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O procedimento científico passo a passo

José Carlos Pinto da Costa O PROCEDIMENTO CIENTÍFICO PASSO A PASSO 2011 Não há nenhuma coisa visível e corporal que não signifique algo de incorpóreo e inteligível Escoto Erígena 2 ÍNDICE 1 - INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 4 2 - FASE DE RUPTURA EPISTEMOLÓGICA: O PLANEAMENTO DO ESTUDO ............ 7 2.1. O Projecto ....................................................................................................................... 7 2.2. A pergunta de partida ...................................................................................................... 9 2.3. A exploração ................................................................................................................. 11 2.4. A elaboração da problemática ....................................................................................... 20 3 - FASE DE CONSTRUÇÃO: A CONSTRUÇÃO DO MODELO DE ANÁLISE .............. 25 3.1. Os dois momentos fundamentais da construção do modelo de análise..................... 27 4 – FASE DE VERIFICAÇÃO................................................................................................. 41 4.1. Da unidade de estudo à unidade de observação: a selecção dos campos e das pessoas 42 4.2. Observar como? ............................................................................................................ 54 4.3. A análise...................................................................................................................... 138 4.4. A redacção .................................................................................................................. 148 4.5. As conclusões.............................................................................................................. 149 BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................... 151 3 1 - INTRODUÇÃO Quando alguém quer fazer uma investigação científica deve ter em conta um conjunto de acções cuja inevitabilidade provoca logo um nervoso miudinho. Não se pense que este sentimento é próprio dos iniciados em questões de investigação; qualquer novo projecto de investigação põe o investigador perante um novo conjunto de acções, que inclui momentos de crise, ansiedade, incapacidade, etc. Quando alguém quiser encetar uma investigação científica tem, logo à partida, perante si, um dos principais momentos de crise de qualquer investigação: o próprio momento que antecede a investigação científica. A tal ponto o investigador (ou futuro investigador) duvida da sua posição de manuseador de dados obtidos de forma científica que pergunta a si próprio: Como? Como fazer uma investigação científica? O que é que eu devo ter em conta quando quero fazer uma investigação científica? As questões que assaltam o investigador constituem, por si só, obstáculos epistemológicos no verdadeiro sentido bachelardiano. Com estas dúvidas procuram-se respostas sobre o próprio modo de conhecer a realidade de forma científica. A questão fundamental revela-se mais como uma dúvida no verdadeiro sentido filosófico e revela-se como uma espécie de modelo de descrição da atitude para o conhecimento. “Conhecer de forma científica” define-se como um processo dinâmico que resulta das consequências que derivam da prática, que, por sua vez, se apresenta na forma de um hábito, adquirido e transmitido de forma cultural e biologicamente possível. Mais do que um resultado de um processo experimental, o conhecimento, de modo científico, sobre um objecto, pressupõe a atribuição de um valor heurístico a este mesmo objecto científico. Isto faz com que os critérios de valorização dos objectos existentes na realidade se associem por via da referência a um objecto específico de entre os outros possíveis, formando-se modelos de descrição dos objectos de estudo limitados por esses próprios conjuntos de critérios de valorização dos objectos. Assim sendo, o objecto é visto conforme o olhar que o investigador usa, olhar, este, afecto a um quadro de referência mental cuja matriz de concepção deriva de um modo particular de observar o mundo. Cada 4 disciplina científica é apenas um espelho de entre os que constituem a imensa bola de espelhos que é a mente humana. Independentemente de o objecto do nosso estudo ser observado por um prisma ou por outro, ou até que uns observem o que não se vê e outros observem o que todos pensam ver, o que define uma investigação como científica é o respeito que o estudioso tem sobre as regras que caracterizam as acções que no conjunto formam o procedimento científico. Este procedimento científico estrutura, por assim dizer, a atitude científica para o conhecimento, sobre a qual os filósofos clássicos falavam. Percorrer o procedimento científico é o mínimo que o investigador deve fazer para que o seu trabalho possa ser considerado científico, pois ele estipula os critérios a ter em conta na investigação sobre determinado objecto. De um modo simples, o procedimento científico é o conjunto de acções levadas a cabo pelo investigador quando quer fazer uma investigação científica. Por força do pendor antropológico deste trabalho, apresentar-se-á aqui o procedimento científico inspirado em Raymond Quivy e Luc Campenhoudt (1998) e seguido pela antropologia e pelas ciências sociais em geral, servindo muito bem algumas problemáticas abertas por outras ciências, incluindo aí as ciências da saúde. De acordo com aqueles autores, o procedimento científico faseia-se em sete etapas: a pergunta de partida; a exploração; a problemática; a construção do modelo de análise; a observação; a análise dos dados; e as conclusões ou considerações finais. Este trabalho tem, portanto, como finalidade suprir algumas necessidades relacionadas com a investigação científica e que suscitam o surgimento das tais questões postas no início desta introdução. Pretende-se contribuir para uma maior elucidação sobre o que é a investigação científica e sobre como é que ela se faz, desde a concepção de uma ideia de investigação até à redacção do relatório final e à apresentação dos resultados. Devido à natureza do próprio tema que estamos a estudar, a melhor maneira de contribuirmos para aquela elucidação é despender a maior atenção aos aspectos fundamentais do procedimento científico. 5 Por “investigação científica”, entende-se o processo formal e sistemático de desenvolvimento do método científico cujo objectivo é descobrir respostas para problemas mediante o emprego de procedimentos científicos. A investigação científica social e humana é o processo que, utilizando a metodologia científica, permite a obtenção de novos conhecimentos no campo da realidade social. Por seu turno, a realidade social envolve todos os aspectos relativos ao homem, nos seus múltiplos relacionamentos com os outros homens e com as instituições sociais. A investigação científica tem duas modalidades: a investigação intelectual, conhecida como investigação essencial ou pura, baseia-se no desejo de conhecer pela simples satisfação do conhecer; a investigação prática, conhecida por pesquisa aplicada, baseia-se no desejo de conhecer para agir. De modo geral, a metodologia científica envolve cinco actividades: o planeamento do estudo (realização do projecto), a colecta dos dados, a análise dos dados, a interpretação dos dados e a a divulgação dos resultados (redacção do relatório). O problema do conhecimento científico coloca-se da mesma forma para os fenómenos sociais e para os fenómenos naturais: em ambos os casos, há hipóteses teóricas que devem ser confrontadas com dados de observação ou de experimentação. Para esta confrontação er possível. É necessário desenvolver métodos. Estes, são as formas particulares do procedimento científico. São caminhos a seguir mediante uma série de operações, regras e procedimentos fixados de antemão de uma maneira voluntária e reflexiva, para alcançar um determinado fim, que pode ser material ou conceptual. Para Quivy e Campenhouldt, a metodologia científica percorre-se em três momentos principais, aos quais correspondem sete etapas de realização (ver Tabela 1). 6 Tabela 1 – Momentos epistemológicos e etapas do procedimento científico segundo Quivy e Campenhouldt Momentos epistemológicos Etapas do procedimento científico Etapa 1: A pergunta de partida Etapa 2: A exploração Ruptura epistemológica As leituras As entrevistas exploratórias Etapa 3: A problemática Construção Etapa 4: A construção do modelo de análise Etapa 5: A observação Verificação Etapa 6: A análise dos dados Etapa 7: As conclusões 2 - FASE DE RUPTURA EPISTEMOLÓGICA: O PLANEAMENTO DO ESTUDO O planeamento do estudo pressupõe a sistematização dos passos a percorrer durante a investigação. Estes passos são sistematizados num projecto. 2.1. O Projecto O projecto é um documento introdutório cuja finalidade é organizar o procedimento científico e orientar o estudo dentro de parâmetros tidos como fundamentais para o desenvolvimento desse mesmo procedimento. A estrutura a respeitar no anteprojecto poderá ser a seguinte: 7 a) Capa do trabalho Símbolo Escola Título Disciplina: Docente: Discentes: Local e data b) Estrutura interna do projecto No projecto devem constar os pontos essenciais a ter em conta durante a investigação. Assim, a sua estrutura interna percorrerá uma lógica de exposição que será seguida depois no trabalho em si. De forma muito superficial, a estrutura do projecto deve organizar-se em três partes maiores (introdução, desenvolvimento e conclusão), constituídas com os respectivos pontos. 1. Introdução a) Objectivos b) Conceitos-chave c) Métodos d) Calendarização 8 2. Desenvolvimento a) Exploração b) Apresentação da unidade de estudo c) Processo de integração na unidade de estudo d) Resultados esperados 3. Conclusão a) Originalidade do trabalho b) Reflexão sobre o valor do estudo 2.2. A pergunta de partida A pergunta de partida reflecte o problema da pesquisa. Este deve ser uma qualquer questão não resolvida e que é objecto de discussão, em qualquer domínio do conhecimento científico. Na elaboração da pergunta de partida deve-se ter em conta que ela norteará todo o trabalho de investigação e será revisitada sempre que for necessário. No final do estudo, uma resposta deve ser alcançada que permita responder, com rigor científico, à questão colocada no início. Para formular a pergunta de partida existem algumas regras. Assim, a pergunta de partida… a) … deve ser formulada como uma pergunta; b) … deve ser clara; c) … deve ser precisa; d) … deve ser delimitada (exequível); e) … deve ser unívoca e concisa; f) … não deve conter juízos de valor (pertinência); g) … deve poder ser observada e experimentada; 9 h) … não deve referir-se a casos únicos, isolados; i) … deve evitar abordar questões já resolvidas.  Uma boa forma de actuar para formular a pergunta de partida é “enunciar o projecto de investigação na forma de uma pergunta de partida, através da qual, o investigador tenta exprimir o mais exactamente possível o que procura saber, elucidar e compreender melhor” (Quivy e Campenhouldt: 32).  A clareza e precisão da pergunta de partida revela-se na sua precisão, que deve ser tal que o sentido da mesma não deva ser confuso. “Uma pergunta precisa não é (…) o contrário de uma pergunta ampla ou muito aberta, mas sim de uma pergunta vaga ou imprecisa”; “para poder ser tratada, uma pergunta de partida terá de ser unívoca e tão concisa quanto possível.” (36).  A exequibilidade da pergunta de partida reflecte-se no facto de “Ao formular uma pergunta de partida, um investigador deve[r] assegurar-se de que os seus conhecimentos, mas também os seus recursos em tempo, dinheiro e meios logísticos, lhe permitirão obter elementos de resposta válidos.” (37).  A pertinência da pergunta de partida significa que a mesma não contém imprecisões ou confusões entre a análise e o juízo de valor.  A pergunta de partida deve poder ser observada e experimentada. Uma boa pergunta de partida visará um melhor conhecimento acerca dos fenómenos estudados e não se baseia exclusivamente na descrição desses mesmos fenómenos.  A pergunta de partida deve considerar os casos de estudo enquanto casos relacionados com outros casos e enquanto objecto de estudo presente não apenas no local onde se desenrola o procedimento científico. A pergunta de partida é, simultaneamente específica, enquanto estudo de caso, e geral, enquanto contributo para o debate sobre o problema estudado num âmbito academicamente mais alargado. 10  Finalmente, a pergunta de partida deve ter em conta que deve encerrar uma preocupação científica ainda por resolver, deve, portanto, ser original. A pergunta de partida deve ser trabalhada sempre que o investigador o achar necessário e pode mesmo ser reformulada sucessivamente, de modo a adaptar-se ao máximo ao caso que se pretende estudar e ao problema que rege o procedimento científico. No fundo, “estas boas perguntas de partida são, portanto, aquelas através das quais o investigador tenta destacar os processos sociais, económicos, políticos ou culturais que permitem compreender melhor os fenómenos e os acontecimentos observáveis e interpretá-los mais acertadamente. Estas perguntas requerem respostas em termos de estratégias, de modos de funcionamento, de relações e de conflitos sociais, de relações de poder, de invenção, exemplos clássicos de pontos de vista, entre muitos outros pertinentes para a análise em ciências sociais.” (43-44). 2.3. A exploração A fase exploratória tem como principal função contribuir para que o investigador tome conhecimento da realidade de estudo e das implicações teóricas que esse mesmo estudo terá. Nesta fase, o investigador fará as leituras sobre o tema em estudo, evitando dispersar-se e exagerar nas referências analisadas. Nesta fase da exploração, quer-se que o investigador seleccione as referências, leia essas referências, resuma as leituras e compare informações sobre o mesmo aspecto dadas por vários autores. Simultaneamente à leitura, o investigador fará entrevistas exploratórias, utilizando sobretudo o questionário semi-directivo, de forma a prevenir-se caso haja informações previamente não consideradas e que sejam fornecidas pelos inquiridos. Nesta fase da exploração, o investigador deve preparar-se para a investigação, encontrar o fio condutor da investigação, escutar com atenção as informações veiculadas pelos informantes e descodificar os discursos que lhe foram fornecidos, fazendo um primeiro tratamento de dados. 11 Após terem sido feitas as leituras exploratórias, que terão como critério essencial procurar um enquadramento teórico sobre o problema que se estuda, recorrendo-se, para isso, à chamada tradição teórica (ou aquilo que há escrito sobre o assunto), o investigador, ainda num plano inicial da investigação, recorre a entrevistas exploratórias sobretudo através de um instrumento de diagnóstico do problema no campo: o inquérito extensivo, caracterizado pela sua natureza preparatória e pela superficialidade. Esteja-se em que momento se estiver na investigação, o problema da subjectividade do investigador está sempre presente. Assim, logo à partida, o investigador procurará orientar a sua análise para um campo problemático que esteja dentro da sua formação ou especialização, negligenciando outros elementos presentes e que poderiam revelar-se como fundamentais para a compreensão do problema. Esta escolha do tema é sempre subjectiva. Além da subjectividade que se encontra na escolha do problema, dá-se o caso de o investigador ir para o campo com ideias pré-concebidas e/ou juízos de valor sobre aquilo que vai estudar, facto que exige um trabalho prévio de destrinça entre o objecto e o sujeito da investigação. Quando o investigador não possui uma ideia clara sobre o que vai estudar, o normal é cair num “vício” comum: a serendipity, isto é, a adaptação, por parte do investigador, ao campo, podendo mesmo alterar a ideia inicial da sua investigação de forma radical. Estes problemas podem agudizar-se através da observação participante, que é o método fundamental da antropologia mas que acarreta consigo alguns riscos bastante difíceis de evitar, tais como: a alteração da realidade social através da sua presença estranha, o uso de termos científicos e/ou palavras de origem académica ou intelectual para explicar e/ou traduzir as palavras dos nativos, a ilusão do conhecimento porque se está fisicamente dentro da realidade, etc. Todos estes perigos podem ser evitados se o investigador tiver o cuidado de fazer um exame de consciência antes de entrar no campo de forma a expulsar todos os pressupostos de que parte na investigação e que tenham tido origem em ideias mais ou menos próprias ou antecipadamente adquiridas. Por outro lado, a participação do investigador na realidade que estuda deve pautar-se pela discrição e pela escolha de uma posição que se situe a meio caminho entre a ausência de actividade e o exagero de actividade. 12 Os problemas de subjectividade que acabámos de enunciar são sobretudo minimizados por via do trabalho de campo. Este, devido a ser um trabalho intensivo, tem que ser feito num período alargado de tempo (geralmente um ano de permanência no campo), o que ajuda a devastar qualquer impureza que tenha surgido por força de análises feitas com a cabeça quente e impede que se entendam todos os depoimentos como verdadeiros, pois que o tempo encarregar-se-á de confirmar ou infirmar as informações dadas pelas populações. 2.3.1. As leituras exploratórias Para fazer investigação social não basta estudar os métodos e as técnicas. Como Quivy e Campenhoudt avisam, os investigadores “(…) terão também de explorar as teorias, de ler e reler as investigações exemplares (…) e de adquirir o hábito de reflectir antes de se precipitarem sobre o terreno ou sobre os dados, ainda que seja com as técnicas de análise mais sofisticas.” (id.: 50). Na fase exploratória, as operações de leitura visam a qualidade da problematização e, as entrevistas ajudam a ter um contacto com a realidade vivida pelos actores sociais. É através da leitura que se alcança o alargamento de horizontes da formação teórica do investigador, de acordo com a sua visão das coisas. Ela permite colocar boas perguntas, adivinhar o que os outros não vêem e produzir ideias que o investigador nunca teria se se contentasse com os poucos conhecimentos teóricos adquiridos no passado. Além disso, qualquer assunto que se pretende investigar já foi abordado por outros investigadores, pelo que todo o trabalho de investigação se inscreve num continuum e pode ser situado em relação a correntes de pensamento que o precedem e influenciam. É fundamental para o investigador tomar conhecimento de trabalhos anteriores que se preocupam com objectos temáticos comparáveis; estes trabalhos podem mostrar o que está próximo ou o que distingue o seu objecto dessas correntes de pensamento. As leituras permitem também situar o nosso trabalho face a quadros conceptuais reconhecidos, a fim de podermos conferir uma validade externa ao mesmo. 13 Antes de escolher as leituras é importante insistir desde início na exigência de situar claramente o trabalho em relação a quadros conceptuais reconhecidos. 2.3.1.1. A escolha e a organização das leituras As leituras não são escolhidas nem feitas aleatoriamente. Esta fase da investigação é fundamental para o investigador, pois é a sua primeira incursão no campo semântico do problema que escolheu. Além disso, ele irá encontrar questões já debatidas e que não implicam o retratamento. a) Os critérios de escolha  1º Princípio – ligações com a pergunta de partida: começar pela pergunta de partida.  2º Princípio – dimensão razoável do programa de leitura: evitar sobrecarregar o programa, seleccionar as leituras, orientar mais para as obras que apresentam uma reflexão de síntese sobre o problema ou para artigos.  3º Princípio – elementos de análise e de interpretação: escolher artigos não apenas descritivos, mas analíticos e interpretativos.  4º Princípio – abordagens diversificadas: escolher textos que tenham abordagens diversificadas do fenómeno estudado.  5º Princípio – reflexões: oferecer-se, a intervalos regulares, períodos de tempo consagrados à reflexão pessoal e às trocas de pontos de vista com colegas ou pessoas experientes. Um espírito atulhado nunca é criativo. b) Onde encontrar os textos  Pedir conselhos a especialistas; 14   Não negligenciar documentos;  Procurar repertórios especializados;  Ler índices e sumários;  Reconhecer a importância das revistas especializadas;  Considerar a bibliografia presente no final dos livros; Informar-se sobre os métodos de consulta nas bibliotecas e arquivos. 2.3.1.2. Estratégias de leitura Existem algumas técnicas de leitura que facilitam a organização e compreensão da informação. Atentemos nos seguintes conselhos: a) A grelha de leitura A grelha de leitura corrobora o princípio segundo o qual, quando temos em vista uma investigação, nunca devemos ler nenhum documento ou nenhuma obra sem tirar apontamentos. Fazer uma grelha de leitura não é mais do que ler de forma sistemática e objectiva, onde imperem o rigor e a precisão. Através da grelha de leitura é possível ler em profundidade e de forma ordenada. Quivy e Campenhoult propõem um método de leitura que se divide em cinco fases de concretização: 1. Dividir uma folha de papel em duas colunas: dois terços à esquerda, um terço à direita. Intitular a coluna da esquerda “Ideias-conteúdo” e a da direita “Tópicos para a estrutura do texto”: Tabela 2 – Exemplo de grelha de leitura Ideias-conteúdo Tópicos para a estrutura do texto 15 2. Ler o texto secção por secção (uma secção é um parágrafo ou um conjunto de frases que constituem um todo coerente). 3. Após a leitura de cada secção, escrever na coluna da esquerda a ideia principal do texto original (dar a cada ideia um número que corresponde à secção respectiva). 4. Reler a coluna da esquerda de modo a apreender as suas articulações e a discernir a estrutura global do pensamento do autor: as suas ideias mestras, as etapas do raciocínio e a complementaridade entre as partes. 5. São essas articulações que devem aparecer na coluna da direita, em frente das ideias reunidas na esquerda. Aqui, o importante não é usar as ideias do autor, mas que se tenha apreendido as ideias importantes e a sua estrutura. Carlos Azevedo propõe o método de Juan Lasterra (“Estrategias para estudiar”. Madrid: Editorial Alhambra, 1989, pp. 35-83) que divide, igualmente, a leitura em cinco fases: 1. A Leitura global ou pré-leitura – faz-se com rapidez (leitura diagonal) com o objectivo de se captar o essencial do conteúdo. No final devemos ser capazes de responder à questão: de que trata o texto?; 2. Leitura selectiva – Procura num documento de um assunto muito concreto (leitura de pesquisa). Não se faz uma leitura global do texto mas apenas das partes que nos interessam. Exige que, previamente, tenhamos definido o que queremos perguntar e saber; 3. Leitura compreensiva – Permite-nos entender completamente o conteúdo do documento. É Uma leitura lenta, profunda. A captação do conteúdo poderá ser ajudada com sublinhados, esquemas, resumos, fichas de leitura, etc.; 4. Leitura crítica – Pretende-se submeter o texto a uma análise profunda para testar a validade das afirmações nele contidas. Exige um trabalho lento e profundo, com pausas 16 e reflexões. A leitura crítica é um poderoso instrumento para desenvolver as capacidades intelectuais de cada um e para uma iniciação aos procedimentos básicos da investigação científica; 5. Leitura reflexiva – Este tipo de leitura desperta em nós novas ideias, novos projectos. É um momento de meditação e produção de reflexões pessoais. b) O resumo A elaboração do resumo consiste em destacar as principais ideias e articulações, de modo a fazer surgir a unidade de pensamento do autor. O método de realização de um resumo deveria percorrer a mesma sequência lógica do método de leitura. Como Quivy e Campenhoudt referem, “Graças ao resumo, poderá comparar muito mais facilmente dois textos diferentes e salientar as suas convergências e as suas divergências.” (id.: 66). O resumo parte da grelha de leitura (da coluna da esquerda) e procura estruturar as ideias fundamentais do texto, atingindo-se a unidade do pensamento do autor e a coerência do seu raciocínio. Resumir é reconstruir essa unidade, acentuando as ideias mais importantes e mostrando as principais ligações que o autor estabelece entre elas. Para este passo importa recorrer-se à coluna direita da grelha de leitura. Com base nesse recurso, podemos distinguir imediatamente as secções do texto onde se encontram as ideias centrais e as secundárias, os dados ilustrativos e os desenvolvimentos da argumentação. O resumo deve ser redigido de forma clara, a fim de que, quem não tenha lido o texto, possa ficar com uma boa ideia global do mesmo. Este esforço de clareza é importante. Trata-se de um exercício e um teste de compreensão, já que se os outros não compreendem, é porque ainda não está muito claro. 2.3.2. As entrevistas exploratórias Juntamente com as leituras exploratórias, as entrevistas exploratórias constituem uma parte essencial da problemática. A fórmula é simples: Leitura + Entrevistas = Problemática. 17 Quivy e Campenhoudt referem que “As leituras ajudam a fazer o balanço dos conhecimentos relativos ao problema de partida; as entrevistas contribuem para descobrir os aspectos a ter em conta e alargam ou rectificam o campo de investigação das leituras (…) As leituras dão um enquadramento às entrevistas exploratórias e estas esclarecem-nos quanto à pertinência desse enquadramento. A entrevista exploratória visa economizar perdas inúteis de energia e de tempo na leitura, na construção de hipóteses e na observação.” (id.: 69). A função da entrevista é revelar determinados aspectos do fenómeno estudado em que o investigador não teria espontaneamente pensado por si mesmo e, assim, completar as pistas de trabalho sugeridas pelas suas leituras. A entrevista exploratória deve ser aberta (não-directiva) e flexível, com perguntas pouco numerosas e precisas. Através da entrevista encontram-se pistas de reflexão, ideias e hipóteses de trabalho, serve, portanto, para abrir o espírito, para ouvir. A entrevista exploratória pode ser realizada a: a) Docentes, investigadores especializados e peritos no domínio da investigação implicado na pergunta de partida; b) Testemunhas privilegiadas; c) Público ao qual o estudo diz respeito. 2.3.2.1. A não-directividade As entrevistas exploratórias devem permitir ao entrevistado orientar as suas respostas de acordo com o seu conhecimento e informação disponível. Para se fazer uma boa entrevista exploratória deve-se ter em optar pela não-directividade. Para que este aspecto seja facilitado, Quivy e Campenhoudt apontam cinco dicas: 1. O entrevistador deve esforçar-se por fazer o menor número possível de perguntas; 18 2. O entrevistador deve esforçar-se por formular as suas intervenções da forma mais aberta possível, não impondo categorias mentais ao entrevistado; 3. O entrevistador deve abster-se de se implicar no conteúdo da entrevista; 4. É preciso fazer com que a entrevista se desenrole num ambiente e num contexto adequados; 5. É indispensável gravar a entrevista. Deve-se evitar tomar notas. Para bem encaminhar estas entrevistas, o investigador deve fixar com antecedência os termos sobre os quais deseja que o seu interlocutor exprima, o mais livremente possível, a riqueza da sua experiência ou o fundo do seu pensamento e dos seus sentimentos. Após a realização das entrevistas convém ouvir repetidamente as gravações, umas após outras, anotar as pistas e as ideias, pôr em evidência as contradições internas e as divergências de pontos de vista e reflectir sobre o que podem revelar. Além da análise do discurso enquanto informação, o entrevistador deverá fazer a análise do discurso enquanto processo, onde ele poderá estudar o conjunto de esforços tidos pelo entrevistado e tentar revelar as suas doutrinas, atitudes, paixões e representações (análise de conteúdo). 2.3.3. Os métodos exploratório complementares Além das leituras e das entrevistas exploratórias, esta fase exploratória da investigação pode incluir um conjunto de métodos complementares de aquisição de informações. Um dos métodos mais utilizados é a observação participante, que pode fornecer informações preciosas dobre o problema, a tal ponto que, após a sua aplicação, poderá ser necessário reformular a pergunta de partida. 19 2.4. A elaboração da problemática A Problemática é, segundo Quivy e Campenhoudt, “(…) a abordagem ou a perspectiva teórica que decidimos adoptar para tratarmos o problema formulado pela pergunta de partida. É uma maneira de interrogar os fenómenos estudados. Constitui uma etapa-charneira da investigação, entre a ruptura e a construção.” (89) A Problemática elabora-se em dois momentos: o balanço da fase exploratória e a problematização propriamente dita. 2.4.1. Balanço da fase exploratória Começa por se fazer o balanço das diversas abordagens do problema e de elucidar as suas características de base essenciais (estas informações são retiradas das leituras que se fizeram em obras que reflectem sobre o mesmo problema que estamos a tratar). A partir desta elucidação, é possível escolher e definir melhor o nosso próprio ponto de vista, já com conhecimento de causa, e situá-lo no campo teórico da disciplina ou ciência de que depende esse mesmo ponto de vista. A elucidação deve situar ou localizar os limites da nossa abordagem e dispor os pontos de referência. Jaen-Marie Berthelot (“L’intelligence du social”. Paris : PUF, 1990), apresenta uma tipologia dos esquemas de inteligibilidade da realidade social, a partir dos quais se escolhem os modelos de abordagem dos problemas sociais : a) esquema causal – um fenómeno é concebido como função de outro fenómeno que lhe é logicamente anterior; b) esquema funcional – as exigências de funcionamento do sistema social exigem que o fenómeno estudado cumpra uma ou mais funções úteis a esse sistema; 20 c) esquema estrutural – um sistema está sob a dependência de outro sistema que é mais fundamental; d) esquema hermenêutico – um fenómeno ou um comportamento é a expressão de um sentido que é necessário elucidar; e) esquema actancial – o fenómeno estudado é o resultado do comportamento dos actores implicados; (e) f) esquema dialéctico – a realidade é atravessada por contradições que requerem a sua superação para que ela esteja sempre em devir. De acordo com Quivy e Campenhoudt, “Cada um destes esquemas constitui, com efeito, um modo de explicação no sentido amplo do termo, quer dizer, uma maneira de estabelecer uma relação entre um fenómeno social e outra coisa: um ou mais fenómenos, um sistema do qual ele depende, um contexto, uma tendência, um sentido que ele oculta, estratégias ou um sistema de acção, um jogo dialéctico no qual é apanhado…, resumindo, uma maneira de “o fazer sair do seu imediatismo e do isolamento que implica” (…) É este relacionamento que torna o fenómeno inteligível.” (98) Assim, elaborar uma problemática equivale a definir, conjuntamente, três elementos: 1 – O que pretendemos explicar; 2 – Aquilo com o qual o relacionaremos; 3 – O tipo de relação que perspectivamos entre os dois primeiros elementos. 2.4.2. Escolha e construção da problemática Para escolhermos uma problemática, devemos escolher uma orientação teórica, uma relação com o objecto de estudo, o que implica a inscrição num esquema de inteligibilidade (…). Esta decisão não pode ser tomada em abstracto; deve relacionar-se com a pergunta de partida e o seu objecto. Este objecto de análise é histórica e socialmente situado. A problematização consistirá então em formular o projecto de investigação, articulando duas dimensões que se constituem mutuamente nele: uma perspectiva teórica e um objecto de investigação concreto, ou ainda, indissociavelmente, um olhar e o objecto desse olhar. 21 Conceber uma problemática é igualmente explicitar o quadro conceptual da nossa investigação, quer dizer, descrever o quadro teórico em que se inscreve a metodologia pessoal do investigador, precisar os conceitos fundamentais e as relações que eles têm entre si, construir um esquema conceptual adaptado ao objecto de investigação. Existem duas maneiras de construir esse esquema conceptual: 1 – conservar o quadro teórico existente, adaptado ao problema estudado e cujos conceitos e ideias principais tenham sido bem apreendidos; 2 – tomar como ponto de referência várias abordagens teóricas diferentes (para investigadores experientes). Explicitar a problemática é também a ocasião de reformular a pergunta de partida. _ A problemática só chega ao fim com a construção do modelo de análise (4ª etapa); _ A construção distingue-se da problemática pelo seu carácter operacional; _ A construção deve servir de guia à observação. Resumindo… a) O que é problemática? É a abordagem ou perspectiva teórica que se decide adoptar para tratar o problema colocado pela pergunta de partida e que responde à questão: “como vou abordar este fenómeno?” b) Como se concebe a problemática? Fazendo-se o balanço das problemáticas possíveis levantadas na fase exploratória e escolhendo e explicitando o próprio problema. Finalmente, reformula-se, caso seja necessário, a pergunta de partida. 