Academia.eduAcademia.edu

Das formas e das convenções

2018, Revista Cerrados

Trata-se de discussão sobre a dramaturgia/teatro de Lourdes Ramalho, tendo por objetivo apontar tópicos teórico-críticos de seus aspectos formais em vista da tessitura de aspectos temáticos, com especial ênfase sobre sua feição moderna/regional, sem perder do foco a busca pela historicidade de seus meios de produção e de expressão.

Das formas e das convenções: apontamentos à propósito da dramaturgia e teatro de Lourdes Ramalho On forms and conventions: apointments about Lourdes Ramalho’s dramaturgy and theater Diógenes André Vieira Maciel* https://orcid.org/0000-0002-6122-2411 Recebido em: 30/09/2018 Aceito para publicação em: 16/11/2018 RESUMO: Trata-se de discussão sobre a dramaturgia/teatro de Lourdes Ramalho, tendo por objetivo apontar tópicos teórico-críticos de seus aspectos formais em vista da tessitura de aspectos temáticos, com especial ênfase sobre sua feição moderna/regional, sem perder do foco a busca pela historicidade de seus meios de produção e de expressão. Palavras-chave: Dramaturgia moderna. Teatro regional. História do teatro brasileiro ABSTRACT: This is a discussion about Lourdes Ramalho's dramaturgy and theater, with the objective of analyzing the theoretical and critical aspects on its forms in view of the thematic aspects, with special emphasis on the new readings about its modernity/regionality, without losing sight in the search for the historicity implied on its production and expression means. Keywords: Modern dramaturgy. Regional theater. Brazilian theater history Até o momento em que escrevo este artigo, ainda não temos, plenamente sistematizada, uma historiografia do teatro paraibano moderno, ou, mais ainda, um livro de histórias do teatro em Campina Grande, cidade no interior da Paraíba, que, por conta da força de atração exercida pelo seu Festival de Inverno, em vigência desde 1976, é importante para a atividade cênica deste estado. Nos últimos anos, diante desta falta, tenho buscado me aproximar, enquanto pesquisador do binômio dramaturgia-teatro, de uma metodologia capaz de me auxiliar neste esforço necessário ao levantamento de fatos teatrais (como também de documentação teatral, incluídos os textos dramatúrgicos e críticos, além de fotos, entrevistas, etc.) para o estabelecimento de um paradigma histórico-crítico, com vistas ao exercício de interpretação dessa atividade estética, desenvolvida naquele espaço e em dados recortes temporais, através de estudos de caso. Esse * Professor da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). E-mail: [email protected]. 69 Revista Cerrados v. 27 n. 46 Literatura, Artes e Inclusão Social aparato metodológico é urgente quando se faz necessária a lide com a ausência de uma historiografia do teatro local, entendida como um primeiro conjunto de referências consolidadas, mesmo no cenário muito favorável do panorama editorial contemporâneo (FARIA, 2013, 2012; GUINSBURG, PATRIOTA, 2012). Discutindo as dimensões de uma metodologia adequada para a pesquisa em torno do teatro do Brasil, Tania Brandão já chamou atenção para o problema. Segundo ela, estamos sempre diante de uma dimensão paradoxal de referência, na medida em que, muitas vezes, a expressão brasileiro torna-se reveladora apenas de algo que, “por tradição ou por hábito, chamamos de Brasil”, quando, na realidade, estamos tratando apenas de “um sistema de relações, inclusive de mercado, que no fundo é apenas o eixo Rio – São Paulo” (BRANDÃO, 2006, p. 106). Falar da quimera teórica, interpretativa e conceitual, que poderia estar contida na expressão “teatro brasileiro”, é olhar para o contrário de qualquer estabilidade: é assumir a diversidade das cenas locais (e regionais), com desenvolvimentos bastante distintos daqueles que se verificou no eixo, apontando para processos que rompem com qualquer ideia de unidade da produção dentro do sistema que, talvez, só fosse bem compreendido a partir de sua multiplicidade. Quero destacar esta faceta do problema das pesquisas nesta área: não conhecemos as histórias do teatro produzido no Brasil, pelo menos, não ainda. Contudo, é digno de nota o modo como, no livro de Guinsburg e Patriota, diante de um conjunto extremamente heterogêneo, como também de toda uma tradição crítica que precedeu ou sucedeu cada um dos livros analisados pelos autores (ou seja, toda uma tradição historiográfica), eles encontraram “uma convergência para determinadas tendências, métodos, concepções que, por si, se constituíram em uma espécie de ideias-forças cristalizadoras do processo, seja como emissão, seja como recepção” (GUINSBURG, PATRIOTA, 2012, p. 13). Na esteira das propostas de historiadores como Marc Bloch e Michel de Certeau, esses pesquisadores se colocaram, então, para além da esfera de uma busca por uma historiografia homogênea, linear, próxima ao real, diante da expectativa de encontrar um modo eficaz de, além de analisar-interpretar certas obras, garantir-lhes “inteligibilidade por intermédio de uma narrativa que, à medida que se constitui, ordena os fatos ao longo do tempo e, com isso, estabelece uma temporalidade. (GUINSBURG; PATRIOTA, 2012, p. 16). São necessárias narrativas que, ordenando fatos teatrais, comecem a tessitura de novas temporalidades, em torno de outras espacialidades, o que garantirá inteligibilidade aos fenômenos. Portanto, como já discuti em trabalho anterior (MACIEL, 2017), se pensarmos a década de 1970 como um “momento decisivo” para o sistema teatral de Campina Grande, cidade a qual me referia nas primeiras linhas deste texto, isso só é comprovável por conta da efervescência atrelada aos espetáculos estreados naqueles anos, marcando uma dimensão factual dessa história, notadamente quando alcançam prêmios e destacado sucesso em festivais amadores também realizados em outros espaços. Assim, é possível garantir que as peças escritas e produzidas por Maria de Lourdes Nunes Ramalho forma essenciais àquele intenso movimento teatral, apontando, simultaneamente, para a concretização de um empreendimento individual (pois ainda se centralizava sobre a emergência da dramaturga) e para a busca por um modelo de grupo, ainda 70 Revista Cerrados v. 27 n. 46 Literatura, Artes e Inclusão Social amador, em meio à discussão sobre um modo moderno de encenar tais textos. Entender este movimento é assumir a problematização do construto conceitual que designa, assentado sobre bases cronológicas e espaciais hegemônicas, aquilo o que tem sido considerado sob a expressão teatro brasileiro moderno. Encarando esta discussão, percebi que tal cena local (ou regional) seria melhor compreendida pelas suas diferenças em relação à cena tida como nacional. Mesmo que o recorte feito tenha sido muito específico (inicialmente, pensei em quatro anos, muito