Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro
Roberta Ellen Canuto
Alberto Cavalcanti:
Homem Cinema
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Tese de Doutorado
Tese apresentada como requisito parcial para obtenção
do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação
em Comunicação Social do Departamento de
Comunicação da PUC-Rio.
Orientadora: Prof.ª Angeluccia Bernardes Habert
Rio de Janeiro
Abril de 2018
Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro
Roberta Ellen Canuto
Alberto Cavalcanti:
Homem Cinema
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Tese de Doutorado
Tese apresentada como requisito parcial para a
obtenção do grau de Doutor pelo Programa de PósGraduação em Comunicação Social do Departamento
de Comunicação Social do Centro de Ciências Sociais
da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora
abaixo assinada.
Prof.ª Angeluccia Bernardes Habert
Orientadora
Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social – PUC-Rio
Profª. Liliane Ruth Heynemann
Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social – PUC-Rio
Prof. Miguel Serpa Pereira
Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social – PUC-Rio
Prof. Antonio Carlos Amancio da Silva
Universidade Federal do Fluminense – UFF
Prof. Afrânio Mendes Catani
Universidade de São Paulo – USP
Prof. Augusto Cesar Pinheiro da Silva
Vice-Decano Setorial de Pós-Graduação do
Centro de Ciências Sociais
Rio de Janeiro, 25 de abril de 2018
Todos os direitos reservados. É proibida a
reprodução total ou parcial do trabalho sem
autorização da universidade, da autora e da
orientadora.
Roberta Ellen Canuto
Mestra em Literatura Brasileira pelo Departamento
de Letras da UFMG. Especialista em cinema, em
nível de pós-graduação latu-sensu pela PUC - MG.
Roteirista de cinema e televisão. Tem quatro livros
publicados, sendo três deles sobre cinema.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Ficha Catalográfica
Canuto, Roberta Ellen
Alberto Cavalcanti : homem cinema / Roberta Ellen Canuto ; orientadora: Angeluccia Bernardes Habert. – 2018.
281f. : il. color. ; 30 cm
Tese (doutorado)–Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Departamento de
Comunicação Social, 2018.
Inclui bibliografia
1. Comunicação Social – Teses. 2. Alberto
Cavalcanti. 3. Documentário. 4. Cinema documental inglês. 5. Avant-garde. 6. Neorrealismo
italiano. I. Habert, Angeluccia Bernardes. II.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Comunicação Social. III.
Título.
CDD: 302.23
Agradecimentos
Li em algum lugar que para se ter um filho é preciso uma estrutura semelhante às
bonecas russas, uma sucessão de encaixes e refúgios onde o abrigo é garantido. A
minha experiência com esta tese fez ampliar esta singela sentença, que me soou
tão preciosa ao tentar acomodar os anseios da maternidade, para a seara
acadêmica. Esta tese só foi possível porque me senti envolvida em uma rede de
afetos que se formou ao meu redor.
Agradeço em especial à minha mãe, por sua doação incondicional, por estar desde
o primeiro momento ao meu lado, se desdobrando em apoio e cuidados com o
meu Antônio, que tem a sua pequena existência construída paralelamente à esta
tese.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Agradeço ao meu amado filho Pedro, por entender meus silêncios e minhas
ausências em longas e intensas jornadas de trabalho. E ao Marcelo, por ser meu
companheiro e meu parceiro nesta difícil e árdua experiência, moldada entre
sentimentos tão desafiadores.
Aos meus companheiros de jornada Cavalcantiana, Sérgio Caldieri e Claudio
Valentinetti! Sem eles definitivamente esta tese não existiria, eles foram meus
incentivadores, donos de uma generosidade imensurável! Meus faróis essenciais e
definitivos!
Serei eternamente grata à Wanda Ribeiro pela generosidade e por me apontar as
pistas para o acervo precioso, que foi decisivo para esta tese. E também a Hernani
Heffner, pela paciência e por generosamente compartilhar comigo em longas
conversas um pouco do seu imenso inventário intelectual.
Agradeço também a Ismail Xavier, por acreditar neste projeto desde o seu
embrião. E a Jom Tob Azulay por me incentivar e me encher de entusiasmo sobre
o nosso amado Cav.
À minha querida família, que acompanhou este roteiro de incertezas que é a
criação de uma tese.
À minha orientadora Angeluccia Habert, por me guiar nesta trajetória, entendendo
todos os descaminhos que se configuraram no meu percurso pessoal durante esta
pesquisa.
À equipe da Comunicação da PUC Rio, em especial à Marise, que me acolheu
com uma generosidade maternal desde o meu primeiro dia no Pós-Com.
E finalmente, agradeço imensamente à Alberto Cavalcanti, por me arrebatar na
direção de um abismo iluminado, onde vi projetadas as imagens do cinema no
século XX, com todo o encantamento e genialidade que esta arte pode conter.
Resumo
Canuto, Roberta Ellen; Habert, Angeluccia Bernardes. Alberto Cavalcanti:
homem cinema. Rio de Janeiro, 2018. 281p. Tese de Doutorado Departamento de Comunicação Social, Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro.
Esta pesquisa investiga o cinema realizado por Alberto Cavalcanti, sua herança e a presença de traços conceituais e estéticos de sua obra na cinematografia
italiana do pós-guerra. Existem duas características centrais que indicam similaridades entre o cinema realizado por Cavalcanti e o Neorrealismo: a priori, os aspectos sociais e poéticos intensos de seu trabalho, principalmente em sua fase
francesa, em filmes como Rien que les heures (1926) e, mais tarde, mais explicitamente no cinema documental inglês em filmes como Coalface (1935). E a posteriori, o fato de Cavalcanti romper com as fronteiras entre documentário e ficção,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
desde de Rien que les heures e , sobretudo, na sua fase na General Post Office
Film Unit. A partir dessas premissas, será possível uma análise das raízes do cinema moderno, historicamente creditadas ao Neorrealismo Italiano.
Palavras-chave
Alberto Cavalcanti, documentário, cinema documental inglês, avantgarde, Neorrealismo italiano.
Abstract
Canuto, Roberta Ellen; Habert, Angeluccia Bernardes. (Advisor) Alberto
Cavalcanti: Cinema-Man. Rio de Janeiro, 2018. 281p Tese de Doutorado Departamento de Comunicação Social, Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro.
This research investigates the films of Alberto Cavalcanti, his heritage and
role as an aesesthetic pioneer in the post world war II era that preceded modern
cinema. There are two main characteristics that indicate that his role in the
neorrealistc movement was much more important than has previously been
considered. First of all the intense social and poetic aspects of his work, primarily
in his French phase, in films such as Rien que les heures (1926), and later more
explicitly in English documentaries such as Coalface (1935). Cavalcanti dissolved
the borders between documentary and fiction starting with his production of Rien
que les heures and continuing through his entire involvement with General Post
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Office Film Unit. Beginning with these premises an analysis of the roots of
modern cinema, historically credited to the Italian neo realism movement will be
possible
Keywords
Alberto Cavalcanti, documentary, English documentary cinema, avantgarde, Italian neo-realism.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Sumário
Introdução
Serendipity
Acervo público Cavalcanti
12
14
21
1. O homem cinema e a invenção da realidade: uma fortuna memorial e
um surrealista no realismo poético
1.1. A realidade como matéria prima
1.2. O real sob o signo da guerra
31
39
63
2. Rien que les heures: representar o real - do realismo poético ao
surrealismo
2.1. O cinema puro
2.2. A chegada do som e o ocaso da Avant-garde
70
85
99
3. A conquista da Inglaterra e a invenção da realidade
3.1. Grierson x Cavalcanti - Experiência Artística x Funcionalidade
3.2. O começo do fim
3.3. Filme e realidade – ensaio imagético sobre o documental
3.4. Zonas de convergência - Cavalcanti, o Neorrealismo italiano e o
Cinema Novo brasileiro
3.4.1. Rien que les heures (1926) – A margem no centro da narrativa
3.4.2. Song of Ceylon (1934) – O chá, o imperialismo e as sementes de
cinema novo
3.4.3. Pett and Pott – A Fairy Story of the Suburbs (1934)
3.4.4. Night Mail (1936) Harry Watt/ Basil Wright – A carta e o cinema de
metonímia
3.4.5. Coal Face (1936) – Um mergulho na usina humana do Império
Inglês
3.4.6. North Sea (1938)
3.5. Ealing – Luz, sombra e realismo
111
121
140
145
152
159
163
168
169
172
178
180
4. Reminicências e Ressonâncias: Vera Cruz, Maristela, Kino-Filmes e
Brecht
4.1. Vera Cruz – Memorial de uma breve inquisição
4.2. Vera Cruz e Cinema Novo – A batalha e o legado
4.3. INC – Instituto Nacional de Cinema
4.4. Maristela – Kino-Filmes
4.5. O Canto do Mar - Filme síntese
4.6. Uma rosa e o poeta. A volta ao mundo civilizado e as aspirações
derradeiras de um eterno estrangeiro
4.7. Um homem e o Cinema e o Judeu – Filmes testamento
241
249
5. Conclusão
255
6. Filmografia Alberto Cavalcanti
260
7. Referências bibliográficas
270
Apêndices
280
196
209
218
222
227
233
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Lista de figuras
Figura 1: Cartões e fotos acervo Cavalcanti
15
Figura 2: Detalhe correspondências acervo Cav
17
Figura 3: Os mestres do cinema segundo Cavalcanti
18
Figura 4: Carta de Alain Renoir a Cavalcanti
20
Figura 5: Página de roteiro escrito por Dinah Silveira de Queiroz
27
Figura 6: Capa Memórias Cavalcanti em inglês - Acervo Cinemateca
Brasileira
32
Figura 7: Capa memórias Cavalcanti acervo Sergio Caldieri
35
Figura 8: Pasta que guarda memórias acervo Caldieri
35
Figura 9: Bilhete colado em pasta de memórias acervo Caldieri
36
Figura 10: Página de memórias Acervo S. Caldieri
37
Figura 11: Capitulo fase brasileira memórias acervo Caldieri
38
Figura 12: Fotograma de Catherine Hessling em O Chapeuzinho Vermelho
(1929)
43
Figura 13: Fotograma de Rien que les heures
47
Figura 14: Fotograma Rien que les heures
48
Figura 15: Fotograma de Rien que les heures
57
Figura 16: Fotog. Berlim Sinfonia de uma Cidade
57
Figura 17: Fotograma de The First Days (1939 – 1940)
66
Figura 18: Foto da fachada de um Nickelodeon na primeira década do século
XX nos EUA
72
Figura 19: Desenhos e fotogramas dos cenários de Cavalcanti para Feu
Mathias Pascal (1924)
78
Figura 20: Blonde a la rose 1915-1917 Renoir
81
Figura 21: Catherine em fotog. de Nana - J. Renoir
81
Figura 22: Gina Manes em raro fotograma de Le train sans yeux
84
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Figura 23: Fotograma Rien que les heures
92
Figura 24: Fotograma de O Rio (The river) (1951) de Jean Renoir
101
Figura 25: Fotograma de En Rade (1927) Alberto Cavalcanti
103
Figura 26: Still de Catherine Hessling no set de En Rade
104
Figura 27: Catherine Hessling em Fotograma de La P'Tite Lili Dir:
Alberto Cavalcanti
106
Figura 28: Catherine Hessling em Yvette (1927)
107
Figura 29: Fotograma com cena de ação de Capitão Fracasso (1928)
109
Figura 30: A excelência estética de O triunfo da Vontade (1934) de Leni
Riefensthal
112
Figura 31: Cartaz anunciando a exibição de Drifters em 02 de dezembro
de 1929
114
Figura 32: O trabalhador das minas de carvão em fotograma de
Industrial Britain (1933)
121
Figura 33: A representação do trabalhador em fotograma de CoalFace
(1935)
125
Figura 34: Fotograma da chancelaria em Alemanha Ano Zero
128
Figura 35: Fotograma da “pesca do tubarão” em O homem de Aran
(1934)
130
Figura 36: Fotograma de Nanook (1922)
132
Figura 37: Fotograma de Night Mail (1936)
132
Figura 38: Fotograma de Pett and Pott
137
Figura 39: A mão que invade a tela e rasga uma foto em fotograma de
Rien que les heures (influência Surrealista)
159
Figura 40: Exemplo de colagem em fotograma de Rien que les heures
160
Figura 41: A miséria em fotograma de Rien que les heures
162
Figura 42: Cartela em fotograma de Rien que les heures “noite, mistério e
inquietude”
163
Figura 43: Pescadores em Song of Ceylon
164
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Figura 44: Pescadores em Barravento
164
Figura 45: Religiosidade e musicalidade em Song of Ceylon
165
Figura 46: "Os sertanejos" do Ceilão em Song o Ceylon
166
Figura 47: Mulheres trabalham em Song of Ceylon
166
Figura 48: Misticismo e signo glauberiano em Song of Ceylon
168
Figura 49: Fotografia still de Night Mail (mulheres no set)
170
Figura 50: Elemento humano em Night Mail
171
Figura 51: O elemento humano/social em CoalFace, o “pão do
trabalhador “em meio ao carvão
173
Figura 52: As condições de trabalho dos mineiros na Inglaterra de 1930
174
Figura 53: O claro e escuro e o documental em Roma Cidade Aberta
175
Figura 54: As ruínas de Berlim em Alemanha Ano Zero
176
Figura 55: As conexões afetivas na guerra em Paisá
178
Figura 56: As mulheres em A Terra Treme
179
Figura 57: Fotomontagem de Yellow Caesar
182
Figura 58: Michael Redgrave em Dead of Night
189
Figura 59: A face obscura dos britânicos em Went the day well?
190
Figura 60: O noir em They made me a fugitive
191
Figura 61: Fotograma da sequência em que os episódios se cruzam em
Dead of Night
193
Figura 62: Carta assinada por Cavalcanti em que cita amigos, como
Yolanda Penteado, Rudá de Andrade e Almeida Salles
198
Figura 63: Primeira página manuscrito discurso Almeida Salles
200
Figura 64: Página de verso do discurso de Almeida Salles
202
Figura 65: João Ubaldo Ribeiro, Jards Macalé, Alberto Cavalcanti e
Glauber Rocha
207
Figura 66: Página das memórias de Cavalcanti que introduz o capítulo
dedicado à Vera Cruz
209
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Figura 67: Fotograma de Caiçara (1950) que acabou por ser dirigido
por Adolfo Celi
212
Figura 68: A atriz Eliane Lage em fotograma de Ângela
215
Figura 69: O núcleo familiar de Simão o Caolho
229
Figura 70: Um dos cartazes de divulgação do filme, com o nome de
Cavalcanti em destaque “dirige pela primeira vez no Brasil”
230
Figura 71: A representação do sertão em O Canto do Mar
234
Figura 72: A diáspora da seca em O Canto do Mar
236
Figura 73: O núcleo familiar de O Canto do Mar
237
Figura 74: Os rituais sagrados e pagãos em O Canto do Mar
238
Figura 75: Cartaz do filme de Cavalcanti criado aparentemente para
um lançamento em vídeo na Europa
242
Figura 76: Foto da primeira página do manuscrito “As relações de
Cavalcanti com Bertold Brecht”
243
Figura 77: Última página do texto, datado e assinado por Cavalcanti
244
Figura 78: Cavalcanti e Helene Weigel no set de Rosa dos Ventos
248
Figura 79: Os conflitos sertanejos em Rosa dos Ventos
249
Figura 80: Solicitação de parceria luso-brasileira junto ao museu do traje
251
Figura 81: Detalhe entrevista Alex Viany
252
Figura 82: Atestado de óbito de Cavalcanti
255
Figura 83: Documento de transferência das cinzas para o Rio de Janeiro
256
Introdução
Seq 1 Interior/ Dia Aeroporto Santos Dumont Rio de
Janeiro 1980
Um
homem
caminha
pelo
saguão
de
um
aeroporto,
ele
aparenta 80 anos, tem um ar elegante e melancólico. Os
detalhes do ambiente indicam que estamos na passagem da
década de 1970 para 1980. O homem usa óculos levemente
frouxos que caem sobre o nariz, seu rosto se esconde
atrás
de
um
bigode.