22 2.5. Da problemática ao modelo de análise Na última fase da construção da problemática devemos ter em conta alguns procedimentos que podem acrescentar a essa mesma construção um 3º momento de elaboração. Este momento é o da explicitação da problemática. Mais do que elucidar os possíveis leitores sobre os caminhos que nós adoptámos, este momento serve para nós nos situarmos definitivamente no seio do problema e para desfazermos qualquer ambiguidade que ainda reste sobre a sua natureza e forma. Antes de se avançar para a construção do modelo de análise, e por uma questão de organização das nossas ideias e de escolha das linhas orientadoras do estudo, devemos explicitar a problemática. Esta explicitação deve ter sempre como referência a pergunta de partida, que poderá ser reformulada. Em termos esquemáticos, percorremos uma espécie de alternância entre momentos de avanço e de recuo dentro do momento da ruptura epistemológica. Para adoptar o conceito de Quivy e Campenhoudt, o procedimento deve processar-se em espiral, como o diagrama deixa pressupor: PERGUNTA DE PARTIDA EXPLORAÇÃO PROBLEMÁTICA Este vai-vem permite-nos aperfeiçoar o modelo de análise de forma a que este reflicta equilibradamente a relação entre os enunciados explicativos e os enunciados empíricos, respeitando-se a fórmula de Karl Popper: 23 T p = e Em que: T – Sistema conceptual organizado p - Conjunto de enunciados explicativos (hipóteses e modelos de análise) e - Classe de enunciados empíricos (verificações observadas e as relações empíricas cuja chave é fornecida pelos enunciados explicativos) Segundo Popper, a problemática é um sistema conceptual organizado que apenas difere do modelo de análise pela sua natureza construtivista, isto é, pelo seu carácter organizador do raciocínio. O que importa reter da sua fórmula é sobretudo a adequação que terá que existir entre a construção teórica dos pressupostos de análise (noções, perspectivas variadas, hipóteses) e a realidade (empiricamente apreendida). Em última análise, portanto, a problemática consiste em: 1 – elaborar uma nova forma de ver o problema; 2 – propor uma resposta original à pergunta de partida. O primeiro ponto considera as diferentes abordagens que já se fizeram sobre o problema que queremos estudar (adquiridas através das leituras exploratórias), enquanto o segundo deriva já de uma abordagem nossa sobre esse mesmo problema. Qualquer objecto de estudo é passível de ser entendido e estudado segundo várias perspectivas. Não é função do nosso trabalho estabelecer uma concordância entre essas perspectivas, mas sim criticá-las e procurar os pontos em que elas são cientificamente débeis, pontos, esses, que serão a nossa plataforma de apoio para encetarmos uma abordagem diferente, original. 24 No conjunto dos dois pontos, este 3º momento serve para precisarmos o modo pessoal que utilizamos para pôr o problema em estudo. Para estabelecermos o modo como vemos o problema, é necessário, por vezes, recorrer a leituras complementares, de maneira a que os conceitos-chave que vamos utilizar se tornem claros. De um modo simplista, explicitar a problemática é descrever o quadro teórico ou conceptual em que o investigador se filia, sendo, para isso, necessário, que ele: i. precise os conceitos fundamentais e as articulações que eles têm entre si (e) ii. desenhe a estrutura conceptual em que se vão fundar a proposições que se elaboraram para responder à pergunta de partida. Este trabalho é muito importante, pois que é aqui que se esboça o plano sobre o qual vai assentar a construção do modelo de análise e que se desenham as grandes linhas da construção, nomeadamente a hipótese principal. Assim, a problemática reflecte o quadro teórico pessoal a partir do qual se precisa a pergunta de partida e se compõe os vectores da respectiva resposta. A problemática é a esfera teórica que, na investigação, precede e justifica o modelo de análise e as hipóteses que serão testadas. A sua decomposição em momentos diferenciados deve-se à procura da clareza necessária. Ela só está concluída com a construção do modelo de análise. A construção do modelo de análise (fase de construção) articula a fase da ruptura epistemológica com a fase da verificação. 3 - FASE DE CONSTRUÇÃO: A CONSTRUÇÃO DO MODELO DE ANÁLISE Qual a função do Modelo de Análise? O objectivo da construção do modelo de análise é fazer com que as nossas ideias assumam uma forma conceptual que as torne exequíveis, i.e., que elas se mostrem capazes de fundamentar o trabalho de recolha e análise dos dados provenientes da observação. Trata-se de traduzir ideias teóricas, ou conceitos, em noções operacionais no âmbito da observação no terreno. 25 A construção do modelo de análise pressupõe que o assunto que vamos estudar esteja já problematizado e que a pergunta de partida esteja já definida com rigor e de forma definitiva. A partir da problematização, estamos então em condições de passar para o papel, de forma sistematizada, as relações existentes entre os conceitos-chave que vamos utilizar e o enquadramento teórico que essas relações devem ter em referência com a pergunta de partida. A elaboração desse trabalho de reflexão prévia facilitará a visão das implicações que a nossa abordagem terá no conjunto das discussões (ou problemáticas) possíveis sobre o assunto e mostrará em que medida a nossa problemática é diferente das que estão presentes na tradição teórica que utilizámos aquando da fase exploratória (leituras, especialmente). A vantagem de encararmos com rigor as possibilidades que a nossa problemática tem no todo da discussão sobre o problema em estudo revela-se nos passos seguintes, nomeadamente, na fase da construção do modelo de análise. Este é tanto mais objectivo e frutífero quanto mais rigorosa tiver sido a problematização do assunto em estudo. O modelo de análise constrói-se partindo-se, como vimos, dos conceitos adoptados como fundamentais para discorrer sobre o problema que estudamos e, partindo das relações que eles têm entre si, passamos para o momento da elaboração das hipóteses (que são as respostas hipotéticas à pergunta de partida). Assim, um dado que o investigador deve ter em consciência é que o modelo de análise não se distingue, em natureza, da problemática. O que faz com que tenhamos de dar atenção especial a cada uma das fases referidas de forma específica é o facto de que o modelo de análise é o prolongamento operativo da reflexão problematizante. A título de exemplo, é como se a problemática constituísse a caixa de velocidades de um carro e o modelo de análise a embraiagem; uma sem a outra não têm razão de ser e só em conjunto é que elas transformam em movimento a energia libertada pelo motor. 26 3.1.Os dois momentos fundamentais da construção do modelo de análise De um modo sintético, para construirmos o modelo de análise, devemos fazer um trabalho dividido em dois momentos principais: a conceptualização (construção dos conceitos) e a elaboração de hipóteses (proposições que exprimem a intuição do investigador sobre o fenómeno). No primeiro momento reflecte-se sobre a validade dos conceitos que escolhemos a partir das tais problemáticas possíveis que encontrámos aquando da fase exploratória (esta é uma dimensão fundamental da construção do modelo de análise); no segundo, apresentam-se as hipóteses, na forma de proposições de resposta às perguntas postas pelo investigador. O que distingue um momento de outro é o facto de este último (a embraiagem), ser já uma potência para a prática da investigação, fazendo a articulação entre o gabinete e o terreno, pois que as hipóteses (ou proposições) estarão sujeitas a avaliação, avaliação esta que se faz por intermédio da sua medição através de indicadores (elementos objectivos que representam a forma pela qual o problema se manifesta na realidade). O modelo de análise deriva de um trabalho teórico de articulação entre os conceitos e as hipóteses, constituindo-se, desse modo, como um quadro de análise coerente e unificado. 3.1.1. A conceptualização (construção dos conceitos-chave) A conceptualização é uma construção abstracta que pretende traduzir a realidade em palavras cientificamente validadas. Esta construção deve ser selectiva, depurando as ideias que o investigador tem, de forma a reflectir unicamente o sentido do que é essencial abordar no problema que ele pretende estudar. O conceito é constituído por dimensões variáveis, adquiridas através dos indicadores. Estes, sendo as partes manifestas (ou visíveis) dos conceitos, permitem-nos identificar os limites de aplicação e de sentido destes. Por exemplo, a doença da anemia pode ser diagnosticada através de sintomas visíveis (indicadores da doença). Assim, o conceito “anemia” pode ser determinado do seguinte modo: 27 Falta de ferro Palidez Anemia Cansaço Hipotensão As variáveis são características apreensíveis que se atingem através do discernimento, quer mental quer perceptivo, em determinado objecto de estudo e que podem ser categorizadas em várias classes. Pode dizer-se, por exemplo, que o cancro do pulmão está relacionado com o hábito de fumar. Isto quer dizer que as variáveis cancro do pulmão e hábito de fumar têm algo em comum. O termo variável provém da matemática e supõe uma lógica quantitativa. Por esta razão, podemos entender que uma variável é a constatação da existência de uma lógica de correlação e de ordenamento dos aspectos de um fenómeno que constitua um objecto de estudo e ajudam a vê-lo de um modo sistematizado. Exemplos: O género é uma variável, pois contém duas categorias: masculino e feminino; A idade varia ao longo de uma escala bastante abrangente e manifesta-se de acordo com valores numéricos; O estado civil varia entre solteiro, casado, divorciado e viúvo; O nível escolar varia entre analfabeto, portador do grau do ensino primário, etc; 28 Como vemos, os fenómenos sociais não são absolutos, eles não se justificam por si só, mas sim de acordo com múltiplos factores. Podemos relacionar, por exemplo, o género, idade, o estado civil e o nível de escolaridade numa única proposição. Este tipo de proposições, quando tomado com objectivos científicos pode constituir uma hipótese complexa. Assim, podemos considerar que, para determinado estudo, os indivíduos do sexo feminino, com mais de 50 anos de idade, com um grau de escolaridade baixo e casadas podem ter maiores probabilidades de contrair o cancro do útero. Esta proposição, tomada em termos científicos exige que se ponha à prova a sua validade, id est, que seja passível de ser confirmada (ou infirmada) cientificamente. As variáveis podem ainda ser classificadas mediante diversos critérios. Devido a esta contingência elas podem ser: a) Quantitativas – susceptíveis de serem medidas numericamente (ex.: número de indivíduos com Sida; quantidade de centros de saúde em determinada região; quantidade de especialidades médicas existentes em determinado hospital,...) b) Qualitativas – não susceptíveis de medição numérica (ex.: sexo; origem étnica,...) c) Contínuas – variáveis cujos valores podem ser fraccionados dentro de um determinado intervalo (ex.: intervalo etário do 15 aos 29 anos = 15, 16, 17,..., 29; intervalos de peso; intervalos de estatura; etc.) d) Independentes – (designadas por variáveis X) – são as bases dos factores, i.e., os elementos que explicam as variáveis dependentes. e) Dependentes – (designadas por variáveis Y) – são explicadas em função das variáveis independentes. (ex.: o cancro do pulmão (Y) é mais frequente nas pessoas que têm o hábito de fumar (X), dito de outro modo, esta proposição significa que o hábito de fumar aumenta a probabilidade de se contrair o cancro do pulmão). 29 f) Ordenáveis – são variáveis susceptíveis de valorização (qualitativas) de acordo com uma escala (ex.: classe social, nível de conforto, etc.) g) Não ordenáveis – são variáveis que só podem ser classificadas em categorias sem qualquer diferenciação qualitativa (ex.: sexo, idade, estado civil, etc.) A operacionalização das variáveis consiste em confrontá-las com os factos empiricamente verificados com o objectivo de obterem respostas que sejam consideradas importantes e que venham a emprestar significado a todo o procedimento científico. Por outras palavras, as variáveis, que são também conceitos (e que por isso são sujeitas ao trabalho de conceptualização), devem obter uma correspondência no terreno que possibilite a sua maneabilidade ou mensuração. Este princípio relaciona-se com aquele que dizia que todas as hipóteses científicas devem ser passíveis de serem refutadas empiricamente. Assim, para que uma variável seja operacionalizada, ela deve ser sujeita a um trabalho reflexivo que percorra duas fases: 1. Definição teórica e enumeração das suas dimensões; 2. Definição empírica, fazendo-se referência aos seus indicadores ou elementos que indicam o seu valor de forma prática. A selecção dos indicadores pode ser de difícil decisão. Muitas das vezes, uma variável tem vários indicadores e torna-se difícil escolher qual é o que melhor apresenta a variável no terreno. Para que esta escolha seja bem feita deve-se ter em conta o valor que o próprio campo atribui a cada um dos indicadores considerados e optar-se por aquele que melhor corresponda à valorização atribuída pelo campo (psicometria). Pode também acontecer que os indicadores que são entendidos (tanto por nós como pelo campo) como os mais apropriados para se estudar determinado problema não sejam passíveis de mensuração, o que exige que se considerem como instrumentos de análise outros indicadores, menos apropriados, mas passíveis de serem mensurados. 30 Segundo Quivy e Campenhoudt (op. cit.: 122) existem duas maneiras de se construir um conceito. Cada uma delas corresponde a um nível diferente de conceptualização. Uma é indutiva e produz conceitos operatórios isolados; a outra é dedutiva e cria conceitos sistemáticos. Esta distinção foi feita inicialmente por Bourdieu, Chamboredon e Passeron, (op. cit.). 3.1.1.1.O conceito operatório isolado (ou simples) O conceito operatório isolado é, segundo os autores citados, “(...) construído empiricamente, a partir de observações directas ou de informações reunidas por outros.” (citado em Quivy e Campenhoudt, id.: 123) podemos encontrar aqui uma conceptualização do conceito de “religião” elaborada por Glock: DIMENSÕES EXPERIENCIAL IDEOLÓGICA RITUALISTA CONSEQUENCIAL INDICADORES APARIÇÃO COMUNICAÇÃO INTERVENÇÃO CRENÇA EM DEUS CRENÇA NO DIABO CRENÇA NO INFERNO CRENÇA NA TRINDADE ORAÇÃO MISSA SACRAMENTOS PEREGRINAÇÃO PERDOAR SER HONESTO COM O FISCO ETC. Cada uma das dimensões deve ser entendida como uma variável, pois que varia na sua forma de indicação. 31 3.1.1.2.O conceito sistémico A grande diferença entre o conceito operatório isolado e o conceito sistémico é que aquele é caracterizado pelo rigor analítico e indutivo, enquanto este é caracterizado pelo rigor sintético e dedutivo. Como a designação deixa adivinhar, o conceito sistémico assenta a lógica das relações entre os elementos de um sistema. Como Quivy e Campenhoudt referem, “O conceito sistémico não é induzido pela experiência; é construído por raciocínio abstracto – dedução, analogia, oposição, implicação, etc. – ainda que se inspire forçosamente no comportamento dos objectos reais e nos conhecimentos anteriormente adquiridos acerca dos objectos. Na maior parte dos casos, este trabalho abstracto articula-se com um outro quadro de pensamento mais geral, a que chamamos paradigma.” (ibid.: 125) Os autores dão o exemplo do conceito de “actor social”, que se enquadra no paradigma da sociologia da acção. Segundo este paradigma, “actor social” é um conceito bidimensional, cujas dimensões são, por um lado, a capacidade de cooperação dos indivíduos em projectos de abrangência social e, por outro, a vicissitude de gerir a sua produção de acções num contexto de iminente conflito de relações. a) A dimensão cooperação: componentes e indicadores A dimensão “cooperação” do conceito “actor social” considera o facto de qualquer relação social implicar um troca caracterizada por uma certa duração, mas também por uma desigualdade entre as partes, existindo uma troca social durável entre o indivíduos, que assenta em regras formais e informais que constrangem a liberdade dos indivíduos. Os componentes da “cooperação” podem ser: 1 – os recursos (sugerem indicadores vários); 2 – a pertinência dos recursos (utilidade / valor do recurso); 32 3 – o reconhecimento do valor de troca; 4 – a integração nas normas ou o respeito pelas regras do jogo; 5 – o grau de implicação ou de investimento na acção colectiva. Por sua vez, a dimensão conflito deve ser concebida como o processo pelo qual cada actor tenta melhorar a sua posição e o seu domínio sobre o que está em jogo, ao mesmo tempo que assegura a cooperação necessária. Segundo Crozier e Friedberg, as regras formais, que o actor social tenta contornar, são a “codificação parcial, provisória e contingente das regras do jogo”. Assim, de acordo com estes autores, a dimensão do conflito pode ter três componentes principais: 1. Parcial: porque as regras não podem prever tudo e os actores sociais fazem sempre questão de guardar uma margem de liberdade, evitando fechar-se num sistema demasiado constrangedor; 2. Provisória: porque os trunfos, circunstâncias e situações podem mudar e modificar a relação de força entre os parceiros; 3. Contingente: porque as regras estão estreitamente dependentes daquilo que as precede, bem como das percepções e antecipações que cada uma das partes elabora em relação à outra. Segundo Quivy e Campenhoudt, “Quer se trate do conceito operatório isolado, quer do conceito sistémico, a construção [do modelo de análise] implica necessariamente a elaboração de dimensões, componentes e indicadores. (...) Alguns conceitos podem ter apenas uma dimensão ou uma componente (ex.: velhice).” O conceito operatório isolado é um conceito induzido. É duplamente vulnerável pelo facto de ser construído empiricamente (a partir da percepção). Em contrapartida, o conceito sistémico é um conceito deduzido. Começamos por raciocinar a partir de paradigmas desenvolvidos pelos grandes autores e cuja eficácia já pôde ser testada empiricamente (ele rompe, a priori com as pré-noções). 33 Em termos figurativos, as formas de ver a realidade oscilam entre os três processos de conceptualização mais utilizados por nós quando olhamos para a realidade. Assim, de modo representado: PRÉ-NOÇÕES CONCEITO OPERATÓRIO ISOLADO - CIENTÍFICO (SENSO COMUM) CONCEITO SISTÉMICO + CIENTÍFICO (LÓGICA) Independentemente de se optar pelo método indutivo ou pelo dedutivo, a construção do modelo de análise, e da consequente conceptualização, quer dos conceitos-chave quer das hipóteses, pressupõe uma operação de selecção do real, pelo que, qualitativamente, não se pode distinguir uma e outra opção de forma inequívoca. 3.1.2. A Elaboração das hipóteses As hipóteses estão sempre presentes em qualquer trabalho de investigação científica. Como referem Quivy e Campenhoudt, “(...) não há observação ou experimentação que não assente em hipóteses. Quando não são explícitas, são implícitas ou, pior, inconscientes.” (id.: 135) As hipóteses, são proposições que prevêem uma relação entre dois termos, que, segundo os casos, podem ser conceitos ou fenómenos. Elas são provisórias, pressupostos que devem ser verificados. Além disso, elas assumem duas formas maiores: 1ª forma – “A hipótese apresenta-se como a antecipação de uma relação entre um fenómeno e um conceito capaz de o explicar”; 2ª forma – “A hipótese apresenta-se como a antecipação de uma relação entre dois conceitos ou, o que é o mesmo, entre os dois tipos de fenómenos que designam.” (id.: 136) 34 As hipóteses estão intimamente relacionadas com o modelo de análise que se constrói e que constitui a matriz de estudo do problema que escolhemos. Assim, construir “(...) uma hipótese não consiste simplesmente em imaginar uma relação entre duas variáveis ou dois termos isolados. Essa operação deve inscrever-se na lógica teórica da problemática. (...) Por isso é difícil falar de hipóteses sem tratar ao mesmo temo do modelo implicado pela problemática.” (ibid.: 138) Além disso: a) Problemática, modelo, conceitos e hipóteses são indissociáveis; b) O modelo não é mais do que um sistema de hipóteses articuladas logicamente entre si; c) Ora, como a hipótese é a precisão de uma relação entre conceitos... d) ... Então, o modelo de análise é também um conjunto de conceitos logicamente articulados entre si por relações presumidas. Por conseguinte, o que se disse a propósito da construção dos conceitos (conceptualização) é também aplicável às hipóteses e aos modelos. e) Sendo assim, a construção das hipóteses e dos modelos “(...) assenta, seja num processo indutivo semelhante ao do conceito operatório isolado, seja num raciocínio do tipo dedutivo análogo ao do conceito sistemático.” (id.: 138) O processo de construção das hipóteses (indutiva ou dedutivamente) está, devido ao que se disse anteriormente, relacionado com a construção do modelo de análise. Assim, os caminhos (cf. métodos) utilizados no estudo podem distinguir-se em: 35 a) Método hipotético-indutivo, que produz conceitos operatórios, hipóteses empíricas e resulta num modelo de teórico mimético. b) Método hipotético-dedutivo, que constrói conceitos sistémicos, hipóteses deduzidas e resulta num modelo teórico no verdadeiro sentido do termo. Podemos resumir, esquematicamente, as implicações dos diferentes métodos de observação da realidade da seguinte forma: modos de abordagem do real hipotético e dedutivo conceitos sistémico hipótese teórica ou deduzida modelo teórico hipotético e indutivo operatório empírica ou induzida mimético senso comum pré-noções sem interesse e perigosa sem objecto Para Pierre Bourdieu, o modelo teórico é o único que, por efeito da construção, possui um poder explicativo. O modelo mimético é puramente descritivo e a sua qualidade científica depende da distância que estabelece em relação às pré-noções. As hipóteses devem ser formuladas partindo-se da ideia de que elas são enunciados teóricos não verificados, mas prováveis, e que se referem a variáveis ou a possíveis relações entre elas. Elas são sugestões de respostas ao problema que está em estudo (tentativas que, porque derivam de um esforço intuitivo, não assentam em dados obtidos a partir da realidade objectiva). Sendo sugestões de respostas aos problemas, elas podem ser validadas ou refutadas, consoante as respostas que o campo der. As hipóteses desempenham um papel importante na investigação: a) assentam numa reflexão teórica e num proto-conhecimento do fenómeno que constitui o objecto de estudo (conhecimento adquirido na fase exploratória); b) são pressupostos sobre as manifestações do problema; c) concedem ao trabalho de investigação uma linha orientadora que complementa a pergunta de partida; d) ajudam o investigador a considerar apenas os dados que são pertinentes para a investigação, ajudando-o a distinguir o essencial da investigação do acessório; e) constituem o plano da parte teórica da investigação que é confrontado 36 directamente com a observação ou experimentação (elas permitem fazerem-se idas e voltas do modelo teórico para o campo e vice-versa). As hipóteses estão directamente relacionadas com a pergunta de partida e devem ser testadas através da observação dos dados. Quando formulamos as hipóteses temos que ter em conta as suas características, que sintetizam o que foi dito acima. Assim, devemos considerar que as hipóteses: a) Têm duas origens possíveis; b) A sua elaboração deve obedecer a um conjunto de condições de fiabilidade; c) Têm dois tipos; (e) d) Formulam-se tendo-se em conta algumas relações que elas têm com o objecto de estudo.  Quanto às origens, as hipóteses podem derivar da simples observação dos factos (origem intuitiva). Esta observação constitui-se como um passo fundamental para a elaboração das hipóteses, todavia, devemos estar conscientes de que esta observação é sempre imperfeita, pois que não se baseou em nenhum processo sistemático e aturado de compreensão do problema. Esta contingência obriga-nos a lembrarmo-nos que as hipóteses são apenas possíveis respostas, não são respostas acabadas e não satisfazem a curiosidade científica que esteve na origem da investigação. Por outro lado, as hipóteses podem basear-se em estudos anteriores (leituras exploratórias). Se, por acaso, as hipóteses que adquirimos por esta via se vierem a confirmar como válidas, estamos perante a constatação de uma regularidade (ou seja, estamos a verificar o mesmo comportamento no nosso estudo que já outros estudos confirmaram anteriormente.  As condições de fiabilidade das hipóteses derivam da aplicação de várias regras que vão avaliar a sua pertinência. Assim, 37 1. As hipóteses devem ser claras e facilmente compreendidas, evitando-se a utilização de palavras complexas e excessivamente técnicas; 2. As noções escolhidas devem ser aplicadas com rigor, evitando-se a ambiguidade; 3. As hipóteses devem ser verificáveis através da observação; 4. Devem fazer referência à realidade e evitar julgamentos baseados em valorizações subjectivas feitas pelo investigador; 5. Devem ser simples, mas com valor explicativo (pertinência); 6. Devem estar de acordo com as técnicas que se irão aplicar para as testar; 7. Devem estar relacionadas com uma teoria, ajudando a generalizar os resultados; 8. Devem constituir respostas prováveis ao problema que está a ser investigado.  Tipos de hipóteses As hipóteses dividem-se em dois tipos: as gerais (ou principais) e as particulares (ou complementares). O primeiro tipo contém relações fundamentais entre as variáveis essenciais a ter em conta na investigação; o segundo tipo constitui o conjunto de hipóteses especiais que derivam das principais e que se relacionam com elas.  Formulação A formulação das hipóteses pode fazer-se de cinco maneiras diferentes: 38 1. Por oposição (exemplo: “as pessoas mais idosas têm menos força física do que as mais jovens”); 2. Por paralelismo (exemplo: “quanto mais comportamentos de risco se tiverem maiores probabilidades se tem de contrair doenças”); 3. Por relação causal (exemplo: “a descalcificação dos ossos origina a osteoporose”); 4. Por interrogação (exemplo: “Será que a falta de descanso provoca perturbações psíquicas?”); 5. Por recapitulação (exemplo: “A anemia é provocada por: a) alimentação deficiente; b) problemas sanguíneos; c) hemorragias”). As hipóteses que atingem maior complexidade são aquelas que se baseiam em relações entre variáveis. Estas são características apreensíveis (que se atingem através do discernimento, quer seja mental ou perceptivo) em determinado objecto de estudo e que podem ser categorizadas em várias classes. 3.2.A construção do modelo de análise: resumo Em suma, o Modelo de Análise é o conjunto de conceitos e de hipóteses logicamente articulados entre si. Ele serve para os conjugar com o intuito de cobrir os vários aspectos do problema em estudo. O modelo de análise deve: a) constituir um sistema de relações; b) ser racional e logicamente concebido. 39 Uma peculiaridade de qualquer modelo teórico é que ele comporta, simultaneamente, elementos de estruturação dedutiva e indutiva. Em termos sistemáticos, pode-se representar a oposição entre o método hipotético-dedutivo e o método hipotético-indutivo da seguinte forma: Método hipotético-dedutivo  A construção parte de um postulado ou conceito como modelo de interpretação do fenómeno estudado  Este modelo gera, através de um trabalho lógico, hipóteses, conceitos e indicadores para os quais se terão de procurar correspondentes no real (Fonte: Quivy e Campenhoudt, 1998, pp. 139-144).    Método hipotético-indutivo A construção parte da observação O indicador é de natureza empírica A partir dele constróem-se novos conceitos, novas hipóteses e, consequentemente, o modelo que será submetido ao teste dos factos Podemos ainda considerar a complementaridade entre os dois tipos de métodos, como vemos abaixo: MODELO HIPÓTESES CONCEITOS MÉTODO DIMENSÕES HIPOTÉTICOINDUTIVO MÉTODO HIPOTÉTICO- COMPONENTES DEDUTIVO INDICADORES (Fonte: Quivy e Campenhoudt, 1998, pp. 139-144). 40 Depois de termos visto que o modelo de análise constitui a dimensão operatória da problemática, resta concluirmos o estudo da construção da quarta etapa do procedimento científico: a) Assim, de acordo com os autores acima citados… “O modelo de análise é o prolongamento natural da problemática, articulando de forma operacional os marcos e as pistas que serão finalmente retidos para orientar o trabalho de observação e de análise.” (id.: 150). Ele é composto por conceitos e hipóteses estreitamente articulados entre si para, em conjunto, formarem um quadro de análise coerente. b) A conceptualização, ou construção de conceitos, é uma construção abstracta que visa dar conta do real. Mas refere-se a partes do real, pelo que se trata de uma construção-selecção. A construção de um conceito consiste em definir as dimensões que o constituem e, em seguida, precisar os seus indicadores, graças aos quais estas dimensões podem ser medidas. c) Por sua vez, uma hipótese é uma proposição que prevê uma relação entre dois termos que, segundo os casos, podem ser conceitos ou fenómenos. É uma proposição provisória, uma suposição que deve ser verificada. Por isso mesmo, ela deve ser refutável (ou ser objecto de verificação empírica). 4 – FASE DE VERIFICAÇÃO Nesta etapa, o modelo de análise vai ser confrontado com os factos existentes na realidade social. A etapa da observação é, por isso, uma etapa intermediária, situada entre a construção dos conceitos e das hipóteses e o exame dos dados utilizados para testar estas últimas. 