Recebido em: 31 de janeiro de 2021 | Aceito em: 18 de abril de 2021
DOI: https://doi.org/10.35520/mulemba.2021.v13n24a41259
A RAINHA GINGA, DA HISTÓRIA À LITERATURA1
QUEEN NZINGA, FROM HISTORY TO LITERATURE
LA REINA NZINGA, DE LA HISTORIA A LA LITERATURA
Bruno Mariano Horemans2
Mário César Lugarinho3
RESUMO:
Leitura circunstanciada de duas obras literárias que se dedicam à personagem histórica, literária
e mítica de origem angolana Nzinga Mbandi. Uma já reconhecida pela crítica, o romance do
autor angolano José Eduardo Agualusa, publicado em 2015, e outra, menos conhecida, da autora
estadunidense Patricia McKissack, publicada em 2000. O estudo procura comparar em ambas
as narrativas as relações mantidas com fontes históricas, tendo em vista, especialmente, que a
narrativa de McKissack se constitui como adaptação para o público infanto-juvenil, localizado
em espaço e cultura, inicialmente, estranhos à personagem.
PALAVRAS-CHAVE: Nzinga Mbandi, história, ficção, interpretação.
ABSTRACT:
Detailed reading of two literary works dedicated to the historical, literary and mythical character, Queen Nzinga Mbandi of Angola. One of these works is already acknowledged by the critics, the novel published in 2015 by Angolan author José Eduardo Agualusa, while the other is
the book by North American author Patricia McKissack, published in 2000. This paper aims to
compare the relationships that both narratives have to historical sources, while having in mind
that the work by McKissack is built as an adaptation for American young readers in cultures
and places initially unfamiliar to the character.
KEYWORDS: Nzinga Mbandi, history, fiction, literary interpretation.
1 Artigo resultado do Programa de Iniciação Científica da Universidade de São Paulo (2019-2020), sob a orientação
do Prof. Dr. Mário Lugarinho (USP)
2 Aluno de Graduação em Letras (Bacharelado Português-Alemão) da USP.
3 Professor Associado da Universidade de São Paulo. E-mail:
[email protected]
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RESUMEN:
Se propone aquí una lectura detallada de dos obras literarias dedicadas al personaje histórico,
literario y mítico de origen angoleño Nzinga Mbandi. Una de ellas ya está reconocida por la
crítica, la novela del autor angoleño José Eduardo Agualusa, publicada en 2015, y la otra, de la
autora estadounidense Patricia McKissack, fue publicada en 2000. El estudio busca comparar
en ambas narrativas las relaciones que se establecen con las fuentes históricas, teniendo en
cuenta, en particular, que la narrativa de McKissack se constituye como una adaptación para
niños y adolescentes, ubicada en un espacio y en una cultura inicialmente ajenos al personaje.
PALABRAS CLAVE: Nzinga Mbande, historia, interpretación
1.
Personalidade histórica e personagem literária, a heroína nacional angolana, a Rainha
Nzinga Mbandi, tem relevância não só para a história angolana e africana, como atesta a inclusão
recente de seu perfil à série Mulheres na História Africana da UNESCO, acompanhada de uma
representação em forma de quadrinhos de sua vida; como importância mundial, uma vez que há
uma vasta produção cultural dos mais variados tipos referente a seu nome e herança, inseridas
não só no contexto do continente africano, como também da Europa e das Américas.
A minuciosa pesquisa realizada por Linda Heywood (2019), professora da Universidade
de Boston nos Estados Unidos, procurou reconstruir a vida da Rainha Nzinga Mbandi a partir
de vasta documentação historiográfica. A partir do trabalho de Heywood foi iniciada pesquisa a
respeito de Nzinga Mbandi em diversas manifestações literárias, a fim de estudarmos como uma
personagem histórica tão complexa ao atravessar oceanos, fertilizando gerações, pelas tradições
orais dos povos colonizados, se inscreveu em culturas, a princípio, consideradas estranhas à sua
história e às suas estórias. As possibilidades verificadas de representação de Nzinga Mbandi são
inúmeras, sendo ela invocada nos mais diferentes contextos e nos mais variados formatos, de
ícone de discussões pós-coloniais contemporâneas à figura heroica4.
Sendo assim, o interesse deste artigo é observar a representação da personagem em
obra voltada para o público infanto-juvenil, Nzingha: Warrior Queen of Matamba, de Patricia
McKissack (2000)5, público esse que parece, pelo menos à primeira vista, justamente o oposto
do interessado em uma figura complexa, trazida por documentos históricos com uma imensa e
prévia carga de representações.
4 Ao lado da investigação de Linda Heywood, é preciso destacar o volume organizado por Inocência Mata (2014),
do qual foram destacados os capítulos de autoria de Inocência Mata e de Selma Pantoja.