significativos, a saber, 1973-1977),* as marcas da constituição dessa cena moderna, conforme a análise documental apontou, foram dadas pela obra da dramaturga Lourdes Ramalho, que, gradativamente, alcançou um projeto de teatro de grupo, o qual, desde 1974, se pretendia estável, principalmente em termos da constituição de um repertório, mas que, por conta de muitas reviravoltas, passará por muitas alterações de elenco e de direção até 1977 – mas, não podemos esquecer que a mencionada dramaturga, ainda viva (ela nasceu em 1920), produziu incessantemente até meados da primeira década do século XXI. Quando em 1973 Lourdes tornou-se a presidente da FACMA – Fundação Artístico-Cultural Manuel Bandeira, ela assumiu as produções de seu Grupo Cênico, o que culminou, respectivamente, nas estreias de Fogo Fátuo, em 1974, e, depois, de As Velhas, em 1975. Logo depois, ela consolida as ações de um outro grupo, o Grupo Cênico Paschoal Carlos Magno, o qual, até 1977, estará relacionado à SOBREART – Sociedade Brasileira de Educação Através da Arte, em sua sucursal paraibana, da qual a dramaturga se tornara delegada. Já em fins daquele mesmo ano, se deu a fundação do Centro Cultural Paschoal Carlos Magno, que incorpora o Grupo Cênico homônimo, abrindo espaço para convênios e captação de recursos, por exemplo, do Serviço Nacional de Teatro – SNT, com o fito de desenvolver atividades em escolas públicas da cidade e também a subvenção a montagens de espetáculos, a saber, A feira (1976, projeto de direção coletiva, depois passada às mãos de Florismar Gomes de Melo) e, depois, Os mal-amados (estreada em 1977, sob direção de José Francisco Filho). Lourdes Ramalho empreendia diferentes facetas de seu projeto de teatro, ancorado na sua dramaturgia, o que, ao fim e ao cabo, afinava-se com outras proposituras em vigência no Nordeste, enfaticamente em Pernambuco. Havia, em consonância a estas propostas estéticas modernas, a difusão do neorrealismo enquanto uma linguagem hegemônica no palco, que passará a buscar empatia com o público mediante a vida representada na cena, tornada um simulacro da realidade ou um espelhamento do seu cotidiano. Neste caso, este elemento é visto como originário de sua forte base popular. Pela análise documental em torno dos espetáculos ramalhianos, consegui comprovar a hipótese de que houve, no tumultuoso percurso do teatro moderno brasileiro, uma multiplicidade de modernidades, que se adequaram a diferentes modos de desenvolvimento da própria noção de moderno, mesmo que, na cena campinense, tenha se verificado Os resultados de parte desta pesquisa (especificamente aquilo que se refere aos anos de 1974-1975) foram apresentados ao PPGAC/UNIRIO como relatório de Estágio Pós-Doutoral, sob supervisão da Profa. Dra. Tania Brandão. Uma primeira discussão foi divulgada anteriormente (AUTOR DO ARTIGO, 2017), mas dados ainda inéditos daquela pesquisa reaparecem neste artigo, de modo a sustentar a argumentação sobre a relação forma-convenção. 71 * Revista Cerrados v. 27 n. 46 Literatura, Artes e Inclusão Social um processo tardio de implementação daquele paradigma. Os processos estéticos, em Campina Grande, foram muito marcados por uma convivência com convenções† e formas de temporalidades distintas e, em alguns momentos, até mesmo pelas impossibilidades de rápida superação dos padrões “velhos” de produção teatral. Seguindo este modo de compreender a cena local, também precisei entender a necessária afirmação da dramaturgia ramalhiana enquanto literatura, todavia, como uma literatura em relações estreitas com o fenômeno teatral, eclodindo dele e, muitas vezes, com ele (cf. MACIEL, 2017). Ao gosto da dramaturga, mas também dos elencos, do público e, depois, inclusive, dos ditames de certos editais e órgãos de fomento, Lourdes Ramalho explorou a possibilidade instituidora do que se chamava, em outros contextos, de um filão dramatúrgico. No caso em questão, muito vinculado à representação da regionalidade nordestina, formalizando um repertório bastante caro à cena local, e apontando para um modo de compor, mediante um aparentemente inesgotável diálogo com as fontes e matrizes populares, formalizando, estruturas dramatúrgicas – personagens, temáticas, fórmulas de enredo, desenhos cênicos que, uma vez apresentadas ao público, passam a admitir variações, desde que combinem a novidade com a repetição, de modo a serem percebidas como o novo familiar. [...] (WERNECK, 2003, p. 144). No Brasil, a noção mais comum acerca do teatro moderno esteve sempre atrelada às revoluções estéticas ocorridas na Europa e, por conseguinte, marcada pela oposição às formas com mais popularidade (identificadas como “velhas” e popularescas). Mas, em termos de mercado, havia uma forte resistência à renovação moderna, notadamente no que dizia respeito à atividade de autores e atores envolvidos em empreendimentos diversos e que, assim, refaziam um percurso artístico cruzado por outras práticas culturais e sociais, compondo um panorama de sua atuação mais ampla em meio ao sistema teatral. Para entender esses liames, é preciso, no caso em tela, pensar uma relação processual, com ênfase sobre o texto em cena, de maneira muito próxima às acepções já discutidas por Raymond Williams (2010) – e isso é bastante relevante para “elucidar as relações e tensões entre o drama em sua forma literária e em sua realização cênica” (RAMOS, 2010, p. 07). Nessa elucidação, portanto, não só se definem padrões formais, mas convenções atuando nestes padrões, mediadores para se verificar um consenso contemporâneo às condições de representação – compartilhamento que se dá entre Para Raymond Williams (1983), a ideia de convenção é basilar para se entender o drama enquanto forma. E, nesta seara, ele aponta que pode ser tomada enquanto conceito para dizer tanto de um “acordo tácito” quanto de certos “padrões aceitos” (na acepção de regras formais), ou seja, como aquilo sobre o que todos os envolvidos no processo de performance teatral, incluído o público, concordam em vista da realização de um espetáculo, por exemplo, o entendimento de que, em “uma peça naturalista, por exemplo, a convenção é de que a fala e a ação devem parecer o mais próximo possível com aquelas da vida cotidiana” (WILLIAMS, 1983, p. 04. Tradução nossa). 