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Violência de gênero em famílias do sul do Brasil

2019, Scripta Nova

Violência de gênero em famílias do sul do Brasil (Resumo) Esse texto tem como objetivo apresentar e debater alguns dados sobre violência de gênero, coletados pela Rede de Atendimento da cidade de Rio Grande, localizada ao sul do estado do Rio Grande do Sul, Brasil. A intenção da iniciativa tem sido mapear o contexto da violência no município, visando buscar estratégias para sua superação. Nesta escrita, inicialmente as autoras desenvolvem elementos que demarcam o conceito de gênero no qual se filiam. Na sequência buscam caracterizar violência de gênero na perspectiva adotada, problematizando diversos conceitos sobre o tema para, após, apresentarem os dados coletados na pesquisa de campo realizada, à luz do referencial desenvolvido. Ao final do artigo, levantam alguns aspectos sobre o contexto abordado, levantando algumas reflexões teórico-práticas importantes sobre o tema. Palavras-chave: Gênero; Violência de gênero; Dados sobre violência.

Scripta Nova Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales Universitat de Barcelona ISSN: 1138-97 Vol. XXIII. Núm. 619 1 d’agost de 2019 VIOLÊNCIA DE GÊNERO EM FAMÍLIAS DO SUL DO BRASIL Fernanda da Fonseca Pereira Fundação Universidade do Rio Grande - Brasil Márcia Alves da Silva Universidade Federal de Pelotas - Brasil Recibido: 06 mayo 2018; Devuelto para correcciones: 29 agosto 2018; Aceptado: 11 diciembre 2018 Violência de gênero em famílias do sul do Brasil (Resumo) Esse texto tem como objetivo apresentar e debater alguns dados sobre violência de gênero, coletados pela Rede de Atendimento da cidade de Rio Grande, localizada ao sul do estado do Rio Grande do Sul, Brasil. A intenção da iniciativa tem sido mapear o contexto da violência no município, visando buscar estratégias para sua superação. Nesta escrita, inicialmente as autoras desenvolvem elementos que demarcam o conceito de gênero no qual se filiam. Na sequência buscam caracterizar violência de gênero na perspectiva adotada, problematizando diversos conceitos sobre o tema para, após, apresentarem os dados coletados na pesquisa de campo realizada, à luz do referencial desenvolvido. Ao final do artigo, levantam alguns aspectos sobre o contexto abordado, levantando algumas reflexões teórico-práticas importantes sobre o tema. Palavras-chave: Gênero; Violência de gênero; Dados sobre violência. Gender violence in families of the south of Brazil (Abstract) This text aims to present and discuss some data on gender violence, collected by the Service Network of Rio Grande, a city located south in the state of Rio Grande do Sul, Brazil. The initiative intentions has been to map the context of violence in the municipality, aiming to seek strategies to diminish or even eliminate it. In this work, initially the authors develop elements that demarcate the concept of gender in which they are affiliated. In the sequence, it is sought to characterize gender violence in the adopted perspective, problematizing several concepts on the subject, and after, presenting the data collected in the field research carried out, in the light of the developed framework. At the end of the article, it is addressed some aspects about the context, raising some important theoretical-practical reflections on the theme. Keywords: Gender; Gender violence; Violence data Scripta Nova, vol. XXIII, nº 619, 2019 Para a discussão sobre violência de gênero é preciso questionar-se: as diferenças entre homens e mulheres são para além da questão biológica? Aqui, defende-se que sim. São inúmeros padrões que caracterizam a mulher e o homem na sociedade transmitindo uma ideologia onde a naturalização dos papeis e das relações de gênero tenta fazer crer que as diferenças entre homens e mulheres é fruto da biologia, de uma essência masculina e feminina. Nessa ideologia, a diferença entre os sexos agrega a desvalorização da mulher e de suas atividades laborais. Nesse sentido, as desigualdades entre homens e mulheres são construídas pela sociedade e não determinadas pela diferença biológica entre os sexos. Em síntese, elas representam uma construção social. Essa concepção marca as reflexões iniciais elaboradas nos estudos de gênero no final do século 20, entre as décadas de 1970 e 1980, realizadas principalmente pela discussão de feministas acadêmicas. A ideia era desnaturalizar a opressão feminina. As discussões sobre gênero estão, desde muito, marcada pela incerteza sobre que perspectiva teórica assumir para melhor expressar o seu conceito já que, gênero é uma categoria ampla que dissemina diversas vertentes e campos de conhecimento distintos. Esse texto tem como objetivo trazer à tona alguns dados sobre violência de gênero, coletados por uma instituição parte da Rede de Atendimento da cidade de Rio Grande, localizada ao sul do estado do Rio Grande do Sul, Brasil. A intenção da iniciativa tem sido mapear o contexto da violência, nas comunidades da Zona Oeste do município, visando buscar estratégias que fomentem a sua minimização, pois a sua superação só seria possível com a superação do patriarcado e do capitalismo1. Nesta escrita, inicialmente as autoras desenvolvem aspectos que demarcam o conceito de gênero no qual se filiam. Na sequência caracterizam violência de gênero na perspectiva adotada para, após, apresentarem os dados coletados na pesquisa de campo realizada, à luz do referencial desenvolvido. Ao final do artigo, problematizam os dados, buscando uma aproximação mais geral sobre o tema e apontando possíveis caminhos futuros. Gênero: marcando alguns conceitos O conceito de gênero veio também no sentido de analisar de forma relacional a subordinação das mulheres aos homens. Assim, os estudos de gênero não deveriam se limitar a categoria mulher, mas, ser sempre analisada de forma relacional ao homem. Nesta perspectiva, Cisne2 destaca que gênero é uma categoria relacional. É neste sentido que se diz que, para compreender o feminino é necessário percebe-lo na relação com o masculino já que, envolve um contrato sócio simbólico entre os sexos3. Nos escritos de Cisne4 apresenta-se outra referência designada de “feminismo 1 2 3 4 Saffioti, 1999. 2015. Cisne, 2015 apud Ferreira, 2002 2015. 