Ele
tem
uma
expressão
triste,
típica daqueles que partem sem certeza da volta. O
homem é seguido de perto por uma pequena entourage. Um
fotógrafo de jornal se aproxima.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Fotógrafo
Oi Cavalcanti, dá um tchau para o Brasil vai sair
amanhã na capa do Estadão!
O velho homem sorri de soslaio, ergue o chapéu e dá um
breve tchau para as lentes do fotógrafo. O flash toma
toda a tela, diluindo os takes daquela partida com um
clarão em fade in para uma tela branca.
Esta é a sequência final da relação conturbada entre o cineasta Alberto
Cavalcanti e o Brasil, é também o prenúncio do epílogo de sua existência,
Cavalcanti morreria dois anos depois, em Paris. Escolhi introduzir e concluir os
capítulos que margeiam esta tese em uma estrutura de roteiro, porque a feitura
dela se aproximou desta forma de narrativa; se estabeleceu, entre o desenrolar da
pesquisa e a tessitura da escrita, uma sucessão de pontos de virada que foram
determinantes para as rotas do meu percurso como pesquisadora.
Esta sequência acima me foi narrada pelo jornalista e escritor Sérgio
Caldieri, autor do livro Alberto Cavalcanti – Cineasta do mundo1, ele fazia parte
1
CALDIERI, Sergio. Alberto Cavalcanti: o cineasta do mundo. Rio de Janeiro: Editora Teatral
Ltda., 2005.
13
do grupo que acompanhou o cineasta ao aeroporto para o seu adeus definitivo. A
foto a que me refiro foi tirada pelo fotógrafo da sucursal carioca do jornal Estado
de São Paulo, a matéria, assinada por Márcio Guedes, foi publicada no dia 12 de
junho de 19802.
A partida definitiva de Cavalcanti marcou o capítulo final de uma
aproximação complicada entre o cineasta e sua terra natal, um roteiro que envolve
ódio, frustrações, mágoas, rancores e uma série de idas e vindas pelo mundo, em
uma espécie de odisseia ao avesso, onde os perigos, os monstros e o desconhecido
residiam em casa e não nos mares do outro. Cavalcanti vivia o ser estrangeiro em
permanência, na Europa era o brasileiro, no Brasil era demasiado francês ou
inglês.
É importante anunciar que esta tese foi construída a partir de uma narrativa
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
que se apropria do tom pessoal, sobretudo, ao enunciar os passos e reviravoltas
que marcaram a pesquisa de campo, que se configurou uma etapa fundamental
desta pesquisa. Trazendo a tona a percepção de que a imersão na obra de
Cavalcanti traz consigo intrissicamente o mergulho em sua dimensão humana.
O conceito primordial desta pesquisa, que se baseava em uma reflexão
sobre as intercessões estéticas e interfaces poéticas entre o documentário de
Cavalcanti realizado na General Post Office e o Neorrealismo Italiano, ampliou
suas bordas para o território do humano, onde o homem Cavalcanti se mostrou
indissociável do seu “ser cinema”, que em uma espécie de sacerdócio, doou sua
vida à realização cinematográfica. Cavalcanti dizia sobre esta “missão”:
Para mim o cinema foi sempre uma religião. Nasci na aurora do século e
considero uma grande sorte ser testemunha dos avanços da nossa civilização:
telégrafo sem fio, fotografia, televisão, eletrônica, conquista espacial, etc. Quando
abandonei a arquitetura e o desenho pelo cinema, tive o sentimento de que tinha
deveres: isto quer dizer que em caso algum o cinema deveria ser para mim uma
diversão, como seriam para mim o teatro ou até mesmo a literatura. Era um meio
muito mais completo, muito mais direto, uma arte total3.
2
O recorte do jornal está arquivado junto ao acervo de Alberto Cavalcanti na Cinemateca do
MAM/RJ.
3
CAVALCANTI, Alberto apud VALENTINETTI, Claudio, Um canto, um judeu e algumas cartas
, Rio de Janeiro: Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e Instituto Lina Bo e
P.M. Bardi, 1997. p. 13.
14
Além da dimensão pessoal que permeia este trabalho, pude perceber a
partir da análise de filmes e textos, que os entrelaçamentos entre o cinema de
Cavalcanti e o Neorrealismo Italiano são muito mais profundos do que se
canonizou ao longo da história do cinema. Segundo Jean-Luc Godard, “Todo
grande filme de ficção tende para o documentário; todo grande documentário
tende para a ficção. Ou seja, todos os caminhos levam a Roma, Cidade Aberta
(Roberto Rossellini, 1946)” 4. Este trabalho se propõe a repensar o trocadilho
godardiano e reposicionar cronologicamente esta simbiose ficção-realidade em
Cavalcanti, algumas décadas antes da obra prima de Rossellini.
Serendipity
A descoberta ao acaso de uma vasta documentação pertencente a
Cavalcanti reconduziu de forma profunda a abordagem desta tese sobre a obra do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
diretor, trazendo para o referencial centenas de documentos, entre cartas, bilhetes,
rascunhos, textos escritos pelo cineasta (manuscritos originais) sobre o cinema e a
feitura de seus filmes.
O que até então fora um mergulho no universo das teorias construídas
sobre a linguagem cinematográfica e sobre a obra Cavalcanti, se ampliou para
uma imersão na intimidade daquele homem. E assim, entre uma pessoal
documentação que continha cartões postais, paisagens natalinas, bilhetes, cartões
de dentistas, oftalmologistas israelenses e outros registros frugais, se revelava uma
evidência essencial para o entendimento da trajetória de Cavalcanti, uma espécie
de sítio arqueológico que dava corpo à imensa teia que se estabeleceu entre o
cineasta e o mundo.
A maioria deste correspondência pessoal é endereçada a pessoas comuns,
e um Cavalcanti, descrito na maioria da fortuna teórica como um homem de difícil
convivência, deixava revelar gentileza e ternura. Uma de suas remetentes assinou
os votos de felicidades como de “sua família” na França. É enriquecedor perceber
como os gestos prosaicos guardam preciosas revelações, aquele vasto inventário
4
GODARD, Jean-Luc In Segundo Caderno – jornal O Globo – Rio de Janeiro 26/08/2008 p.10
(grifos meus). A frase de Godard foi publicada Originalmente na edição 94 da revista Cahiers du
Cinéma de abril de 1959, no artigo Moi un noir .
15
íntimo de pequenas banalidades me dizia muito sobre um homem que conhecia
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
até então apenas pelo viés do seu legado público.
5
Figura 1: Cartões e fotos acervo Cavalcanti.
O termo serendipity6 é usualmente aplicado a descobertas científicas,
invenções nascidas de acasos que se reverteram em sólidas benfeitorias para a
humanidade. Mas o fenômeno serendipity tem um elemento poético genuíno, que
pode alimentar plenamente o imaginário dos pesquisadores que se lançam em
rotas iluminadas pela subjetividade inerente ao objeto artístico, como é o caso
desta tese. Rotas que podem ser quase abismais, como a que aponta para a
tentativa de mapear o cinema de um diretor que teve pela frente uma série de
infortúnios que apagaram boa parte dos vestígios do seu legado em seu país natal.
Desta forma o componente lúdico se instalou nesta tese, permitindo que os
aspectos existenciais do meu objeto de pesquisa viessem à tona, costurando os
5
Detalhe das dezenas de documentos pessoais de Cavalcanti no acervo de Sérgio Caldieri
A palavra serendipity está nas listas das mais difíceis de se traduzir, seus primeiros registros são
atribuídos a relatos orais do século IV. Estes relatos se referem à lenda dos Três Príncipes de
Serendip, que teriam revertido um evento Infeliz em resultados afortunados. O termo Serendip
aparece também em referências clássicas às viagens de Simbá. As fontes que consultei afirmam
que o termo Serendip é uma tradução árabe que nomeia a região que conhecemos hoje como Sri
Lanka. (Curiosamente país em que Cavalcanti esteve filmando na equipe de um dos longasmetragens que mais gosto, o documentário Song of Ceylon). A palavra Serendip foi
defInitivamente incorporada à língua Inglesa pelo escritor Horace Walpole, no século XVIII. A
influência na língua inglesa dessa publicação de Walpole foi tão grande que gerou a palavra
'Serendipity', que em tradução livre quer dizer: “descobertas afortunadas feitas aparentemente por
acaso” - Fonte: http://www.recantodasletras.com.br/ensaios/2461955
6
16
parâmetros técnicos na tessitura desta pesquisa, em uma imersão nas ruínas da
vida e da obra de Cavalcanti.
A descoberta deste acervo foi fruto de uma das muitas visitas de pesquisa
de campo que fiz à Cinemateca do MAM – Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro. Numa delas, o diretor da instituição Hernani Heffner me mostrou o
catálogo da Mostra que a Cinemateca sediou em 2005 em homenagem a
Cavalcanti7. A programação de filmes era apenas parte de um grande evento que
teve curadoria da pesquisadora Wanda Ribeiro, e contou com o apoio do SESC Secretaria de Estado e Comércio do Rio de Janeiro e da SAV - Secretaria de
Audiovisual do Ministério da Cultura. A homenagem rendeu também a
publicação do livro Alberto Cavalcanti – cineasta do mundo, do jornalista Sérgio
Caldieri, aqui citado, que também assinou a curadoria biográfica do evento.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Após esta conversa com Hernani, e na tentativa de localizar uma cópia no
Brasil do longa-metragem ensaio Filme e Realidade, obra-chave de Cavalcanti
realizado entre 1939 e 1942, que constava na programação do catálogo, procurei
por Wanda e ela me recebeu para um encontro no Arquivo Nacional. Tivemos
uma longa conversa sobre os desafios de realizar uma mostra daquele porte com a
filmografia de Cavalcanti, ela me narrou como conseguiu os filmes, muitos deles
espalhados em cinematecas pelo mundo. Infelizmente Wanda me informou que
ela não conseguiu localizar a cópia de Filme e Realidade, que embora constasse
no catálogo, não fora de fato exibido. Ao final de nosso encontro, Wanda
mencionou a existência de uma mala de documentos pertencentes a Cavalcanti,
que teria sido encontrada por Sérgio Caldieri.
Agendei uma visita a sua casa em Niterói, onde me deparei com cinco
caixas de papelão lotadas de documentos, segundo ele, eram onze quilos de papéis
guardados (número que deve ser exato, já que o volume havia sido remetido a ele
via correio). Percebi que estava diante de uma espécie de quebra-cabeças, uma
cartografia da trajetória de Cavalcanti. Cada ensaio teórico escrito em uma
caligrafia impecável em papel finíssimo, recibo de hotel pelo mundo e cartão de
natal que enviou a amigos de todos os continentes, revelava para mim como este
7
CALDIERI Sérgio. Alberto Cavalcanti – Um brasileiro cineasta do mundo. Rio de Janeiro (RJ)
Editora Teatral Ltda 2005.
17
homem se multiplicara em uma rede de relações que está totalmente imbricada
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
com a história do cinema e da arte no século XX.
8
Figura 2: Detalhe correspondências acervo Cav.
O subtítulo Homem Cinema é também uma pequena homenagem ao livro
de memórias que o cineasta nunca conseguiu publicar, que teria entre os muitos
títulos cogitados, o que parece mais abrangente: One man and the cinema9.
Abaixo está um dos pequenos tesouros que compõem este acervo de
documentos, um envelope em que fortuitamente Cavalcanti escreveu, a pedido de
Sérgio Caldieri durante uma entrevista, os nomes dos cineastas eleitos pelo diretor
como os maiores da história10. Esta pequena confissão diz muito sobre o cinema
que Cavalcanti perseguiu, um cinema que transitou entre o clássico e o
experimental, entre o comercial e o autoral, evidenciando que esta documentação
8
Fragmento de cartões de natal e cartas do “acervo Cavalcanti” em poder de Sérgio Caldieri
Este era o título da cópia das memórias escritas em inglês por Cavalcanti, que encontrei na
Cinemateca de São Paulo na visita que fiz para as minhas pesquisas em outubro de 2016. Durante
a pesquisa descobri que Cavalcanti cogitou dezenas de títulos para suas memórias.
10
Os cineastas eleitos por Cavalcanti são: Erick Von Stroheim, D. W. Griffith, C. Chaplin, Sergei
EisensteIn e Robert Flaherty.
9
18
pessoal, se revelara uma importante fonte de pesquisa para o entendimento de sua
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
obra.
Figura 3: Os mestres do cinema segundo Cavalcanti.
Alberto Cavalcanti nasceu poucos meses depois da invenção do
cinematógrafo, em 06 de fevereiro de 1897, em uma casa da rua Alvaro Ramos,
em Botafogo, Rio de Janeiro, e morreu em uma clínica na Rue de Passy, em Paris,
em 23 de agosto de 1982, após uma crise cardíaca11, completando um ciclo
errante de idas e vindas pelo mundo.
Sua trajetória como cineasta atravessou o cinema em todas suas fases no
século XX, das vanguardas na França, onde se moldou como artista, até o cinema
de ficção realizado após a segunda grande guerra. Neste percurso, Cavalcanti
passou pelo documentário, pelo cinema experimental e pela maioria dos gêneros
da narrativa clássica, o terror, a comédia, o noir, o épico, o filme de guerra, o
musical e o drama.
11
Revista Cinemin nr. 48. Rio de Janeiro (RJ): Editora Brasil América. (Out – Nov de 1988)
página 14. A certidão de óbido Original de Cavalcanti é parte do acervo de Caldieiri, e está anexa
no corpo desta tese.
