter
realmente consciência – do que uma pessoa realmente é, ter
consciência de que uma rosa é uma rosa é uma rosa, como
disse Gertrude Stein –, ter consciencia de uma árvore e não
ter consciência dela como algo que se enquadra no conceito da
palavra árvore, como a maioria das pessoas habitualmente
faz.
Darei um exemplo. Certo dia, uma mulher que eu estava
analisando chegou à consulta muito entusiasmada. Estivera
descascando ervilhas na cozinha. Disse-me: “Pela primeira vez
na
143
minha vida senti que as ervilhas podem rolar.” Ora, todos
sabemos disso, desde que elas estejam sôbre uma superfície
lisa. Sabemos que uma bola ou qualquer outro objeto redondo
rola; mas o que realmente sabemos? Sabemos, em nossa
mente, que um objeto redondo, sôbre a superfície lisa, rola.
Vemos o fenômeno e afirmamos que os fatos correspondem ao
que sabemos; mas isso é muito diferente da experiência
criadora de ver realmente o movimento. As crianças procedem
assim. É por isso que podem brincar repetidamente com uma
bola, porque não se entediam, porque não pensam nela,
apenas a vêem e a experiência é tão maravilhosa que podem
vê-las muitas vêzes.
Essa capacidade de ter consciência da realidade de uma
pessoa, de uma árvore, de alguma coisa, de corresponder a
essa realidade, é a essência da criatividade. Creio que um dos
problemas éticos de nossa época é educar os homens, as
mulheres e a nós mesmos para que tenhamos consciência, e
para reagirmos. Outro aspecto disso é a capacidade de ver; ver
o homem no ato da relação, e não vê-lo como objeto. Em
outras palavras, devemos lançar as bases de uma nova ciência
do homem na qual êle seja compreendido não sómente com o
método das Ciências Naturais, que tem seu lugar adequado, e
se aplica também a muitos campos da Antropologia e da
Psicologia, mas também no ato do amor, no ato da empatia,
no ato de vê-lo como homem. Mais importante do que todos
êsses fins é a necessidade de colocar o homem novamente no
controle, de fazer que os meios sejam novamente meios e os
fins sejam novamente fins, de reconhecer que nossas
realizações no mundo do intelecto e da produção material só
têm sentido se forem meios para um fim: o pleno nascimento
do homem, ao se tornar êste plenamente humano.
É fácil, por certo, dizer que os médicos são parte dessa cultura
e sociedade, e sofrem dos mesmos problemas e defeitos de
todos os demais. Devido à natureza de seu trabalho, porém,
devem relacionar-se com seus pacientes; precisam aprender
não sómente o método da Ciência Natural, mas também o da
ciência do homem. É fato estranho que os médicos sejam
diferentes; a profissão médica é um anacronismo em relação
ao seu método de trabalho. Refiro-me à diferença entre a
produção artesanal e a produção industrial. Na produção
artesanal, tal
144
como existia na Idade Média, o homem fazia seu trabalho
sózinho. Poderia ter um ajudante, ou aprendiz, ou alguém que
o ajudasse, que limpasse o chão, aplainasse a madeira. Mas a
tarefa essencial era feita por êle. Na moderna produção
industrial, temos o oposto. Temos o princípio de um alto grau
de divisão do trabalho. Ninguém faz a totalidade do produto.
Os responsáveis organizam o todo, mas não o fazem; e os que
fazem o trabalho específico jamais vêem o todo.Tal é o método
da produção industrial.
O método de trabalho do médico é ainda o do artesão. Pode ter
alguns assistentes, pode ter êste ou aquêle equipamento, mas
com exceção de uns poucos que procuram introduzir os
métodos industriais na prática da medicina, a maioria dos
médicos ainda age como artesã. São êles que vêem o paciente
e assumem a responsabilidade. Além disso, há outra
diferença. Todos falam hoje que trabalham para ganhar
dinheiro. Compreendo que os médicos ainda pretendem que
tal não é realmente a principal razão de seu trabalho, que
agem no interêsse do paciente, e só incidentalmente ganham
dinheiro. O artesão da Idade Média tinha a mesma atitude.
Naturalmente, ganhava dinheiro, mas trabalhava, por amor à
arte, e muitas vezes preferia uma recompensa menor a um
trabalho entediante. A profissão médica é ainda uma vez.
anacrônica, talvez ainda menos realista sob êsse aspecto do
que no caso do seu processo de trabalho.
Isso pode ter duas conseqüências. Pode prestar-se à hipocrisia
de proclamar idéias que são tradicionais sem que exista um
sentimento de fidelidade a tais idéias.