2 VIOLÊNCIA DE GÊNERO EM FAMÍLIAS DO SUL DO BRASIL materialista” conforme a autora, muitas teóricas francesas são vinculadas a essa linha de pensamento e preferem utilizar o termo “relações sociais de sexo” para analisar as desigualdades entre homens e mulheres, compreendendo-as como determinadas e envolvidas por outras relações sociais estruturantes, para além do sexo então estaria: as relações de raça/etnia e classe. Nesta perspectiva se entende o “sexo também como socialmente determinado, interpretado e traduzido na experiência e vivência da sociabilidade”5. Nessa interpretação, não caem na dicotomia sexo/gênero ou biológico/ social para a discussão de gênero, conforme Cisne6. Em um dos seus escritos denominado “Relações sociais de sexo, “raça”/etnia e classe: uma análise feminista-materialista”, Cisne expressa claramente sua opção pela categoria “relações sociais de sexo” ao invés de “relações de gênero”. A escolha conforme a autora é motivada pelo entendimento de que, o conceito de gênero oculta o sujeito político mulher, diluindo-o ou até mesmo substituindo. Além disso, o conceito de gênero é, muitas vezes, apresentado de forma isolada de relações estruturantes do ser social, com destaque para a classe social7. Seguindo como referência, as feministas francesas: Jules Falquet, Danièle Kergot e Anne-Marie Devreux fundamenta sua escolha pela categoria relações sociais de sexo. Explica que a categoria advém da escola feminista francesa e na língua original é chamada “rapports sociaux de sexe”, que conforme Cisne é “(...) diretamente fundamentado no de relações sociais de classe”8. Neste sentido, esta vinculada aos conflitos e tensões entre os grupos sociais com interesses antagônicos e, portanto, atravessa todo o tecido do campo social e dos fenômenos daí decorrentes. Ainda discorre que, “(...) as relações (rapports) sociais surgem de um nível macroestrutural. Elas se articulam entre grupos e só podem ser percebidas ou transformadas indiretamente, coletivamente”9. Cisne10 destaca ainda que sua escolha pelo conceito “relações sociais de sexo” foi estimulada também pelo fato de gênero, ser uma palavra polissêmica podendo levar a uma definição vaga ou incerta. Concordando com Devreux, cita: (...) o termo “gênero” evoca a ideia de um problema social sofrido pelas mulheres, de uma desigualdade social construída, mas na qual os homens não seriam atores. (...) A relação social de sexo nomeia explicitamente a confrontação entre duas classes de sexo. (...) Não pode haver relação social sem confrontação11. Por fim, a autora destaca que a palavra gênero é de baixo nível de compreensão 5 Cisne, 2015, p. 90 6 2015. 7 Cisne, 2014. 8 2014, p. 136. 9 Cisne, 2014, p. 136 apud Kergoat, 2012 10 2014. 11 Cisne, 2014, p. 141 apud Devreux, 2011, p. 9 3 Scripta Nova, vol. XXIII, nº 619, 2019 e dificulta a aproximação com quem deve ser o sujeito prioritário do feminismo, as mulheres trabalhadoras. No entanto, mesmo se opondo ao conceito de gênero esclarece, para aqueles que optam pelo uso do conceito, que na análise marxista o conceito de gênero deverá buscar: (...) incidir contraditoriamente as vertentes homogeneizadoras, generalizantes e supostamente neutras, como o positivismo, que, como foi visto, naturaliza papéis a que se subordinam as mulheres e se utiliza dessa naturalização para alcançar o “equilíbrio” e a “harmonia” sociais pela responsabilização social da mulher e desresponsabilização do Estado12. Assim, se acredita que o conceito de gênero necessita de uma análise critica buscando o caráter histórico de categorias como sexo/gênero trazendo a tona outras categorias como classe, etnia/raça. Nesta perspectiva, Cisne13 entende que a classe irá determinar as mais variadas expressões de opressão vivenciadas pelos sujeitos. Por isso, afirma a autora que os movimentos sociais devem ter como foco a luta de classes, ainda que não se limitando a essa dimensão, mas considerando as demais categorias (raça/etnia, gênero, geração, sexualidade). Dessa forma afirma: A articulação entre classes e essas dimensões não é contraditória com as lutas ditas especificas. Primeiro, porque dentro da ordem metabólica do capital essas dimensões não se dão nem se encontram dissociadas de seu metabolismo, mas dentro de sua ideologia e de sua reprodução com fins voltados a assegurar os interesses dominantes; segundo, porque lutar pela extinção das desigualdades, opressões e exploração, enfim, lutar por emancipação plena, liberdade, exige a defesa de valores libertários –que não cedem espaço para a existência de preconceitos, discriminações, subordinações– antes de suas subjetividades14. Numa perspectiva marxista, o equívoco está em acentuar as diferenças apenas como construções culturais, não analisando numa perspectiva de totalidade, onde tais expressões possuem marcas de classe, deixando claros interesses da burguesia em perpetuar subordinações e explorações que a favoreça, seja em força de trabalho precarizada, seja na responsabilização das mulheres pela reprodução social15. Neste sentido, a autora alerta para a importância de detectarmos a presença das “diferenças-semelhanças” de classe nas relações de gênero. Assim disserta que, (...) é necessário analisar gênero no bojo da contradição entre capital e trabalho e das forças sociais conflitantes das classes fundamentais que determinam essa contradição. (...). Neste sentido, o ponto a unir as mulheres deve ser a identidade de classe, uma vez que é da contradição de classe que emergem as desigualdades, opressões e 12 13 14 15 Cisne, 2015, p. 90. 2015. Cisne, 2015, p. 96. Cisne, 2015. 