KANT E O COMÉRCIO PSICO-FÍSICO
O influxo entre corpo e alma
Márcio Tadeu Girotti
Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos - UFSCar
RESUMO
Diante da crítica kantiana lançada às concepções metafísicas sobre a doutrina da alma, buscaremos
abordar a questão do comércio psico-físico (troca de informações), entre o mundo sensível e
suprassensível, ou, entre a alma, o corpo e o espírito. A problemática do comércio psico-físico é
tratada por Kant na obra Sonhos de um visionário explicados por sonhos da metafísica (1766), por
conta da figura de Swedenborg, um entusiasta do mundo suprassensível, um visionário sueco, que
afirma ter contato com o mundo dos espíritos. Com isso, Kant aborda a definição do conceito de
espírito, bem como o problema da relação alma e corpo, dentro da questão da impenetrabilidade: como
pode um ser imaterial ocupar um ser material? Na Dissertação de 1770, Kant retoma a questão acerca
das relações que se estabelecem entre corpos físicos e entre tais corpos e uma possível unidade do
Mundo encontrada em um ser fora do mundo, ou uma causa comum (única): Deus. Essas relações, em
certo sentido, fazem referência ao comércio psico-físico estabelecido nos Sonhos de um visionário. Já
na Crítica da razão pura (1787), a questão é retomada com referência à crítica de Kant às teorias
tradicionais da doutrina pura da alma, que não são senão “paralogismos da doutrina transcendental da
alma, a qual é tomada falsamente como ciência da razão pura sobre a natureza do ente pensante” (KrV,
B 403). Nesse sentido, trataremos a questão entre as três obras citadas, buscando, ao menos, levantar a
questão da possibilidade da comunicação entre um mundo e outro e, talvez, entre um ser e o outro.
Palavras-chave: Influxo psico-físico; Alma e corpo; Swedenborg.
ABSTRACT
Facing up Kantian criticism raised to metaphysical conceptions on soul doctrine, we will seek an
account psycho-physical commerce question (information exchange), between supersensible and
sensitive world, or, between soul, body and spirit. The psycho-physical commerce problematic is
treated by Kant in Dreams of a Spirit-Seer Elucidated by Dreams of Metaphysics (1766), in reason of
Swedenborg, an enthusiastic of supersensible world, a Swedish visionary, which asserts has contact
with the world of spirits. Therefore, Kant approaches the spirit concept definition, as the soul/body
problem, into the impenetrability question: how an immaterial being occupies a material being? In
Dissertation of 1770, Kant recovery the question about the relations that establishes between physical
bodies and between bodies with a plausible unity of World found in a outside world being, or a
common cause (unique): God. Those relations, in a sense, make reference to the psycho-physical
commerce question established Dreams of a Spirit-Seer. In Critique of Pure Reason, in turn, the
question is retaken in reason of Kantian criticism to traditional theories of Soul‟s pure doctrine, which
are nothing beyond “paralogism of transcendental doctrine of soul, which is falsely understood as
science of pure reason about the nature of thinking being” (KrV, B 403). In this sense, we will treat
the question between the three works mentioned, seeking, at least, raise the question of
communication possibility between the two worlds and, maybe, between one being and another one.
Keywords: Psycho-physical influx; Soul and body; Swedenborg.
Pólemos, Brasília, vol. 1, n. 2, dezembro 2012
182
Kant e Comércio Psico-Físico
Na década de 1760 Kant escreve um ensaio intitulado Sonhos de um visionário
explicados por sonhos da metafísica1 (TG), obra que tem como uma de suas teses a crítica ao
racionalismo dogmático, com suas provas e pressupostos absurdos, sem comprovação que
convença. Nesse sentido, Kant lança mão de Swedenborg, um visionário sueco, que afirma
trocar contato com seres que residem em outro mundo, e consegue transpor para o campo da
sensibilidade o que consegue ver no suposto mundo dos espíritos, o mundo suprassensível.