Mas há também a possibilidade de que os médicos,
exatamente porque seu método de trabalho ainda não foi
despersonalizado, porque ainda constitui um trabalho no
sentido artesanal, tenham maiores possibilidades que os
homens de qualquer outra profissão. Essas possibilidades
existem desde que êles reconheçam a oportunidade – a de
ajudarem a nos guiar a um nôvo caminho de humanismo, a
uma nova atitude de compreensão do homem, que envolve a
consciência, pelo médico e pelo paciente, de que o homem não
é uma coisa.
145
DAS LIMITAÇõES E PERIGOS DA
PSICOLOGIA
A CRESCENTE popularidade da Psicologia, em nossos dias, é
recebida por muitos como um indício promissor de que nos
aproximamos do postulado délfico do “Conhece-te a ti
mesmo”. Sem dúvida, há certa razão nessa interpretação. A
idéia do autoconhecimento tem raízes na tradição judaicocristã. É parte da atitude do Iluminismo. James e Freud
tinham raízes profundas nessa tradição, e indubitàvelmente
ajudaram a transmitir êsse aspecto positivo da Psicologia à
nossa era presente. Mas tal fato não nos deve levar a
desconhecer outros aspectos do interêsse contemporâneo pela
Psicologia,
que
são
perigosos
e
prejudiciais
ao
desenvolvimento espiritual do homem. É dêsses aspectos que
nos ocuparemos agora.
O conhecimento psicológico adquiriu uma função particular
na sociedade capitalista, função e sentido totalmente diversos
dos implícitos na frase “Conhece-te a ti mesmo”.
A sociedade capitalista se centraliza em tórno do
mercantilismo – do mercado de produtos e do mercado de
trabalho – onde os artigos e serviços são trocados livremente,
independente de padrões tradicionais e sem fôrça ou fraude.
Ao invés disso, o conhecimento do cliente torna-se de
principal importância para o vendedor. Se isso ocorria há
cinqüenta ou cem anos, a significação do conhecimento do
comprador aumentou cem vêzes nas décadas recentes. Com a
crescente concentração de emprêsas e capitais, torna-se cada
vez mais importante saber antecipadamente os desejos do
comprador, não só conhecê-los como influenciá-los e
manipulá-los. O investimento de capital na escala das
modernas emprêsas gigantes não é feito por “intuição”, mas
depois de uma exaustiva investigação e manipulação
146
do comprador. Além dêsse conhecimento do cliente
(“psicologia do mercado”), surgiu um nôvo campo da
Psicologia, baseado no desejo de compreender e manipular o
trabalhador e o funcionário. Esse nôvo setor é denominado de
“relações humanas”. É o resultado lógico da modificação de
relações entre o capital e o trabalho. Ao invés da simples
exploração, há a cooperação entre as gigantescas emprêsas e
a burocracia do trabalhismo e do sindicalismo, tendo ambas
chegado à conclusão de que, a longo prazo, é mais útil fazer
concessões do que se combaterem mutuamente. Além disso,
verificou-se também que um operário satisfeito, “feliz”,
trabalha melhor e contribui mais para o funcionamento suave
necessário às grandes emprêsas. Usando o interêsse popular
pela Psicologia e pelas relações humanas, o operário e o
funcionário são estudados e manipulados pelos psicólogos. O
que Taylor fêz pela racionalização do trabalho físico, os
psicólogos estão fazendo para o aspecto mental e emocional do
trabalhador. Êste é transformado numa coisa e tratado e
manipulado como coisa; as chamadas “relações humanas”
são, na realidade, as mais inumanas, porque são “reificadas” e
alienadas.
Da manipulação do comprador, do operário e do funcíonário,
o interêsse da Psicologia difundiu-se à manipulação de todos,
tal como se vê claramente na política. A idéia da democracia
centralizava-se, a princípio, em tôrno do conceito de cidadãos
capazes de discernir e ter responsabilidades, mas, na prática,
ela se tornou cada vez mais influenciada pelos métodos de
manipulação, desenvolvidos inicialmente na pesquisa do
mercado e nas “relações humanas”.
Embora tudo isso seja bem conhecido, desejo agora examinar
um problema mais sutil e difícil, relacionado com o interêsse
pela psicologia individual, especialmente com a grande
popularidade da Psicanálise.
A questão, é:
Até que ponto a Psicologia (conhecimento dos outros e de si mesmo)
é possível? Quais os limites dêsse conhecimento e quais os perigos
se tais limites não forem respeitados?
Sem dúvida, o desejo de conhecer nosso próximo e a nós
mesmos corresponde a uma necessidade profunda dos sêres
humanos. O homem vive dentro de um contexto social.
Necessita relacionar-se com outros homens, pois de contrário
enlouquecerá.
147
O homem é dotado de razão e imaginação. Seu próximo e êle
mesmo constituem um problema que não pode deixar de
resolver, um segrêdo que deve tentar descobrir.
A tentativa de compreender o homem pelo pensamento é
chamada de “Psicologia” ou “o conhecimento da alma”.