5 Deve-se registrar o romance também para público jovem de caráter histórico-ficcional, Nzinga african warrior
queen, de Moses Howard (2016), uma história em quadrinhos infanto-juvenil, Queen Nzinga, por Aleksandar Panev
(2009) e a já mencionada representação em quadrinhos de seu perfil pela UNESCO.
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A Rainha Ginga, da História à Literatura
Bruno Mariano Horemans; Mário César Lugarinho
Para tal, é necessário descrever, ao menos brevemente, a forma como a História e a
Literatura, em intensa aproximação, construíram essa personagem plural e definitivamente não
restrita a uma única representação, nem mesmo àquela oferecida pela documentação histórica.
Invocaremos essas fontes históricas por meio do já mencionado trabalho de Heywood e
apresentaremos, sinteticamente, a conhecida obra de José Eduardo Agualusa, A rainha Ginga
(2015), para exemplificar com uma representação canônica e, então, passar à obra de McKissack.
Vale assinalar que convocamos a contribuição de Agualusa a fim de discutir a representação
literária de Nzinga Mbandi e questionar os procedimentos presentes na obra de McKissack a
partir das reflexões do escritor infanto-juvenil inglês Clive Staple Lewis (1898-1963), mais
conhecido simplesmente como C. S. Lewis.
2.
Em seu ensaio “Três maneiras de escrever para crianças” (2005)6, Lewis afirma que uma
maneira má de o fazer é “dar ao público o que ele quer” e criar o que o autor acha que possa
agradar ao leitor. Uma boa maneira, por outro lado, seria “escrever uma história para crianças
porque é a melhor forma artística de expressar algo que você quer dizer” (2005, p.741-742).
Uma das consequências dessa segunda proposição seria a de que a obra para o público infantil
não ficaria apenas restrita a uma só idade, mas também seria uma forma autônoma de se ter o
prazer da Literatura. Ou, para usar as próprias imagens do autor, seria como uma limonada junto
ao vinho branco alemão na categoria das bebidas, dois prazeres diferentes.
No caso de Lewis, a “subespécie”, dentro das histórias infantis, que lhe competia era a
“fantasia”, ou o “conto de fadas” (“num sentido bem amplo do termo”, em palavras do próprio
autor), em que ele e Tolkien, a quem ele cita, poderiam construir, tanto quanto possível, um
mundo subordinado7 que lhes seria próprio (2005, p.742-745).
E daqui voltamos nossos olhos à Ginga8.
Seria possível fazer o mesmo ao representar uma figura histórica onde não é possível criar
esse mundo subordinado? Seria possível fazer com que as complexidades da História não sejam
6 No original, “On three ways of writing for children”, ensaio adaptado de uma palestra dada em 1952 para a
Library Association e publicado postumamente na coletânea Of other worlds: essays and stories (1966).
7 Como exemplo desse mundo subordinado, no original “subordinate world of his own”: a presença de figuras
não-humanas fantásticas, como gigantes e animais falantes, como veiculadores de psicologias e carateres em uma
forma muito mais sucinta e direta, possíveis de entendimento do leitor que não tem ainda acesso a uma forma
literária como o romance (LEWIS, 2005, p. 745).
8 Como se sabe, há diferentes formas de se escrever o nome e se referir à Nzinga Mbandi. Os textos historiográficos
mais antigos, muitas vezes, escrevem o nome da Rainha de formas diferentes. Para este artigo, decidimos grafar
“Nzinga” para a personagem histórica e referencial, e “Ginga” para as representações literárias, ao máximo que foi
permitido.
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meramente apagadas ou substituídas, simplificadas, e fazer assim com que o livro infantil possa
ser um complemento igualmente relevante para o rol de representações de Nzinga Mbandi?
Antes de lançarmo-nos à análise da obra de McKissack, é preciso dois momentos
anteriores. Um que reconheça as fontes biográficas e documentais (primordialmente de caráter
historiográfico) que se refiram à personagem e outro que analise ao menos uma outra construção
literária em torno da mesma personagem.
Na parte histórica, a obra de referência para se chegar às fontes documentais é a já
mencionada biografia publicada por Heywood (2019) que reconstrói cronologicamente e
classifica por assunto os documentos históricos. Quatro fontes estão disponíveis nessa categoria
documental e histórica: a História geral das guerras angolanas, de Antônio de Oliveira de
Cadornega (escrita em 1680-81, mas editada integralmente somente em 1940-1942), a obra
dos capuchinhos Giovanni de Cavazzi (Istorica descrizione de’ tre’ regni Congo, Matamba et
Angola, 1687 e Missione evangelica nel Regno de Congo, 1668) e de Antonio de Gaeta (La
meravigliosa conversione alla Santa Fede di Cristo della regina Singa, 1669) e a Monumenta
missionaria africana, organizada por António Brásio (1952-1988), que consiste em uma reunião
de cartas e outros documentos escritos entre os séculos XV a XVIII9.