A figura de Swedenborg é importante para compreender a possibilidade de conhecer o
mundo que transcende o conhecimento sensível. Ele, em suas viagens no mundo
suprassensível, entra em contato com seres que outrora residiam na terra, e agora, no mundo
espiritual continuam a trocar informações com seres terrenos, ao menos com aqueles que
conseguem tal troca. Vale citar um fato em que Swedenborg confirma seu „dom‟, transpondo
o mundo sensível e atingindo o mundo suprassensível. Kant cita tal acontecimento em uma
Carta2 (Br), do seguinte modo:
A senhora Marteville, viúva do embaixador da Holanda em Estocolmo, tempos
depois da morte de seu marido, foi procurada por Croon, um joalheiro, a
respeito de uma dívida do extinto com ele. A viúva não podia acreditar que seu
marido, um homem de hábitos conservadores, pudesse ter deixado alguma
dívida por saldar. Mas, por mais que procurasse, não conseguia encontrar o
recibo correspondente. Como a quantia era bem alta, ela decidiu convidar
Swedenborg à sua casa. Depois de pedir-lhe desculpas por importuná-lo. Pediulhe que, se realmente possuísse poderes paranormais, como se dizia, talvez
pudesse perguntar ao seu marido onde tinha guardado o tal recibo. Swedenborg
acedeu, prontamente, ao pedido. Daí a três dias, Swedenborg voltou à casa da
senhora Marteville e, em tom calmo e pausado, contou-lhe que havia
conversado com seu marido e este lhe dissera que a dívida em causa tinha sido
paga, uns sete meses antes de sua morte e o recibo estava guardado num
compartimento de sua escrivaninha. A viúva retrucou que a escrivaninha tinha
sido totalmente revistada e o recibo não fora encontrado entre os documentos.
Swedenborg, então, lhe disse que, ao se abrir a gaveta esquerda da escrivaninha
até o fim, um fundo falso revelaria um compartimento secreto onde estavam
guardados seus papéis pessoais e o tal recibo. Após ouvir atentamente as
instruções de Swedenborg, a viúva e alguns dos presentes rumaram para a sala
onde estava a escrivaninha. Lá chegando, abriram-na, conforme as instruções de
Swedenborg e lá estavam os documentos pessoais do extinto e o recibo em
questão. (Br, AA 10: 45-46).
1
As obras de Kant, citadas neste artigo, serão abreviadas seguindo o Sistema de citação preparadas pela KantForschungsstelle der Johannes Gutenberg-Universität Mainz. As citações seguirão pela abreviatura de cada
obra, listada na sequência, e entre parênteses depois do nome completo da obra em sua primeira referência.
Sistema de citação: Siglum, AA (Bd.-Nr.): Seite[n]. Zeile[n] / AA Akademie-Ausgabe. Obras de Kant: Br:
Briefe (AA 10-13); KrV: Kritik der reinen Vernunft (zu zitieren nach Originalpaginierung A/B) (AA 03 e 04);
MSI: De mundi sensibilis atque intelligibilis forma et principiis (AA 02); Refl: Reflexion (AA 14-19); TG
Träume eines Geistersehers, erläutert durch die Träume der Metaphysik (AA 02); V-MP-L 1 Kant Metaphysik L
1 (Pölitz) (AA 28).
2
Carta a Charlotte von Knobloch, Königsberg 10 Aug. de 1763. Sobre o assunto ver: TROBRIDGE, G. L.
Swedenborg, vida e ensinamentos. Rio de Janeiro: Sociedade Religiosa A Nova Jerusalém, 1998.
