A “proto-indústria” do mosaico
romano
* Doutorada em História da Arte. Instituto
de História da Arte da
Faculdade de Letras
da Universidade de
Lisboa.
Association Internationale pour l’Étude de
la Mosaïque Antique –
AIEMA. ORCID 00000002-6591-0238.
mtvcaetano@
gmail.com
Maria Teresa Caetano*
Resumo Neste artigo propomo-nos abordar temas e problemáticas não consensuais em torno da construção do mosaico romano. Partindo dos considerandos patentes no tratado de Vitrúvio e da sua
não aplicação na maioria dos mosaicos construídos que hoje conhecemos. Referimos ainda a questão da obtenção da matéria-prima e tecemos considerandos em torno do pré-fabrico das tesselas, bem como olhamos para o mosaico numa perspectiva “proto-industrial”, assim como tecemos
alguns considerandos em redor dos tesselários, do seu estatuto social, a organização das oicinas
e a dispersão de modelos.
Abstract In this article we address some of the lesser known problems and therefore more controversial
around the manufacture of roman mosaic. Therefore, we will remember the principles contained in
the treaty of Vitruvius and its not pratical in most manufacture of opera musiua known. We refer as
well to the matter of obtaining feedstock by following the trade of pre-manufactured tesseræ. We
will also refer to the manufacture of mosaic perspective of industrial art, as well as the social status
of tessellarii, the organization of workshops and dissemination of models.
No nosso artigo “Opera musiua: uma breve
relexão sobre a origem, difusão e iconograia
do mosaico romano” (Caetano, 2007), abordámos então problemáticas como a origem e evolução dos opera musiua romanos; o seu fabrico;
interrogámo-nos sobre a sua condição de artesanato ou de “proto-indústria”; quem eram os
tessellarii e o seu estatuto socioeconómico; como
se organizavam as oicinas e como transmitiam os modelos, que constituíam, enim, o vasto
repertório iconográico.
207
De facto, devemos lembrar que os mosaic-workers (como Blake os apelidou) primeiro gregos, depois itálicos, foram-se dispersando pelas
províncias e, a determinada altura, terão incorporado indivíduos de outras origens que contribuíram igualmente para a “tradução” local dos
almanaques das oicinas principais e suas iliais.
Razões estas que permitiram a difusão de
arquétipos, modelos que agiram, não só como
veículos de romanização, mas também — ainda
que relectindo os diferentes cambiantes regio-
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Maria Teresa Caetano
nais, como vimos — ultimaram a assunção plena
da romanidade1. Neste contexto, e atendendo
a que deixámos então alguns aspectos apenas
intuídos e outros que resultaram de ulteriores
relexões sobre esta matéria complexa e não
consensual, face sobretudo à escassez de testemunhos e de fontes coevas, aigura-se-nos,
pois, pertinente trazer, de novo, à colação esta
problemática.
Por conseguinte, como escrevemos oportunamente terá sido no contexto de mudança operada na transição para o século I d.C., sob a
batuta de Augusto, que o opus tessellatum ocupou em deinitivo o lugar do “proto-tesselado”
(Caetano, 2007, pp. 77–80), que constituía o
vulgar mosaico de opus Signinum. Razão também pela qual Vitrúvio, um executante do “ofício de arquitecto” (Vitrúvio I, 17), explicitou,
no Livro VII do seu tratado De Architectura, as
regras que deveriam subjazer para uma correcta manufactura do opus tessellatum que obedecia a preceitos especíicos, contemplando o
ordenamento das três camadas de assentamento — statumen, rudus e nucleus —, a que
se sobrepunham ainda a aplicação do opus
spicatum e do opus sectile (Vitrúvio, VII, I, 3-4).
Reira-se, a propósito, que para o tratadista de
Augusto, a qualidade das argamassas era fundamental para o sucesso da obra e para que a
ligação do gramasso fosse eicaz, deveria compactar-se previamente o solo (Vitrúvio, VII, I, 1).
Tudo isto, apesar de Lavagne (1988, p. 469)
ter considerado que somente alguns mosaicos
— sobretudo na Itália alto-imperial — cumpriram os preceitos vitruvianos. Parece-nos,
todavia, ser oportuno redeinir o âmbito geográico mencionado pelo autor, uma vez que, a
título de exemplo, também na cidade do estuário
do Tejo se encontraram generosos fragmentos
de mosaicos do século II — de clara inluência ostiense —, mas cujas camadas de assentamento se aproximam das estipuladas no
manual do arquitecto romano (Caetano, 2006,
pp. 24–25).
Não há dúvida, por outro lado, que — como
referimos já — se a construção de tesselados se
tivesse mantido arreigada às formulações do De
Architectura, apenas teria sido acessível a uma
franja da sociedade romana e jamais extravasaria essa elite ao ponto de se ter transformado
no produto “artístico-industrial” de fruição universal e, nesta perspectiva, terá agido ainda
como um dos múltiplos caminhos que derivaram
na romanidade (Caetano, 2007, pp. 61–62).
Seja como for, o gosto pelo mosaico generalizou-se de tal forma que se difundiu pelo vasto território do Império Romano, primeiro nas domus
citadinas de aristocratas e de cidadãos endinheirados e, depois das crises do século III, quando se
instalaram de forma mais ou menos permanente
nas suas uillæ e realizaram vultuosas reformas
dotando-as do indispensável conforto urbano.
Este fenómeno generalizado garantiu a “urbanização” dos agri e consequentemente as oicinas encontraram espaços amplos e com clientela
praticamente inesgotável, o que, de per si, terá
contribuído — como adiante veremos — para o
barateamento e consequente universalização dos
mosaicos e dos modelos, sobretudo se atentarmos também à precoce introdução da policromia
na Península Ibérica (séculos I–II) e da panóplia
de soluções iconográicas que a partir de então
estiveram ao dispor dos artesãos e, sobretudo,
dos encomendantes.
1. Modelos, circuitos de distribuição
e organização de oicinas
Face ao exposto, torna-se uma evidência que,
através da dissecação das partes, será possível
observar não só a sua morfologia, mas, também,
apreender a sua função operativa e decorativa
e, em última análise, a sua evolução iconográica
como espelho sociocultural. Também, por isso —
e, apesar de duvidarmos da sua proclamada universalidade, reconhecemos a existência de modelos continuados — encontrando no mosaico um
privilegiado veículo transmissor de imagens, de
ideias e de conceitos que, encadeados ao longo
dos séculos, nos deixaram entrever o lugar dos
opera musiua no mundo romano e tardo-romano.