Com relação à parte literária, a obra do autor angolano José Eduardo Agualusa, A
rainha Ginga (2015), foi escolhida tendo em vista a sua origem nacional (Angola) e o seu
reconhecimento pela crítica especializada. A narrativa de Agualusa oferece uma perspectiva
de Ginga que a aproxima de um debate pós-colonial, inserindo-a em múltiplas discussões e
que, por essas características, oferece a possibilidade de aproximação à obra infanto-juvenil de
McKissack ao mesmo tempo que a ela se contrapõe. A obra da autora estadunidense destaca a
importância da representação da Ginga em relação ao imaginário da cultura norte-americana,
onde se deu a sua publicação, e a adequação ao seu público alvo.
Nzingha: warrior queen of Matamba, de Patricia McKissack (2000) tem um objetivo
claro em sua representação de Ginga. A obra está inserida na coleção The Royal Diaries, uma
série de livros infanto-juvenis lançada pela editora Scholastic (Estados Unidos, Nova Iorque)
― a mesma editora a publicar Harry Potter nos Estados Unidos ―, na qual cada volume aborda,
sob a forma de diário, a vida de rainhas e princesas famosas da História, apresentando-as em
episódios ficcionalizados. O nome de Ginga figura ao lado de personalidades mais tradicionais
desse mundo de princesas como, por exemplo, Cleópatra, Marie Antoinette e Anastasia, assim
9 Na Monumenta há muitas referências à Ginga, por razão de sua influência durante a época, por esse motivo, temos
trabalhado na identificação e descrição de tais passagens em um índice para referências futuras e para ser utilizado
como fonte e referência histórica. O estudo biográfico de Linda Heywood (2019) foi base para a reconstrução
biográfica de Ginga. Recorremos a consultas pontuais em outros documentos, como os que estão contidos na
Monumenta missionaria africana e outras fontes já também indicadas. No entanto, estando estas fontes classificadas,
condensadas e contextualizadas pela pesquisa de Linda Heywood, demos preferência a citá-la.
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como outras não tão conhecidas para um público geral, como a Rainha Maia Yax Ahau Xoc
e a heroína chinesa Lady Xian. Nesse contexto, Ginga, em uma versão adolescente, aparece
como representante do continente africano (ao lado de Cleópatra) e surge, ao que parece, de
uma necessidade de representação de uma figura que se aproxima do leitor afro-americano,
incluindo-o. Essa presença de Nzinga Mbandi na América é apontada por Inocência Mata ao
observar que:
a imagem de Nzinga faz parte da memória cultural de todo o mundo afrodescendente das Américas e do Caribe, para onde a sua imagem (em testemunhos,
lendas, mitos, ecos e ressonâncias) viajou nos porões dos navios negreiros
(MATA, 2014, p.26)10.
3.
A partir do material subsidiário da pesquisa, foi possível determinar as referências
históricas da biografia de Nzinga Mbandi em quatro obras, tratadas, aqui, como fontes. Deve
ser ressaltado, no entanto, o fato de que essas próprias fontes, ao serem analisadas, podem ser
consideradas construções literárias da personalidade, pois reúnem episódios narrados muitas
vezes de forma pessoal e movidos por emoções e intenções dos autores, o oposto do que se
esperaria de textos historiográficos. Isso se dá por os autores de tais relatos terem sido próximos
de Nzinga e terem feito parte do mundo em que ela exerceu sua influência. Por exemplo,
os muitos detalhes do historiador e soldado Cadornega ao tratar das expedições militares e
diplomáticas de Nzinga, ou então a intencionalidade de mostrar a conversão de Nzinga ao
cristianismo por autoria de Gaeta, assim como a proximidade da obra de Cavazzi, missionário
que foi confessor, confidente e conselheiro íntimo dela (HEYWOOD, 2019, p. 251-252).
Cavazzi foi responsável por mediar a complexa e intensa relação da Rainha com a Igreja
Católica. Ao publicar seus relatos do tempo vivido com a rainha, destacou em seu texto flagrantes
referências teológicas, fazendo da biografia quase um tratado de salvação pela fé na Santa Igreja
(o que para a Nzinga, no mínimo, parece ter sido uma questão secundária). A Monumenta segue
a mesma linha e deixa clara a contribuição à construção do imaginário em torno da monarca.
Em vida, a personalidade e a biografia da Rainha Nzinga já eram constituídas por elementos
imaginários, dados por narrativas mitificadas de grandeza, marcadas por intensa violência e
terror, muitas vezes tanto inspirados por suas ações efetivas, quanto criados e estimulados por
ela mesma ― ou, pelo menos, sob sua aquiescência.