Pólemos, Brasília, vol. 1, n. 2, dezembro 2012
Márcio Tadeu Girotti
183
Aqui, reside a questão principal da nossa abordagem, a troca de informações entre o
sujeito e o mundo dos espíritos. Nos Sonhos de um visionário, Kant utiliza a definição
clássica de espírito: um ser imaterial, simples, dotado de razão e que pode ocupar um ser
material sem lhe causar a força da impenetrabilidade. É preciso compreender que Kant trata
do conceito de espírito tendo por base uma crítica ao racionalismo que define o conceito de
espírito sem, ao menos, comprovar ou demonstrar a sua existência.
Segundo Kant:
Só podereis manter, portanto, o conceito de um espírito, se pensardes em seres
que poderiam estar presentes mesmo em um espaço cheio de matéria, portanto
seres que não possuem em si a propriedade da impenetrabilidade e que nunca
constituiriam um todo sólido, estejam reunidos no número que quiser. Seres
simples desta espécie serão chamados seres imateriais e, se possuírem razão,
espíritos. (TG, AA 02: 321).
Ao contrário, Kant continua e define o ser material:
Mas substâncias simples, cuja composição resulta em um todo impenetrável e
extenso, serão chamadas unidades materiais, e seu todo, matéria. Ou o nome de
um espírito é uma palavra sem qualquer sentido ou seu significado é o indicado.
(TG, AA 02: 321).
É possível perceber que o espírito é definido como um ser imaterial, simples e dotado
de razão, enquanto que o corpo é um ser material, simples, que pode ser um agregado de
partes simples formando um composto. O corpo ligado a um ser imaterial (alma), que deve
vivificá-lo, será um corpo dotado de razão, corpo e alma, uma vez que alma, assim como o
espírito, é um ser imaterial. Além disso, é preciso compreender a propriedade da
impenetrabilidade, pois corpo e alma são de espécies diferentes, mas o segundo ocupa o
primeiro sem preenchê-lo.
Na Reflexão 4230 (Refl), Kant se indaga sobre a seguinte questão: como é possível a
união do ser material com o ser imaterial? Essa questão se desenvolve dentro da questão da
impenetrabilidade, em que um ser material não causa força repulsiva a um ser imaterial, já
que eles são de naturezas diferentes. Nesse ponto, Kant retoma a argumentação escolástica de
que a alma está esparramada pelo corpo, em que diziam: “minha alma está toda em todo
corpo e toda em cada uma de suas partes” (TG, AA 02: 325, grifo do autor); do mesmo
modo, Kant retoma Descartes, que afirma que a alma estaria localizada na glândula pineal, em
algum lugar do cérebro. Nas palavras de Kant, dirigindo certa crítica aos sábios que assim
pensam: “a alma do homem tem sua sede no cérebro e um lugar indescritivelmente pequeno
nele é sua morada. Ali ela se sente como a aranha no centro de sua teia” (TG, AA 02: 325326).
Pólemos, Brasília, vol. 1, n. 2, dezembro 2012
184
Kant e Comércio Psico-Físico
A questão da impenetrabilidade é uma questão que se configura no campo da força
física e do movimento dos corpos dentro do âmbito do mecanicismo em relação ao choque
entre corpos materiais, mas que pode se aplicar ao conceito de alma enquanto ser imaterial
que ocupa um ser material, mesmo que o ser imaterial não possua tal propriedade. Tal questão
mostra a possibilidade de uma comunicação entre corpo e alma, por ocuparem um mesmo
espaço e estarem ligados um ao outro, mas esta comunicação permanece sem uma explicação
palatável, e se complica ainda mais quando se conhece um sujeito que afirma ter contato com
outros seres. Ou seja, será que Swedenborg é um ser imaterial? Ou simplesmente ele tem o
âmago aberto e pode receber informações de outro mundo, tal como a comunicação “natural”
que pode existir entre a alma e o espírito, uma vez que ambos são da mesma espécie e
participam de um suposto mundo espiritual?