Ao ter agido como catalizador sociocultural,
o mosaico acabou por se transformar — nas
palavras de García y Bellido — num fenómeno
“artístico-industrial”, ideia reforçada por Dunbabin quando referiu: “Under the Empire, and
especially in the west, mosaic production was a
large-scale business” (Dunbabin, 1999, p. 272).
Nesta perspectiva, o mosaico foi, tal-qualmente
o garum, o vinho, os cereais, o azeite, os cavalos
e os animais exóticos, a estatuária, o mármore,
a cerâmica e o vidro, um produto vendável e
de exportação e se, no seu começo, se veiculara
como conceito, depressa o fabrico do tesselado
adaptou-se a distintas realidades, como airmou,
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1
Isto, enquanto conceito de um suposto
Império uno e tutelado pelo princeps
e do culto da personagem que entretanto
se desenvolvera, com
particular enfoque
na Península Ibérica.
A “proto-indústria” do mosaico romano
2
A arqueologia, de
facto, tem desenterrado quantidades
imensas de objectos
que nos revelam um
modelo económico
sobretudo agrícola,
mas também industrial
e comercial, que regulava, então, a vida
de milhões de indivíduos. Por conseguinte
— entre muitos outros
exemplos que poderíamos trazer à colação —, sabe-se que
a cerâmica sigillata
“aretina” tinha dependências na Gália e
que os moldes destinados ao fabrico de
peças decoradas eram
comprados a outras
oicinas (Morel, 1992,
pp. 194–195), que à
Lusitânia aportavam
sarcófagos provenientes da Península Itálica
e de outras províncias
(cf., v.g., Matos, 2002,
pp. 311–315) e que
no ager olisiponense se
extraía
e exportava lioz
vermelho, conhecido na região por
“encarnadão”.
a propósito, Moreno González (1995, p. 124).
Neste contexto será, pois, difícil encarar o
mosaico como factor arredado da ossatura do
Império Romano, também como valor económico,
para além dos considerandos sociais, culturais e
artísticos que deles possamos extrair. Por isso, e
tendo ainda em opinião a deinição de García
y Bellido, trazemos ao cotejo a eventualidade
de terem existido e à semelhança de outras actividades produtivas2, grandes empresas “multinacionais” que constituíam e distribuíam modelos pelas suas iliais, como já expusemos noutro
lugar. Modelos que poderiam ser vendidos e/
ou copiados e reinterpretados por oicinas provinciais, ou mesmo locais/regionais. Até porque,
e tendo presente o exemplo lusitano, parece
que as oicinas regionais estariam, de algum
modo, ligadas “a escolas ou oicinas de grandes centros exteriores ao território português”
(Correia, 2005, p. 86). Neste âmbito, reira-se que Guadalupe López Monteagudo identiicou centros oicinais na Lusitânia, na Meseta e
na Bética, referindo-se ainda às principais inluências exógenas que, de certa forma, concorreram para a identidade dos mosaicos hispânicos. Um desses fenómenos terá sido identiicado
nesta última província, onde foi possível estabelecer uma conecção precoce entre a representação do Rapto de Europa e a memoração do
antigo culto de Astarte; ou o facto e algumas
casas descobertas até ao momento nos conventos Hispalensis e Agitanus encontrarem revestidas
com mosaicos notáveis de iconograia extemporânea ao próprio contexto peninsular e que os
cognomina greco-orientais indiciam a presença
de estrangeiros, possivelmente relacionados com
o negócio do azeite, e, eventualmente, a permanência local de mosaic-workers externos aos circuitos oicinais estabelecidos e consolidados na
Hispânia:
(...) los paralelismos entre los mosaicos de Écija
y de Grecia se extiendem a otros lugares de la
Bética próximos al Gualdaquivir, lleva a estabelecer unos circuitos a través de los cuales se difundirían no sólo copy-books ou cuadernos de modelos, sino también la ideologia que deja entrever la
eléccion de ciertos temas en relación con una identidad de interesses comerciales. Junto a las elites
locales, hay que prestar una atención especial a
los esclavos y libertos griegos, cuya presencia está
documentada en la onomástica (...) (López, 2013,
p. 146).
209
Aqui aportados, merece ainda a nossa atenção o modelo organizativo das oicinas de tessellarii, uma vez que alguns aspectos têm sido
alvo de controvérsia. Por conseguinte, e assentando as premissas nos (escassos) testemunhos
que o tempo nos legou, tem-se tentado esclarecer algumas questões relacionadas com o(s)
modelo(s) organizativo(s) das distintas oicinas,
porquanto constatámos já a amplitude diversiicada das mesmas, desde as grandes oicinas
com iliais disseminadas por vastos territórios,
como as de média e as de pequena escala, com
actividade restrita a uma determinada área. A
par destas questões, importa ainda esclarecer
que modelos eram adoptados pelas distintas
categorias de oicinas, bem como a questão da
iconograia e a problemática da itinerância.
Ora, no contexto de mudança do século III,
houve também a urgência de se regulamentar,
face ao novo cenário, a actividade das oicinas
de mosaico, designadamente, através da promulgação do Edictum de Prætiis, de Diocleciano
(245–313), cujo ordenamento deverá ter relectido a realidade existente. Por conseguinte, icou
estabelecido que um pictor imaginarius auferia 150 denários por cada jornada de trabalho. Neste sentido, note-se que os pintores eram
particularmente requeridos para o desenho de
mosaicos igurados, para os quais, muitas das
vezes, não se limitavam a inspirar-se na pintura ou a copiar os chamados cartões de modelos. Eram capazes de improvisar um tema, de
adaptá-lo de acordo com uma pintura (vide, o
mosaico de Alexandre Magno, em Pompeios) ou
à planta do espaço que tinham para pavimentar (Lancha, 1994, p. 129). Um tessellarius, por
seu turno, recebia apenas 50 denários (Moreno,
1995, p. 129), tanto como um padeiro ou um
ferreiro, pelo que a manutenção de um pintor no
grupo ou de artesãos especializados em tarefas absolutamente exclusivas, deveria ser muito
onerosa, em particular nas médias e pequenas
oicinas de tipo familiar, tendo-se em reparo a
airmação de Marion Blake de que
(…) mosaicists were in reality artisans, working
from models given to them but seldom iniating
anything themselves (Blake, 1930, p. 21).
Não cremos — ao contrário do que airmam
alguns autores — que, sobretudo nas pequenas e médias oicinas, existisse uma hierarquização rigorosa, em particular, no que con-
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cerne à atribuição das funções. Uma vez que, muitas das tarefas, desde a fabricação das camadas
de assentamento, preparação das linhas mestras
e dos moldes de madeira para colocação das
tesselas, poderiam ser realizadas, sem distinção,
por todos os membros das equipas, os quais, independentemente da função que desempenhavam
na estrutura da oicina deveriam colaborar nas
várias fases de fabrico de um tesselado (opinião
que partilhamos com Guardia, 1992, p. 429).