72 † Revista Cerrados v. 27 n. 46 Literatura, Artes e Inclusão Social um “certo texto dramático, com sua encenação e a consequente recepção” (RAMOS, 2010, p. 10). No caso de Lourdes Ramalho, sua dramaturgia surgiu em meio a processos culturais relativos às discussões em torno do regionalismo nordestino, indicando uma necessária reflexão crítica sobre a representação do Nordeste e do nordestino, indo além do simplório quadro típico ou da simples sedução pelo pitoresco da linguagem. Nas obras já citadas, a busca pela representação realista da prosódia regional, por exemplo, era uma bandeira, um marco e uma marca de um projeto estético, adequado à construção realista-naturalista das personagens na cena – neste sentido, era um método teatral, uma técnica em pleno desenvolvimento, fazendo com que, àquela época, começasse a já ser, de fato, uma convenção, aceita pela dramaturga, pelo elenco e, obviamente, também pelo público local. Esta tríade, no dizer de Raymond Williams (1983, p. 06), concordava tacitamente que este “método particular a ser empregado [era] aceitável”, e este acordo, como se depreende de muitos depoimentos e críticas coetâneos, precedia a própria realização cênica. Todavia é importante pontuar que, na recepção externa à Paraíba, daquelas montagens havia um destaque para este elemento convencional: em uma crítica paranaense, relativa à apresentação de As Velhas, em 1975, em Ponta Grossa, o articulista destaca que aquela apresentação “foi uma mostra de linguagem do agreste paraibano, [...] que conservou no texto toda a pureza da comunicação dos sertanejos, e que, para ser entendido pelas plateias do Sul, exigiu inclusive a distribuição de um pequeno dicionário” (MILLARCHI, 28/10/1975). Ou seja, fraturando a tradição da fala cotidiana e ordinária do realismo-naturalismo do drama burguês, tão comum em nossos palcos desde inícios do século XX, a dramaturga rompia com um uso (enquanto um consentimento tácito, se entendemos que a modalidade de fala-falada, dentro de uma norma linguística padrão, também é uma convenção) e se lançava à pesquisa de novos meios técnicoexpressivos (estabelecendo uma convenção, enquanto um novo método). Mesmo assim, em certas situações de recepção, foi preciso contar com uma outra adesão do público, que precisava ser conduzido à interpretação de certas convenções linguísticas, demonstrando que se tinha uma “plena consciência da novidade ou estranheza dos meios [que podiam] interromper a totalidade da comunicação de uma peça, assim como dar margem a uma recusa” (WILLIAMS, 1983, p. 08). Autora moderna e citadina, mas que ainda trava relações de ampla convivência com a vida do interior em sua fatura artística, Lourdes Ramalho sempre professou a necessidade de expor suas raízes culturais, sob um medo atávico de que elas estejam em vias de desaparecer, mesmo que as afirme, paradoxalmente, como muito vivas. Assim, essa convenção teatral ramalhiana (recortada apenas no que se refere à língua falada pelas personagens no palco) vai se formalizando em meio à irrupção de um “estilo esquizofrenicamente dilacerado entre um léxico que procura apanhar a voz do homem pobre da zona rural e a frase correta” (CHIAPPINI, 1994, p. 685), comum nas obras de extração regionalista. Isto expõe a maneira como aquela dramaturgia vai se tornando mais poderosa do que a cena produzida nos palcos, pelos menos é o que revelam as documentações sobre recepção com as quais tivemos contato até agora. 73 Revista Cerrados v. 27 n. 46 Literatura, Artes e Inclusão Social Neste sentido, a região, como propõe Haesbaert (2010), reconstruída artisticamente, pode ser vista como um arte-fato, no sentido de romper com a dualidade que muitos advogam entre posturas mais estritamente realistas e idealistas, construto ao mesmo tempo de natureza ideal-simbólica (seja no sentido de uma construção teórica, enquanto representação ‘analítica’ do espaço, seja de uma construção identitária a partir do espaço vivido) e material-funcional (nas práticas econômico-políticas com que os grupos ou classes sociais constroem seu espaço de forma desigual/diferenciada). “Arte-fato” também permite indicar que o regional é abordado ao mesmo tempo como criação, auto-fazer-se (“arte”) e como construção já produzida e articulada (“fato”) (HAESBART, 2010, p. 07). Desta feita, para voltar àquela demanda inicial deste artigo, não estou apenas lidando com o dado local, mas perscrutando o seu caráter mais amplo, ativo na esfera estadual, nacional e (também, óbvio) global das práticas teatrais, em que se cruzam o debate sobre o estatuto do texto no teatro, a questão da requerida “revolução cênica” do teatro moderno e as consequências que envolvem a atividade estética em meio a um mercado teatral frágil, diagnóstico ainda viável até a data de hoje na cidade de Campina Grande. Assim, aspectos centrais dessa modernidade teatral dizem de uma “função compensatória” em relação ao novo, urbano e cosmopolita, de acordo com Ligia Chiappini (1994), no que concerne ao regionalismo, especialmente o nordestino. Certamente, foi esta sorte de busca que acionou a dimensão estética de uma pesquisa estética como a empreendida por Lourdes Ramalho, voltada às maneiras pelas quais no teatro, como resistência, se clamava pela necessidade do encontro com os modos para se ultrapassar as formas artísticas cristalizadas pela comédia ligeira, e que, pela persistência na cultura, foram se tornando modelos bastante convencionais (aqui, me refiro ao sentido de “limitado”, “descontextualizado”, “desgastado”) de representação do povo, da região e da cultura popular na literatura, na música, no cinema... Em termos compensatórios, portanto, a novidade se revelaria na técnica dramatúrgica e, depois, nas possibilidades de encenar modos de formalizar a cultura nordestina como representação de um conjunto de manifestações de cultura e expressões da vida social e da sociabilidade tomadas no limiar de um tempo histórico em que se dava uma radical transformação nos centros urbanos e nas suas relações sociais e de produção. Esse duplo movimento pode começar a ser esclarecido mediante uma compreensão ampla da definição de estrutura de sentimentos, descrita pelo mesmo Raymond Williams (1983) como um conceito operativo, capaz de elucidar aspectos de um processo estético-formal em que uma dada forma particular começa a ser tomada como uma forma geral, em estreitas relações com um tempo-espaço e sua historicidade, pois o que “é vivido e produzido por uma dada comunidade em um dado período está, acreditamos agora, profundamente relacionado” (WILLIAMS, 74 Revista Cerrados v. 27 n. 46 Literatura, Artes e Inclusão Social 1983, p. 09).