41 Como dizem Quivy e Campenhoudt, a observação “(…) engloba o conjunto da operações através das quais o modelo de análise (constituído por hipóteses e por conceitos) é submetido ao teste dos factos e confrontado com dados observáveis.” (op.cit.: 155) 4.1. Da unidade de estudo à unidade de observação: a selecção dos campos e das pessoas Além da delimitação conceptual do estudo, deve-se proceder a uma delimitação objectiva do mesmo. Assim, é necessário circunscrever o campo de análises empíricas no espaço, geográfico e social, e no tempo. Para que esta delimitação objectiva tenha êxito, é necessário interiorizarmos o objecto do nosso estudo. Este objecto de estudo pode ser facilmente delimitável ou não. Quando o objecto do nosso estudo é um fenómeno ou um acontecimento particular, o campo de análise é delimitado por esse mesmo objecto de estudo. Assim, se nós quisermos estudar o doente que sofre de Alzheimer, o campo de análise é o doente que sofre de Alzheimer. Todavia, além de delimitarmos o campo de análise com base no objecto de estudo, também é necessário que delimitemos o espaço geográfico em que ele se encontra e o tempo que durará a observação. O doente que sofre de Alzheimer deve ser estudado em determinado local, durante determinado período de tempo. De facto, o local e o tempo fazem com que tenhamos que incluir no nosso estudo outros indivíduos e/ou elementos que fazem parte do campo de análise mas que não são objecto de estudo por si só. Assim, se fizermos um estudo sobre o doente que sofre de Alzheimer no Hospital X durante a semana que vai de 1 a 8 de Março, estamos, simultaneamente, a limitar o campo de análise e a considerar a existência desses tais indivíduos e/ou elementos que não podem ser contornados quando fizermos a investigação (como por exemplo, os médicos, os enfermeiros, as condições e/ou tecnologias utilizadas no tratamento, as implicações da doença no meio familiar, etc.). Enquanto que, no estudo de um fenómeno ou de um acontecimento particular (modalidade de análise mais implicada nas investigações etnográficas e etnológicas), o investigador tem a tarefa facilitada pela definição concreta do seu objecto de estudo (e tudo o que rodeia o mesmo não aumenta, de forma substancial, o campo de análise), no caso de o objecto de 42 estudo se reportar a reflexões mais abrangentes que investiguem sobre processos sociais de âmbito comparativo (modalidade de análise mais implicada nas investigações antropológicas), o investigador tem que definir o seu campo de análise de acordo com a abrangência da problemática implicada no seu modelo de análise e reflectida pelas hipóteses. Sendo assim, o investigador deve limitar o seu campo de análise não apenas com o âmbito de aplicação das hipóteses que escolheu para o seu estudo, mas também de acordo com as possibilidades que ele próprio tem para poder levar a cabo a sua investigação, tais como, a sua capacidade de análise (aptidões), os prazos de que dispõe, os recursos que tem ao seu alcance, os contactos e informações que possui sobre o campo. Estas limitações fazem com que a maior parte dos estudos deste tipo sejam feitos próximo da área em que o investigador reside, podendo este fazer estudos comparativos, mas recorrendo a estudos de campo feitos por outros investigadores noutras partes do mundo. Estas considerações remetem para a necessidade de se definirem os critérios de selecção da unidade de estudo e da amostra. Para que o trabalho de observação seja bem executado, é necessário responder-se a três perguntas fundamentais: observar o quê?; observar em quem?; e observar como? As duas primeiras questões remetem para a necessidade de se definirem os critérios de selecção tanto da unidade de estudo como da amostra (a qual se refere ou a acontecimentos ou a informantes). Por esta razão, alongarei cada uma destas questões começando pela identificação do “quê” e do “quem”. Para que o investigador possa testar as suas hipóteses, ele necessita de observar os dados, que são definidos pelos indicadores dos conceitos utilizados para a construção do modelo de análise. Quando o investigador decompôs os conceitos, ele fez um trabalho inicial de operacionalização das variáveis a ter em conta na análise, e que constituíram, no seu conjunto, as hipóteses (tanto as variáveis implicadas na formulação das hipóteses gerais, como nas que estão implicadas nas hipóteses complementares). A necessidade de retornar ao modelo da análise para relembrar os indicadores e as dimensões das variáveis contidas nas hipóteses justifica-se pela razão de o investigador tentar limitar a 43 quantidade de dados que vai tentar obter através da observação. Os dados que são pertinentes para a investigação, por referirem os indicadores apontados no modelo de análise, tornam, assim, a observação mais fácil e menos dispendiosa em tempo e esforço. Para que isto seja possível, o modelo de análise deve ser claro, preciso e explícito, pois, se assim for, a observação e a investigação em geral, não se desvia do que foi definido pela pergunta de partida, mantendo-se a continuidade do processo de investigação e o seu bom encaminhamento. a) A selecção dos locais onde vai decorrer a investigação A selecção dos espaços deve ter em conta sobretudo a facilidade de acesso aos mesmos. Normalmente, o investigador escolhe o espaço onde sabe que pode desenvolver a sua investigação e onde poderá encontrar pessoas que cooperem com ele. Este critério de conveniência na escolha do campo nunca é desprezado pelo investigador, quanto mais não seja porque existem limites de outra natureza (não apenas teórica) que fazem com que se escolha um campo em detrimento de outro (como no caso das questões financeiras ou da determinação da concessão de bolsas de investigação com base na obrigatoriedade de se realizar a investigação em determinado local previamente escolhido pela instituição que a concede). A escolha do campo implica, por sua vez, que se negligenciem outros campos possíveis, como, por exemplo no caso dos hospitais, tal como lembram Strauss et al. (1964). Quando estes autores fizeram trabalho de campo num hospital, eles tiveram que seleccionar, dentro desse campo, aquele que mais especificamente se dirigia à sua investigação (como vemos, a teoria e o campo são não apenas complementares, mas também interdependentes). A selecção de determinada enfermaria dentro do hospital trouxe vantagens importantes para o seu estudo, pois só assim puderam constatar que cada uma das enfermarias tinha uma “vida diferente”. Tal como avança Burgess, o estudo feito num local específico, como o que os autores acima fizeram, “(…) permite ao investigador concentrar-se no ritmo social, no tipo de acontecimentos e comportamentos esperados, assim como nas crises que ocorrem. Contudo, sustentam [Strauss et al.] que um certo número de locais deve ser seleccionado para estudo, de modo que se possa obter uma larga perspectiva da instituição. Nestes termos, os 44 investigadores que seleccionam um simples local necessitam considerar as redes sociais e os aglomerados de situações que são envolvidos (Spradley, 1980).” (Op. Cit.: 64-5) Como defende Spradley, e Burgess sublinha, “Exactamente como as situações sociais estão unidas pelos locais físicos onde se inserem, também se encontram ligadas pelo facto de as mesmas pessoas participarem em diferentes locais.” (ibid.) Segundo Spradley, a escolha do campo deve ser feita com base em cinco critérios: 1. A simplicidade (deve-se escolher um local que permita ao investigador deslocar-se do estudo de situações simples para o de situações mais complexas); 2. A acessibilidade (a maior ou menor facilidade com que se entra no local); 3. A não intrusão (situações que não impliquem o investigador num papel de intruso); 4. A permissividade (situações que permitam ao investigador entrada livre, limitada ou restrita); 5. A participação (possibilidade de o investigador participar em acções que decorrem no local). b) A selecção dos tempos em que vai decorrer a investigação A selecção dos tempos da investigação torna-se importante sobretudo quando fazemos o nosso trabalho no seio de uma instituição. É particularmente importante ter-se em conta este aspecto quando fazemos trabalho de campo em hospitais. Como sabemos, neste tipo de instituições, as actividades (ou situações sociais) decorrem segundo um horário préestabelecido, que varia com as horas e com os turnos. Estas rotinas associadas a séries temporais, tais como a hora das visitas, a hora das refeições, a hora da medicamentação, as horas das reuniões, as horas das rondas, as horas de mudança de turno, etc. Estas rotinas pautam o dia de forma rítmica. Estes ritmos são muito importantes para o investigador descobrir a lógica de funcionamento do local. Neste caso, o investigador deve decidir se vai fazer uma observação contínua ou irregular. Ele pode escolher um fase temporal que se adeque melhor ao objecto de estudo do seu trabalho (ele pode estudar, por exemplo, as relações entre os doentes e as visitas, para isso, ele apenas precisa de estar presente durante 45 essa hora). Se o investigador optar por fazer uma observação contínua, ele deve regular o seu horário e estabelecê-lo no próprio Diário de Campo, marcando as horas consoante os indicadores que ele considerar como relevantes para o estudo. Porém, quer se trate de uma investigação contínua ou irregular (segmentada), é aconselhável que o investigador aponte todos os momentos que se considerem relevantes. Uma organização temporal deste tipo permite, como lembra Burgess, que se estude a relação enfermeiro-doente (Op. Cit.: 68). c) A selecção dos acontecimentos/comportamentos A unidade de estudo fornece recursos fundamentais para o desenvolvimento da investigação, mas também tem limitações (no sentido em que a unidade de estudo apenas apresenta um fragmento da totalidade da realidade social e cujo comportamento tem de ser enquadrado numa teoria de investigação, para que os indicadores que o constituem possam ser estudados de forma científica). Neste ponto, veremos como a unidade de estudo se apresenta como um campo onde essa tensão entre os recursos que fornece e as limitações que impõe se verifica. O investigador terá de ter isto em conta quando vai fazer o seu estudo. No final, ele deve ter tomado consciência dos constrangimentos que dão origem a essa tensão. Como a realidade social é contraditória, o investigador deve estar precavido para o facto de não acreditar piamente naquilo que lhe é dito (nem naquilo que se faz). A destrinça entre a realidade “real” e a realidade “observada” não é possível de fazer com pouco tempo de trabalho de campo; ela só pode ser feita quando o efeito de saturação adquirido por via da observação participante continuada e prolongada for atingido. Mesmo assim, o investigador deve ter sempre na sua consciência o facto de aquilo que foi observado não poder servir para se retirar uma lei geral sobre a realidade social (pois que esta não é totalmente visível nem é possível de discernir a partir da extrapolação de um caso concreto para toda a realidade social. Além dos problemas das limitações impostas pela especificidade do campo no todo da realidade social e pela inadequação entre o “dito” e o “feito”, o investigador ainda tem que considerar que as selecções que fez do espaço e do tempo da observação restringem ainda mais o alcance das conclusões do seu estudo. 46 Como vimos, quando seleccionamos o campo, definindo os espaços de observação e os tempos em que a mesma se vai desenrolar, temos que ter em conta dois elementos que estão relacionados com essa selecção: a selecção dos acontecimentos (que representam a ponte entre a teoria e a realidade social) e a selecção dos informantes (que nos fornecerão as informações que enquadram a teoria na realidade social e vice-versa). Os acontecimentos revelam-se sobretudo como comportamentos das pessoas que estão a ser observadas. Estes comportamentos podem ser estudados tendo-se como pontos de partida uma observação do mesmos de modo estruturado ou de um modo não estruturado (Burgess, Op. Cit.: 76). Robert Burgess lembra que Schatzman e Strauss (1973) tinham já elaborado uma classificação dos tipos de comportamentos a ser observados pelo investigador. Segundo estes autores, esses comportamentos podem ser (adaptação nossa): a) Comportamentos de rotina (acontecimentos que se verificam no dia-a-dia); b) Comportamentos especiais (acontecimentos fortuitos mas previsíveis); c) Comportamentos de crise (acontecimentos excepcionais, acidentais). Como se pode adivinhar, os acontecimentos de rotina são os mais visíveis, que, devido a isso, podem induzir-nos em erro, pois consideramos que, por se tratarem de acontecimentos vulgares, não encerram neles nenhuma informação especial que mereça ser relatada. Este erro é muito frequente. Como os comportamentos não saem do ordinário, temos tendência para os menosprezar, esquecendo-nos de que são eles que fornecem a maior quantidade de indicadores sobre a estrutura que enforma esses mesmos comportamentos. Além disso, como nós vivemos segundo rotinas, tomamos algumas informações e comportamentos como sendo evidentes, não lhes dando o valor devido, até porque essas rotinas reflectem os objectivos (nem que seja implícitos) que devem ser atingidos numa qualquer realidade social e/ou instituição. Por outras palavras, os acontecimentos rotineiros reflectem a eficiência (ou não) do controlo sobre as situações, o que é um dado importante. 47 Os comportamentos especiais são aqueles que articulam a realidade vivida todos os dias com a realidade simbólica que agrega um conjunto de valores de vivência em comunidade. Isto é, os acontecimentos especiais são aqueles que acontecem ciclicamente e que são previsíveis. Assim, as datas comemorativas representam a unidade simbólica entre os agentes sociais e procuram agregar os comportamentos aludindo para um conjunto de valores que identifica os grupos sociais. Por exemplo, o ano académico é pautado por ritmos de comemoração que aludem para certos princípios de conformidade com a “vida académica”: o início do ano lectivo, a recepção aos caloiros, a praxe, a semana académica, etc. Todos estes acontecimentos remetem para um conjunto de acontecimentos que revelam a partilha por certos ideais de vivência comum (valores). A sociedade em geral vive as suas comemorações segundo um princípio de previsibilidade relativa dos comportamentos. Por exemplo, prevê-se que, no Natal, se ofereçam presentes (como símbolo do valor da fraternidade); que no dia 25 de Abril, se comemore a liberdade, etc. Todos estes acontecimentos representam marcas da vivência em sociedade e apelam, muitas das vezes, para o desempenho de actividades especiais, tais como a recolha de alimentos, a visita a hospitais, os ajuntamentos populacionais, etc. Já os comportamentos de crise remetem para comportamentos imprevisíveis e reflectem o modo não só como as instituições lidam com a imprevisibilidade, mas também, e sobretudo, para a manifestação das características humanas menos culturalizadas. Por exemplo, perante o acontecimento de um sismo, não se pode prever quais as consequências que daí advirão, causando, por isso, o medo e o terror. Quando acontece uma situação dessas, poderemos observar a forma como a humanidade tenta contornar os problemas causados pela natureza; além disso, poderemos ver como uma instituição específica lida com esse acontecimento. Na tentativa de poder controlar o terror perante a imprevisibilidade, é possível ver, a cada passo, simulações sobre situações de catástrofe. Estas simulações têm um aspecto que é interessante de ser considerado: elas pretendem regular os comportamentos sociais de modo a torná-los previsíveis. Isto deve-se a uma questão muito importante: a sobrevivência. Como esta é procurada de uma forma egoísta (para utilizar o conceito de Gabriel Pereira Bastos), todas as pessoas tentarão, por seus próprios meios sobreviver, o que atira para segundo plano a ideia 48 de ordem social. Aqui, as interpretações sobre os acontecimentos são sobretudo de índole subjectiva, pois que nenhum regulamento poderá impedir alguém de salvar a sua vida. Este aspecto foi lembrado por Turner (1971, 1974), como lembra Burgess. As situações dramáticas (Turner denomina as situações de crise social como dramas) dão origem a mudanças nos comportamentos de rotina e mesmo nos acontecimentos especiais. O drama social apresenta-se, nessas situações, como a unidade de estudo principal. Lembremo-nos que estes acontecimentos de crise não são apenas os que estão relacionados com as catástrofes naturais; eles dão-se em qualquer situação adversa ou de emergência (como, por exemplo, um acidente de viação, a queda de um Governo, etc.). Turner lembra que o drama social é… “(…) não a apresentação de um enunciado alegadamente objectivo de uma série de acontecimentos; diz antes respeito às diferentes interpretações atribuídas a estes acontecimentos e ao modo pelo qual eles exprimem desvios ou comutações matizadas na balança do poder ou agitam interesses divergentes dentro de preocupações comuns.” (Turner, 1971: 352; citado por Burgess, 1997: 77). Vimos que a escolha do campo está directamente relacionada com a definição do objecto de estudo. Todavia há que fazer uma distinção entre a população que constitui o campo e a amostra que escolhemos para representar o mesmo. d) A selecção dos informantes A selecção da amostra pode não respeitar os princípios da amostragem impostos pela técnica do inquérito. Muitas das vezes, o acontecimento sobrepõe-se a essa peculiaridade e é necessário obter um conjunto de informações que não são possíveis de atingir pela via do inquérito. Ademais, o problema exige, muitas das vezes, que se seleccionem alguns informantes que se destacam no seio do grupo social em estudo. Acontece, porém, que a selecção desses informantes privilegiados pode não ser feita pela sabedoria que eles têm, mas sim por outros critérios, como, por exemplo, a facilidade de acesso que nos dão à informação, o conhecimento que temos deles e o conhecimento que o investigador tem do campo. Não se procura aqui atingir a representatividade, mas sim a intensidade, facilidade e 49 qualidade das informações veiculadas pelos informantes. Burgess refere o trabalho de Ball (1984) em que ele escolheu para o seu estudo “cinco informantes que não eram nem representativos, nem típicos, nem atípicos, entre os professores” de uma escola de ensino técnico. “Contudo, eram pessoas a quem chegou a conhecer bem e com quem pôde discutir situações.” Margaret Mead (1953) “argumenta que a selecção de um informante exige que o investigador tenha conhecimento da situação que vai ser estudada, de forma a avaliar a posição das pessoas num dado contexto e o seu conhecimento desse contexto.” (Op. Cit.: 7980). Como Mead adianta, a “qualidade valor dos informantes depende não tanto do número de casos como da própria especificidade do informante, por forma a que ela possa ser avaliada correctamente em termos de um número muito amplo de variáveis – idade, sexo, ordem de nascimento, posição familiar, experiência de vida, tendências temperamentais (por exemplo, optimismo, hábitos de exagero, etc.), posição religiosa e política, posição precisa na relação com o investigador, relações que se configuram com qualquer outro informante, e por aí fora. Dentro deste extenso grau de especificação, cada informante é estudado como um exemplar perfeito, uma representação orgânica de toda a sua experiência cultural (Mead, 1953: 645-6; citada por Burgess, Op. Cit.: 80). Burgess conclui que a “selecção das pessoas nas pesquisas de terreno é, por conseguinte, uma coisa diferente dos processos de selecção associados à amostragem estatística num inquérito por questionário. Porque na investigação de terreno os informantes são seleccionados pelo seu conhecimento de um contexto particular que pode complementar as observações do investigador e apontar para outras investigações que necessitam de ser feitas por forma a compreender contextos sociais, estruturas sociais e processos sociais. (…) É esta “diferente espécie de amostragem” que tem sido adoptada pelos investigadores que estudam no terreno as suas próprias culturas, de modo a construir questões qualitativas que dizem respeito àquilo que acontece e às implicações do que acontece nas relações sociais.” (Op. Cit.: 81). A população escolhida para o estudo considera não apenas as pessoas que fazem parte do grupo social que escolhemos mas também conjuntos de grupos sociais (ou organizações) e outros objectos sociais, seja qual for a sua natureza. Assim, para podermos estudar 50 determinado problema não nos cingimos a abordar os indivíduos que vivem esse problema, mas também estudamos documentos ou conjuntos de dados mais ou menos dispersos. Todas estas unidades constituem a população. Enquanto isso, se o conjunto de indivíduos que formam uma população tem, grosso modo, características semelhantes, podemos escolher apenas uma parte da população e desenvolver aí a investigação. Trata-se da amostra. Como referem Quivy e Campenhoudt, depois de se ter circunscrito o campo do estudo, o investigador tem três possibilidades: ou recolhe dados e faz incidir as suas análises sobre a totalidade da população coberta por esse campo; ou a limita a uma amostra representativa desta população; ou estuda apenas alguns componentes muito típicos, ainda que não estritamente representativos, dessa população. Esta escolha percorre um caminho de especialização da observação, passando-se da unidade de estudo à unidade de observação. A unidade de observação acaba por ser o objecto específico do estudo, enquanto que a unidade de estudo é todo o contexto que enforma a unidade de observação. Conforme for a necessidade que a investigação propõe através das suas hipóteses, assim deve ser escolhida a unidade de observação. Por exemplo, se alguém estudar o doente com gripe, esse alguém não vai estudar todos os doentes com gripe, pois tal escolha implicaria um trabalho impossível de realizar devido à demasiada abrangência do campo escolhido, que teria que ser tão amplo como o problema. Neste caso, o investigador iria escolher uma amostra representativa do doente com gripe. A definição da amostra torna-se imprescindível sempre que a população for muito grande e quando é necessário obter uma imagem global do problema, extensível, portanto a toda uma população. A escolha de amostras dentro de populações não é um caminho muito percorrido pelas investigações antropológicas pois que, no caso da antropologia, interessam todas as pessoas, o que equivale a dizer que também interessa um único indivíduo. Não interessa à antropologia estabelecer uniformidades no seio dos grupos sociais, ela está mais votada para a observação das particularidades (e todas as pessoas são diferentes). Quando a antropologia estuda o particular em referência ao todo humano, ela pretende apenas retirar regularidades a partir dessas particularidades, tendo sempre em conta que não está a obter conclusões 51 uniformizadoras dos comportamentos das culturas humanas, mas sim apresentações particulares sobre a similaridade existente em todas as culturas humanas, que é a sua existência enquanto pertencentes ao género Homo. O tipo de amostragem comummente conhecido é o que é desenvolvido pela sociologia quando pretende retirar conclusões sobre determinado aspecto vivido por todos os indivíduos de um determinado grupo social, utilizando como técnica preferencial o inquérito (como no caso das sondagens). Como facilmente percebemos, aqui opta-se por uma investigação do tipo quantitativo, não muito seguida pela antropologia, a não ser em casos de caracterização de populações ou de levantamento de frequências e distribuições de dados sobre comportamentos concretos. A selecção da amostra em antropologia entende-se como a especificação e limitação do campo. A necessidade de amostragem em antropologia prende-se, portanto com a necessidade de se especificar objectivamente o problema de estudo, mais do que uma selecção numérica, assiste-se aqui a uma selecção problemática. Como refere Burgess, é… “(…) a abordagem das situações reais que põe ao investigador de terreno problemas de selecção e de controlo dos dados que são obtidos. Os investigadores têm, por conseguinte, de estar constantemente a seleccionar locais, períodos de tempo, acontecimentos e pessoas para estudar. O resultado é que enquanto alguns elementos da situação e dados segmentos da população estão envolvidos num estudo, outros são excluídos. É este conjunto de actividades que envolvem princípios de selecção que faz com que o investigador de terreno sistematicamente se confronte com a necessidade de amostragem.” (Op. Cit.: 57). E, continua Burgess, “não é nunca possível para o investigador estudar todas as pessoas e todos os acontecimentos numa dada situação social. Apesar de um investigador ter acesso, em geral, a um dado campo de pesquisa, isso pode não significar automaticamente que tenha acesso a todas as pessoas e a todos os acontecimentos de um dado lugar de investigação. (…) Além disso, pode bem haver restrições de tempo e de dinheiro, com o resultado de que 52 processos de amostragem se tornem essenciais. Os acontecimentos, situações e pessoas que um investigador decide observar dependem habitualmente dos interesses teóricos e substantivos de que resultarão diferentes estratégias de amostragem.” (id.: 58). Burgess propõe que se utilizem duas estratégias principais para se definirem as amostras em trabalho de campo (Ibid.: 59): a amostragem intencional e casuística e a amostragem em bola de neve. Na amostragem intencional, os informantes podem ser seleccionados para o estudo de acordo com um certo número de critérios estabelecidos pelo investigador, tais como o seu estatuto (idade, sexo e ocupação) ou experiência prévia que lhes confere um nível especial de conhecimentos. O investigador, por conseguinte, exige dos indivíduos que têm diferentes qualificações como informantes, um pormenorizado conhecimento do universo. Entretanto, a amostragem casuística é usada para referir o processo pelo qual os investigadores de terreno encontram informantes que lhes proporcionem dados de campo. Neste caso o investigador selecciona os indivíduos com os quais é possível cooperar. (id.). Por sua vez, na selecção de amostragem em bola de neve, o investigador conhece o campo e relaciona-se com alguns dos indivíduos implicados no problema de estudo aos quais é pedido que nos ponham em contacto com os seus amigos, desenvolvendo-se uma cadeia de sucessivos contactos que irão representar a amostra que queremos estudar. Além destas proposta feita por Burgess, podemos também considerar a estratégia de amostragem designada por amostragem teórica. Como lembra Burgess (Id.: 60), este conceito foi elaborado por Glaser e Strauss (1967) e consiste, segundo as próprias palavras dos autores em elaborar um “(…) processo de colheita de dados geradores de teoria pelo qual o analista, simultaneamente, colhe, codifica e analisa os seus dados e decide que dados necessita posteriormente colher, por forma a desenvolver a teoria tal como ela emerge. (1967: 45, citados por Burgess). Alguns autores consideram esta estratégia de amostragem a mais frutífera em trabalho de campo. Ela consiste, no fundo, em articular a teoria com a realidade social. Como refere 53 Burgess, nestas “circunstâncias a colheita de dados é controlada pela teoria emergente e o investigador tem de considerar: que grupos e subgrupos são usados na colheita de dados? Com que objectivos teóricos são os grupos e subgrupos usados? A amostragem teórica envolve, por conseguinte, investigadores que observam grupos tendo em vista ampliar, modificar, desenvolver e verificar a teoria.” (ibid.) Howard Becker (1970c) foi um dos principais teorizadores sobre a aplicação das técnicas de amostragem em trabalho de campo antropológico. Ele lembra que os limites, os locais e as unidades de estudo só conhecidas pelo investigador de um modo fragmentário. Além disso, ele põe em causa a eficiência da aplicação da abordagem matemática da amostragem na sua aplicação em estudos sociológicos, defendendo que as técnicas de amostragem devem basearse nas características sociológicas de determinado campo, não podendo ser formais e aplicadas indiscriminadamente. Para tentar solucionar a ineficácia da aplicação das técnicas de amostragem matemáticas no trabalho de campo, ele propõe algumas ideias. “Em primeiro lugar, indica que o acesso através do desempenho de um dado papel na vida privada pode dar oportunidades de amostragem em bola de neve. Cita a este propósito o seu próprio trabalho sobre os utilizadores de marijuana (Becker, 1963), que começou utilizando os contactos que tinha feito enquanto tocava música de dança. (…) Ao estudar a desviância, uma segunda estratégia recomendada por Becker para ter acesso a uma amostra alargada é estudar os desviantes que estão encarcerados. (…) Em terceiro lugar, é possível utilizar a amostra aleatória da população para estudar determinadas actividades, mas, como Becker indica, isto é um método particularmente dispendioso, já que algumas actividades de desviância, como o uso da heroína e do incesto, podem não estar suficientemente representadas numa amostra aleatória da população (…)” (Burgess, id.: 61-2). 4.2. Observar como? A palavra método deriva das raízes gregas metá (até, ao fim de) e odos (caminho). O método é, portanto, o caminho para atingir o fim, e refere-se aos distintos procedimentos que o homem emprega para entender ou explicar algo. Pode-se definir como o caminho a seguir 54 mediante uma série de operações, regras e procedimentos fixados de antemão de uma forma voluntária e reflexiva, para alcançar um determinado fim que pode ser material ou conceptual. Um método é um guia, um caminho, um modo de aproximação e não um conjunto de certezas. Nenhum método é um caminho infalível e pode mesmo ser necessário mudar de método para que exista progresso científico. Se se utilizasse sempre o mesmo método, o conhecimento científico pararia. O termo metodologia emprega-se para designar o estudo dos métodos, isto é, a sua descrição, explicação e justificação. A metodologia constitui o conjunto dos procedimentos e instrumentos que se utilizam para encontrar caminhos para a realidade. A metodologia deve:  Estabelecer os limites precisos nos quais se move o problema de estudo;  Clarificar os termos e noções empregues;  Identificar a técnica de investigação mais correcta para abordar o problema de estudo;  Sistematizar as linhas de estudo;  Formalizar o raciocínio. Tal como os métodos, as técnicas de investigação são respostas sobre como se fazer para se conseguir atingir o objectivo ou os resultados propostos (esperados). As técnicas de investigação têm um carácter prático e operativo, são os procedimentos específicos através dos quais se reúnem e ordenam os dados. O método diferencia-se das técnicas pelo seu carácter mais global. As técnicas englobam-se dentro dos métodos e, portanto, um método comporta a utilização de diferentes técnicas de investigação. 4.2.1. A atitude metodológica Existem dois tipos fundamentais de métodos e técnicas: o quantitativo e o qualitativo. O primeiro relaciona-se com o procedimento hipotético-dedutivo, enquanto o segundo se relaciona com o procedimento hipotético-indutivo. Além das diferenças enunciadas 55 anteriormente, estes dois procedimentos variam na forma de elaborar as hipóteses. No primeiro caso, as hipóteses são afirmativas e são definidas no momento de elaboração das técnicas de colheita de dados; no segundo caso, as hipóteses são interrogativas e são elaboradas depois de se levantarem os dados. Um aspecto que salta à vista quando se estudam as diferenças entre os métodos qualitativos e os quantitativos é o facto de eles se apresentarem como auto-exclusivos, isto é, são vistos como opostos. Costuma dizer-se que os métodos quantitativos usam números e os métodos qualitativos usam palavras. Podemos ver que cada uma das abordagens metodológicas apresenta uma visão particular sobre os problemas sociais: Características Objecto de investigação Linguagem Método para adquirir a informação Procedimento Orientação Método Qualitativo Quantitativo Captação e reconstrução do sentido Descrever os factos sociais Conceptual e metafórico Inquéritos e números Flexível e desestruturado Estruturado Sobretudo indutivo Sobretudo dedutivo Holística e concretizadora Particularista e generalizadora Os métodos qualitativos têm o objectivo concreto de compreender o que é que ocorre na realidade. Procuram os significados atribuídos pelos protagonistas da investigação. As técnicas que utilizam orientam-se pela recolha esmerada de dados, com observações lentas, notas de campo, etc. O qualitativo procura o significado nos factos que se investigam. Outras características são: estudam os fenómenos sociais no meio onde se produzem, exploram o significado que o actor lhes atribui, utilizam a observação e a entrevista aberta, usam linguagem simbólica. Bericat (1998), no seu artigo sobre a integração de ambos os métodos, põe a descoberto a debilidade da maior parte das classificações. Bericat propõe um conjunto de seis dimensões que incluem as decisões mais importantes na hora de definir a orientação metodológica de uma investigação social: 56 MÉTODO QUANTITATIVO MÉTODO QUALITATIVO Sincronia Diacronia Extensividade Intensividade Objectividade Subjectividade Análise Síntese Dedução Indução Reactividade Neutralidade O Método qualitativo é indicado para as investigações que dizem respeito aos processos dos fenómenos sociais. Estes métodos analisam com profundidade o fenómeno, observam a partir da subjectividade dos sujeitos em causa, não descompõem a realidade social, operam por indução, dando importância ao contacto com o meio social e estudam a realidade na sua constituição espontânea (neutralidade). O Método quantitativo utiliza-se quando se consideram investigações para captar a estrutura estática da realidade, com representatividade e para explicar essa estrutura. As investigações que utilizam os métodos quantitativos adaptam-se aos protocolos estabelecidos, o seu objectivo é confirmar a hipótese de partida e tratam de operar em condições controladas para garantir a sua fiabilidade. 4.2.1.1. As dimensões dos métodos qualitativos e dos métodos quantitativos a) Sincronia / Diacronia É importante definir se o objectivo da investigação é obter uma visão estática, que reflectirá o que sucede num momento determinado, ou se o que se pretende é conhecer os factos sociais numa temporalidade. b) Extensividade / Intensividade O investigador está obrigado a delimitar o objecto de estudo, não apenas por uma questão de racionalização dos recursos, mas sobretudo porque é impossível estudar a totalidade social. 57 Quanto maior for a extensão do objecto de estudo menor tenderá a ser a intensividade com que o mesmo será estudado. Logicamente, o estudo profundo de um objecto requer uma redução da sua amplitude. c) Objectividade / Subjectividade O problema da subjectividade e da objectividade em ciências sociais deve ser entendido de acordo com dois critérios distintos: a realidade e a verdade. O critério de realidade alude para o facto de que no homem existe uma realidade interior. A realidade subjectiva emerge em grande medida da interacção social e seria legítimo que a subjectividade fosse um objecto da investigação social. Por outro lado, e em relação com a verdade, teremos de ter em conta que a realidade social exige que se conheçam as actividades das pessoas, grupos, etc. É importante distinguir entre a análise da conduta que se realiza pelo próprio sujeito (o qualitativo, o que pretende é ver através dos olhos do próprio agente) e a análise da sua conduta feito pelo exterior. Os inquéritos investigam através da palavra estruturada, sob a perspectiva do investigador, mas tal não quer dizer que evite a subjectividade (falácia do objectivismo). No estudo das ciências sociais, em que o observador e o observado partilham uma linguagem comum, em que o observado também se observa a si mesmo, a dicotomia objectividade/subjectividade é irrelevante, tanto no caso da investigação qualitativa como da investigação quantitativa. d) Análise / Síntese A análise pode definir-se como um modo de captar a realidade que opera por meio de uma prévia decomposição para estudar as suas partes. 58 A metodologia sintética opera por composição das partes, relacionando estas entre si e estudando a sua natureza em virtude da sua integração no todo, dando-lhe, assim, sentido e essência. Partindo da perspectiva analítica, o investigador decompõe os fenómenos sociais procurando não a sua essência íntegra, mas sim qualidades específicas ou características puras que se lhe possam atribuir. Por exemplo, sob esta perspectiva, a natureza de um simples pau não tem resposta, tampouco podemos falar do seu comprimento, peso, etc. A definição do fenómeno realiza-se mediante agregação dos seus atributos. Sob a perspectiva qualitativa, essa agregação não constituiria uma verdadeira síntese. e) Dedução / Indução O processo de uma investigação pode ocorrer em dois sentidos: partir de ideias que devem confrontar-se com dados (dedução, mais própria do quantitativo), ou observar realidades empíricas que infiram ideias (indução, mais própria do qualitativo). Na realidade, esta dicotomia não é tão clara, já que em todas as investigações nos movemos das ideias aos dados e dos dados às ideias. f) Reactividade / Neutralidade A reactividade faz referência às modificações que os próprios instrumentos de medida causam nos fenómenos medidos e observados. A reactividade existe não apenas quando o investigador opera com a realidade, mas também quando a observa. 59 Há técnicas que provocam uma maior reactividade que outras, ou, o que é o mesmo, há algumas mais neutrais que outras. A observação oculta é um exemplo claro de técnica neutral, as pessoas mudam de conduta ao sentir-se observadas. 