Na presença de Swedenborg, Kant aproxima as teses metafísicas junto às fantasias
criadas por Swedenborg, apontando sua crítica ao racionalismo de cunho dogmático. No
entanto, esse ilustre ser dos dois mundos proporciona uma investigação que leva em
consideração a passagem de um mundo sensível para o mundo suprassensível. Assim,
teríamos uma configuração da alma humana em contato com o corpo, juntamente com um
contato com o outro mundo por meio de sua relação com o espírito. Ou seja, temos três
entidades: o espírito, a alma e o corpo. Elas se caracterizam do seguinte modo: o espírito
reside em um mundo fora do mundo terreno e mantém contato com a alma, que é da mesma
espécie; a alma ocupa o corpo e mantém relação com o outro mundo, pois está ligada ao
espírito; assim, a alma está entre o mundo sensível, ligada ao corpo, e mundo suprassensível,
ligada ao espírito. É nesse sentido que se pode falar de uma possibilidade de comunicação
entre dois mundos, pressupondo uma comunidade de seres espirituais em comunicação com a
alma.
Nos Sonhos de um visionário, Kant afirma que, diante das visões de Swedenborg, há
que se pressupor que a alma possui um contato com o outro mundo, do seguinte modo: a alma
unida ao corpo conhece os objetos da sensibilidade; o espírito em sua relação com a alma
também busca conhecer tais objetos, mas não consegue, uma vez que ele não está atrelado ao
corpo, permanecendo num mundo dos espíritos. Desse modo, deve-se pressupor que a alma
vê pelos olhos do corpo enquanto atrelada a ele, mas desprendida do corpo, nada vê, e
também se esquece do que viu, quando adentra ao mundo dos espíritos3. Há, portanto, uma
3
É possível aproximar essa argumentação com os argumentos de Platão no Diálogo Fédon, onde ele afirma que
a alma humana possui ligação com o Mundo Inteligível (ou Mundo das Ideias) quando não atrelada ao corpo,
permanecendo em contato com as Formas (Ideias puras). Ao passo que, atrelada ao corpo, a alma esquece o que
Pólemos, Brasília, vol. 1, n. 2, dezembro 2012
Márcio Tadeu Girotti
185
alma ligada ao corpo, mas também ligada ao espírito, enquanto ser dotado de razão existente
em outro mundo. Alma e espírito são, nesse sentido, diferentes.
Considerando que há um espírito, uma alma, um corpo e Swedenborg, que como alma
e corpo tem acesso ao outro mundo, é possível afirmar a existência de uma troca de
informações entre um mundo visível e invisível, mesmo que isso possa ser dito como
impossível ou meramente fantasia. Aqui, Swedenborg é configurado como o “oráculo dos
espíritos” (TG, AA 02: 362), que possui sua alma aberta para receber informações, o que o
torna diferente dos outros homens. Se há uma alma que se comunica com o outro mundo, por
meio de sua ligação com o espírito, há, portanto, um mundo espiritual. Se o mundo espiritual
existe, as almas podem se comunicar entre si por telepatia, mas não é o que ocorre.
Desse modo, no contexto dos Sonhos, há um argumento que pode ser configurado
como um dos principais pontos para compreender os limites do conhecimento através das
relações entre a alma humana e o suposto mundo dos espíritos. Tal argumento diz respeito ao
comércio psico-físico (troca de informações) entre o mundo dos espíritos e o mundo sensível
por intermédio da alma que se encontra no corpo do homem. Assim, o mundo espiritual teria
um contato direto com o mundo sensível e vice-versa. Além disso, se o mundo dos espíritos
existisse de fato, seria muito natural que todos os seres dotados de alma tivessem acesso a ele.