4 VIOLÊNCIA DE GÊNERO EM FAMÍLIAS DO SUL DO BRASIL explorações que marcam a vida das mulheres trabalhadoras16. Nesse sentido, é necessário não apenas historicizar todas as categorias sociais, no sentido de perceber que são construções sociais, mas relacioná-las, analisando suas determinações e particularidades. Dessa forma, pensar as práticas sociais, a construção de instituições, os valores transmitidos através das gerações, como processos mutáveis, também são cruciais para a análise de gênero numa perspectiva histórica materialista. Para Heleieth Saffioti, gênero “(...) diz respeito às representações do masculino e do feminino, a imagens construídas pela sociedade a propósito do masculino e do feminino, estando estas inter-relacionadas”17. Considera sexo e gênero uma unidade, considerando que não existe uma sexualidade biológica independente do contexto social em que é exercida. A autora relaciona gênero a classes sociais e ao patriarcado, sistema em que predomina a disputa pelo poder, comportando necessariamente, controle e medo. Apesar de o patriarcado dizer respeito, em termos específicos, a ordem de gênero, expande-se por todo o corpo social. Assim, refere a autora: “(...) o valor central da cultura gerada pela dominação-exploração patriarcal é o controle, valor que perpassa todas as áreas da convivência social”18, ratificando que pessoas podem se situar fora do esquema de dominação-exploração das classes sociais ou do de raça/etnia, mas ninguém fica fora do esquema do gênero patriarcal. Conforme Saffioti19, o patriarcado representa uma forma de expressão do poder político, não sendo uma relação privada, mas civil configurada de forma hierárquica concedendo mais poder aos homens, inclusive dando direitos sexuais sobre as mulheres. O patriarcado corporifica-se, tem uma base material e é representado por uma estrutura de poder baseado tanto na ideologia quanto na violência. Nos seus escritos destaca a ideia do nó formada pelas três estruturas: gênero, raça/etnia, classe social, a qual é presidida por uma lógica contraditória, distinta das que regem cada contradição em separado. Assim, cita que no nó “(...) a dinâmica de cada uma condiciona-se á nova realidade, presidida por uma lógica contraditória” 20. Disserta ainda que esse nó adquire relevos distintos não sendo nada fixo, sendo incluso nisso a organização das substruturas na estrutura global, ou seja, dessas contradições no seio da nova realidade - novelo patriarcado-racismo-capitalismo – historicamente construído21. Ratifica que na lógica do patriarcado a diferença sexual é convertida em diferença política, expressa em liberdade ou em opressão. Assim, o patriarcado é uma forma de expressão do poder político. Ratifica que não há, de um lado, a dominação patriarcal e, de outro, a dominação 16 17 18 19 20 21 Cisne, 2015, p. 97 2009, p. 20. Saffioti, 2009, p. 23. 2015. Saffioti, 2009, p. 25 apud Saffioti, 1985; 1988. Saffioti, 2009, apud Saffioti, 1987. 5 Scripta Nova, vol. XXIII, nº 619, 2019 capitalista. Sendo que não existe um processo de dominação separado de outro processo, este de exploração. Assim não há dois processos, mas duas faces de um mesmo processo de dominação-exploração ou exploração-dominação. Para melhor explicar este processo de dominação-exploração, Saffioti22 expõe que a consciência que as mulheres têm de si mesma deriva do processo de socialização como mulher/esposa, daquilo que introjetam em seu inconsciente/consciente e de vivencias concretas na relação com homens/maridos. Dá um exemplo disso, citando que até 1962, pela Lei 4.121 (Estatuto da Mulher Casada), a mulher não podia desenvolver atividade remunerada fora de casa sem o consentimento do marido, dentre outras limitações impostas como ser tutelada pelo seu cônjuge, quanto a sua relativa incapacidade civil. Nessa lógica, a submissão das mulheres na sociedade civil assegura o reconhecimento do direito patriarcal dos homens. Assim, quase todas, senão todas as relações sociais das mulheres, ao longo da sua vida, confluem para a formação de suas identidades de gênero. “E tudo que integra tais identidades pertence aos estratos mais profundos da organização sócio-psíquica das mulheres”23. No entanto, mesmo apresentando um grau de permanência muito superior aos papeis sociais, não são inertes a mudança social, conforme a autora. Assim, Como se trata, aqui, de identidades sociais – de gênero, de raça/etnia, de classe social – é forçoso lembrar que cada uma delas contem numerosas subjetividades, que se constituem, persistem, morrem nas e pelas relações sociais24. A par desta interpretação, a autora destaca que mesmo a identidade de gênero sendo marcada ferrenhamente pelo patriarcado expondo mulheres ao processo de dominação-exploração, também se formam novas subjetividades, transformando outras e, ainda, assassinando outras tantas25. Por fim, como descrito, a autora traz à tona a relação entre as categorias gênero e patriarcado e afirma a importância do uso do conceito gênero, pela sua utilidade considerando-o mais amplo do que o conceito de patriarcado, já que este pode ser considerado presente desde o inicio da humanidade. Considera que é permitido o uso simultâneo dos conceitos gênero e patriarcado, já que um é genérico e o outro é especifico. Assim, o conceito de gênero cobre toda a humanidade e o conceito de patriarcado qualifica o conceito de gênero, citando em vários dos seus escritos o termo “ordem patriarcal de gênero”. A autora ratifica a negação da redutora substituição de um conceito pelo outro e entende que o gênero é constitutivo das relações sociais, da mesma forma que a violência é constitutiva das relações entre homens e mulheres, na fase histórica da ordem patriarcal de gênero, que ainda esta em curso. 22 23 24 25 2015. Saffioti, 2009, p. 31. Saffioti, 2009, p. 31 Saffioti, 2009; 1997. 6 VIOLÊNCIA DE GÊNERO EM FAMÍLIAS DO SUL DO BRASIL Saffioti26 descreve que na ordem falocrática27, o gênero, informado pelas desigualdades sociais, pela hierarquização entre homens e mulheres e até pela logica de complementariedade traz a violência em seu cerne. Neste sentido, ratifica que não basta o acesso por parte das mulheres a posições econômicas, políticas etc., pois a contradição não encontra solução neste regime, exigindo transformações radicais no sentido de preservar as diferenças e eliminar as desigualdades. Sobre violência de gênero No que se refere à violência de gênero, Eggert 28 aborda em artigo o que denomina de supremacia da masculinidade. Neste texto, ressalta aspectos pedagógicos de uma aprendizagem social que se constrói a partir de alicerces baseados principalmente no patriarcado e no racismo. Dessa forma, partindo da compreensão de gênero como uma categoria relacional construída na sociedade, enquanto relações sociais de sexo, compreendemos que a violência se instaura a partir de um processo pedagógico, que envolve a hegemonia do masculino sobre o feminino. Saffioti já salientava o caráter pedagógico desse processo, que se torna as bases para o exercício da violência de gênero. Isso fica bem nítido na seguinte passagem, quando a autora afirma que: (...) torna-se bem claro o processo de construção social da inferioridade. O processo correlato é o da construção