4.2.2. Organização da investigação A investigação antropológica desenvolve-se em três fases principais: a etnográfica (que adquire os dados sobre os quais incidem as análises e os resultados finais), a etnológica (que trabalha, num primeiro momento de síntese, esses dados) e a antropológica (que, através de uma análise comparativa, enquadra esse primeiro momento de síntese num estudo agregado que decorre da consideração dessa mesma síntese com outras já encontradas noutros campos de estudo). Em todo este processo, a fase etnográfica ocupa um lugar proeminente. Ela consiste em confrontar o investigador com o objecto de estudo e vice-versa. A sua originalidade consiste na utilização de um olhar antropológico (numa perspectiva de universalidade do que é observado) sobre as coisas que todos vêem de forma particular. Em última análise, a investigação etnográfica percorre todo o processo de investigação antropológica; este não pode existir sem aquela, pois que é necessária a existência de dados para se obter uma síntese (sobre esses mesmos dados). Portanto, a etnografia apresenta-se também como um processo, faseado e progressivo (desde a indagação inicial à síntese final). O processo etnográfico movimenta, assim, todo o desenrolar de um estudo antropológico; ele começa com a escolha do objecto de estudo, prolonga-se na selecção das teorias consideradas pertinentes, na problematização e nos métodos e técnicas de observação. Assim, podemos considerar que: a) O processo etnográfico percorre toda a investigação; (ou que) b) O processo etnográfico é uma parte do procedimento antropológico da antropologia. 60 Embora pareçam chocar, estas considerações podem ter ambas o seu quinhão de verdade. Com efeito, a) a investigação antropológica recai sobre os dados adquiridos no campo, pelo que toda a investigação antropológica tem a sua razão de ser nessa fase etnográfica; por outro lado, b) esta fase etnográfica, propriamente dita (enquanto fase de aquisição dos dados no campo) acaba quando finalizamos o trabalho de campo e regressamos ao gabinete para os estudar e sintetizar (começo da fase etnológica e antropológica). De forma integrada, podemos então dizer que a fase etnográfica se distingue das outras fases de investigação antropológica (etnológica e antropológica propriamente dita) no sentido em que se limita à parte da investigação prática, não reflexiva, portanto; mas, continua nas fases etnológica e antropológica porque ela vai guiar todo o processo de investigação subsequente, i.e., ela é que determinou, de modo definitivo, as indagações que o investigador seleccionou para suportar todo o trabalho de investigação a que se propôs. Como foi referido acima, o processo de investigação etnográfica consiste, de um modo simplificado, na utilização de um olhar antropológico, em que o investigador pretende ver o Outro sem ter consciência de si (da contingência de ser, também ele, um ser cultural). Este “combate” ao etnocentrismo pauta todo o processo de investigação antropológica e começa por determinar o êxito do próprio trabalho de campo. Isto significa que o investigador, além de ser um instrumento de investigação, ele é também uma parte fundamental desse processo. As suas observações, e consequentes análises e síntese, reflectirão a sua forma de pensar, a sua perspectiva preferida sobre o mundo e o seu grau de especialização científica. De forma sistematizada, o olhar antropológico consiste no respeito de algumas regras antropológicas, tais como: 1 – O investigador deve procurar combater os seus preconceitos e estereótipos. Ele deve estudar os fenómenos tal qual como eles ocorrem, ou seja, deve tentar vê-los como as pessoas que os constroem os vêem, pondo-se, assim, no lugar do Outro; 2 – Ele deve manter-se distante do objecto, evitando que a sua integração no campo, sendo muito apertada, deturpe a sua maneira de ver os fenómenos (o olhar 61 distanciado, de Lévi-Strauss). Este estranhamento consiste em ver o familiar como exótico. 3 – Ele deve também tentar articular os fenómenos que constituem o seu objecto de estudo com o contexto onde eles ocorrem e que lhes dão razão de ser (holismo). 4 – Finalmente, o investigador deve guiar a sua observação através de uma teoria social, i.e., ele deve problematizar o objecto de estudo e enquadrá-lo numa discussão de pretensões científicas, não se remetendo à apresentação de crónicas sobre o que vê, sem fazer delas assunto de reflexão que ajudem a fazer progredir o conhecimento científico dessa área particular da realidade social. As grandes vantagens da investigação etnográfica derivam sobretudo da possibilidade que ela tem de fornecer os modos pelos quais os processos sociais se desenrolam no campo. Estes devem ser investigados no contexto da sua formação, no quotidiano, e devem ter tido origem em várias fontes de informação que se constituem o próprio tecido social. O processo etnográfico deve derivar da consciência da participação num espaço e num tempo diferentes daqueles que caracterizam a vida ordinária do investigador. Ele, através do trabalho de campo, acede a um espaço e a um tempo etnográficos, tratados de forma diferente da que é dada à sua vida quotidiana. A investigação etnográfica assenta no pressuposto epistemológico da observação participante e cristaliza-se no Diário de Campo. Através desta investigação de base, podemos ansiar fazer uma “Análise Cultural” de dada sociedade. Esta análise cultural parte, portanto, de uma descrição (ou graphia), e esta, por sua vez, deve caracterizar-se por: a) ser interpretativa (interpreta o fluxo do discurso social); b) salvar o “dito” da extinção (manter o continuum etnológico); c) fixar o “dito” em formas pesquisáveis (fazer um relatório); (e) d) ser microscópica (intentar de descobrir o sentido dos fenómenos sociais) 62 Todavia, quanto mais profunda for a interpretação, menos completa ela é, pelo que uma investigação etnográfica é inesgotável, i.e., o seu carácter holístico encontra-se sempre limitado pela própria capacidade de observação do etnógrafo. Mas, fazer a interpretação etnográfica exige que, previamente, o investigador tenha consciência destes limites, pois só assim é que ele pode levar a cabo a sua empresa sem sentir que o seu trabalho é sempre incompleto. Na verdade, a interpretação das culturas, como Clifford Geertz definiu, deve regular-se por duas características fundamentais, a saber: 1 – A necessidade da teoria se conservar próxima do terreno (a chamada inferência clínica) de modo a ver as práticas significantes como actos simbólicos (não como sintomas), possibilitando assim fazer-se uma análise do discurso social (não uma terapia); 2 – Essa teoria deve evitar o profetismo, deve, sim, permitir uma análise futura da interpretação agora feita. Para que estes pressupostos epistemológicos sejam passíveis de ser seguidos, é fundamental que se faça um plano da investigação etnográfica, organizado por fases devidamente articuláveis mas não misturadas. Assim, o investigador, antes de ir para o campo, deve prever todos os passos que determinam o encaminhamento da sua análise e que vão determinar o êxito do seu trabalho. A seguir, apresenta-se o caminho que o investigador deve percorrer no conjunto de todos os pontos que constituem a investigação. Em cada um dos pontos, far-se-á uma pequena chamada de atenção, para que não se exceda nem se fique aquém do que é necessário fazer. a) Esboço flexível da investigação. Na pesquisa antropológica, a elaboração das hipóteses e dos outros aspectos da investigação não estão determinados de antemão, pelo que o caminho da investigação deve respeitar o que se encontrar no campo. Até esse ponto, o investigador não sabe ao certo o que vai encontrar e o que é passível de constituir objecto de estudo. Além disso, a investigação etnográfica 63 baseia-se no trabalho de campo, pelo que o esboço da investigação não determina o que se vai passar a seguir. Todavia, este esboço tem a preciosa função de enquadrar as ideias do próprio investigador num contexto teórico de estudo: em princípio, ele já sabe o que vai estudar e como o vai fazer. b) Levantamento do problema. Neste ponto da investigação, o investigador define o ponto de partida do seu estudo. É aqui que se faz a relação entre conceitos (conceito operatório isolado e conceito sistémico). O primeiro tipo de conceito releva de questões substantivas, que são importantes do ponto de vista empírico; o segundo assenta em questões de ordem epistemológica, questões essas que são teóricas e formais. Em princípio, quando levantamos um problema tentamos relacionar estes dois tipos de conceitos ou questões. Os conceitos que usamos para formular a pergunta de partida podem, portanto, ter tido origem quer em problemas apresentados pela realidade social, quer pelas teorias sociológicas, quer ainda por uma relação entre a realidade e as teorias. c) Escolha do campo Quando escolhemos o tema do nosso estudo, estamos, de alguma forma, a escolher o campo onde vamos fazer esse mesmo estudo. Numa investigação etnográfica, o tema e o campo estão relacionados; além disso, eles dependem um do outro, reciprocamente, pois que não podemos estudar seja o que for sem relacionarmos o problema em estudo com o contexto onde ele se verifica e evolui. A melhor forma de escolhermos um campo é ter como critérios de escolha a facilidade de acesso ao mesmo (aceitação no campo) e a relevância da informação que aí vamos encontrar. d) Acesso ao campo Além da pertinência do tipo de informação a encontrar no campo (naquilo que essa informação pode contribuir para estudar o tema que escolhemos), a acessibilidade é um factor importantíssimo na hora de tomarmos contacto com o campo. A acessibilidade ao campo 64 pode mesmo condicionar todo o desenrolar da investigação. Assim, podemos entender que os campos a escolher na investigação etnográfica se dividem em mais acessíveis e em menos acessíveis. Os campos do primeiro tipo são sobretudo públicos, tais como, parques, bares, ruas, etc., e não oferecem, à partida, dificuldades de acesso. Em contrapartida, os campos do segundo tipo são sobretudos privados, como por exemplo, os hospitais, cadeias, etc., e exigem que se negoceie com a autoridade que rege esses mesmos campos. e) Modos de fazer a observação Além das formas maiores da observação (participante e não participante), podemos classificar esta observação em dois outros tipos (que não colidem com aqueles): a observação aberta e a observação encoberta. No primeiro tipo, o investigador apresenta-se ao campo como investigador e espera ser integrado. Existe aqui uma espécie de negociação dos papéis, o que pode levar a que os observados omitam informações, pois sabem que está ali um investigador. No segundo tipo, o investigador não se apresenta enquanto tal; ele participa também nas actividades do grupo mas ninguém sabe que ele é investigador. Este tipo de observação acarreta dificuldades sobretudo de ordem ética (pois que, por princípio, o investigador deve comunicar as suas intenções junto dos grupos que estuda), além disso, o maior problema é conseguir manter o secretismo sobre a sua presença no local. f) A entrada no campo A entrada no campo é um dos momentos mais difíceis da investigação etnográfica. O investigador não deve forçar esta entrada, deixando que a investigação decorra gradualmente, respeitando os ritmos de aceitação por parte dos grupos sociais que ele quer estudar. Além desta prevenção, o investigador deve estar consciente de que vai alterar o quotidiano do grupo, retirando daí as devidas implicações para o seu trabalho. Ele deve manter uma posição intermédia em relação às problemáticas que se desenrolam no campo, evitando intervir em conflitos e aceitando as normas que regem o grupo. Ao longo da permanência no campo, o investigador deve fazer por merecer a confiança do grupo social, mantendo a humildade e aceitando a maneira pela qual o grupo vê o mundo. A confiança deve-se conquistar, mas não forçando. A melhor maneira de ganhar essa confiança é dar a conhecer aos informantes a 65 razão da sua estadia ali: a legitimidade do seu trabalho, os encarregados pelo mesmo e as razões da escolha desse grupo social em detrimento de outro. À medida que se vai integrando, o investigador deve procurar os informantes privilegiados, que sejam reconhecidos pelo grupo onde estão e que facultem informações importantes para o desenrolar da investigação. g) A recolha e o registo da informação O investigador deve optar pela observação participante como técnica fundamental de pesquisa no campo. Ele deve considerar-se apenas um indivíduo, que não tem qualquer tipo de privilégios em relação aos demais. Por isso, ele deve não apenas observar, mas também contribuir com o seu esforço para a prossecução das práticas que o grupo desenvolve. O Diário de Campo aparece como o suporte privilegiado de registo das informações. Aqui, o investigador aponta as suas notas, as descrições concretas do que vê e o contexto onde o que vê tem lugar. Complementarmente, o etnógrafo usa a entrevista, as gravações de som e de imagem, além de outras técnicas (como o inquérito e a consulta documental). O melhor momento para se tirarem as notas é quando o fenómeno ocorre (muitas das vezes é impossível que tal aconteça e, quando mais tarde vamos tentar recordar o que vimos para o registar, é bem possível que tenhamos esquecido certos pormenores importantes). Além deste constrangimento à boa observação, o observador deve registar os dados que sabe que aconteceram no sentido em que o grupo social os entende, evitando tirar conclusões precipitadas que derivam apenas da sua condição de observador e desconhecedor do sentido do que acontece. No intuito de se maximizar o registo, o investigador deve anotar: 1 – O espaço físico (lugar onde ocorreram os fenómenos) Onde?; 2 – Os participantes (as pessoas envolvidas nessa ocorrência) Quem?; 3 – O que se faz (razão pela qual se faz o que se faz) O quê?; 4 – O comportamento social (como se faz o que se faz) Como?; 5 – Durante quanto tempo ocorre o fenómeno (duração do que se faz) Durante quanto tempo?; 6 – Frequência do fenómeno (quantas vezes se faz o que se faz) Quantas vezes?; (e) 7 – As impressões que se tiveram (sentido que o investigador dá ao que se faz) O que senti?. 66 h) A análise dos dados A análise percorre todo o desenvolvimento da investigação e deve fazer-se em todos os momentos que o investigador tem livres, pois o passo seguinte da investigação será determinado pelas considerações que se fazem sobre aquilo que se registou. Assim, a análise deve fazer-se de acordo com o seguinte processo: 1. Leitura das notas de campo (este trabalho é facilitado pela frequência com que se lêem essas notas, que deve ser diária); 2. Organização das notas de campo (esta organização deve fazer-se também diariamente e de acordo com a temporalidade e diferenciação espacial do ocorrido no campo); (e) 3. Retirar as informações significativas para o nosso estudo, isolando-as das informações que não são importantes (este trabalho deve ser cuidadoso, pois as restantes notas não se devem destruir, pois podem revelar-se, ao longo do tempo da investigação, muito importantes). i) Manutenção do controlo sobre a investigação Após considerar os elementos que registou no seu diário de campo, o investigador deve decidir sobre a utilização ou não de outros instrumentos auxiliares à observação participante, tais como a realização de entrevista, de inquéritos ou leitura e análise de documentos; ele não pode descurar nenhum tipo de informação que se revele interessante para o desenvolvimento da sua problemática sobre o tema de estudo que escolheu. Embora utilize outros instrumentos de obtenção de informação, o investigador não deve nunca abandonar o seu papel de investigador, mantendo a devida distância em relação ao grupo social que estuda. Ele deve manter a sua atitude de descrição do que vê. 67 4.2.3. O trabalho de campo Como sabemos, a etnografia constitui o processo metodológico global que caracteriza a investigação antropológica. Mas, a etnografia não consiste apenas em realizações de entrevistas, observações, ou análises de conteúdo; ela consiste também em realizar operações quantitativas e qualitativas com o intuito de fornecer interpretações sobre a cultura. Para isso, estabeleceram-se, como primados epistemológicos: 1 – A observação participante, estabelecida por Bronislaw Malinowski como o estudo centrado na estrutura social que enforma as actividades dos indivíduos, que vivem constrangidos pelas sanções incluídas nessa estrutura; 2 – A interpretação hermenêutica, defendida como primado epistemológico por James Clifford e que se centra na acção, nos agentes (indivíduos) que incorporam os ditames da estrutura; (e) 3 – O discurso dialogal (ou dialógico), também apresentado por James Clifford como um ponto fundamental da investigação etnográfica e que significa que o processo de investigação antropológica se constitui em torno de uma “realidade negociada” ou, por mimetismo com o objecto, onde, o que resulta é, na verdade, uma “realidade regateada”. Este aspecto da construção da realidade social tanto pelo investigador como pelo investigado deriva do facto de se considerar que as informações fornecidas pelos informantes são sempre pontos de vista sobre a realidade (Rosen, 1984). A discrepância entre a “realidade verdadeira” e a “realidade adquirida” pela investigação assenta na dicotomia referida por Raul Iturra entre o Fazer e o Dizer. Quando o antropólogo “faz” trabalho de campo, deve ter em conta que a informação resultante desse trabalho, além de derivar daquela discrepância entre o “fazer” e o “dizer”, também resulta de clivagens presentes no interior do próprio investigador, pois que ele é, segundo Maria Cardeira da Silva, um cientista (porque tenta objectivar uma realidade); um homem (porque partilha a sua humanidade com o objecto de estudo social); e um autor (porque recria a realidade social através da escrita). 68 O facto de considerarmos, no procedimento científico, todas estas dimensões, faz com que tenhamos que concordar com o que diz Rabinow (1977: 139), quando informa que “o trabalho de campo é um processo de construção intersubjectiva dos modos liminares de comunicação”. Bourdieu, Chamboredon e Passeron (1973 [1968]) estabelecem as razões devido às quais o trabalho de campo adquire o estatuto de primado epistemológico nas ciências sociais (especialmente na antropologia). Segundo os autores, esse primado deve-se: a) à maneira como a estratégia metodológica de campo lida com os problemas da interferência; b) ao “efeito de redundância” – recolha de informação sobre múltiplas dimensões do social, fornecendo a possibilidade da permanente confrontação recíproca e da respectiva análise integrada; c) procura “efeitos de saturação” – recolha de informação a partir de um número suficientemente vasto de observações, de conversas ou entrevistas informais e de outros procedimentos, com vista a que, a partir de certa altura, a informação empírica comece a não trazer nada de significativamente novo acerca do tema ou problema em estudo; (e) d) permite fazer a associação dos dados obtidos à recolha desses mesmos dados, confrontando os informantes com as informações, estabelecendo-se um plano de negociação do real através do qual é possível, a partir desta inter-subjectividade, relevar elementos objectivos da realidade social. Para que o trabalho de campo tenha êxito, o investigador deve ir para o campo, já de um modo definitivo, conhecendo as implicações da aplicação do método no seu trabalho particular. Assim, ele deve dividir o trabalho de campo em quatro fases essenciais, que 69 representam quatro diferentes actos de pesquisa, a saber: a planificação da pesquisa, a recolha da informação, o registo da informação e a análise da informação. Segundo Firmino da Costa, “(…) desde o momento da planificação, a metodologia da pesquisa – e em particular a preparação dos instrumentos e dos procedimentos da investigação de campo – precisa ser pensada em correlação com uma teoria do objecto, com uma teoria do investigador enquanto sujeito social e com uma teoria das relações entre ambos no decurso do processo de pesquisa.” (1986: 143). Este trabalho reflexivo deve ser feito previamente e toca directamente no conceito do papel do investigador no campo, que será explicado mais à frente. O procedimento metodológico do trabalho de campo não surgiu por acaso. Ele surgiu porque, inicialmente, a antropologia procurou encontrar as razões que fizeram com que as nossas sociedades europeias viessem a ter a configuração que conhecemos. Para tentar explicar esta configuração, os antropólogos (ou, melhor dizendo, os precursores da antropologia), tais como, Seligman, Haddon, Pitt-Rivers, Lafiteau, Tylor e Frazer, faziam especulações, em gabinete, sobre informações indirectamente recolhidos do seio das sociedades ditas primitivas (onde poderiam estar as explicações para a configuração das sociedades europeias). A questão que se punha então era: Como é que nós éramos quando não éramos o que hoje somos? (cf. Iturra, 1986: 150). Como informa Iturra, quando foi estudar os Massim, “(…) Malinowski (1913; 1922), com a mala de hipóteses na mão, descobre uma racionalidade tão diferente da suposta pelos antropólogos de gabinete que não pôde deixar de assinalar que se sabia mesmo pouco acerca dos nativos (…). É então que define o ofício do etnógrafo e a necessidade do trabalho de campo com observação participante.” (idem: 151). O problema que aqui se levantava era o da racionalidade, que divergia de cultura para cultura e que não poderia ser simplesmente deduzida a partir de comunicações pontuais e impessoais. Como ficou comprovado pelos trabalhos de Malinowski, e que Iturra resume, “o nativo é um ente emotivo incapaz de perceber a totalidade da sua sociedade e do seu agir, uma vez que 70 não tem outros elementos a não ser as metáforas para sobre ela se debruçar; e as metáforas e os rituais não são bem o real. A sua palavra não é suficiente. É preciso reconstruir a construção lógica por meio de outros instrumentos que, no seu conjunto, façam o documento. Estes instrumentos são fabricados a partir da participação na vida, tal como ela decorre na passagem do tempo, por parte do investigador, e são finalmente a ponte que traz à lógica do cientista as formas e os conteúdos da lógica e do agir nativo. [Ora], o facto histórico de estudar relações sociais de povos com técnicas diferentes de reprodução do conhecimento criou a necessidade de participar na vida deles, observando continuadamente o terreno. [por isso], a observação participante no trabalho de campo visa, por um lado, construir o documento e, por outro, acumular informação sobre o mesmo povo para contextualizar melhor o seu comportamento e, também, para que se possa adquirir saber através da comparação das formas culturais.” (ibid: 152). A observação participante pressupõe o trabalho de campo e este não existe sem aquela. A grande vantagem do trabalho de campo e da observação participante é mesmo a contribuição que estes procedimentos dão para se discernir a diferença entre o dizer e o fazer e para descobrir as razões dessa diferença. Como continua Iturra, “para compreender a realidade que estuda, [o observador] começa pelo “dizer”, cuja prova de verdade se fará pelo contraste com o “fazer”. (id.: 155) As contradições entre o “dizer” e o “fazer” não são estranhas na realidade social, elas são até os pontos de partida da construção da realidade social pelos agentes envolvidos. Mas, para descobrir estas contradições e, a partir daí, reflectir sobre os critérios de racionalidade de uma sociedade concreta, o investigador não pode apenas suportar a sua investigação naquilo que é dito, ele deve observar e participar essa e nessa sociedade e, só assim, poderá discernir sobre as modalidades de construção da realidade social concreta e, só depois é que pode discorrer sobre a racionalidade na qual se baseia essa construção. Para que esta confrontação seja possível, Malinowski toca precisamente na razão de ser da investigação etnográfica. Para que esta seja possível é necessário delimitar muito bem o problema do estudo; o ideal metodológico, segundo Malinowski, seria que se estudasse “(…) uma pequena sociedade homogénea, quase fechada às influências exteriores, mas onde o antropólogo pudesse, contudo, penetrar, para dela vir a ser, à força de paciência e humildade, o orgulhoso intérprete.” (Sperber,1992: 14). Todavia, na falta de sociedades “homogéneas e 71 quase fechadas às influências exteriores”, deve-se limitar o problema de tal forma a que se procure explorar um tema específico dentro da variedade possível que caracteriza as sociedades actuais. O método do trabalho de campo, originalmente aplicado às sociedades ditas primitivas, foi, mais tarde, adoptado pela sociologia para estudar as sociedades ditas avançadas, especialmente por via da sua aplicação nas sociedades rurais europeias pelos antropólogos. A sociologia renomeou o método como pesquisa de terreno (Costa, 1986; Burgess, 1997). Além destas duas designações, outras podem ser aproximadas do conceito de “Trabalho de Campo”, tais como “estudo de caso”, “estudo de comunidade”, “análise intensiva”, “método qualitativo”, “etnografia” e “observação participante”. Independentemente dessa multiplicidade de designações, o “trabalho de campo” caracterizase pela “presença prolongada do investigador nos contextos sociais em estudo e contacto directo com as pessoas e as situações” (Costa, 1997: 129). Sinteticamente, o trabalho de campo é todo o conjunto de procedimentos técnicos de recolha de informação empírica.” (idem). Historicamente, a pesquisa de terreno teve as suas raízes nos preceitos elaborados por Robert Park, representante da Escola sociológica de Chicago e começou por ser definida como um método que combina técnicas em que a observação directa, a entrevista não estruturada e a utilização de documentos pessoais tiveram um lugar preponderante. A Escola de Chicago bebeu do primado epistemológico do trabalho de campo estabelecido pela antropologia, especialmente derivado dos preceitos metodológicos emitidos por Boas e Malinowski, e encetou a aplicação deste método (ou composto metodológico) em meios rurais e urbanos nas sociedades ditas avançadas (“estudos de comunidade”). No método de trabalho de campo, o investigador é o instrumento principal da pesquisa; ele estrutura a pesquisa e serve mesmo como elemento agregador e preponderante no que diz respeito à aplicação do método e à sua boa prossecução. A investigação centra-se na sua capacidade para observar a realidade, por isso ele tem um papel que concentra todos as 72 contingências epistemológicas que estão presentes na investigação. Ele deve fazer a observação dos locais, objectos e símbolos, pessoas, actividades, comportamentos, interacções verbais, maneiras de fazer, de estar e de dizer, observa as situações, os ritmos, os acontecimentos e participa no quotidiano. O investigador procura, frequentemente, “informantes privilegiados”; procura cartas, registos de actividades e outros documentos pessoais. Faz isto de forma continuada, demorada, por vezes ao longo de vários anos. (Costa, idem: 132). O suporte de registo dos dados e observações é, por excelência, o Diário de Campo. Neste “inventário da sociedade”, o investigador regista, de forma sistemática, observações e informações; reflexões teóricas e metodológicas; e impressões e estados de espírito. Além de operar com as técnicas que derivam da observação participante, “não é incomum que às técnicas nucleares de pesquisa de terreno se associem, complementarmente, outras técnicas, como questionários, entrevistas estruturadas, análises de estatísticas de doutros documentos.” (idem). Ao exercer a sua pesquisa, o investigador vai interferindo na realidade. A esta contingência chama-se transferência. A transferência pode verificar-se a vários níveis: o investigador introduz no terreno uma série de novas relações sociais. Como refere Firmino da Costa, “à medida que se vai prolongando, o trabalho de campo vai não só reorganizando as relações entre observador e observados como reorganizando também, em certa medida, o próprio tecido social em análise. Na interacção social não se pode não comunicar (…) e, num quadro social qualquer, não se pode igualmente deixar de estabelecer relações sociais. A interferência não é (…) simplesmente, um obstáculo ao conhecimento sociológico mas também um veículo desse conhecimento. Não o ignorar é uma condição de objectividade.” (1986: 135) Na verdade, “ao inserir-se num determinado contexto social e ao nele prolongar a sua presença, [o investigador] constrói ali uma identidade e ali estabelece um conjunto de papéis sociais. É um processo central do trabalho de campo. As possibilidades de construir uma identidade social perante membros dum determinado quadro social, e as características dessa identidade, viabilizam ou inviabilizam a pesquisa, condicionam-na em diversos aspectos. Os papéis sociais que o pesquisador vai estabelecendo delimitam-lhe os terrenos permitidos e os 73 interditos, condicionam-lhe em boa medida a amplitude, as direcções e os contornos da investigação.” (ibid.: 144-5) Conforme faz supor a expressão “olhar distanciado” introduzido por Lévi-Strauss, o investigador de campo oscila entre a familiarização e o distanciamento. Como refere Roberto da Mata, o trabalho de campo tem uma dupla tarefa: questionar o exótico transformando-o em familiar e questionar o familiar tornando-o exótico. Embora, amiúde, se confunda a observação participante com o trabalho de campo, este é um corpus metodológico que assenta no facto de o etnógrafo se situar numa posição relativa em referência ao objecto de estudo que não influencie o comportamento deste. A posição que o etnógrafo ocupa quando realiza o trabalho de campo varia de acordo com o objecto que ele estuda: este pode exigir uma maior ou menor proximidade por parte daquele. Esta posição relativa é simbolizada por aquilo a que Claude Lévi-Strauss definia como “olhar distanciado”. Do mesmo modo, é necessário que o investigador evite ser etnocêntrico e que faça juízos de valor (ou opine). Para Gaston Bachelard, a visão científica coloca-se precisamente no pólo oposto da opinião. O trabalho de campo é interactivo, flexível, com idas e voltas desde o projecto até à colheita dos dados. Como alerta Raul Iturra, “Faz-se normalmente referência ao trabalho de campo e à observação participante como se fossem o mesmo assunto. A diferença é simples: a observação participante é o envolvimento directo que o investigador de campo tem com um grupo social que estuda dentro dos parâmetros das próprias normas do grupo; o trabalho de campo é um processo que envolve mais aspectos da conduta social, dentro dos quais o comportamento manifesto é observado. O trabalho de campo procura, no conjunto da informação sobre o presente e o passado, contextualizar as relações sociais que observa; a observação participante é pontual, o trabalho de campo é envolvente.” (1986: 149). O trabalho de campo é o processo de procurar o conhecimento através de vários outros procedimentos, entre os quais está a observação participante. 74 A observação participante é o envolvimento que despe o investigador do seu conhecimento cultural próprio, enquanto veste o do grupo investigado; é o exercício que tenta ultrapassar o etnocentrismo cultural espontâneo com que cada ser humano define o seu estar-na-vida. A observação participante tem sido vista como a forma original que a antropologia tem ao seu dispor para obter informações, mas, esta não é a única técnica utilizada para isso. Com efeito, o etnógrafo utiliza outras técnicas qualitativas complementares a essa para recolher os dados, tais como a entrevista, o inquérito, os grupos de discussão. A diversidade metodológica utilizada no trabalho de campo justifica-se no contexto do percurso global da investigação etnográfica. 4.2.3.1.Os papéis desempenhados no terreno No seu livro “Levantamento Cultural: exemplo e sugestões”, Júlio de Sousa Martins alerta para o facto de que “quando se chega ao momento de entrar em acção, deverá começar-se por estabelecer contacto com uma entidade local, pública ou particular, com a qual trocaremos impressões sobre a finalidade do nosso trabalho, recolhendo sugestões e opiniões que poderão vir a revelar-se bastante úteis, procurando desde logo recolher nomes e endereços de pessoas a contactar sobre o tema que nos interessa e que, por sua vez, nos deverão conduzir a outras. É, também, importante, conseguir-se a colaboração benévola de alguém que, fazendo parte da comunidade a contactar e gozando nela de boa reputação, auxilie a estabelecer aquele mínimo de relacionamento que é não só desejável como indispensável, para “quebra do gelo” inicial e proporcionar uma comunicação fácil e fluente. De facto, o nosso trabalho de campo depende, essencialmente, de dois factores: a preparação prévia e a nossa capacidade de estabelecer diálogo.” (1987: 13). Mas, como devemos estabelecer esse diálogo? Sousa Martins responde: “para o estabelecimento do diálogo há que atender a determinados pormenores, que à primeira impressão alguns poderiam considerar despropositados, mas que o não são realmente. E isto tem a ver, por exemplo, com a maneira como trajarmos e com o vocabulário que usarmos – pois tanto num caso como no outro esses aspectos poderão constituir uma barreira que se 75 torna difícil de transpor no momento oportuno. Tanto o modo de vestir como de falar deverão, na verdade, proporcionar aproximação e não afastamento. Isto é: sem exagerarmos, tanto num pormenor como no outro devemos passar naturalmente despercebidos, integrando-nos com facilidade na “paisagem sócio-económico-cultural” que investigarmos”. (id.) Estes apontamentos são muito importantes. Eles reflectem sobre a noção de integração no campo, que se faz desde o início, desde que contactamos com ele a fim de obter autorização para realizar a observação. A este tipo de procedimentos acrescentam-se outros que se definem por papéis do investigador no interior da unidade de estudo. Para que estes papéis sirvam o fundamental da investigação, que é fazer um levantamento de um caso concreto que constitua a realidade social, é necessário partirmos de uma observação directa do fenómeno (o principal método de obtenção de dados etnográficos). Todavia, casos há em que esse tipo de observação não é possível, devido a razões de vária ordem e que o investigador não consegue evitar. A maneira pela qual ele tenta contornar os obstáculos que encontra no terreno é a sua posição no seio deste. Os papéis que ele desempenhar determinam o êxito da sua investigação, pelo que ele deve respeitar o caminho que o próprio campo lhe impuser. Consoante forem essas imposições, o investigador deve adoptar uma posição que possa, de algum modo, manter a investigação. Robert Burgess (in “A Pesquisa de Terreno”: 87) faz alusão a algumas tipologias dos papéis desempenhados pelo investigador no campo. Aqui, apresentarei as tipologias propostas por Gold (1958), por Janes (1961) e por Olesen e Whittaker (1967). 