‡ Nesta direção, através do texto dramatúrgico (e da documentação que cerca sua montagem teatral) podemos, como resultado de uma metodologia empenhada, apreender dados da materialidade espetacular-teatral, bem como do contexto (seus meios de expressão e suas condições de produção/recepção) que viabilizou tal realização cênica, reconstruindo “com mais ou menos precisão, a vida material, a organização social geral e, numa dimensão maior, as ideias dominantes” (WILLIAMS, 1983, p. 09). Ou seja, Lourdes Ramalho, em suas obras, está trabalhando na formalização de um modo de sentir, e isso se dá de maneira consciente, na medida em que ela passa a lidar com os meios disponíveis, ou seja, com as convenções enquanto método, incorporando-os na estrutura formal e tornando-os acessíveis mediante a peça performada em um palco. É válido destacar que, através desse conceito, Williams se refere a modos de sentir e de formar de uma dada época, notadamente quando articulados às convenções – ou seja, os sentimentos estão perceptíveis nas estruturas pois, nelas, eles estão postos como articulações formais. Assim, abre possibilidade para entendermos as técnicas ou as convenções de um dado tempo-espaço do teatro, mas, antes, a maneira como os modos de sentir, formalizados em obras, no dizer de Nayara Brito (2015, p. 26), “geram, por sua vez, técnicas ou convenções específicas características de um período”, pois “é a experiência do artista com o seu tempo que, formalizando-se nas obras artísticas, origina novas técnicas e convenções, assim como é pela experiência direta do espectador com a obra artística que ele consegue apreender o que seria a estrutura de sentimento de uma época”. Aquela estrutura de sentimentos só é perceptível, hoje, mais de quarenta anos depois, no caso das peças em comento, porque foi amplamente compartilhada, examinada e generalizada, via formas particulares de construção daquela autora (também através de convenções bem particulares, tais quais o já aludido uso de um modalidade prosódica ou de certos grupos temáticos formalizados em soluções arquitetônicas de construção dos personagens e ações), como também via processos que dialogaram com elementos antes presentes em outras formas gerais (como aquelas já praticadas, por exemplo, na releitura do entremez ibérico e de certas feições do drama moderno, notadamente o de García Lorca, tanto na obra ramalhiana, quanto na de Ariano Suassuna ou de Hermilo Borba Filho, convencionando uma nova maneira de compreender o drama moderno a que chamaríamos, aqui, de nordestino, em clara coexistência com convenções de estruturas alternativas a estas, advindas do teatro ligeiro, do circo e das danças dramáticas populares), pois [...] mudanças nas convenções artísticas nunca são casuais ou fruto de meras escolhas técnicas, todas as mudanças nos métodos das várias formas de arte estão essencialmente relacionadas com Para Raymond Williams, conforme Gomes (2011), os produtos culturais (por exemplo, as obras teatrais) de “uma comunidade num determinado período são essencialmente relacionados, ainda que, na prática, isso não seja fácil de perceber” (p. 39) – ou seja, enquanto conteúdo precipitado em forma, essa experiência em comum pode ser estudada como uma experiência vivida em um dado tempo. 75 ‡ Revista Cerrados v. 27 n. 46 Literatura, Artes e Inclusão Social mudanças na estrutura de sentimento de uma dada sociedade. Uma convenção, nesse sentido, é sempre um método criado para dar expressão a um novo modo de sentir: ela sempre encontra sua contraparte na estrutura de sentimento e é nela que ela se torna tacitamente aceita (GOMES, 2011, p. 40, grifo da autora). Se pensarmos junto com Jonathan Culler (1999), quando ele discute a literatura enquanto uma prática social, rapidamente nos depararemos com as contradições desta mesma acepção – obviamente, estamos diante de uma visada, a qual pode ser contraposta, mas, de entrada, consideremos o seguinte questionamento: seria a literatura um instrumento ideológico? Ou seria ela um lócus onde a ideologia é exposta e tornada passível de questionamento? Para o teórico, ambas “as asserções são completamente plausíveis” (CULLER, 1999, p. 45). A partir dela, tangencio uma dimensão sobre a qual já me debrucei, também em trabalho anterior (MACIEL, 2012), afirmando que, ao leitor-pesquisador da obra de Lourdes Ramalho, era urgente assumir uma atitude crítica frente ao “incômodo” que pode ser causado por algumas certezas esquemáticas, presentes em alguns dos textos da dramaturga, o que para alguns poderiam beirar o “localismo”, o “pitoresco” ou o “exotismo”, por exemplo, no que se refere ao recorte do aspecto temático ou mesmo na construção de tipos muito atrelados a uma espécie de quadro de costumes, o que, em certos momentos, pode gerar uma visão algo rápida, naturalizada e difusa sobre problemas que pediriam maior desenvolvimento crítico na forma estética (MACIEL, 2012, p. 98). O professor Durval Muniz de Albuquerque Júnior, referência consolidada ao se tratar de certos temas em torno do Nordeste (e de sua “invenção”), já afirmou que a dramaturgia de Lourdes Ramalho seria uma reiteração dos “principais temas enunciados, imagens e estereótipos constitutivos dos discursos em torno da região Nordeste” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013, p. 25. Nota 11), ganhando notabilidade no âmbito dos rótulos e das etiquetas que serviram para inventar um Nordeste vazado na sua cultura popular, vinculada ao passado rural e tradicional, instituído pelo discurso daqueles que dizem a região: enfaticamente, seus intelectuais e artistas. Esta é uma maneira de ler a questão, mas não é a única. Dela eu discordo parcialmente, pois prefiro tomar a irrupção de uma discussão sobre a regionalidade, entendida enquanto um processo de criação, tanto da “realidade” quanto de representações regionais, em que elas não podem “ser dissociadas ou que uma se coloque, a priori, sob o comando da outra – o imaginário e a construção simbólica moldando o vivido regional e a vivência e produção concretas da região, por sua vez, alimentando suas configurações simbólicas” (HAESBAERT, 2010, p. 8). Penso, portanto, a regionalidade como um modo de sentir-formar, ou mesmo como uma estrutura de sentimentos, que não deve estar apartado em relação às bases materiais, ao ‘realismo’ sobre o qual a região também é construída. Descolamento que subvaloriza ou mesmo menospreza, nessa ‘produção regional’, a ação concreta e a 76 Revista Cerrados v. 27 n. 46 Literatura, Artes e Inclusão Social atividade material dos múltiplos sujeitos que aí estão produzindo seu espaço, que é sempre, ao mesmo tempo, material e simbólico (HAESBAERT, 2010, p. 10, grifo do autor). Pretendo – a despeito da avaliação de Albuquerque Júnior, previamente citada, e de tantas outras que leem a dramaturgia de Lourdes Ramalho como um “documentário” ou que a valorizam por ser dotada de uma esfera de “autenticidade” –, ponderar sobre estes lugares-comuns da crítica, o que pode, talvez, contribuir para desnaturalizar esta visão de sua obra como cópia (ingênua ou reflexo imediato) da realidade regional, reconhecendo, todavia, “que, embora ficcional, o espaço regional criado literariamente aponta, como portador de símbolos, para um mundo histórico-social e uma região geográfica existentes” (CHIAPPINI, 1995, p. 158). Daí, como se pode atestar, esta discussão se articular a uma outra, da qual é derivada: aquela que se debruça sobre o debate em torno do