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APRESENTAÇÃO DO DOSSIÊ
ReXistências musicais entre arte e política1
Rose Satiko Gitirana Hikiji
Vi Grunvald
Universidade de São Paulo | São Paulo, SP, Brasil
[email protected]
https://orcid.org/0000-0001-5038-8435
Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre, RS, Brasil
[email protected]
https://orcid.org/0000-0001-8299-6830
Paula Guerra
DOI
https://www.doi.
org/10.11606/1678-9857.
ra.2022.202284
1 | Este dossiê foi concebido
no contexto pesquisas
desenvolvidas a partir do
Projeto Temático O Musicar
Local – Novas trilhas para a
etnomusicologia (FAPESP n.º
2016/05318-7) do qual Rose
Satiko Gitirana Hikiji e Vi
Grunvald fazem parte. Também
resultou da organização, da
participação e do encontro
entre Paula Guerra e Vi
Grunvald na Conferência
Internacional combART em
2019 na Universidade do Porto.
Universidade do Porto / Porto, Portugal
[email protected]
https://orcid.org/0000-0003-2377-8045
Dedicamos esse dossiê a Kaciano Gadelha, que se foi cedo demais.
O que têm em comum o musicar (Small, 1998) de Apeshit, o videoclipe do casal de artistas estadunidenses Beyoncé e Jay-Z, as performances musicais de João do Crato no
interior do Ceará, um projeto entre uma cantora lírica, um musicólogo e um líder indígena na Colômbia, o álbum AmerElo do rapper paulistano Emicida, o artivismo musical de Linn da Quebrada e a música de imigrantes africanos em São Paulo? À primeira
vista, nada. Mas neste Dossiê estes fazeres musicais servem todos ao mesmo intuito:
são formas de reXistência.2 A ligação entre música e política é vetusta e nem sempre
perceptível. Do clamor patente, ao simples comentário, do motim pessoal ao social,
a música tem atuado para agitar consciências e – menos frequentemente – sistemas,
instituições e estruturas (Blacking, 1995). Schreiber (2019) considera que a música é
plena energia para a ação. Uma expressão de poder, não apenas sônica ou emocional.
A música, especialmente quando criada em resposta aos problemas sociais do mundo,
torna-se uma força única (Guerra et al., 2019). E talvez desse poder criador e criativo é
que venha a insistência de DeNora (2003) para considerarmos a música uma prática
social de fato e de direito e não apenas um mero reflexo da estrutura social. Portanto,
a música é uma parte da nossa vida social.
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2 | Para a noção de reXistência
com a qual trabalhamos, cf.
Grunvald, neste dossiê.
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ReXistências musicais entre arte e política
Sem deixar de lado certo virtuosismo formal, a música é, como nos lembra
Nietzsche, inevitavelmente dionisíaca em sua incitação ao afeto e à ação. E isso faz
com que ela seja produzida, cantada e tocada, mas também apropriada e reapropriada sem respeitar noções e sentidos dos mais enraizados, como a Nação por exemplo.
Contudo, como o ativismo negro nos têm ensinado, nem tudo é ou pode ser facilmente
apropriado por todos.
No seu clássico estudo sobre O Atlântico Negro, Paul Gilroy (2001) marca como a
música foi fundamental na constituição da experiência diaspórica de pessoas negras
escravizadas, oferecendo, a um só tempo, possibilidades de resistência frente à violenta
desterritorialização que sofreram e a constituição de um conjunto de afinidades de pertencimento transnacionais cujo efeito estava para além do que qualquer Estado moderno poderia propor ou sonhar. Retomando, à contrapelo, certas leituras de autores como
W.E.B Du Bois e Richard Wright, Gilroy afirma peremptoriamente que “a música e seus
rituais podem ser utilizados para criar um modelo no qual a identidade não pode ser entendida nem como uma essência fixa, nem como uma construção vaga e extremamente
contingente a ser reinventada pela vontade e pelo capricho de estetas, simbolistas e
apreciadores de jogos de linguagem” (Gilroy, 2001 [1993]: 209).
Possibilidades, não destino. A música também serviu indelevelmente aos
vários nacionalismos, e o nazismo é, talvez, apenas o exemplo mais ilustre (Kater e
Riethmüller, 2003). Assim como, contrariamente, pode tornar-se também ímpeto e
grito de revolução contra eles. A recente série espanhola La Casa de Papel, apropriou-se, contundentemente, em sua construção narrativa, da música Bella Ciao, hino dos
partigiani na resistência italiana contra o fascismo. Mas esse contexto já era em si uma
rearticulação: com seis estrofes de sintaxe e vocabulário simples e versos curtos afeitos
à memorização e repetição, a música, sonora e liricamente, em tudo participa do seu
contexto popular de origem quando era entoada por trabalhadoras rurais do norte da
Itália.