Por outro lado, acreditamos também na possibilidade de muitas oicinas não contarem com a presença — pelo menos permanente — de um pictor
imaginarius, sendo a sua função desempenhada
pelo artíice mais habilidoso do grupo, sobretudo
no que respeita aos mosaicos geométricos ou de
cariz geometrizante. E, em tempos de decadência dos opera musiua, mesmo os igurados, como
o mosaico báquico de Mérida, com cronologia já
circunscrita ao século V, que ostenta a legenda EX
OFFICINA ANNI PONI (Blanco, 1978, p. 34, n.º
15, láms. 26–27a; Guardia,1992, lám. 95), não
deve ter tido qualquer intervenção de um pictor
imaginarius.
Um outro aspecto a ter em conta no que concerne às oicinas prende-se com o seu carácter
itinerante ou ixo, mas sabendo que, nos primeiros
séculos da Era, este seria um fenómeno eminentemente urbano, parece-nos que essa questão terá
assumido outra importância com a sua transposição para os agri, no contexto das crises do século
III. Este fenómeno poderia fazer deslocalizar,
ainda que temporariamente, um estaleiro oicinal
para o campo — “desde allí acudían a los lugares desde que eran llamados” (Guardia, 1992,
p. 430; opinião também defendida por Bruneau,
1987, p. 157) —, numa itinerância de carácter
excepcional. Isto no âmbito da já debatida questão da “urbanização” do espaço rural. Este fenómeno terá, mercê da marcada procura, dado
também origem ao surgimento de pequenas oicinas, de características familiares, que enveredaram na itinerância numa área não completamente
esclarecida (Lancha, 1994, p. 132)3.
Reira-se ainda — no contexto oicinal a que
nos temos vindo a reportar — que um dos mais
controversos e debatidos aspectos prende-se
com a possível existência de cartões, de livros
ou de cadernos de modelos que, enim, constituiriam o repertório de uma ou de outra oicina. De facto, os modelos seriam necessários
para a constituição — e, sobretudo, ixação —
de um diversiicado e vasto programa icono-
gráico, o qual, para além de servir de base
para a escolha dos motivos e/ou cenas em que
o encomendante estaria interessado para pavimentar a sua domus ou a pars urbana da sua
uilla, permitia escolher aquelas que melhor se
adaptassem ao seu gosto, pretensões sociais,
culturais ou religiosas (Lavagne, 1988, p. 472).
Sobre esta questão Guadalupe López Monteagudo referiu que a repetição de modelos em
diferentes épocas e em lugares distantes entre
si antevê a existência de cartões de modelos e
que as oicinas iam colectando, o que pressupõe um “(...) un activo comercio de protótipos
y de diseños y unos processos de creácion y
transformación de los mismos, a la par que unas
preferências artísticas e ideológicas por uns
temas igurativos determinados, a las que seguramente no eran ejanas las modas imperantes
en el momento (...)” (López, 2013, p. 137).
Apesar das diferentes opiniões referentes a esta
matéria, acreditamos — também na esteira de
López Monteagudo — que tenham existido cartões, de livros ou de cadernos de modelos que
formariam, enim, o repertório do mosaísta, isto
na medida em que os modelos seriam necessários para a ixação de um repetitivo, mas vastíssimo, programa iconográico, que, para além
de servirem de base para compor a decoração
do mosaico, seriam também um elemento fundamental para o cliente escolher os motivos consentâneos com o seu próprio gosto.
Tal como Clarke terá comprovado, após a realização de um estudo sobre quatro mosaicos, a
preto e branco, de Neptuno e a sua quadriga
(Óstia, Risaro, Otricoli e Arezzo), concluindo que
os artíices usaram um único modelo, mas, pelas
diferenças notadas, não o aplicaram na escala
de um para um como, na técnica usada nos frescos do Renascimento, e inalizou a sua interpretação considerando que, apesar de as imagens
terem sido “perhaps collected in albums or pattern books, that could be reproduced more or
less accurately to suit a particular space” (Clarke,
1994, p. 309). Esta liberdade para “recriar” os
modelos pré-estabelecidos parece ter sido uma
constante na ars musiua, não só ao que concerne
aos mosaicos igurados, mas também com exemplos nos geométricos, como o pavimento da Rua
dos Correeiros (Fundação Millenium, Lisboa),
para o qual a repetição dos mesmos modelos iconográicos alternados nos quatro painéis
apenas se encontrou num “paralelo exacto” já
em pleno Mediterrâneo (Angiolillo, 1981).
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3
Sobre esta problemática, Cerrillo &
Fernández (1981)
realizaram para a
Lusitânia uma análise
de âmbito geográico, na qual tentaram
estabelecer relações
entre a densidade/
dispersão dos mosaicos e a sua eventual
conexão com as cidades que lhes estão
mais próximas.
A “proto-indústria” do mosaico romano
Estes cadernos, todavia, não teriam a forma
de verdadeiros “catálogos ilustrados”. Seriam,
antes pelo contrário, conjuntos de apontamentos e desenhos (Guardia, 1992, p. 429), talvez delineados em placas de cera e/ou pintados em tabuinhas, que se comercializavam e/
ou copiavam de outros mosaicos e de pinturas,
que eram recolhidos dos ornatos cerâmicos, da
escultura e fruto da própria imaginação que
as equipas iam acumulando, a tal “source commune d’information” a todos os artesãos (Lancha, 1994, p. 131), de acordo também com as
modas e as épocas. Neste sentido, e se se considerar viável a hipótese que colocámos de terem
existido grandes oicinas com sucursais dispersas um pouco por todo o império, aquelas, nessa
eventualidade, teriam contribuído também para
a difusão do léxico musivo, ganhando-se, assim,
uma aparente universalidade plástica, porque,
de acordo com Philippe Bruneau, seria impossível ixar num único instante toda a imaginária
da Antiguidade:
(…) ne pouvaient rassembler toute l’imagerie de
l’Antiquité. Quant à moi, cependant, je ne puis y
adhérer (…): personne n’a jamais vu de chaier
de modèles et aucun texte ni image n’en atteste
l’existence. Ils n’ont donc d’autre réalité que celle
d’hypothèse servant à expliquer ce qu’on observe;
or, il me semble qu’un modèle, supposé, n’a rien
d’autre à expliquer que l’étroite similitude, qui ne
peut être fortuit, d’au moins deux copies identiques
entre elles. Et justement, c’est ce qu’on ne constate
jamais! Quand on rapproche des images mosaïques de même sujet, elles sont toujours beaucoup
trop différents pour dériver d’um même modèle,
même quand il s’agit d’un sujet très majoritairement, presque exclusivement mosaïstique comme
Lycurgue et Ambrosia. (…) je ne crois donc pas que
les mosaïstes transportaient des cahiers de modèles (Bruneau, 1987, pp. 156–157).