regionalismo e as marcas que dele brotam, quase como máculas para a produção de muitos dos dramaturgos nordestinos – o que, revela, na verdade a estreiteza daquele que assim pensa, na verdade. Todavia, se penso as obras de Lourdes Ramalho dentro dessa discussão e se as coloco diante do impasse antes apontado a partir de Culler (1999) sobre a literatura (neste caso, a dramaturgia) enquanto uma prática social e suas relações com a ideologia, certamente, posso entender aquilo que, no meu trabalho anteriormente citado, eu pretendia tomar como um conjunto de “certezas esquemáticas”, inscritas, portanto, na esfera temática e em certos perfis de construção das personagens. Essa dimensão, seja no âmbito da fatura estética ou no âmbito da recepção, podem dizer mais daquilo que, na esfera ideológica, vem sendo tomado de modo rápido, naturalizado e difuso – ora mantendo a ideologia, muitas vezes reacionária, ora contestando-a, com vistas a sua modificação. A partir da conclusão de Culler, afirmo que o impasse é cabível e que se resolve na síntese de sua dupla plausibilidade: pois, tanto “encoraja a leitura e as reflexões solitárias como modo de se ocupar do mundo e, dessa forma, se opõe às atividades sociais e políticas que poderiam produzir mudança”, quanto “promove o questionamento da autoridade e dos arranjos sociais” (CULLER, 1999, p. 45). Creio que isso, talvez, lance luz sobre o que, àquela altura, eu tinha por intenção de denominar de “certezas esquemáticas”, neste caso, a cabeça bifronte da crítica literária e da própria fatura estética de obras identificadas, pela mesma crítica, como regionalistas – elas, afinal, trazem oscilações ideológicas ou estéticas, oscilações na abordagem de problemas centrais (como a questão étnico-racial, por exemplo, ou questões atreladas a um excesso de tipificação), mas isso diz mais da movência em meio ao ambiente cultural e às próprias convenções e técnicas de seu tempo. É importante considerar uma noção de uma modernidade teatral própria e em desenvolvimento no Nordeste do Brasil, pelo menos desde os anos de 1940, circunscrita à construção de uma cena marcada pela regionalidade, atuando no processo de modificação relevante de certas convenções modernas, que encontrou resistência no âmbito dos padrões impostos pela cultura teatral hegemônica, a saber, a do eixo Rio-São Paulo. Essa resistência acabou por fazer eclodir novas convenções para uma cena, infelizmente, sempre reduzida ao rótulo de “regional”, que, para certos setores críticos, ainda hoje, mais diz de resíduos do passado no 77 Revista Cerrados v. 27 n. 46 Literatura, Artes e Inclusão Social presente, incômodos à sempre demandada emergência de novos paradigmas (mais adequados às esferas de modernidade/contemporaneidade, talvez por serem relativos a aspectos de vida urbana, industrial, etc.) em contradição com as representações de modos de vida tradicionais, atávicos e, portanto, inventariados como atrasados. Mas, será que isso dizia (ou mesmo diz) de uma estrutura de sentimentos formalizável em obras de teatro naquele contexto? Ou, melhor dizendo, será que na década de 1970, seria essa ideia de modernidade uma convenção verificável na estrutura de sentimentos em vigência nos sistemas teatrais do Nordeste? Diante de questionamentos como estes, as obras são postas no fio da navalha que separa repulsa e atração: a primeira, porque parecem estar apenas dispostas ao esquematismo, à superficialidade do pitoresco, sendo, então, reacionárias; a segunda porque, ao mesmo tempo, podem ultrapassar tudo isso e alçarem a condição de ‘obras-primas’ (a despeito de uma atitude marcada, na crítica, pelo “apesar de”), por conta de suas possibilidades éticas, tal qual discute Ligia Chiappini (1995). Chego então à possibilidade de ler no teatro nordestino uma ruptura com o sistema de semelhanças (marcado pela atração, ora pela repulsa, ao regional) no âmbito nacional, voltado à expressão de elementos de cultura popular, como hábitos, linguagens, ora tomando-os como ornamentais, outras vezes como radical formalização de regionalidade. Portanto, leio nas obras de Lourdes Ramalho uma clara definição de uma perspectiva sobre a regionalidade nordestina, se tomarmos esta região, como propõe Ligia Chiappini, não apenas enquanto um lugar localizável no mapa de um país, não só porque a própria geografia já superou, há muito, o conceito positivista de região, analisando-a como uma realidade histórica e, portanto, mutável, como porque a regionalidade não supõe necessariamente que o mundo narrado se localize numa determinada região geograficamente reconhecível, mas sim ficticiamente constituída. O que a categoria da regionalidade supõe é muito mais um compromisso entre referência geográfica e geografia fictícia. Embora fictício, o espaço regional criado literariamente remete, enquanto portador de símbolos, a um mundo histórico-social e a uma região geográfica existente. A regionalidade seria, portanto, resultante da determinação como região ou província, de um espaço, ao mesmo tempo, vivido e subjetivo (CHIAPPINI, 2014, p. 52). A regionalidade nas obras ramalhianas enforma-se, assim, a partir dessa visada em que se equilibram as referências espaciotemporais “do real” e aquelas relativas a uma geografia e a um tempo, recriadas pela possibilidade de tornar a região um “arte-fato”. Esse modo de lê-las foi acionado desde a estreia de FogoFátuo, em 1974. Neste texto, as personagens se digladiam por melhores condições de vida, em meio a relações de produção de riquezas e exploração da força de trabalho dos pobres em torno de uma mina, tendo como pano de fundo situações que apontam para a construção daquele sentimento de regionalidade: tudo é cozido 78 Revista Cerrados v. 27 n. 46 Literatura, Artes e Inclusão Social pelas ações relativas à exploração da xelita para ser vendida ao norte-americanos, expondo um movimento dialético de ganhar-perder, estruturante da trama. A peça parece ser construída à guisa de um tableau vivant, indicando que a dramaturga evoca mais as situações de conjunto do que as ações das personagens individuais, representando ambientes e a sua realidade cotidiana, dissecando comportamentos e tocando o fait divers para compor um espaço-tempo regional com referência histórica, a saber, o pós-guerra, nos entornos de 1945, quando se deu o avanço da economia estadunidense e do seu imperialismo. Na cena, o palco deveria, conforme a dramaturgia, ser dividido em duas áreas, distinguindo dois espaços dramáticos-cênicos: a mina e o rancho. O primeiro é o lugar do trabalho, da vida difícil dos garimpeiros, marcado pela exploração (do trabalho e do minério), construído cenograficamente por uma “espécie de entrada de galeria subterrânea, feita em madeira, por onde os homens mergulham nas profundidades” (RAMALHO, [ca. 