4.2.3.1.1. Tipologia dos papéis ideal-típicos desempenhados no terreno (Gold) a) O participante; b) O observador-participante; c) O participante-observador; d) O observador. 76 a) O participante Esconde a dimensão de observador no papel que desempenha, daí resultando o envolvimento numa observação oculta (espião/infiltração). Schwartz e Schwartz (1955) tinham denominado este papel como o de participante passivo. Problemas: 1 – Os investigadores podem alterar o comportamento do grupo em que entraram; 2 – Os investigadores podem ficar limitados pelo papel que assumem; 3 – Os investigadores podem desempenhar o seu papel tão eficientemente (tornando-se nativos), que deixam de colher informações ou registar as informações que fazem. Soluções: Para superar estes problemas, recomenda-se a realização de intervalos frequentes no trabalho de campo para poderem registar, reflectir sobre e analisar os dados que obtiveram. b) O observador-participante Participa e observa simultaneamente, desenvolvendo relações com os informantes. Segundo Roy, citado por Burgess, “A principal distinção entre os dois subtipos parece residir na questão da ocultação do papel de investigador. O observador-participante não só não faz segredo da sua investigação, como divulga mesmo que a investigação é o seu centro de interesse mais destacado. Ele está ali para observar.” Isto é, “(…) o observador-participante não está limitado, ele é livre de andar por onde quiser ao sabor dos interesses das pesquisas; ele pode mover-se com toda a liberdade.” (Roy, 1970: 217). Problemas: 1 – Problema na articulação da recolha de dados numa área de conflito social (os investigadores podem encontrar-se numa das facções do conflito e são, por isso, vistos como “inimigos” pela facção contrária); 77 2 – Existe sempre o problema do enviesamento da informação por força da maior ou menor adopção de certas regras ou de certos campos nos quais se divide o campo geral do estudo; 3 – Dificuldade em se saber em que medida um investigador efectivamente participa. Vantagem: A observação-participante permite que “o investigador penetre nas situações sociais de modo a estabelecer relações com informantes de forma a que alguma compreensão do mundo deles possa ser conseguida.” (Burgess, op. cit.: 89). c) O participante-observador Papel desempenhado em situações em que o contacto com informantes é breve, formal e abertamente classificado como observação. “Nesta situação, o papel do observador é tornado público e há menos possibilidade de que o investigador se torne nativo.” (id., ibid.) Problemas: 1 – Este papel é menos satisfatório porque a brevidade das relações resulta em problemas de enviesamento que decorrem justamente da brevidade dos contactos estabelecidos. 2 – Encontros tão breves significam que o investigador terá dificuldades de acesso ao significado que os participantes atribuem às situações sociais. d) O observador É identificado com situações de reconhecimento “caídas do céu”, nas quais o observador não mantém qualquer interacção com o informante. Problemas: 1 – O evitamento de tornar-se nativo traz o problema do etnocentrismo, pois o investigador pode rejeitar as perspectivas do informante sem mesmo ter chegado a conhecê-las. 78 4.2.3.1.2. Tipologia dos papéis desempenhados no trabalho de campo (Janes) De acordo com Janes, os papéis desempenhados pelo investigador no campo desenvolvem-se processualmente e segundo um conjunto de cinco fases. Assim, o investigador é, sucessivamente (Burgess, id.: 92): 1 – Recém-chegado; 2 – Aceite provisoriamente; 3 – Aceite definitivamente; 4 – Aceite pessoalmente; e 5 – Migrante eminente. Como podemos deduzir, os papéis do investigador no campo são determinados pelo próprio campo. Aqui, o investigador desempenha os papéis conforme decorrer a atitude que o campo tem perante ele. Ao longo deste processo, as funções (leia-se, papéis) desempenhadas pelo investigador vão sendo lentamente conquistadas. Enquanto recém-chegado, ele tem que introduzir-se na realidade social, percorrendo, grosso modo, o caminho que Júlio de Sousa Martins apresentou no seu “Levantamento Cultural”. Na fase de aceitação provisória, o investigador deve tentar estabelecer uma relação de confiança, participando das preocupações que invadem o campo e fazendo como vê fazer. Só depois desta cooperação inicial é que ele é aceite definitivamente e vai ser identificado no campo, fase em que ele desenvolve a maior parte das suas acções de pesquisa, pois que já “se sente à vontade”. Durante esta fase, o investigador vai podendo discernir quais são os informantes privilegiados e estes já não terão receio em informá-lo sem retraimentos. Nesta fase de aceitação social, podem acontecer situações de colaboração que excedem mesmo as que se pretendem com a investigação, tais como o surgimento de convites para participar em comemorações, em jantares, bem como propostas de ajuda caso surjam problemas sobretudo de ordem logística. Finalmente, o investigador, estando já na fase final do trabalho de campo, prepara-se para abandonar o mesmo, tornando-se, aos olhos do grupo social que estudou como uma parte do mesmo, sendo então considerado como uma espécie de “filho que abandona a casa”. Além desta perspectiva do campo, o investigador, pelos seus próprios olhos, poderá sentir que criou laços de amizade que perdurarão, podendo mesmo sentir-se angustiado com a iminência de deixar o campo. 79 4.2.3.1.3. Tipologia da construção dos papéis do investigador (Olesen e Whittaker) De acordo com Olesen e Whittaker, no decurso de um projecto de investigação social, os papéis são estabelecidos na base de trocas que têm um lugar entre o investigador e o investigado. O resultado é um processo de construção de papéis que passa por quatro fases: 1 – Encontros superficiais; 2 – Oferecimento e convite; 3 – Selecção e modificação; 4 – Estabilização e sustentação. Na primeira fase, o investigador está num plano mais teórico do que prático na sua investigação, pelo que pode acontecer que os papéis desempenhados no campo sejam articulados com outros que ele desempenha, quer eles sejam desempenhados no âmbito da sua formação académica, quer sejam mesmo desempenhados no âmbito da sua vida pessoal. Ao longo da investigação, o investigador vai, lenta e gradualmente, definindo a sua posição no campo, pois só agora pode sentir que está verdadeiramente contextualizado e que pode definir em concreto quem ele é no meio do campo. Na terceira fase, o investigador faz então a selecção dos casos mais significativos que encontra na realidade social e que serão aqueles a que ele dará mais atenção, seleccionando também os papéis que mais se adequam à aquisição das informações no campo. Ele vai distinguir entre papéis de investigação viáveis e papéis reais, reflectindo sobre a eficiência da sua posição no campo. Finalmente, o investigador, após ter discernido efectivamente a sua posição no campo, vai poder fazer um balanço entre os papéis de investigação e os papéis reais vividos. Nesta fase ele determinou, com certeza, as fronteiras entre o ser e o dever ser. Ele começa a comportar-se ou como simples participante, ou como observador-participante. O investigador vai estar sujeito a vivências de ordem social que não são rígidas nem formais e que não exigem, por si só, uma posição de analista, por isso, ele deve saber quando as informações são tidas como necessárias para a investigação ou quando elas são apenas relações sociais normais sem implicações no todo da investigação. 80 De acordo com Robert Burgess existe uma complementaridade de papéis exercidos pelo investigador aquando do trabalho de campo, pelo que as tipologias apresentadas têm apenas a função de aludir para situações específicas perante as quais o investigador vai estar presente. Assim sendo, e de acordo com as suas próprias palavras, o “(…) investigador de terreno pode (…) achar que estes diferentes papéis são usados em diferentes fases da pesquisa ao longo de um dado período de tempo, ou que, para o que interessa, esses papéis podem ser usados em diferentes momentos no decurso da pesquisa.” (op. cit.: 91). Por outras palavras, o investigador pode considerar que o trabalho de campo se faz em fases perfeitamente definíveis ou que, por outro lado, essas fases não são mais do que momentos do mesmo período de tempo, pois que a investigação não se encontra partilhada, mas sim unificada. 4.2.3.2.Factores sociais que influenciam a escolha dos papéis desempenhados na investigação Os papéis desempenhados pelo investigador no trabalho de campo dependem de múltiplos factores que podem mesmo definir o caminho geral desse trabalho e o resultado final da investigação. Como refere Burgess, “Os papéis desempenhados no âmbito de uma investigação são constantemente negociados e renegociados com os diversos informantes ao longo de um projecto de investigação (op. cit.: 92). Isto significa que o caminho da investigação depende mesmo da capacidade de negociação do investigador. Ele deve ter sempre em referência o problema do seu estudo e deve encaminhar a sua participação no campo no sentido de encontrar caminhos para o estudo desse mesmo problema. A capacidade de negociação dos papéis depende de alguns factores sociais que formaram o investigador e dos quais ele não pode fugir. “A experiência, a idade, o sexo e a etnia influenciam o papel do investigador, as relações pré-estabelecidas e o próprio processo de pesquisa. [Ou seja,] a diversidade de papéis que os investigadores podem assumir e as relações que estão estabelecidas estão estreitamente ligadas às características pessoais.” (id.). Estas características pessoais referem-se sobretudo ao investigador, mas também não podemos omitir as que se referem ao investigado. Todavia, para nós interessam sobretudo aquelas que derivam do investigador pois que, em última instância, é ele que determina o 81 caminho que a investigação irá percorrer, podendo sempre reorientar a sua acção no campo de acordo com os obstáculos que este lhe pode pôr. Vejamos então, em que medida os factores sociais que formaram o investigador podem influenciar a sua prestação. a) A Experiência Conforme dizia Dawe (1973), referenciado por Burgess, qualquer afirmação com significado subjectivo incorpora elementos da experiência do investigador, bem como da experiência daqueles que são estudados. Sendo assim, a experiência do investigador é decisiva na produção da informação. A natureza social do investigador faz com que, no final, não apenas o trabalho redigido pelo investigador, mas também (e sobretudo) o seu próprio Diário de Campo sejam espelhos da sua formação pessoal (e, em segundo plano, dos investigados). b) A Idade No âmbito das ciências sociais, a idade é muito importante enquanto condicionante da investigação. Primeiramente, a acumulação de conhecimentos (tanto teóricos como práticos) aumenta com a idade, e, secundariamente, existem campos de estudo que podem ser autênticas provas de esforço para investigadores mais idosos. Além disso, no caso concreto do estudo de populações idosas, é muito importante que se possam reconhecer os problemas pelos quais essas populações passam, o que, obviamente, só está ao alcance dos investigadores com mais idade. No caso de estudos realizados em hospitais, junto de doentes idosos, ou no caso de estudos que incidam em doenças mais sentidas pelos idosos (Alzheimer, Parkinson, etc.) os investigadores jovens terão maiores dificuldades em compreender a razão de determinadas situações ou comportamentos. c) O Sexo Existem casos concretos em que o sexo do investigador determina o êxito da investigação. Além de existirem problemáticas que são mais do âmbito feminino ou do masculino, também 82 há sociedades em que estes dois mundos são de tal forma compartimentados que é impossível ao investigador de outro sexo entrar no campo e aí desenvolver a sua investigação. Além disso, no caso de problemáticas mais específicas de determinado sexo, existe sempre o problema da falta de compreensão sobre um assunto impossível de ser vivido por outro sexo e até o problema do preconceito, que pode fazer com que a investigação simplesmente se torne impossível. Como defendia Wax (1979), em qualquer cultura existem problemas sobre os quais os sexos fazem segredo quando deparados com investigadores que não partilhem da mesma condição. Assim, qualquer estudo global (leia-se, holístico) sobre dada sociedade deve ser feito por equipas de investigação compostas por elementos de ambos os sexos. Do mesmo modo, como referem Frankenberg (1976) e Morgan (1981), a escolha dos temas de estudo varia de acordo com o sexo do investigador. Assim, por exemplo, em antropologia, as antropólogas incidem o seu estudo predominantemente em questões relacionadas com o género e com a posição da mulher na sociedade, ou ainda com estudos sobre a menstruação, o parto, a vida familiar, o poder político e as mulheres, as prisões femininas, etc; enquanto isso, os antropólogos estudam mais as questões do carisma político, da vida pública, das técnicas, da hominização, etc. A estas tendências, estes autores chamaram “etnografia machista”. d) A Etnia Finalmente, existe um outro constrangimento à investigação ao qual não se pode fugir: a etnia a que o investigador pertence. Nalguns casos, as pesquisas etnográficas reflectem preocupações históricas e étnicas, como quando o investigador pretende, através da sua investigação compreender determinada questão sobre a sua cultura e que não pôde, por outra forma, atingir uma resposta. No caso dos países mais pobres, os investigadores pretenderão estudar as causas do sub-desenvolvimento, ou as origens étnicas do seu povo, ou a escravatura, etc. Ao nível da investigação antropológica, que é universal por definição, tem-se a tendência a estudar problemas humanos globais tendo-se como referência a própria cultura do investigador. Da mesma forma, o investigador procurará sempre compreender-se a si próprio através das investigações levadas a cabo noutros campos que não o seu. Aqui revela-se uma 83 espécie de etnocentrismo e uma procura das origens da sua própria cultura (estudando-se os mitos de origem, o folclore, as tradições orais, etc.) Seja como for, o investigador, quando parte para uma investigação, deve ter em conta estas vicissitudes que a investigação reflecte. Em última instância, ele procura sempre respostas para as perguntas que ele traz dentro de si há muito tempo. Embora estas considerações sejam verdadeiras, não podemos entender estes constrangimentos como uma espécie de subjectividade, que viciará todo o processo de investigação. Pelo contrário, tê-las presentes no início de qualquer projecto de investigação alerta para o seu perigo e mantém o investigador num plano mais ou menos distante em relação às suas implicações de ordem epistemológica. O objectivo essencial da formação ao nível epistemológico e metodológico é situar o investigador num plano de cientificidade em que possa considerar os perigos que a investigação implica, mas que também a tornam científica ao remeter para esses mesmos perigos. Em suma, embora existam todas estas chamadas de atenção, a ciência só pode ser feita por homens e mulheres que vivem na sua condição humana… 4.2.4. A selecção das técnicas A observação deve ser construída pelo investigador. Enquanto instrumento principal da investigação, ele deve fazer um trabalho racional de escolha dos métodos de observação mais eficazes em cada caso particular. Assim, o investigador deve elaborar os instrumentos de observação que maiores informações lhe podem dar sobre o problema que quer estudar, e que lhe permitam testar convenientemente as hipóteses. Na selecção dos instrumentos de recolha de dados interferem três acções fundamentais: 1 – a concepção do instrumento de observação (entrevista, inquérito, etc.); 2 – o teste do instrumento de observação (aplicar a técnica na amostra definida); 3 – a colheita dos dados (executar o instrumento de observação). 84 No intuito de se adquirir um bom conjunto de informações, é necessário que o investigador tenha um papel flexível no seio da unidade de estudo. Consoante for este papel, assim variarão as técnicas de obtenção de dados adoptadas, que, por sua vez, se apresentam, principalmente, em três formas principais: a) A entrevista; b) O inquérito; e c) A análise de conteúdo do espaço, das relações e da linguagem. A aplicação de cada uma destas técnicas varia, então, com o tipo de papel que o investigador tem na unidade de estudo e elas são aplicadas de modo diferencial conforme o tipo de dados que o investigador pretenda recolher. A primeira pretende obter informações específicas sobre determinado assunto que poucas pessoas podem fornecer; a segunda utiliza-se mais para obter frequências de acontecimentos e sua distribuição e a terceira aplica-se quando se tenta descobrir sentidos ocultos no espaço (ecologia social), nas relações (proxemia) e na linguagem (tais como repetições de mensagens e/ou palavras, gestos, atitudes, etc.). Na pesquisa etnográfica, o diário de campo assume a função de matriz da observação, a qual integra informações de vária ordem que estruturam toda a investigação, como as notas metodológicas ou teóricas. A centralidade deste instrumento confere-lhe ainda o estatuto de técnica de registo de dados, porque também serve de suporte ao registo de notas substantivas. Nos parágrafos seguintes veremos como estes aspectos são fundamentais na fase de implementação do projecto. No método do trabalho de campo usam-se várias técnicas, mas a observação é a mais importante. É precisamente esta técnica que caracteriza o trabalho de campo como “(…) a arte de obter respostas sem fazer perguntas.” (Costa, 1986: 138). Como vimos, a observação está relacionada com o tipo de participação do investigador no meio social que estuda. 85 Podemos dividir a observação em dois tipos maiores: a observação directa e a observação indirecta. A primeira é feita directamente pelo investigador, sem recorrer a qualquer tipo de filtro da realidade, utilizando apenas a sua capacidade perceptiva; a segunda é realizada a partir de observações feitas pelos agentes sociais que compõem o grupo social em estudo, pelo que o investigador está já a obter um interpretação da realidade feita pelo informante. Neste ponto do estudo importa-nos de sobremaneira a observação directa, pois que é através dela que o investigador adquire a maior parte das informações (devido, essencialmente, ao facto de ser ele o orientador da investigação ou, como se disse, o instrumento principal do método do trabalho de campo). A observação directa é o “(…) conjunto de técnicas de observação visual e auditiva, não envolvendo interacções verbais específicas com o observador, e supondo frequentemente o anonimato deste (…)” (Costa, id.: 136). Um dos tipos de observação directa é a observação participante, técnica fundamental de pesquisa e que, muitas das vezes, é confundida com o próprio método do trabalho de campo em si. Como indica Firmino da Costa, a observação participante é “o método do estudo de caso pelo trabalho de campo, nesse sentido, é particularmente adequado à investigação, não duma faceta isolada, mas dum tecido espesso de dimensões articuladas do social. A unidade social em observação não pode ser demasiado extensa e o período de observação não pode ser demasiado curto uma vez que o que se pretende é uma recolha intensiva de informação acerca dum vasto leque de práticas e de representações sociais, com o objectivo tanto de as descrever como de alcançar a caracterização local das estruturas e dos processos sociais que organizam e dinamizam esse quadro social.” (id.: 137) E continua, “(…) a estadia prolongada no terreno possibilita que, a uma observação, digamos, em primeiro grau, das acções e das verbalizações das pessoas se adicione uma observação, digamos, em segundo grau, do próprio processo de relacionamento, ao longo do tempo, dessas pessoas com o investigador.” (ibid.: 139). Em suma, “(…) a observação participante dá os melhores resultados na obtenção de informações sobre comportamentos, discursos e acontecimentos observáveis mas que passam desapercebidos à consciência explícita dos actores sociais. Mas pode ser em parte substituída, 86 com as devidas precauções, por entrevistas a informantes privilegiados, em casos em que o investigador não está presente ou não tem acesso a certos locais, actividades ou acontecimentos. Já onde a entrevista é mais eficiente é na obtenção de normas e status institucionalizados, de conhecimento geral e facilmente verbalizáveis. A observação directa participante pode também obter estas informações, mas de maneira fragmentada e morosa. Por outro lado, a entrevista a um informante privilegiado com um grande conhecimento dum assunto específico pode substituir um censo por questionário ou por contagem directa.” (id.: 141) Como vemos, o trabalho de campo caracteriza-se por uma oscilação entre várias técnicas de obtenção de informações. Cada uma delas tem as suas vantagens, o investigador é que deve decidir quando deve optar por uma ou por outra, consoante os problemas que vai encontrando ao longo do seu estudo. Morris Zelditch (citado por Firmino da Costa, op. cit.: 140) divide as técnicas a utilizar no trabalho de campo de acordo com as vantagens que cada uma delas tem para a obtenção dessas informações específicas. De acordo com ele, a cada tipo de informação corresponde seu tipo especial de técnica de pesquisa. Em sentido resumido, ele acha que: a) a observação directa participante e continuada, a conversa e as entrevistas informais são particularmente úteis para captar acontecimentos, práticas e narrativas; b) a entrevista formal é dirigida especialmente para a recolha de normas e classificações de estatutos sociais; c) os questionários, contagens e amostragens são aconselháveis para a obtenção de informações sobre distribuições e frequências de indicadores ou fenómenos manifestos. 87 4.2.4.1.O registo dos dados fornecidos pela observação O Diário de Campo é um instrumento fundamental para se obterem dados etnográficos e para estudar os problemas sociais em geral. Podemos anotar três tipos principais de dados no Diário de Campo: os dados substantivos (retirados directamente da realidade), os dados metodológicos (que consistem em reflexões sobre o melhor caminho a percorrer consoante os problemas que surjam no campo) e os dados de análise (que reflectem sobre a questão de partida e remetem para a construção de novas hipóteses, que podem ser consideradas no estudo). As técnicas a usar para o registo dos dados são construídas pelo investigador e não há nenhuma forma que determine, com obrigação, a melhor forma de o fazer. A excepção a esta falta de obrigação reflecte-se na necessidade, inerente ao trabalho de campo antropológico, de usarmos o Diário de Campo como suporte fundamental de registo de dados. A variedade com que podemos ver a realidade resulta, portanto, numa variedade de formatos de registo que devem constituir o Diário de Campo. Estes formatos são então adequados à realidade e são constituídos, em termos formais, por indicadores e conceitos que começam a ter que ser considerados a partir do momento em que nos inteiramos da realidade que estamos a estudar. Neste ponto iremos ver quais são as implicações de quatro tipos de técnicas usadas no Diário de Campo para se registar a realidade social. Veremos primeiro o modelo mais simples de Diários de Campo, passando, em seguida para o modelo aplicado por Humphreys, pelo aplicado por Burgess e, finalmente, estudaremos a folha de observação aplicada por Stacey no estudo do caso específico da interacção enfermeiro-doente (que poderá constituir uma pista preciosa para os estudantes da área de saúde poderem registar a realidade especial deste tipo de interacções). 88 4.2.4.1.1. O modelo geral de registo em Diário de Campo Este modelo apresenta os pontos essenciais de registo que se devem ter em conta quando fazemos trabalho de campo. A sua maior vantagem é ser generalista e poder ser aplicado em qualquer situação de investigação no terreno, por isso mesmo ele é reconhecido pelos cientistas sociais quando aplicado, não podendo ser recusado, pois que toca nos pontos principais a ter em conta nessa mesma investigação. LOCAL: PARTICIPANTES PRINCIPAIS: DIA: HORA INÍCIO: HORA TÉRMINO: NÚMERO DE PARTICIPANTES: OBJECTIVOS DA ACTIVIDADE: RESULTADOS ESPERADOS: RESULTADOS OBTIDOS: 1. Principais facilitadores da actividade 2. Principais obstáculos da actividade Acordos / conclusões que observa: OBSERVAÇÕES: 89 O seu carácter generalista, além de permitir a sua aplicação em qualquer terreno e para qualquer estudo, independentemente do seu objecto, torna-o bastante flexível, pois pode ser adaptado pelo investigador, caso exista alguma contingência que não foi prevista antecipadamente. Uma outra vantagem de ser generalista é que este modelo não pode ser apelidado de reducionista, já que permite incluir todas as situações sociais possíveis. 4.2.4.1.2. A Folha de Observação sistemática (o exemplo do estudo de Humphreys) O modelo geral é fundamental para se obterem informações de carácter geral, mas peca por falta de especialização em determinados contextos e/ou situações em que é necessária uma visão sistemática mais aprofundada. Quando acontece que o investigador se depara com uma situação no campo que é fundamental para a sua investigação e que não exige um enquadramento geral num problema mais amplo, ele normalmente constrói a sua própria técnica de obtenção de dados. Este aspecto é muito recorrente em antropologia, pois que, mesmo que os problemas a estudar sejam universais, há sempre a necessidade de tornar a observação mais especializada, devido a várias razões, entre as quais encontra-se a necessidade de se adaptar o Diário de Campo a uma perspectiva especial (que pode derivar da forma como o investigador vê o problema, das limitações metodológicas que esse problema exige e mesmo da necessidade de se sistematizar um problema cujo sentido seja mais difícil de encontrar). Este tipo de técnica tem muitas vantagens. Além da que se já referiu (a especialização), permite fazer uma observação sistemática (de aplicação continuada) sobre determinado aspecto especial da realidade, podendo, por isso, contribuir para um maior aprofundamento sobre dada situação e/ou comportamento. Uma outra vantagem, muito importante, é que possibilita que os dados qualitativos que se apresentam ao investigador na forma de corpos, acções, comportamentos organizados e outras performances sociais em geral, possam ser esmiuçados ao ponto de ser mais fácil atingir o “efeito de saturação”. Este aspecto torna-se mais fácil de traduzir para linguagem científica quando se usam, logo desde a observação, formas de codificação dos dados (símbolos) que facilitarão, partindo já do terreno, a análise posterior e a visualização de padrões de comportamentos e de identificação de acontecimentos, atalhando, deste modo o trabalho de investigação, pois que permitem que se 90 percorra o caminho da observação para a análise dos dados, percurso inverso ao que é feito pelo modelo de análise, que parte do problema para a observação. Humphreys estudou a dinâmica social das relações homossexuais, e recorreu à codificação também como meio de defender o anonimato dos actores intervenientes através do registo encriptado daquilo que via. Quando o investigador constrói uma técnica deste tipo já está a fazer, de algum modo, uma análise prévia dos dados, traduzindo os indicadores empíricos em termos com valor científico. Esta técnica é utilizada quando se querem encontrar padrões de comportamento e é própria de trabalhos do tipo estruturalista, que procuram atingir o sentido daquilo que se vê. Através da tradução dos indicadores sociais em valores simbólicos, pode-se estabelecer proposições do 91 tipo matemático, reduzindo-se a informação a espécies de fórmulas, tal como são utilizadas em antropologia, principalmente nos estudos feitos em linguística e no parentesco. Um exemplo de fórmulas adquiridas através desta técnica pode ser visto na tipologia dos sistemas de parentesco de Murdock (1949). Nesta tipologia estão apresentados os cinco principais sistemas de parentesco de todas as sociedades humanas. Como podemos constatar, o nível de sintetização é extremo, pois tamanha variedade de sistemas familiares foram reduzidos a cinco tipos fundamentais: 1. Sistema terminológico de parentesco Esquimó: 2. Sistema terminológico de parentesco Iroquês: 3. Sistema terminológico Omaha: G  [ // = X ] [ G = // ]  X Xm [ G = // ] ≠ Xp 4. Sistema terminológico de parentesco Crow: Xp [ G = // ] = Xm 5. Sistema terminológico de parentesco Sudanês: G ≠ // ≠ Xp ≠ Xm Este tipo de síntese só é possível de atingir após muitos anos de observação, nas mais variadas culturas humanas e recorrendo-se a uma técnica de codificação que tente representar ao máximo o sentido das manifestações humanas. Estas estruturas de parentesco encerram em si o sentido de todas as relações familiares que dada cultura apresenta (e que derivam de três relações maiores: a aliança, a filiação e a germanidade). De forma esquemática, todos os 92 arranjos possíveis destas três relações de parentesco fundamentais adquirem esta forma extremamente densa de sentido e visualmente leve: Homem Mulher Aliança Germanidade Filiação 4.2.4.1.3. As representações gráficas (Burgess) Quando estudou o mundo escolar nos E.U.A., Burgess utilizou, entre outras técnicas de registo de dados que constituíram o seu Diário de Campo, a técnica da representação gráfica. Através desta técnica ele pôde estudar os hábitos das pessoas e descobriu que os professores, quando estavam na sua sala durante o intervalo das aulas, mantinham os seus lugares cativos. Além disso, ele pôde constatar que a sua localização no interior da sala respeitava um padrão que traduzia a posição relativa de poder entre os docentes. Um desenho da sala mostrou, por exemplo, que a classe directora da escola se situava ao pé dos quadros de informações para o pessoal, o que denotava uma certa lógica de emanação das directrizes a partir do lugar onde eles estavam, ao mesmo tempo que representava a sua aproximação às funções administrativas e de gestão. Em contrapartida, a secção mais lúdica (mesas de café) eram ocupadas pelos professores que tinham menos tempo na escola e que tinham menos experiência nas questões de organização da instituição, chegando estes mesmo a distribuir-se por áreas de formação e por sexos. A grande vantagem desta técnica radica-se na facilidade com que ela encontra um padrão de organização do pessoal dentro de um espaço fechado, o que remete, por dedução, para a questão das posições sociais a nível interno, tal como Pierre Bourdieu oportunamente defendeu. 93 (Fonte: Burgess, 1997: 185) 4.2.4.1.4. O modelo utilizado por Stacey Quando Stacey realizou trabalho de campo num hospital e estudou a relação enfermeirodoente, construiu uma folha de observação que reflectia os indicadores que queria fazer ressaltar. Como podemos ver abaixo, Stacey organizou o Diário de Campo recorrendo a uma Folha de Observação sistemática (à imagem da técnica aplicada por Humphreys), mas não teve a preocupação de estabelecer uma simbologia para representar os acontecimentos, pois que o objectivo era sobretudo anotar as reacções de uma criança ao contexto geral da enfermaria em que se encontrava. Todos os aspectos que o autor considerou relevantes para o seu estudo foram sistematizados nesta grelha e foram sujeitos a uma observação intensiva que mais tarde foi traduzida em texto. 94 A grande vantagem desta técnica assenta na possibilidade de se fazer uma observação sistemática e bem balizada, quer no espaço e no tempo, quer em termos de problemática. Ao estabelecer os indicadores que constituem a grelha, Stacey delimitou simultaneamente o seu objecto de estudo e evitou, desse modo, dispersões. Tal como Stacey, Burgess também recorreu aos apontamentos escritos, fazendo uma descrição exaustiva das suas observações percorrendo o tempo pormenorizadamente. A técnica da escrita em texto corrido é sempre utilizada em trabalho de campo e fornece o contexto geral da aplicação das técnicas especiais que cada investigador constrói. Texto e técnicas especiais são, portanto, as duas faces da mesma moeda quando se procede ao trabalho de campo. Como lembra Burgess, a “pesquisa de terreno envolve simultaneamente a colheita e a análise de dados. Ao colher dados o investigador de terreno produz uma série de notas, retira anotações de jornais e diários, faz transcrições de entrevistas e fotografias. Há também uma grande variedade de material documental sobre o qual o investigador pode trabalhar e do qual 95 decorre a análise de dados e a elaboração de relatórios escritos. (…) Algumas das questõeschave que necessitam de ser esclarecidas nesta área [métodos de investigação de campo] incluem: como são feitas as notas de trabalho de campo? Quando devem ser feitas? Como são codificadas, indexadas e arquivadas? Como se organizam os materiais com o propósito de os analisar? Como devem ser relatados? (op. cit.: 181). O ponto seguinte pretende fornecer algumas respostas. 