Como esses rápidos exemplos deixam latente, em seu caráter vivo e vivificador, a
música, arte considerada sem suporte, transforma-se ela própria em suporte de corpo
e alma nas contendas sociais, sejam elas cotidianas ou políticas (Guerra, 2022). Vale a
pena recordar também o estudo de Eyerman e Jamieson (1998: 116) sobre um grupo
de protesto que tinha uma canção de Bob Dylan como fio condutor das suas ações
políticas. Com efeito, nesse estudo, os autores referem que a música dava ao grupo um
significado e sentido de ligação entre eles. No referido estudo, um ativista descreve a
ligação do grupo à música: “Nós seguíamos a carreira de Bob Dylan como se ele estivesse a cantar a nossa música; tínhamos o hábito de perguntar entre nós onde é que
ele nos levaria de seguida”.
Chegando aos nossos dias, com este Dossiê, queremos insistir na abordagem
da força única da música como resposta aos problemas sociais recentes e contemporâneos, bem como a mudança dos conceitos de resistência e de protesto na música
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popular (Guerra, 2019; Guerra, 2021). A Escola de Birmingham, concebida por Stuart
Hall, mostrou-nos a vivacidade das resistências musicais juvenis por meio de rituais
ao longo das décadas de 1960 e 70. A ambição era a de mostrar como a cultura e os
estilos juvenis não eram apenas um mercado, uma forma de desvio ou um mundo
de desordem, mas sim, estilos e culturas que podem e devem ser lidos como rituais
simbólicos e como formas de fazer resistência (Becker, 1997). A subcultura, a base para
a resistência, expressa-se em música e em estilo (Hebdige, 2018). Durante a década
de 1980, McRobbie (1991) mostrou-nos como a cultura popular, os seus mercados e
suas expressões estéticas podem ser utilizados para transgredir a “ordem de gênero”.
A resistência envolve várias tentativas de utilização da música popular e de artefactos
estéticos para lutar contra o poder, e para expressar e desenvolver novas formas de
compreensão da subjetividade da cultura juvenil (Johansson e Lalander, 2012: 1082).
Na segunda metade do século XX, no bojo de um (outro) movimento transnacional simbolizado pela cultura jovem, pela ética “paz & amor” e inextricavelmente
marcado pela música, foi redesenhada certa cartilha tradicional de se fazer política.
Nas décadas posteriores, houve um ímpeto claro em torno da reconceitualização da
resistência juvenil, direcionado para os trabalhos de Foucault, para o pós-estruturalismo e para formas mais complexas de interpretação das (sub)culturas (Blackman, 2010;
Gelder 2007). Isto ecoa as noções de trajetórias nômades e rizomáticas, para retomar
Deleuze e Guattari (1986), autores dos quais Gilroy também se vale para pensar essas
potencialidades.
Se é verdade que as práticas de resistência musical são também práticas de
existência, deixamos de lado uma noção totalizante de estruturas, de sujeitos e de
luta social, fazendo assomar uma compreensão da reXistência mais fragmentada e
orientada para o processo dos movimentos sociais em devir. “A resistência envolve”,
nas palavras de Ross Haenfler (2004: 429), “mostrar coletivamente desaprovação por
algum aspeto da cultura, questionar objetivos dominantes, tornar visível uma ideologia invisível e criar uma alternativa”.
Lauren Istvandity (2022) advoga a omnipresença da música nas sociedades de
capitalismo avançado, assomando como uma escolta às vidas cotidianas (DeNora,
2000). A música, a cada circunstância das nossas vidas, pode ser usada e/ou lembrada,
assumindo-se como uma trilha sonora vitalícia. E esse ponto nos leva ao que Sadiya
Hartman, em seu livro Scenes of subjection, chamou de “linha imprecisa entre testemunha e espectador”.
