DOI 10.20396/cemarx.v15in.esp.16069
A materialidade do poder em Marx:
sobre a dialética da liberdade no capital
Lucas Alves Barbosa1
Resumo: O objetivo do presente artigo é refletir acerca da noção de
poder que se pode extrair do desenvolvimento categorial elaborado
por Marx em sua análise do capitalismo. Sendo assim, nosso objetivo é
o de pensar o modo como essas se articulam no interior do movimento
do capital de modo a produzir um tipo específico de dominação sui
generis que integra a multiplicidade de relações de poder na produção
de um tipo de dominação baseada, contraditoriamente, num tipo
específico de liberdade.
Palavras-chave: Capital. Poder. Liberdade. Dominação.
Abstract: The purpose of this article is to reflect on the notion of power
that can be extracted from the categorical development elaborated
by Marx in his analysis of capitalism. Therefore, our objective is to
think about how these are articulated within the capital movement
to produce a specific type of sui generis domination that integrates
the multiplicity of power relations in the production of a type of
domination based, contradictorily, in a specific type of freedom.
Keywords: Capital. Power. Freedom. Domination.
Pensar a materialidade do poder, tal como é construída n’O capital
por Marx, implica ter sempre em mente que o tipo de materialismo a
que ele se propõe é fundamentalmente diferente daquele operado pelos
filósofos do XVIII, bem como da própria economia política. Sua crítica
da economia política baseia-se numa análise do mais valor abstrato e
não de formas mais diretas de exploração, de modo que, ao invés de
Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal
de São Paulo, Mestre (2017) e bacharel em Filosofia pela mesma instituição (2014) e
licenciado em História pela Faculdade Campo Limpo Paulista (2011).
1
abandonar a abstração totalmente, a reconhece como fundamentada
no próprio mundo concreto e produtora de efeitos sobre esse mundo.
Poderíamos dizer que, enquanto Hegel busca a causa do mundo na
lógica, em Marx é a lógica que se constrói no mundo. Assim, se ele não
abandona a abstração, também não busca nela a concreticidade, mas o
modo como ela própria se efetiva concretamente.
Tomemos como exemplo a mercadoria. Read Afirma que
“O mais importante a respeito da forma mercadoria, em termos
de seus efeitos sobre a subjetividade, a cultura e a política é que é
absolutamente indiferente a seu conteúdo material. Sua materialidade
e sua efetividade estão em sua abstração”. (READ, p. 10, 2016, tradução
nossa). A economia política tende a tomar como provas concretas dados
empíricos, de modo a produzir apenas um “concreto imaginado”.
Parece ser correto começarmos pelo real e pelo concreto, pelo
pressuposto efetivo, e, portanto, no caso da economia, por
exemplo, começarmos pela população, que é o fundamento e o
sujeito do ato social de produção como um todo. Considerado
de maneira mais rigorosa, entretanto, isso se mostra falso.
A população é uma abstração quando deixo de fora, por exemplo, as classes das quais é constituída. Essas classes, por sua vez,
são uma palavra vazia se desconheço os elementos nos quais se
baseiam. P. ex., trabalho assalariado, capital etc. Estes supõem
troca, divisão do trabalho, preço etc. O capital, p. ex., não é
nada sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro,
sem o preço etc. Por isso, se eu começasse pela população, esta
seria uma representação caótica do todo e, por meio de uma
determinação mais precisa, chegaria analiticamente a conceitos
cada vez mais simples; do concreto representado [chegaria]
a conceitos abstratos [Abstrakta] cada vez mais finos, até que
tivesse chegado às determinações mais simples. Daí teria de dar
início à viagem de retorno até que finalmente chegasse de novo
à população, mas desta vez não como a representação caótica de
2
A materialidade do poder em Marx:...
um todo, mas como uma rica totalidade de muitas determinações
e relações. (MARX, p. 2012).
O trecho acima indica, desse modo, não apenas uma questão de
prioridade na relação entre abstrato e concreto, mas a própria noção
entre a produção de uma abstração no real e no ideal, a noção de
que conceito é um produto do mundo e não o contrário. Para Tronti,
este modo sui generis de conceber a relação deve-se a uma herança
dupla: Hegel e Ricardo. Segundo ele, Marx teria herdado de Ricardo o
problema do trabalho abstrato em sua relação com o valor. Enquanto
mercantilistas e fisiocratas atribuíam à riqueza uma raiz ancorada numa realidade objetiva, como o ouro ou a Terra, Ricardo, ainda que não
levasse até as últimas consequências a condição abstrata do trabalho,
mantendo-o numa perspectiva de particularidade, já reconhecia sua
dimensão subjetiva abstrata. Essa relação entre trabalho geral e valor,
posta por Ricardo, assumirá efetividade, no entanto, apenas com
Hegel, como diz Read, “o trabalho é a educação da particularidade.
A educação na universalidade se encontra nas condições técnicas
(maquinaria), nas condições sociais (cooperação/divisão do trabalho), e
nas condições políticas (sindicatos) do trabalho” (READ, p. 106, 2016),
diz ainda, “a sociedade civil é a sociedade da organização, a educação
e o controle do trabalho abstrato” (READ, p. 107, 2016, tradução nossa).
Dessa dupla herança resulta uma teoria social fundamentada na força
abstrata de trabalho aliada a seu controle e disciplinamento.
Tendo em vista a finalidade deste artigo é preciso ainda explicar
como esse tipo de materialidade, presente na obra de Marx, se expressará no interior das relações de poder presentes em sua apresentação.
Compreender a materialidade das relações de poder, tal como
Marx a apresenta, implica pensá-la a partir de sua multilateralidade.