19
O cineasta atuou em praticamente todas as funções na estrutura de um set
de filmagens, foi cenógrafo, diretor de arte, fotógrafo, roteirista, produtor, diretor,
editor de som e montador, em uma experiência empírica de aprendizado que se
moldou ao longo da construção e consolidação teórica da linguagem
cinematográfica. Assim, Cavalcanti aprendeu a dominar as ferramentas do cinema
na medida em que elas eram criadas, com o advento da cor Cavalcanti foi pioneiro
ao criar uma paleta de cores para os cenários que melhor imprimisse na fotografia
em preto e branco, em seu trabalho como cenógrafo e diretor de arte; com a
chegada do som, Cavalcanti se propôs a romper com suas regras, libertando a
experiência sonora do sincronismo.
Embora Cavalcanti tenha auto-definido a sua relação com o cinema por
um viés quase messiânico, como foi aqui citado, a sua trajetória é profundamente
marcada pela imperfeição dos sentimentos humanos, como vaidade, inveja,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
vingança e rancores, em uma sucessão de relações truncadas. Algumas destas
relações foram etéreis na prática e longevas em suas reminiscências, como a
amizade que nutriu com o cineasta Jean Renoir, que renderia alguns filmes e uma
separação sobre a qual nenhuma das partes se manifestou de forma clara.
Renoir não mencionou Cavalcanti em suas memórias12, mas seu filho, o
escritor e professor de literatura Alain Renoir, em uma carta13 endereçada ao
brasileiro, após uma visita à casa do cineasta Martin Scorcese e da atriz Liza
Minelli em Los Angeles14, exaltou a parceria de Cavalcanti com o pai, na carta ele
revelou também que Scorcese tinha um pôster de A vida e as aventuras de
Nicholas Nickleby (1947) em sua parede, dizendo se tratar de um de seus filmes
favoritos15.
12
Alain era filho de Renoir com a atriz Catherine Hessling, que
RENOIR Jean Escritos sobre cinema – 1926 -1971 São Paulo: Nova Fronteira São Paulo (SP)
1990.
13
Esta carta faz parte do acervo aqui mencionado, ao qual tive acesso na casa de Caldieri.
Infelizmente o manuscrito não diz o ano em que foi redigido, apenas o mês: junho.
14
Em texto publicado no blog do crítico de cinema Carlos Alberto Mattos, Sérgio Caldieri
publicou um texto em que atribui o ano de 1973 a esta carta de AlaIn Renoir https://carmattos.com/2017/03/28/35-anos-sem-cavalcanti/.
15
Cavalcanti seria referendado entre as preferências de Scorcese em outra ocasião, na lista que o
cineasta americano fez dos 11 filmes mais assustadores da história do cinema, onde ele faz constar
Dead of Night (1945), de Alberto Cavalcanti, Charles Crichton, Basil Dearden e Robert Hamer,
produção da EalIng em que Cavalcanti dirige o famoso episódio do ventrílogo. Fonte:
http://rollIngstone.uol.com.br/noticia/martIn-scorsese-elege-os-onze-filmes-mais-assustadores-dahistoria/
20
algumas narrativas apontam como o pivô para o rompimento da amizade entre os
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
dois cineastas.
Figura 4: Carta de Alain Renoir a Cavalcanti.
Percebi ao longo desta pesquisa que seria inevitável falar da relação entre
Alberto Cavalcanti e Jean Renoir, mesmo que o francês tenha ignorado o
brasileiro em sua autobiografia, todas as outras publicações as quais tive acesso
que tratavam da vida e obra de Renoir, tinham uma parcela considerável dedicada
a Cavalcanti, dos textos de Bazin à publicações biográficas, como um dos mais
recentes e completos deles: Jean Renoir – Projections of Paradise, publicado em
1994 pelo escritor e crítico norte-americano Ronald Bergan16.
16
http://articles.latimes.com/1994-09-11/books/bk-37034_1_jean-renoir.
21
Renoir, que só seria elevado à categoria de gênio com a releitura que a
Nouvelle Vague fez da sua obra e a publicação da fortuna crítica de Bazin, teve a
sua carreira profundamente entrelaçada com a de Cavalcanti na década de 1920 na
França. Os dois realizaram juntos uma série de projetos, que cessaram depois que
aquela amizade sofreu uma profunda e definitiva ruptura. As intercessões
permaneceram provocando imbricações nas trajetórias de ambos, como a ida de
Renoir para a América, que partiu de um convite de Robert Flaherty, amigo de
Cavalcanti e personagem fundamental na trajetória do brasileiro. São peças de um
mosaico de relações necessário para se entender o Cavalcanti que me propus a
revelar com esta tese.
Acervo público Cavalcanti
O quadro de precarização da memória audiovisual no Brasil se dá por
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
diferentes fatores, entre eles estão as crises institucionais que afetam os nossos
organismos de guarda principais: a Cinemateca do Museu de Arte Moderna do
Rio de Janeiro e a Cinemateca Brasileira em São Paulo, crises estas geradas pela
descontinuidade dos programas de investimento na área, que tragicamente se
somam a acidentes naturais como incêndios e enchentes. Diante deste cenário, o
acesso à filmografia de Cavalcanti se mostrou bastante restrito no Brasil.
Percebi durante a pesquisa nos dois primeiros anos do doutorado, que o
pesquisador que se propusesse a acessar o patrimônio fílmico e teórico de
Cavalcanti de forma ampla teria de atravessar o Atlântico, a filmografia do
cineasta está em quase toda a sua totalidade sob a guarda de organismos
internacionais como o BFI – British Film Institute, em Londres e a Cinemateca
Francesa, em Paris. Se há parte desta filmografia no acervo da Cinemateca
Brasileira, ela não está acessível ao público, foi o que constatei em minha visita a
esta instituição, em São Paulo, em outubro de 2016.
Diante da impossibilidade de acessar os organismos oficiais, tive de
concentrar a minha pesquisa fílmica em fontes como a internet, que contém na
íntegra alguns títulos como Rien que les heures (1926) e La p’tite Lili (1927) e na
tentativa de adquirir os títulos que foram lançados em cópias digitais. Tive a sorte
de me beneficiar pela genrosidade de amigos que me presentearam com DVD’s
22
adquiridos fora do Brasil, mais especificamente na França ou Inglaterra. Foi desta
forma que tive acesso aos filmes: Pett and Pott (1934), de Cavalcanti, CoalFace
(1935) de Cavalcanti, Night Mail (1936), de Harry Watt e Basil Wrigth, North Sea
(1938) de Harry Watt, Listen To Britain (1942) de Humphrey Jennings e Stewart
McAllister, Drifters (1929), de John Grierson, Industrial Britain (1933), Robert
Flaherty e John Grierson, Song of Ceylon (1934), de Basil Wright, que me foram
presenteados pelo cineasta e professor mineiro José Américo Ribeiro, que trouxe
da Inglaterra os filmes citados acima. Embora eu já tivesse assistido alguns deles
em salas de aula ou em mostras, o DVD me permitiu decupá-los detalhadamente.
Contei também com a generosidade do pesquisador e escritor italiano radicado em
Brasília Claudio Valentinetti, que se transformou em um parceiro essencial desta
pesquisa, Valentinetti me cedeu cópias em DVD de boa parte da produção de
Cavalcanti na fase francesa, na Ealing e na Vera Cruz.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Também assisti a filmes do Cavalcanti em mostras especiais realizadas em
sua homenagem, como uma retrospectiva realizada pelo Festival do Rio em 2012,
quando alguns de seus trabalhos na ficção foram exibidos em cópias restauradas
pelo evento, em uma parceria com o British Council. Na época foram exibidos:
Pett and Pott (1934), Champagne Charlie (1944), Dead of Night (Na solidão da
Noite) (1945), Nicholas Nichleby (1946), They made me a fugitive (Nas garras da
fatalidade) (1947), For than that trepass (O Transgressor) (1948), O Canto do
Mar (1953), Went the day well (48 horas) (1942).
Antes do Festival do Rio, a Mostra Internacional de São Paulo já havia
homenageado Cavalcanti com uma retrospectiva na 26ª edição do evento (2002).
Na ocasião a programação exibiu: Coalface, La petite Lili (1927), Champagne
Charlie (1944), En Rade (1927), Filme e realidade (1939 – 1942), Mulher de
Verdade (1954), Dead of Night (1945), They made me a fugitive (1947), O canto
do mar (1953), O sr. Puntilla e seu criado Matti (1955), Pett and Pott (1934),
Went the day well (1942), Rien que les heures (1926), Simão o Caolho (1952) e
Yellow Caesar (1941)17.
17
Fonte: site do evento: http://39.mostra.org/br/diretores/740-ALBERTO-CAVALCANTI.
23
A situação do acervo de documentos referentes a Alberto Cavalcanti não é
muito diferente da sua filmografia, a documentação depositada na Cinemateca do
MAM – Museu de Arte Moderna, no Rio de Janeiro, consiste em duas pastas de
documentos, onde constam quase em sua totalidade de recortes de jornais.
Destacam-se também catálogos de mostras e festivais, e algumas versões do
roteiro dos longas-metragens O canto do Mar (1952) e O Doutor Judeu18.
Parte desta documentação deu origem ao livro “Um canto, um judeu e
algumas cartas – uma pequena homenagem e duas grandes obras malditas de
Alberto Cavalcanti”, de Valentinetti, que em entrevista via Skype, em fevereiro
último me informou que este livro se originou da documentação constante no
MAM, aqui mencionada, e que ele tinha a informação que uma terceira pasta
dedicada a Cavalcanti, onde constava uma série de documentos que ele usou na
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
publicação citada, havia infelizmente desaparecido 19.
Em minha visita à Cinemateca Brasileira em São Paulo, pude pesquisar
um vasto arquivo de documentos sobre Cavalcanti, que reunia principalmente
livros e publicações estrangeiras como as revistas Sign and Sound e Bianco e
Nero. Nesta visita tive acesso também a catálogos interessantes, dois deles sobre a
homenagem que o Festival de Cinema de Locarno prestou a Cavalcanti, o
primeiro em 1988 e o segundo em 1995.
Esta segunda edição do Festival de Locarno propriciou em parceria com o
Instituto Lina Bo Bardi20 e P.M. Bardi, a criação do livro Alberto Cavalcanti,
também de autoria de Claudio Valentinetti desta vez em parceria com Lorenzo
Pellizzari. Neste livro consta uma coletânea de textos, ensaios e entrevistas que
Alberto Cavalcanti escreveu e concedeu ao longo de sua vida até aquele ano. A
publicação traz também textos sobre o cinema de Cavalcanti, alguns citados aqui
18
Segundo relato do professor Antônio Carlos Amâncio da Silva (UFF - Universidade Federal
Fluminense), o título original do projeto do Dr Judeu seria Profissão Culpado, segundo ele ainda,
seria este inclusive o nome com que o projeto circulou na Embrafilme.
19
A conversa via Skype aqui mencionada aconteceu no dia 22/02/2017, às 11 horas da manhã.
Claudio Valentinetti, que muito tem colaborado com esta pesquisa, reside atualmente em Brasília –
DF. Questionado por mim em uma conversa Informal durante uma das mInhas visitas à
Cinemateca, seu diretor, Hernani Heffner , confirmou a Informação de ValentInetti sobre o
desaparecimento de parte do acervo de Cavalcanti.
20
Lina Bo Bardi era tia de Claudio Valentinetti, segundo o mesmo, foi através dela que o escritor
teve contato com a obra de Cavalcanti.
24
neste trabalho, entre eles os assinados por Gilberto Freyre, Jorge Amado e
Glauber Rocha, pelo produtor John Grierson e pelos historiadores e pesquisadores
George Sadoul, Henry Langlois, diretor da Cinemateca Francesa, e Elisabeth
Sussex, pesquisadora inglesa especialista na obra de Cavalcanti.
Na Cinemateca Brasileira tive acesso também ao interessante livrocatálogo da mostra O cinema realista britânico – Journey to a legend and back,
dedicada ao cinema da GPO, realizada pela Cinemateca Nacional Portuguesa, em
1978
21
. Esta publicação traz uma série de textos analíticos escritos em especial
para o catálogo sobre a produção da G.P.O, e reúne também outros textos
fundamentais para o tema como extratos do livro Documentary Film, publicado
por Paul Rotha em 1938 e atualizado em uma nova edição em 1951.
Em 1977 a Embrafilme, então gestora do cinema brasileiro, relançou o
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
livro Filme e Realidade, escrito por Cavalcanti logo após a sua saída da Vera Cruz
e publicado originalmente em 1953 pela editora Martins Fontes. O livro é
composto por tópicos da linguagem cinematográfica como roteiro, direção, atores,
montagem, som, etc. A maioria destes textos nasceu de palestras e debates
proferidos por Cavalcanti ao longo de sua vida dedicada ao pensamento
cinematográfico. Filme e Realidade é uma espécie de mapa para se entender o
pensamento de Cavalcanti sobre o cinema, tópico a tópico o cineasta deixa
transparecer sua absoluta intimidade com outros aspectos do cinema que não a
direção, como a fotografia, a cenografia, o som e o roteiro.
Há também outras fontes teóricas que considerei, os dicionários de cinema
e diretores escritos por George Sadoul, que se constituíram como uma espécie de
bibliografia básica para os pesquisadores de todo o mundo, e as teses de pesquisa
realizadas sobre o diretor, em maioria por acadêmicos e críticos europeus e norteamericanos.
Foi fundamental também os diálogos que mantive com os escritores e
pesquisadores Sérgio Caldieri e Claudio Valentinetti, aqui mencionados, e com os
cineastas Jom Tob Azulay e Geraldo Veloso, que conviveram intensamente com
21
BOTELHO, João e VIEGASE, Manuela (org e autoria): O cinema realista britânico – Journey
to a legend and back. Lisboa: Cinemateca Nacional, 1978.
25
Cavalcanti durante a realização do longa-metragem Um homem e o cinema (1976)
em que Azulay é o diretor e Veloso o montador.
É fato que muito já foi escrito, mas há muito ainda a escrever sobre este
mestre da linguagem cinematográfica, em especial no Brasil, onde ele permanece
relegado ao esquecimento ou restrito, mesmo que timidamente, ao universo da
pesquisa acadêmica. Na Europa esta deficiência teórica é menos grave, existem
textos sobre Cavalcanti desde a década de 1920, semanários, revistas e jornais
parisienses como Les Cahiers du mois22 revistas que “misturavam” outras
vertentes da arte com o cinema, como decoração e artes plásticas.
Ainda na década de 1920, estão catalogadas publicações de todo o mundo
que mencionam o cinema de Cavalcanti, como a holandesa Parlons Industrie, em
Filmiliga23, a norte americana Experimental Cinema24 e a londrina Cinema
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Quarterly25, entre dezenas de outras citações em publicações na Europa e
América, como a Cahiers du cinema, revista francesa célebre que já incluiu a obra
de Cavalcanti em vários de seus números.