social da superioridade. Da mesma forma como não há ricos sem pobres, não há superiores sem inferiores. Logo, a construção social da supremacia masculina exige a construção social da subordinação feminina. Mulher dócil é a contrapartida de homem macho. Mulher frágil é a contraparte de macho forte. Mulher emotiva é a outra metade de homem racional. Mulher inferior é a outra face da moeda do macho superior.29. Um dos aspectos mais nefastos de demonstração da supremacia masculina se dá no exercício da violência contra as mulheres. No entanto, o que se percebe na prática é que a violência contra as mulheres acaba se confundindo com a violência contra a família. Isso demonstra que se mantém a mulher como cuidadora e como principal responsável pela dinâmica do espaço doméstico, incluindo aí fortemente o cuidado com os filhos e as filhas. Assim, percebemos a manutenção de um dos braços fortes que sustentam o patriarcado, que é o trabalho feminino no espaço doméstico. Debert e Gregori alertam para esse fato quando afirmam que: 26 1999. 27 Ideologia que sustenta a premissa de que o poder político/econômico, em diversos âmbitos, deva ser exercido somente por homens. O termo é citado pela autora Heleieth Saffioti em diversos textos, dentre eles “Já se mete a colher em briga de marido e mulher”, publicado no ano de 1999 disponível em versão on line na revista São Paulo em Perspectiva. 28 2006. 29 Saffioti, 1987, p. 29 7 Scripta Nova, vol. XXIII, nº 619, 2019 A história dos movimentos feministas no Brasil foi assim marcada por conquistas significativas no que diz respeito a seus objetivos legais. Contudo, o que fica evidente nos debates em torno das delegacias de defesa da mulher e mais recentemente em torno da Lei Maria da Penha é o encapsulamento da violência pela criminalidade e o risco concomitante de transformar a defesa das mulheres na defesa da família30. Dessa forma, para que se possa desvelar a violência de gênero e compreender suas dinâmicas, que afetam mulheres de todas as idades, desde a infância até a velhice, é preciso que se perceba gênero não de forma isolada, mas como o resultado de diversos marcadores sociais que atuam em conjunto, como raça e classe. Assim, o termo interseccionalidade31 parece dar conta dessa problemática, e por isso defendemos seu uso. Silveira e Nardi32 mostram a importância de se abarcar a temática da violência de gênero de forma interseccional, sendo essa situação ainda incipiente, não apenas no Brasil como no exterior. Em investigação recente realizada no Brasil e na Espanha, com discursos jurídicos produzidos sobre a violência contra as mulheres, a partir de processos jurídicos, entrevistas com mulheres vítimas de violências e com juízes, ficou explícito a invisibilidade dos marcadores sociais de raça e etnia. No entanto, para que se avance na discussão do tema violência contra as mulheres, é necessário que haja uma aproximação com diversos conceitos que abordam a temática, como violência contra a mulher (noção criada pelo movimento feminista a partir da década de 1960), violência conjugal (outra noção que especifica a violência contra a mulher, no entanto se refere especificamente ao contexto das relações conjugais), violência doméstica (que inclui atitudes de violência entre outras pessoas no núcleo doméstico – e que passou a estar em evidência nos anos de 1990), violência familiar (noção empregada atualmente no âmbito da atuação jurídica e que foi consagrada pela Lei Maria da Penha como violência doméstica e familiar contra a mulher) e violência de gênero (conceito mais recente empregado no campo dos estudos de gênero)33. Trata-se de conhecer o significado de cada uma dessas expressões, bem como seus limites. 30 2008, p.166. 31 Embora seja conhecido que o termo interseccionalidade tenha sido usado pela primeira vez apenas em 1989 pela teórica feminista estadunidense Kimberlé Crenshaw, sabemos que antes disso já haviam intenções de incorporação de diversos marcadores sociais ao feminismo. De forma geral, podemos afirmar que o feminismo negro protagonizou a incorporação do termo nas análises de gênero. Para entender melhor essa questão e conhecer o contexto de criação do conceito, ver HENNING (2015). 32 2014. 33 Neste artigo as autoras utilizam o termo violência de gênero, por compreenderem que ele possui uma forma mais ampla e geral, portanto, capaz de abarcar os dados que são apresentados e problematizados aqui. Além disso, há uma compreensão que as diversas definições ainda encontram-se em elaboração, pois “há um esforço de pensar como essas noções estão sendo usadas – e por quais atores – no campo da intervenção sobre isso que, genericamente, se chama violência de gênero” (DEBERT; GREGORI, 2008, p. 167). 8 VIOLÊNCIA DE GÊNERO EM FAMÍLIAS DO SUL DO BRASIL Debert e Gregori34, em artigo sobre violência e gênero, desenvolvem um histórico sobre os conceitos acima, buscando compreendê-los na sua historicidade. Segundo as autoras, A definição de violência contra a mulher no Brasil foi elaborada em meio a uma experiência política inovadora na década de 1980, em que, ao lado de práticas de sensibilização e de conscientização, militantes feministas atendiam mulheres que sofriam violências nos chamados SOS-Mulher. O conjunto de ideias que deu suporte e substância a essa expressão foi elaborado a partir de uma compreensão particular acerca da opressão sofrida pelas mulheres no âmbito do Patriarcalismo – noção sintonizada com as discussões feministas em cenário internacional. Gênero não era a categoria empregada nessa definição e a condição feminina tinha seu significado articulado a pressupostos universalizantes, como a ideia de que a opressão é uma situação partilhada pelas mulheres pelas circunstâncias de seu sexo, independentemente do contexto histórico ou cultural observado35. O SOS-Mulher de São Paulo foi a primeira entidade no Brasil criada por iniciativa de diversos grupos feministas em outubro de 1980 com o objetivo de prestar atendimento às mulheres vítimas de violência. Atuou durante três anos, atendendo as mulheres em plantões, realizando encaminhamentos para aconselhamento jurídico e psicológico e organizando campanhas de conscientização sobre a gravidade do problema. Esse episódio marcou a definição e o uso do termo violência contra a mulher no país. Em 1985 foram criadas as primeiras Delegacias de Defesa da Mulher (DDMs), mas, na época, a legislação não mencionava violência contra a mulher. Portanto, por falta de caracterização jurídica, os crimes de violência contra as mulheres eram tipificados de outras formas. Nessa época surgem com mais força o uso dos termos violência conjugal e violência doméstica36. O termo violência doméstica amplia a questão da violência e, de certa forma, retira o foco da e/ou na violência contra as mulheres, para a violência intrafamiliar, incluindo outros membros das famílias. Sobre essa contradição, Debert e Gregori resumem o impasse colocado na época, quando afirmam que Esse deslocamento semântico causa efeitos indesejados quando pensamos no registro da erradicação da violência de gênero. As demandas feministas – incorporadas pelo poder público na forma das DDMs – partiam do pressuposto de que existe um tipo particular de violência, baseado nas assimetrias de poder imbricadas em determinadas relações sociais, aquelas que são marcadas pelo gênero e que não se restringem à violência familiar. Por outro lado, e isso está presente nas falas de vários agentes e atores ligados às delegacias especiais, a ampliação das atribuições das delegacias corresponderia a uma tentativa de ampliar a proteção da família, cuja abordagem, no entanto, está distante da visão feminista sobre o papel das assimetrias de gênero nas configurações familiares37. 34 35 36 37 2008. 2008, p.168. Debert, Gregori, 2008. 2008, p.170. 9 Scripta Nova, vol. XXIII, nº 619, 2019 Apenas com a Lei Maria da Penha, de 2006, é que podemos afirmar que a violência contra a mulher passa a ser melhor caracterizada, especialmente nos âmbitos das leis. Além disso, traz uma abordagem de violência contra a mulher, que incorpora o doméstico, incluindo a família, mas mantém o seu caráter de gênero, haja vista que sabemos que o espaço doméstico é o principal lócus onde a violência de gênero se manifesta. Na contemporaneidade, para que se compreenda a complexidade que envolve e determina as relações e as ações que envolvem violência, é importante que se assuma uma perspectiva que compreenda a violência não apenas de forma estática, mas como sendo o resultado de uma dinâmica plural, constituída de inúmeras variantes dinâmicas em sua complexidade, como o resultado dialético de diversos marcadores sociais, alguns mais visíveis, como gênero, raça/etnia e classe social, mas que também se constitui de diversos aspectos subjetivos e pouco visíveis. No que se refere à violência doméstica, por exemplo, a violência acontece entremeada com toda uma dinâmica familiar onde entrecruzam-se uma série de representações sobre sexualidade, sobre geração, sobre convivência, etc. Dessa forma, assumir uma posição exige escolhas que envolvem diversos elementos, nem sempre explicitamente visíveis, onde (...) é preciso considerar que, certamente, existem padrões legitimados socialmente importantes na definição de identidades e condutas. Contudo, é preciso ter em mente que eles devem ser vistos como construções, imagens, referências compostas e adotadas de modo bastante complexo, pouco linear e nada fixo38. Tendo como ponto de partida essa perspectiva relacional, podemos tentar caracterizar violência de gênero. Para isso, faz-se uso do conceito desenvolvido em investigação realizada por Mello, que diz que (...) consideramos a violência de gênero qualquer ato de abuso que parta de relações de poder assimétricas – desiguais – entre pessoas humanas, baseadas em gênero, entendendo a masculinidade hegemônica como força motriz da opressão, tanto de outras masculinidades quanto de feminilidades. Assim, nossa compreensão concebe não só homens no exercício desse poder desigual violando mulheres, mas homens violando outros homens, mulheres violando homens e mulheres violando outras mulheres39. Enfim, descrever a violência de gênero representa referenciar as relações de opressão que caracterizam as desigualdades de poder entre homens e mulheres em nossa sociedade. Sendo assim, o próximo item busca contextualizar tal situação, a partir da pesquisa de campo realizada com famílias da Zona Oeste do Município do Rio Grande. 38 Debert; Gregori, 2008, p.178. 39 Mello, p. 28, 2010. 10 VIOLÊNCIA DE GÊNERO EM FAMÍLIAS DO SUL DO BRASIL Perfil das famílias Os dados apresentados se referem a um total de 101 famílias, consideradas em situação de violência. São dados coletados pelo Centro de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente – CAIC40, órgão pertencente a Fundação Universidade do Rio Grande – FURG, em 2008, que fazem parte de acervo maior de dados, organizado entre os anos de 2008 e 2015, e que tem sido objeto de pesquisa de doutoramento em Política Social e Direitos Humanos realizado por uma das autoras. As 101 famílias abordadas aqui são atendidas periodicamente pelo Serviço Social do CAIC/FURG e residem na Zona Oeste do município do Rio Grande, localizado ao sul do estado do Rio Grande do Sul, Brasil. A região citada do município apresenta diversas comunidades em situação de extrema pobreza41, além disso, é marcada por ser uma área que envolve diversas outras situações, tal como: prostituição infantil, tráfico de drogas e alto índice de violência. Em grande medida, são beneficiárias de diversas políticas públicas, tanto do governo municipal, como estadual e federal. Sobre o perfil das pessoas participantes do levantamento, 83% são mulheres e 17% são homens. Em relação ao estado civil, 50% se denominou solteiros/as e a outra metade foi formada por pessoas viúvas (7%), casadas (7%), divorciadas (7%), união não oficial (15%) e união estável (14%). Quanto ao número de integrantes na família (considerando as que moram no mesmo local de moradia), 25% das pessoas pertencem a núcleos familiares formados por três pessoas, 17% seis pessoas, 13% cinco pessoas, 12% quatro pessoas, 4% mais de dez pessoas, enquanto que 29% não responderam. Dessa forma, podemos perceber que 46% das pessoas participantes habitam em moradias com um total de quatro pessoas ou mais. Sobre o nível de escolaridade dos participantes, a grande maioria, 82%, possuem o ensino fundamental incompleto, enquanto apenas 9% possuem o ensino fundamental completo e outros 9% possuem o ensino médio completo42. 