1980], p. 175);§ o segundo é o lugar das conversas, das relações sociais e afetivas, que movem o conflito, apontando paradoxalmente para o sonho, para o desejo de uma vida diferente e para a reflexão comunitária sobre a realidade circundante – este espaço é marcado pelo mobiliário construído sobre referências realistas, com “mesa, tamboretes, objetos de cena como xícaras, bule, pratos, trempe com panela, abano, alguidar de barro, concha de mexer feijão, colher de pau” (p. 175). As cenas não se desenvolvem em esfera de simultaneidade, e são raras as que se dão por continuidade nos dois espaços: elas transitam de um área cênico-dramática para a outra, enquanto compartilham o mesmo palco. No texto, as indicações de iluminação cênica são sumárias, mesmo que, em alguns momentos, elas apareçam (indicando poucos focos de luz para ajudar nas mudanças de cena, mas tudo de maneira muito objetiva e simples, o que pode dizer da quase ausência de recursos de iluminação nas salas de teatro campinense naquele ano). As rubricas são mínimas, remetendo à escrita de uma autoraensaiadora,** que produzia de modo bastante direcionado ao seu elenco, formado por atores cujas capacidades apontavam para a construção dos papéis,†† via uma Publicado em 1980, o texto já incorpora a exclusão da personagem Maria Augusta, que permanece apenas na dimensão épico-narrativa da trama. Até o presente momento, não consegui localizar uma versão do texto de 1974, portanto, me refiro ao que é possível depreender da versão impressa disponível. ** Aqui estou empregando este termo conforme Chiaradia (2003, p. 156), quando, ao tratar do contexto do mercado de teatro ligeiro nas primeiras décadas do século XX, considera que os dramaturgos assumiam um papel de autores-ensaiadores, sem distinguir o processo de escrita dramatúrgica da encenação, configurando um embrião de moderno diretor. Naquele contexto relativo aos anos de 1970, Lourdes Ramalho demonstra interesse pela carpintaria do espetáculo, possivelmente como possibilidade de remediar a relação precária entre os elencos e os diretores, o que ocorreu já em 1974, quando o diretor Rui Eloy só conseguiu ensaiar com o Grupo Cênico três contadas vezes – ou seja, Lourdes se tornava corresponsável pela construção da cena juntamente com seu elenco, formado basicamente por jovens universitários. †† Segundo Reis (2013, p. 53. Nota 23), o papel denomina as “funções dos atores que advêm não apenas dos textos, mas também de um código de interpretação não escrito (aparência física e gestualidade do personagem), em momentos da história do teatro com formas teatrais rigidamente codificadas”, sendo este conceito mais adequado para o contexto em análise que o de tipo, “geralmente utilizado por autores que qualificam as hierarquias de atores dentro das convenções 79 § Revista Cerrados v. 27 n. 46 Literatura, Artes e Inclusão Social dada acepção de escrita para o palco em que o texto é parte muito relevante ao processo de montagem do espetáculo: não há descrição física das personagens, ou mesmo de suas temperaturas psicológicas. Nas fotos e outros documentos em torno dessa montagem de estreia, tudo indica um trabalho atoral próximo da interpretação espontânea, o que acaba por comunicar rapidamente com a plateia, sem qualquer aprofundamento técnico específico para a construção física ou da psicologia das personagens. Em Fogo-Fátuo, é inegável que João Campina é o centro gravitacional de algumas situações, mas não sei se é tão claro que ele seja o protagonista, pois há várias maneiras de olhar para essa trama, a qual não se esquiva da crítica social, nem tem um desfecho convencional. Desde a primeira cena, o assunto central é a mina, os trabalhadores (em disputa com a patroa, Maria Augusta) e a possibilidade de explorar o minério – a xelita – que pode ser vendido para os “gringos” e garantir bons rendimentos, obviamente, para os donos. Também se sobressai, quando a ação está localizada no rancho, a presença de Dona Santa, a proprietária que sobrevive cozinhando para os garimpeiros. Neste contexto, essa personagem é erigida por oposição a Zefa, a quem se refere como uma espécie de “cria da casa”, desde logo caracterizada pelos impropérios da ‘madrinha’ e construída como uma transição entre a jovem inocente e a mulher sexualmente desejante (“a safada vive correndo atrás de macho”, “cabrita andeja”), de quem a mais velha afirma conhecer as manhas. Dona Santa também se vê como diferente de Maria Augusta, mulher rica e que ostenta sinais das zonas urbanizadas, para além do seu poder financeiro, pois é “largada do marido, vestindo calça de homem, fumando – isso é um escândelo [sic.]”, no dizer de Dona Santa. Mesmo sendo chefe de sua própria força de trabalho e dos seus meios de produção, a dona do rancho, ainda assim, depende da mina e, por consequência, de Maria Augusta, a quem dirige certo rancor, pois as terras onde se explora a mina já foram suas, tendo sido vendidas a preço baixo, apontando para um primeiro mote da oposição entre as mulheres na trama. São erigidos perfis femininos bem distintos: a mulher aristocrática e urbanizada de um lado e, de outro, a trabalhadora, que, por sua posição subalterna (mas, também, por seus valores), segue regras de comportamento e de moral. Essa oposição põe Santa em conflito com Zefa e, posteriormente, com Dora, uma “mulher livre”, deixada por Neco e tornada “a pior tarrafa que existe aqui”, fazendo carreira no Rói-Couro (o mesmo que prostíbulo). Sobre João Campina já sabemos que ele vende pão de porta em porta, mesmo sendo malandro e preguiçoso. Este personagem, por si, acaba ganhando muito destaque em meio ao conjunto de tipos ramalhianos, sendo, dentre eles, um dos seus poucos personagens negros. Zefa também é negra (ou mestiça, isso não fica claro) e sempre se insinuam suas semelhanças em relação ao pãozeiro. A despeito de ser preguiçoso, ou de ser chamado de preguiçoso por Dona Santa, João reluta em se envolver nos negócios da mina, pois, como diz, “Vou lá ajudar rico a pisar mais os pobres?”. Casusa, um dos garimpeiros, entra em cena para tentar conseguir a adesão do negro, pois, naquele lugar, só ele teria os conhecimentos necessários à descoberta dos veios de minério, o que despertaria a confiança do do teatro brasileiro do início do século”. 