Por um lado, como propõe Fred Moten, é possível buscar “um outro engajamento
com a música terrivelmente bela das recitações de [Frederick] Douglass do açoitamento
de sua Tia Hester” em direção a “problemáticas do ritual diário, da qualidade encenada
da vida que é violentamente (e às vezes otimizadamente) cotidiana” (2020 [2003]: 20;
16). Por outro lado, Hartman nos conta do episódio que vivenciou John Rankin quando
viu “miseráveis insensíveis”, após terem acorrentado negros escravizados que haviam
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adquirido como se fossem simples mercadorias, içarem a “bandeira americana da
liberdade” e, ao som e violinos, atravessarem, com seus bens recém-adquiridos, o país.
O ponto é que é preciso estarmos atentas pois, ao verter-se em vida e cotidiano,
a música nem sempre o faz da mesma maneira libertadora. Na provocadora leitura de
Hartman, ao retomar as palavras de Rankin, esse episódio evoca como “‘o mal deveras
perigoso’ da escravidão e os ‘gemidos agonizantes da humanidade em sofrimento’
foram feitos música” (Hartman, 1997: 17).
Essa é uma ressalva importante no contexto de um Dossiê como este que trata
apenas de um dos lados dessas infinitas combinações entre música e política. Ainda
assim, apenas uma ressalva. Aqui, nosso foco é como a música opera muitos aspectos
da reXistência à qual nos referimos, incluindo o misterioso poder do silêncio como
forma de interlocução. Nos artigos aqui publicados, há uma relação tão necessária
quanto custosa entre o mundo sônico e a expressão de uma realidade além da mera
condição humana. Transportam-nos a lutas sociais, de territórios, de indivíduos e de
causas, bem como enfatizam a infinita capacidade de cocriações resilientes ao tempo
e à mudança social.
Parece-nos justo rememorar Eduardo Galeano (2006), designadamente, quando introduz nas suas abordagens a noção de sentipensante para se referir a um pressentimento que pensa e que sente o mundo. Então, a capacidade de a música acompanhar
tensões, sentimentos, espaços e silêncios, demonstra o papel decisivo que esta possui
na definição e na afirmação como sentipensante. Se pensarmos nas contraculturas dos
anos 1960 da qual falamos há pouco, é disso que se tratava (Anderton, 2022).
Novamente Galeano, no seu livro Hunter Stories (2017), lembra-nos que nas
costas de África, os tambores acompanharam as plantações da América, dando voz
àqueles que estavam condenados ao silêncio. Já nessa época, os colonizadores e os
proprietários estavam bem cientes da importância e do poder da música, no sentido
em que a mesma era vista como aquela que inspirava revoluções.
Para Fischlin (2021), a agência significa um poder de ação direta no mundo, isto
é, representa um elemento catalisador da transformação efetiva. A agência materializa-se em aspetos concretos e objetivos: na justiça e na igualdade social, na equitatividade, na racialidade, na decolonização, no género e no equilíbrio com a natureza. A
música encaixa-se nestas equações.
Assim, acreditamos que este conjunto de reflexões aqui reunidas pontua que
cada som conta uma história individual e coletiva, bem como nos faz sentir. A música
é som, mas também é informação social; informação que advém das relações, das
práticas sociais e dos modos de (re)produção social. É por isso que, ainda que não se
restrinja a isso, a música pode também ser utilizada na condição de ferramenta descritiva do social. Na Índia, por exemplo, a música foi utilizada para protestar contra a
exploração britânica durante o período de colonização e, além disso, foi a música que
abriu o atual vasto campo de artes performativas (dança, música e teatro) que têm
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como objetivo a expressão de sentimento políticos anticoloniais (Ramnarine, 2019). O
mesmo se pode dizer em relação ao funk no Brasil e ao seu consumo em favelas, uma
vez que o mesmo é utilizado como um meio de reflexão face as vivências diárias – e, a
partir dessa reflexão, ação.
Quer seja nos trabalhos de Grada Kilomba – nos quais a música é o veículo que se
alia à imagem para a transmissão de uma mensagem3 - ou no funk de Linn da Quebrada,
aqui trabalhados por Vi Grunvald, encontramos pequenos campos magnéticos de ação
e de intervenção. Apropriando-nos dos contributos de Foster (2015), podemos descrever
os processos de vivência sociais como uma arena, na qual aos indivíduos é dada uma
oportunidade para explorar as próprias vidas, bem como as vidas dos que os rodeiam.
A música, dentro desta ótica, produz esses vislumbres. Autores como Ansdell (2005) escrevem que a música consente serem quem não o são. Ou talvez, dizemos, nos colocam
em devires, processos que estão acontecendo, mas sempre um passo atrás do tornar-se.