Psicologia, nesse sentido, é uma tentativa de compreender as
fôrças subjacentes ao comportamento do homem, a evolução
do caráter do homem e as circunstâncias que determinam tal
evolução. Em suma, a Psicologia procura dar uma explicação
racional da essência mais íntima da alma individual. Mas o
conhecimento racional completo só é possível em relação às
coisas que podem ser dissecadas sem serem destruídas,
podem ser manipuladas sem prejuízo de sua natureza mesma,
podem ser reproduzidas. O homem não é uma coisa, não pode
ser dissecado sem ser destruído, não pode ser manipulado
sem ser prejudicado, não pode ser reproduzido artificialmente.
Conhecemos nosso próximo e a nós mesmos, e não obstante
não conhecemos nem a êle nem a nós mesmos, porque não
somos coisas, e nosso próximo não é uma coisa. Quanto mais
fundo descemos em nosso ser ou no ser de alguém, mais nos
foge o objetivo de conhecer plenamente êsse alguém. Mesmo
assim, não podemos deixar de penetrar no segrêdo da alma do
homem, no núcleo que constitui o “êle”.
Que é, então, conhecer a nós mesmos ou conhecer outra
pessoa? Em resumo, conhecer-nos significa superar as ilusões
que temos sôbre nós mesmos; conhecer nosso próximo
significa superar as “deformações paratáxicas” (transferência)
que temos a respeito dêle. Todos nós sofremos, em proporções
diferentes, de ilusões a nosso respeito. Estamos envoltos pelas
fantasias sôbre nossa onisciência e onipotência, que quando
crianças nos pareciam perfeitamente reais. Racionalizamos
nossas motivações más como frutos da benevolência, dever ou
necessidade; racionalizamos nossa fraqueza e mêdo como o
serviço a boas causas, nossa falta de relações como resultado
da falta de correspondência dos outros. Com nosso próximo,
deformamos e racionalizamos outro tanto, fazendo-o porém na
direção oposta. Nossa falta de amor faz com que êle pareça
hostil, quando simplesmente é tímido; nossa submissão o
transforma num monstro dominador, quando êle está
simplesmente se afirmando;
148
nosso mêdo da espontaneidade faz com que êle pareça
infantil, quando está realmente sendo criança e espontâneo.
Conhecer mais a nosso respeito significa eliminar os muitos
véus que nos ocultam, e tornar possível ver nossos vizinhos
com clareza. Um véu após outro é levantado, uma deformação
após outra é corrigida.
A Psicologia pode mostrar-nos o que o homem não é. Não nos
pode dizer o que cada homem, cada um de nós, é. A alma do
homem, a essência singular de cada pessoa, jamais pode ser
apreendida e descrita adequadamente. Só pode ser
“conhecida” na medida em que não fôr erradamente
concebida. A finalidade legítima da Psicologia, portanto, é
negativa: a eliminação das deformações e ilusões; e não
positiva, que seria o pleno e completo conhecimento do ser
humano.
Há, porém, outro caminho ao conhecimento do segrêdo do
homem: não o do pensamento, mas do amor. O amor é a
penetração ativa da outra pessoa, na qual o desejo de
conhecer é aplacado pela união. (É o amor no sentido bíblico
de daath contra ahaba.) No ato da fusão, conhecemos o
próximo, conhecemo-nos a nós mesmos, conhecemos a todos
– e nada “conhecemos”. Só sei de uma forma pela qual o
conhecimento do que vive é possível ao homem – pela
experiência da união, não por qualquer conhecimento que
nosso pensamento possa ter. A única possibilidade do
conhecimento pleno está no ato do amor; êsse ato transcende
o pensamento, transcende as palavras. É o mergulho ousado
na essência de outro – ou na minha própria essência.
O conhecimento psicológico pode ser uma condição para o
conhecimento total no ato do amor. Tenho de conhecer a
outra pessoa e a mim mesmo objetivamente, a fim de poder
ver sua realidade, ou antes, a fim de superar as ilusões, a
imagem irracionalmente deformada que tenho dela. Se
conheço um ser humano tal como êle é, ou antes, se sei o que
êle não é, então posso conhecê-lo em sua essência última,
através do ato do amor.
O amor é uma realização difícil. Como tenta o homem que não
conhece o amor penetrar no segrêdo de seu vizinho? Há outro
caminho, desesperado, para isso: o do completo poder
149
sôbre outra pessoa, o poder que a leva a fazer o que desejo,
sentir o que quero, pensar o que penso – que a transforma
numa coisa de minha propriedade. O grau mais extremo
dessa tentativa de conhecer está no sadismo, no desejo de
fazer sofrer um ser humano, torturá-lo, forçá-lo a trair seu
“segrêdo” pelo sofrimento, ou finalmente destruí-lo. Na ânsia
de penetrar o segrêdo do homem está a motivação essencial
da busca do que há de mais profundo e intenso na crueldade
e na destruição. Um autor russo, Isaac Babel, expressou tal
idéia de forma muito sucinta. Cita um companheiro, oficial na
guerra civil russa, que havia pisoteado um antigo senhor até
matá-lo, reproduzindo-lhe as seguintes palavras: “Com um
tiro – é o que me parece –, com um tiro apenas nos livramos
da pessoa... com o tiro jamais chegamos à alma, onde está a
pessoa e como se revela. Mas não quero poupar-me, e por
mais de uma vez pisei um inimigo durante mais de uma hora.