Nessa perspectiva, o próprio poder se apresenta de natureza múltipla,
de modo que não caiba mais o discurso sobre O poder, sendo antes
necessário tratar de múltiplos poderes que se interligam e se articulam
conforme as múltiplas realidades nas quais se inserem. Neste sentido,
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3
o poder não pode ser pensado mais como uma ação específica,
sendo antes um sentido geral de relações que, a partir de um jogo
de forças, exerce uma determinação sobre a própria forma de ser
daquele a quem se coloca. Assim, Marx se aproximaria muito mais de
Foucault2, propondo um conjunto de relações de poderes locais que
se combinariam em estruturas maiores e mais complexas, de modo a
constituir, a partir da periferia, os grandes mecanismos de poder, do
que de uma concepção jurídica moderna, que o toma como um centro
irradiador, a partir do qual a periferia se submete3.
Essa imagem múltipla de poderes locais que se interrelacionam
se articulando em uma estrutura maior aparece no livro 1 do capital
sob a forma de uma “anatomia da fábrica”. A fábrica impõe seus
mecanismos próprios de poder: seu regimento interno, sua estrutura
hierárquica, sua organização própria do trabalho, sua disposição
singular dos corpos, sua própria mecanização e tecnização dos processos
de trabalho, etc. Todos calcados numa materialidade específica e sobre
sujeitos objetivos inseridos num complexo de relações materiais de
existência.
“creio que as relações de poder não devem ser consideradas de uma maneira algo
esquemática como: de um lado estão aqueles que tem o poder e de outro os que
não tem. Mais uma vez aqui um certo marxismo acadêmico utiliza freqüentemente
a oposição classe dominante X classe dominada, discurso dominante X discurso
dominado etc. Ora, esse dualismo, em primeiro lugar nunca será encontrado em Marx,
em troca pode ser encontrado em pensadores reacionários e racistas como Gobineau,
que admitem que numa sociedade sempre haja duas classes, uma dominada e outra
que domina. Você pode encontrar isso em muitos lugares, mas nunca em Marx porque
com efeito Marx é demasiado astucioso para poder admitir uma coisa dessas; ela sabe
perfeitamente que o que faz a solidez das relações de poder é que elas não acabam
nunca, não há de um lado alguns e de outro muitos, elas passam por todas as partes; a
classe operária retransmite relações de poder, exerce relações de poder” (FOUCAULT,
p. 41, 1982).
2
Por outro lado, Marx se distancia radicalmente de Foucault ao adotar, tendo como
ponto de refência a dialética hegeliana, uma perspectiva da totalidade. Enquanto
Foucault, partindo de certa forma de Nietzsche, nega a perspectiva da totalidade, em
Marx o capital poria, a partir da centralidade do trabalho, a posição da totalidade.
Sobre a perspectiva da totalidade em Marx ver o capítulo ”Trabalho e Totalidade:
Hegel e Marx” de Moishe Postone 2014.
3
4
A materialidade do poder em Marx:...
Em Marx, a totalidade não é uma mônada, o real é complexo e
multifacetado. Seu caráter de totalidade deriva de uma forma abstrata
generalizante de valor que se impõe como constituidora do nexo social
de forma totalizante e totalitária. Pensar o poder de forma unívoca
implicaria na adoção de uma noção idealista que o toma sob um caráter
transcendental. Sendo assim, o que antes aparecia como fenômenos do
poder4, podemos perceber, nesse momento, como um conglomerado
de poderes, de tal forma que o que se tinha por fenômenos de uma
singularidade que se expressa de múltiplas formas, surge agora como
produto de uma multiplicidade que se recompõe numa composição
orgânica de dominação.
É nesta perspectiva que Marx aborda os modos de subsunção do
trabalho ao capital no estabelecimento de uma relação especificamente
capitalista entre capital e trabalho, onde o múltiplo é inserido num
movimento direcional de acumulação. A totalidade produzida
pelo movimento do capital não é, portanto, da ordem da aufhreben
hegeliana na medida em que não se opera uma síntese que mantenha
na identidade a multiplicidade; opera, ao contrário, mantendo-se, por
um lado, na forma de uma abstração vazia da unidade e, por outro,
de uma multiplicidade abstraída, expressando, desse modo, uma
contradição da realidade e não do pensamento.
Essa contradição interna entre o dualismo concreto e abstrato,
fundante do próprio modo de produção capitalista, que está
presente em suas categorias, na forma mercadoria (na contradição
valor de uso/valor de troca), no trabalho (trabalho concreto/trabalho
abstrato), no dinheiro (em sua relação como particular/universal),
bem como no próprio capital (como momento/processo), atua sobre
os sujeitos, tomando-os como singularidades e como corpo coletivo,
simultaneamente.
Ver o primeiro capítulo de: BARBOSA, Lucas Alves. O Poder Em Marx: Radicalização
Da Política. 2017.
4
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5
A fábrica, mais do que conjugar trabalhos singulares, os inclui
em formas coletivas abstratas que, não apenas dominam suas forças,
mas as potencializa ao torná-las forças produtivas. Nesse processo, a
nivelação tendencial dos trabalhos não apenas “supera o fundamento
técnico sobre o qual repousa a divisão do trabalho na manufatura”,
abstraindo a multiplicidade concreta do trabalho, como, ao mesmo
tempo, põe em seu lugar “de modo preponderante as diferenças
naturais de idade e sexo” (MARX, p. 41, 1984). O poder que opera em
seu interior é, portanto, produtivo. Produtivo, inclusive, por ser um
poder para a produção e para a produção de produtividade; neste
sentido, de sujeitos produtivos, embora não mais sujeitos individuais e
isolados, mas parte de uma totalidade fabril que supera em potencial a
soma de suas partes. As forças de trabalhadores individuais são, agora,
substituídas por “uma força de massas” (MARX, 260, 1983).
Do mesmo modo que a força de ataque de um esquadrão de
cavalaria ou a força de resistência de um regimento de infantaria
difere essencialmente da soma das forças de ataque e resistência
desenvolvidas individualmente por cada cavaleiro e infante, a
soma mecânica das forças de trabalhadores individuais difere
da potência social de forças que se desenvolve quando muitas
mãos agem simultaneamente na mesma operação indivisa, por
exemplo, quando se trata de levantar uma carga, fazer girar
uma manivela ou remover um obstáculo. O efeito do trabalho
combinado não poderia neste caso ser produzido ao todo pelo
trabalho individual ou apenas em períodos de tempo muito mais
longos ou somente em ínfima escala. Não se trata aqui apenas do
aumento da força produtiva individual por meio da cooperação,
mas da criação de uma força produtiva que tem de ser, em si e
para si, uma força de massas (Idem, p. 259-260).