A tentativa de se reconstruir uma filmografia completa de Cavalcanti conta
também com outros obstáculos desafiadores, há uma nuvem que paira sobre a
contribuição de Cavalcanti à GPO, este componente turvo vem do fato da G.P.O
Film Unit nunca ter se preocupado em creditar de forma fidedígna os seus filmes,
as justificativas são muitas, mas o fato é que a maioria dos documentários
produzidos por eles não tem créditos confiáveis. Ele dizia sobre o assunto que:
Ninguém ignora que os créditos dos filmes do G.P.O Film Unit eram altamente
fantasiosos e que esta é uma fantasia de Grierson... A metade do que fiz não me
foi atribuída. Mesmo assim é engraçado que me acusem de reivindicar
atribuições. Eu lhe asseguro que haveria muito mais se me atribuíssem o que
realmente fiz26.
Se esta pesquisa se mantivesse na rota que se desenvolvera até então, se
mostrava inevitável uma visita ao BFI, já que o Instituto só permite o acesso
22
Les cahiers du mois, 1925 p.16-17 (Paris).
Filmiliga, 12 de agosto de 1928, p. 10-11 (Amsterdã).
24
Junho de 1930 p. 5-6, reeditada pela Arno Press, Nova York em 1969.
25
(co-autor LEGG Stuart) Primavera de 1934, p. 166-168. Tradução da alemã: Ethik für den film,
Alemanha: Klaue 1962, p. 95-97.
26
CAVACANTI, Alberto apud SUSSEX, Elizabeth Cavalcanti na Inglaterra In PELLIZZARI,
Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti p. 318.
23
26
presencial ao seu acervo, pesquisas virtuais só atingem as bases de conteúdo
catalogadas, sem acesso à obra.
É importante esclarecer a origem da documentação do acervo de Caldieri;
este material estaria originalmente entre os pertences de Cavalcanti em sua
residência em Paris, com a sua morte, em 1982, o diretor e roteirista Gilvan
Pereira pediu ao cineasta francês Jean-Jacques Méhu27, amigo de Cavalcanti, que
lhe enviasse este inventário, argumentando que ele, Gilvan, tinha o objetivo de
escrever um livro sobre o cineasta. A documentação foi então trazida para o Brasil
junto com as cinzas de Cavalcanti, por um amigo de Méhu que trabalhava na Air
France28. Mais tarde, com a morte de Gilvan, esta referida documentação chegaria
via correios, às mãos de Caldieri.
O acervo em questão está superficialmente organizado e separado por
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
assunto. O que mais me chamou a atenção a princípio foi a imensa
correspondência trocada entre Cavalcanti e artistas, jornalistas, pesquisadores e
amigos na Europa, Estados Unidos, Israel e Brasil. Dezenas destas cartas são
sobre projetos que nunca aconteceram, como a vasta correspondência que
Cavalcanti manteve com a escritora e dramaturga francesa Jeanine Worms, com
quem tinha o projeto de adaptar Tenda dos Milagres, de Jorge Amado, para o
cinema. A adaptação desta obra para o cinema só aconteceria anos mais tarde por
Nelson Pereira dos Santos. Há também roteiros originais, como o escrito por
Dinah Silveira de Queiroz para um documentário sobre Brasília.
27
http://www.bfi.org.uk/films-tv-people/4ce2ba5fe5b8a.
Estas informações me foram fornecidas por Sérgio Caldieri via mensagem de whatsapp.
Segundo o mesmo, estas questões foram esclarecidas por Carlos Gothardo, amigo em comum de
Caldieri e Gilvan Pereira.
28
27
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Figura 5: Página de roteiro escrito por Dinah Silveira de Queiroz.
E também programas de peças teatrais, como a montagem de Bodas de
Sangue (Gabriel Garcia Lorca) e da peça Fuente Ovejuna, do autor Lope de Vega
que Cavalcanti dirigiu em agosto de 1965, em Israel. Há ainda inúmeros
memorandos sobre homenagens no Brasil e na Europa, manuscritos de Cavalcanti
sobre diversos temas e os originais de vários textos sobre o cineasta, assinados por
nomes como Francisco de Almeida Salles, Henry Langlois, Jorge Amado e
Gilberto Freire.
Em uma caixa separada há um enorme volume com dezenas de
documentos bancários, como canhotos de cheques, movimentações em contas na
Suíça, e recibos de hotéis, entre eles o Castro Alves, onde Cavalcanti residiu por
longa data no Rio de Janeiro.
Entre as cartas um documento há de destacar o termo de cessão dos
direitos de Canto do Mar e Mulher de Verdade ao amigo de Cavalcanti,
Adalberto Vieira, datado de 1977. Entre tantos registros de vida, tive contato
também entre as correspondências com o atestado de óbito de Cavalcanti e a
documentação da transferência de suas cinzas para o Rio de Janeiro.
28
Depois de fotografar esta vasta documentação, que demanda um longo
trabalho de catalogação e urgente digitalização, tive acesso a um envelope
contendo os originais das memórias de Cavalcanti, datilografados por Hermilo
Borba Filho, encarregado pelo cineasta de contar a sua história. Estas memórias
nunca foram publicadas em sua versão final, uma de suas versões faz parte do
livro Alberto Cavalcanti, de Valentinetti e Pelizzari. A não publicação da
totalidade deste acervo naquela ocasião foi assim pelos autores explicada:
De maneira recorrente, Alberto Cavalcanti, durante os últimos trinta anos de sua
vida, fez alusão à redação, depois à iminente publicação de suas memórias, nas
quais trabalhava de forma intermitente e fazendo com muita probabilidade
numerosos retoques. Em Paris, consultamos um texto datilografado de cerca de
100 páginas... Obstáculos legais e espoliativos dificultam a publicação neste
momento, mas levamos em conta o conteúdo deste manuscrito sempre que
julgamos necessário 29.
Ao que tudo indica, o que encontrei em poder de Caldieri, são os originais
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
das memórias em sua totalidade e na versão mais recente, a documentação indica
que o texto teria sofrido revisões em três tempos: 1953, 1964 e 1972.
Segundo relatos narrados em cartas pelo próprio Cavalcanti, entre os
entraves desta publicação estava a falta de financiamento, como indicam estes
trechos publicados por Valentinetti: (“Tenho trabalhado pouco no livro, a razão é
que os editores ainda não se decidiram sobre o pagamento”)
30
ou (“as gravações
para o livro (aquela costumeira biografia – NdA) têm avançado bastante”), de
Cabo Frio, das Everglades, da Flórida, do Recife, dos Pirineus, de Chicago, de
Hollywood, de New York etc”31.
As memórias de Cavalcanti abrangem aspectos pessoais, como a infância e
a adolescência no Rio de Janeiro, e a sua trajetória cinematográfica, com detalhes
sobre a sua relação com grandes nomes da cultura no século XX e também sobre
particularidades da feitura de quase todos os seus filmes.
Este registro memorial, embora impregnado de subjetividade, se mostrou
para mim um mapa fundamental da autoralidade do cineasta sobre a sua obra, em
29
PELLIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio, Alberto Cavalcanti, 1995. P 158.
VALENTINETTI, Claudio: Um canto, um judeu e algumas cartas. Rio de Janeiro: Instituto
Lina Bo e P.M. Bardi – Cinemateca do MAM, 1997 p. 16 - Parêntesis do Original.
31
Ibidem p.18 (parêntesis do autor).
30
29
um percurso que tem como cenário a história do cinema na primeira metade do
século XX.
A partir das descobertas citadas, reestruturei os capítulos desta tese,
dedicando o primeiro deles ao memorial do cineasta e sua imersão na realidade
social, uma das bases fundadoras do seu cinema, se não, a mais determinante.
Neste capítulo trabalho também com um arsenal teórico mais presente, já que o
conceito de realismo permeia toda a história do cinema e foi tema de ensaios e
publicações de alguns dos seus maiores teóricos. Decidi por trazer à berlinda em
especial os escritos de Siegfried Kracauer e André Bazin, por considerá-los faróis
essenciais sobre a relação do cinema como a representação do real.
No segundo capítulo me concentrei na fase francesa da trajetória de
Cavalcanti, período em que se constitui a sua formação como artista e que se
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
constroem algumas redes de relações determinantes em sua vida, em especial com
Jean Renoir e Catherine Hessling, formando um triangulo imperfeito entre três
personagens brilhantes. Em relação à filmografia de Cavalcanti, dei destaque à
Rien que les heures, que considero sua obra-monumento na avant-garde.
No terceiro capítulo falo da fase inglêsa, em que Cavalcanti se transforma
em Cav, apelido dado pelos britânicos, que talvez tivessem dificuldade em
pronunciar o sobrenome que o cineasta herdou dos engenhos de Pernambuco.
Neste capítulo me concentro essencialmente na relação entre Cavalcanti e
Grierson e posteriormente, Cavalcanti e Sir. Michael Balcon, mais uma vez,
percebi que é impossível dissociar vida e obra, relações de trabalho e pessoais,
quando se pensa Cavalcanti. Sobre a filmografia, destaquei obras síntese do
documentarismo britânico e da ficção durante o pós-guerra na Ealing. Considerei
que este era o momento para tecer de forma mais objetiva e direta uma analogia
entre alguns documentários de Cavalcanti na fase inglesa (abri uma exceção para
Rien que les heures, justamente por seu caráter documental e por sua importância
seminal), o Neorrelismo italiano e as cinematografias por ele influenciadas,
sobretudo, o Cinema Novo.
No quarto e último capítulo, me concentro nas reminiscências deixadas
pela passagem de Cavalcanti pela Vera Cruz e em filmes realizados pelo cineasta
30
após este período, que considero a parcela mais interessante da sua produção no
Brasil, como a comédia Simão, o caolho (1952), produzida pela Maristela e a
refilmagem de En Rade, que aqui recebeu o título de O Canto do mar
(1953/1954), realizada pela Kino Filmes. Tratei o tema Vera Cruz pelo viés dos
testemunhos autorais, o principal deles, as memórias de Cavalcanti, e como fontes
secundárias considerei escritos notórios sobre o assunto, como o que Glauber
dedicou a Cavalcanti no seu Revisão Crítica do Cinema Brasileiro. Ainda sobre a
filmografia analisada, que se encerra com a antologia O Homem e o Cinema e a
frustrada tentativa de Cavalcanti de levar ao cinema um dos seus projetos mais
ambiciosos: O dr. Judeu, longa-metragem que seria inspirado na vida do
dramaturgo português Antônio José da Silva. Este capítulo se dedica também à
passagem de Bertolt Brecht pela vida do brasileiro, quando, na Europa, antes de
deixar o Brasil definitivamente, Cavalcanti viveu a experiência de escrever a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
quatro mãos o roteiro de Herr Puntilla und sein Knetch Matti (Senhor Puntilla e
seu criado Matti), primeira e única adaptação para o cinema que foi plenamente
aprovada pelo escritor.
1.
O homem cinema e a invenção da realidade: uma fortuna
memorial e um surrealista no realismo poético
Sem experimentação o cinema documentário não teria sentido.
Sem experimentação, não haveria mais o cinema documentário 32
Alberto Cavalcanti
A afirmação de Alberto Cavalcanti citada em epígrafe faz parte da famosa
carta endereçada a jovens documentaristas dinamarqueses em 1948, mas a sua
essência permanece atual, alcançando o cinema em sua totalidade. A proposta
cinematográfica de Cavalcanti identificou desde as primeiras décadas da imagem
em movimento, o potencial que esta tinha de dialogar com as outras artes, e ao
mesmo tempo, ser dotada de um expressivo discurso social. Formando assim a
confluência plena entre o social, o técnico e o poético, a tríade que guiou o seu
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
exercício cinematográfico.
Para se entender a obra deste artista me aproximei do seu arsenal humano,
disponível ao nosso entendimento nas pistas que Cavalcanti deixou em seu
consistente inventário teórico, nas entrevistas que concedeu no Brasil e na Europa,
e, em última etapa, na documentação pessoal aqui citada que surgiu no percurso
de minha investigação.
Tive acesso a três versões das memórias de Cavalcanti, a primeira delas
com que trabalhei é assinada por Hermilo Borba Filho e foi publicada no livro
Alberto Cavalcanti, de Claudio Valentinetti e Lorenzo Pellizzari, que segundo os
autores, é a versão escrita em 1953, encontrada por eles arquivada na Biblioteca
Jenny K. Segall33.
A segunda versão das memórias de Cavalcanti que encontrei e incorporei à
minha pesquisa, consiste na cópia de um texto de 71 páginas datilografado em
32
CAVALCANTI, Alberto. Notas aos jovens documentaristas In PELLIZZARI, Lorenzo e
VALENTINETTI, Claudio, Alberto Cavalcanti, 1995. p.210.
33
PELLIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio, Alberto Cavalcanti, 1995. p.72.
32
inglês, escrito na primeira pessoa, que localizei na Cinemateca Brasileira, em
outubro de 201634.
Portanto, as memórias escritas por Hermilo Borba Filho que descobri no
acervo de Sérgio Caldieiri, consistem em uma terceira versão. Pelos indícios que
aqui relato, esta parece ser a versão mais recente, já que tem a data conclusória de
1972. Os três textos são bastante semelhantes, quase iguais, embora as duas
primeiras versões sejam incompletas em relação à terceira, e a versão em inglês
seja um testemunho na primeira pessoa, o que me leva a crer que foi escrita antes
do convite de Cavalcanti a Borba Filho, para que assumisse a tarefa de redigir o
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
seu inventário pessoal.
35
Figura 6: Capa Memórias Cavalcanti em inglês - Acervo Cinemateca Brasileira.
34
O título do documento é: One man and the cinema, em epígrafe na capa há um texto de Orlando,
de Virgina Woolf: “Memory is the seamstress, and a capricious one at that, Memory runs her
needle In and out, up and down, hither and thither. We know not what comes next, or what follows
after”. Algo como: "A memória é uma costureira, e ela é caprichosa disso, a memória corre sua
agulha dentro e fora, para cima e para baixo, aqui e para lá. Nós não sabemos o que vem depois,
ou o que se seguirá adiante ".
35
Foto da capa das memórias em inglês, esta versão não chega até a mudança de Cavalcanti para a
Inglaterrra, termina em sua etapa na França - Acervo Cinemateca de São Paulo.
33
Em suas memórias, Cavalcanti ilumina algumas lacunas sobre a sua
trajetória. É importante ressaltar a importância deste testemunho biográfico para a
investigação da visão de mundo de Cavalcanti, e consequentemente, para o
entendimento da formação do seu pensamento intelectual e cinematográfico.
Este texto memorial ilumina a questão que norteia esta tese à medida que
reforça a conexão do discurso social-poético na obra de Cavalcanti e evidencia a
sua relação seminal com o conceitos político-sociais presentes no Neorrealismo;
O testemunho de Cavalcanti sobre a procura de locações na França nos tempos da
Ealing, imediatamente após o final da Segunda-Guerra se aproxima do cenário
que os neorrealistas brilhantemente construíram na narrativa dos seus filmes
realizados a partir de 1945. O que Cavalcanti nos descreve é um quadro de
completa degradação coletiva e pessoal, ele próprio havia sido declarado como
morto pelos alemães, e soube de “sua morte” pela amiga Germaine Dullac, que
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
não acreditou: “É engraçado, mas eu tenho um pressentimento de que esta história
não é verdadeira, que Cavalcanti não morreu. Se ele houvesse morrido eu teria
sentido outra coisa”. O testemunho de Cavalcanti da França depois da ocupação
nazista constrói visualmente um cenário de estranha e surreal ruína:
Mulheres com vestidos fantásticos. Gente passando fome. Gente comendo
desbragadamente. Amigos famintos a quem ele convidava para jantar no hotel.