10 Quanto à imagem cultural e representativa de Ginga nos diversos contextos em que ela apareceu e aparece,
ponto de extremo interesse para demonstrar a importância da representação da personagem, remeto aos estudos de
Mário César Lugarinho em “Apoteose da rainha Ginga: gênero e nação em Angola” (2016) e de Helder Thiago Maia
em “Entra na roda e ginga: imaginário literário brasileiro sobre a Rainha Nzinga” (2020) e, de ambos, “Uma rainha
em três continentes: gênero e sexualidade em torno de Nzinga Mbandi” (no prelo, 2021).
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Na introdução, Heywood dá como referência o importante fato de que os primeiros
africanos escravizados a chegarem ao território das colônias norte-americanas vieram das
regiões que compõem a atual Angola, num tempo aproximado ao que Nzinga viveu e governou
(2019, p.9). Além disso, a situação de guerra quase permanente, na atual região angolana, levou
populações eventualmente derrotadas ― muitas súditas diretas ou não da Nzinga, assim como
suas inimigas próximas ― a serem levadas, escravizadas, a portos da Virgínia ou da Carolina do
Sul nos séculos seguintes. Esse fato é mencionado também como base da pesquisa de Patricia
McKissack para sua obra, cuja fonte, porém, não é informada.
O fato é que Nzinga Mbandi está na literatura estadunidense11, havendo com insistência
um elemento de ligação ― ou pelo menos de referência ― com as populações negras dos
Estados Unidos. No caso da narrativa analisada, isso é evidenciado por se tratar de uma obra
para público infanto-juvenil contida em uma série sobre princesas e rainhas do mundo. Colocá-la
em tal contexto é tentar uma aproximação com o que o imaginário norte-americano já está
acostumado, fazendo uso de uma personalidade não necessariamente própria dessa cultura – e
os resultados são, de fato, curiosos.
Em Nzingha: warrior queen of Matamba, a complexa personalidade original da figura
histórica acaba sendo representada insatisfatoriamente, deixando de lado uma série de aspectos
que circundam Nzinga, o que apaga sua complexidade e vários pontos de discussão, levando a
questionar, a partir das proposições de Lewis indicadas anteriormente, se essa versão seria de
fato a melhor forma de aproximá-la de um público infantil e juvenil. No entanto, a maneira e a
escolha de conteúdos retratados na obra são importantes para investigação dos imaginários que
se construíram e se constroem sobre ela.
Como já foi apontado, o trabalho de Heywood oferece uma visão privilegiada acerca
das fontes históricas referentes à Nzinga. Sendo essa documentação, por vezes, insuficiente
ou esparsa e, por outras, sendo uma multiplicidade de relatos, contraditórios ou claramente
ficcionalizados, tem-se ao final um mosaico de episódios e características de Nzinga. Há
definitivamente referenciais históricos por trás de toda essa produção, no entanto é impossível
se chegar a uma versão definitiva de cada um desses.
A própria Rainha Nzinga, em vida, usou de estratégias de (auto) ficcionalização para induzir
a construção de sua imagem aterrorizante que, bem aplicadas, ditavam o curso de conflitos e
alianças, além de, na posteridade, conduzirem a trajetória do mito em que se constituiu. Ser
temida implicava, por exemplo, a submissão de outros chefes de guerra a ela, que se somavam
a seus exércitos; e ser pia e diplomática poderia significar maneiras de manter sua influência
junto aos invasores europeus, sem gastar recursos, sempre escassos.
11 Além da já referida obra de Patricia McKissack (2000), a Rainha é a protagonista do romance Nzinga: african
warrior queen (2016), de Moses L. Howard.
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Um exemplo capital dessa questão se encontra centrado nos diversos nomes e grafias de
Nzinga. Ao longo de sua vida, Nzinga foi alterando e adicionando nomes (HEYWOOD, 2019,
p.129) para refletir e melhor se adequar aos interesses seus e dos outros, como em seu batizado
católico, que lhe conferiu o nome Ana de Souza ou, simplesmente, Dona Ana12. Esse nome a
aproximava dos interesses diplomáticos com os portugueses e com o mundo cristão europeu,
Roma e o Papa em seu centro. Diferente do que os colonizadores desejavam: de que esse nome
significasse uma submissão aos costumes cristãos e à dominação desse mundo europeu, Nzinga
utiliza-o quando a interessa e o deixa de lado quando lhe convém. Em conversas amigáveis
poderia assinar Dona Ana de Souza, ao clamar por guerra era Rainha Ginga Mbandi, senhora da
Matamba e do Ndongo.