No interior da fábrica opera uma economia de forças produtivas
que as potencializa ao conjugarem-nas. Os processos individuais de
6
A materialidade do poder em Marx:...
trabalho se unem num único processo global no qual o indivíduo é
subsumido; a força do trabalhador é substituída por “uma força de
massas” (idem: 260).
Desse modo, erra quem toma a força desse poder produtivo
como correlato a um processo de dessubjetivação na medida em que
seria toma-lo apenas em sua negatividade. Ao invés de um completo
esvaziamento, essa dessubjetivação é, antes, a produção de uma
subjetividade assujeitada e ajustada ao sistema fabril. O processo que
produz valor também produz corpos e sujeitos produtores de valor.
“Enquanto o trabalho em máquinas agride o sistema nervoso ao
máximo, ele reprime o jogo polivalente dos músculos e confisca toda a
livre atividade corpórea e espiritual” (MARX, p. 43, 1984). Como fator
de produção, corpo que produz, é preciso que o trabalhador “aprenda
a adaptar seu próprio movimento ao movimento uniforme e contínuo
de um autômato” (MARX, p. 42, 1984).
Desde o desenvolvimento da manufatura está em ação um
processo de ajustamento e disciplinamento, dos corpos por um sistema
de trabalho que dispõe de “determinações minuciosas, que regulam o
período, limites, pausas no trabalho de modo tão militarmente uniforme
de acordo com o bater do sino” (MARX, p. 224, 1983). Essa produção de
sujeitos e corpos por meio da produção de mercadorias implica numa
economia política corporal que os organiza num arranjo produtivo.
O que está em jogo na venda da força de trabalho é o controle sobre
o próprio corpo durante um período de tempo, ou seja, a capacidade
de determinar corporalmente a si mesmo, bem como os resultados
dessas ações. A política disciplinar dos corpos na fábrica atua, não
somente por meio da vigilância em “uma graduação hierárquica entre
os trabalhadores”, na qual “aleija o trabalhador convertendo-o numa
anomalia, ao fomentar artificialmente sua habilidade no pormenor
mediante a repressão de um mundo de impulsos e capacidades
produtivas” (MARX, p. 283, 1983), mas também o submete a um processo de abstração na fusão do corpo do trabalhador com o corpo
maquínico da fábrica. Ao aglutinar os corpos e incluí-los num mesmo
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processo, o trabalhador individual dá lugar ao “trabalhador coletivo
combinado ou corpo social de trabalho” que, contudo, mesmo que
já se apresente como instrumento do capital, ainda seja posto como
“sujeito transcendental e o autômato mecânico como objeto” (MARX,
p. 40, 1984). A relação sujeito/objeto se inverte com o desenvolvimento
da grande indústria no advento da maquinaria, onde “o próprio
autômato é o sujeito e os operários são apenas órgãos conscientes,
coordenados com seus órgãos inconscientes e subordinados, com os
mesmos, à força motriz central” (idem, p. 40). Desse modo, o corpo
coletivo de trabalho se torna parte do “corpo da fábrica, a articulação
do sistema de máquinas”, onde “as enormes forças da Natureza e
do trabalho social em massa que estão corporificadas no sistema de
máquinas e constituem com ele o poder do ‘patrão’” (idem, p. 44).
O ajustamento à máquina é o modo pelo qual o sistema fabril amplia
o potencial produtivo do corpo, revertendo-se, contudo, numa
ampliação do poder da máquina por meio do consumo de corpos.
Toda as potencialidades criativas e produtivas, individuais e coletivas,
tornam-se, então, capacidades do capital. O capital toma o corpo da
força de trabalho como uma possessão, “é o corpo de trabalho em ação
uma forma de existência do capital” (MARX, p. 283, 1983).
O mesmo processo que potencializa o corpo pela diluição no
corpo de fábrica implica em seu consumo e desgaste no processo de
produção. Desse modo, enquanto produtor de condições de existência
e vida, tal processo é, antes, uma antiprodução, uma produção de
morte, na medida em que é uma produção e distribuição desigual de
vida. Nos termos de Bróhm, “a morte está inscrita no coração mesmo
das relações de produção capitalistas, porque a finalidade do capital é
a acumulação de objetos mortos, inanimados, fetichizados, coisificados
”(BRÓHM, p. 348, 2007). Desse modo, poderíamos colocar a questão do
poder sobre o corpo, e do corpo como poder, em Marx, na perspectiva
daquilo que Foucault chama de biopoder.
Como corpo vivo, como força de trabalho viva e, portanto,
como potencial força produtiva abstrata corporificada, ele se torna
8
A materialidade do poder em Marx:...
ferramenta da máquina, ao entrar no processo como puro corpo vivo
que, e justamente por isso, deve repor-se do gasto de energia corpórea
dispendido durante o processo de trabalho, o que se faz, contudo,
somente na condição de subjetividade. Assim, tomamos como fortuita
a afirmação de Michel Henry segundo a qual em Marx “a indústria é
fundamentalmente dependente da subjetividade quanto a seus fins”
(HENRY, p. 592, 1976, tradução nossa). No entanto, é preciso tornála mais produtiva, ainda que signifique ensinar-lhe a anular-se no
processo de trabalho. A condição de corpo vivo impõe o inconveniente
e a necessidade de que ele esteja vivo. Assim, desde o desenvolvimento
da manufatura,
Os trabalhos parciais específicos são não só distribuídos entre
os diversos indivíduos, mas o próprio indivíduo é dividido
e transformado no motor automático de um trabalho parcial,
tornando assim a fábula insossa de Menenius Agrippa, segundo
a qual um ser humano é representado como mero fragmento de
seu próprio corpo, realidade. (MARX, p. 283, 1983).