Amigos que lhe ofereciam jantares principescos, como há anos não se via na
Inglaterra. A impressão absoluta de que a França estava completamente abalada,
que não poderia haver uma salvação possível, pois os alemães tinham executado
as coisas mais diabólicas que se possa imaginar para subverter moralmente um
povo, explorando a fraqueza do caráter francês, tentando sistematicamente
arruinar todos os valores. Isso era Paris do pós-guerra36.
Sobre a Alemanha o cenário que Cavalcanti esboçou em suas memórias
era carregado de tintas trágicas, uma descrição que aproxima profundamente de
Alemanha ano zero (1948), de Roberto Rossellini. Um país destruído em todas as
suas instâncias, um território habitado pelo ódio, em ruínas física e moral,
tristemente devastado também em sua nova geração, feita de crianças
absolutamente imersas neste cenário de decomposição social e humana:
36
FILHO BORBA, Hermilo - Fragmento do texto datilografado das memórias de Cavalcanti –
sem numeração nas páginas.
34
Na Alemanha – do outro lado – teve uma impressão horrorosa de arrasamento
completo das cidades por onde passou, e a impressão também de que os alemães
reconstruiriam aquilo com o máximo de rapidez. Moralmente, toda a Alemanha
estava muito suja...E existia principalmente o espírito de delação, sempre sendo o
vizinho quem havia cooperado com o nazismo...Em contraste com as cidades e a
miséria completa que nelas predominava, uma penúria absoluta, o campo era mil
vezes mais rico do que o campo inglês...No campo em que trabalhava, por
exemplo, havia uma centena de meninos entre doze e quinze anos, os chamados
“tigres”, que se ocupavam da guerra civil depois da derrota pelo exército aliado,
praticando as coisas mais horrorosas, como por exemplo a colocação de arames
de um lado para o outro da estrada, à noite, a fim de decepar a cabeça dos
motociclistas37.
Estes dois trechos das memórias de Cavalcanti fazem parte do capítulo que
ele dedica à fase inglesa, capítulo que recebeu o título de “Maturidade”. A parte
dedicada à França de Rien que les heures foi chamada nas memórias de
“Juventude”. Este “amadurecimento” não obedece uma lógica temporal, já que a
transição entre os dois momentos se deu em pouco mais de uma década. O
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
espírito cavalcantiano parece ter amadurecido rapidamente com a renovação
técnica que viveu no documentário e as duras diretrizes que a realidade daquele
contexto histórico apresentou.
Sobre o texto das memórias que encontrei, em poder de Sergio Caldieri, é
curioso como sua capa diz muito sobre Cavalcanti e sobre como ele perseguiu a
ideia de que sua história fosse narrada em um texto memorial. A página de capa
do arquivo traz três possibilidades de título, traz também três datas que denunciam
o longo tempo que este resgate memorial auto-biográfico demandou. São elas: 29
de junho de 1953, 15 de abril de 1964 e finalmente, na pasta de papel que guarda
o arquivo temos a data de 17 de agosto de 1972, que sugere ser a data final do
texto. As possibilidades de título são: “História de um homem de cinema”,
“Biografia a vôo de pássaro” e “Filme e realidade de um diretor”, que se aproxima
bastante do conceito que esta tese elegeu, trazendo para a berlinda o imbricamento
de três camadas narrativas:
a que se dedica a falar do homem, da obra, e
finalmente, do organismo cinema como contexto histórico e artístico.
37
FILHO BORBA, Hermilo fragmento das memórias de Cavalcanti, texto datilografado sem
numeração de páginas – Acervo Sergio Caldieri.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
35
38
Figura 7: Capa memórias Cavalcanti acervo Sérgio Caldieri.
No detalhe da pasta que abriga o arquivo, como é possível ver na imagem
abaixo, Cavalcanti anotou “escrita há 19 anos” e terminada em “17.08.72.
Figura 8: Pasta que guarda memórias acervo Caldieri.
38
Foto da capa das memórias de Cavalcanti que fazem parte do acervo de Caldieri.
36
Na imagem abaixo temos o detalhe de um bilhete de Hermilo Borba Filho
pedindo a Cavalcanti que o consulte “se for usar qualquer coisa deste material, no
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
sentido de uma melhor forma”.
Figura 9: Bilhete colado em pasta de memórias acervo Caldieri.
O que me pareceu ao longo da pesquisa é que o “projeto memória”
acompanhou Cavalcanti até o fim de sua vida, o que me leva a crer que este texto
sobre o qual trabalhei, ainda passaria por contínuas camadas de revisões. Como as
que podemos ver na imagem abaixo, com correções à mão feitas por Cavalcanti,
no capítulo Suissa (sic) - Adolescência:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
37
Figura 10: Página de memórias Acervo S. Caldieri.
A última menção às suas memórias que encontrei em minha pesquisa foi
na citada entrevista que o cineasta deu a Sérgio Caldieri, para o jornal Tribuna da
Imprensa, em 17 de junho de 1980, quando ele diz que: “A memória nacional nem
sempre é justa... Vou continuar escrevendo as minhas memórias, que estão
paradas há dois anos... O Brasil não se interessa justamente pela minha humilde
pessoa”39.
Na primeira página do capítulo dedicado à experiência de Cavalcanti na
Vera Cruz, temos alguns pontos cruciais para o entendimento dos objetivos desta
tentativa incessante de memorializar a sua vida a qual Cavalcanti se dedicou,
aparentemente, ao longo de pelo menos três décadas. Em epígrafe Borba Filho
cita a célebre sentença de Hamlet de Shakespeare: “Something is rotten in the
State of Denmark”. No primeiro e no segundo parágrafo do texto, a palavra
“sacrifício” aparece sublinhada. A primeira tem um texto curioso: “Não faltava
quem dissesse que o cinema brasileiro somente aconteceria no dia em que Alberto
Cavalcanti abdicasse de sua explêndida vida de Paris, Roma, Londres e Capri,
39
CALDIERI, Sergio. Antonio José o judeu traz de volta o velho cineasta , Tribuna da Imprensa
de 17/06/1980.
38
para se sacrificar pelo filme indígena”. Em 1949 aconteceu o sacrifício40 Aqui
parece, se entender por filme indígena, o filme genuinamente brasileiro. Ainda no
segundo parágrafo, temos a correção à mão realizada por Cavalcanti inserindo a
palavra “tudo” quando o texto fala da precariedade da Vera Cruz:
...mas o que importa dizer é que muitos dos antigos endeusadores, voltaram-se
contra o homem que abandonou a vida feita na Europa, para tentar criar o cinema
em uma terra onde “tudo” faltava, e onde os processos ainda se baseavam em
falsas ideias de comodismo41.
E finalmente, no último capítulo da página, Hermilo Borba Filho explica a
proposta do livro, não como uma mera biografia, mas como uma tentativa de
redimensionar a importância de Cavalcanti na história do cinema:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Êste(sic) livro portanto, menos que uma biografia do que uma enorme entrevista,
um longo depoimento do homem que sabe fazer cinema e que foi injustiçado em
sua terra – tentou contar para aqueles que não conhecem a obra de Cavalcanti, o
que ela realmente vale no plano da arte cinematográfica. Este livro nasceu do
nosso primeiro contacto, quando me convidou para escrever os diálogos de O
canto do mar, realizado no Recife42.
Figura 11: Capitulo fase brasileira memórias acervo Caldieri.
Esta afirmação de Borba Filho confirma o fato de que ele teria assumido o
projeto de memórias em 1953, ano da realização de O canto do Mar. No original
40
Fragmento das memórias do acervo Sergio Caldieri, sem número na página.
Fragmento memórias acervo Sergio Caldieri.
42
Detalhe da página, texto citado está no último parágrafo da imagem.
41
39
que está no acervo de Caldieri ele usa esta data como ponto de partida para a sua
versão de 1972, dezenove anos depois, 1953 é também a data que Pellizzari e
Valentinetti estabelecem como sendo a do texto que eles publicaram em seu livro
Alberto Cavalcanti. O que me leva a concluir que tenho dois textos referenciais de
1953 (o em inglês e o publicado pelos italianos) e tenho uma terceira versão nos
originais de Caldieri, que parece ser a mais completa e recente, datada de 1972.
Sobre a aspiração de Hermilo Borba Filho, que considero bastante
desafiadora, compartilho de sua ambição e proponho nesta tese uma tentativa de
reposicionamento do papel de Cavalcanti na construção da linguagem do cinema,
avaliando os desdobramentos desta linguagem em relação aos conceitos
elaborados pelo cineasta em seus filmes e em sua bagagem teórica, tendo como
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
ponto de partida a construção e consolidação da perspectiva realista no cinema.
1.1.
A realidade como matéria prima
O conceito de “tratamento criativo da realidade”, proposto por John
Grierson em First principles of documentary,43 é fundamental para que se aborde
o cinema de Cavalcanti sob o prisma da intervenção ou “invenção” da realidade.
Entre outros pioneirismos, Cavalcanti levou dramaturgia ficcional para o escopo
ainda etéreo do documentário nas décadas de 1920 e 1930. Para Grierson, a
possbilidade de “intervir criativamente na realidade” era uma forma de ampliar os
limites da representação do real para além da mera reprodução:
John Grierson, quando criou aquela definição original de documentário como “o
tratamento criativo da realidade”, estava ansioso para dintinguir os
documentários dos cinejornais, dos filmes sobre viagens, dos filmes científicos
etc. Ele via o documentarista como um artista, como uma pessoa que mediava a
filmagem do mundo real para iluminar a condição humana a partir dos seus
próprios insights... A envidência fotográfica crua nunca foi o objetivo de
Grierson para o documentário44.
O documentário viabilizado por Grierson e realizado por Cavalcanti na
G.P.O General Post Office Film Unit, instituição que acolheu o brasileiro na
43
GRIERSON, John. First principles of documentary. In: BARSAM, Richard Meran. Nonfiction
film, theory and criticism. New York: A Dutton Papaerback (O trecho citado foi extraído de: John
Grierson, primeiros princípios do documentário. Campinas, Revista Cinemais, n.8, p.65-66,
nov./dez. de 1997).
44
WINSTON, Brian In O cinema do real MOURÃO Maria Dora e LABAKI Amir (org) São
Paulo (SP): Cosac Naif , 2005. p. 22.
40
Inglaterra, delimita uma das vertentes narrativas que marcariam o cinema como
um todo ao longo de sua trajetória. “Para Grierson, os documentários deveriam ser
muito mais; deveriam passar do plano da descrição do material natural para
arranjos, rearranjos e a remodulação criativa do mundo natural”. 45
A opinião de Cavalcanti sobre a potencialidade inexplorada do
documentário e a sua intrínseca relação com as realidades urbanas sob o viés
social, se aproximava do conceito que Grierson elaborou no texto aqui citado. No
artigo Documentário de propaganda, publicado por Cavalcanti na revista italiana
Bianco e Nero, em 1938 (pouco antes de deixar a G.P.O), o cineasta reflete sobre
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
o cinema documental e os aspectos ainda inexplorados do gênero:
As múltiplas possibilidades do documentário foram por muito tempo
ignoradas...O renascimento do documentário só começou quando Flaherty filmou
Nannok...Muitos de nós pensavam, porém, que, em breve, haveria outros
documentários a serem feitos, tão apaixonantes quanto as cerimônias oficiais
mostradas pelas Atualidades e a vida dos esquimós e taitianos (aqui ele
claramente se refere a Moana, de Flaherty). Sabíamos que há elementos cujo
valor dramático era extraordinário para a tela na vida e no trabalho das pessoas
que nos rodeavam. Foi assim que fiz Rien que les heures (1926)... Quase
simultaneamente, na URSS, Vertov fazia Caméra-oeil...E, pouco depois, em
Berlim, Ruttman com grandes meios a sua disposição lançou Berlin: die
Symphonie der Grosstadt. Com estes três filmes, pode-se dizer que o
documentário, assim como ele é hoje em dia, havia nascido!46
Neste mesmo artigo, Cavalcanti antevê a nova onda que tomaria o cinema
italiano com o Neorrealismo a partir de Roma cidade aberta (1945), e mudaria
profundamente o cinema realizado após a segunda-guerra. No final da década de
1930, antes do início da guerra, o governo fascista italiano liderado por Benito
Mussolini investia fortemente no cinema, visando o seu potencial de propaganda.
Vitório Mussolini, filho do ditador, esteve por trás da viabilização e da criação de
revistas, produtoras e estúdios, como o icônico Cinecittà. O duce apostava
sobretudo em épicos que revitalizavam os tempos de glória do Império Romano.
Cavalcanti no artigo citado abaixo, questiona se a Itália não faria melhor se
investisse em jovens talentos que realizassem curtas-metragens sobre temas mais
realistas:
45
Idem
CAVALCANTI, Alberto. Documentários de Propaganda In VALENTINETTI, Claudio e
PELLIZZARI, Lorenzo Alberto Cavalcanti, 1995 p.204.
46
41
No lugar de um ou cinco ou seis filmes históricos confiados a cada ano pelos
estúdios romanos a diretores experimentados e renomados, seria possível
produzir um bom punhado de filmes de curta-metragem que permitiria aos jovens
cineastas trabalharem e se afirmarem, trazendo assim sangue novo ao cinema
italiano. Essa produção seria um meio de fazer conhecer o povo italiano, sua vida,
seu trabalho e de fazer amá-lo...47
O cinema hollywoodiano era por excelência o modelo de inspiração para
os épicos financiados pelo Estado fascista. Em contraponto, o Centro
Sperimentale di cinematografia, que tentava promover um “cinema de resistência
estética”, escolheu o modelo soviético como referência, trazendo à tona debates
em torno de filmes realizados por diretores como Eisenstein e Pudóvkin. O CSC
via esta reflexão em torno da produção soviética como um “poderoso convite à
transformação de um discurso cultural numa prática política militante”48.
Mas, mesmo diante destas duas referências intensas e antagônicas, o
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
cinema que influenciaria a nova geração de cineastas italianos, a qual Cavalcanti
se refere na citação, seria justamente um modelo do qual o brasileiro fez parte: o
realismo poético francês, que a pesquisadora Mariarosaria Fabris chama de
realismo populista francês: “Será o realismo populista francês quem mais marcará
a cinematografia italiana daqueles anos, e esta incidência será maior nos autores
que tiveram um contato direto com diretores como Marcel Carné, Georges
Lacombe e Jean Renoir”49.
Fabris cita também as nuances estéticas dos entrelaçamentos desta relação,
em Toni (1934) de Jean Renoir (Luchino Visconti fizera no filme a assistência de
Renoir): “as filmagens são feitas em cenários reais, o equilíbrio plástico é
confiado ao contraste claro (nas tomadas externas) e escuro (nas tomadas
internas)”.