4.2.4.1.5. Tipos de notas Podemos ver que o trabalho de campo implica que se tenham em conta variados aspectos que tocam em toda a investigação, desde a aquisição dos dados (e consequente revisão da problemática), passando pelo seu tratamento e culminando da redacção do relatório. Wright Mills (1959) defende que o Diário de Campo é um suporte de registo de dados obrigatório, pois permite, para além de todas as vantagens que tem em termos de suporte de registos, articular o papel de investigador com as perspectivas pessoais que ele tem sobre a realidade. Como ele indica, “o investigador, enquanto trabalhador intelectual tentará associar aquilo que está a fazer intelectualmente com a própria experiência pessoal. Não haverá o receio de usar a experiência e de a associar aos trabalhos em curso.” (Mills, 1959: 196; citado por Burgess, id. ibid.). O Diário de Campo será então, de acordo com as palavras de Burgess, um arquivo de ideias. Todavia, a função do Diário de Campo não se resume à de arquivo. Ele é, antes de mais, um instrumento de investigação e um plano de execução do projecto inicialmente definido. Devido a estas características, o Diário de Campo fornece (ou deve fornecer) respostas às questões fundamentais a nível operativo, tais como: Quando? O quê? Quem? Onde? Como bem lembra Burgess, “Uma tal lista de questões exige que se tirem notas acerca de lugares, acontecimentos, actividades, pessoas, conversações. Contudo, não é possível registar tudo o que ocorre numa situação e, por consequência, os investigadores ver-se-ão obrigados a tomar uma série de decisões acerca do que incluir no estudo em função dos seus interesses substantivos e teóricos.” (op. cit.: 182). Com base nesta perspectiva, pode-se considerar que o Diário de Campo deve conter registos de várias índoles, permitindo que a investigação se faça não apenas seguindo uma lógica de absorção de informações recolhidas no campo, mas 96 também seguindo uma lógica de aperfeiçoamento da perspectiva do investigador, tanto ao nível metodológico como ao nível reflexivo e mesmo analítico. Assim, de acordo com Burgess, no Diário de Campo devem constar notas substantivas, metodológicas e analíticas. a) Notas substantivas Segundo Burgess, “as notas de campo substantivas consistem num registo contínuo de situações, acontecimentos e conversas nas quais o investigador participa. Constituem um registo de observações e entrevistas que são obtidas pelo investigador e do conteúdo de documentos. Nalguns casos, estas notas são registadas sistematicamente usando secções e categorias preestabelecidas para acontecimentos e situações particulares. Noutros casos, questões substantivas e conceptuais podem influenciar a selecção de materiais e são registados. Tal como o investigador selecciona as observações que são feitas e as entrevistas que se realizam, também alguma escolha deve ter lugar quando se registam as notas de campo substantivas.” (ibid.). As notas substantivas devem tirar-se sempre que possível, articulando-se o discurso falado com a representação gráfica do acontecimento ou do plano no qual a situação tem lugar. Como vimos, esta representação ajuda a sistematizar os dados e permite que o investigador clarifique possíveis pontos de tensão e/ou de consenso existente no campo. Muitas das situações, sendo desta forma codificadas, atingem um ponto de demonstração que não é possível atingir por via da palavra. Além disso, pode-se partir destas representações para se obterem fórmulas dos acontecimentos, a partir das quais podemos “manusear” a realidade, reflectindo sobre as implicações que determinada alteração no campo social poderá acarretar. Os trabalhos estruturalistas baseiam-se precisamente nesta capacidade de codificação da realidade em símbolos, permitindo descobrir mais facilmente as diferenças e as semelhanças entre as culturas em determinado aspecto da realidade social. Obviamente, este trabalho de registo de notas substantivas não é feito levemente. Não é possível encontrar essas implicações no próprio terreno, mas é imprescindível que se tirem as 97 notas necessárias no próprio terreno para que se possa, mais tarde, construir um cenário geral das situações que se observaram. Muitas informações podem ser encontradas desta forma, as quais, inicialmente, não estavam na consciência do investigador. Este trabalho de paciência poderá mesmo funcionar como um atalho para se descobrirem as estruturas que regulam aquilo que é observável. No ponto anterior, vimos alguns exemplos das técnicas utilizadas para registar dados no Diário de Campo. As técnicas utilizadas por Humphreys e por Burgess representam muito bem como as notas substantivas são tomadas no Diário de Campo. No primeiro caso, Laud Humphreys (1970) apresenta a sua folha de observação, mostrando os símbolos e termos que utilizou quando estudou o comportamento dos homossexuais nos lavabos públicos dos E.U.A. Ao longo da sua observação, ele utilizou esta folha de forma sistemática, de modo a poder retirar conclusões sobre o comportamento dos homossexuais ao longo do tempo, sem, todavia, menosprezar o que se passava no contexto social geral que circundava os lavabos públicos. No segundo caso, é apresentada uma representação gráfica da sala dos professores da Escola Bishop McGregor, feita por Robert Burgess (1983). Como ele próprio diz, “no meu próprio trabalho achei que era essencial tomar sistematicamente notas substantivas, mas não elaborei folhas de registo nas quais anotasse esses dados. As notas eram predominantemente descritivas e tinham como objectivo proporcionar um retrato detalhado das várias situações em que eu em envolvia. As notas de campo incluíam descrições físicas, descrições de situações e de informantes, detalhes de conversações e relatos de acontecimentos.” (op. cit.: 183). Além desta técnica, Burgess registava todos os passos que achava importantes para desenvolver a sua problemática (“a maneira pela qual a assembleia matinal era usada para reforçar as normas e os valores dos membros seniores da escola”). Ele elaborava longos relatórios sobre o que se dizia nas assembleias matinais da escola e registava-os em texto corrido (ver Burgess, op. cit.: 186-7), técnica de registo que, segundo o autor, permitiu “examinar as categorias que eram usadas pelos professores presentes nas assembleias matinais, a terminologia que era empregue e os assuntos tratados” (id.: 187). 98 b) Notas metodológicas Como refere Burgess, “estas notas consistem em reflexões pessoais sobre a (…) actividade de campo. Algumas delas abordam problemas, impressões, sentimentos e intuições bem como alguns dos processos e procedimentos associados com a pesquisa de terreno. O objectivo principal destas notas é a reflexão. Aqui, os investigadores podem equacionar os seus métodos e especular sobre as maneiras pelas quais estes métodos podem ser adoptados, adaptados e desenvolvidos em contextos particulares.” (id.: 188). E conclui: “a elaboração de um conjunto de notas metodológicas permitirá ao investigador ser reflexivo e comprometer-se nalguma forma de auto-análise durante o processo de pesquisa, um procedimento que tem sido seguido por alguns antropólogos sociais (cf. Malinowski, 1967; Spindler, 1970) e deve ser recomendado a todos quantos se empenham na pesquisa de terreno.” (id.: 189). O registo de notas metodológicas permite ao investigador definir o seu próprio papel no interior do campo, ao mesmo tempo que o orienta em termos teóricos e permite encontrar novos elementos operativos que possam descobrir novas formas de ver o problema e de melhorar a sua interpretação. Este tipo de informação deve ser articulada com os outros tipos de notas, de modo a que, no seu conjunto, sirvam o propósito de gerar mais e melhor conhecimento, não apenas acerca do problema, mas também acerca do próprio investigador. Pois, como referia Ernst Cassirer (1995), o objectivo último da ciência é o autoconhecimento. c) Notas de análise As notas de análise são semelhantes às notas metodológicas, mas menos operativas. Elas têm a função de resolver questões relacionadas com a problemática da investigação, remetendo directamente para a reformulação das hipóteses aí apresentadas. São também uma espécie de fase preliminar à análise dos dados recolhidos no terreno e podem ser preciosas quando nos sentarmos à secretária e encetarmos a análise dos dados de modo definitivo. De facto, o investigador, ao longo do trabalho de campo, vai reunindo um conjunto de ideias sobre o 99 problema cujo estudo propôs e que está cristalizado na pergunta de partida da investigação que está a desenvolver. Aqui faz-se um trabalho prévio de articulação entre as hipóteses de trabalho (que também vão surgindo ao longo do processo de observação da realidade) e a realidade. Glaser e Strauss (1967) aconselham a que se registem estas notas de análise sempre, pois que servirão, posteriormente, para constituir o núcleo das análises preliminares. Estes autores defendem mesmo que as notas de análise sejam tomadas separadamente do Diário de Campo, remetendo, contudo, para o mesmo e para os elementos substantivos que aí estão presentes e que confirmam esta primeira fase analítica. Burgess acrescenta que “tais apontamentos podem incluir resumos redigidos no final do dia de trabalho de terreno, nos quais o investigador indica aspectos emergentes e conceitos que podem ser desenvolvidos juntamente com reflexões preliminares acerca do enquadramento analítico. Se estes resumos são regularmente produzidos no decurso do período de pesquisa, isso significa que o investigador terá temas estabelecidos antes de o índice completo estar preparado.” (op. cit.: 190) Sucintamente, para muitos investigadores, a colheita de dados e o trabalho de campo trabalho de em par. Os investigadores partem para o campo para colher directamente os dados através da observação. O processo de aquisição dos dados tem dois aspectos principais: tomar nota dos progressos do projecto e prosseguir com a colheita dos dados. Para registar os progressos e reflectir sobre eles durante esta etapa é imprescindível tomar notas, independentemente da forma que se adopte para tal. As notas podem referir-se ao plano de investigação, à maneira em que esse plano muda na prática, às reacções do investigador, às suas leituras, ao que pensa, às coisas importantes que as pessoas disseram e ao que se vai descobrindo. O Diário de Campo é uma maneira ideal de se anotar o que se faz, o que se pensa, o que se experimenta e o que se sente durante o desenvolvimento da monografia. De facto, o Diário de Campo goza de uma considerável liberdade e flexibilidade ao mesmo tempo que permite registar os progressos da investigação. 100 4.2.4.2.As entrevistas O homem é um ser muito complexo. Estudar um comportamento humano confronta sempre o investigador com o indivíduo, e não apenas com os grupos. A imensa riqueza dos factos sociais reflecte-se na multiplicidade das visões do mundo, das opiniões sobre a realidade e, essa multiplicidade justifica que se atomizem os métodos de obtenção de dados sobre comportamentos sociais. Um indivíduo formula uma vida sempre com referência ao seu passado, que é único. A sua experiência é sempre digna de registo. Através de uma entrevista aprofundada, como por exemplo, a história de vida, iríamos ver uma realidade diferente de indivíduo para indivíduo, por isso a entrevista é uma das técnicas mais importantes do trabalho de campo antropológico. O objecto de estudo antropológico é sempre o homem, que está representado em cada indivíduo. Este indivíduo, por sua vez, vive num meio físico e social, onde as suas acções adquirem sentido. É neste contexto social e histórico que a sua realidade deve ser entendida. Em acordo com Windelband, Wilhelm Dilthey (1883) defendia a distinção epistemológica entre ciências nomotéticas e ciências ideográficas. Estas, ocupando-se do espírito humano, baseiam as suas teorias na compreensão, o que deu origem a um interesse, por parte dos investigadores das ciências sociais, para as histórias de vida que, segundo Dilthey, revelavam o sentido das práticas dos seres sociais. A Escola de Frankfurt, inspirada na epistemologia de Adorno (1972), levantou a questão sobre se esse tipo de método não poderia ser usado para formular testes de personalidade que pudessem revelar intenções ocultas dos sujeitos. A intromissão da entrevista, enquanto método científico, deve-se à sua extrema flexibilidade e à capacidade com que ela pode ser formulada de modo totalmente rígido (inquérito) ou totalmente livre (história de vida). Conhecer o homem através de entrevistas afigura-se, porém, impossível, pois seria necessário entrevistar todos os indivíduos para se ter uma ideia de homem. Num plano mais abrangente que a história de vida, são feitos estudos de opinião, que procuram abranger amostras representativas de opiniões sobre determinado tema da realidade. Estas entrevistas mais temáticas são os inquéritos. 101 Entrevistar, como diz o termo, é trocar pontos de vista; por isso é sempre necessário ter em mente uma planificação das entrevistas. Seja numa fase exploratória, seja numa fase mais avançada, ou até, final, é necessário saber-se o que se quer saber. Danielle Ruquoy (2005: 86-7) caracteriza a entrevista de acordo com as atitudes que o entrevistador tem quando a faz. As entrevistas podem ser:  “Uma relação verbal entre o investigador e a pessoa interrogada: essa relação pode ser directa (frente a frente) ou indirecta (por telefone, por exemplo);  Uma entrevista provocada pelo investigador: neste aspecto, a situação de entrevista comporta uma parte de artificialismo, distinguindo-se do modo habitual de comunicação que aqueles que, integrando-se na população estudada, realizam observação directa procuram preservar;  Uma entrevista para fins de investigação: distingue-se da entrevista terapêutica ou de apoio, cujo objectivo é levar a pessoa que se exprime a resolver o seu problema;  Uma entrevista baseada na utilização de um guia de entrevista: para colocar o entrevistado em condições de se exprimir, seguindo o curso do seu pensamento; em contrapartida, o método por questionário supõe que o investigador já conhece a forma como a questão tratada é apreendida pelo público visado, de modo a não formular questões inoperantes;  Uma entrevista numa perspectiva intensiva, em que se trata sobretudo de conhecer em profundidade as reacções da pessoa a detectar processos (por exemplo, as diferentes etapas que conduzem à marginalização). Um estudo extensivo, incidindo sobre um grande número de indivíduos e destinado a medir frequências, não é realizável por meio de uma entrevista.” 102 4.2.4.2.1. Tipos de entrevistas e momento de aplicação A entrevista pode ser entendida como um tipo de inquérito. Todavia, o inquérito também pode ser visto como uma entrevista. A diferença fundamental entre a entrevista e o inquérito é que este fornece menos liberdade ao entrevistado para poder optar por um ponto de vista particular, enquanto que a entrevista pode ser não directiva, sem qualquer forma rígida de aplicação. Madelaine Grawitz apresenta um diagrama onde se pode ver a diferença entre seis tipos de entrevistas: 1 2 3 4 5 6 (Fonte: Carmo e Ferreira, 1998) Além de variarem de acordo com o grau de liberdade dado ao entrevistado (a que correspondem atitudes diferenciadas por parte do entrevistador), as entrevistas variam conforme a abrangência dos seus objectivos operativos. Carmo e Ferreira apresentam esta tipologia das entrevistas, agrupando os 6 tipos em três variantes principais: 103 Variantes Entrevistas dominantemente informais Entrevistas mistas Entrevistas dominantemente formais Tipos 1 – Entrevista clínica 2 – Entrevista em profundidade 3 – Entrevista livre 4 – Entrevista centrada 5 – Entrevista com perguntas abertas 6 – Entrevista com perguntas fechadas “A entrevista clínica (tipo 1), como o nome indica, é utilizada habitualmente em contextos terapêuticos, caracterizando-se por uma liberdade quase total dada ao entrevistado na sua resposta e na grande abundância e profundidade de informações que são partilhadas.” (op. cit.: 130). Esta “entrevista clínica” é semelhante à chamada livre associação, o método de a psicanálise obter os dados, que são emitidos pelo entrevistado de forma livre e aparentemente sem sentido e sem continuidade. “A entrevista em profundidade (tipo 2), típica de situações de aconselhamento como as que se realizam utilizando o método de Serviço Social de Casos ou as que decorrem em situações de aconselhamento vocacional, apresenta ainda um grau de liberdade no diálogo e profundidade na forma da abordagem temática por parte do entrevistado, ainda que inferior à clínica.” (idem). “Num grau intermédio de informalidade, encontram-se a entrevista livre (tipo 3) e a entrevista centrada (tipo 4). Ambas são características dos estudos exploratórios, diferindo entre si pelo nível de estruturação em torno das temáticas específicas que são tratadas. Características dominantemente formais têm as entrevistas estruturadas com perguntas abertas (tipo 5) ou fechadas (tipo 6). Nestas últimas, típicas em situação de sondagem, feitas a populações de muito grande dimensão, o grau de liberdade do respondente é claramente reduzido bem como a profundidade da informação obtida.” (ibid.). Ruquoy (2005: 87) refere que existem quatro graus de liberdade numa relação de entrevista e que resultam em quatro tipos principais de entrevista: 104  Entrevista Directiva (Inquérito) – dirigida a um grupo concreto de pessoas e utilizando perguntas padronizadas e é constituído por perguntas do tipo fechado ou aberto, que obedecem a uma lógica de organização preestabelecida;  Relato de Vida (História de vida) – combina a abordagem biográfica com uma temática relacionada com o objecto de estudo;  Entrevista Não Directiva (Livre) – entrevista não dirigida, apenas articulada em volta de um tema geral.  Entrevista Semi-Directiva – por um lado, “(…) permitimos que o próprio entrevistado estruture o seu pensamento em torno do objecto perspectivado, e daí o aspecto parcialmente “não-directivo”, por outro, porém, a definição do objecto de estudo elimina do campo de interesse diversas considerações para as quais os entrevistado se deixa naturalmente arrastar. Este último grau de liberdade, colocado entre a entrevista não directiva e a directiva, é, de acordo com Ruquoy, o grau de liberdade da entrevista cuja relação entre o entrevistador e o entrevistado melhor serve os interesses das investigações sociais em geral, pois que, a continuar este tipo de entrevista no nosso trabalho de campo, estaríamos, afinal, a fazer observação indirecta da realidade (a não ser que estivéssemos a fazer histórias de vida). A autora continua referindo que o tipo de papel que o entrevistador tiver variará consoante a fase em que se encontre a sua investigação. Isto quer dizer que a entrevista deve ter a apresentação que for mais eficaz naquele momento da investigação. Assim, em termos cronológicos, os tipos de entrevistas apresentar-se-iam de modo sequencial. Ruquoy relaciona cada tipo de entrevista com cada um dos três momentos metodológicos em que se desenvolve a investigação. Por seu turno, Ghiglione e Matalon (1992) estabelecem essa relação com quatro momentos metodológicos, acrescentando o momento de teste do instrumento (ver tabelas seguintes). 105 Tipo de entrevista Momentos metodológicos Não-Directiva Semi-Directiva Directiva Exploração X Aprofundamento X X Verificação X X (Fonte: Ruquoy, 2005) Tipo de entrevista Momentos metodológicos Não-Directiva Semi-Directiva Directiva Controlo X Verificação X X Aprofundamento X X Exploração X (Fonte: Ghiglione e Matalon, 1992) Independentemente de se tratarem de entrevistas directivas e focadas, semi-directivas ou livres, há sempre factores a ter-se em conta quando fazemos entrevistas. A técnica da entrevista implica desde logo o estabelecimento de um protocolo com o campo. É preciso que tenhamos autorização para fazer perguntas. Como se disse anteriormente, a observação participante é a técnica que permite obter respostas sem fazer perguntas. Há casos em que as entrevistas podem ser formas de não fazer perguntas, mas, no final, estamos sempre a indagar sobre alguma coisa; estamos sempre a intrometer a nossa curiosidade no meio da realidade social. Para se fazerem entrevistas, dizia-se, é preciso ter algumas cautelas. Além da entrevista se basear numa interacção social entre duas ou mais pessoas, da qual resulta a comunicação de significados, a entrevista tem também no plano concreto, no campo, duas visões em problematização: por um lado, o entrevistado mostra a sua visão particular sobre um determinado assunto, por outro, o entrevistador tenta recolher, interpretar e compreender essa visão particular. 106 Tem que se ter em conta, sobretudo duas dimensões relacionadas com a entrevista: por um lado, que se trata de uma relação interpessoal entrevistador-entrevistado; por outro, que a entrevista consiste num processo técnico de recolha de informação. 4.2.4.2.2. Aspectos fundamentais da organização e formulação da entrevista Carmo e Ferreira (1998) apresentam um plano possível para se organizar uma entrevista dividido entre a fase prévia, a realização da entrevista e a fase posterior: a) Antes da realização da entrevista  Definir o objectivo  Construir o guia de entrevista  Escolher os entrevistados  Preparar as pessoas a serem entrevistadas  Marcar a data, a hora e o local  Preparar os entrevistadores (formação técnica) b) Durante a realização da entrevista  Explicar quem somos e o que queremos  Obter e manter a confiança  Saber escutar  Dar tempo para “aquecer” a relação  Manter o controlo com diplomacia  Utilizar perguntas de aquecimento e focagem  Enquadrar as perguntas melindrosas  Evitar perguntas indutoras 107 c) Após a realização da entrevista  Registar as observações sobre o comportamento do entrevistado  Registar as observações sobre o ambiente em que decorreu a entrevista Quando optamos por recorrer à entrevista, devemos ter em conta que há elementos que dificultam a sua realização. Do mesmo modo, há elementos que o entrevistador pode potenciar com o intuito de facilitar a comunicação. Os factores que funcionam como obstáculos ao desenvolvimento de uma entrevista são sobretudo a disponibilidade temporal, isto é, a interferência no trabalho, a intimidade, tocar em temas sensíveis como o sexo, que é algo muito pessoal, difícil, ou é um episódio traumático, ou algo que recorda um acontecimento desagradável, ou o medo de se darem informações consideradas importantes a nível pessoal. Os principais factores que favorecem a entrevista são: a cortesia, a possibilidade de, através da investigação, se poder melhorar alguma coisa acerca do problema, o reconhecimento e mesmo algum tipo de recompensa. a) A relação interpessoal entrevistador-entrevistado O entrevistador deve, como vimos quando falamos do olhar antropológico, integrar-se no campo com humildade e segurança, de modo a ir construindo a sua identidade dentro do campo. A entrevista pode ser um modo de atalhar certos aspectos da problemática e um meio de economizar tempo de campo. Todavia, como a entrevista pode assumir várias formas, também implica vários tipos de interacções entre entrevistador e entrevistado. O essencial é que o entrevistador transmita confiança. O entrevistador deve apresentar-se sem rodeios e explicitar os objectivos da sua presença. A entrevista é um momento de debate que resulta da troca de ideias entre o investigador e o objecto de estudo. Pode-se descobrir muitas coisas sobre o nosso assunto se tivermos em conta a aplicação de maior ou menor flexibilidade nas perguntas que fazemos. Estas tanto podem ser apenas estímulos ao desenrolar da exposição do entrevistado, como podem ir directamente ao âmago daquilo que queremos saber. A entrevista pode, através de uma maior ou menor liberdade da interacção entre o entrevistador e o 108 entrevistado, fornecer um meio precioso para explorar o campo e para recolher informações mais especializadas, mais pormenorizadas, sobre determinado fenómeno. b) O processo técnico A posição do entrevistador é, em princípio, a de um conhecedor sobre o assunto que está a debater com o entrevistado. Esta sua experiência sobre o tema é muito importante, senão mesmo fundamental. A experiência do entrevistador vai fazer com que alguns efeitos constrangedores presentes na entrevista, tais como o filme ou a fotografia, passem despercebidos. A acuidade das observações do entrevistador varia também conforme o seu maior ou menor conhecimento sobre o problema que tem em investigação. Antes de fazer a entrevista, o entrevistador deve fazer uma preparação, seleccionando os entrevistados mais capazes e dispostos a dar informações relevantes, elaborando um guia de entrevista e escolher o espaço e o tempo adequados. A escolha dos entrevistados segue algumas técnicas de amostragem, tais como as da bola de neve, mas, no conjunto, o entrevistador encontra no campo três tipos de participantes que podem constituir a amostra não probabilística para o estudo, ou seja, são potenciais entrevistados: o O participante-chave: aquele que é sobretudo um informante e dá informações sobre o contexto em que se vive no local que se estuda; o O participante-especial: aquele que tem informações relevantes sobre o problema; o O participante-representativo: pessoas que têm também informação importante. O número de entrevistas será tanto maior quanto mais difícil for obter o efeito de saturação. No caso sobretudo da história de vida, o efeito de saturação é uma condição necessária para se considerar uma entrevista terminada. Quando o entrevistador escolhe os entrevistados, ele deve apresentar-se, como já se tinha dito, e deve pedir abertamente aos entrevistados a sua colaboração, explicando-lhes porque é que 109 os escolheu a eles, garantindo-lhe ao mesmo tempo confidencialidade, usando nomes diferentes e mantendo o anonimato. Vejamos agora como se organiza a entrevista. c) A realização da entrevista A entrevista deve ser preparada e, no conjunto das acções que implica, deve fasear-se em três momentos principais: 1 – Na fase inicial, começa-se com perguntas que não são dadas a controvérsias, perguntas gerais, abertas, evitando-se a formulação de perguntas que requeiram um “sim” ou um “não” como resposta. 2 – Na fase intermédia, vai-se tentar obter a informação passando do plano mais geral para o mais concreto, passando do impessoal ao pessoal, do informativo ao interpretativo. Nesta fase vão-se fazendo resumos dos procedimentos, à medida que a entrevista avance. 3 – Na fase final, vão-se fazer as perguntas mais concretas, tentando testar a veracidade das respostas. Quando se acaba a entrevista, deve-se agradecer a colaboração e fazer com que os informantes sintam que a sua participação foi importante. Há sempre um dado por outro que ainda se vai registando nesta fase. Danielle Ruquoy identificou os seguintes “momentos-chave” da entrevista:  “Os preliminares. Antes de começar a entrevista, o entrevistador deve pôr o interlocutor à vontade e vencer as suas últimas apreensões. (…) Globalmente, trata-se de agir de modo que o entrevistado se sinta associado à investigação e compreenda que o seu ponto de vista é importante.”  “O início da entrevista. O entrevistador escolhe uma questão introdutória. (…) Esta questão tanto pode aflorar o tema central do estudo (“a questão inicial”) como dizer respeito a aspectos relativos à situação do entrevistado (por exemplo, pedir pormenores sobre a função exercida pelo interessado, se essas informações forem úteis 110 para a compreensão de respostas posteriores ou se o entrevistado ficar assim mais bem preparado para abordar as questões de fundo).”  “O corpo da entrevista. Convém distinguir as modalidades de intervenção segundo a sua incidência sobre o conteúdo ou a forma. Como vimos, a entrevista semi-directiva está submetida a duas exigências: a pertinência relativamente ao objecto de estudo e a apreensão o mais fiel possível do modo de pensamento do entrevistado. A primeira exigência é apoiada pela utilização do guia de entrevista, através de intervenções puramente incitativas, destinadas a não quebrar a continuidade do discurso do sujeito. (…) No campo assim delimitado pelo objecto de estudo e pelo guia de entrevista, o entrevistador deve evitar induzir qualquer tipo de estruturação ou valorização de determinados pontos de vista.”  “O fim da entrevista. Pode ser aproveitado para perguntar ao entrevistado se, em seu entender, não foi omitido nada de importante. Ao mesmo tempo é bom recolher as impressões sobre o próprio modo como a entrevista decorreu.” Como podemos ver, a entrevista será feita em referência ao objecto de estudo do trabalho. O investigador é o protagonista do procedimento científico, ele formula a entrevista na forma de conceitos-chave que têm que ser explorados pelo entrevistado, só que utilizando palavras diferentes das que usa depois na problematização e sintetização dos dados. O guião de entrevista não é mais do que um conjunto de pontos que estão todos relacionados na problemática da investigação. Estes pontos são articulados pelo investigador com o propósito de se obter uma perspectiva particular sobre determinado problema. Sendo assim, o processo da entrevista – e a sua própria formulação – é, no fundo, um trabalho elaborado pelo investigador, pelo que este pode sempre alterar a ordem dos pontos da sua entrevista, valorizar uns e ignorar outros, etc. O investigador pode, assim, a qualquer momento, intervir na forma e no conteúdo da entrevista. 111 4.2.4.2.3. Registo, análise e interpretação dos dados da entrevista As entrevistas são instrumentos preciosos de obtenção de dados. Elas abrem caminho a um conjunto de informações que de outro modo não poderia ser atingido. Todavia, para registar, analisar e interpretar dados de uma entrevista, seja qual for o grau de liberdade que a caracteriza, é necessário ter-se conta outros instrumentos. No caso das entrevistas de natureza probabilística, utilizam-se métodos de codificação dos dados em símbolos, normalmente numéricos e emprega-se uma metodologia de análise estatística; no caso das entrevistas de natureza não probabilística, o procedimento de registo, análise e interpretação dos dados obedece às regras que vamos ver neste ponto. Ao longo da sua actividade, o entrevistador vai aplicando algumas técnicas. Vimos já os tipos de intervenções que o entrevistador faz na entrevista, tanto ao nível da forma como do conteúdo. Todas essas intervenções têm como objectivo ampliar a eficácia da entrevista, optimizando as suas possibilidades. O entrevistador deve procurar favorecer sempre o discurso continuado, controlando as suas intervenções, tanto verbais como não verbais. O registo da entrevista deve ser feito preferencialmente recorrendo-se à ajuda de suportes de registo digitais, pois convém registar os testemunhos directos dados pelos entrevistados. A câmara de vídeo e o gravador áudio são dois aparelhos cuja ajuda é preciosa, todavia, o seu uso deve depender do estabelecimento prévio de um protocolo sobre a presença dos aparelhos na entrevista. Quando se recorre ao seu uso deve-se também ter em conta que a sua presença pode, mesmo quando aceite, ser motivo de constrangimento para o entrevistado. Quando o uso de aparelhos de registo que signifiquem o acrescento de uma presença física na relação entrevistador-entrevistado não for possível, o entrevistador tem que recorrer ao registo único no papel, não pode é deixar de tomar notas sobre o que é dito e como é dito. Devemos ter sempre em conta que a realização da entrevista tanto pode ser curta e de aplicação ampla (inquérito), sendo focalizada, como se pode prolongar por vários dias (história de vida). Conforme for a exigência de uma ou de outra técnica, assim será a necessidade de esgotar o problema ou não. O efeito de saturação que a entrevista com 112 objectivos de análise não probabilística quer atingir só é possível de ser atingido pelo prolongamento temporal da entrevista. Para este efeito, como foi referido, o entrevistador pode acrescentar a sua entrevista a um diário de campo, onde possa registar tudo o que possa ser importante para a investigação, tal como comentários, anedotas, expressões não verbais, etc. O registo da entrevista deve, portanto, fazer-se com base em duas raízes principais: o guião de entrevista e o objecto de estudo. A função da entrevista é fornecer dados para que a teoria e o campo sejam conformes e a regularidade dos comportamentos sociais possa comprovar a regularidade que a teoria da investigação organiza entre os conceitos que utiliza no seu modelo de análise. Se bem seleccionada e aplicada, a metodologia de registo dos dados obtidos através das entrevistas facilitará a análise subsequente. A análise dos dados fornecidos pelas entrevistas depende da natureza destas: se são probabilísticas, ou não probabilísticas. A análise de dados em entrevistas de natureza probabilística é feita através de métodos de cálculo estatístico, procurando-se obter as regularidades sobre determinados factos sociais reduzindo todas as diferenças e variedades a problemas comuns (variáveis) que resultam em respostas maioritariamente tendenciosas para uma facção das opiniões (este tipo de análise não é objecto de exposição neste manual). No caso da análise de dados em entrevistas de natureza não probabilística, o tratamento das informações começa muito antes da formulação da entrevista, pois, como vimos, o guião da entrevista reúne um conjunto de articulações conceptuais que exige que se veja uma investigação como um todo maior do que a entrevista ou, por outras palavras, a entrevista deve ser uma técnica auxiliar no trabalho de campo. Quando se formula uma entrevista e quando se está a aplicá-la, o problema encerrado na pergunta de partida deve estar sempre presente, pois todo o desenvolvimento estrutural do jogo de trocas entre o entrevistador e o entrevistado deve ir de encontro ao que se pretende saber com a entrevista. A entrevista é uma técnica que permite atalhar tempo e permite reunir uma importante quantidade de elementos que pode ser muito úteis para a investigação. Por 113 isso, temos que fazer um plano constante das necessidades que o nosso trabalho tem e que foram impostas pelo próprio campo. A entrevista deve seguir o primado da observação participante, contribuindo para elucidar tanto o problema como o contexto em que ele se forma e existe. Posto isto, tal como acontece com os dados fornecidos pela observação participante, os dados fornecidos pelas entrevistas devem ser transcritos e deve-lhe ser dado um tratamento quase imediatamente após a sua audição ou registo. Ao transcrever os dados fornecidos pela entrevista, o entrevistador pretende compreender a forma como o entrevistado vê o mundo e como constrói a realidade. Depois de ter ouvido e escutado, o investigador deve agora fixar a informação ao registá-la na forma de palavra e imagem (unidades de registo) aos quais é acrescentado um contexto de realização (unidades de contexto). Os dados fornecidos pelas entrevistas podem ser tornados em conceitos gerais (conceitos operatórios simples) que podem ser acrescentados e articulados com os conceitos sistémicos que utilizámos na nossa pesquisa. Para analisar os dados fornecidos percorre-se um procedimento. Christian Maroy (2005) propõe um procedimento em três etapas: 1. o trabalho de descoberta, ou seja, a imersão no material e o aperfeiçoamento de uma grelha de análise. Convém:   Mergulhar no material;  problemática, ou de ambos;  Definir categorias gerais de análise derivadas exclusivamente do material ou da Melhorar a grelha de análise: ajustar e redefinir as categorias; Realizar um primeiro trabalho de interpretação do material (formular hipóteses interpretativas). 