Apesar disso, por ser corpo vivo portador de necessidades
corporais e espirituais, há sempre algo impassível de incorporação
ao processo de valorização. A necessidade, como dimensão de
subjetividade que recoloca sua condição de ser, é momento da revolta
dos corpos. Assim, a condição da força de trabalho como trabalho vivo
impõe, ao mesmo tempo e contraditoriamente ao trabalhador, uma
abstração generalizante e, como produtor de necessidades, a busca
por aumentar a efetividade das necessidades e desejos, de modo a se
pôr em direta relação de antagonismo com o capital. Neste sentido,
poderíamos afirmar com Harvey que:
corpos imersos num processo social como a circulação de
capital variável nunca devem ser concebidos como dóceis ou
passivos. Afinal, é somente por meio do ‘fogo plasmador’ da
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capacidade de trabalhar que o capital é produzido. E mesmo que
o trabalho esteja em grande parte condenado sobre o domínio
do capital a produzir as condições e instrumentos de sua própria
dominação (tanto nas esferas do consumo e da troca como
na produção ela mesma), as capacidades transformadoras e
criadoras do trabalhador sempre trazem em si a potencialidade
(por mais imaginável que possa ser nas atuais circunstâncias)
de moldar um modo alternativo de produção e de consumo.
Essas capacidades transformadoras e criadoras nunca podem ser
eliminadas. Isso traz agudos problemas para a manutenção da
autoridade do capitalismo, ao mesmo tempo quer proporciona
aos trabalhadores múltiplas oportunidades de afirmar sua
capacidade de ação e vontade. Logo não é casual o fato de Marx
adicionar o qualificativo de ‘vivo’ ao trabalho incorporado
à circulação do capital variável não apenas para acentuar
suas qualidades fundamentais de dinamismo e criatividade,
mas também para indicar onde está a força de vida e o poder
subversivo para a mudança (HARVEY, p. 161-2, 2004).
Contudo, dado que a produtividade do poder através da
potencialização da força produtiva do trabalho na fábrica se realiza
apenas por meio da reconfiguração das forças em uma organização
de massa, que se coloca acima e por meio delas, e tendo em vista a
condição corpórea do sujeito que trabalha, não somente a relação
propriamente capitalista entre trabalho e capital ganha efetividade
no que Marx chama de subsunção real do trabalho ao capital - o
processo histórico que coloca os trabalhadores agrupados sob um
mesmo capital e separados de suas próprias condições materiais de
produção e de existência - como a separação entre força de trabalho
e meios de produção inibe a composição de uma força produtiva fora
do domínio do capital. Assim, a força de trabalho, enquanto condição
subjetiva do processo de trabalho, depende dos meios de produção, da
10
A materialidade do poder em Marx:...
condição objetiva. É justamente aqui que começa a se delinear, ainda
de modo embrionário, a inversão da relação sujeito/objeto no interior
desse processo de trabalho, uma vez que são os fatores objetivos de
produção agora que determinam a ação dos fatores subjetivos, ainda
que através de uma ausência, ou melhor, da alienação.
A efetividade dessa inversão se dá no desenvolvimento da
grande indústria, na qual a divisão de trabalhos especializados se
torna a divisão de máquinas especializadas. Ao retira o controle do
trabalho vivo e recolocá-lo sob o domínio do trabalho objetivado, esse
processo de subordinação técnica pode relacionar-se com a força de
trabalho como singular e coletiva ao mesmo tempo, na medida em que
substitui a coletividade do trabalho pela coletividade das máquinas na
medida em que:
O processo de produção deixou de ser processo de trabalho no
sentido de processo dominado pelo trabalho como unidade que
o governa. Ao contrário, o trabalho aparece unicamente como
órgão consciente, disperso em muitos pontos do sistema mecânico
em forma de trabalhadores vivos individuais, subsumido
ao processo total da própria maquinaria, ele próprio só um
membro do sistema, cuja unidade não existe nos trabalhadores
vivos, mas na maquinaria viva (ativa), que, diante da atividade
isolada, insignificante do trabalhador, aparece como organismo
poderoso. (MARX, p. 581, 2011).
O poder do trabalho é revertido, neste processo, no poder
do capital sob a forma de capital fixo, a inversão na relação entre
sujeito e objeto é tal que o que se passava como potencial produtivo
da força coletiva do trabalho se apresenta agora como produto do
desenvolvimento técnico dos meios de produção5. A ciência se torna
um meio pelo qual se apropria e acumula saberes a partir dos quais
5
Ver Michel Henri, p. 597, 1976.
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11
se organiza e expropria o controle sobre a produção e os objetifica na
forma da maquinaria, nos termos de Marx,
A acumulação do saber e da habilidade, das forças produtivas
gerais do cérebro social, é desse modo absorvida no capital
em oposição ao trabalho, e aparece consequentemente como
qualidade do capital, mais precisamente do capital fixo (MARX,
p. 583, 2011).
A absorção dos processos de trabalho pela máquina representa
uma perda do controle imediato de sua própria ação de trabalho por
parte do operário. A objetivação da técnica passa, assim, a mediar externamente a relação saber/fazer do processo de trabalho. O controle
externalizado da produção implica na determinação de uma hierarquia entre trabalho direto e indireto (intelectual), objetivado, por sua
vez sob a forma de capital fixo. Desse modo, o trabalhador é reduzido
paulatinamente à pura forma de corpo, objeto do processo de trabalho a ser conduzido pela máquina, levando adiante a inversão entre
o subjetivo e o objetivo desse processo6. Na medida em que o saber é
parte sine qua non do processo de trabalho ele deve, tal como os demais
meios de produção, ser progressivamente expropriado do trabalhador
para o desenvolvimento do processo de valorização. Assim, como afirma Antunes, “com o capital erige-se uma estrutura de mando vertical,
que instaurou uma divisão hierárquica do trabalho capaz de viabilizar
o novo sistema de metabolismo social” (ANTUNES, p. 23, 2009).