O mesmo contato da alma humana com o mundo dos espíritos permitiria, como já
adiantamos, um contato telepático entre os seres racionais, uma vez ligados com o mundo
espiritual através da alma. Vale notar que, nas Preleções de Metafísica Pölitz (V-MP-L 1, AA
28: 188), a alma é tratada não somente como a alma do homem, como alma inteligente, mas
também como estando em „contato‟ com o corpo. Mas ela não está somente em contato com o
corpo, ela está também em comunidade, pois é possível estar em contato com outros corpos,
como entre nós (eu e você), mas isso não é comunidade. A comunidade é o contato (a
relação), onde a alma e o corpo produzem uma unidade, onde as alterações do corpo são ao
mesmo tempo as mesmas alterações da alma e vice-versa. Ou seja, no ânimo não ocorre
nenhuma alteração que não seja a alteração que corresponde à alteração do corpo.
Na Crítica da razão pura (KrV), Kant aponta uma breve definição da alma como uma
substância simples, una e existente, que mantém relações com objetos possíveis encontrados
no espaço e os conceitos de sua doutrina teriam origem na composição desses quatro
elementos: substância, simplicidade, unidade e relação (com objetos no espaço). Tal definição
outrora conhecia junto às Formas, mas ao se deparar com as coisas do Mundo Sensível através dos „olhos do
corpo‟, relembra o que antes contemplou no Mundo das Ideias, e por rememoração (reminiscência), obtém o
conhecimento e reconhecimento do que está agora em contato: os objetos do mundo sensível.
Pólemos, Brasília, vol. 1, n. 2, dezembro 2012
186
Kant e Comércio Psico-Físico
aponta a crítica de Kant às teorias tradicionais da doutrina pura da alma, semelhante ao que
Kant procurou mostrar nos Sonhos.
Desses elementos originam-se, unicamente pela composição, todos os conceitos
da doutrina pura da alma, sem reconhecer minimamente um outro princípio.
Esta substância, simplesmente como objeto do sentido interno, fornece o
conceito de imaterialidade; como substância simples, o conceito de
incorruptibilidade; a sua identidade como substância intelectual fornece a
personalidade; todos esses três elementos em conjunto, a espiritualidade; a
relação com os objetos no espaço fornece o commercium com os corpos. Por
conseguinte, esta substância representa a substância pensante como o princípio
da vida na matéria, isto é, como alma (anima) e como o fundamento da
animalidade; esta, limitada pela espiritualidade, fornece a imortalidade. (KrV,
B 403, grifo do autor).
Pode-se perceber que a alma é imaterial (sentido interno), incorruptível (simples) e
substância intelectual (identidade) – personalidade – tais elementos concebem sua
espiritualidade. Com respeito à relação da alma com objetos no espaço, vê-se o comércio
psico-físico entre alma e corpos, ou seja, a alma por um lado é o princípio da vida, a
animalidade; por outro, ela poderia se comunicar com outras almas mediante um mundo
comum de espíritos, tal como Kant esboçou nos Sonhos.
Retomando os argumentos dos Sonhos, a alma humana, que vivifica o corpo, deve
estar ligada a dois mundos: sensível e espiritual. Ela enquanto ligada ao corpo sente o mundo
imaterial; no entanto, ela transmite influências de um suposto mundo imaterial, pois, está
ligada também ao espírito. Ou seja, a alma é uma espécie de meio-termo entre o mundo
sensível e o mundo espiritual. Nesse ponto, deve-se compreender que a alma é distinta do
espírito, à medida que o espírito pertence a outro mundo que não é sensível. Através da alma,
entretanto, busca conhecer tal mundo.
Com efeito, a alma, ligada ao espírito, concebe vida ao corpo contemplando por meio
dele o mundo sensível; se desligada do corpo, passa a viver na comunidade espiritual, pois a
ela está ligada. Porém, não carrega consigo o que outrora tinha por representação, o mundo
material (sensível).
De acordo com isso, é certamente um mesmo sujeito que pertence como um
membro simultaneamente ao mundo visível e invisível, mas não exatamente a
mesma pessoa, porque as representações de uma não são ideias que
acompanhem as representações do outro mundo, devido a sua constituição
distinta, e, por isso, não lembro enquanto homem aquilo que penso como
espírito e, vice-versa, meu estado como um homem não entra na representação
de mim mesmo como um espírito. (TG, AA 02: 337-338).