2. o trabalho de codificação e de comparação sistemática. É necessário:  Aperfeiçoar uma grelha de análise definitiva; 114  Codificar o conjunto do material significativo;  Atribuir uma configuração e uma organização aos dados;  Efectuar, paralelamente, um trabalho de interpretação. 3. discussão e trabalho de validação das hipóteses. Neste procedimento, as etapas mais extensas e que constituem o corpo analítico do nosso trabalho são a 1 e a 2. A primeira fase da análise é feita com base na tentativa e no erro, e é feita muitas vezes num período paralelo ao da exploração. Entramos em contacto com o campo, encontramos alguns conceitos e indicadores interessantes para acrescentar ao nosso modelo teórico e vamos construir e aplicar uma grelha de análise, executando a técnica no terreno. Depois de termos aplicado essa grelha, vamos retocando a nossa problemática, avançando já com hipóteses interpretativas. Segundo Maroy (2005: 129 e segs.), para desenvolvermos uma grelha de análise devemos articular várias pistas, tais como: a) “Reler várias vezes o material, em particular as entrevistas escolhidas como base para o primeiro trabalho de análise. Com efeito, o esboço da grelha é efectuado muitas vezes com base nas duas ou três entrevistas que serviram de teste. Será preferível escolher entrevistas particularmente ricas (quer dizer, bem conseguidas do ponto de vista da recolha) e contrastadas, quer do ponto de vista do conteúdo, quer por se tratar de pessoas ou situações objectivamente diferenciadas pelo procedimento de amostragem. Nunca será demais aconselhar a reler, em diversos momentos da análise, o material disponível, a fim de fazer surgir o que pode ser o início de comparações. (…) b) Questionar as perspectivas, as significações produzidas pelas pessoas contactadas. Na medida em que as investigações amplamente indutivas se centram frequentemente 115 na descoberta de significações associadas às práticas e que tentam apreender o modo como os actores atribuem sentido às situações. (…) c) Estar atento e anotar qualquer aspecto saliente do material, identificar as passagens “significativas”. São as que parecem contrastar, distinguir-se relativamente a outros materiais, ou ainda ser paradoxais, tendo em conta o contexto. Podem ser actividade, temas de conversa, preocupações, sentimentos dos actores, a maneira como estes se definem, o vocabulário “indígena”, etc. (…) d) Estar atento ao aperfeiçoamento dos conceitos a fim de nomear as realidades descritas na entrevista. Serão quer termos locais (utilizados pelos entrevistados […]), quer noções que permitem aproximar, sob um termo englobante, as primeiras observações. (…) Estarão na base de categorias constitutivas da futura grelha de análise. Com efeito, que é uma categoria? É um conceito que permite nomear uma realidade presente no material recolhido. O trabalho de análise consistirá em precisar o seu conteúdo. (…) e) Efectuar um trabalho de selecção e de comparação dos materiais de acordo com as primeiras categorias destacadas, a fim de as testar, afinar, ver se “encaixam” nos dados. Isto para eliminar as categorias que se afiguram inaplicáveis, excessivamente abstractas, construídas, não suficientemente “utilizáveis”. Portanto, o trabalho de desenvolvimento de um instrumento de redução e de interpretação do material consistirá em comparar as “ocorrências” quando algumas passagens de entrevistas se inscrevem numa categoria emergente. (…) f) Efectuar uma primeira síntese teórica. Opera-se logo que várias passagens de entrevistas tenham sido retomadas sob a mesma categoria, de modo que as primeiras propostas interpretativas sejam apresentadas sistematicamente. (…) g) Chegar a formular o fio condutor de toda a análise empírica posterior. Será um dos primeiros resultados do trabalho de comparação, que visa desenvolver indutivamente categorias comparativas. Por outras palavras, é necessário, no caso de uma 116 problemática muito aberta e indutiva, ser capaz, no fim desta fase, de explicitar melhor a questão central da análise. O fio condutor e a grelha de análise podem ser definidos com a ajuda de: a) Folhas-resumos. Feitas depois de cada entrevista. Nesta folha resumo encontram-se, normalmente, indicadores sobre a fase de recolha de dados, pois que se fazem simultaneamente. Neste folha-resumo devem constar informações relativas aos temas abordados e/ou dados novos que emergem do material, as questões-hipótese que sugerem, “A folha resumo será útil sob muitos pontos de vista: fazer o ponto sobre os dados recolhidos, vincar os aspectos marcantes, as questões que provoca, e sobretudo anotar as consequências possíveis sobre as condições de realização das entrevistas”; b) Comentários analíticos. “Paralelamente ao trabalho de leitura e de descoberta do material, anota-se num diário de investigação e/ou nas margens dos materiais tudo o que sobressai do trabalho acima proposto: ideias, temas emergentes, categorias ou conceitos, propostas. Os comentários analíticos poderão, além disso, incluir comentários sobre a qualidade do material, as relações entre vários excertos da entrevista, etc.; c) Uma síntese sob forma de memorando que faça o ponto da análise. Este memorando deve visar uma explicitação das principais propostas provenientes da análise. A este propósito, é possível falar de uma nota teórica intermediária.” (id.: 135). Depois da Etapa 1, e de termos definido a grelha de análise, que vai reflectir tudo aquilo que se que saber e que não difere muito do índice que vai orientar todo o trabalho, temos que codificar os dados e realizar uma comparação sistémica. Como lembra, Maroy, “Esta fase ocorre no fim do período de observação. Consiste numa comparação sistemática do material recolhido, o que implica, como é óbvio, que a grelha de análise tenha assumido uma forma suficientemente elaborada. Todo o material pertinente é codificado segundo uma grelha de codificação coerente, quase definitiva, e o tratamento é mais sistemático. A partir desta 117 codificação, dispomos de uma classificação de diversos excertos de entrevistas, cuja origem é especificada (por exemplo, entrevista n. 5, p. 7, linha ou parágrafo 3). Cada excerto é codificado, isto é, atribuído a uma ou mais categorias da grelha de análise. Isto pode ser feito simplesmente pela anotação, à margem da entrevista, do tipo de aspecto da grelha a que este excerto se refere: por exemplo, formas de transmissão, organização anterior da produção, etc.” A codificação dos dados vai facilitar que se façam análises comparativas tanto horizontais como verticais. A comparação horizontal é a aproximação das diferentes grelhas de análise que cada entrevista utilizou (ou comparação de várias monografias); a comparação vertical é a aproximação das diversas categorias de uma mesma grelha de análise. No final, a grelha poderá integrar ambos os tipos de comparações, isto é, entre os vários informantes e entre os vários temas focados, que agora são tratados como categorias de análise, ou unidades de singificação, sendo possível relevar o fundo problemático que padroniza as diferentes opiniões (ver Tabela). Categorias (unidades de significação) Informantes Categoria A Categoria B Categoria C 1 2 3 Este trabalho de comparação é muito importante para se poderem obter visões holísticas sobre os problemas. Através da comparação sistemática pretende-se reduzir os dados de entrevistas e depois apresentá-los sob uma forma que facilite a comparação a um nível mais geral. A visão holista da realidade aconselha que se apliquem diagramas e esquemas que demonstrem a conjugação existente entre as partes da grelha de análise. A utilização de gráficos e de 118 esquemas tem a grande vantagem de reduzir a realidade e de a ilustrarmos de uma forma simples e facilmente perceptível. Miles e Huberman (citados por Maroy, id.) defendem que se deve representar por gráficos e esquemas os resultados das análises, de modo a podermos ver facilmente as relações existentes entre os contextos e o tipo que essas relações assumem. Os autores indicam que as vantagens da esquematização são sobretudo visíveis em três casos particulares:  “Um gráfico que apresente o contexto de um acontecimento ou de uma situação analisada;  O gráfico de evolução dos acontecimentos: trata-se de relacionar acontecimentos, o estado de uma ou duas variáveis e o tempo;  A rede causal: trata-se de apresentar, sob forma de gráfico, as principais variáveis dependentes ou independentes de um estudo. As propostas que foram sendo formuladas nas fases 1 e 2 “poderão ser submetidas a um trabalho de validação mais sistemático, que terá a vantagem de desembocar em propostas mais finas.” (Maroy, id.). Este trabalho de validação de proposições que derivam da grelha de análise deve ser feito sempre, mesmo que pareça que não é necessário, e deve constituir uma etapa diferente no processo de análise dos dados. Com este depuramento das proposições, procura-se evitar o enviesamento da realidade por força de conclusões ou atalhos tomados irreflectidamente. Huberman e de Miles (id.: 147-9) alertam para três tipos de enviesamento da realidade principais: 1. “O enviesamento totalizador (holistic fallacy): consiste em “sobreinterpretar” os dados, em interpretá-los de forma mais organizada e congruente do que aquilo que são na realidade; 119 2. O enviesamento endígena: significa perder a própria visão do que se passa num local observado, sendo progressivamente “cooptado” pelos indivíduos desse local, cujas evidências e situações “naturais” vão sendo gradualmente partilhadas; 3. O enviesamento elitista: consiste em atribuir excessiva importância àquilo que as pessoas mais informadas, mas também mais acima, forneceram como informação em detrimento da que as pessoas mais marginais, de menor estatuto, teriam podido dar.” Maroy propõe, para se evitarem estes enviesamentos e os seus perigos, que se utilize um conjunto de “(…) tácticas de investigação, que garantam a qualidade dos dados, por um lado, e para validar o mais possível as hipóteses, as propostas ou mesmo os modelos explicativos propostos, por outro.” (id.). Assim, no plano da análise dos dados, o investigador/entrevistador deverá: Assegurar-se da qualidade dos dados, recorrendo a três procedimentos: 1) zelar pela fiabilidade dos dados, 2) assegurar-se da validade factual de uma informação, e 3) ponderar os dados em função da sua qualidade. A fiabilidade dos dados está relacionada com os procedimentos tidos pelo investigador e que provocaram enviesamentos da realidade. Para se evitar esses enviesamentos, Christian Maroy propõe que se apliquem as seguintes técnicas: a) Minimizar os efeitos do investigador sobre o campo, seguindo as seguintes propostas: o “Permanecer o mais possível no campo; passar uma parte do tempo a adaptarse ao “campo”, à sua “cultura” própria (isso só é possível no caso da observação participante); o Utilizar métodos “discretos”: B. Glaser e A. Strauss chamam a estas técnicas “escutar à porta”. Com efeito, trata-se de aproveitar, no momento da recolha, 120 qualquer informação recolhida sem que tenha realmente sido suscitada pelo investigador; o Assegurar-se de que o seu mandato é claro para os informadores: quem é, porquê, o que estuda, o que vai fazer com isso; o Cooptar um informador, pedir que esteja atento à sua influência sobre o campo (isto também é possível no caso da observação participante); o Fazer entrevistas “fora do local”, fora do campo do inquérito propriamente dito.” (op. cit.: 150) b) Minimizar os efeitos do campo sobre o investigador, seguindo as seguintes propostas: o “Evitar o enviesamento elitista, entrevistando pessoas que não estejam directamente ligadas ao problema tratado; o Evitar ser “cooptado” pelo campo, passando algum tempo fora dele; o Incluir na amostra os dissidentes, os isolados, para não captar exclusivamente a corrente dominante; o Triangular os dados; o Se se sentir “levado” por um informador, interrogar porque razão o faz; o Mostrar as suas notas de campo a outro investigador, que verá rapidamente se se deixou cooptar pelos elementos do campo observado; o Conservar a sua problemática em mente para evitar ser arrastado por acontecimentos espectaculares.” 121 Para assegurar a validade factual da informação importa “triangular” os dados recolhidos. “A triangulação é um modus operandi para obter uma confirmação de um dado que consiste em multiplicar as fontes e os métodos de recolha (por exemplo, cruzar testemunhos sobre os mesmos factos, ou melhor, testemunhos e dados factuais). É particularmente útil quando se visa obter informações factuais sobre uma realidade, e não apenas representações construídas de um ou de outro actor.” (Maroy, op. cit.: 151) “A solução ideal é obter indicadores independentes de uma mesma realidade, recolhidos em fontes diferentes por métodos diferentes. Em suma, trabalha-se um pouco como um detective, que tem de constituir uma prova a partir de uma série de testemunhos, de indícios materiais, de análise dos empregos do tempo… A diferença entre um inquérito policial e um inquérito sociológico depende sobretudo do facto de este último procurar e obter muitas vezes mais colaboração por parte dos entrevistados.” (id.) Para ponderar as propostas avançadas um função da “qualidade” dos materiais recolhidos, Maroy alerta para o facto de algumas informações são melhores do que outras simplesmente porque o informador também informa melhor. Um informador bom aumenta a qualidade dos dados. A qualidade dos dados deve ser, portanto, uma preocupação que acompanha o investigador no campo e depende dos tipos de contactos que haja ao seu dispor. Importa, portanto, que se validem as hipóteses com base na qualidade dos dados que temos ao nosso dispor. No fundo, os dados vão testar as hipóteses explicativas. Mas como? Maroy avança com algumas técnicas, tais como: o Proceder a um trabalho comparativo. Esta fase, trabalhada a partir das categorias da grelha de análise, vai contribuir para o surgimento de novas hipóteses explicativas; o Investigar activamente contra-exemplos, casos negativos que parecem invalidar as propostas que formularam; 122 o Procurar o significado das excepções ou dos casos extremos: esta táctica aproxima-se da anterior. Ao analisarmos as excepções ou os casos extremos, temos grandes hipóteses de melhorarmos a compreensão dos casos modais; o Testar ou pesquisar explicações alternativas: se avançámos uma proposta relativamente satisfatória, não será, todavia, inútil testar hipóteses alternativas. Com efeito, é raro estarmos em presença de fenómenos com um único factor explicativo. É possível pôr em evidência outros factores. Desta maneira, provase por vezes o impacto destes factores; o Fornecer um feedback às pessoas do campo: devolvendo às pessoas do campo um primeiro feedback das análises feitas, temos a possibilidade de testarmos algumas hipóteses que surgiram. O procedimento de análise das entrevistas não difere muito do procedimento de análise dos dados obtidos através da observação. Também aqui, é necessário construir uma grelha de análise, codificação os dados e compará-los de forma sistemática com o intuito de formalizar os meios de validação (ou levantamento) das hipótese. Como vimos quando falámos do diário de campo (onde se registam as observações), recorre-se a códigos e esquemas para se salientar as relações entre os elementos descritos e o valor dessas relações (negativo, positivo ou neutro). Porém, a usual grande quantidade de dados obtidos durante o trabalho de campo obriga o investigador a desenvolver uma grelha de análise que permita realizar uma triangulação de todas as informações dentro do mesmo conjunto de categorias que serviram de fundamento teórico para o problema entre todos os informantes que forneceram essas informações. Como em tudo o mais, a experiência do investigador é reveladora da qualidade da análise que ele realiza e, quando os materiais a analisar são volumosos, essa experiência pode ser preponderante para o investigador desenvolver uma análise simultaneamente criativa e crítica. 123 4.2.4.2.4. Potencialidades e limitações da entrevista As entrevistas devem ser tomadas como métodos complementares da observação participante e devem respeitar o que a problemática da investigação definiu como útil de se estudar. Pela sua natureza técnica, a entrevista fornece-nos informações preciosas sobre o campo e mesmo sobre os conceitos que usamos para o estudar, mas também omite muitas outras, especialmente se for feita de maneira formal com perguntas focalizadas. Destacam-se como principais potencialidades da entrevista as seguintes:  Capta muita informação tanto em profundidade como em detalhes e permite a compreensão global dos pontos de vista do entrevistado.  Pode ser utilizada como complemento da técnica da observação, já que permite captar sentidos que não podem ser observados.  É especialmente útil na fase exploratória da investigação, pois fornece informação válida para formular hipóteses e para fazer o esboço da investigação.  Pode ser empregada na fase final da investigação quantitativa. Por sua vez, as principais limitações da entrevista são as seguintes:  O tempo. É uma técnica que requer muito tempo de aplicação.  Como com outras técnicas, comparte os problemas de fiabilidade, reactividade e validade.  Não permite observar o cenário objecto da investigação, retalhando-o e seleccionando partes. 124 4.2.4.3.O questionário Alguns autores, entre os quais Carmo e Ferreira, entendem que todos os procedimentos de aquisição de informações que recorrem a guias de registo são inquéritos. O que se passa é que a inquirição é feita de dois tipos: por entrevista, como já vimos, e por questionário. As entrevistas dominantemente formais (tanto com perguntas fechadas, tipo 6, como com abertas, tipo 5) são denominadas inquéritos por questionário. As outras, tanto as entrevistas mistas como as dominantemente informais, são denominados inquéritos por entrevista. A diferença fundamental entre os dois tipos de inquérito é a mesma que existe entre os tipos de entrevistas que se encontram nos pólos (as entrevistas clínicas e em profundidade e as entrevistas com perguntas abertas e fechadas; as entrevistas com perguntas directivas e as que têm perguntas não directivas). Conforme se pode dizer que uma entrevista é uma forma de inquérito, pois inquire, também se pode dizer que um inquérito é um tipo de entrevista, pois baseia-se numa troca de informações, numa interacção social. À parte estes preciosismos de designação, vamos agora ver quais são as características do inquérito. 4.2.4.3.1. As características do inquérito por questionário A característica que distingue o inquérito por questionário do inquérito por entrevista é o facto de aquela interacção social ser muito fictícia, pois é efémera e impede uma igualdade de elementos transmitidos entre os interlocutores. Quando se aplica um inquérito, o investigador obtém mais informação do que o entrevistado. Este apenas poderá saber o nome do investigador no seu cartão de identificação, e pouco mais. Há, nos casos de aplicação de inquéritos, um tipo especial de interacção entre o entrevistador e o entrevistado: a interacção indirecta. A interacção indirecta faz-se quando uma das partes interage através de um meio que não a sua presença: o objectivo da investigação é normalmente interventivo, pelo que, não é tanto o 125 investigador que interage com os investigados, mas sim estes que interagem com os problemas levantados pelo investigador. Todo o sentido da sua colaboração está dirigido para as problemáticas levantada pelas perguntas, e não para o investigador em si. Para que um questionário seja bem elaborado, é essencial fazer-se uma boa construção das perguntas (Carmo e Ferreira, 1998). 4.2.4.3.2. Cuidados na construção de um questionário a) Cuidados quanto à formulação das perguntas De acordo com Carmo e Ferreira (id., 137 e segs.), um questionário deve ter quatro tipos de perguntas: o Perguntas de identificação “(…)destinam-se a identificar o inquirido, quer através do nome, quer através da sua pertença a dados grupos sociais, tais como de idade, género, profissão, habilitações literárias, etc.); o Perguntas de informação “(…) têm por objectivo colher dados sobre factos e opiniões do inquirido (…); o Perguntas de descanso, “(…) servem para intencionalmente introduzir uma pausa e mudar de assunto, ou para introduzir perguntas que ofereçam maior dificuldade); o Perguntas de controlo, “(…) destinadas a verificar a veracidade de outras perguntas insertas noutra parte do questionário).” Para obter medições sobre as atitudes e opiniões do inquirido, o investigador pode optar pela aplicação de uma Escala de Atitudes. Estas têm a intenção de saber como reagem os indivíduos em relação a proposições que se lhes apresente. Como tal, estas proposições são afirmações e, por isso, não têm como objectivo obter respostas dicotómicas do tipo “SimNão”. A utilização de escalas de atitudes tem duas grandes vantagens: por um lado, permitem 126 tratar quantitativamente características qualitativas, por outro, permitem medir as intensidades das atitudes dos respondentes. De entre as escalas de atitudes mais aplicadas, distinguem-se a Escala de Likert e a Escala de Diferenciais Semânticos, de Osgood et al. (1957). A primeira “(…) consiste na apresentação de uma série de proposições, devendo o inquirido indicar uma das cinco proposições, tais como “concorda totalmente”, “concorda”, “sem opinião”, “discorda”, discorda totalmente”. As respostas são seguidamente cotadas, respectivamente com as cotações de -2, -1, 0, 1, 2, ou com pontuações de 1 a 5.” (Carmo e Ferreira, op. cit.: 143), dentro de um diagrama como este: 1 2 3 4 5 Totalmente Totalmente de acordo em desacordo O inquirido marca uma cruz na casa que escolher e que é valorizada pelo inquiridor. A segunda “(…) consiste na apresentação de diversos pares de adjectivos bipolares (antónimos) separados de uma linha geralmente dividida em 7 ou 5 partes. O indivíduo deverá colocar uma cruz no intervalo correspondente à sua atitude relativamente a um determinado tópico.” (id.). Por exemplo: Interessante ___ ___ ___ ___ ___ ___ ___ Aborrecida Útil ___ ___ ____ ___ ___ ___ __ Inútil 127 É dada uma cotação a cada par de adjectivos (ex: de 6, no caso de assinalar o intervalo mais próximo do adjectivo positivo. Faz-se o somatório das cotações para ter uma apreciação quantitativa relativa à atitude do inquirido face ao tópico considerado.” (ibidem). Os autores apresentam ainda um plano que alerta para toda uma série de cuidados que devemos ter quando queremos construir um inquérito por questionário. Para que este seja bem construído é preciso ter cuidados especiais quanto à formulação das perguntas e quanto à apresentação do questionário. A formulação das perguntas deve seguir os princípios gerais apresentados anteriormente; a apresentação do questionário vai merecer uma maior atenção a partir de agora. O objectivo principal desta prudência quanto à realização dos questionários de inquérito é o facto de que é necessário elucidar o mais possível o entrevistado. Visto que o contacto é breve, e que não há tempo para a apresentação oral do inquérito, nem a explicação de certos pormenores relacionados com ele, é necessário que se contribua para que o questionário traga o maior número de respostas respondidas, afinal, é nas respostas que está encerrada a informação e os dados da investigação. Para que os inquiridos contribuam da melhor forma, e não haja respostas em branco, o inquiridor tem que ter certos cuidados. Vejamos agora que cuidados ele deve ter para evitar a “desistência” dos inquiridos. A apresentação formal e física do questionário é muito mais importante do que aquilo que se possa pensar. A apresentação do inquérito legitima e responsabiliza os dados que puderem ser adquiridos através dele. Segundo Carmo e Ferreira (id.: 144), a apresentação do questionário deve ter em conta: a) “A apresentação do investigador: deve conter elementos indispensáveis para o credibilizar aos olhos do inquirido. 128 b) A apresentação do tema, por sua vez, deve ser feita de forma clara e simples, mostrando o valor acrescentado que o inquirido pode trazer à investigação com as respostas que forneça. c) As instruções devem ser precisas, claras e curtas: quando são ambíguas ou demasiado complicadas tornam-se contraproducentes, como nos diz a nossa experiência de cidadão quando temos, por exemplo, de preencher certos impressos que constituem autênticas charadas. d) Sempre que enviado pelo correio, o questionário deve ser acompanhado de um envelope selado ou com resposta paga. A qualidade e a cor do papel devem ser adequadas ao público-alvo. A qualidade do papel deve ser suficientemente boa, para que as perguntas possam ser impressas no verso e reverso da folha. e) A sua disposição gráfica deve ser tão clara quanto possível e adequada ao públicoalvo. Por exemplo, não é conveniente usar quadros de duas entradas num formulário para ser preenchido por uma população que não está familiarizada com esse tipo de suporte de informação. A mancha gráfica deve ser aberta e visualmente atractiva. f) O formulário deve ser alvo de rigorosa revisão gráfica evitando gralhas ortográficas e erros sintácticos que naturalmente fazem baixar a credibilidade do inquérito aos olhos do respondente. g) O número de folhas deve ser reduzido ao mínimo, para evitar reacções prévias negativas por parte do inquirido. É inconveniente informá-lo do tempo médio previsto para a resposta. Em suma, a construção de um formulário deve obedecer a dois critérios: clareza e rigor na apresentação e comodidade para o respondente.” O quadro seguinte sintetiza os cuidados a ter na elaboração do questionário. 129 QUANTO ÀS PERGUNTAS:  Reduzidas q.b.  Tanto quanto possível fechadas  Compreensíveis para os respondentes  Não ambíguas  Evitar indiscrições gratuitas  Confirmar-se mutuamente  Abrangerem todos os pontos a questionar  Relevantes relativamente à experiência do inquirido QUANTO À APRESENTAÇÃO DO QUESTIONÁRIO  Apresentação do investigador  Apresentação do tema  Instruções precisas quanto ao seu preenchimento  Envelope selado para resposta  Qualidade e cor do papel  Disposição gráfica  Quadros  Número de folhas Quando se opta pela utilização da técnica do inquérito, seja ele por entrevista ou por questionário, deve-se ter em conta as vantagens e desvantagens de cada tipo de inquérito. Carmo e Ferreira (1998) compararam alguns aspectos positivos e negativos tanto do inquérito por entrevista como pelo inquérito por questionário (ver Quadro seguinte): TÉCNICA o Inquérito por entrevista Inquérito por questionário o o o o o PRÓS Flexibilidade quanto ao tempo de duração, adaptação a novas situações e a diversos tipos de entrevistados Profundidade (permite observar o entrevistado e colher informações íntimas ou de tipo confidencial). Sistematização Maior simplicidade de análise Maior rapidez na recolha e análise de dados Mais barato CONTRAS o o o o o o Requer maior especialização do investigador Custa mais caro Gasta mais tempo Dificuldades de concepção Não é aplicável a toda a população Elevada taxa de não respostas 130 4.2.4.4.O material biográfico: histórias e documentos pessoais O método da história de vida pode confundir-se com a entrevista biográfica, livre e não directiva. Todavia, fazer uma história de vida é fazer mais do que uma entrevista, é relatar de todas as formas pertinentes, um conjunto de dados de proveniências diversas, que têm que se colhidos com outras técnicas que excedem o procedimento da entrevista. Fazer uma história de vida é inquirir alguém sobre o seu passado, mas inquirir num sentido aberto, livre, onde o inquirido possa acrescentar algo de informal à informação. A história de vida justifica a sua pertinência enquanto técnica pela necessidade que há de registar a vida das pessoas, e essa vida apresenta-se sobretudo na forma de memórias, traduzidas em palavras e imagens que é necessário fixar. A esmagadora maior parte da informação da vida de alguém está na forma não material, é transmitida por via oral. Esta peculiaridade da cultura que se transmite por via oral cedo exigiu a implementação de um método que cristalizasse o sentido. Quando este é captado através de uma história de vida podemos obter inúmeras informações de proveniências diversas e que reflectem experiências de vidas dos inquiridos que remetem para escalas de significação mais amplas, estendendo-se ao nível regional, nacional e internacional. Este aspecto faz com que as histórias de vida sejam consideradas instrumentos preciosos para investigar a questão da imigração e da mobilidade humana em geral. Através da história de vida podemos captar informações sobre os contextos da saída das populações dos seus lugares de origem e sobre a estrutura de sentido que a cultura popular dá ao acontecimento da mudança de país. Como referem Garrido e Olmos (1998: 2), as histórias de vida são “reproduções da palavra falada, testemunhos que formam parte do presente e têm grande importância para o futuro.” A necessidade de utilizar a técnica da história de vida de forma sistemática foi revelada pela vantagem que a técnica tinha para captar os padrões tradicionais da cultura que eram transmitidos por via oral. O estudo das redes de parentesco e de aliança passaram a ser motivo de atenção por parte dos antropólogos. Depois desta fase, a técnica da história de vida foi posta em segundo plano pela antropologia, não pela sua inoperância, mas talvez porque esta técnica é contrária às metodologias positivistas, baseia-se em deduções e induções que não 131 são muitas das vezes sequer considerados objectos de estudo. Depois da antropologia “abandonar” a história de vida, ela foi ressuscitada pela sociologia e foi aplicada em projectos de assimilação cultural nos EUA, servindo para se conhecerem os imigrantes, como forma de os orientar na cultura que os acolhia. Na Europa surgiram também trabalhos onde a história de vida foi utilizada, especialmente para se falar de novos indivíduos gerados pela idade industrial e que eram um pouco vistos como marginais, ou como minorias, tais como o emigrante, o operário, o pastor, o indígena, etc. Os trabalhos românticos sobressaíram novamente e a história de vida demonstrou que há um imenso universo de sentido que é necessário estudar e registar, mesmo que o método a aplicar não seja positivista. O romancista Flaubert foi mesmo o que primeiro se interessou de forma especial pelas histórias de vida, dando origem a um movimento conhecido mais tarde por Neo-realismo, cuja filosofia enaltecia as figuras do anti-herói, do anónimo, do desconhecido. A legitimidade da história de vida enquanto técnica e a justificação da sua pertinência é bem apresentadas por Garrido e Olmos, quando dizem que: “A história oral como processo descritivo e narrativo é tão antiga como a própria história, de modo que em sociedades ágrafas era a transmissão oral a forma de perpetuar os acontecimentos, conhecimentos e saberes. Neste âmbito, as histórias de vida prolongam o processo de comunicação e o desenvolvimento da linguagem para reproduzir uma esfera importante da cultura do informante e o seu aspecto simbólico e interpretativo, a partir do qual se reproduz a visão e versão dos fenómenos pelos próprios actores sociais.” Por isso, tanto a história oral como a história de vida são “espaços de contacto e influência interdisciplinar (que permitem, através da oralidade, trazer interpretações qualitativas de processos e fenómenos histórico-sociais” (Aceves 1994: 144). De maneira que a história de vida não se apresenta como uma técnica exclusiva da história ou da antropologia, também muito válida para outras áreas das ciências sociais, como a sociologia ou a psicologia social (Pujadas 1992).” (Garrido e Olmos, 1998:3 trad. nossa). A história de vida foi introduzida na sociologia através da Escola de Chicago. Thomas, Znaniecki e Rock fizeram histórias de vida e trabalhos sobre os camponeses polacos, 132 valorizando a posição do actor social e relevando o carácter interpretativo dos seus depoimentos. Esta ênfase no actor fundou o núcleo da teoria interaccionista simbólica, o principal produto da Escola de Chicago. Garrido e Olmos avançam com uma definição de “história de vida” que é bastante completa: “(…) quanto ao conceito de “história de vida”, como técnica etnográfica, é necessário realizar algumas precisões: por “história” entendemos a história em minúsculas, de “personagens sem importância”: não se refere às façanhas de heróis e grandes conquistadores, homens de ciência, políticos ou banqueiros famosos; mas ao contrário, é o reflexo de uma vida simples, sem fama nem glória. Quanto ao termo “vida”, também se diferencia das biografias que narram os escritores ou as memórias que descrevem pessoas de relevância política, histórica ou social; é sobretudo um relato contado em primeira pessoa por um protagonista qualquer, de “um homem da rua”; mas que tenha que ter uma certa fluidez de expressão e tenha uma boa memória.” (id.). Para fazer uma história de vida é necessário ter cuidados a dois níveis: ao da preparação técnica e ao da preparação teórica. A preparação técnica implica a selecção e estabelecimento do contacto, a pesquisa documental e as entrevistas exploratórias. Garrido e Olmos lembram que o investigador dever guardar uma “distância cínica”, como Berg (1990) chamou ao facto de o investigador manter uma expressão de presença que se regula pela neutralidade: nem apatia, nem empatia, como forma de se evitar que o relato degenere em história imaginária, onde possa interferir informação fictícia. Todavia, o investigador não se limita a estar ali, ele tem a função de estimular e motivar a conversa. O desejo de falar, por parte do informante, deve ser mantido e continuado. Como referem Garrido e Olmos (op. cit.: 6), “um bom investigador que trabalhe com esta técnica tem que ter presente vários aspectos: um, que, por se tratar de uma autobiografia, deve existir uma identidade entre o narrador e o narrado; dois, tem de criar-se um ambiente 133 relaxado e que estimule a vontade de falar e a comunicação; três, procurará, reconduzindo-a, se for preciso, que a narração não seja exclusiva da vida do informante, mas também que a introduza no seu contexto espácio-temporal: que descreva lugares, outros personagens, factos históricos, etc., tal como os percebeu naquela altura.” Para registar os dados fornecidos pela técnica da história de vida, é preciso sobretudo usar um meio de gravação de voz, embora o ideal seja mesmo a gravação em vídeo, que regista, além dos sons, atitudes, posturas, gestos, comportamentos, expressões, enfim, a expressão corporal e a comunicação não verbal em geral. Esta comunicação não verbal é de imensa importância, pois reflecte o que o actor está a sentir no momento em que diz o que se ouve. Um outro suporte fundamental, como não poderia deixar de ser, é o diário de campo, um pequeno caderno onde possamos tirar registos mais alargados, não apenas centrados no informante, mas que abrange toda a investigação. O manancial de informações que se adquire com o método da história de vida é registado e depois é necessário tratar os dados, o tratamento dos dados começa com a transcrição do que foi gravado, com todas a peculiaridades do discurso que o informante empregou, primando-se pela autenticidade da informação e da tradução da mesma através das palavras. A preparação teórica consiste em fazer-se um esboço do que se quer encontrar na história de vida, para se poder distinguir a informação nuclear da acessória em relação à problemática da investigação. Antes de mais, o investigador deve definir se a biografia é directa ou indirecta. A biografia directa caracteriza-se pelo registo dos relatos pelo próprio que constitui assunto de biografia; a biografia indirecta inclui um intermediário. Este tipo de história de vida é o escolhido pela antropologia, ademais, porque o processo de registo da história de vida para fins científicos, não fictícios, deve ser feito no quadro de uma investigação. Ao se decidir pela história de vida indirecta, o investigador vai escolher a forma de abordar a informação: ou faz uma entrevista temática, focada num determinado assunto da vida da pessoa (o que implica maior directividade e, por consequência, a presença de orientações do discurso), ou uma entrevista exaustiva, não focalizada, que abrange toda a vida do indivíduo. 