Além disso, uma tal separação corresponde a uma necessidade
intrínseca do capital de manter a unidade do processo apesar de sua
fragmentação a partir desse controle externo, de modo a estabelecer
O que expomos aqui não se liga à noção de Hilferding de alienação, que a toma
como troca entre objetividade e subjetividade, onde a forma mercadoria seria apenas
uma mistificação da forma trabalho, o que não apenas nos levaria no sentido de uma
perspectiva trans-histórica de trabalho como teríamos de aceitar uma “desalienação”
como desmistificação Sobre esse ponto, ver POSTONE, p. 258, 2015.
6
12
A materialidade do poder em Marx:...
uma dimensão subjetiva autônoma que separa o político do econômico.
Ao separar o trabalho de sua projeção, ao externalizar a administração
da força de trabalho, se esvazia a dimensão política do processo,
produzindo uma justificação científico-racional que o legitima sob a
aparência de neutralidade. Nos termos de Holloway:
Sem essa separação, a propriedade do fato (oposta à posse
meramente temporal) e, portanto, o próprio capitalismo seriam
impossíveis. Isso é importante para a discussão do poder,
porque a separação entre o econômica e o político faz com que o
político apareça como o reino do exercício do poder (deixando o
econômico como uma esfera ‘natural’ fora de questionamento),
quando de fato o exercício do poder já é inerente à separação
do fato em relação ao fazer e, portanto, à própria constituição
do político e do econômico como formas distintas de relações
sociais. (HOLLOWAY, p. 55, 2003)7.
No capitalismo o campo político reconfigura-se na forma de uma
autoridade externa e racionalmente organizada ao subsumir a cisão
historicamente posta entre trabalho intelectual e trabalho manual ao
colocar os sujeitos “num agrupamento de funções impessoais, anônimas
e formalmente distintas do poder econômico” (POULANTZAS, p. 52,
2000). Marx frequentemente aponta relações de similitude entre estado
e maquinaria, pois como aponta Read, esta relação “tem a ver com o
que para Marx é o autêntico problema do político: a criação de forças
hierárquicas de ‘mando’ sobre e por cima das forças imanentes de
cooperação” (READ, p. 150-1, 2016, tradução nossa).
Desse modo, a análise da ciência a serviço do capital não pode
ficar restrita o debate sobre ideologia, posto que a ciência no cerne do
A partir desta discussão podemos responder às críticas de certos autores como Bobbio
e Colletti da inexistência de uma teoria política em Marx, tendo em vista tamanho
reducionismo em que tal perspectiva incorreria.
7
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13
capital incorpora a lógica de produção capital/trabalho, reduzindo-se a
um campo da lógica capitalista da valorização do valor. Como afirma
Poulantzas, “a separação da ciência do trabalho manual, enquanto
a ‘serviço do capital’, tende a tornar-se força produtiva direta”
(POULANTZAS, p. 52, 2000). Assim, a serviço do capital, a ciência
tem na materialização do trabalho o desenvolvimento dos meios de
produção (é sempre importante lembrar da forma produtiva que
assumi o poder em Marx). Portanto, a ciência, no bojo do capitalismo,
objetiva-se na ampliação da produtividade da força de trabalho para o
aumento de mais-valia.
Desse modo, a técnica não comporta uma concepção de
neutralidade. Uma vez inclusas num processo de produção de
mercadorias esta inevitavelmente marcada pela forma mercantil, pelas
determinações do valor e do processo de valorização, de modo que
“essa faculdade do trabalho objetivado se transformar em capital,
quer dizer de transformar os meios de produção e meios de direção e
exploração do trabalho vivo aparece como algo inerente em si e para si
aos meios de produção”. (MARX, p. 54, 2010)
Assim, a concepção de maquinaria é tomada a partir da sua
dimensão política em Marx ao apresentar a inseparabilidade entre
as relações de poder no interior da fábrica e o desenvolvimento
tecnológico fabril. Esses processos imbricam-se nas contradições entre
trabalho intelectual e trabalho produtivo, que materializar-se no que
Read denominará concepção “transversal” de poder.
Muda fundamentalmente, assim, o modo pelo qual percebemos
a história do desenvolvimento tecnológico: Marx diz a Engels
em uma carta que o relógio, que quiçá seja uma invenção
de importância relativa menor comparado com algo como a
máquina a vapor, é importante porque se aplica de maneira
imediata às relações sociais práticas. (READ, Jason, p. 152, 2016,
tradução nossa).
14
A materialidade do poder em Marx:...
Para Holloway tal cisão é descrita como uma fratura do fluxo do
fazer que, não apenas divide a unidade projeção-e-fazer, mas também
rompe o nós coletivo do fazer. Portanto, a ciência a serviço do capital
coloca o trabalhador como força de trabalho manual na condição de
massa, contraditoriamente particularizado. Assim, a estrutura entre
saber e poder expressa-se no choque de controle e na forma de “escalões
de delegação de autoridade para formas de repartição-ocultamento do
saber conforme esses escalões” (POULANTZAS, p. 57, 2000) 8.
Desse modo, a cisão entre saber e fazer marca a divisão do
trabalho imposta pelo Capital ao desenvolver a passagem de uma
subsunção meramente formal do trabalho ao capital, para uma subsunção
real. A separação entre saber e fazer coloca o trabalho sob o controle do
capital e o trabalhador numa dependência em relação ao capitalista, de
modo que ao estabelecer os pressupostos que culminam na superação
das formas de dependência pessoal põe as bases do domínio do capital
sob formas impessoais de dominação. É preciso livrar os trabalhadores
para que possam, livremente, sujeitarem-se9. A noção de uma liberdade
necessária ao estabelecimento de relações de poder desenvolvido por
Foucault já é apresentado por Marx ao explicitar em sua análise do
capital a interversão da liberdade em não-liberdade na passagem da
circulação simples para a reprodução.