40 O Centro de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente (CAIC) é uma unidade da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura (PROEXC) da Fundação Universidade do Rio Grande (FURG), que desenvolve ações extensionistas em consonância com a Política de Extensão da Universidade nas áreas de educação e saúde. Através de convênios com a Prefeitura Municipal do Rio Grande funcionam dentro do Centro as seguintes instituições: Escola Municipal Cidade do Rio Grande, que tem uma proposta de gestão compartilhada entre a FURG e a Prefeitura Municipal de Rio Grande e atende aproximadamente 760 alunos da Educação Infantil, do Ensino Fundamental e da Educação de Jovens e Adultos; e a Unidade Básica de Saúde da Família, que é responsável pelo atendimento de comunidades periféricas em situação de vulnerabilidade social, de acordo com a política do Sistema Único de Saúde. (http://www.caic.furg.br/pt/) 41 Apesar de não existir um consenso em torno de um indicador oficial para definir a pobreza e a pobreza extrema no Brasil, grande parte dos estudos nesta área, inclusive formulações de estatísticas oficiais sobre pobreza como aquelas realizadas, por exemplo, pelo IPEA relaciona pobreza a renda per capita familiar. Nesta pesquisa, como muitas famílias eram usuárias do Programa Bolsa Família, toma-se como referência a concepção adotada por tal Programa de que são famílias em situação de extrema pobreza aquelas que possuem uma renda mensal por pessoa de até R$ 89,00 e são famílias em situação de pobreza aquelas com renda mensal por pessoa entre R$89,01 e R$ 178,00 (MDS, 2018). 42 É importante considerar que o ensino fundamental completo no Brasil é composto por um total de nove anos de estudos, enquanto o ensino médio completo é formado por um período de três ou 11 Scripta Nova, vol. XXIII, nº 619, 2019 Sobre a possibilidade de existência de pessoas com dependência química nas famílias, 38% afirmaram a existência dessa situação, enquanto 8% firmaram que isso não ocorre e 54% não quiseram responder. Esses dados podem apontar algumas possibilidades, como o constrangimento em revelar essa situação, já que mais da metade se recusaram em responder. Somado a isso, temos o fato de que apenas 8% foram categóricos em afirmar que não existia essa situação em suas residências. Enfim, o que podemos afirmar com convicção é que 38% lidam com esse contexto em suas vidas, o que, por si só, já aponta para um alto índice. Em síntese, quando descrevemos o perfil dessas famílias afirmamos que a maioria são famílias chefiadas por mulheres solteiras que possuem apenas o nível fundamental incompleto e que sustentam (4) quatro ou mais integrantes que compõem o núcleo familiar. Dentre estes integrantes, alguns são vitimas da dependência química tornando estas mulheres, uma provável cuidadora. O baixo nível de escolaridade lhe atribui um trabalho precário, a lida doméstica lhe impõe a dupla jornada de trabalho e o cuidado, com os dependentes (sejam dependentes financeiros sejam, dependentes de seus cuidados em função da saúde debilitada fruto da dependência química) apresenta a estas mulheres o seu lugar na sociedade. Ou seja, a sua subordinação frente a ordem patriarcal, que representa um regime sócio-político-econômico-cultural abrangendo as diversas esferas da sociedade, culminando num processo de dominação-exploração. Neste sentido, não basta que uma parte das mulheres ocupem posições relevantes, que são tradicionalmente ocupadas por homens. Já que, “qualquer que seja a profundidade da dominação-exploração da categoria mulheres pela dos homens, a natureza do patriarcado continua a mesma”43. Segundo esta perspectiva, a contradição não encontra solução neste regime, e exige transformações radicais no sentido de eliminação das desigualdades. Em síntese, enfrentar a violência de gênero neste sentido representa num primeiro momento gerar a consciência de que não basta que mulheres conquistem espaço no mercado de trabalho, ou conquistem espaços denominados como “chefes de família”, mas que homens e mulheres não tenham acesso desiguais nem no espaço público nem no espaço privado. Dessa forma, trata-se de analisar o lugar que ocupam as mulheres na produção e na reprodução, o tipo de relações de produção que estão imersas e as características de controle sobre seus corpos buscando perceber as variáveis que definem as opressões que lhes são impostas. O cuidado, com o trabalho não remunerado, o trabalho precarizado entre outras formas que lhes impõe uma dupla opressão sendo as mulheres envolvidas, na produção direta, através do trabalho doméstico estando quatro anos (podendo incluir cursos técnicos profissionalizantes de forma concomitante com o currículo básico). Somente após esses dois níveis de ensino o estudante estará apto para o ingresso no ensino superior, exercido em Universidades. Nenhuma das pessoas que participaram da pesquisa possuíam esse nível de ensino. 43 Saffioti, 2009, p. 14. 12 VIOLÊNCIA DE GÊNERO EM FAMÍLIAS DO SUL DO BRASIL assim sempre incorporadas ao trabalho socialmente produtivo, definindo a dupla opressão de gênero e de classe44. Sobre as vítimas de violência Sobre as pessoas que sofreram atos de violência, 61% foram mulheres e 39% homens. Nesse aspecto fica evidente que a violência é maior com as mulheres do que com os homens. Sobre a faixa etária das vítimas, 13% são de 0 até 5 anos de idade. Crianças de 10 até 12 anos formaram 20% das vítimas; enquanto 34% foram de jovens entre 13 até 17 anos. Maiores de 18 anos formaram 33% do total de vítimas. Esses dados demonstram que a violência permeia praticamente todas as faixas etárias, desde crianças bem pequenas até pessoas adultas. No entanto, também é possível perceber que a violência se concentra nas crianças e jovens abaixo dos 18 anos, totalizando nesta faixa 67%. Impossível falarmos das vítimas sem nos remetermos as/os agressoras/es. Destas/ es 61% foram formados por mulheres, enquanto 39% foram formados por homens. Assim, é possível dizermos que as mulheres são executoras de violência na comunidade pesquisada. Ou seja, por um lado, sofrem com a violência social a qual lhe é imposta a exploração, coação e subjugação característico de um Estado que serve aos interesses das classes dominantes45 e por outro lado, reproduzem a cultura patriarcal e machista a qual lhes foi imposta no “caldeirão da família”46 onde a violência não é a expressão unilateral do temperamento de uma pessoa, mas a trama conjunta constituída por esses indivíduos nas suas historias de vida. É