80 Revista Cerrados v. 27 n. 46 Literatura, Artes e Inclusão Social grupo de garimpeiros, agora contrários a Neco, o antigo chefe da turma, já que ele anda amasiado com a patroa. Os dois lados do conflito se acirram. Neco, cooptado, será acusado de ser conivente com os acordos propostos, mas, pior ainda, de fiscalizar e até mesmo denunciar companheiros de trabalho na delegacia, em favor dos lucros de Maria Augusta. João, assim, levanta-se contra os impropérios de Neco e arma-se o primeiro impasse radical: sem ele não há hipótese de os garimpeiros enfrentarem o trabalho. Casusa só segue para a mina com João, desmontando a posição de liderança de Neco; por seu turno, Dona Santa, que depende dos trabalhadores em campo, caso não haja trabalho na mina, terá de fechar seu barracão, causando prejuízo a Biró, que não teria mais para onde levar a água que vende. Ao fim e ao cabo, João cede – e parece ser a favor da coletividade. Se havia uma primeira oposição já travada entre a proprietária da mina e a dona do rancho, esta oposição se duplica para uma outra sorte de conflito entre personagens femininas, como Zefa e Dora, quando esta disputa com aquela a atenção dos homens, mesmo que a mulher mais velha e mais experiente, segundo consta, esteja amasiada com um médico, ganhando, assim, posição de enfermeira na cidade. Em meio à discussão entre as mulheres, surgirá, sorrateiro, Zé Babão (caracterizado diante de uma série de elementos de um papel condizente à construção de um homem homossexual e mexeriqueiro), que media a discussão das duas sobre João Campina. É nesta cena que um procedimento recorrente começa a se formalizar: as narrativas sobre João Campina. Nesta altura, ele é ora referido como preguiçoso, fedorento e tantos outros adjetivos que o preconceito contra os negros reproduz no discurso comum; mas, ao mesmo tempo, ele aparece como um homem que desperta o interesse sexual e afetivo de Zefa, como de tantas outras, notadamente agora, quando deixou a preguiça de lado e passou a dar ordens no caso das xelitas. Este primeiro ato da peça, assim, chega ao clímax com um estouro de dinamite na mina, de onde sai o negro com as mãos cheias de pedras, aos gritos de “estamos ricos”. No segundo ato, há logo de início a indicação de uma passagem de tempo. João Campina já está negociando a xelita com os norte-americanos e Zefa está escondendo o primeiro mês de gravidez. Algumas relações entre personagens, assim, se precipitam, esgarçando a linha de desenvolvimento do enredo, mas, ao mesmo tempo, aprofundando contradições entre personagens e situações. A função de Zé Babão se radicaliza enquanto elo entre os espaços externos à cena – como a casa de Maria Augusta, de onde chegam as informações advindas da cidade, na qual todos afirmam ver João Campina amasiado com Dora, ou, também, os relatos dos casos e trapaças ocorridos na feira central de Campina Grande, onde João Campina é conhecido como “o dono do cabaré”. É Zé Babão, assim, que começa a chamar atenção das outras personagens para o enriquecimento rápido do negro, insinuando que ele possa estar ludibriando os demais: em consórcio com os “gringos”, ele mudara hábitos, vestindo-se de linho branco e falando um inglês estropiado, como estratégia para se destacar em meio aos demais garimpeiros, que também o acusam de desvio de dinheiro para bancos no exterior. Todas as personagens começam a cobrar dele, então, uma tomada de posição, seja sobre o caso da mina, seja sobre as promessas de casamento com Zefa, a despeito de ele já ser casado: em meio à precipitação dos fatos, perseguido por Neco e sob ameaça 81 Revista Cerrados v. 27 n. 46 Literatura, Artes e Inclusão Social da polícia, depois de uma grande briga no rancho, João Campina escapa e some. Diante disso, o argumento da dramaturga poderia apontar para uma produtiva chave de leitura do texto, concernente à representação crítica da região Nordeste, através da interpretação de João Campina enquanto agente de um momento histórico em que se fazia necessário discutir as importações culturais e a invasão do capital estrangeiro no Nordeste: à sua força devastadora, o povo se dobrava, seduzido por suas novidades, sem entender que, ao fim de tudo, depois desta maneira capitalista engendrar novos modos de ser e de estar, o que restaria seria perda e alienação, ou, talvez, o eterno retorno às origens, marcadas fortemente pela dinâmicas da cultura tradicional, esteio e porto seguro. É assim que surge um modo possível de se ler o desfecho da peça, talvez, até mesmo como um pouco conformista, mas com certeza nem um pouco romântico: na última cena, que funciona como epílogo, retoma-se aquele procedimento ao qual eu já me referi – estão em diálogo Dona Santa, Zé Babão, Casusa e Biró, Dora e Zefa, aqueles que, realmente, perderam com os acontecimentos relativos ao ciclo de enriquecimentoempobrecimento rápido em decorrência da exploração da mina. João Campina, ausente da cena, torna-se núcleo temático do diálogo, estruturado para construir as muitas narrativas sobre as mortes do malandro (chegadas ali a partir de muitos pontos de vista) e sobre o destino do farto dinheiro – ou gasto com farras e mulheres, ou, então, enviado, como se especula, para bancos internacionais. A esperança de enriquecimento, afinal, esvaiu-se como o fogo-fátuo do título, mas restaram as narrativas em torno de João Campina, movendo ainda paixões: Zefa chora a possibilidade de vir a ter um filho sem pai, pois a notícia chegada diz que o malando teria se enforcado, após ser preso; Dora, despeitada, se sente vingada por João ter morrido no cabaré da feira, após uma farra gastronômica e erótica, pois que ele a abandonara. Aos muitos discursos sobre esta proverbial morte, Zé Babão começará a contrapor todas as narrativas envolvendo o comportamento vicioso e as embrulhadas do suposto defunto, ao que Dona Santa, como último recurso para salvar a alma do morto, resolve puxar uma ladainha, posta em contraponto aos comentários jocosos de todos os que estão em cena. João Campina reaparece, cantando como habitualmente, com seu balaio de pães sobre a cabeça e esmolambado como outrora, sem mais portar os signos de seu enriquecimento. A peça termina com todos atônitos: fantasma renascido por ter sido tão chamado de volta à vida, como apregoam as tradições populares, ou apenas o retorno do mesmo João de sempre, vivo e malandro, à sua condição primeira de pãozeiro, após as agruras sofridas por conta do pacto mefistofélico malogrado com o capital. Esta personagem é a síntese de uma prospecção de um vir a ser do nordestino, poeticamente tecido e proposto na peça pelas teias de uma representação e interpretação do embate travado com as promessas da modernidade em contraposição às estruturas tradicionais e seus modos de vida. Pelo modo de formar, a dramaturga expõe a regionalidade na configuração desse embate, no intento de conseguir adesão crítica de seu público no tocante a esta questão central para ela. Estes breves comentários se ancoram na versão do texto que foi publicada. As críticas e comentários sobre ela são pouquíssimos, como também as fotos que dela restaram: tudo remete à efemeridade de um fogo-fátuo. Mas, se tomamos o 82 Revista Cerrados v. 27 n. 46 Literatura, Artes e Inclusão Social horizonte deste texto ramalhiano, o emploi parece ser nele uma convenção tocada em suas potencialidades, pois é coerente à sua construção fabular baseada, portanto, em uma codificação estrita, que é, na cena, recodificada para além do desenho de um quadro típico, ao manipular formas tradicionais que, permanecendo em vigência, puderam ser recodificadas e tornadas um modelo a ser continuado, em vista do teatro regional de fundo popular. Para uma problematização mais alentada, seria necessário investigar mais cuidadosamente a relação entre elencos e personagens, notadamente, nas temporadas de repertório do ano de 1977, o que poderia atuar na confirmação desta hipótese.