Na apresentação que faz da circulação simples na primeira seção do livro I de O Capital, Marx a expõe como dimensão fenomênica
do modo capitalista de produção, de modo a, como nos diz Fausto,
apresentá-lo e não apresentá-lo, ou ainda, descrevê-lo parcial e unilateralmente, em sua aparência, colocando em jogo, contudo, algumas das
categorias fundamentais da troca de mercadorias. Essas categorias não
A relação entre saber e poder no interior da relação capital/trabalho se aproxima da
relação entre misterium e ministeium. Acerca disso poderíamos dialogar com Agamben
em Homo Sacer.
8
Essa livre sujeição nada tem a ver com uma “vontade”, mas com uma condição
objetiva de relações materiais que se produzem como efeito da contradição operada
no interior da relação de liberdade no modo de produção capitalista.
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podem, no entanto, expressar, em seu pleno desenvolvimento, o capitalismo, na medida em que encontram-se ainda desarticuladas do conceito de capital, ainda por se desenvolver. Tal contradição é expressão
de uma outra ainda mais profunda, a relação entre uma aparência que
precisa negar sua essência para realizá-la. Desse modo, o objeto da seção I, com a circulação simples, é a dimensão negada pelo capitalismo
posta como positiva e, neste sentido, não apresenta o capitalismo, mas
a negação de sua negação.
Na passagem para a segunda seção se opera a primeira negação
da aparência, de modo que, ainda que não apresente propriamente a
produção capitalista, ao menos altera a “finalidade do processo que se
encontra no objeto” (FAUSTO, p. 186, 1987). Enquanto na circulação
simples a finalidade da troca está ancorada na realização de uma
utilidade, expressa na fórmula M-D-M, na segunda seção, com o
desenvolvimento da noção de produção como processo de valorização
se altera a finalidade para D-M-D’. Contudo, neste momento cada
volta ainda é tomada isoladamente, de modo a impossibilitar a
compreensão do processo como ininterrupto, não sendo capaz, ainda,
de expressar o capital como sujeito automático, de modo que a troca
entre capitalistas e trabalhadores ainda se apresente nos termos de
uma troca de equivalentes e o momento da circulação como “o reino
exclusivo da liberdade, da igualdade, da propriedade e de Bentham”
(MARX, p. 322, 2014).
A segunda negação se dá na passagem da sexta para a sétima
seção do livro I, ao tomar o capital como processo. Aquilo que num
primeiro momento (seção I para a seção II do livro I) aparecia como
troca de equivalentes entre sujeitos livres se interverte, “das leis da
propriedade da produção de mercadorias em leis da apropriação capitalista” (MARX apud FAUSTO, p. 120, 1987), pondo abaixo a própria
forma contratual da relação. A circulação simples, enquanto aparência
é negada pelo momento da essência, a reprodução. Essa aparência se
sustenta, no entanto, através da ilusão necessária de que, em cada volta do processo, o capital variável criado incessantemente é parte do
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capital primitivo desembolsado pelo capitalista. Caso não se tome a
troca dessa forma, ela perde sua força de legitimidade, já que que sua
contradição fica evidente. Neste processo constante de apropriação o
movimento atinge o ponto onde a mais-valia produzida supera tanto
o capital primitivo, quanto o capital fixo, não restando mais nenhum
dispêndio propriamente do capitalista, mas apenas o valor excedente
apropriado.
Originalmente, o direito de propriedade apareceu-nos fundado
sobre o próprio trabalho. Pelo menos tinha de valer essa suposição,
já que somente se defrontam possuidores de mercadorias com
iguais direitos, e o meio de apropriação de mercadoria alheia
porém é apenas a alienação da própria mercadoria e esta
pode ser produzida apenas mediante trabalho. A propriedade
aparece agora, do lado do capitalista, como direito de apropriarse de trabalho alheio não-pago ou de seu produto; do lado do
trabalhador, como impossibilidade de apropriar-se de seu
próprio produto. A separação entre propriedade e trabalho
torna-se conseqüência necessária de uma lei que, aparentemente,
se originava em sua identidade (MARX, p. 1984).
Essa passagem da circulação simples à reprodução operada na
sétima seção do livro I deixa explicito tanto o processo contraditório
onde a liberdade se coloca como necessidade à própria dominação,
quanto a necessidade da negação da essência pela aparência para a
realização da própria essência, o que se implica num movimento
elíptico do texto retornando, após todo um conjunto de articulações de
categorias, à teoria do fetichismo.
Aquela forma fenomênica da relação entre sujeitos igualmente
possuidores de mercadorias se mostra, assim, necessária para que se
realize, no nível da essência, sua negação como sujeitos não-iguais em
relação de não-liberdade, prescindindo, contudo, do estado para essa
realização. Uma vez que a relação se apresente em termos contratuais
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de um direito posto por um estado neutro, tudo deverá se passar
como se tratasse de ações resultantes de vontades livres em jogo entre
agentes iguais em direitos e poderes. A uma só vez essa forma aparente
encobre o processo de exploração e institucionaliza os conflitos sociais
sob a forma genérica e abstrata de uma igualdade jurídica que exclui
as relações de classe, atuando assim como momento de sua realização.
Tal como o dinheiro, o estado se põe como uma abstração real,
como uma mediação universalizante, externa e independente, entre os
sujeitos particulares, nivelando-os sob a forma genérica de sujeito de
direito. Tal como o dinheiro se apresenta como uma neutralidade diante
às mercadorias particulares pela forma abstrata do valor, o estado se
apresenta nos termos de uma neutralidade a partir da forma abstrata
do sujeito jurídico, posta, contudo, pela própria forma mercadoria.