A suposição da existência de um mundo espiritual, de seres imateriais, deve ser
pressuposta à medida que a matéria morta do mundo deve ser vivificada por algo distinto do
Pólemos, Brasília, vol. 1, n. 2, dezembro 2012
Márcio Tadeu Girotti
187
corpo material; ou seja, por algo imaterial que não participa da força de impenetrabilidade e
possa ocupar o corpo que não imprime resistência à sua presença.
Nesse sentido, se há ou não seres imateriais que vivifiquem a matéria morta, tais seres
estariam em uma comunidade de seres imateriais em relações recíprocas e, possivelmente, em
relações com os corpos materiais por intermédio da alma. Haveria, portanto, uma espécie de
comércio psico-físico, uma relação da alma com a comunidade dos espíritos.
[…] que a alma humana se encontra também nesta vida em uma comunidade
indissolúvel com todas as naturezas imateriais do mundo dos espíritos, que ela
tanto age sobre essas quanto recebe delas influências, das quais não tem,
contudo, consciência como homem, enquanto tudo está bem. Por outro lado, é
também provável que as naturezas espirituais não possam ter imediata e
conscientemente impressão sensível do mundo corporal, porque não estão
ligadas com nenhuma parte da matéria em uma pessoa, para por meio disso
tornarem-se conscientes de seu lugar no mundo material e, através de órgãos
artificiais, da relação dos seres extensos seja consigo mesmos seja uns com os
outros, mas que elas podem influenciar certamente as almas dos homens como
seres de natureza idêntica e se encontram de fato sempre em comunidade
recíproca com elas, só que de tal modo que, na comunicação das representações,
aquelas que a alma contém em si como um ser dependente do mundo corporal
não podem passar para outros seres espirituais e os conceitos dos últimos, como
representações intuitivas de coisas imateriais, não podem ser apreendidos
claramente pela consciência do homem, pelo menos não em sua constituição
própria, porque os materiais para ambos os tipos de ideia são de espécie distinta.
(TG, AA 02: 333).
Diante disso, se tal „comércio‟ fosse possível e se a alma humana participasse dele,
seria também possível que todos os seres racionais se comunicassem entre si, como por
telepatia – o que não é o caso.
Essas argumentações presentes nos Sonhos desembocam na Dissertação de 17704
(MSI), dentro de um contexto que se aproxima do suposto comércio psico-físico, mas,
guardadas as devidas proporções, neste último escrito as relações se estabelecem entre corpos
físicos e entre tais corpos e uma possível unidade do Mundo encontrada em um ser fora do
mundo, ou uma causa comum (única): Deus.
Surge então a questão: “[...] como é possível que várias substâncias estejam em mútuo
comércio e, por esta razão, pertençam ao mesmo todo a que se chama mundo”? (MSI, AA
02: 407, grifo do autor). Tal questão se origina em outra: “em que princípio se funda esta
mesma relação de todas as substâncias, a qual, considerada intuitivamente, se chama espaço”?
4
Aqui, Kant (MSI, AA 02: 409) compreende dois tipos de comércio: real e físico, e ideal e por simpatia. Pelo
primeiro, o mundo é um todo real (por influência física); pelo segundo, o mundo é um todo ideal (por simpatia).
Dada a existência das coisas no mundo mediante conexão com um princípio comum (causa comum) tem-se uma
harmonia geralmente estabelecida; ao contrário, a relação entre substâncias, em que há adaptação dos estados
individuais de cada substância com outro, tem-se a harmonia singularmente estabelecida. No primeiro caso há,
portanto, um comércio real e físico; no segundo, um comércio ideal e por simpatia.