Você compreende, quero saber o que a vida é realmente, o que
ela representa em nosso caminho.”81
Embora o sadismo e o desejo de destruir sejam motivados pelo
desej o de forçar o segrêdo do homem, tal caminho jamais
pode alcançar o objetivo pretendido. Fazendo sofrer o próximo,
aumento a distância entre mim e êle, a um ponto em que o
conhecimento se torna impossível. O sadismo e a destruição
são tentativas deformadas, desesperadas e trágicas, de
conhecer o homem.82
O problema de conhecer o homem tem um paralelo no
problema teológico de conhecer Deus. A teologia negativa
postula que não posso fazer nenhuma afirmação positiva
sôbre Deus.
150
Só podemos conhecer de Deus aquilo que Êle não é. Como diz
Maimônides, quanto mais sei sôbre o que Deus não é, mais
sei sôbre Êle. Ou como afirma Meister Eckhad: “Enquanto
isso, o homem não pode saber o que Deus é, embora conheça
perfeitamente o que Deus não é.” Uma conseqüência dessa
teologia negativa é o misticismo. Se não posso ter pleno
conhecimento de Deus no pensamento, se a teologia é, na
melhor das hipóteses, negativa, o conhecimento positivo de
Deus só pode ser conseguido pelo ato de união com Êle.
“The Life and Adventures of Matthew Pavliehenko”, Isaac Babel, The
Collected Stories (N. York, 1955, pág. 106), traduzidas para o inglês por
Walter Morison.
82 Nas crianças, vemos freqüentemente às claras êsse caminho para o
conhecimento, e como parte do seu desejo normal de orientar-se num
mundo de realidade fisica. A criança. toma a coisa e a desmancha, para
conhecê-la; ou “desmancha” um animal, separa, cruelmente, as asas de
uma borboleta para conhecê-la, forçar seu segrêdo. A crueldade aparente é
motivada por algo mais profundo: o desejo de conhecer o segrêdo das
coisas e da vida.
81
Traduzindo êsse princípio ao campo da alma humana,
poderíamos falar de uma “psicologia negativa”, e, mais ainda,
que o pleno conhecimento do homem pelo pensamento é
impossível, e que o pleno conhecimento só pode ocorrer com o
ato do amor. Tal como o misticismo é a conseqüência lógica da
teologia negativa, o amor é a conseqüência lógica da psicologia
negativa.
Mostrar as limitações da Psicologia é mostrar o perigo
resultante da ignorância dessas limitações. O homem
moderno é solitário, tem mêdo e pequena capacidade de amar.
Quer estar próximo de seu vizinho, e ao mesmo tempo está
muito desligado e muito distante para poder estar próximo.
Seus laços marginais para com o próximo são muitos e
mantidos com facilidade, mas a “relação central”, de íntimo a
íntimo, dificilmente existe. Em busca da aproximação êle
deseja conhecimento, e na busca dêste encontra a Psicologia,
que se torna um substituto do amor, da intimidade, da união
com os outros e consigo mesmo. Torna-se o refúgio do homem
solitário, alienado, e não um passo na direção do ato de união.
Essa função da Psicologia como substituto torna-se evidente
no fenômeno da popularidade da Psicanálise, que pode ser
extremamente útil na correção de deformações paratáxicas
dentro de nós mesmos e em relação ao nosso próximo. Pode
desfazer uma ilusão após outra, e assim libertar o caminho
para o ato decisivo que sómente nós podemos realizar: a
“coragem de ser”, o pulo, o ato de compromisso final. O
homem, após seu nascimento físico, sofre um processo
contínuo de nascimento. A saída do ventre materno é o
primeiro estágio do nascimento; deixar-lhe o seio é o segundo;
o braço, o terceiro. A partir de então, o processo de
nascimento pode parar; a pessoa pode desenvolver-se de
forma ajustada socialmente, tornar-se útil e
151
continuar natimorta, no sentido espiritual. Para que se
desenvolva até aquilo que potencialmente é como ser humano,
tem de continuar a nascer, ou seja, tem de continuar a
eliminar os laços originais com o solo e o sangue. Tem de
passar de um ato de separação ao ato seguinte. Deve abrir
mão de certas defesas e passar ao ato de compromisso,
preocupação, amor. Acontece freqüentemente no tratamento
psicanalítico um acôrdo tácito entre o analista e o paciente, na
suposição de que a Psicanálise é um método para alcançar a
felicidade e maturidade, e mesmo assim evitar o pulo, o ato, a
dor da separação. Levando um pouco mais longe a analogia
com o pulo, a situação psicanalítica assemelha-se, por vêzes,
à do homem que quer aprender a nadar, mas sente-se
aterrorizado pelo momento em que tem de pular na água e,
confiar no seu poder de locomover-se nela. Permanece na
margem da piscina e ouve seu instrutor explicar-lhe os
movimentos que tem de fazer; isto é necessário e bom; mas se
o aluno prossegue, falando, ouvindo e falando, começamos a
desconfiar que falar e compreender transformaram-se num
substituto do temido ato. Nenhuma compreensão psicológica
pode, jamais, substituir o ato, o compromisso, o pulo. Pode
levar a êle, prepará-lo, torná-lo possível – essa a função
legítima da Psicanálise. Mas não deve procurar tentar ser um
substitutivo para o ato responsável do compromisso, ato sem
o qual nenhuma modificação real ocorre no ser humano.