importante considerarmos que a violência exercida pela mulher, neste caso, é a violência doméstica caracterizada como eminentemente masculina, ou seja, a violência doméstica é masculina pois, se entende que numa sociedade patriarcal ela é exercida por delegação dos homens. Assim, desde criança se experimenta a dominação-exploração do patriarca, seja diretamente seja, usando uma mulher adulta para o exercício de enquadramento nos pressupostos do patriarcado. Dessa forma, a síndrome do pequeno poder exercida pela mulher, acaba muitas vezes materializando a tirania contra as crianças, dando continuidade ao elo da cadeia de assimetrias47. Quando vamos nos aproximando dos dados sobre o tipo de vínculo entre agressor/a e vítima, essa relação fica mais evidente, pois 44% são mães das vítimas; 22% das/os agressoras/es são membros da própria família; 11% são os maridos e/ou parceiros (aqui aparece a violência contra as mulheres); 11% são membros da comunidade (não familiares); 6% são os pais e 6% são outros (não especificado). Assim, neste estudo, as mulheres que violem são as mães que violentam. É obvio que a sociedade considera natural e normal que homens violentem mulheres, mas 44 45 46 47 Lagarde, 2005. Denisov, 1986. Saffioti, 2015 apud Gordon, 1989 Saffioti, 2015. 13 Scripta Nova, vol. XXIII, nº 619, 2019 quando se trata de mulheres que violentam e ainda, mães que violentam isso parece sair do contexto das possibilidades quando refletimos sobre nossas relações. No entanto, a família é um território domiciliar que contem hierarquias, e a mulher no exercício da função patriarcal figura como dominadora-exploradora e as crianças, e/ ou jovens como elementos mais dominados-explorados. Assim, a violência doméstica tem um gênero: o masculino, qualquer que seja o sexo físico do/da dominante48. Aqui podemos inferir algumas reflexões sobre os tipos de violências executadas. É visível que as mães (44%) aparecem como agressoras em número bem maior do que os pais (6%) como agressor. No entanto, os parceiros homens aparecem com um percentual de 11% como agressores das mulheres, suas parceiras, enquanto que as esposas não aparecem como agressoras de seus maridos. Quando se percebe que estas mesmas mulheres, quando possuem parceiros, sofrem violência se confirma a concepção de que o significado da violência na nossa sociedade é de incentivo para que os homens exerçam a sua força-potencia-dominação contra as mulheres, em detrimento da virilidade doce e sensível da mulher, disciplinada para o desfrute do prazer49. Assim, “a ordem social das bicas” naturaliza a violência contra a mulher, no entanto causa espanto quando esta violenta. No entanto, a violência causada pela mulher, numa sociedade patriarcal, não altera a “força-potência-dominação” do patriarca, pois esta apenas reproduzindo os seus pressupostos, mesmo na ausência do patriarca. Superar os pressupostos que retroalimentam o patriarcado no âmbito da família e do Estado exige percebermos as mulheres e meninas, como categorias sedentas de igualdade nas relações de gênero levando em conta suas necessidades no planejamento de politicas públicas propiciando, assim a ampliação do acesso e garantia de direitos. Dados sobre violência Pelo acompanhamento que o CAIC vem realizando com as famílias participantes da investigação, sabemos que tratam-se de famílias onde existem situações de violência. Deste total pesquisado, 57% afirmaram já terem realizado algum tipo de denúncia em órgãos competentes. No entanto, 43% disseram não ter denunciado formalmente o fato. Do total de denúncias, 64% tiveram como origem a instituição escolar. Dessa forma, importante percebermos que a escola tem sido um importante espaço de acolhimento aos casos de violência e posterior denúncia. Sobre os tipos de violência, 83% das pessoas detalharam os atos, enquanto 17% não especificaram. Com isso, foi possível identificarmos os tipos de violência cometidos. Do total, 57% afirmaram que houve violência física, enquanto 43% disseram que não. Sobre violência sexual, 52% afirmaram que não ocorreu, enquanto 48% disseram que sim, que houve abuso sexual. Sobre a violência psicológica, foi possível identificar a existência em 67%, dos casos, enquanto que em 33% dos casos ela 48 Saffioti, 2015 apud Welzer-Lang, 1991. 49 Saffioti, 2015. 14 VIOLÊNCIA DE GÊNERO EM FAMÍLIAS DO SUL DO BRASIL não esteve presente. Sabemos que a violência psicológica pode ocorrer não apenas sozinha, mas em conjunto com outros tipos de violência. Haja vista o alto índice de violência física e sexual, é de se esperar que a violência psicológica apareça em número elevado. Outro tipo de violência que foi identificado na pesquisa se refere à negligência. Essa apareceu em 80% dos casos, em grande medida em função da violência contra as crianças e os jovens que, conforme vimos anteriormente, é um público vitimado na região analisada. O abandono, percebido como a atitude mais radical de negligência, apareceu em 60% dos casos, enquanto que o cárcere privado apareceu em 5%. Apesar das denúncias caracterizarem, a partir do relato das vitimas, o tipo de violência sofrida, é importante ratificar que não concordamos com o conceito de violência como ruptura de diferentes tipos de integridade: física, sexual, moral, emocional. Pois, se entende que a violência doméstica tal como, a violência de gênero possui limites tênues entre quebra de integridade e a obrigação de suportar o destino de gênero traçado para as mulheres, que lhe impõem a sujeição, aos pressupostos patriarcais. Ademais, a ruptura de integridades colocada como um critério de avaliação de um ato violento situa-se no terreno da individualidade negando o lugar ontológico da violência50. Nesta concepção, descrever a violência representa abordar as múltiplas formas de violação dos direitos de crianças e jovens, que crescem em famílias marcadas pela profunda desigualdade social e atual contexto neoliberal redesenhado pelo Estado. As múltiplas violências sofridas aviltam a infância e a juventude destacando uma condição de vulnerabilidade no seu desenvolvimento físico e psicológico e lhes impõe maior exposição às diversas outras formas de violência. Assim, superar o abismo existente entre a concepção adotada no Estatuto da Criança e do Adolescente51, que compreende crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, e a superação da manutenção das práticas de culpabilização e exclusão daqueles que violentam pode representar uma importante estratégia de apoio para a materialização de serviços eficazes no enfrentamento da violência. Considerações finais Com esse levantamento, foi possível um mapeamento sobre a violência nessa região do município de Rio Grande/RS. Dessa forma, temos um perfil da violência, que aponta elementos importantes para a reflexão e a posterior elaboração de estratégias. Com os dados levantados foi possível perceber as mulheres como protagonistas da violência, tendo as crianças e jovens como vítimas. Como consequência disso, temos um contexto de omissão e negligência, levando ao abandono muitos dependentes. Dessa forma, é possível perceber que são mulheres que sofrem violência e reproduzem a violência do patriarca mantendo a organização social de gênero. 