De facto, não chegaram, até nós, quaisquer
notícias (ou vestígios) de tais cadernos, que, no
entanto, acreditamos terem existido, ainda que
provavelmente os mosaístas possuíssem duas
espécies de cartões: um seria o mostruário, onde
se patenteavam os desenhos que constituíam o
repertório da oicina, e a partir do qual o cliente
escolhia os motivos do seu agrado; o outro seria
um verdadeiro manual de execução (Neal, 1981,
pp. 21–22). Mas esses cadernos — ou, no nosso
particular entendimento, essas tabuinhas — eram
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transmitidos de geração em geração e a sua continuada reedição permitiu que, desde que se utilizaram como temas recorrentes, tomassem parte
da tradição artística do mundo romano, porquanto cada oicina terá constituído o seu próprio repertório. Mesmo na posse de um programa
especíico, tal não deverá ser entendido como
estático, pois, ao introduzirem ou retirarem elementos, ou alterando os existentes, como no caso
do mosaico de Neptuno (Italica), no qual os artíices terão usado livremente os cartões, mudando
alguns dos atributos normalmente associados ao
motivo representado (Blázquez, 1993, p. 96),
criavam novos modelos. De facto, esta liberdade
(re)criativa dos arquétipos determinou a constituição de novos mosaicos que, decerto, agradariam
aos encomendantes, porquanto este processo
conduziria ao enriquecimento cultural e status
social do detentor de tais mosaicos (López, 2013,
p. 138).
Neste âmbito, poder-se-á concluir que os mosaístas (e/ou os encomendantes) iam, ainal,
criando novas composições, muitas das vezes
combinando motivos de distintas proveniências,
fenómeno bem patente, aliás, na antiguidade
tardia, quando, a par da assunção de um certo
naturalismo descritivo, o horror uacui se impôs na
decoração musiva e o desfasamento temático
primou pelo enrolamento, no mesmo mosaico, de
temas díspares, como seja o caso do pavimento
de Puerta Oscura (Málaga), do século IV ou mais
tardio, onde Belerefonte, montado no cavalo
Pégaso, mata a Quimera num contexto de uenatio, com caçador apeado e cão a perseguir um
herbívoro, cena apenas perceptível através das
legendas que identiicam as personagens mitológicas (Blázquez, 1981, p. 77-78, n.º 53, lám.
61A). Ou o mosaico de Fraga, também do século
IV, do cristão Fortunatus, onde se intui uma forte
presença báquica (Guardia, 1992, pp. 96–100,
láms. 32–33).
2. Técnica(s) de construção
Tendo por base o tratado de Vitrúvio e os cânones construtivos dos mosaicos, de acordo com os
preceitos estabelecidos pelo tratadista romano,
tal como constatou Lavagne, é hoje possível percepcionar de forma mais clara a(s) técnica(s)
de construção destes revestimentos decorativos,
designadamente quando nos arredamos do
espartilho canónico. De facto, o texto de Vit-
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Maria Teresa Caetano
rúvio, apesar de minucioso no que concerne a
determinados aspectos é omisso no que toca
estritamente à prática da construção, referindo-se laconicamente à utilização de régua e nível
como indicadores da colocação das tesselas.
Seja como for, diversos autores têm-se debruçado sobre a matéria em apreço e, neste sentido, Janine Lancha propôs que a argamassa
subjacente deveria ser colocada de uma só vez
para que a secagem fosse uniforme, garantindo,
deste modo a resistência necessária, evitando-se
também o aparecimento de issuras que pudessem comprometer o trabalho (Lancha, 1994,
p. 134). Ainda nesta perspectiva, é de crer que
os “operários” se socorressem do compasso, do
esquadro, de cravos e de cordas para determinar as principais coordenadas do desenho
que iriam transpor para o pavimento (Moreno,
1995, p. 17).
Irene Mañas Romero, por sua vez, concluiu no
estudo que efectuou sobre os mosaicos padronizados de Itálica que:
Los talleres italicenses utilizaran el pie romano
(29,6 cm) y sus múltiplos (...) o divisores (...). El
pie es utilizado para estabelecer la retícula ortogonal la base de algunas decoraciones isótropas
formadas por polígonos regulares (Mañas, 2008,
p. 2084).
O uso do pé como medida estandardizada,
ainda segundo esta investigadora, era também
utilizado mos mosaicos ortogonais e circulares,
considerando ainda a sua utilização como medida
preferencial para a delimitação de medalhões
e pseudo-emblemas. Apesar de ter “descodiicado” uma medida-base, concluiu igualmente que
este modelo não terá sido absoluto:
(...) en Itálica parece existir una multiplicidade de
formas de calcular la divisíon del espacio, que se
muestan en toda su complejidad dado el gran
número de ejemplares existentes. En el fondo se
trata del conocimiento práctico de una geometria
repetitiva basada en el uso de líneas y de polígonos regulares que acostados cubren una superfície
de modo eicaz. La conclusión principal que debe
extraerse de este muestro es que no puede considerarse tanto la existencia de preceptos utilizados en
todos los casos, como de un saber práctico acumulado que facilita el diseño y planiicación de procedimientos que permiten hablar de “grupos” de
mosaicos (Mañas, 2008, p. 2089).
Independentemente das soluções adoptadas,
não há dúvida — e inclusive é através da
observação empírica que este facto ressalta ao
olhar — de que o assentamento dos pequenos
cubos se circunscrevia a um percurso em positivo, contornando os moldes de madeira pré-fabricados, e só depois se preencheriam os
espaços vazios com ieiras de tesselas paralelas. A construção do mosaico, deveria iniciar-se
no centro do espaço a pavimentar, como, aliás,
parece ser perceptível através da constatação
da existência de desigualdades das orlas ou
faixas de ligação patentes em muitos mosaicos.
Este facto poderá ser resultante dos desnivelamentos — mesmo que mínimos — das paredes do compartimento, e/ou como resultado da
colocação mais ou menos cerrada dos pequenos cubos multicolores, bem como a argamassa
que ia alorando nos interstícios contribuindo
assim para sucessivos pequenos desvios do
desenho previamente traçado.