Para que a Psicanálise seja compreendida nesse sentido, é
necessária outra condição. O analista deve superar a
alienação de si mesmo e em relação ao seu próximo, que
predomina no homem moderno. Como já disse, o homem
moderno sente-se como uma coisa, a materialização de
energias a serem investidas com lucro no mercado.
Experimenta seu próximo como uma coisa a ser usada numa
troca lucrativa. A Psicologia, a Psiquiatria e a Psicanálise
contemporâneas estão envolvidas por êsse processo universal
de alienação. O paciente é considerado como uma coisa, como
a soma de muitas partes. Algumas dessas partes estão
estragadas e precisam de consêrto, como as peças de um
automóvel. Há um defeito aqui e um defeito ali, chamados de
sintomas, e o psiquiatra considera como sua função consertar
os vários defeitos. Não vê o paciente como uma totalidade
global, singular, que só pode ser plenamente compreendida no
ato de plena relação e simpatia. Para que a Psicanálise
152
atinja suas possibilidades reais, o analista tem de superar sua
própria alienação, ser capaz de estabelecer uma relação com o
paciente de íntimo a íntimo, e nessa relação abrir caminho
para a experiência espontânea do paciente e assim para a
“compreensão” de si mesmo. Não deve considerar o paciente
como um objeto, ou mesmo limitar-se a ser um “observador
participante”. Deve tornar-se uno com êle e ao mesmo tempo
conservar sua individualidade e objetividade, de modo a poder
formular o que experimenta nesse ato de individualidade. A
compreensão final não pode ser totalmente expressa em
palavras, não é uma “interpretação” que descreva o paciente
como um objeto com vários defeitos e explique sua gênese,
mas uma percepção intuitiva. Ocorre primeiro no analista e
em seguida, para que o analista tenha êxito, no paciente. Essa
percepção é súbita, é um ato intuitivo que pode ser preparado
por muitas percepções cerebrais, mas jamais poderá ser
substituída por elas. Se a Psicanálise desenvolver-se nesse
sentido,
terá
ainda
possibilidades
inesgotáveis
de
transformação humana e espiritual. Se permanecer envolvida
pelo defeito, socialmente condicionado, da alienação, poderá
remediar êsse ou aquêle sintoma, mas será apenas outro
instrumento para tornar o homem mais automatizado e mais
ajustado a uma sociedade alienada.
153
O CONCEITO PROFÉTICO DA PAZ
MESMO QUE a paz significasse apenas a ausência da guerra,
do ódio, da mortandade, da loucura, sua realização estaria
entre as mais altas finalidades que o homem pode pretender.
Mas para compreender o conceito profético específico da paz é
necessário avançar mais alguns passos e reconhecer que tal
conceito não pode ser definido apenas como a ausência da
guerra, sendo, como é, espiritual e filosófico. Baseia-se na
idéia profética do homem, da história, da salvação e tem suas
raízes na história da criação e da desobediência a Deus tal
como contada no Livro do Gênese, e culmina no conceito do
tempo messiânico.
Antes da queda de Adão, ou seja, antes que o homem tivesse a
razão e a autoconsciência, êle vivia em harmonia total com a
Natureza. “E estavam ambos nus, o homem e a mulher, e não
tinham vergonha.” Estavam separados, mas faltava-lhes
consciência disso. O primeiro ato de desobediência, que é
também o comêço da liberdade humana, “abre seus olhos”, o
homem aprende como julgar o bem e o mal, adquire
consciência de si e do seu próximo. A história humana
começou. Mas o homem é amaldiçoado por Deus por sua
desobediência.83 Que maldição é essa? Proclamam-se a
inimizade e a luta entre o homem e o animal (“e colocarei a
inimizade entre ti [a serpente] e a mulher, e entre a tua
semente e a semente dela; ela pisará tua cabeça e tu lhe
morderás o calcanhar”), entre o homem e o solo (“maldito o
chão por tua causa; em penas
83
A palavra “pecado” não consta do texto bíblico.