As rotas tangentes entre o realismo inaugurado na França, em filmes como
Rien que les heures (1926), e o Neorrealismo italiano se moldaram através de
interceções no tecido da história do cinema. Não ouso falar em influência, mas
47
Idem p. 209.
BRUNETTA, Piero Gian apud FABRIS Mariarosaria In O neo-realismo cinematográfico
italiano, São Paulo (SP): Edusp Fapesp, 1996. p. 62.
49
FABRIS Mariarosaria. O neo-realismo cinematográfico italiano, 1996 p. 62 – Em seguida a
autora enumera as relações entre os neorrealistas e os francêses da geração de Cavalcanti em
diversos filmes, relações estas de trabalho, como no caso de Visconti que foi assistente de Renoir,
e referências estéticas ao realismo francês.
48
42
sim em zonas de contato, interfaces poéticas que podem se dar por mecanismos
conscientes ou não. O cinema e a arte de forma geral têm se mostrado um
território fértil para estas convergências criativas que quebram fronteiras
temporais e espaciais e promovem entrelaçamentos, fundindo escolas, correntes
estéticas e movimentos artísticos.
O arsenal estético que Cavalcanti carregou dos tempos de avant-garde e
sua aproximação dos surrealistas depois que se afastou de Jean Renoir foi
fundamental para a definição de sua assinatura cinematográfica, tanto na ficção
como no documentário.
Esta aproximação com os surrealistas se deu depois que o cineasta
finalizou Le petit chaperon rouge (Chapeuzinho Vermelho) em 1928. O filme, que
foi produzido por Renoir e dirigido e montado por Cavalcanti, e tem a então
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
companheira de Renoir, Catherine Hessling no elenco, é uma adaptação livre e
apimentada da fábula de Charles Perrault, Renoir encarna de forma jocosa o papel
de um lobo sedutor. Segundo informações das memórias de Cavalcanti, a equipe
se instalou na residência de Renoir em Marlotte, perto de Fointainebleau, onde a
história se passava.
Chapeuzinho foi o primeiro filme sonoro de Cavalcanti, segundo suas
memórias; “o diálogo foi reduzido a algumas legendas faladas, a música (de
Maurice Jaubert) acompanhando a película do princípio ao fim... Assim, rodavase, primeiro, todo o filme, mudo”. 50
50
BORBA FILHO, Hermilo Uma Vida In PELIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio,
Alberto Cavalcanti p.130.
43
51
Figura 12: Fotograma de Catherine Hessling em O Chapeuzinho Vermelho (1929)
Depois de Chapeuzinho, que teve boa recepção da crítica, mas um
desempenho comercial ruim, Cavalcanti ficou um ano sem trabalho. Em suas
memórias ele narra o estado em que seu espírito se encontrou “Martelava a cabeça
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
para encontrar uma solução e no fim do dia ou no fim da noite, somente
encontrava palavras para se maldizer”.52
O afastamento de Renoir, e consequentemente de sua “turma” no avantgarde, lançou Cavalcanti a um estado errático de inércia e profunda insatisfação
profissional, o que acabou por estabelecer uma ponte em direção aos surrealistas:
Enquanto aguardava o que teria de ser, ligou-se ao grupo dos surrealistas, dos
quais muitas ideias foram traduzidas plasticamente em fitas posteriores;
aproximando-se ainda mais da gente sadia do meio cinematográfico da época:
Jacques Prevet (com quem havia trabalhado em Chapeuzinho), Georges Sadoul,
Salvador Dali e Luis Buñel53.
Esta etapa antecedeu a ida de Cavalcanti para a Paramount, que por sua
vez determinou a sua saída do cinema francês e consequente mudança para o
documentário inglês na GPO General Post Office. “Era a minha maneira de
continuar a História do cinema, história com H maiúsculo. E note que minha
situação era bastante excepcional, mas também bastante sólida”.54
51
Fonte http://www.cinetom.fr/archives/2013/05/13/27192890.html.
Ibidem p.131.
53
Ibidem (parêntesis meu).
54
CAVALCANTI, Alberto apud CANOSA Fabiano Conversa com Alberto Cavalcanti In
PELLIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio, Alberto Cavalcanti. 1995. p. 293.
52
44
A fase Paramount acabou por cavar uma trincheira entre Cavalcanti e o
grupo dos surrealistas, que o criticaram veementemente por “se entregar ao
cinema comercial”. As motivações que levaram Cavalcanti a aceitar o convite da
Paramount foram de fato puramente financeiras, segundo o próprio descreve em
suas memórias:
...um contrato muito vantajoso sob o ponto de vista financeiro, mas muito duro
quanto ao lado artístico. Da maneira como estavam as coisas, as contas
aparecendo, a preocupação de economizar assaltanto a sua vida privada; não tinha
direito à escolha55.
As reações dos surrealistas aos filmes que Cavalcanti fez na Paramount
não foram nada amistosas, ele contou em uma entrevista que os companheiros de
outrora reagiram violentamente à sua passagem pelo cinema estritamente
comercial:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Minha história com a Paramount terminou muito mal, pois quando fiz Dans une
île perdue, a partir de Joseph Conrad, exigi que se contratasse um roteirista de
primeira ordem, pois eu tinha uma adoração por Conrad e não queria um texto de
folhetim como nos outros filmes. Escolheu-se alguém que tinha um grande
prestígio: Georges Neveux. Depois deste filme, encenei uma de suas peças de
teatro Juliette ou la Clé des Songes, com Falconetti.... Fiz esta peça antes de
partir para a Inglaterra. Quando o filme estreou, os surrealistas ficaram furiosos
comigo. Houve duas reações violentas. Uma de Ilya Ehrenburg, que escreveu que
eu era um traidor a serviço dos americanos; outra, de um amigo meu surrealista,
que se opunha totalmente sobre o que eu e George Neveux fizemos como versões
comerciais de filmes americanos. Então, na estreia de Dans une Ile perdue, que
fiz a partir do romance Victory, de Conrad, eles quebraram toda a sala da
Paramount56.
Apesar do rompimento precoce e violento, a ligação de Cavalcanti com os
surrealistas ficaria impressa definitivamente na assinatura estética do diretor,
algumas décadas depois, em entrevistas, Cavalcanti constantemente se definiria
como um surrealista:
Eu era surrealista. Surrealista cinematográfico, bem entendido, pois jamais
pratiquei outras artes, nem pintura nem escultura. Insisto que meu surrealismo era
exclusivamente cinematográfico...De todos os cineastas “de vanguarda”, eu
provavelmente era o mais realista. Mas a vanguarda não tinha nada de escola,
como se chegou a acreditar com o tempo, não mais do que o estilo pré-concebido
que cultivava: ela representava a expressão de um grupo que se opunha ao cinema
55
BORBA FILHO, Hermilo Uma Vida In PELIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio,
Alberto Cavalcanti p 131.
56
CANOSA, Fabiano. Conversa com Cavalcanti (Nova York, 1972, Inédito) In PELLIZZARI,
Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio. Alberto Cavalcanti. 1995. p.291.
45
romanesco, ao cinema teatral. Tínhamos o desejo e a intenção de criar uma
linguagem puramente cinematográfica 57.
Na opinião de Siegfried Kracauer, um dos teóricos fundamentais para esta
pesquisa, o componente surrealista que Cavalcanti carregou, deste tempo em que
conviveu com o grupo na França, seria definidor de sua visão sobre si mesmo
como cineasta. Os aspectos que carregou desta escola se fundiram ao
documentário no General Post Office, fazendo nascer um cinema genuíno. Diria
Ian Aitken sobre este ponto de fusão entre o Surrealismo e o documentário
(naturalista) em Cavalcanti, que segundo Aitken, seria rotulada pelo brasileiro em
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
1936 (ano de Night Mail), com o termo Neorrealismo:
Outra influência que pode ter sido o determinante foi a tradição intelectual
naturalista que foi particularmente forte na cultura e no cinema francês.
Realizadores como Clair, Vigo e Cavalcanti estavam todos associados, de uma
forma ou de outra, ao movimento naturalista. Cavalcanti é particularmente
interessante a este respeito, porque ele estava associado ao movimento surrealista
e ao movimento do documentário britânico, e porque, em 1936, ele desenvolveu
uma abordagem no cinema que ele definiu como "neorrealista", que consistiu em
uma síntese do naturalismo documental e do surrealismo58.
A imersão no documentário na Inglaterra na fase G.P.O e depois a
experiência na ficção na Ealing, marcou a segunda primavera criativa de
Cavalcanti em sua trajetória no cinema. Foi neste tempo que ele teria cunhado o
termo Neorrealismo em meados da década de 1930 na Inglaterra, na tentativa de
dar mais poesia ao já consolidado termo “documentário”, que até então era usado
não como um substantivo, mas para qualificar um gênero, criado por Grierson em
sua resenha sobre Moana, de Robert Flaherty, em 192659.
57
CAVALCANTI Alberto apud MARTIALAY, I. F. “Eu era surrealista com tendência ao
realismo” em Film Ideal, 62, dezembro de 1960, Madri In PELLIZZARI Lorenzo e
VALENTINETTI Claudio, Alberto Cavalcanti. 1995. p. 279 e 280.
58
AITKEN, Ian. Distraction and redemption: Kracauer, surrealism and phenomenology, London:
Screen, 1998. p.139. Original em inglês: Original: Another influence may have been the French
determinist and naturalist intellectual tradition, which was particularly strong In French film
culture. Filmmakers such as Clair, Vigo and Cavalcanti were all associated, in one way or another,
with the naturalista movement. Cavalcanti is particularly InterestIng In this respect, because he
was associated with both the surrealist movement and the British documentary film movement,
and because, in 1936, he developed an approach to cinema which he defIned as 'neorealist', which
consisted of a synthesis of documentary naturalism and surrealism.
59
Não existem outras fontes que confirmam ou que desmentem esta paternidade do termo
Neorrealismo. No livro de Mariarosaria Fabris O neo-realismo italiano, ela disseca as origens,
fontes, prenúncios e antecipações do movimento na Itália, mas não faz nenhuma menção à
neologia do termo.
46
É interessante como Aitken destaca a importância de Cavalcanti na
construção de uma narrativa realista genuína, com imagens documentais
naturalistas atravessadas por rasgos poéticos surrealistas, que segundo o autor
foram trazidas pelo brasileiro do avant-garde francês, proporcionando ao cinema
uma experiência pioneira, em que a realidade se refletia na tela sob o prisma da
invenção.
Enquanto a estética naif dos primórdios do cinema se constituía de ações
desencadeadas por estímulos motores, a obra de Cavalcanti, desde a sua fase
francêsa, propôs outra perspectiva, onde os personagens se lançam em uma
realidade e um conjunto de ideias e conceitos artísticos determinam os rumos de
suas existências, reorganizando o tempo e manipulando as ferramentas estéticas
para agir sobre ele. Temos o exemplo mais claro desta premissa em Rien que les
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
heures (1926), obra chave do cinema de Cavalcanti.
Embora a aproximação e o cruzamento entre as diferentes linguagens
artísticas fosse quase uma premissa da avant-garde, foi pioneira a forma como
Cavalcanti se apropriou de outras linguagens em seus filmes.
O diretor manteve esta característica no documentário inglês, território
onde até então a apropriação de outras artes pelo cinema não era comum. Assim,
Cavalcanti criou um objeto fílmico inovador, em que fotografia, música, artes
plásticas e poesia se embricavam na narrativa.
Para Gilles Deleuze, o cinema moderno se inaugura com o Neorrealismo
italiano, sobretudo pela forma que a narrativa e os personagens se relacionavam
com o espaço e o tempo60. Mas ao analisar filmes como Rien que les heures,
podemos perceber que esta a quebra da narrativa espaço-temporal já era presente
na obra de Cavalcanti desde a fase francesa. No longa-metragem toda a narrativa é
entrecortada pela imagem de um relógio, os personagens caminham à deriva, na
medida em que o nada que marca as suas vidas miseráveis é o catalisador dos seus
destinos. Em uma estrutura de filme coral, que viria a ser adotada plenamente no
cinema moderno e na produção contemporânea, personagens seguem suas
trajetórias particulares até se encontrarem no ponto tangencial da trama. Uma
60
DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 2010.
47
cartela aos 26’ do filme deixa isso explícito quando diz “indiferente ao tempo que
passa”, para mais tarde concluir: “nós podemos fixar um ponto no espaço e parar
um momento no tempo”..., “mas o espaço e o tempo, ambos escapam à nossa
posse”.
Em vários momentos da narrativa a tela exibe um relógio, que marca
primeiro meia-noite, passando rapidamente através de uma fusão para meio-dia, a
primeira inserção desta imagem é aos 4’37’’ do filme, e imediatamente antes do
relógio, lemos em uma cartela: “Somente uma sucessão de imagens pode nos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
restituir a vida”61.
62
Figura 13: Fotograma de Rien que les heures.
A questão do tempo é a base de Rien que les heures, como o próprio título
já diz, o enredo se baseia no conceito da banalidade do tempo em uma metrópole,
o esgaçar dos acontecimentos entre o nascer e o pôr do sol, e o mais precioso,
como dentro deste discurso sobre o prosaico o cinema é capaz de nos restituir
poesia, ressignificando o miserável e o belo, retirando-os dos seus clichês e
levantando o véu de falso naturalismo que encobre os abismos sociais de uma
grande cidade.
Além do deslocamento temporal, a livre movimentação espacial também é
uma questão central em Rien que les heures, temos um mosaico de movimento
dos personagens em diferentes lugares de Paris, o filme aponta também para uma
61
62
Rien que les heures – direção Alberto Cavalcanti aos 4’30’’.
Fonte: http://www.doctorojiplatico.com/2012/02/rien-que-les-heures-1926-alberto.html.
48
espacialidade mais ampla, quando em alguns momentos mostra signos como
mapas, globos terrestres e cartões postais.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
63
Figura 14: Fotograma Rien que les heures.
Ao dialogar com o conceito de deslocamento do espaço-tempo, Rien que
les heures vai ao encontro da fala de Deleuze sobre os cânones do cinema
moderno, para o qual ele elege como marco inicial, o Neorrealismo:
É impossível se contentar em dizer que o cinema moderno rompe com a
narração. Isto é apenas uma consequência, o princípio é outro... A ligação
sensória motora foi rompida... Creio que é essa a grande invenção do
Neorrealismo: já não se acredita tanto na possibilidade de agir sobre as situações,
ou de reagir às situações, e no entanto, não se está de modo algum passivo, captase ou revela-se algo intolerável, insuportável, mesmo na vida mais cotidiana.64
Rien que les heures antecipa também a definição que Zavattini dá ao
Neorrealismo como sendo a “arte do encontro” – encontros fragmentários,
efêmeros, interrompidos, fracassados”65. O que conduz a narrativa do filme de
Cavalcanti são justamente os encontros fortuitos dos personagens que seguem à
deriva pelas ruas de Paris, e é este movimento que convida o espectador a “visar”
o real, para citar outro conceito construído por Bazin sobre o Neorrealismo.66
63
Fonte imagem: http://www.doctorojiplatico.com/2012/02/rien-que-les-heures-1926-alberto.html
DELEUZE, Gilles: Conversações, São Paulo: Editora 34, 2010 p.70 -71.