O mesmo ocorreu quando Nzinga adicionou territórios e povos às suas conquistas. Um
episódio, que tem repercussões históricas relacionadas a um imaginário selvagem e impiedoso,
é a transformação de Nzinga em uma líder Imbangala13:
Jinga procurava um modelo para sua futura vida política, e ela não escolheu
os governadores portugueses, dos quais planeja vingar-se, nem os reis do
Congo, que tinham apenas um domínio precário sobre seu povo, tampouco
o irmão, Ngola Mbande, cuja fraqueza desprezava. Em vez disso, escolheu
para seu modelo Tembo a Dumbo e os temidos imbangalas, cuja reputação
de carnificina, crueldade e canibalismo fazia tremer de terror tanto inimigos
quanto aliados. (HEYWOOD, 2019, p.128)
Essa etnia nômade e aguerrida era importante para os movimentos bélicos presentes no
território onde hoje está Angola. A submissão deles ao comando de Nzinga marcou a possibilidade
de contra-ataques aos portugueses em um momento em que o reino do Dongo estava fragilizado.
Essa proficiência na guerra dos Imbangalas, no entanto, tinha suas próprias demandas sociais
e espirituais, e práticas como o canibalismo e infanticídio faziam parte das narrativas desse
povo. Nzinga abraça esses rituais e narrativas, criando assim outra imagem sobre ela. Impiedosa,
selvagem, terrível, imprevisível. Essa carga predicativa vem junto a essa aliança e ajuda tanto a
constituir exércitos, quanto a afastar relações diplomáticas cristãs. Entretanto, de novo, Nzinga
irá se aproximar, ou se afastar, dessa predicação de acordo com seus interesses.
É importante notar que esse tipo de relação da Nzinga com os imbangalas é o que
cria, e fortalece, posteriormente, o temível imaginário sobre ela. A barbárie, indicando uma
primitividade que não respeita leis básicas de uma suposta civilidade europeia, como a prática
do canibalismo, é utilizada para mover recursos contra ela. É mais fácil pedir reforços aos
governantes europeus quando se luta contra uma devoradora de criancinhas do que quando
12 Essa relação com seu nome de batismo começa em sua primeira visita oficial a Luanda, mas vai ter importante
papel, sobretudo, ao final de sua vida.
13 Os imbagalas, ou jagas, eram grupos de guerreiros nômades que faziam frequentes incursões na Matamba e no
Dongo, reconhecidos por sua invencibilidade e violência em batalhas (FONSECA, 2010, p. 394).
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se combate uma súdita cristã. E essa narrativa não é interrompida após a sua morte, mesmo
que seus biógrafos em vida tivessem, em uníssono, afirmado a sua conversão definitiva ao
cristianismo. Ela irá reaparecer intensamente sob a forma dessa personagem selvagem em
narrativas, como a do Marquês de Sade, entre outras, que a apresentam como aberração e
ícone de um continente, a África, que deve ser subjugado e civilizado (LUGARINHO, 2016,
p. 90).
De igual maneira, ocorrerá a contrapartida angolana, em viés nacionalista. Durante a
guerra de independência de Angola (1961-1975), Ginga reaparece como heroína nacional, a
guerreira incansável na luta contra os colonizadores portugueses e com nenhuma característica
negativa ou contraditória (LUGARINHO, 2016, p.93). Nessa versão, Ginga seria comandante e
diplomata excepcional que, sem ceder aos interesses coloniais, conquistou vitórias para o que se
pudesse chamar de uma Angola anticolonial. Essa representação esbarra em problemas, como
a sua relação com o tráfico de escravos e as eventuais alianças com os holandeses, também
colonizadores, que foram flagrantemente elididas, como acontece no romance Nzinga Mbandi
(1975), de Manuel Pacavira, no qual a barbárie cabe ao português e ao processo colonial
(PACAVIRA, 1975, p. 109).
Ambas as perspectivas aqui mencionadas são base para as diversas outras leituras e
visões criadas sobre Nzinga. Nos textos literários analisados, um deles aborda justamente
uma representação de Nzinga que seja síntese dessa visão colonial e anticolonial dela; o
outro analisa como representações desses referenciais históricos podem ser utilizados, em
contextos distantes da circunstância histórica e geográfica vivida por Nzinga, para construção
de significados que possam atrair um público contemporâneo, estadunidense e, especialmente,
infanto-juvenil.
Em resumo, a documentação histórica e biográfica acerca de Nzinga Mbandi revela a
maneira como essa personalidade histórica foi instrumentalizada e ficcionalizada de acordo
com os interesses daqueles que a invocaram. As obras literárias estudadas demonstram
formas muito distintas de utilização do referencial histórico para construção de sentidos.
Ambas, no entanto, realizam questionamentos semelhantes sobre a representação de
determinados episódios. Em A rainha Ginga e de como os africanos inventaram o mundo,
de Agualusa, esse questionamento é utilizado como recurso do autor que problematiza
a figura da Rainha, ao mesmo tempo em que oferece uma resolução baseada no porvir
angolano. Em McKissack, a adaptação desses episódios oferece de maneira bem clara a
possibilidade de vermos uma agenda ― ou ao menos uma intencionalidade ― da autora
em assimilar essa personagem ao seu público-alvo, e, de maneira diferente da narrativa de
Agualusa, abolir essas lacunas ou complexidades dos referenciais históricos para fazê-lo
de outra forma.