154
comerás dêle todos os dias de tua vida; espinhos e cardos êle
produzirá para ti; e comerás a erva do campo; comerás o pão
com o suor de teu rosto, até que voltes ao chão”), entre o
homem e a mulher (“e teu desejo será para teu marido, e êle te
dominará”), entre a mulher e a sua função natural (“e parirás
com dores”). A harmonia original, pré-individualista, foi
substituída pelo conflito e pela luta.
O homem tem de sentir-se estranho no mundo, estranho a si
e à Natureza, para poder voltar a ser uno consigo mesmo, com
seu próximo, com a Natureza. Tem de sofrer a separação entre
êle mesmo, como sujeito, e o mundo, como objeto, como
condição para superar essa divisão mesma. Seu primeiro
pecado, a desobediência, é o primeiro ato de liberdade, é o
comêçó da história humana. É na história que o homem
evolui, surge, desenvolve-se. Desenvolve sua razão e sua
capacidade de amar. Cria-se no processo histórico iniciado
com seu primeiro ato de liberdade, que foi a liberdade de
desobedecer, de dizer “não”.
Qual, segundo o Velho Testamento, o papel de Deus nesse
processo histórico? Primeiro e mais importante: Deus não
interfere na história do homem por um ato de graça, Êle não
modifica a natureza do homem, não transforma seu coração.
(E nisso está a diferença básica entre o conceito profético e o
conceito cristão da salvação.) O homem é corrupto porque se
tornou estranho e não superou essa condição. Mas tal
“corrupção” está na natureza mesma da existência humana, e
é o próprio homem, e não Deus, que pode desfazer a
estranheza, obtendo a nova harmonia.
O papel de Deus na história, segundo o Velho Testamento,
limita-se a enviar mensageiros, os profetas, que 1) mostram ao
homem uma nova meta espiritual; 2) mostram ao homem as
alternativas à sua escolha; 3) protestam contra todos os atos e
atitudes através dos quais o homem se perde e perde o
caminho da salvação. O homem, porém, é livre para agir, e
cabe a êle decidir. Enfrenta a escolha entre a bênção e a
maldição, entre a vida e a morte. A esperança de Deus é que
êle escolha a vida, mas Deus não salva o homem por um ato
de graça.
Tal princípio expressa-se claramente na atitude de Deus
quando os hebreus pedem a Samuel para dar-lhes um rei.
155
E então todos os anciãos de Israel se reuniram e procuraram
Samuel em Ramá, e lhe disseram: – Vêde, sois velho e vossos filhos
não seguem vosso caminho; nomeai para nós um rei para governarnos como tôdas as nações. Mas isso desagradou a Samuel, quando
disseram: – Dai-nos um rei para nos governar. E Samuel orou ao
Senhor, e o Senhor disse a Samuel: – Ouve a voz do povo em tudo o
que ela falar. Pois êles não te rejeitaram, mas rejeitaram a mim
como seu rei. Segundo todos os atos que me fizeram, desde o dia
em que os trouxe do Egito até hoje, esquecendo-me e servindo a
outros deuses, assim farão contigo. Ouve, porém, a voz do povo,
mas adverte-o solenemente e mostra-lhe os modos do rei que
reinará sôbre êle.
E Samuel repetiu para o povo as palavras do Senhor, e disse: –
Será essa a forma pela qual o rei reinará sôbre vós: tomará vossos
filhos e os nomeará para seus carros e para serem seus cavaleiros,
e para correr à frente de seus carros; e nomeará, segundo sua
vontade, os comandantes dos milhares e os comandantes dos
cinqüenta, e outros para arar seu campo e colhêr sua plantação,
para fazer seus instrumentos de guerra e o equipamento de seus
carros. Tomará vossas filhas para serem fabricantes de perfumes,
cozinheiras e padeiras. Tomará o melhor de vossos campos, vinhas
e olivais, para dá-lo a seus servos. Tomará o décimo de vosso grão e
de vossas vinhas para dar a seus oficiais e seus servos. Tomará
vossos servos, o melhor de vosso gado e o colocará a seu serviço.
Tomará o décimo de vossos rebanhos, e sereis seu escravo. E nesse
dia gemereis de vosso rei, a quem escolhestes por vós mesmos; e o
Senhor não vos responderá nesse dia. Mas o povo recusou-se a
ouvir a voz de Samuel, e disse. – Não! queremos ter um rei para que
possamos ser como tódas as nações, e que o nosso rei nos governe
e vá à nossa frente e lute as nossas batalhas. E quando Samuel
ouviu tôdas as palavras do povo, repetiu-as aos ouvidos do Senhor
e o Senhor disse a Samuel: – Ouve a voz do povo, e dá-lhe um rei.