65
DELEUZE, Gilles: A imagem tempo, São Paulo: Brasiliense p. 10.
66
BAZIN, André: O que é o cinema? São Paulo: Brasiliense, 1990.
64
49
Para Deleuze a linguagem do cinema se articula sobre duas bases:
imagem-movimento e a imagem-tempo: “os grandes autores de cinema nos
parecem confrontáveis não apenas com pintores, arquitetos, músicos, mas também
com pensadores. Eles pensam com imagens-movimento e com imagens-tempos,
em vez de conceitos”67. Segundo o autor, o cinema merecia ocupar seu lugar ao
lado de outras linguagens consagradas como as artes visuais e a literatura, é
importante lembrar que o cinema contou com um árduo e longo trabalho de
teóricos da linguagem para legitimar o estatus de obra de arte.
As ferramentas técnicas da linguagem cinematográfica se aplicavam com
perfeição aos conceitos de movimento, tempo e espaço desenvolvidos por
Bergson. Ao contrário do teatro, o cinema permitia tecnicamente o livre
deslocamento narrativo no tempo e no espaço, manipulando assim a noção de
temporalidade e de deslocamento espacial. Este movimento, que a princípio se
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
deu “naturalmente” através das experiências pioneiras de realizadores fundadores
da linguagem cinematográfica, como Griffith, mais tarde revelou experimentações
mais ousadas, permitindo que se rompesse profundamente com a narrativa linear
do cinema clássico.
Deleuze estabeleceu uma “equação” fundamental para se entender esta
“liberdade para se manipular” o conceito de tempo e de espaço no cinema
O espaço percorrido é passado, o movimento é presente, é o ato de percorrer. O
espaço percorrido é divisível, e até então, infinitamente divisível, enquanto o
movimento é indivisível, ou não se divide sem mudar de natureza a cada divisão.
O que já supõe uma idéia mais complexa: os espaços percorridos pertencem todos
a um único e mesmo espaço homogêneo, enquanto os movimentos são
heterogêneos, irredutíveis entre si68.
A montagem surgiu como suporte técnico destas premissas conceituais,
ainda nas primeiras décadas do cinema, se consolidando como uma ferramenta
essencial para a plena experimentação da linguagem. Em sua análise das
definições de “imagem-tempo-movimento” de Bergson sobre o cinema, Deleuze
nos lembra que o ato de “montar” os acontecimentos com livres deslocamentos
67
68
DELEUZE Gilles: A imagem movimento. São Paulo, 1985 Editora Brasiliense. p.9
Ibidem.
50
temporais e espaciais vem do pensamento, do nosso “cinematógrafo interior”.
“Como se sempre tivéssemos feito cinema sem saber? ” 69, questiona ele.
Para Deleuze, assim como a vida, o cinema “aprendeu” a romper com o
naturalismo, com a representação estritamente realista da matéria do real, para
reinventar a sua particular e inventiva representação:
A essência de uma coisa nunca aparece no princípio, mas no meio, no curso do
seu desenvolvimento, quando suas forças se consolidaram... A evolução do
cinema, a conquista de sua própria essência ou novidade se fará pela montagem,
pela câmera móvel e pela emancipação da filmagem, que se separa da projeção. O
plano deixará então de ser uma categoria espacial, para tornar-se temporal; e o
corte será um corte móvel e não mais imóvel70.
Esta linha evolutiva na estética da narrativa da imagem em movimento
concebida por Delleuze teria no Neorrealismo um objeto perfeito para a aplicação
e estudo destas teorias. As teorias de Deleuze iriam encontrar eco também nas
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
teorias de Bazin sobre o Neorrealismo: 71
O neo-realismo (sic) inventava, pois, um novo tipo de imagem, que Bazin
propunha chamar imagem-fato. Esta tese era infinitamente mais rica da que ele
contestava, mostrando que o neo-realismo não se limitava aos conteúdos de suas
primeiras manifestações. Porém as duas teses tinham em comum o fato de colocar
o problema ao nível da realidade: o neo-realismo produzia “um mais” de
realidade, formal ou material72.
É importante destacar o verbo “inventar” desta citação, para Deleuze e
para Bazin o “tratamento criativo” da realidade esteve presente de forma
contundente no Neorrealismo. Mas antes do Neorrealismo, a dissolução das
fronteiras entre o ficcional e o real já estava presente na obra de Cavalcanti.
Segundo Mariarosaria Fabris:
Antonioni e sobretudo Rossellini irão se despojar de tudo o que é secundário na
concepção de um filme, em busca de uma linguagem cinematográfica capaz de
reinventar seus códigos a cada obra. Neste momento, quem nos interessa focalizar
mais de perto é Rossellini, com sua “invenção da verdade”, com sua “passagem
do imaginário para o real”, com sua ficção que nascia da observação das coisas73.
69
Ibidem, p. 13.
Ibidem, p. 8.
71
DELEUZE, Gilles. A Imagem tempo, Editora Brasiliense – 1985 São Paulo – SP.
72
Ibidem, p. 9.
73
FABRIS, Mariarosaria. O neo-realismo cinematográfico italiano, 1996. P. 78 (aspas do
Original).
70
51
Diferentemente dos filmes de Robert Flaherty, em especial Nanook do
norte (1922) e O homem de Aran (1934), que tinham como foco realidades
exóticas em mundos distantes, Cavalcanti e Grierson propuseram representar o
homem comum em sua rotina de trabalho na urbes, em realidades recriadas a
partir de elementos poéticos do cotidiano e conduzidas dramaturgicamente,
antecipando o que viria a ser o epicentro da narrativa neorrealista. Era a aplicação
bem-sucedida do que Cavalcanti viria a definir como vértices de seu cinema: Não
se afaste do princípio segundo o qual existem três elementos fundamentais: O
social, o poético e o técnico74.
Esta foi também uma matriz primordial para o cinema neorrealista italiano:
“Nós acreditamos, hoje mais do que nunca, que a palavra documentário tenha de
ser despojada de seu comum atributo científico para (alcançar) um significado
poético mais alto, onde os termos de conteúdo sejam homem e natureza”75, diria o
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
cineasta Giuseppe de Santis em janeiro de 1943, à revista Cinema, retomando a
relação entre homem e natureza através do documental. Relação que foi também
cara ao cinema inglês na década de 1930, como podemos observar em filmes
como North Sea (1938) de Harry Watt, mixado, produzido e roteirizado por
Cavalcanti e O Homem de Aran (1934) de Robert Flaherty, entre outros.
A questão do discurso social para Cavalcanti está bastante arraigada ao
compromisso com a realidade, para ele e outros cineastas de sua geração o poético
viria como uma espécie de mola propulsora criativa, e o experimental consolidava
a tentativa de tirar o cinema documental da função de cinejornal, de mero espelho
da realidade, e lançá-lo ao patamar de obra de arte. Cavalcanti diria que:
A técnica no filme tem sido desenvolvida principalmente em busca da
representação a realidade. Porque o material do cineasta não é maquiagem e
cenário, mas a fotografia e o registro sonoro, o melhor trabalho no cinema foi
feito por aqueles que se lembraram do que os primeiros inventores nunca
duvidaram: que a essência da cinematografia está em seu poder de representar a
realidade 76·.
74
CAVALCANTI, Alberto Carta aos jovens documentaristas (1948) - Filme e Realidade, Rio de
Janeiro (RJ): Embrafilme,1976 p.81.
75
SANTIS de Giuseppe apud FABRIS Mariarosaria O neo-realismo cinematográfico italiano p.
74
76
CAVALCANTI Alberto apud GRIFFITH Richard Film and reality: The background, p. 203
(livre tradução) Original em Inglês: The technique in the film has been developed mainly in search
52
A proposta de apreensão da realidade em Cavalcanti atravessa
a
representação espectral, para levar à tela um trabalho que aglutinava ficção e
documentário em sua construção autoral do real, desde o momento em que levou
o cinema para as ruas e mostrou uma Paris marginal e contraditória em Rien que
les heures (1926).
Este, que é o primeiro longa-metragem do diretor, foi filmado nas ruas de
Montmatre, bairro boêmio parisiense, ao custo de 25 mil francos velhos77 - para se
ter um parâmetro de comparação O General (1926), de Buster Keaton, filmado no
mesmo ano, teve um orçamento de 750 mil dólares.78 - o orçamento de Cavalcanti
em dólares na cotação da época girava em torno de 833 US (considerando os
números de meados de 1926 de 30 francos para 1 dólar)79, atualizado para valores
atuais, Cavalcanti teria hoje um orçamento de aproximadamente 10.000 US.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
O filme só foi possível pelo empenho da equipe que se deslocava pelas
locações de metrô, segundo Cavalcanti conta em suas memórias e nas entrevistas
que concederia e invariavelmente falaria sobre o seu filme mais conhecido. O
resultado é um longa-metragem seminal, que antecipou ao mundo o que seria a
relação entre o cinema e o cotidiano urbano.
Rien que les heures (1926) é um marco inicial de uma série de produções
que seriam conhecidas como sinfonias urbanas, que revelou filmes como Berlim
sinfonia de uma cidade (Die Sinfonie der Großstadt - 1927), de Walter Ruttman e
Um homem com uma câmera (Chelovek s Kino-apparatom - 1929) de Dziga
Vertov. Consagrados pela crítica e pelos teóricos, estes filmes são referência em
quase todas as publicações sobre o cinema de vanguarda na década de 1920.
Assim seriam definidos estes filmes pela perspectiva das memórias de Cavalcanti:
of reality representation. Because the filmmaker's material is not makeup and scenery, but
photography and sound recordIng, the best film work was done by those who remembered what
the first inventors never doubted: that the essence of cinematography is in their power to represent
the reality.
77
Há divergência sobre o real orçamento de Rien que les heures, há momentos em que Cavalcanti
fala em 35 mil francos. Considerei a quantia de 25 mil, porque é a mais recorrente nas entrevistas
do diretor.
78
Fonte IMDB http://www.imdb.com/title/tt0017925/.
79
Fonte: Blancheton Betrand, French Exchange rate management in the mid 1920’s lessons drawn
from news evidences - Department of Economic History Bordeaux IV-Montesquieu University,
http://repec.org/mmfc03/Blancheton.pdf.
53
Essas três produções possuiam o mesmo tema: a vida de uma cidade. Iniciava-se
assim no cinema uma nova forma de espetáculo onde os atores invertiam o seu
papel de representação para se transformarem em fundo, a cidade, por sua vez,
transformando-se em um personagem colossal e importantíssimo, num organismo
vivo, capaz de abrigar ódio, amor, ciúme, luta80.
Rien que les heures (1926) dialoga também com outro filme essencial: A
propósito de Nice (1930) curta-metragem documental de Jean Vigo. O filme de
Vigo, assim como Rien que les heures, tem uma preocupação primordial com o
elemento humano que habitava as cidades envolvidas em um esgarçado tecido
social.
Rodado quatro anos depois do filme de Cavalcanti, o filme de Vigo, assim
como Rien que les heures, tem claras inspirações poéticas e sociais, enquanto
Cavalcanti mira a sua câmera na porção invisível de Paris, habitada por
personagens marginalizados, Vigo mostra na tela a decadência melancólica da
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
elite francesa, imersa em um vazio existencial que os personagens tentam
preencher com as diversões fugazes do paraíso burguês da Côte d’Azur.
Assim como Cavalcanti, Vigo se debruça sobre a geografia humana, e os
planos gerais da beleza estonteante do lugar dão espaço aos aspectos invisíveis de
uma paisagem aparentemente perfeita, que em suas margens esconde crianças
pobres, sarjetas, lixo e decadência, fotografados por Boris Kaufman, irmão mais
novo de Dziga Vertov.
No texto Jean Vigo’s A propos de Nice, Kaufman discorre sobre a
proposta conceitual do filme:
Nós rejeitamos qualquer coisa que fosse pitoresca sem significância, quaisquer
contrastes fáceis. A história tem de ser entendida sem legendas. Fizemos o filme
contando com a evocação de idéias e significados. Uma proposta puramente
visual, é por isso que, na montagem, fomos capazes de justapor o Promenade des
Anglais ao Nice Cemitery, onde figuras de mármore (estilo barroco) tinham as
mesmas características dos ridículos dos seres humanos no calçadão81.
80
FILHO, Hermilo Borba – trecho memórias acervo Sérgio Caldieri.
KAUFMAN, Boris Jean. Vigo’s A propos de Nice In JACOBS Lewis The The Documentary
Tradition. NY: W.W Norton & Company. 1979. p. 78,79 traduzido por mim. Original em inglês:
We reject anything that is picturesque without significance, any easy contrasts. The story has to be
understood without subtitles. We made the film relying on the evocation of ideas and meanings. A
purely visual proposal, that is why, In the assembly, we were able to juxtapose the Promenade des
81
54
No mesmo texto Kaufman reproduz parte do discurso que Vigo fez na
abertura de uma mostra de filmes dedicada aos amantes da avant-garde, em 14 de
junho de 1930 no Vieux Colombier. A introdução proposta por Vigo se chamava
Vers un cinema social, que ele dedicou a Luis Buñuel:
Eu gostaria de falar de uma forma mais definida sobre cinema social, algo de que
estou mais próximo: o documentário social - ou, mais precisamente, ponto de
vista documental... Eu não sei se o resultado será uma obra de arte, mas estou
certo de que será cinema. Cinema, no sentido de que nenhuma outra arte ou
ciência, pode substituir... Colocando os pontos nos is: o documentário social é
distinto do curta-metragem clássico e do noticiário semanal, nele o seu criador irá
estabelecer o seu próprio ponto de vista82.
É interessante nesta citação, como Vigo, assim como Cavalcanti, defende
um documentário autoral e de vocação social. Os dois cineastas foram
contemporâneos e amigos durante a avant-garde em Paris, uma convivência curta,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
o cineasta francês morreu pobre e tuberculoso, em 1934, aos 29 anos.
Se trata também de dois autores que permitiram que traços da vida
ecoassem em seus filmes, a proposta de um cinema baseado em aspirações
poéticas e sociais que ambos alimentavam, permaneceu em Cavalcanti. Alguns
anos depois, em um dos seus textos, Cavalcanti narrou de forma comovente o seu
olhar sobre Vigo, em
O drama de Jean Vigo, publicado no livro Filme e
Realidade:
Jean Vigo nasceu no país Basco. Seu avô era um personagem oficial na pequena
República de Andorra e seu pai foi o famoso anarquista Almereyda, uma das
figuras de antes da guerra de 1914, que se tornou legendária. Vigo herdou a força
e a energia destes dois homens. Era do tipo vigoroso e alegre, dos montanheses
dos Pirineus. Possuía também o senso de proporções, e, como todos os que
nascem em pequenos países isolados, a noção exata do contraste entre o grande e
o pequeno. Herdou o charme pessoal do seu pai que, segundo os que o
conheceram, era um dos homens mais encantadores do seu tempo. Como ele,
Vigo tinha muitos amigos. Se bem que muito reservado sobre o seu passado, um
dia confiou a um desses que tinha dado os seus primeiros passos na cela onde
estava aprisionado seu pai, essa mesma prisão onde este foi “suicidado” ... Depois
Anglais to the Nice Cemitery, where marble figures (Baroque style) had the same characteristics of
ridiculous humans on the boardwalk.