Pólemos, Brasília, vol. 1, n. 2, dezembro 2012
188
Kant e Comércio Psico-Físico
(MSI, AA 02: 407). Estas duas questões procuram mostrar duas coisas: 1) a existência dos
objetos se dá no espaço e tempo, campo sensível onde se dá a relação (comércio) entre corpos
físicos; 2) o mundo como forma gera a questão acerca da totalidade e conexão de todas as
substâncias, uma unidade: Deus.
Sendo dadas várias substâncias, o princípio do comércio possível entre elas não
consiste na mera existência das mesmas, mas requer-se além disso algo a mais a
partir do qual sejam compreendidas as relações mútuas. Com efeito, para
subsistirem elas não necessitam de se relacionar com algum outro, a não ser
porventura com a sua causa; porém, a relação do efeito à causa não é um
comércio, mas uma dependência. Por conseguinte, se ocorre algum comércio de
umas substâncias com outras, há a necessidade de uma razão especial que o
determine com precisão. (MSI, AA 02: 407, grifo do autor).
Para compreender as relações é preciso algo „a mais‟ do que a própria existência das
coisas, e se há um comércio entre substâncias, é necessário uma razão para determinar tal
comércio5. Nesse sentido, uma razão que determine todas as relações e também conceda
unidade deve ser única, pois, se há um mundo, deve existir uma única causa. Caso contrário,
se há várias causas para determinar a unidade do mundo existirão, portanto, vários mundos –
o que não é o caso. Assim, tudo deve ser sustentado pela força infinita de um só:
“[...] a mente humana não é afetada pelas coisas externas e o mundo não
se oferece ilimitadamente ao seu olhar senão na medida em que ela
mesma é sustentada com todas as outras pela mesma força infinita de um
só” (MSI, AA 02: 409, grifo do autor).
De modo semelhante, nas Preleções de Metafísica Pölitz (V-MP-L 1, AA 28: 112),
onde existe um comércio há não só um influxo, mas também um influxo mútuo. No entanto,
tal relação deve ser sustentada por um único ser, que garante a unidade do todo diante da
variedade da substância que deve ser configurada numa unidade. Pois, se há um mundo, deve
existir uma causa única que sustente as relações existentes nele, já que se existissem outras
causas, existiriam outros mundos – o que não é o caso.
Com efeito, a suposição da existência de um mundo espiritual (Sonhos) ou um mundo
inteligível (Dissertação de 1770), ou uma comunidade dos espíritos que mantenha relação
com o mundo dos seres racionais vivificados por meio da alma, ou ainda um Deus que
mantenha a unidade das relações entre as substâncias e entre uma causa única dessas relações,
leva a crer o seguinte: há, de fato, uma divisão entre mundo sensível e mundo inteligível e
deve-se supor uma relação entre eles; há, de fato, um conhecimento do mundo sensível e a
suposição de poder, ao menos, pensar um mundo inteligível; há, de fato, o conhecimento dos
5
É possível dizer que a citação acima é, de certo modo, “parafraseada” nas Preleções de Metafísica Pölitz (VMP-L 1, AA 28: 110-111), que assegura a afirmação da existência do comércio e a existência de uma causa
única que determine as relações e conceda a unidade requerida.
Pólemos, Brasília, vol. 1, n. 2, dezembro 2012
Márcio Tadeu Girotti
189
fenômenos e a suposição da existência de uma coisa em si mesma expressa pela aparição dos
fenômenos.
Nesse sentido, Kant aponta a possível sistematicidade do mundo dos espíritos como
real ou simplesmente hipotética:
Seria uma beleza se uma tal constituição sistemática do mundo dos espíritos,
como a representamos, pudesse ser deduzida ou mesmo só inferida com a
probabilidade de alguma observação qualquer efetiva e geralmente admitida, e
não apenas do conceito da natureza espiritual em geral, demasiadamente
hipotético. (TG, AA 02: 333).