Ao manter a troca de equivalentes no nível da circulação, ainda que
de forma aparente, o estado possibilita a efetivação do processo de
apropriação capitalista. Da perspectiva do estado não existem relações
de classes, tal como não existe movimento do capital, são apenas livres
proprietários independentes atuando na circulação simples, lócus da
liberdade e igualdade. Fausto assim descreve:
O ponto de partida do desenvolvimento do Estado não é a
contradição de classe. O ponto de partida do desenvolvimento
do Estado é, como vimos, a contradição entre a aparência e a
essência do modo de produção capitalista. Ora, na aparência,
não há contradição de classe. Não há nem mesmo classe. Há
identidade entre indivíduos. É na segunda que se encontra uma
relação de exploração que constitui as classes como opostos. Se
se caracterizar essa oposição como uma contradição, é preciso
dizer: o Estado capitalista (considerado a partir das formas) não
deriva da contradição entre as classes, ele deriva da contradição
(interversão) entre a identidade e a contradição. (FAUSTO,
p. 293, 1987, tradução nossa).
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A materialidade do poder em Marx:...
O estado capitalista é, portanto, fruto dessa tensão entre essência
e aparência no interior da relação entre produção e circulação10. Sua
parcialidade em favor de um dos lados do conflito entre capital e
trabalho se efetiva a partir de sua neutralidade, de sua imparcialidade,
pondo a lei que transgrede no mesmo instante em que se realiza.
Mobiliza assim, toda uma força material e violenta na efetivação
dessa lei, ainda que ela mesma se negue. Contudo, uma vez que a
ação violenta do estado se apresente como reação a uma transgressão,
violência contra a lei, sua violência é tomada como contraviolência.
Neste sentido, a violência estatal apenas pode se realizar sob formas
aparentes de não violência.
“Se há uma relação direta entre capitalismo e Estado, não é o Estado, como um
aparato de poder aparentemente soberano, que dá origem à dinâmica do capitalismo,
mas sim o contrário. Nem se pode compreender o Estado como o centro criador do
modo de produção capitalista, tampouco se pode tê-lo, a posteriori, como dirigente
maior ou único da vontade de manutenção dos padrões de reprodução capitalista.
Não há tal centro único, no sentido de que se possa identificá-lo exclusivamente. Dada
a primazia das relações de produção, o Estado nesse contexto corrobora por alimentar
a dinâmica de valorização do valor, como também, a seu modo, as interações sociais
dos capitalistas e dos trabalhadores, tudo isso num processo contraditório. As classes
burguesas, cujas frações são variadas, podem até mesmo contrastar em interesses
imediatos. As lutas dos trabalhadores, contrastar em interesses imediatos. As lutas
dos trabalhadores, engolfadas pela lógica da mercadoria, ao pleitearem aumentos
salariais, chancelam a própria reprodução contínua do capitalismo. O Estado,
majorando impostos ou mesmo ao conceder aumento de direitos sociais, mantém a
lógica do valor. Se os dirigentes do Estado têm ou não tal ação como política deliberada
de sustentação de um sistema, não é isso, no entanto, que mantém exclusivamente
o capitalismo em funcionamento. É um processo global e estruturado que alimenta
sua própria reprodução. Claro está que, dentro dessa dinâmica, o papel da política,
das classes burguesas e das classes trabalhadoras é bastante relevante, na medida
das possibilidades de legitimação, consolidação, resistência ou confronto em face da
própria reprodução do capital. Por isso, a compreensão da luta de classes é também
fundamental para dar conta das diversas relações havidas no seio das sociedades
capitalistas. A luta de classes revela a situação específica da política e da economia
dentro da estrutura do capitalismo. Mas, para além da luta de classes, as formas sociais
do capitalismo, lastreadas no valor e na mercadoria, revelam a natureza da forma
política estatal. Na forma reside o núcleo da existência do Estado no capitalismo.”
(MASCARO, p. 16-17, 2013).
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Os economistas burgueses têm em mente apenas que se produz
melhor com a polícia moderna do que, por exemplo, com o
direito do mais forte. Só esquecem que o direito do mais forte
também é um direito, e que o direito do mais forte subsiste sob
outra forma em seu ‘estado de direito’. (MARX, p. 44, 2011).
Podemos afirmar, portanto, que Marx, ao fazer uso de categorias
jurídicas para tratar da questão do poder, acaba por esvaziá-los,
subvertê-los. Desse modo, duas críticas importantes dirigidas ao
pensamento de marxiano podem ser descartadas: 1) De que o poder
em Marx estaria fundamentado sob categorias jurídicas e contratuais
(ainda que Foucault realize essa crítica ao marxismo, ele não a direciona a Marx – Ver As malhas do poder); 2) da uma ausência de uma
ciência especificamente política11 em Marx.
Essa última perde seu sentido quando se toma a separação
entre político e econômico como produto de uma abstração. Em seus
próprios termos Marx já o faz em sua economia política, porque não
pode haver economia que não seja política, tanto quanto política que
não implique em um conjunto de relações econômicas. Assim, Marx já
fala do estado e da política no interior do desenvolvimento categorial
que realiza para explicar o capital e as relações capitalistas. Ainda que
almejasse abordas o estado mais detidamente, não se pode dizer de
um silencio de sua parte. Tomando o problema nesses termos, perde
também sentido a crítica de economicismo. Ambas as críticas estariam
presas a uma concepção que não chega a ultrapassar a dimensão
aparente dessa separação entre o político e o econômico.
A manutenção dessa liberdade baseada nessa ilusão de autonomia reproduzida na institucionalidade do estado sob os termos
jurídicos do sujeito de direitos, cumpre ainda um outro papel: Ainda
que, através da generalização da mercadoria como forma social da
riqueza no modo de produção capitalista, os indivíduos sejam postos
11
Inscrevem-se aqui autores muito distintos como Bobbio e Coletti.