Ao usarmos a música como uma forma de comunicarmos com o outro - algo que
DeNora (2013) aborda quando se afasta de uma visão dos materiais culturais (canções
ou gêneros musicais) como meros instrumentos – assumimos que ela é um equipamento para viver. A música, neste sentido, é uma arte em ação (Bernárdez et al., 2019).
A música atua na constituição de localidades (Finnegan, 1989), que mais que
espaços geográficos, são “estruturas de sentimento” (Appadurai, 1996). Musicar4 se
constitui em um projeto político (Reily, 2021), criando mundos de imaginação e resistência. Por outro lado, localidades afetam fazeres musicais, interpelando os músicos
com suas instituições, espaços, políticas, preconceitos.5
A despeito da celebrada, mas, em muitos sentidos, falaciosa, democratização da
informação que vivemos num mundo altamente digitalizado (ainda mais nesse contexto pós-esperamos-pandêmico), para muitas, a música é o principal, senão o único,
meio de adentrar certas questões da política – o que a torna prenhe para as articulações
dos movimentos sociais. A música tem fomentado a perseverança individual ao longo
de tempos difíceis e criado inspiração coletiva. No ativismo, uma vez que a música,
como vimos, atravessa potencialmente fronteiras sociais e culturais, ela torna-se crucial para a exploração, experimentação e luta contra os termos de um mundo que, em
seu sexismo, racismo, cisheteronormatividade, classismo etc., se quer cômodo demais.
Desta feita, a música pode facilmente viajar entre a arte e o ativismo, habilidade essa frequentemente visível na censura que alguns governos fazem à música.
Diana Taylor (2016) postula que os indivíduos usam a performance para intervir em
contextos políticos, em lutas e em debates e, na perspetiva da autora, o ativismo deve
ser analisado como uma performance. No bojo dessa sugestão, pensamos o artivismo6
musical justamente como reXistência de sons, palavras e gestos contra opressões que
estão tanto no âmbito macro quanto micropolítico.
E mesmo na dita cultura pop, como tão bem analisa Kaciano Gadelha nesse
texto postumamente publicado. Assim, levando adiante um conjunto inescapável
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3 | Ter como exemplo a
performance Narciso e Eco
(2020). Disponível em:
https://www.youtube.com/
watch?v=i9Lu5vG51zE&ab_
channel=AlessandroMendes
4 | Para discussões sobre o
musicar local, cf. Villela et al.
(2019) e Giesbrecht, Hikiji e
Grunvald (2021).
5 | Ver Chalcraft & Hikiji, neste
dossiê.
5 | Para discussões sobre o
conceito de artivismo, cf. di
Giovanni (2015); Raposo (2015);
Grunvald (2019).
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de reflexões interdisciplinares entre as artes, as ciências sociais e a imaginação social
e política, Kaciano, a partir do videoclipe Apeshit de Beyoncé e Jay-Z, se indaga que
imagens a presença negra nas artes movimenta no sentido de um futuro não racista.
Em sua reflexão, as imagens são retomadas para além das dimensões ontológicas ou
fenomenológicas, projetando-se (e projetando-nos) num horizonte fabulativo. Ao
considerar a possibilidade da pesquisa estética como “empreitada crítica e sensível,
em que a dimensão performativa instaura novas atmosferas de vida”, e aproximá-la
tanto da proposta de negridade de Denise Ferreira da Silva quanto das reflexões de
Leda Maria Martins sobre performance e memória cultural, Kaciano propõe tomarmos
este trabalho como vetor de desfiguração da função significante da gramática racial
moderna ao colocar os corpos negros como “o lugar da memória e a tessitura do devir”.
É também por meio do corpo, performance e aquilo que, a partir de José Estebán
Muñoz, é acionado como desidentificação que Linn da Quebrada é chamada à esta
conversa de reXistências. Retomando as propostas dessa multiartista (e, atualmente,
ex-BBB – novamente o espaço midiático como lugar de disputa), Vi Grunvald sugere
que, tanto em suas performances quanto em suas letras terroristas, Linn propõe um
horizonte especulativo que trama, terroristamente, contra normas sexogenéricas
vigentes. No bojo dessa reflexão e extrapolando a aproximação entre música e política,
a autora também questiona o que chama de “sentido formalista de estilo musical” e
a imbricação mútua entre musicar e localidade, postulando a potência do artivismo
musical para a criação de esferas públicas éticas e estéticas na qual a lógica dominante
do CIStema colonial e necropolítico não é régua comum.