Samuel disse então aos homens de Israel: – Ide, todos, para as
vossas cidades. (I Sam., 8:4-22.)
Tudo o que Samuel pode fazer é “ouvir a voz do povo”,
protestar e mostrar-lhe as conseqüências de seu ato, Se
apesar disso o povo se decide por uma monarquia, a decisão e
a responsabilidade lhe pertencem.
O mesmo princípio é mostrado, claramente, na história bíblica
da libertação do Egito. Na verdade, Deus mostra a Moisés
como realizar alguns milagres. Tais milagres, porém, não são
156
essencialmente diferentes dos executados pelos mágicos
egípcios. O objetivo dêles é, evidentemente, dar prestígio a
Moisés aos olhos do Faraó e de seu próprio povo; são
concessões a Moisés devido ao seu mêdo de que o povo não
compreenda sua mensagem vinda de um Deus sem nome. No
aspecto essencial, porém, que é de tornar o povo – ou o Faraó
– pronto para a liberdade, Deus não interfere. O Faraó
continua sendo como sempre foi, e até se torna pior – seu
coração “endurece”. Os hebreus também não se modificam.
Tentam escapar repetidamente da liberdade, para voltar à
escravidão e à segurança proporcionadas pelo Egito. Deus não
lhes modifica o coração, nem modifica o coração do Faraó.
Deixa os homens a si mesmos – deixa que façam sua história,
que preparem sua salvação.
O primeiro ato de liberdade do homem é um ato de
desobediência, e através dêle o homem transcende sua união
original com a Natureza, adquire consciência de si e de seu
próximo e de sua condição de estranhos. No processo
histórico, o homem se cria. Cresce até à autoconsciência, ao
amor, à justiça e quando atinge a finalidade da compreensão
plena do mundo, pelo seu poder da razão e do amor, torna-se
uno novamente, desfaz o “pecado” original, volta ao Paraíso,
mas no nôvo nível da individualização e da independência
humana. Embora o homem tenha “pecado” no ato de
desobediência, seu pecado se justifica no processo histórico.
Não sofre uma corrupção de sua substância, mas seu pecado
mesmo é o comêço de um processo dialético que termina com
sua autocriação e auto-salvação.
Essa conclusão de sua autocriação, o fim da história de luta e
conflito e o comêço de uma nova história de harmonia e união,
é chamada de “tempo messiânico”, “fim dos dias”, ete.
O Messias não é o salvador, não foi mandado por Deus para
salvar o povo ou modificar-lhe a substância corrupta. O
Messias é um símbolo da própria realização humana. Quando
o homem consegue a união, quando êle está pronto, o Messias
surgirá. O Messias não é mais Filho de Deus do que qualquer
outro homem: é o rei ungido que representa a nova época da
história.
A interpretação messiânica do tempo é a de uma harmonia
entre homem e homem, entre homem e mulher, entre homem
157
e Natureza. A nova harmonia é diferente do paraíso, só pode
ser obtida se o homem desenvolver-se plenamente, para se
tornar realmente humano, se fôr capaz de amar, se conhecer a
verdade e fizer a justiça, se desenvolver seu poder de razão a
um ponto em que o liberte da servidão do homem e da
servidão das paixões irracionais.
As descrições proféticas encerram muitos símbolos da idéia da
nova harmonia. A terra é novamente frutífera, as espadas se
transformarão em arados, o leão e o cordeiro viverão em paz,
não haverá mais guerras, tôda a humanidade estará unida em
verdade e amor.
A paz, na visão profética, é um aspecto do tempo messiânico.
Quando o homem tiver superado a divisão que o separa do
seu próximo e da Natureza, então estará realmente em paz
com aquêles de quem estava separado. Para isso, o homem
tem de encontrar a “expiação”; a paz é o resultado da
transformação do homem, na qual a união substituiu a
alienação. Assim, a idéia da paz, do ponto de vista profético,
não pode ser separada da idéia da realização da humanidade
do homem. A paz é mais do que uma ausência de guerra, é a
harmonia e união entre homens, é a superação da divisão e da
alienação.
O conceito profético da paz transcende o âmbito das relações
humanas. A nova harmonia se faz também entre homem e
Natureza. A paz entre homem e Natureza é a harmonia entre
ambos. A separação deixa de existir, o homem não é
ameaçado pela Natureza nem se dispõe a dominá-la: torna-se
natural, e a Natureza torna-se humana. Êle e a Natureza
deixam de ser adversários e tornam-se unos. O homem sentese à vontade no mundo natural, e a Natureza torna-se parte
do mundo humano. Tal é a paz no sentido profético. (A
palavra hebraica para paz, shalom, que poderia ser melhor
traduzida como “totalidade”, indica o mesmo sentido.)
O conceito do tempo messiânico e da paz messiânica difere,
evidentemente, de acôrdo com as várias fontes proféticas. Não
é nosso objetivo aqui entrar em detalhes dessas diferenças.