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4.
A narrativa de A rainha Ginga e de como os africanos inventaram o mundo (2015), de
José Eduardo Agualusa, apresenta um interessante ponto inicial para se pensar o contexto
colonial de Angola nos tempos de Nzinga: o narrador é um padre brasileiro de origem indígena,
não pertencente, assim, aos dois polos metrópole-colônia que estão agindo naquele recorte
espaço-temporal oferecido pela narrativa. Sendo indígena brasileiro, esse personagem é um
pouco parte do mundo da colônia, portanto guarda uma relação com esse espaço de dominação
colonial; mas também é padre, representante da cultura do dominador carregando, pelo menos
inicialmente, preconceitos que de certa forma guiam o seu olhar e a própria narrativa. Ao
colocar esse narrador transitando entre esses dois polos, Agualusa amplia a perspectiva. Os
relatos coloniais e as narrativas anticoloniais estão como que empilhados não apenas sobre a
Ginga e sua biografia, mas também sobre o leitor da narrativa ― o que dá a originalidade e
singularidade ao romance. A narrativa, ela mesma, é móvel no tempo e no espaço criando uma
forma caleidoscópica de focalizar a protagonista.
Isso se apresenta tanto nas aparições de Ginga, sempre muito pontuais e deveras ligeiras
― sobretudo considerando que o livro leva seu nome ―, quanto na representação dos tais
episódios de referencial histórico que ficam à mercê do ponto de vista do narrador e do alcance
que ele tem em relação ao conhecimento daquele mundo, mas, ao mesmo tempo, podendo ser
questionado pelo acesso à referencialidade histórica disponibilizada ao leitor por seu próprio
repertório.
A narrativa se dá na vivência desse narrador-personagem que se encontra no meio de
tantas tensões. Ao longo da narrativa, é possível ver sua transformação neste meio de maneira
quase que complementar. O narrador se converte num aprendiz à medida em que complexidades
vão se juntando em uma imagem composta e única.
A exemplo, a história da escrava-cadeira, episódio ficcionalizado e recontado tantas
outras vezes (inclusive em McKissack), aparece inicialmente de maneira simples: Ginga
confrontada com a situação de ser rebaixada pelo governador ao ser convidada a se sentar no
chão, impiedosamente usa de sua serva como objeto e então a descarta, deixando-a em Luanda.
Essa personagem, no entanto, reaparece quase no final da narrativa e joga dúvida sobre esse
episódio. Na versão de Agualusa, há uma intencionalidade a mais nesse gesto aparentemente
vil: a dita escrava de Ginga era uma infiltrada na fortaleza do governador português. O que
chama a atenção é que a intervenção narrativa não nega nem a versão colonialista da História,
nem a anticolonialista; a impiedade dela não é negada, assim como seus interesses de resistência
também não o são. Ou seja, longe de uma representação idealizada de heroína ou inimigo
selvagem, Agualusa escolhe o próprio caminho para se apropriar desse referencial histórico
― ou seja, Ginga será todas essas possibilidades, constituindo-se, mais do que em qualquer
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outra narrativa ficcional ou historiográfica anterior, num signo, cujo sentido está em permanente
disputa pelos agentes discursivos envolvidos, não podendo, assim, ser reduzido a um ou a outro,
como sublinhou Mário Lugarinho (op. cit., 2016).
A narrativa é permeada por episódios desse tipo, de movimentos quase que
pendulares que não oferecem uma resposta rápida e única, mas que se somam para
compor a narrativa e lidar com a pulverização de sentidos. A Rainha Ginga do título,
ainda que personagem, é sobretudo o motor e o referencial dessa construção que, enfim,
tem como verdadeiro centro esse narrador, cheio de dúvidas, como um leitor de todas
essas obras sobre Ginga, as quais não conseguiram convergir para uma representação
única e, supostamente, “verdadeira” dessa personagem. Em Agualusa, Ginga é a soma de
todas essas perspectivas.
A Rainha Ginga de Patricia McKissack, diferente da esquiva rainha de Agualusa, aparece
de forma bem definida e identificada desde os elementos extratextuais da edição ― como a capa
do livro ―, em uma versão adolescente. Isso se dá, pois o livro Warrior queen Nzingha, como
já dito, faz parte de uma série de livros, The Royal Diaries, em que cada uma das obras aborda,
em forma de diário, a vida de famosas e importantes rainhas e princesas da história do mundo,
apresentando-as em episódios ficcionalizados. Sendo assim, há toda uma série de adaptações
para adequá-la a esse formato.