A esta tarefa sucedia-se outra, designadamente a ixação à base de apoio e nivelamento
das tesselas com recurso a maços de madeira
ou escadeirando com martelo sobre tábuas —
em particular nas zonas angulosas —, até se
formar uma superfície plana. Finalmente, vertia-se sobre o pavimento uma aguada de pó de
mármore ou de cal e areia que, depois de
seca, era polida, raspando-se os excessos, mas
que dotava o mosaico de brilho e da solidez
necessária à sua função pavimental, parietal
ou de revestimento de abóbada ou de natatio
(Moreno, 1995, p. 126).
Estas situações poderão, neste contexto — e
apesar da intenção subjacente –, encontrar na
arte musiva um valor (quase) absoluto, porém distinto nos modos de fazer. Por isso, e relectindo
mais profundamente sobre a temática que temos
vindo a abordar é, hoje possível, detectar cambiantes que indiciam também a existência de
escolas bem identiicadas como a de Vienne, na
Gália, onde era notória a falta de pedra própria para o fabrico de mosaicos (cf., v. g., Lancha, 1977), ou como, por exemplo, se fala de
uma identidade norte africana ou oriental. No
território da antiga Hispânia, constatou-se, do
mesmo modo, a difusão de valores iconográicos a partir de oicinas emeritenses, não só na
Lusitânia, mas também na Tarraconense (Blázquez, 1993, pp. 101–102); tal como Bairrão
Oleiro individualizou os mosaicos conimbrigenses
(cf., v. g., Oleiro, 1992); e Licínia Nunes Correia
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A “proto-indústria” do mosaico romano
na uilla de Santo André de Almoçageme, onde
também os erros grosseiros observáveis não se
compaginam com o recurso à sinópia (cf., v.g.,
Caetano, 2008, 2011).
Seja como for, cada mosaico (ou conjunto de
mosaicos) constituía praticamente um caso isolado,
sobretudo na Época Baixo-Imperial e durante a
romanidade tardia, até porque, conforme se tem
vindo a constatar, a técnica de construção do
suporte de qualquer tesselado era adaptada às
próprias circunstâncias locais, como concluiu, aliás,
Moreno (1995, p. 124). Estas conclusões coadunam-se com a procura insistente de mosaicos,
sobretudo, nos séculos III, IV e inícios do V, fenómeno que terá contribuído para a adopção de
métodos de construção menos dispendiosos e mais
rápidos, de forma a servir um público cada vez
mais soisticado e auto-evergeta.
Fig. 1 – Gravação
da sinópia (desenho
de João Oliveira).
Fig. 2 – Colocação
de tesselas com
recurso a moldes
de madeira e martelinho (desenho de João
Oliveira).
3. A matéria-prima
4
Janine Lancha, que
estudou pormenorizadamente este
mosaico, atribuiu-lhe
uma cronologia circunscrita aos inais
do século II e inícios
do III (Lancha, 1985,
pp. 151–175). Cátia
Mourão adiantou a
cronologia para o
segundo quartel do
século III (Mourão,
2008).
encontrou similitudes estilísticas dos tesselados da
zona sul do Conuentus Pacensis com os de Colonia
Ælia Augusta Italica (Correia, 2005, p. 84).
Ainda neste âmbito, temos que considerar o uso
da sinópia, pintada ou gravada, poder ou não
coadunar-se com uma praxis mais ou menos vulgarizada, ainda que adejada dos emblemata,
cujo fabrico seria oicinal e não em estaleiro.
Todavia, a sinópia constitui um tema ainda mal
clariicado na construção dos mosaicos. De
facto, a sinópia tem-se encontrado num número
reduzido de mosaicos (com exemplo peninsular
no mosaico de Oceano de Ossonoba, datado
do segundo quartel do século III4). Esta constatação conduz, de imediato, à conjectura
que aquele trabalho prévio, ao assentamento
das tésseras, talvez tenha sido uma excepção
à regra ou, então, que se tenha aplicado a
trabalhos de maior complexidade iconográica. Perante o exposto, serão igualmente viáveis outras hipóteses, como, por exemplo, o do
seu desaparecimento nos pavimentos com uma
cama pobre ou defeituosa, como sucede no território — que bem conhecemos — de Felicitas
Iulia Olisipo, cujos mosaicos ostentam camadas de assentamento relativamente pobres ou
mesmo inexistentes, como nos casos de mosaicos construídos sobre barro compactado, como
sucede, aliás, nos de São Miguel de Odrinhas e
213
Para além da questão subjacente às oicinas,
à sua organização e modelos, existe ainda um
outro aspecto a ter em consideração. Trata-se, obviamente, da obtenção da matéria-prima para a execução dos mosaicos, ou
seja, das tessellæ. As correntes historiográicas
mais comuns defendem que os tessellarii apenas empregavam pedras locais que procuravam nos arredores dos espaços a pavimentar (Lancha, 1994, p. 133), havendo, inclusive,
quem defenda que, em condições especíicas,
as pedras eram procuradas a mais de 100 km
da obra (Ramallo, 1985, p. 195). Se tal se
não nos aigura completamente impossível, por
outro lado — e atendendo ao pragmatismo
romano e à grandeza que esta indústria tomou
— parece-nos incongruente que tal sucedesse.
Pois, e tomando como exemplo a particular
circunstância da uilla de Rio Maior, onde se
recolheram vestígios do estaleiro musivo, Cristina Oliveira defende que as pedras para o
fabrico das tésseras poderão ter sido colectadas num raio de 2 a 3 km (cf., v. g., Oliveira,
2003). Todavia, Fernando Real, que efectuou
o estudo geológico de grande número de tesselas presentes naquela uilla, concluiu que, em
alguns dos mosaicos, se patenteiam cubos em
lioz dos arredores da antiga Olisipo (Real,
Apêndice I, in Oliveira, 2003).
Ora, esta conclusão acarreta, de imediato,
algumas questões. A crer numa indústria musiva
Revista Portuguesa de Arqueologia – volume 17 | 2014 | pp. 207–219
Maria Teresa Caetano
organizada, assente no princípio das grandes empresas e respectivas iliais (as “multi-nacionais”), ou num espaço menor, de indústrias
regionais (as “provinciais”), locais (as “conventuais” e/ou “municipais”) e, até, as de índole
familiar (vide Código de Teodósio II), e ainda
atendendo ao grande número de solicitações
sobretudo nos agri baixo-imperiais, as tesselas
eram um também produto comerciável (Moreno,
1995, p. 116). Mas que matéria era importada? Seriam blocos pétreos que, transportados por mar serviam, primeiro, como lastro dos
navios, mas que, depois de entrados nos portos,
seriam descarregados e transportados em carros ou por via luvial até ao local das obras? Ou
seriam as tesselas, à imagem de muitos outros
produtos pré-fabricadas, que eram negociadas
e transportadas já nessas condições?