134 Esta escolha está relacionada directamente com o problema que queremos levantar no nosso estudo, por isso é importante que se faça esta preparação teórica. Além destas regras, a técnica da história de vida funciona como uma entrevista semi-directiva. A directividade imprimida na entrevista pressupõe alguma familiaridade com o campo e com os assuntos que se vão debater. Também aqui é necessária uma preparação teórica. Tem que se ter em conta que o conhecimento, arrumado na memória, não se manifesta por datas. A história de vida não é uma entrevista com uma forma cronológica, é necessário ter muita paciência para imbricar as informações que nos vão sendo dadas de modo fragmentado. O investigador deve ter sempre presente que há uma realidade implícita e uma realidade explícita. Com esta preparação teórica, o investigador está a encaixar definitivamente o resultado da técnica da história de vida no todo da sua investigação. Pode acontecer com a história de vida o que acontece com as outras técnicas: pode ser uma técnica auxiliar de observação; mas a história de vida é talvez a única técnica que permite abarcar todas as dimensões do real e fornecer um registo bastante detalhado de fenómenos e de contextos, objectivo que mais nenhuma técnica pode atingir. Estamos, portanto, no plano da análise das histórias de vida. Em resumo, para se fazer uma boa história de vida é necessário, sobretudo: a) Escutar o informador entrevistado (escuta activa, atenta – uma presença interactiva), facilitando o diálogo, ampliando-o, desenvolvendo-o sem nunca travar o fluxo de informação; b) Reler o texto escrito com o informador para testar as informações, a sua veracidade, possíveis dúvidas, para que o próprio informador seja crítico das suas próprias informações; c) Abrir o texto noutras direcções, utilizando, por exemplo a entrada de outras pessoas na história; 135 d) Recolher outras informações por outras vias: objectos, documentos, espaços, observações. A função deste trabalho não é fixar o conhecimento de certo indivíduo, é fornecer indicadores sobre o contexto de formação desse conhecimento. Por outras palavras, não é a singularidade da vida daquele indivíduo que importa registar, mas sim a forma como a história passou por aquele indivíduo. É precisamente na fase da análise que o método da história de vida adquire maior complexidade. A análise começa mesmo antes de surgir a preparação técnica da história de vida, ela começa na preparação teórica, pois é aí que já se fazem formulações de hipóteses e de proposições que definem os conceitos mais importantes a explorar na entrevista e na história de vida em geral. A preparação teórica é, portanto, um modo de atalhar entre a construção da forma da história de vida e a análise da prévia dos resultados obtidos pelas hipóteses que o modelo de análise da investigação articula. Depois do enquadramento da história de vida no modelo de análise da nossa investigação, vamos agora ver como é que se continua com a análise das histórias de vida. Além das questões que importa ter presentes quando se realiza outros tipos de entrevista, fazer uma história de vida implica também que se saibam os temas sobre os quais vamos querer maior exploração por parte do nosso informante. Depois de registarmos as informações vamos ver que as mesmas constituem apenas cerca de um terço da matéria bruta adquirida pela entrevista. Depois de termos as informações, somos nós, investigadores, que vamos ter que dar um fio condutor às informações. Um fio condutor sintético, lógico, sequencial e mais leve do que o texto bruto. Mexer no conteúdo da informação deve ser uma acção bem justificada, pois toda a informação, à partida, tem sentido onde está. Como se disse, a análise das informações, em princípio, já foi começada no trabalho de campo e está registada no diário de campo. Aí, o investigador já deixou previamente margens 136 para escrever as suas anotações, que são já indicadores para análise. A identificação prévia dos registos é outro procedimento importante, bem como a exaustividade com que os dados foram registados, desde palavras, interjeições, atitudes, gestos, expressões, etc. Os gestos, sobretudo, devem ser registados, pois eles comunicam, mesmo sem palavras, são autónomos comunicativos. Passar os dados da história de vida da oralidade para a escrita não é fácil; deve fazer-se de modo prudente e tendo-se em conta que não se está a fazer uma simples tradução, está também a fazer-se uma montagem prévia da informação, arrumando-a no seu compartimento próprio. A história de vida divide as suas maiores atenções para dois níveis de informações: os factos e as experiências. Quando se faz uma entrevista prolongada corre-se o risco de se irem criando resistências ao exterior. O informante receia que algum medo recalcado seja descoberto pelo investigador e arranja defesas para evitar que o investigador lhe entre no íntimo. O investigador deve ter em conta que os relatos feitos pelo informante não são mais do que socializações de informações que estavam individualizadas. François Laplantine (1992 [1986]) utilizou a técnica da entrevista com doentes, enfermeiros e médicos e procurou saber o que é que o doente sabia sobre a sua doença, como é que ele interpreta o discurso oficial, da medicina, procurou saber igualmente o que podia através dos discursos paralelos e dos documentos à volta da doença. Como se deve adivinhar, a análise das histórias de vida mobiliza um conjunto de métodos que podem ser a análise documental e de imagem, passando pela análise do discurso e pela análise de conteúdo. Todas elas requerem uma atitude interpretativa (hermenêutica) que assista ao valor qualitativo das representações gráficas e linguísticas. Antes de mais, o investigador deve percorrer os mesmos passos que utilizou na sistematização dos dados obtidos pela observação e pelas entrevistas em geral. Num segundo plano, tendo discernido as categorias de análise através da leitura atenta do material, que permitiu revelar os padrões escondidos, o investigador deve partir do texto para o contexto. Este movimento obriga a que se integre a informação com as forças sociais que as motivaram: trata-se da análise do discurso, a qual 137 procura na ausência do texto aquilo que é sugerido por ele, isto é, vai procurar o sentido socio-histórico das informações que o entrevistado forneceu. Para esse efeito, o investigador poderá ter que investigar outros documentos de cariz histórico, recorrendo a arquivos (pessoais, distritais, etc.) ou outros espólios (como, por exemplo, colecções pessoais). Trata-se de um processo muito demorado e requer mestria. A análise de conteúdo é essencialmente quantitativa. Através dela, dá-se relevo à frequência das categorias linguísticas (análise categorial) comunicadas pelo informante em determinada categoria de análise. Essa frequência revelará a estrutura do pensamento que suportou as declarações obtidas (análise estrutural). Na análise das histórias de vida podem esgotar-se todas as possibilidades metodológicas da análise do conteúdo. Estas possibilidades são apresentadas no ponto seguinte. 4.3.A Análise As três operações da análise das informações propostas por Quivy e Campenhoudt têm como função “(…) interpretar os factos inesperados e rever ou afinar as hipóteses para que, nas conclusões, o investigador contribua para a discussão das implicações do seu estudo no presente e para o futuro.” (2005: 211). Inicialmente com a aparência de um processo, a investigação encaminha-se agora para o retorno ao princípio, e ao levantamento do problema. A investigação transforma-se num ciclo. As três fases da análise dos dados propiciam esse regresso ao início, à altura em que se pôs o problema, atentemos nelas: 1) preparação dos dados (descrever e agregar); 2) análise das relações entre as variáveis; 3) comparação dos resultados observados com os resultados esperados e a interpretação das diferenças. Através da análise dos dados tomamos presente cada vez mais as hipóteses que pusemos à partida, testando-as e confirmando-as ou infirmando-as. No fundo, teremos que voltar a pegar no plano inicial da investigação, ver o que mudou, porquê e fazer um relatório disso tudo. Esquematicamente, veríamos um percurso como este: 138 Plano de investigação ou operacionalização Hipótese e Observações conceptualização Análise das informações (Fonte: Quivy e Campenhoudt, 2005: 236) Nós encontramo-nos da etapa da análise das informações. Estamos a chegar da etapa da observação (a 5ª etapa de Quivy e Campenhoudt), estamos a analisar os materiais que recolhemos no campo (6ª etapa) e estamos a reflectir sobre o problema posto inicialmente (1ª etapa, a da elaboração da pergunta de partida) e construído na 4ª etapa (construção do modelo de análise). Na etapa da análise, o método da análise de conteúdo adquire especial destaque. Vale a pena reflectir sobre o que dizem Quivy e Campenhoudt (id.: 226 e segs.) a propósito dele: “contrariamente à linguística, a análise de conteúdo em ciências sociais não tem como objectivo compreender o funcionamento da linguagem enquanto tal. Se os mais diversos aspectos formais do discurso podem ser tidos em conta e, por vezes, examinados com uma minúcia e uma paciência de santo, é sempre para obter um conhecimento relativo a um objecto exterior a eles mesmos. Os aspectos formais da comunicação são então considerados indicadores da actividade cognitiva do locutor, dos significados sociais ou políticos do seu discurso ou do uso social que faz da comunicação. (...) Melhor do que qualquer outro método de trabalho, a análise de conteúdo (ou, pelo menos, algumas das suas variantes) permite, 139 quando incide sobre um material rico e penetrante, satisfazer harmoniosamente as exigências do rigor metodológico e da profundidade inventiva, que nem sempre são facilmente conciliáveis.” 4.3.1. Análise de Conteúdo Carmo e Ferreira (1998) apresentaram a definição de Berelson (1952, 1968) de “análise de conteúdo”. Para este autor, ela é “uma técnica de investigação que permite fazer uma descrição objectiva, sistemática e quantitativa do conteúdo manifesto das comunicações, tendo por objectivo a sua interpretação.” Carmo e Ferreira pormenorizam: Objectiva – porque a análise deve ser efectuada de acordo com determinadas regras, obedecer a instruções suficientemente claras e precisas para que investigadores diferentes, trabalhando sobre o mesmo conteúdo, possam obter os mesmos resultados. Isto pressupõe que eles cheguem a acordo sobre os aspectos a analisar, as categorias a estabelecer e a utilizar e a definição operacional de cada uma dessas categorias. Sistemática – porque a totalidade do conteúdo deve ser ordenada e integrada em categorias previamente escolhidas em função dos objectivos que o investigador atingir. Quantitativa – uma vez que na maior parte das vezes é calculada a frequência dos elementos considerados significativos. A análise de conteúdo não se cinge, todavia, ao que está escrito, ela debruça-se sobre as condições em que o documento se produziu e extrapola para o contexto sócio-histórico do surgimento do conteúdo (embora em menor importância que a análise do discurso). Esta associação entre os aspectos literais e os aspectos sociológicos é uma característica das análises de conteúdo. Como defendem Grawitz (1993) e Bardin (1977), a finalidade da análise de conteúdo não é apenas descrever o conteúdo das mensagens, é também, e principalmente, a inferência. Moscovici (1968) e Pecheux (1975) relevaram a importância da análise de conteúdo. De acordo com Ghiglione e Matalon (1992: 180 e segs.), houve quatro razões 140 principais que levaram à adopção de metodologias de análise de conteúdo ao longo da história: 1. Um primeiro tipo de procura do método da análise de conteúdo fez-se por motivos ideológicos e políticos, para se analisarem as mensagens da propaganda dos regimes políticos e dos partidos. No âmbito da análise dos discursos, especialmente os ideológicos, é interessante quantificar as qualidades presentes nos slogans. 2. “Um outro tipo de procura, de natureza clínica, foi a pesquisa de traços psicológicos dos indivíduos através dos seus escritos, representações, etc. (…) Numa óptica terapêutica, a análise de conteúdo ajudaria a construir um melhor diagnóstico e, eventualmente, poderia servir de instrumento terapêutico. Esta procura, de longe a mais importante, parte do postulado segundo o qual um dos equivalentes comportamentais dos problemas psíquicos reside nas perturbações do processo de comunicação. Numa outra óptica, ela poderá servir para predizer o comportamento de indivíduos numa determinada circunstância e face a um determinado objecto, ideia ou situação.” (op. cit.: 181). 3. “Um terceiro tipo de procura deveu-se ao aparecimento conjugado de trabalho em grupo e da psicoterapia de grupo, eles próprios ligados, no primeiro caso ao fracasso do trabalho individual para resolver problemas complexos (…), no segundo caso ao aparecimento de uma corrente baseada nas teorias de Moren.” 4. “Paralelamente e de forma “lógica”, emergiu uma outra procura, a da análise da tomada de decisão em circunstâncias determinadas. Na mesma ordem de ideias, as procuras económicas (estudos de motivação) ou industriais (análise de entrevistas ao pessoal visando modificar uma estrutura) viam o seu número aumentar.” (idem: 182) Sistematizando, as três grandes causas da manutenção do método de análise de conteúdo como um dos mais usados são políticas, económicas e terapêuticas (ver Quadro seguinte). 141 A análise de conteúdo traz muitas vantagens a nível analítico e permite descobrir frequências ao nível do discurso que revelam efeitos interessantes no âmbito social, quer seja familiar, profissional, ideológico, etc. Através da análise de conteúdo pode-se reduzir uma variedade de indicadores e de fenómenos a invariáveis numéricos e cristalizá-los na forma de fórmulas e de esquemas operativos. 1. Político-sociais 2. Económico 3. Terapêutico Principais aplicações da análise de conteúdo Análise de propaganda; estudo de processos de influência social; estudos globais de sociedades em função do need of achievement , ou do critério inner/other directions; análise de textos visando a elaboração de um parecer técnico (por ex., determinar se determinado jornal difunde propaganda inimiga); estudos visando a tomada de decisões em política externa. Estudos de motivação; estudos estruturais nas empresas; análise do funcionamento de grupos na resolução de um problema; análise da tomada de decisões (em situação normal, em situação de urgência, etc.); análise da circulação de informações no interior de uma estrutura; análise de funções; análise de comportamentos de consumo; análise de percepção da publicidade, etc. Análise da personalidade (personnal structure analysis); análise das ideologias. Análises específicas que dão lugar a medidas: DRQ (Disconfort Relief Quotient) para testar a relação entre as palavras desconforto e conforto num discurso e seguir a sua evolução; o PNAvQ (Positive Negative Ambivalente Quotient) próximo do DRQ; o TTR (Type Token Ratio) que mede a variedade do vocabulário; o AV (Adjective Verb) que mede o número de adjectivos por n verbos (medida utilizada no estabelecimento da distinção esquizofrénicosnormais), as desordens do discurso, a ansiedade, a hostilidade, etc. O ponto de vista de Quivy e Campenhoudt sobre a análise de conteúdo é mais abrangente do que os dos autores anteriores. Eles começam desde logo por dividir duas grandes variantes dos métodos de análise de conteúdo (variância essa que se faz pela predominância de letras ou de números na análise): a) Métodos de análise de conteúdo quantitativos, “(…) são extensivos (análise de um grande número de informações sumárias) e teriam como informação de base a frequência do aparecimento de certas características de conteúdo ou de correlação entre elas.” b) Métodos de análise de conteúdo qualitativos, “(…) são intensivos (análise de um pequeno número de informações complexas e pormenorizadas) e teriam como 142 informação de base a presença ou ausência de uma característica ou o modo segundo o qual os elementos do “discurso” estão articulados uns com os outros.”. Embora haja a tendência de usar um procedimento ou outro para fazer os trabalhos de investigação, as duas variantes combinam-se na maior parte das vezes no mesmo trabalho. Laurence Bardin (1977) foi quem mais se empenhou em classificar a variedade de métodos de análise de conteúdo, que resultava da extrema flexibilidade inventiva que os vários analistas emprestavam aos princípios da análise de conteúdo. Ela distingue três grandes categorias de métodos de análise de conteúdo: 1. As análises temáticas São análises que tentam principalmente revelar as representações sociais ou os juízos dos locutores a partir de um exame de certos elementos constitutivos do discurso. As análises temáticas subdividem-se em: a) Análises categoriais: O tipo de análise mais antigo e mais corrente. Consiste em calcular e comparar as frequências de certas características previamente agrupadas em categorias significativas. Baseiam-se na hipótese segundo a qual uma característica é tanto mais frequentemente citada quanto mais importante for para o locutor. b) Análises da avaliação: Incide sobre os juízos formulados pelo locutor. É calculada a frequência dos diferentes juízos (ou avaliações), mas também a sua direcção (juízo positivo ou negativo) e a sua intensidade. 2. As análises formais São as análises que incidem principalmente sobre as formas e encadeamento do discurso. As análises formais subdividem-se em: 143 a) Análise da expressão: Incide sobre a forma da comunicação, cujas características (vocabulário, tamanho das frases, ordem das palavras, hesitações…) facultam uma informação sobre o estado de espírito do locutor e suas tendências ideológicas. b) Análise da enunciação: Incide sobre o discurso concebido como um processo cuja dinâmica própria é, em si mesma, reveladora. O investigador está então atento a dados como o desenvolvimento geral do discurso, a ordem das suas sequências, as repetições, as quebras de ritmo, etc. 3. As análises estruturais São as que põem a tónica sobre a maneira como os elementos da mensagem estão dispostos. Tentam revelar aspectos subjacentes e implícitos da mensagem. As análises estruturais subdividem-se em: a) Análise de co-ocorrência: Examina as associações de temas nas sequências da comunicação. Parte-se do princípio que as co-ocorrências entre temas informam o investigador acerca de estruturas mentais e ideológicas ou acerca de preocupações latentes. b) Análise estrutural propriamente dita: Tem como objectivo revelar os princípios que organizam os elementos do discurso, independentemente do próprio conteúdo destes elementos. As diferentes variantes da análise estrutural tentam elaborar um modelo operatório abstracto, construído pelo investigador, para estruturar o discurso e torná-lo inteligível.” (id.: 229) Além das aplicabilidades possíveis do método de análise de conteúdo já referidas, ele é especialmente desenhado para: o Analisar ideologias, sistemas de valores, representações e aspirações sociais, vias de transformação dessas ideias; 144 o Examinar a lógica de funcionamento das organizações, graças aos documentos que elas produzem; o Estudar produções culturais e artísticas; o Analisar os processos de difusão e de socialização; o Analisar as estratégias, das regras que estão em jogo num conflito, dos componentes de uma situação problemática, das interpretações de um acontecimento, das reacções latentes a uma decisão, do impacto de uma medida…; o Reconstruir realidades passadas não materiais: mentalidades, sensibilidades, etc. As principais vantagens que o método de análise de conteúdo tem, de acordo ainda com Quivy e Campenhoudt, são as seguintes: a) Todos os métodos de análise de conteúdo são adequados ao estudo do não dito, do implícito; b) Eles obrigam o investigador a distanciar-se de si e da realidade; c) Têm como objecto uma comunicação reproduzida num suporte material (geralmente um documento escrito), permitem um controlo posterior do trabalho de investigação; d) A forma sistemática e metódica pela qual alguns métodos de análise de conteúdo são construídos permite a profundidade e a criatividade do investigador. Todavia, os autores identificam limites e problemas colocados ao método da análise de conteúdo: a) A análise categorial é demasiado simplista; b) A análise avaliativa é pesada e laboriosa; c) Cada método tomado como exclusivo é insuficiente. 145 De acordo com Ghiglione e Matalon (2005:183), numa situação de inquérito, a análise de conteúdo pode servir para atingir vários objectivos da investigação, tais como: o “Analisar as características do texto enquanto tal (“plano horizontal”). o Analisar as causas e antecedentes da mensagem (“plano vertical”). o Analisar os efeitos da comunicação. A primeira abordagem dá lugar a três comparações: o Entre documentos de uma mesma fonte; o Entre documentos de fontes diferentes; o Entre documentos e categorias externas, por exemplo, conceitos psicanalíticos.” A segunda remete para Osgood (1959) que sustenta que, neste caso, se procuram “as leis das relações entre os acontecimentos referenciados nas mensagens e os processos sociais mediatizados pelo indivíduo que as produz.” Esta abordagem conduz-nos à identificação das condições de produção dos textos e a evitar a acentuação sobre o indivíduo produtor (considerado como uma entidade independente de todos os procedimentos sociais).” (Ghiglione e Matalon, 2005: 183) “A terceira abordagem remete-nos para as análises sobre o campo da influência social e pode ser formulada da seguinte maneira: o consideremos um indivíduo A, cujas características comportamentais o levam a produzir uma mensagem X relativamente a um objecto Y, o consideremos um indivíduo B, cujas características comportamentais o conduzem a produzir uma mensagem X’ destinada a A, relativamente ao mesmo objecto Y, o : se, depois de ter ouvido a mensagem de B, A produz uma mensagem apresentando as características da mensagem X’, então a mensagem poderá ser referida ao comportamento de B.” (idem: 184). 146 A análise de conteúdo serve-se do seu conhecimento sobre as palavras e sobre a forma como elas se podem arranjar (e como esses arranjos podem ser categorizados e tipificar pessoas) para definir perfis óptimos de comportamento tanto de estruturas como de pessoas. A análise de conteúdo requer muito treino e, sobretudo, muito à-vontade na operacionalidade da técnica, para lhe poder retirar todos o potencial. A análise de discurso é sobretudo importante para analisar entrevistas e histórias de vida. Como lembra Jorge Vala, “Em muitos destes estudos, o investigador não dispõe de hipóteses de partida, reúne dados de forma controlada e sistemática que depois organiza e classifica. A análise de conteúdo é a técnica privilegiada para tratar, neste caso, o material recolhido. Ela poderá mostrar, por exemplo, a importância relativa atribuída pelos sujeitos a temas como a vida familiar, a vida económica, a vida profissional, a vida religiosa, etc.” (1986: 105). Jorge Vala apresenta um esquema que representa como o método da análise de conteúdo interfere directamente com a metodologia de investigação que está a ser desenvolvida: De acordo com este autor, quando se procede “à análise de conteúdo de um texto, um documento, uma entrevista ou qualquer outro material, o investigador formula uma série de perguntas que podemos sistematizar da seguinte forma: o Com que frequência ocorrem determinados objectos (o que acontece e o que é importante); 147 o Quais as características ou atributos que são associados aos diferentes objectos (o que é avaliado e como); o Qual a associação ou dissociação entre os objectos (a estrutura de relações entre os objectos.” (id.). Simultaneamente, o investigador deve seguir um número mínimo de operações, como: o “Fazer a delimitação dos objectivos e definição de um quadro de referência teórico orientador da pesquisa; o Constituir um corpus; o Definir categorias; o Definir unidades de análise. A estas operações juntamos outra: _ A quantificação. Finalmente, qualquer plano de análise de conteúdo pressupõe a elaboração de um conjunto de procedimentos que permitam assegurar a sua fidedignidade e validade.” (1986: 108-9). 4.3.2. Triangulação A triangulação consiste no cruzamento de diversos métodos ao longo da investigação. Ela pode ser feita entre informações de têm origem em vários informantes e que foram adquiridas através de vários métodos. Quando o trabalho é realizado por equipas de investigadores, devese fazer, também, uma triangulação das observações de todos, a fim de se chegar a um conjunto coerente de informações relevantes para o estudo do tema. 4.4. Redacção A redacção do trabalho só se faz quando a observação se deu por acabada e quando a análise está feita. Esta é já uma fase posterior à investigação. Por isso mesmo, o investigador, quando 148 redige o relatório científico, já deve estar fora do campo e deve já ter ordenado os dados e outros materiais. A estrutura de redacção deste relatório deve respeitar a lógica de uma estrutura proposta pela instituição no âmbito da qual se realizou a investigação. Quando se trate de investigações independentes, a estrutura deve seguir a lógica internacional IMRAD. Em que: I (Introdução), M (Materiais e Métodos), R (Resultados), A (Análise dos resultados), D (Discussão). As conclusões serão o sexto ponto. No caso de redacção de artigos científicos, é comum retirar-se o “A”, incluindo-se na Discussão os aspectos mais relevantes da Análise. A apresentação faz-se na 1ª pessoa do plural ou do singular. Quando se está a proceder à montagem do texto, que se faz precisamente como na arte cinematográfica, tem que se ter em conta que o resultado terá que ser um texto contínuo mas que não altera nem desvirtua a narração. Esta montagem tem como principais objectivos tornar a comunicação mais eficaz, economizar espaço e esforço e transmitir com fidelidade o que foi descoberto. 4.5. As Conclusões Quivy e Campenhoudt lembram que “A conclusão de um trabalho de investigação social compreenderá geralmente três partes: primeiro, uma retrospectiva das grandes linhas do procedimento que foi seguido; depois, uma apresentação pormenorizada dos contributos para o conhecimento originados pelo trabalho e, finalmente, considerações de ordem prática.” (op. cit.: 243). a) Retrospectiva das grandes linhas do procedimento Pontos a incluir (segundo Quivy e Campenhoudt): o Apresentação da pergunta de partida na sua última formulação; o Apresentação das características principais do modelo de análise e, em particular, das hipóteses de pesquisa; o Apresentação do campo da observação, dos métodos utilizados e das observações efectuadas; 149 o Comparação entre os resultados hipoteticamente esperados e os observados, bem como uma retrospectiva das principais interpretações das suas diferenças. b) Novos contributos para os conhecimentos Um trabalho de investigação produz dois tipos de conhecimentos: novos conhecimentos relativos ao objecto de análise e novos conhecimentos teóricos. c) Novos conhecimentos relativos ao objecto de análise Incidem sobre o fenómeno estudado enquanto tal. Trata-se de mostrar em que é que a investigação permitiu conhecer melhor este objecto. Pretende-se respostas paras as questões: o O que sei a mais sobre o objecto de análise? o O que sei de novo sobre este objecto? d) Novos conhecimentos teóricos Esta parte da conclusão consiste em apresentar-se uma avaliação sobre o próprio trabalho teórico, reflectindo-se sobre a pertinência da problemática empregue e sobre a operacionalização do modelo de análise construído e escolhido para a investigação. Além disso, importa que se faça uma avaliação sobre os progressos teóricos alcançados pelo trabalho. e) Perspectivas práticas Como referem Quivy e Campenhoudt, “(…) as perspectivas práticas de uma investigação em ciências sociais dependem principalmente da sua capacidade de definir os desafios normativos de uma situação ou de um problema, bem como as margens de manobra dos actores relativamente aos constrangimentos e, portanto, a sua responsabilidade.” (op. cit.: 248) 150 BIBLIOGRAFIA Adorno, Theodor, 2001 [1972], Epistemología y ciencias sociales. Madrid: Ediciones Cátedra. Albarello, Luc et al., 1997, Práticas e Métodos de Investigação em Ciências Sociais. Lisboa: Gradiva. Almeida, João Ferreira de e José Madureira Pinto, 1986, “Da Teoria à Investigação Empírica, Problemas Metodológicos Gerais”, em Augusto Santos Silva e José Madureira Pinto, Metodologia das Ciências Sociais, Porto, Afrontamento, pp. 55-78. 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