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Editorial nº 25

2014, Via Atlântica

A obra O Atlântico Negro, de Paul Gilroy, inaugurou uma série de estudos voltados para a análise das relações coloniais entre a Europa-especialmente a Inglaterra-e a América, cujo foco maior foi o importante papel da escravidão no desenvolvimento da modernidade. Entretanto, a atenção restrita às relações entre o norte da Europa e a América do Norte que decorrem de uma abordagem derivada à de Gilroy não compreende as especificidades relativas aos transnacionalismos do Atlântico Sul, relegados, com frequência, a uma posição secundária no plano acadêmico internacional. Dessa forma, as importantes relações e cruzamentos encerrados na transnacionalidade não hegemônica de língua portuguesa, compreendida na triangulação entre África, América do Sul e Europa do Sul, continuavam largamente ignoradas no âmbito dos chamados "estudos atlânticos". Foi com o intuito de preencher essa lacuna que, em maio de 2012, o Neetherlands Institute of Advanced Studies (NIAS) reuniu em Wassenaar (Países Baixos) um grupo de pesquisadores em torno do tema das triangulações atlânticas tendo como paisagem de fundo o mundo composto pelos países de língua portuguesa. Com base no papel histórico exercido pelos transnacionalismos no Atlântico Sul, protagonizados por espaços como-ainda que não apenas-Angola, Brasil e Portugal, tanto no que se refere ao tráfico negreiro, quanto ao próprio avanço da modernidade, podemos afirmar que a expansão e a reavaliação do trabalho de Gilroy se fazem necessárias. Entretanto, as relações, cruzamentos e colaborações encerradas nas transnacionalidades atlânticas de língua portuguesa não podem se limitar ao âmbito colonial. O seminário, proposto pelo professor Paulo de Medeiros, interessou à instituição holandesa por provocar reflexão em torno não apenas do espaço oceânico dos tempos coloniais. A emergência no panorama internacional de nova correlação de forças políticas, econômicas e culturais, desde o início do século XXI, na qual o Brasil é indiscutível protagonista, do qual Angola é parceira privilegiada, acendeu vivamente o debate proposto. A revisão das cartografias geopolíticas se impõe aos pesquisadores contemporâneos de todas as áreas do conhecimento, não apenas porque os ve

Editorial A obra O Atlântico Negro, de Paul Gilroy, inaugurou uma série de estudos voltados para a análise das relações coloniais entre a Europa – especialmente a Inglaterra – e a América, cujo foco maior foi o importante papel da escravidão no desenvolvimento da modernidade. Entretanto, a atenção restrita às relações entre o norte da Europa e a América do Norte que decorrem de uma abordagem derivada à de Gilroy não compreende as especificidades relativas aos transnacionalismos do Atlântico Sul, relegados, com frequência, a uma posição secundária no plano acadêmico internacional. Dessa forma, as importantes relações e cruzamentos encerrados na transnacionalidade não hegemônica de língua portuguesa, compreendida na triangulação entre África, América do Sul e Europa do Sul, continuavam largamente ignoradas no âmbito dos chamados ”estudos atlânticos”. Foi com o intuito de preencher essa lacuna que, em maio de 2012, o Neetherlands Institute of Advanced Studies (NIAS) reuniu em Wassenaar (Países Baixos) um grupo de pesquisadores em torno do tema das triangulações atlânticas tendo como paisagem de fundo o mundo composto pelos países de língua portuguesa. Com base no papel histórico exercido pelos transnacionalismos no Atlântico Sul, protagonizados por espaços como – ainda que não apenas – Angola, Brasil e Portugal, tanto no que se refere ao tráfico negreiro, quanto ao próprio avanço da modernidade, podemos afirmar que a expansão e a reavaliação do trabalho de Gilroy se fazem necessárias. Entretanto, as relações, cruzamentos e colaborações encerradas nas transnacionalidades atlânticas de língua