De facto, a última hipótese colocada aigura-se
mais plausível, até porque existem, ainda que
residuais, testemunhos peninsulares dessa actividade. Designadamente, em Córdova, onde
se recolheram vestígios, já tardios, que aparentam terem pertencido a uma oicina de corte
e afeiçoamento de tessellæ (Moreno, 1995,
pp. 122–123). E, mais próximo de nós, temos o
caso do achado de milhares de tesselas brancas num compartimento selado da pars rustica
da uilla da Granja dos Serrões (Sintra). A estas
acresceram-se, em 1994, e no seguimento dos
trabalhos arqueológicos no mesmo local, outras
tantas tesselas, juntamente com blocos de calcário por cortar e pequenas lascas resultantes do
desbaste da pedra, tendo-se ainda detectado
e recolhido um escopro em razoável estado de
conservação, tudo isto retirado do interior de
um compartimento selado por derrube coetâneo, constituindo, portanto, elementos que, sem
dúvida, nos permitem admitir que ali terá funcionado uma oicina de canteiro, provavelmente
entre os séculos III e IV (Caetano, 2006, p. 31)5,
talvez semelhante à representada no mosaico
de Oued Rmel.
Este considerando acaso reforçará a presente
discussão, designadamente as tessellæ que, tal
como outros elementos estruturais e decorativos, eram — poderiam ser — carreadas até ao
local da obra, se não completas (como os emblemata), pelo menos, em fase adiantada para
a sua aplicação, ou seja, os pequenos cubos
pétreos, cerâmicos ou de pasta vítrea prontos a
usar na superfície a revestir.
Retornando à problemática do fabrico de tesse-
Fig. 3 – Mosaico de
Oued Rmel representando uma oicina
de canteiro em plena
laboração (in Neira,
2012, p. 108).
5
las em contexto de oficina, destacamos o baixo-relevo funerário proveniente da necrópole de
Isola Sacra, no qual se exibe, ainda que fragmentada, parte de oicina de talhe de tesselas
em plena laboração:
Nel frammento ostiense sono ritratti, in primo
piano, due mosaicisti intenti a preparare le tessere e, sul piano di fondo, il maestro nell’atto di
indicare a due operari, ricurvi sotto il peso di sacchi contenenti tessere (...). Nel documento si identiicano chiaramente I sedili lignei su cui mosaicisti — l’uno dal volto baebato, l’altro, imberbe,
più giovane — stanno a cavalcioni con accanto il
ceppo su cui è inissa l’incudine. Con la mano destra impugnano la martelina, attrezzo dalla caratteristica forma affusolata verso i bordi estremi
taglienti, mentre con il pollice e l’indice della mano
sinistra tengono il pezzo di pietra da frazionare
in tessere. Da un cesto sito accanto al più anziano
dei due mosaicisti fuoriescono i pezzi di materiale
lapideo le cui dimensioni sono pressochè uguali al
frammento tenuto tra le dita di uno dei mosaicisti.
La scena — pregevole documento della scultura
romana — mostra quindi una sezione della bottega dove alcuni componenti sono intenti a dimensionare le tessere prima che queste siano collocate
in opera su direttive progettuali del maestro che
nell’episodio è rafigurato con gesto inequivocabile di coordinatore del lavoro (…) (Robotti, 1983,
p. 313).
Revista Portuguesa de Arqueologia – volume 17 | 2014 | pp. 207–219
214
No Museu do Bardo
patenteia-se, a título
de exemplo complementar sobre a
matéria que temos
vindo a explanar, um
grande fragmento de
um mosaico de Oued
Rmel, na região de
Zaghouan, do qual
subsistem três níveis
de representação
alusivos ao ofício de
canteiro. No primeiro
plano, visto de frente o
mestre escultor, tendo
ao seu lado — infelizmente muito destruído —, um operário
a trabalhar rodeado
pelas suas ferramentas e de um capitel,
utensílios esses que se
dispersam ao longo
de todo o pavimento,
um asakron óikos. No
plano intermédio,
vê-se, à esquerda, um
ser alado que sustém
parte de uma cartela circular onde se
patenteava uma inscrição (conserva-se
apenas um s inal) um
canteiro extrai pedra
de uma pedreira e,
no último nível, uma
coluna é transportada
num carro puxado por
dois cavalos, decerto
a caminho do porto
ou da obra onde seria
integrada num edifício, já inalizada ou
pronta a receber acabamentos em estuque
e a respectiva policromia (Neira, 2012,
pp. 107–108).
A “proto-indústria” do mosaico romano
um tesselário em pleno labor (Neira, 2012,
pp. 103–113).
Segundo Lavagne, uma equipa composta por três
ou quatro membros conseguia, apenas, preencher
com tesselas uma área de 2 a 3 m2 por dia, consoante a diiculdade do desenho subjacente e,
nesta perspectiva, o fornecimento de tesselas já
fabricadas ia não só obstar o tempo de execução do mosaico, mas, certamente embaratecer o
custo inal da obra. Sobretudo na época de ressurgimento das uillæ, pois a mudança da cidade
para o campo da elite aristocrática, que desta
forma “urbanizou” os agri, terá igualmente contribuído para uma renovada procura de oicinas de
mosaístas, facto que terá, também, dinamizado a
indústria dos opera musiua.
Deveremos ainda referir, no âmbito da matéria ora aprofundada, que Anne-Marie Guimier-Sorbets considerou que na época imperial houve
uma grande evolução nas técnicas de construção
de mosaicos e uma estandardização dos métodos
de fabrico e dos materiais empregues na decoração musiva, quer parietal, quer ao nível do
pavimento:
Fig. 4 – Oicina
ostiense em laboração, fragmento de
baixo-relevo funerário, Museu das Escavações de Óstia
(in Neira, 2012,
p. 105).
Fig. 5 – Mosaísta
a trabalhar com martelinho, mosaico sírio
conservado no Museu
Nacional da Dinamarca, Copenhaga (in
Neira, 2012, p. 104).
E, para além deste exemplo, destaca-se ainda
o fragmento de mosaico que se conserva no
Museu Nacional da Dinamarca, em Copenhaga.
O troço de mosaico, proveniente da Síria e com
cronologia circunscrita ao século VI, representa,
num espaço branco, sem qualquer volumetria,
moldurado por ilete negro e bandas castanhas,
ao centro, um homem de desenho fruste, visto de
peril, com a carnação rosada bem musculada,
com hirsuta barba preta e a cabeça coberta
com barrete azulado; enverga túnica curta, em
tons de castanho e azul, segura um pistillum com
a mão direita. Apesar das inequívocas deiciências anatómicas parece sentado sobre a perna
esquerda vendo-se a palma do respectivo pé.