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A materialidade do poder em Marx:...
numa absoluta relação de interdependência coisal em decorrência da
exteriorização da produção de seus próprios meios de subsistência,
essa forma contratual da relação capital/trabalho oculta o caráter
social do trabalho, operando uma ilusão de particularização do
indivíduo como uma mônada independente. Ao mesmo tempo, ela
condena a liberdade a essa forma contratual que media a relação sob o
modelo geral do direito no interior da própria fábrica, legitimando as
estruturas de mando do capitalista, como um soberano na hierarquia
fabril, por meio da propriedade que esse exerce sobre todos os meios
de produção, incluso a força de trabalho. Podemos dizer, portanto,
que “na realidade A Dominação dos capitalistas sobre os operários
não é mais do que a dominação sobre estes das condições de trabalho”
(MARX, p. 55, 2010).
Tomando essa inversão da dominação do homem sobre a coisa,
desenvolvida a partir da produção de mercadorias, se pode dizer,
portanto, que essa seja ainda, e por ser produção de mercadorias, uma
produção de sujeitos por meio de mercadorias, ou ainda, produção
de valores mediada instrumentalmente pelos homens. Entretanto, essa
relação de domínio do capitalista sobre as coisas não ultrapassa o nível
da aparência, nos termos de Marx:
Aqui o operário está logo de início num plano superior ao do
capitalista, por quanto este último criou raízes deste processo de
alienação e nele encontra a sua satisfação absoluta ao passo que
na sua condição de vítima do processo Operário se acha de imediato uma situação de rebeldia e o senti como um processo de
sujeição na medida em que o processo de produção e ao mesmo
tempo um processo real de trabalho e o capitalista como supervisor e dirigente daquele, tem uma função a desempenhar na
produção real nessa medida a sua atividade adota de imediato
um conteúdo específico múltiplo porém o processo de trabalho
propriamente dito apresenta-se só como meio do processo de valorização tal como valor de uso do produto aparece apenas como
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portador do seu valor de troca Auto valorização do capital a criação de mais-valia é pois objetivo determinante predominante e
Avassalador do capitalista impulso e conteúdo absoluto das suas
ações na realidade não é outra coisa senão o afã e a finalidade
racionalizadas do intenso orador conteúdo absolutamente mesquinho e abstrato que sob certo ponto de vista faz o capitalismo
aparecer como que submetido a uma Servidão para com a relação do Capital que é igual embora também de outra maneira a
do seu Polo oposto a do operário (MARX, p. 56, 2010).
Essa forma contratual encontra no salário seu ponto de mediação
entre os agentes dessa troca. A forma salarial tanto determina os limites
de possibilidade de produção de si – ao delimitar as possibilidades de
input de valor na força de trabalho – quanto encobre o caráter desigual
da relação. Essa incorporação de valor se dá, desde já, nos termos do
consumo, de modo que a produção de subjetividade desse trabalhador
seja, mesmo fora da fábrica, quase sempre condicionada a formas de
experiência postas pelo capital. Contudo, e contraditoriamente, é na
posição das necessidades do trabalho que essa subjetividade se opõe
às necessidades do capital. Tentar descrever em sua totalidade os
meios pelos quais é produzida a subjetividade desse trabalhador é
uma tarefa impossível, seja pela condição história e local dos modos
de experiência, seja pela condição dinâmica da luta de classes.
Considerações finais
Não se pode falar no poder em Marx, apenas em poderes. Isso
porque não há uma relação única a que se possa denominar dessa
maneira, o poder é, antes, um tipo de relação que implica uma forma
de determinação de um sujeito sobre outro. No capitalismo, essas
relações múltiplas e dispersas são progressivamente incorporadas
ao movimento do capital, na medida em adquirem um potencial
produtivo.
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A materialidade do poder em Marx:...
Agindo como movimento articulador de relações de dominação e
exploração sobre os homens, o capital opera por meio de abstrações reais
que os toma duplamente, como singularidades e como coletividades.
Tomados individualmente, o capital busca discipliná-los e ajustá-los em
vista da ampliação do potencial produtivo de cada um. Já como corpo
de fábrica, o indivíduo é colocado sob a forma de uma composição
de massa, cuja força excede a somatória das particularidades, de
modo que a composição do corpo fabril se dê mediante a anulação
individual. Assim, a produção da subjetividade ancora-se no processo
produtivo, não apenas pelo condicionamento dos indivíduos à fábrica,
mas de forma mais ampla e complexa, pois ao colocar as carências
individuais como elemento sociais, atrai os indivíduos para a continua
sujeição da forma mercadoria como necessidade elementar para a
manutenção da vida. A fábrica, portanto, excede o campo da produção
de objetos e produz também sujeitos, uma vez que, suas leis internas
rompem os muros fabris e determinam as relações humanas. Produção
de subjetividades para o Capital. Marx escreve em seu capítulo VI,
inédito, não publicado do capital, a seguinte constatação.
O escravo pertence a um amo (máster. Ing.) determinado; o
operário, é certo que tem que vender-se ao capital, mas não
capitalista determinado, de modo que, dentro de certos limites,
pode escolher a quem quer vender-se e pode mudar de amo.
Todas essas relações modificadas fazem com que a atividade
do trabalho livre seja mais intensa, mais continua, móvel e
competente do que do escravo, para além de o capacitarem para
uma ação histórica muito diferente. O escravo recebe em espécie
os meios de subsistência necessários para sua manutenção e
essa forma natural dos mesmos encontra-se fixada, tanto pela
sua qualidade, como pelo seu volume, em valores de uso.
O trabalhador livre recebe os sobre a forma do dinheiro, do valor
de troca, da forma social abstrata de riqueza. (MARX, p. 102,
2010).
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Assim, o modo como o movimento do capital articula essa
pluralidade de relações de poder em vista da reprodução do processo
de valorização se faz de forma que tudo se passe nos termos de uma
certa liberdade. Em detrimento de formas mais diretas de opressão,
no capitalismo a articulação dessas relações de poder é estruturada
por através de um complexo de mediações que ocultam seu caráter
próprio, de modo que essa liberdade individual, posta em jogo pelas
relações propriamente capitalistas, seja o próprio fundamento de seu
sistema próprio de dominação e exploração. Isso é o que torna tão mais
efetiva sua opressão: nos termos do capital a opressão é vivenciada nos
termos aparentes de uma emancipação.
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