50 Saffioti, 2015. 51 http://www2.camara.leg.br/a-camara/programas-institucionais/inclusao-social-e-equidade/ acessibilidade/legislacao-pdf/estatuto-da-crianca-e-do-adolescente 15 Scripta Nova, vol. XXIII, nº 619, 2019 Em segundo lugar, temos a violência contra as mulheres, exercida pelos próprios parceiros. Dessa forma, podemos inferir a violência doméstica como majoritária nesse contexto, e as mulheres como sendo vítimas em algumas circunstâncias e, ao mesmo tempo, sendo agressoras em outros momentos. Dessa forma, é possível perceber as contradições presentes no que se refere à violência, onde a mesma pessoa pode ser agressora e vítima, ao mesmo tempo. Essas facetas precisam ser incorporadas nas análises de gênero, pois não devemos cair na armadilha de somente vitimar as mulheres; ou de apenas acusá-las. É preciso compreendermos a violência como um elemento que está presente nas vidas dessas famílias, de forma muitas vezes contraditória. Por isso, é necessário que se olhe sempre para esses contextos de forma dialética. Sabemos que o combate à violência doméstica tem sido uma das principais bandeiras de luta dos movimentos feministas, pois a violência contra as mulheres é, principalmente, violência doméstica. Conforme Tiburi, “a desigualdade do trabalho doméstico, o papel da maternidade e toda uma lógica do próprio casamento como submissão da mulher ao homem têm muito de um tipo de violência, que é simbólica52. Sobre o simbolismo presente na violência e mantenedor de sua estrutura, Bourdieu53 soube como ninguém capturar esse aspecto, quando desenvolveu seu conceito de violência simbólica. Sobre isso afirmou que: A violência simbólica institui-se por meio da adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao dominador (e, portanto, à dominação), uma vez que ele não dispõe para pensá-lo ou pensar a si próprio, ou melhor, para pensar sua relação com ele, senão de instrumentos de conhecimento que ambos têm em comum e que, não sendo senão a forma incorporada da relação de dominação, mostram esta relação como natural; ou, em outros termos, que os esquemas que ele mobiliza para se perceber e se avaliar ou para perceber e avaliar o dominador são o produto da incorporação de classificações, assim naturalizadas, das quais seu ser social é o produto54. No entanto, devemos atentar para dois aspectos importantes, levantados por Tiburi, que são: “1) há um nexo entre violência e poder que não permite confundi-los; 2) onde não há poder há violência, a violência é o que resta para aqueles que não tem poder”55. Dessa forma, esses aspectos talvez expliquem porque a mulher que sofre violência do marido, muitas vezes, é a mesma que exerce a violência com as crianças. Outro aspecto que chama a atenção na pesquisa é a importância da escola no que se refere a identificação e posterior encaminhamento de denúncia de violência. O ambiente escolar tem sido um espaço onde aflora as denúncias. Isso demonstra a necessidade de incorporação da instituição escolar quando se analisa a violência e 52 53 54 55 2018, p. 106. 2011. 2011, p. 47. 2018, p. 109-110. 16 VIOLÊNCIA DE GÊNERO EM FAMÍLIAS DO SUL DO BRASIL busca-se a implementação de iniciativas visando seu enfrentamento. Dessa forma, a escola (incluindo seus agentes, como corpo docente, gestão e servidores) precisa ser pensada como um lócus no qual são canalizados os casos e, portanto, é necessária a formação desses agentes para lidarem com essas situações. Outro dado importante para levarmos em consideração quando pensamos na escola como um espaço de enfrentamento à violência de gênero, se refere ao fato da grande maioria das/os profissionais do ensino serem mulheres. É sabido que as questões de gênero perpassam o exercício da docência e todo o cotidiano escolar. Dentre outras, Marília Carvalho56 (20 tem sido uma pesquisadora brasileira que tem se debruçado sobre os processos de feminização da docência, isto é, buscando compreender os atravessamentos do gênero feminino na constituição da profissão docente, onde elementos como o cuidado e a maternidade sutilmente se colocam na representação e na imagem dessa profissão. O grande educador brasileiro Paulo Freire57 já denunciava esse caráter, especialmente na obra Professora sim, tia não58 quando, partindo da denominação de “tia” - forma tão utilizada pelos alunos no tratamento às professoras - problematizava o seu uso enquanto elemento de desvalorização da profissão docente no país. Esse fator reforça a necessidade das/os profissionais que venham a atuar no combate à violência nessa região incorporarem a dimensão de gênero em suas análises, inclusive no que se refere a instituição escolar. É importante ampliar a reflexão sobre o que se quer e o que se entende a respeito da violência familiar, da violência contra a mulher, da violência doméstica ou ainda da violência de gênero, pois não podemos correr o risco de enfraquecermos o acúmulo histórico de lutas que já foram travadas contra os mais diversos tipos de violência. É com a compreensão dos conceitos que podemos avançar em estratégias de superação da violência de gênero, incorporando os aspectos já conquistados. Referências BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 10.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011. CARVALHO, Marília Pinto de Carvalho. Sucesso e fracasso escolar: uma questão de gênero. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 185-193, jan./jun. 2003. CARVALHO, Marília Pinto de Carvalho. 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