Trata-se, inequivocamente, de um operário
que Luz Neira Jiménez identiicou como sendo
215
Pour les mosaiques e sol, l’emploi de tesselles de
taille “standard”, essentiellement en pierre au en
verre (...) les mosaïstes d’époque impériale ont
alors tiré les leçons de leurs prédécesseurs: ils ont
privililégié l’eicacité pour l’exécution comme pour
la solidité l’eficacité pour l’exécution comme pour
la solodité des mosaïques. Pour pouvoir couvrir des
surfaces beaocup plus grandes, dans des édiices
plus nombreux, ils on adopté des méthodes qui
simplifaient la réalisation des pavements, et permettaien à des equipes plus nombreuses et rapidement formées (tessellarius) de travailler plus vite
(Guimier-Sorbets, 2011, p. 95).
Um último, porém inequívoco, testemunho lusitano
reporta-se às tesselas e plaquetas rectangulares devidamente aparelhadas e servindo para
utilização em alguns pormenores especíicos que
foram encontradas ao largo do arquipélago
das Berlengas, em contexto de naufrágio de um
navio romano, do qual se recolheram igualmente
cepos de âncora (Museu do Mar, Cascais).
4. O “ofício vil”
Apesar da importância do mosaico como privilegiado transmissor de ideias e de valores como,
Revista Portuguesa de Arqueologia – volume 17 | 2014 | pp. 207–219
Maria Teresa Caetano
aliás, temos vindo a constatar ao longo do presente ensaio, e do conhecimento que hoje existe
em relação aos aspectos morfológicos — tendo-se já constatado diversas formas de construir os
suportes (cf., v.g., Caetano, 2007) —, em contrapartida, pouco se sabe acerca dos artesãos que,
na verdade, foram os verdadeiros actores desta
“proto-indústria” decorativa.
Actores que, pelo menos na Península Ibérica,
mantiveram, ainda que por vezes ofuscada por
outras inluências, uma longeva relação com os
mosaicos italianos. Outras inluências são igualmente notórias: a gaulesa, as púnicas e norte-africanas, as helenísticas — e atente-se aqui
nas numerosas inscrições gregas patentes nos
mosaicos hispânicos —, e, ainda, as orientais,
tanto no que concerne a mosaicos de padrão
geométrico, como nas cenas de caça, onde exaltando a uirtus, os domini faziam-se representear
trajando à moda oriental (sobre esta matéria
cf., v.g., a notável síntese de López Monteagudo,
“Los mosaicos como documentos”).
Reira-se, por outro lado, que os artesãos-artistas
que, com paciência, teceram os rendilhados de
pedra que hoje ocupam, por direito próprio, um
lugar na História da Arte, são-nos todavia quase
desconhecidos. De facto, foram vários os factores que concorreram nesse sentido, podendo
considerar-se talvez que este fenómeno terá
ocorrido pelo “(…) fruto del profundo desprecio nacido en el ambiente áulico por todo lo que
estuviera relacionado con el trabajo y los trabajadores” (Moreno, 1995, p. 126).
Jean-Paul Morel considerou — citando Cícero —
que “todos os artesãos praticam um ofício vil”,
pelo que, consequentemente, todos aqueles que
laboravam com as mãos e auferiam salário, ou
seja, os artíices, eram tidos como sub-homens,
ou cidadãos de segunda classe (Morel, 1992,
p. 181). Na verdade, na sociedade romana, a
dignidade encontrava-se na posse da terra, mas
esta prerrogativa não impediu que os fundiários
fossem, igualmente, proprietários de unidades
fabris e/ou comerciais e fossem adeptos incondicionais do evergetismo. Não só evidenciando
a sua vaidade, mas, em simultâneo, ostentavam a sua fortuna, como foi o caso de Caius
Heius Primus, lâmine augustal6, que ofereceu à
cidade de Felicitas Iulia Olisipo a marmorização
dos principais espaços do teatro (Matos, 1994,
p. 109; Maciel, 1995, p. 87)7.
Mas as empresas/comércio eram, por implícita
norma, administradas por escravos e/ou liber-
tos de coniança, o que facilitou a ascensão de
uma “burguesia” citadina, também ela ávida
em mostrar o seu status e o seu poderio económico, oferecendo similarmente melhoramentos pro bono publico. Se a elite era estabelecida
pela aristocracia senatorial ou equestre e se
começava a surgir uma burguesia endinheirada,
então, o artesão/operário constituía, grosso
modo, a plebe urbana.
Esta plebe não só laborava na indústria e no
comércio, como também se dedicava à manutenção e salvaguarda do burgo, de que serão
exemplo os corpos de uigiles que organizavam
rondas e acudiam aos incêndios e os numerosos
operários que zelavam pela manutenção das
cidades, desentupindo esgotos, provendo a água
corrente, reparando as calçadas, etc. E, tal como
muitas outras proissões, constituíam um factor de
relevância na vida citadina, sobretudo quando
se organizavam em colégios proissionais. Nesse
contexto, então os artíices detinham e ostentavam o poder da sua classe, como parece ter sido
o caso do mosaico de Oceano (Faro), o qual, pela
leitura da fragmentária legenda, parece ter sido
mandado construir por membros de um grémio
proissional (Lancha, 1985, pp. 151–175).
Por conseguinte e, apesar de nesse tempo se
apreciar o objecto artístico, não só como objecto
de fruição sensorial, mas também como produto
de ostentação, a igura do artista/artesão —
ao contrário da concepção grega do génio —
esvaiu-se na meia-luz com que a passagem do
tempo e a inevitável alteração do espaço enformou a noção histórica do facto. Assim, o conhecimento que hoje temos dos “construtores de mosaicos” repercute-se apenas nos resquícios das suas
obras que chegaram até nós. Na verdade, para
os romanos, o verdadeiro autor de uma obra
de arte era o seu encomendante, entendendo-se, neste contexto, o seu executor apenas como
o meio necessário para a obtenção do produto artístico, até porque a obra era criada de
acordo com o gosto do mandatário ou ofertante
pro bono publico, mesmo que fosse um colégio
proissional — como vimos no caso do mosaico
de Ossonoba —, a presentear o melhoramento.
Desta forma será possível, de certo modo, evidenciar a semelhança do evergeta na sociedade
antiga com as divindades protectoras do homem.
Nesta perspectiva, e assumindo inequivocamente o mosaico como uma actividade “artístico-industrial”, será legítimo poder-se concluir que,
ainal, o mosaísta era um artesão, um indivíduo
Revista Portuguesa de Arqueologia – volume 17 | 2014 | pp. 207–219
216
6
Nas ruínas do teatro
romano de Lisboa foi
também encontrada
uma base epigrafada
(CIL II 196 = Ep. Olis.