portuguesa não podem se limitar ao âmbito colonial. O seminário, proposto pelo professor Paulo de Medeiros, interessou à instituição holandesa por provocar reflexão em torno não apenas do espaço oceânico dos tempos coloniais. A emergência no panorama internacional de nova correlação de forças políticas, econômicas e culturais, desde o início do século XXI, na qual o Brasil é indiscutível protagonista, do qual Angola é parceira privilegiada, acendeu vivamente o debate proposto. A revisão das cartografias geopolíticas se impõe aos pesquisadores contemporâneos de todas as áreas do conhecimento, não apenas porque os ve- 10 VIA ATLÂNTICA, SÃO PAULO, N. 25, 9-12, JUL/2014 lhos impérios coloniais europeus soçobraram há mais de 40 anos, mas porque as novas relações de poder impuseram outras formas de colonialismo. Se não há mais metrópoles a estabelecerem a continuidade imaginária dos territórios imperiais, há produções culturais que se assentam nas ruínas imperiais e nas memórias coloniais, muitas vezes atualizadas, que definem imaginariamente um planeta sem fronteiras e de distâncias encurtadas. A VIA ATLÂNTICA não poderia ficar alheia a essa discussão, seja por sua natureza investigativa e propositiva, seja pelo seu caráter inovador e compromissado com a excelência dos estudos sobre as literaturas e as culturas de Língua Portuguesa. Suas páginas foram abertas a essas triangulações, tendo o dossiê “Triangulações atlânticas - transnacionalidades em língua portuguesa” recebido excelente resposta da comunidade acadêmica nacional e internacional. O artigo de BERNARD MCGUIRK, que abre o dossiê, coloca-nos diante de questão intrigante e problemática, porém necessária e contemporânea, o “intracolonialismo”. Ou seja, a manutenção dos dispositivos coloniais para além dos aspectos temporais do pós-colonialismo, define o tempo presente como o tempo da reconstituição colonial no âmbito nacional. Seu mote é o prêmio de melhor tradução de 2007, no Reino Unido, da obra O Vendedor de Passados, de José Eduardo Agualusa, que, aliás, foi o autor mais contemplado pelos diversos investigadores que aqui se congregam. O artigo de ANTHONY SOARES bem extrapola os limites da tradicional configuração cultural dos estudos da revista Via Atlântica, visto que nos apresenta uma vigorosa reflexão sobre a geopolítica do Atlântico Sul, assentada nas relações diplomáticas e econômicas do Brasil e Angola. Assim, como o artigo de CHRISTABELLE PETERS que, ao encerrar o dossiê, lança luz sobre a missão cubana em Angola e estende uma das pontas do triângulo ao Caribe. A memória e o poder político que ela engendra é tema que INOCÊNCIA MATA explora em seu artigo, ocupando-se da configuração do espaço colonial na produção literária mais contemporânea em Língua Portuguesa, na qual a África, ou os espaços outros, se encontra no tempo de reconfigurações identitárias. A revista caboverdiana CLARIDADE e o pensamento de Gilberto Freyre são o tema dos artigos de ALFREDO CESAR MELO e THIAGO MIA VIA ATLÂNTICA, SÃO PAULO, N. 25, 9-12, JUL/2014 SALLA. Com perspectivas pouco coincidentes, analisam o fenômeno caboverdiano e a própria caboverdianidade, observando não apenas a ação dos intelectuais caboverdianos que criaram a revista, mas também as ações do estado colonial português que buscava “atualizar” o pensamente freyriano, colocando-o em função do projeto colonial do Estado Novo. PAULO CÉSAR OLIVEIRA, em seu artigo, parte de O Atlântico Negro, de Gilroy, para estabelecer diálogos entre o romance The Viceroy of Ouidah, de Bruce Chatwin, e outras obras que veem na figura de Francisco Félix de Souza uma personagem decisiva na configuração da presença brasileira no antigo reino do Daomé. ADENIZE FRANCO, por sua vez, observa as convergências de sentido entre as obras do brasileiro Bernardo Carvalho e do português Francisco José Viegas; LISA CARVALHO VASCONCELLOS , a partir do espaço interseccional onde as relações