Como se vê, é possível afirmar a existência do espírito, como um conceito, inferido de
modo racional, ao mesmo tempo em que é possível inferir a existência de um mundo dos
espíritos ou uma comunidade dos espíritos, „hipostasiando‟ sua sistematicidade. Ou seja, há
hipóteses e pressupostos sobre a existência do espírito ou da comunidade de espíritos, assim
como podemos inferir a existência de um ser supremo que ordena o mundo, mas que não
podemos conhecê-lo e provar, de fato, sua existência (ao menos em vida). Desse modo, o que
se pode mostrar é que se existe uma comunicação entre a alma e o suposto mundo dos
espíritos, sua comprovação pode somente ser dada em sentido negativo: pode-se pressupor
que existe um mundo dos espíritos, mas não é possível provar tal existência. Do mesmo
modo: é possível que exista uma troca de informações entre a alma (atrelada ao corpo) e o
espírito residente no mundo suprassensível, mas não é possível constatar tal possibilidade
enquanto seres de um mundo sensível, ao menos se fossemos como Swedenborg, se e
somente se as histórias deste ilustre ser, como oráculo dos espíritos, for verdadeira.
No mesmo sentido, se há ou não uma comunicação de nossa alma com um mundo
extracorpóreo, e se podemos acreditar nisso ou duvidar de tal possibilidade, é preciso recorrer
à corrente espiritualista, juntamente com seus adeptos, a fim de que comprove que nossa
alma, atrelada ao nosso corpo, possui uma ligação íntima com espíritos fora de corpos
materiais, sendo possível, portanto, a comunicação. Pois somente é possível uma
comunicação entre alma e espírito se os mesmos são dotados da mesma característica, qual
seja, a imaterialidade.
Somente há comunicação se a alma se abre ao espírito, e somente existe uma alma
atrelada ao corpo, pois desatrelada das amarras do corpo, ela não seria mais alma, e sim
espírito. Ou seja, alma e espírito são seres imateriais e ocupam lugares diferentes. O primeiro,
ocupa o corpo e o vivifica; o segundo, ocupa um mundo que não conhecemos em vida, e vive
em comunidade com outros seres de mesma espécie. Com isso, a alma poderia ter contato
Pólemos, Brasília, vol. 1, n. 2, dezembro 2012
190
Kant e Comércio Psico-Físico
com o outro mundo por intermédio do espírito e este pode ter acesso a informações do mundo
real, sensível, visível, em contato com a alma.
Mesmo assim, continuamos na pressuposição da existência de um mundo espiritual,
sem provar, de fato, sua veracidade ou existência, e permanecemos na dúvida e continuamos
também na crença da espiritualidade comunicável entre um ser dotado de corpo e alma e um
ser espiritual (imaterial).
Kant, se vivesse em nossos dias, se alegraria, talvez, em encontrar outros adeptos das
doutrinas de Swedenborg, que endossariam as histórias fantasiosas ou as crenças em seres de
outro mundo. Ao menos, Kant comprovaria que há outros crentes e postularia, mais uma vez,
a ponte entre o nosso mundo real e o mundo invisível, corroborando sua tese hipotética acerca
da existência de um mundo espiritual.
Referências
KANT, Immanuel. Kants Gesammelte Schriften. 29 Band. Berlin: Georg Reimer, 1902.
______. Crítica da razão pura. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção Os
Pensadores, Kant I).
______. Crítica da razão pura. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
______. Acerca da forma e dos princípios do mundo sensível e inteligível. In: SANTOS, L. R.
dos.; MARQUES, A. Dissertação de 1770 seguida de Carta a Marcus Herz. 2. ed. Lisboa:
Casa da Moeda, 2004. p. 23-105
______. Sonhos de um visionário explicados por sonhos da metafísica. In: ______. Escritos
pré-críticos. São Paulo: Ed. Unesp, 2005. p. 141-218.
TROBRIDGE, George. L. Swedenborg, vida e ensinamentos. Rio de Janeiro: Sociedade
Religiosa A Nova Jerusalém, 1998.
Pólemos, Brasília, vol. 1, n. 2, dezembro 2012