Basta mostrar, com alguns exemplos característicos, vários
aspectos da idéia do tempo messiânico, em sua ligação com a
idéia de paz.
158
A noção do tempo messiânico como um estado de paz com a
Natureza e o fim de todo impulso de destruição é assim
descrita por Isaías:
O lôbo viverá com a ovelha, o leopardo com o cabrito, o bezerro e o
leão juntos, e a criança irá à frente dêles.
A vaca e o urso se alimentarão juntos, os filhotes estarão juntos e o
leão comerá palha como o touro.
A criança nova brincará no ninho da víbora, e a criança
desmamada colocará a mão na toca das serpentes.
Não haverá destruição em tôda a minha sagrada montanha, pois a
terra estará cheia de conhecimento do Senhor, assim como as
águas cobrem o mar. (Isaías, 11:6-9.)
A idéia da nova harmonia do homem com a Natureza no
tempo messiânico significa não sómente o fim da luta do
homem contra a Natureza, mas também que esta não se
furtará ao homem – será transformada na mãe amamentadora
e amante. A Natureza dentro do homem deixará de ser
mutilada, e a Natureza fora do homem deixará de ser estéril.
Como disse Isaías:
Os olhos dos cegos se abrirão, os ouvidos dos surdos ouvirão. O
coxo saltará como um cervo, e a língua do mudo cantará de alegria.
Pois as águas irromperão nos descampados e as correntes no
deserto.
A areia candente se tornará como um poço, e o chão sedento
minará água; o aprisco dos chacais se transformará em pântano, a
grama se transformará em caniço e juncos.
E haverá uma estrada, e será chamada de Caminho Santo; os
impuros não passarão por ela, os tolos ali não entrarão.
Não haverá nela leões, nem animais de rapina; estas não se
encontrarão ali, mas os redimidos trilharão por essa Estrada.
E os resgatados do Senhor voltarão, e irão a Sião cantando; a
alegria perene estará em suas cabeças, terão alegria e
contentamento, as dores e suspiros desaparecerão. (Isaías, 35:510.)
Ou, como diz o segundo Isaías:
Vêde, faço algo de nôvo: fontes surgem, não percebeis? Elas abrirão
caminho pela desolação e rios no deserto.
159
Os animais selvagens me honrarão, os chacais e os avestruzes; pois
eu dei água à desolação, rios ao deserto, dei de beber ao meu povo
escolhido. (Isaías, 54:19-20.)
A ideia de uma nova união entre os homens, na qual o
sentimento de ser estranho e de destruição desaparecerá, é
expressa por Miquéias:
Êle julgará entre muitos povos e decidirá pelas nações fortes e
distantes; e elas transformarão suas espadas em arados, suas
lanças em ancinhos; nenhuma nação levantará a espada contra
outra, nem aprenderá mais a guerra.
Mas cada qual se sentará sob sua vinha e sua figueira e nada as
fará ter mêdo; pois a boca do Senhor das hostes falou.
Pois todos os povos caminham em nome de seu deus, mas nós
caminhamos em nome do Senhor nosso Deus para sempre e
sempre. (Miquéias, 4:3-5.)
Mas no conceito messiânico o homem não sómente deixará de
destruir outro homem, como terá superado a experiência do
isolamento entre uma nação e outra. Uma vez o homem atinja
o estado plenamente humano, o estranho deixa de ser um
estranho, e o homem deixará de ser um estranho a si mesmo.
A ilusão da diferença entre as nações desaparece: já não há
povos escolhidos. Amós diz:
Não sois vós como etíopes para mim, ó povo de Israel? – diz o
Senhor. – Não trouxe Israel da terra do Egito, os filisteus da
Capadócia e os sírios de Cirene? (Amós, 9: 7.)
A mesma idéia de que tôdas as nações são igualmente amadas
por Deus e que não existe filho favorito é expressa, com
grande beleza, também por Isaías:
Nesse dia, haverá uma estrada do Egito à Assíria, e os assirios
virão ao Egito, os egípcios à Assiria, e os egípcios adorarão junto
com os assírios.
Nesse dia Israel será o terceiro com o Egito e Assiria, uma bênção
em meio da terra, a quem o Senhor das hostes bendisse, dizendo: –
Abençoado seja o Egito meu povo, a Assiria, obra de minhas mãos,
e Israel, meu legado. (Isaías, 19:23,24.)
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Resumindo: a idéia profética da paz é parte de todo o conceito
histórico e religioso dos profetas, que culmina em sua idéia do
tempo messiânico. A paz entre homem e homem, entre
homem e Natureza è mais do que a ausência da luta: é a
realização de uma verdadeira harmonia e união, é a
experiência da “integração” com o mundo e consigo mesmo. É
o fim da alienação, o retôrno do homem a si mesmo.
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FIM DO LIVRO