71), suposto pedestal
de uma escultura do
próprio ofertante (Azevedo, 1815, pp. 13,
ig. IV, 60, ig. X; Hübner, 1869, p. 27; Hübner, 1871, p. 11; Castilho, 1884, p. 161;
Vasconcellos, 1913,
p. 325; Silva, 1944,
pp. 177–178). Caius
Heius Primus, augustalis
perpetuus, vê registado
na epígrafe que lhe é
dedicada o nome de
dois dos seus libertos,
assim como o dos seus
quatro ilhos. Reira-se,
a propósito, que Heius
é um gentilício itálico
que, apesar de se
encontrar pouco difundido, ocorre sobretudo
nos importantes centros portuários, como
era, aliás, o caso de
Felicitas Iulia Olisipo.
Na verdade, os Heii
eram uma antiga e rica
família que — para
além de alguns dos
seus membros terem
exercido diversas
magistraturas locais
no tempo de Augusto
— se dedicava, certamente, à indústria (com
testemunhos epigráicos no norte de Itália
e no Norte de África,
no que concerne ao
fabrico de lucernas) e
ao comércio marítimo,
com referenciais fora
de Itália (Fernandes,
2005, p. 34).
7
NERONI. CLAVDIO DIVI. CLAVDI.
F. GER…..AVG.. GERMANICO / PONT.
MAX.TRIB.POT.III IMP.
III.COS.II DESIGNATO
III PROSCAENIVM
ET ORCHESTRAM /
CVM ORNAMENTIS.
AVGVSTALIS PERPETVVS C. HEIVS PRIMVS… (CIL II 183 =
Ep. Olis. 70).
A “proto-indústria” do mosaico romano
de baixa condição, um escravo ou um liberto
(Lavagne, 1988, p. 473; Lancha, 1994, p. 136).
Deste modo, e no contexto da razão romana, justiicar-se-á assim porque é que dos milhares de
mosaicos hoje conhecidos, apenas algumas centenas tenham referência aos seus fabricantes e que
se tornaram de algum modo, frequentes desde
os inais do século III (Lancha, 1994, p. 128),
como resultado do tempo novo que se inaugurara
com os Severos. Será, pois, nesta perspectiva que
se poderão enquadrar, a título de exemplo, os
magníicos mosaicos da uilla de Carranque, de
meados do século IV, onde laboraram, em simultâneo, mais do que uma oicina de mosaístas:
“De estos talleres es posible identiicar dos con
seguridad: el primeiro, de un tal MAS(cellin?)VS,
levou a cabo los mosaicos del cubículo del proprietario y del oecus de la casa; el segundo, de
um tal IV(L.PRV)D, realizaria el mosaico del triclinio, el de la fontana y el de la sala que lo antecede” (Fernández-Galiano & alii, 1994, p. 322).
Precedia a entrada do quarto principal a
seguinte legenda, inscrita numa cartela: EX OFICINA MAS (―)NI / PINGIT HIRINVS / VTERE
FELIX MATERNE / HVNC CVBICVLVM. Inscrições
como estas, contrariando o anonimato clássico,
assumem com inusitado orgulho, talvez também
como consequência de um nivelamento social
que se foi materializando ao longo do tempo,
as suas obras de arte, embora subsistam, no
entanto, vários outros testemunhos ains — os
quais, na parte ocidental do Império, quando
geralmente expressos em genitivo se referiam
ao mosaísta, chefe ou “proprietário” da oicina e não ao pintor (Lancha, 1994, p. 130;
Dunbabin, 1999, p. 271), bem como se encontram algumas menções explícitas às oicinas —
ex oficina —, que se patenteiam apenas na
Península Ibérica, em África e na Gália (Guardia, 1992, p. 426).
No seu exemplar artigo sobre os “Oicios relacionados con el mosaico en las provincias romanas del Norte de África”, Luz Neira (2012)
referindo-se também aos mosaicos onde constam, a par do nome dos domini, a alusão às
oicinas e aos pintores intervenientes na construção dos conjuntos musivos poderá constituir
um modelo “egocêntrico” e “exibicionista” em
que não igurasse apenas o mandatário — ao
modo clássico –, mas, também o génio do pintor
e a qualiicação dos operários, realçando encomiasticamente o valor intrínseco dos mosaicos
que pavimentavam as suas uillæ. Ou seja, longo
caminho fora percorrido desde o anonimato alto-imperial até aos tempos baixos, decerto, constituirão uma inequívoca mudança do paradigma
mental e sócio-cultural que caracterizou o homem
novo que emergiu das convulsões do século III.
Como tal, não devemos esquecer que, em 212,
Caracala concedeu a cidadania aos libertos e,
também, que o número de escravos diminuíra
substancialmente. Será, portanto, neste cenário — ao qual devemos acrescer, para além,
das revoltas dos bárbaros e dos Bagaudas, as
deserções no próprio exército, os tumultos que
despoletaram aqui e além e a pressão persa
— que surgiu nova necessidade de se legislar
esta actividade económica. E, em 301, Diocleciano promulgou o Edictum de Maximis Pretiis
tentando, deste modo controlar a inlação ao
deinir o tecto máximo dos preços praticados em
todas as actividades económicas.
Nos tempos agrestes vivenciados no século V,
Teodósio II mandou redigir, entre 429 e 436,
um outro código legislativo que se aigura
consentâneo com uma tentativa de se evitar
a total desagregação do tecido socioeconómico do Império Ocidental, designadamente,
oferecendo protecção corporativa e benefícios iscais aos operários que sucedessem aos
seus pais na proissão, amarrando-os deinitivamente, pela poderosa máquina burocrática,
aos seus ofícios mecânicos e à manutenção do
seu status aos níveis inferiores da sociedade
(Lavagne, 1988, p. 47; sobre as pequenas
oicinas familiares, vide também Dunbabin,
1999, p. 269), numa época em que as “multinacionais”, as suas iliais e as oicinas de média
dimensão teriam já perdido grande parte da
sua operacionalidade.
Agradecimentos
Não podemos deixar da agradecer publicamente à Prof. Doutora Luz Neira Jimenéz (Universidade
Carlos III, Madrid) e à Prof. Doutora Guadalupe López Monteagudo (Consejo Superior de Investigaciones Cientíicas – CSIC, Madrid), os inestimáveis contributos dados à elaboração deste artigo.
217
Revista Portuguesa de Arqueologia – volume 17 | 2014 | pp. 207–219
Maria Teresa Caetano
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A “proto-indústria” do mosaico romano
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