Ainda ressaltando a importância da performance na constituição de práticas e
fazeres musicais, Roberto Marques reflete sobre “lugares cognitivos e ficções persistentes na poética de João do Crato”. O termo “contracultura” que também consta no
título do seu artigo desloca-nos para um passado histórico das contraculturas hippies
como mencionamos, ao mesmo tempo que nos leva para outro contexto geográfico,
nomeadamente o Brasil, mais concretamente o Cariri cearense. Neste artigo, o autor
debruça-se sobre o trabalho do cantor João do Crato que, ao utilizar a música como
um meio para descrever e retratar as vivências no interior do Ceará, constrói um ativismo particular no qual a performance se molda e se relaciona com o ambiente, com
os contextos e com as identidades. Ao acompanhar este artista, Roberto Marques nos
fornece uma visão das produções simbólicas de uma microrregião e, nesse sentido, demonstra-nos como a música se assume como uma ponte com o passado, mas também
como um meio agregador de comunidades tal como nos descreve Sarah Baker (2018).
É um relato e uma prospetiva de ação, com intuito de evidenciar distintos marcadores
identitários, centrado na ideia de deslocamento, de contracultura e de cultura popular.
Continuando com a ligação entre a música e o ativismo, e ainda mobilizando
questões de gênero e sexualidade, Paula Guerra reflete sobre o Fado Bicha, projeto
no qual a música assume-se como a principal arma de combate (Guerra, 2020), sendo
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utilizado como um veículo contestatário das desigualdades e dos preconceitos de
género ainda embrenhados na sociedade portuguesa, fruto de uma repressão ditatorial de longo curso, bem como resultado de um passado colonizador. Novamente, a
memória (Istvandity, 2022) e a tradição cultural assomam: representadas pela reapropriação de gêneros musicais tradicionais – masculinizados e segregadores – tais como
o fado, que se assumem como a pedra de toque do artivismo dos Fado Bicha. Além
disso, neste artigo, é evidenciada a importância que a música possui na comunicação
e na (re)configuração das identidades de gênero como referimos, mantendo-se em
linha com o que referem Taylor (2016) e Butler (1999), esta última com o seu conceito de
performatividade de gênero. Notando a desadequação do entendimento da música
como mero fenômeno superficial de uma expressão sociopolítica, Paula Guerra mostra, neste artigo, como os Fado Bicha enfatizam a importância da performatividade
numa improvável resistência fundada no fado. A sua insurgência manifesta na realidade portuguesa, ao provocar-lhe agitação e mudança pela leitura que dela fazem,
constitui-se em elemento integrante de uma identidade coletiva reconfigurada pelo
artivismo. Assim, o Fado Bicha tem sido instrumento de refutação de hegemonias,
de resistência e de articulação de novas alternativas – e, justamente, onde menos se
esperava - no fado. Talvez por isso, o título do seu último registo fonográfico de 2022
seja “Ocupação”.
Acompanhando a presença de músicos africanos que chegaram ao Brasil nos
últimos anos, Jasper Chalcraft e Rose Satiko Hikiji descrevem um musicar translocal
que cria um mundo de imaginação e potencialidade política, habitado por entidades
africanas e afro-diaspóricas da história passada e presente, cenário de lutas e manifestações artísticas anticoloniais, antiescravistas ou afropolitanas (Mbembe, 2015). A
resistência é constituinte da experiência de ser/tornar-se africano no Brasil – seja no
palco, no estúdio de gravação, em eventos artivistas ou solidários. Os recém-chegados
lidam com as políticas raciais e culturais do país por meio de seu musicar, são interpelados pelo racismo e pelos movimentos afro-brasileiros, mobilizam capitais transculturais (Glick-Schiller e Meinhof, 2011), criando formas de “ação social” (Blacking, 1995)
para navegar na cena artística brasileira.
Encerramos o Dossiê com o artigo de Adriana Facina, que identifica narrativas
de esperança de sujeitos periféricos, artistas que se encontram, em suas palavras,
“ameaçados pelo recrudescimento da violência armada contra a população negra e
favelada, pelo aprofundamento da desigualdade econômica, pela destruição das políticas públicas de cultura e pela pandemia de COVID-19”. Seus trabalhos artísticos e culturais são reinvenções de si, formas de interação, narrativas do que. Arjun Appadurai
(2013) qualifica como uma combinação de paciência e emergência. Adriana apresenta
a esperança como necessidade ontológica, método, política, recurso trágico contra o
desespero, forma de imaginar o futuro. Reflexão necessária, utópica, reXistente.
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