‡‡ Lourdes, portanto, com Fogo-Fátuo, está dando o primeiro passo rumo à concretização de um repertório que, sendo popular, reprisa-se em termos de soluções abraçadas como bem-sucedidas (o filão, já comentado) pelo seu público, sem perder de vista a necessidade de renovação. A modernidade, no que se referia à atividade teatral campinense, parecia ser, nos 1970, ainda algo involuntário, apoiado sobremaneira na força do indivíduo singular (o ator, a atriz, a dramaturga, o diretor), capaz de coordenar e de empreender, mesmo que isso ainda não diga das esferas do individualismo. Isto é revelado nas cenas da peça, montadas com os conjuntos – pelo menos assim são as fotos sobreviventes ao tempo e à desordem das pessoas e dos seus arquivos – para compor o tableau vivant, elucidando, para o espectador, o fait divers sobre o qual se erigia a dramaturgia. Mesmo sob o risco de estabelecer um truísmo, começa a ficar claro que o recorte em torno dos eventos de 1974-1975, por sua dinâmica em meio à emergência de condições de circulação mais amplas (por exemplo, em festivais estaduais e nacionais) da obra ramalhiana, acaba apontando para uma via de monumentalização desta mesma obra, notadamente a dramaturgia. Este é um viés sobre o qual se assenta uma versão da história, circulando até hoje nas memórias sobre a cena campinense. Referências ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A feira dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (Nordeste – 1920-1950). São Paulo: Intermeios, 2013. BRANDÃO, Tania. Artes cênicas: por uma metodologia da pesquisa histórica. In: CARREIRA, André [et. al.]. Metodologia de pesquisa em artes cênicas. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006. p. 105-119. BRITO, Nayara Macedo Barbosa de. Formas de ser um, de ser só: Modos de sentir da dramaturgia brasileira contemporânea. 2015. 113 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Programa em Pós-graduação em Artes Cênicas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015. Disponível em: < De modo muito apressado, ao analisar as funções das personagens em Fogo-Fátuo, identifico a seguinte categorização do emplois, mesmo que marcada por uma espécie de erosão: Dona Santa (a característica), Zefa (a ingênua), João Campina (o galã cômico, mesmo que em posição de subalternidade, ou, então, um criado ladino), Neco (centro), Casusa e Biró (confidentes), Zé Babão (o confidente ladino, por oposição a João Campina) e Dora (a dama galã). 83 ‡‡ Revista Cerrados v. 27 n. 46 Literatura, Artes e Inclusão Social https://www.ufrgs.br/ppgac/wpcontent/uploads/2016/02/DISSERTA%C3%87%C3%83O_vers%C3%A3ofinal.pdf> Acesso em 20 set. 2018. CHIAPPINI, Ligia. Do beco ao belo: dez teses sobre o regionalismo na literatura. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 18, n. 15, p. 153-159, 1995. Disponível em <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/viewFile/1989/1128 > Acesso em 20 set. 2018. CHIARADIA, Filomena. Em revista o teatro ligeiro: os “autores-ensaiadores” e o “teatro por sessões” na Companhia do Teatro São José, Sala Preta, São Paulo, ano 2, v. 3, p. 153-163, 2003. CULLER, Jonathan. O que é Literatura e tem ela importância? In:_____. Teoria literária: uma introdução. Tradução de Sandra Vasconcelos. São Paulo: Beca Produções Culturais Ltda., 1999. p. 26-47. FARIA, João Roberto (dir.). História do teatro brasileiro, volume I: das origens ao teatro profissional da primeira metade do século XX. São Paulo: Perspectiva: Edições SESCSP, 2012. _______. História do teatro brasileiro, volume 2: do modernismo às tendências contemporâneas. São Paulo: Perspectiva: Edições SESCSP, 2013. GOMES, Itania Maria Mota. Raymond Williams e a hipótese cultural da estrutura de sentimento. In: GOMES, I.M.M; JANOTTI JUNIOR, J (org.). Comunicação e estudos culturais. Salvador: EDUFBA, 2011. p.29-48. GUINSBURG, J. (Jacó); PATRIOTA, Rosângela. Teatro brasileiro: ideias de uma história. São Paulo: Perspectiva, 2012. HAESBAERT, Rogério. Região, Regionalização e Regionalidade: questões contemporâneas. Antares, Rio de Janeiro, v. 3, p.1-24, jan-jun. 2010. Disponível em: <http://www.geografia.fflch.usp.br/graduacao/apoio/Apoio/Apoio_Gloria/1s 2018/3.haesbaert.pdf> Acesso em 20 set. 2018. MACIEL, Diógenes A. V. Lourdes Ramalho e a construção de uma obra em ciclos. Scripta UNIANDRADE, v.10, p. 92 -108, 2012. _______. A dramaturgia de Lourdes Ramalho como expressão da modernidade teatral brasileira. O eixo e a roda, Belo Horizonte, v. 26, n.1, p.23-42. 2017. Disponível em: <http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/o_eixo_ea_roda/article/download/11690 /10591> Acesso em 20 set. 2018. MILLARCHI, Aramis. Paraíba, teatro macho, sim senhô! Estado do Paraná, Tabloide, Curitiba, p. 4, 28 de outubro de 1975. Disponível em <http://www.millarch.org/artigo/paraiba-teatro-macho-sim-senhor>. Acesso em 19 nov. 2016. PAVIS, Patrice. A análise dos espetáculos. São Paulo: Perspectiva, 2003. RAMALHO, Maria de Lourdes Nunes. Teatro nordestino: cinco textos para montar ou simplesmente ler (A feira, As velhas, Festa do Rosário, O Psicanalista, Fogo-Fátuo). [Campina Grande]: GGS – Grande Gráfica e Serviços Ltda., [ca. 1980]. RAMOS, Luiz Fernando. Prefácio. In: WILLIAMS, Raymond. Drama em cena. Tradução de Rogério Bettoni. São Paulo: Cosac Naify, 2010. p. 07-16. REIS, Angela de Castro. A tradição viva em cena: Eva Todos na Companhia Eva e seus artistas (1940-1963). Rio de Janeiro: 7Letras, 2013. WERNECK, Maria Helena. Uma dramaturgia devorada: textos do teatro brasileiro entre as décadas de 30 a 50. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE PESQUISA E PÓS84 Revista Cerrados v. 27 n. 46 Literatura, Artes e Inclusão Social GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS, III., 2003, Florianópolis. Anais... Florianópolis: ABRACE, 2003. p. 143-146. (Memória ABRACE Digital, VII). Disponível em < http://portalabrace.org/Memoria%20ABRACE%20VII%20.pdf> Acesso em 20 set. 2018. WILLIAMS, Raymond. Drama em cena. Tradução de Rogério Bettoni. São Paulo: Cosac Naify, 2010. _______. Drama from Ibsen to Brecht. Londres: Pelican Books, 1983. 85 Revista Cerrados v. 27 n. 46 Literatura, Artes e Inclusão Social