Consequência dessa primeira grande adaptação, há também a necessidade de colocar a
Rainha Nzinga em um período de tempo limitado. Sendo a adolescência uma idade transitória
e pontual, toda ação da narrativa tem que transcorrer então de forma condensada. A autora
organiza, assim, os vários episódios retratados de maneira que caibam em uma narrativa em
formato de diário, restrita temporalmente a pouco mais de um ano. Tendo em mente que a
Nzinga histórica viveu algo como 80 anos, segundo algumas fontes, fica fácil perceber que
haverá na narrativa, além de imprecisões históricas, o apagamento de detalhes e nuances que
seriam chaves para a compreensão de sua personalidade.
A autora informa em seu posfácio que entrou em contato com a Rainha Nzinga pela
primeira vez através de um quadro em uma exposição intitulada Great Kings and Queens of
Africa e isso a fez sair em pesquisas para compor sua obra. Durante esse processo, ela entrou
em contato com uma biografia da Rainha, mas não nomeia a fonte. Talvez tenha sido a obra de
Giovanni Cavazzi da Montecuccolo, uma vez que o capuchinho ― historicamente conselheiro,
emissário e então biógrafo de Nzinga ― aparece em sua narrativa como uma espécie de tutor
para essa então princesa. O mais curioso no caso é que Cavazzi, ao invés de aparecer como o
italiano que ele era, se apresenta como um padre português. Soma-se isso à inversão de idades
― a Nzinga histórica nasceu antes do Cavazzi histórico, portanto mais velha ― e é possível,
assim, perceber as simplificações que McKissack faz para obter o objetivo pretendido.
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Bruno Mariano Horemans; Mário César Lugarinho
A consequência dessa simplificação que ocorre com Cavazzi é o apagamento de
complexidades referentes à relação de Ginga com o cristianismo. Ao colocar o capuchinho como
português, tem-se o mencionado apagamento da complexa relação dela com o universo cristão,
essencial à sua pauta diplomática e importante para a sobrevivência do reino da Matamba. É
possível dizer que a Nzinga histórica instrumentalizou, de certa maneira, a fé cristã. O seu
contato com os capuchinhos foi uma maneira de ela ultrapassar a barreira colonial portuguesa
e tentar buscar apoio de outras instituições europeias como, por exemplo, a do Papa em Roma,
que, inclusive, escreveu uma carta sobre ela (BRÁSIO, 1956). Na narrativa analisada, todas
as situações decorrentes dessa relação aparecem reduzidas a situações de aprendizado da
personagem de Ginga com o cristianismo, amenizando e solucionando tensões.
É possível perceber, portanto, a tendência a uma construção de Ginga que seja una e
consistente, sem muitos movimentos ambíguos como ocorre no texto de Agualusa. Creio que a
razão disso é o contexto em que a obra de McKissack é escrita e publicada. O gênero infantojuvenil é tão importante para entender essa relação quanto o fato de que o livro é escrito em
inglês e editado nos Estados Unidos.
Um exemplo de episódio central para entender essa relação está contido na maneira como o
episódio da escrava-cadeira é descrito na narrativa de McKissack. O episódio é importante, pois
além de ser episódio conhecido e diversas vezes recontado, destaca a relação que Ginga teria com
a escravização. Na mesma situação como emissária a Luanda ― só que aqui bem mais jovem do
que em outras versões ―, Ginga é confrontada com o dilema de submeter-se e sentar-se no chão
perante o governador português ou então reagir. Fugindo de versões como a que Agualusa utiliza,
Patricia McKissack reinventa a composição dessa cena ao justapô-la a duas outras cenas. Na
primeira, Ginga está na corte ― por falta de outra palavra melhor ― de seu pai, rei da Matamba,
e vê um convidado político utilizar um escravo-cadeira, de maneira a afirmar sua não-submissão.
A personagem adolescente vê isso, se admira e, então, na outra cena, já em Luanda, combina nos
bastidores com uma de suas criadas para que elas operem a mesma manobra. Tal composição
evidencia a preocupação da Rainha com o consentimento da escrava, o que retira a carga negativa
do seu gesto, tirando também sua responsabilidade em relação a esse mundo de agressão. Isso
também tira, a nosso ver, a afirmação de identidade do poder de Ginga, criando um problema;
no entanto, o central é que a maneira retratada abranda tensões existentes em outras versões,
tornando-se, desse modo, mais palatável e consistente, referendando a intencionalidade da autora.
A relação dessa Rainha Ginga adolescente com a escravização começa a delimitar-se aí,
mas tem seu ápice em um dos episódios finais da narrativa, em uma cena criada especificamente
pela autora, uma vez que nenhum outro inventário de narrativas sobre Ginga inclui qualquer
outra remotamente parecida com esta: a princesa Ginga é enganada por um de seus conselheiros
e se encontra em vias de ser enviada para as Américas em um navio negreiro. A personagem
percebe e vivencia, na narrativa, parte do horror que as pessoas escravizadas tiveram que passar,
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o que faz com que, após ser salva ― pois afinal é um livro infanto-juvenil ―, ela tome a posição
de ser sumariamente contra a escravização do seu e de todos os outros povos.