luso-afro-brasileiras se constituem, propõe em seu artigo a configuração do campo da Literatura Atlântica a fim de identificar um campo autônomo e singular que aproxime as literaturas nacionais escritas em português. A ficção de José Eduardo Agualusa reaparece nos artigos de MARIA CÉLIA MARTIRANI e de RUI GONÇALVES DE MIRANDA, nos quais os romances Milagrário Pessoal e Nação Crioula, respectivamente, são lidos e relidos para configurarem um universo plural, híbrido e múltiplo em língua portuguesa, aberto às fusões interlinguísticas e interculturais. O romance O Vale da Paixão, da escritora portuguesa Lídia Jorge, é convocado para a discussão pelo artigo de FABIO SOARES DA SILVA, que acentua o olhar feminino sobre a chamada diáspora portuguesa do século XX. E Vitorino Nemésio, autor muitas vezes esquecido, é recuperado por Irene do Amaral em seu artigo que o situa no alvorecer da discussão sobre uma cultura de língua portuguesa em diálogo. A aproximação que João Cabral de Melo Neto fez da paisagem pernambucana à paisagem senegalesa em Agrestes é o tema do artigo de ÉVERTON BARBOSA CORREIA. Na seção Outros Textos, o leitor encontrará dois artigos que contribuem decididamente para as investigações em torno dos estudos comparados de Literaturas de Língua Portuguesa. São os estudos de MARISA CORRÊA SILVA e PAULO MOTTA OLIVEIRA que, cada um a seu turno, ampliam os debates sobre as trocas culturais no universo das “triangulações”. Na seção de resenhas, são apresentadas cinco obras que de alguma maneira 11 12 VIA ATLÂNTICA, SÃO PAULO, N. 25, 9-12, JUL/2014 contribuem decididamente para o debate proposto pelo dossiê: a resenha de GISELLE RODRIGUES RIBEIRO sobre obra organizada por Elena Brugioni, Joana Passos, Andreia Sarabando e Marie-Manuelle Silva, que reúne uma variada coleção de artigos tendo por norte o conceito de “teoria itinerante”, proposto por Edward Said; a resenha de LUCA FAZZINI apresenta-nos a primeira edição brasileira da obra fundamental de Inocência Mata, A literatura africana e a crítica pós-colonial: reconversões; a resenha de SHIRLEY DE SOUZA GOMES CARREIRA sobre obra que estuda o tema do insólito na produção de Mia Couto; e as resenhas de DONIZETH APARECIDO DOS SANTOS e ANDRÉ CORRÊA DE SÁ apresentam, respectivamente, obras recentes de Pepetela e Antonio Lobo Antunes. À parte as dificuldades que encontramos para a preparação deste número, principalmente a mais longa greve enfrentada pelos docentes da Universidade de São Paulo, ao lado do desafio da sua inteira edição eletrônica, registramos o agradecimento a todos os pareceristas ad hoc que nos honraram com a sua colaboração inestimável. Registramos também, muito especialmente, gratidão a EMANUELLE RODRIGUES DOS SANTOS, que nos assessorou, incansavelmente, tendo dado cabo de traduções, prazos e contatos intermináveis entre Warwick e São Paulo, Mário César Lugarinho*1 Universidade de São Paulo PauLo de Medeiros**2 University of Warwick *1Professor Associado da Universidade de São Paulo na área de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Desde 2001, é bolsista do CNPq. Doutor em Letras (Puc-Rio, 1997). Fez estágio de pós-doutoramento na Universidade Federal de Minas Gerais (2002-2003) e no Centro de Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa (2012-2013). Publicou Manuel Alegre:mito, memória e utopia (Lisboa: Colibri, 2005); Uma nau que me carrega: rotas da literariedade em língua portuguesa (Manaus: UEA Edições, 2013); e organizou Do inefável ao afável: estudos sobre sexualidade e gênero e estudos “queer” (Manaus: UEA Edições, 2012) **2Paulo de Medeiros é Professor de Modern and Contemporary World Literatures e ensina no English and Comparative Literary Studies Program da Univerdidade de Warwick (RU). Foi Associate Professor at Bryant College (EUA) e Professor na Utrecht University (Netherlands). Presidiu entre 2013 e 2014 a American Portuguese Studies Association (APSA).