Dois fatos interessantes podem vir da análise desse episódio ficcional. Primeiramente,
assim como no episódio da escrava-cadeira, essa cena corta qualquer relação causal da Ginga
com a escravização dos povos de Angola e arredores, coisa que indubitavelmente aconteceu,
uma vez que a Rainha Nzinga histórica, por suas tratativas diplomáticas com portugueses
e holandeses, provocou o envio de escravizados às Américas, tanto por meio de ofertas aos
portugueses, quanto por meio de sua aliança com os holandeses, sempre pondo à frente de
qualquer outro sentido a preservação de seu reino, o que implicava a subjugação de chefes de
guerra e de outros reinos africanos que a ela se opunham. O segundo fato relevante é a maneira
como se dá a salvação dessa Ginga ficcional aprisionada: no final, seu grande salvador é o padre
Cavazzi, representação da cristandade na narrativa.
Por meio desses mecanismos de apagamento, reinvenção e exaltação de episódios de
referencial histórico é possível perceber certas tendências de intencionalidade na narrativa criada.
Há uma clara aproximação dessa figura histórica com as Américas e com os povos que foram
forçados a sair da África para aqui ― América do Norte inclusa ― serem cativos e, também,
uma adequação de elementos que tornem essa personagem menos cheia de complexidades e,
portanto, mais fácil de assimilar e se conectar com o leitor.
Há ainda um outro movimento que abranda e, praticamente, escusa o papel da religião
católica em toda movimentação histórica que perpassou Angola em seus quase cinco séculos
de colonização. McKissack parece buscar, assim, a aproximação desse público estadunidense
inserido em uma cultura cristã pelo não questionamento do papel da Igreja, tanto quanto desviou
sua atenção das complexidades da personagem.
5.
Os estudos de carácter histórico e literário sobre a heroína nacional angolana, Rainha
Nzinga Mbandi, aqui realizados formam um caleidoscópio de representações a seu respeito,
característica já bem apontada por Mata (2014), Pantoja (2014), Lugarinho (2016), Maia (2020),
Lugarinho e Maia (2021).
As fontes históricas analisadas já apontavam para uma multiplicidade de relatos que
invariavelmente se mostram dependentes de contexto histórico e de função, e que acabam por se
refletir nas subsequentes narrativas literárias sobre Ginga. A ficcionalização dessa personagem
é inescapavelmente restrita ao contexto de produção e recepção dessas narrativas literárias,
sendo, portanto, capaz de ser instrumentalizada de acordo com aqueles que entram em contato
com esses referenciais históricos.
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Se as ditas fontes históricas não fogem a essa instrumentalização, o texto literário infantojuvenil certamente não o faria. No entanto, contrapor as duas obras literárias deixa clara uma
tendência maior na obra de Patricia McKissack: a de se preocupar com o leitor. Essa preocupação
é deveras justificável, uma vez que editar um livro para crianças que sugere canibalismo e tráfico
de pessoas, ainda que os questionando, parece-nos uma tarefa um pouco espinhosa, na medida em
que se considera o contexto histórico e social da produção de McKissack. Mas a representação ali
presente nos remete de volta à citação de Lewis do início deste artigo: a problemática de se “dar
ao público o que ele quer”; se “as crianças, evidentemente, constituem um público especial, basta
descobrir o que elas querem e lhes oferecer exatamente isso, por menos que nos agrade” (2005,
p.742). Essa proposição errônea de se fazer literatura para crianças, na concepção de Lewis, parece
se fazer presente na obra de Patricia McKissack e afasta alguns dos valores de Ginga, personalidade
histórica e também personagem literária, que estão presentes em outras representações.
O texto infanto-juvenil de Nzingha: warrior queen of Matamba se distancia da relação complexa
com a História, criando uma perspectiva que não necessariamente “é a melhor forma artística de
expressar algo que você quer dizer”. As glórias históricas de Nzinga, suas conquistas impressionantes
como líder militar e diplomática, sofrem com os movimentos do texto em busca de aceitação e inserção
no contexto imediato de seu leitor, deixando de lado partes constituintes de sua importância histórica
e literária. Desse modo, certamente, uma criança que se interesse por essa representação adolescente
da rainha, quando adulta, ao ler Agualusa, não reencontrará o reconhecimento com que se deparara
em McKissack. No entanto, reconhecerá que as diferentes estratégias de representação atendiam a
contextos diversos, a leitores diversos. Ambas as obras, tanto no aspecto histórico, quanto literário,
devem ser percebidas como complementares ― porque aprofundam a condição caleidoscópica dos
discursos e dos sentidos que se movimentam entre a História e a Literatura.
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