82
VIGO Jean apud KAUFMAN Boris A propos de Nice In JACOBS Lewis: The The
Documentary Traditionp. 77,78 traduzido por mim Original em Inglês: I would like to speak in a
more defInite way about social cinema, something that I am closer to: the social documentary - or,
more precisely, documentary poInt of view ... I do not know if the result will be a work of art, but I
am certaIn that it will be cinema. Cinema, In the sense that no other art or science, can replace ...
Putting the points in the is: the social documentary is distInguished from the classic short film and
the weekly news, in it its creator will establish his own point of view
55
da sua infância, da prisão de seu pai, Jean Vigo cresceu e se tornou um homem
como Chaplin, revoltado contra as injustiças do nosso tempo...ele personifica o
diretor progressista na sua luta contra a estupidez e a hipocrisia do cinema
comercial83.
A identificação de Cavalcanti com o cinema de Vigo pelo viés social criou
uma visível relação entre seus filmes. É interessante perceber que Rien que les
heures, como A propósito de Nice, considerados pela história do cinema como
filmes pertencentes ao realismo poético francês, tem intercessões mais profundas
entre si do que o filme de Cavalcanti com as sinfonias de Ruttman e Vertov,
embora a relação com estes dois últimos seja bem mais recorrente no arsenal
teórico da história do cinema.
Entre de Rien que les heures e o retrato de Berlim criado por Ruttmann
havia uma diferença bastante determinante, em termos gerais, enquanto
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Cavalcanti se apoiou em um registro humano de Paris, através de seus
personagens marginais, Ruttmann se dedicou, sobretudo, à geografia da cidade e a
uma coletividade que invisibiliza os aspectos humanos da matéria viva de Berlim,
com seus habitantes e suas idiossincrasias.
As pessoas em Rien que les heures são de extrema importância, a cidade é o
povo; as pessoas (diferentes tipos e classes) são o que compõem o tecido da
cidade. Na verdade, se poderia ir longe e dizer que Rien que les heures está
preocupado apenas com as pessoas e com mais nada ... E aqui chegamos à
diferença crucial entre Rien que les heures e Berlin, em termos das atitudes de
seus respectivos realizadores para com o povo da cidade. De um modo geral,
Cavalcanti é claramente preocupado com as pessoas como indivíduos, enquanto
Ruttmann está mais preocupado com as pessoas como uma massa. As pessoas em
Berlin são seres anônimos; nós não sabemos quem ou o que eles são ... Em Rien
que les heures as pessoas são indivíduos particulares que representam tipos
específicos de pessoas84.
O olhar de Ruttmann é essencialmente formal, enquanto Cavalcanti
estabelece um viés social e humano sobre a cidade que permeia todo o filme,
83
CAVALCANTI, Alberto. Filme e realidade p. 204 e 206.
CHAPMAN, Jay. Two aspects of the city: Cavalcanti and Ruttmann In JACOBS Lewis The The
Documentary Traditionp. 37 – traduzido por mim Original em inglês: The people in Rien que les
heures are of extreme importance, the city is the people; the people (different types and classes)
are what make up the fabric of the city. In fact, one could go a long way and say that Rien les
heures is concerned only with people and with nothIng else ... And here we come to the crucial
difference between Rien que les heures and Berlin, in terms of the attitudes of their respective
directors to with the people of the city. Overall, Cavalcanti is clearly concerned about people as
individuals, while Ruttmann is more concerned about people as a mass. The people In BerlIn are
anonymous; we do not know who or what they are ... in Rien les heures people are individuals
who represent specific types of people.
84
56
Ruttmann constrói um retrato plano, horizontal, ancorado na massa, na
coletividade, na cidade como uma espécie de colmeia sem nuances humanas. Em
contraponto a esta horizontalidade, Cavalcanti aprofunda verticalizando o olhar
sobre as individualidades, e o tecido humano e diverso que atravessa e determina
a geografia urbana.
A sensação do indivíduo em oposição à massa é evocada por Cavalcanti através
do uso de situações individuais em oposição a situações em massa. Uma
comparação interessante entre Rien que les heures e Berlin também pode ser feita
com relação à consciência social dos cineastas. Cavalcanti se concentra nas
classes mais pobres e nas periferias das cidades, e faz uso da técnica ao mostrar
suas condições de vida justapostas ao cotidiano das classes mais ricas 85.
Em relação à forma, os dois filmes têm também propostas diferentes de
narrativa, enquanto Berlim sinfonia de uma cidade prioriza o ritmo, no sentido de
criar uma sinfonia, o filme de Cavalcanti aposta na montagem de significados,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
criando um discurso semiótico calcado na construção de uma narrativa dialética
tão em voga a partir do cinema russo.
Rien que les heures segue a tradição do cinema francês da avant-garde da década
de 1920, é executado com um estilo relativamente lento no ritmo de edição,
pontuado ocasionalmente pelo brilho de um virtuosismo visual.... Caracterizado
por um jogo com a câmera e efeitos visuais variados.... Para Ruttmann, a essência
da cidade é o seu ritmo, e nada mais. Isto é sentido mais profundamente pelo
espectador através do ritmo primorosamente controlado na edição, bem como no
fluxo e refluxo nos ritmos visuais dos planos e sequências individuais, o que é
milagrosamente sustentado na maior parte do filme86.
Em síntese, Rien que les heures destoa de Berlim sinfonia de uma cidade e
de Um homem e sua câmera, sobretudo, por seu vigoroso discurso social.
Enquanto os filmes de Ruttmann e Vertov primam pelo apuro formal e pelo ritmo,
o filme de Cavalcanti é uma das obras pioneiras do realismo poético que construiu
os seus alicerces formais sobre um latente discurso social, em que a forma é a
priori um suporte para a construção de uma verve humanista dotada de discurso
85
CHAPMAN Jay. Two aspects of the city: Cavalcanti and Ruttmann In JACOBS Lewis The
Thirties: p. 41 – traduzido por mim Original em inglês: The sensation of the individual as opposed
to the mass is evoked by Cavalcanti through the use of individual situations as opposed to mass
situations. An interesting comparison between Rien que les heures and Berlin can also be made in
relation to the social conscience of the filmmakers. Cavalcanti concentrates on the poorer classes
and the outskirts of the cities, and makes use of the technique by showIng their living conditions
juxtaposed to the daily life of the richer classes
86
Ibidem pgs. 41, 42.
57
ideológico, em uma crítica contundente aos abismos sociais que apartam as
grandes cidades.
87
Figura 15: Fotograma de Rien que les heures.
Figura 16: Fotog. Berlim Sinfonia de uma Cidade.
Este discurso social adotado por Cavalcanti antecipa de alguma forma as
bases conceituais do cinema neorrealista, que após a Segunda-Guerra, em filmes
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
como a trilogia de Rossellini, elegeriam os cenários de ruínas das cidades
devastadas como pano de fundo para ilustrar a degradação humana provocada pela
guerra, um cinema em que, assim como em Rien que les Heures, a temática seria
tão arrebatadora quanto a forma.
Em suas memórias, Cavalcanti conta que Ruttmann e Karl Mayer,
responsável pelo argumento de Berlim, estiveram em Paris na época do
lançamento de Rien que les heures:
Especialmente para assistir ao filme, vieram a Paris Ruttmann e Karl Mayer e foi
nesta ocasião que Cavalcanti os conheceu. Ruttmann pertencia ao Partido
Comunista Alemão, e por ocasião da tomada do poder pelos nazistas, refugiou-se
em Paris... Ruttmann degradou-se completamente com a sua volta a Alemanha,
implorando o perdão dos nazistas e sendo usado como instrumento contra os seus
companheiros de antigamente. Foi morto no front, na Rússia... Tanto Ruttmann
quanto Karl Mayer entusiasmaram-se enormemente pelo filme de Cavalcanti,
impressionaram-se de tal maneira com “os achados” do diretor brasileiro, que
declararam que voltariam ao seu país para filmar boa parte de Berlim sinfonia de
uma cidade 88.
87
Fonte das figuras 14 https://www.thecInetourist.net/lescalographe/unidentified-probablymnilmontant-rien-que-les-heures-alberto-cavalcanti-1926-du-rififi-chez-les-hommes-jules-dassIn1955 15: http://cinemascope.com.br/colunas/berlin-sInfonia-de-uma-metropole/
88
FILHO, Hermilo Borba Uma Vida In PELLIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio,
Alberto Cavalcanti, 1995. p. 115.
58
Mesmo que estes “retoques” não tenham acontecido, é interessante
perceber a real ligação entre os filmes na época em que foram realizados e
lançados, uma conexão que vai além das conexões teóricas que viriam com a
posteridade. Ruttman escolheria um posicionamento político que comprometeria a
sua carreira, se juntando ao nazismo e se tornando um dos roteiristas de O triunfo
da vontade (1935), de Leni Riefenstahl
Na análise que Ian Aitken faz de Kracauer no texto Distraction and
Redemption – Kracauer, Surrealism and Phenomenology, ele diz que embora
Kracauer ressaltasse o estilo impressionista com que Cavalcanti filmava e até
criticasse o aspecto de mera representatividade artística da realidade na
vanguarda, ele via em Rien que les heures aspectos verdadeiramente documentais,
uma vez que Cavalcanti revelava aspectos ocultos dos ambientes urbanos 89.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
No parágrafo seguinte, Aitken acentua a atração que Kracauer sentia pelos
filmes que contemplavam o “fluxo da vida”, conceito fundamental, na opinião do
teórico, para a força de obras que marcaram o Neorrealismo, entre elas, ele cita La
Strada, de Fellini (1954), Paisá, de Rossellini (1946) e Ladrões de Bicicleta, de
Vittório de Sica (1948)90. O mesmo fluxo da vida que determina o conceito
central de Rien que les heures.
O sucesso de Rien que les heures trouxe imenso prestígio para Cavalcanti.
Ainda sob o impacto do burburinho em torno do seu primeiro longa-metragem
quando lançado comercialmente, Cavalcanti, em 1925, em sua aproximação do
grupo dos surrealistas participaria da criação da Néo-Films, produtora que tinha
maioria judaica em sua equipe. Com a Neo-Films Cavalcanti realizaria seus
primeiros longas-metragens, entre eles En rade (1927), que segundo as suas
memórias:
O filme revelou-se como um modelo de produção perfeita, não havendo
interrupções nos trabalhos de filmagem, sem os inevitáveis aborrecimentos,
rodando-se os exteriores em Marselha e os interiores nos estúdios de
89
AITKEN, Ian: Distraction and Redemption – Kracauer, Surrealism and Phenomenology,
London: Screen, 1998 p.129.
90
Ibidem, p. 130.
59
Billancourt...En Rade é um filme enxuto, onde (sic) Cavalcanti não faz concessão
de espécie alguma91.
Cavalcanti iria fazer mais três filmes com a Néo-Films, o média-metragem
Yvette (1928), o curta-metragem La P’tite Lilie (1927) e o longa-metragem Tire
au flanc (1928), dirigido por Jean Renoir, com quem Cavalcanti escreveu o
roteiro.
A questão das não concessões comerciais e da aposta na autoralidade, que
marcou a realização de En rade, foi o elemento catalizador para que Cavalcanti
aceitasse o convite para se integrar ao time de John Grierson. Quando se mudou
para a Inglaterra, Cavalcanti tinha 37 anos e uma carreira já consolidada no meio
cinematográfico, em entrevista à pesquisadora inglesa Elizabeth Sussex, ele faria
um relato ácido sobre a sua temporada no cinema francês, em um balanço em que
ele relaciona a sua geração, da avant-garde, com a que o sucedeu no cinema
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
francês, a da Nouvelle Vague:
Nós odiávamos uns aos outros.... Não nos suportávamos. Mas uma coisa – e só
ela- era comum a todos: discordávamos da arte de nossos mestres, a arte daqueles
para os quais trabalhávamos. Pensava que L’Herbier (Marcelo L’Herbier,
cineasta com quem Cavalcanti fez sua estreia no cinema) não tratava o cinema
para fazê-lo falar a sua própria linguagem...A pesquisa de uma linguagem
cinematográfica não era seu propósito. E era isso que tínhamos em comum:
pensávamos que lá havia uma linguagem, que era preciso procurá-la e encontrála... Não sei se o ódio que tínhamos uns pelos outros não era uma coisa boa. Creio
que sim. E possuíamos um trunfo decisivo. Éramos ligados por laços de amizade
a todos os grandes artistas da época em Paris, todos os pintores, escultores,
escritores. Eles gostavam de nós e nos sustentavam. Pense no que chamamos
Nouvelle Vague, é totalmente diferente... Eles não se detestam, eles se amam. Se
estimam. Se ajudam. Em comparação a nós, a geração precedente, isso deveria
ser uma vantagem, mas não é, pois não conheciam, nenhum pintor, nenhum
artista ativo em outras áreas. O cinema, as revistas, cinematográficas, etc., são sua
única preocupação. É a verdadeira diferença. Quando cheguei na Inglaterra,
fiquei surpreso em constatar a que ponto as pessoas do cinema estavam
estreitamente ligadas entre si92.
Esta relação estreita entre os membros da atividade cinematográfica na
Inglaterra tinha um personagem bastante importante: John Grierson, um escocês
criado em uma família de educadores, que provavelmente cresceu sobre regras
rígidas e puritanas, e que, levaria ingredientes desta genealogia para o cinema que
91
FILHO BORBA, Hermilo Uma Vida In PELLIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio
Alberto Cavalcanti p. 116 e 117.
92
SUSSEX, Elizabeth Cavalcanti na Inglaterra In PELLIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI,
Claudio. Alberto Cavalcanti p. 321.
60
iria produzir. No Capítulo 3 me aprofundarei na fase inglesa de Cavalcanti, farei
aqui algumas considerações sobre as diferenças entre Grierson e Cavalcanti no
que tangia à abordagem do real.
Grierson era o “agente animador” da G.P.O Film Unit, o pragmatismo
eficiente e a genial capacidade de articulação do escocês transformou aquele
departamento do correio inglês – uma das instituições mais respeitadas da GrãBretanha na época - em uma próspera produtora de documentários, que contribuiu
intensamente e definitivamente para a criação do cinema moderno.
Em suas memórias, Cavalcanti ao inciar o capítulo dedicado à Inglaterra,
usa como epígrafe os versos de domínio público de um romance (sic) popular, que
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
diz assim:
João-sem-medo veio correndo,
Parou na encruzilhada,
O anjo chegou-se a ele
E falou com voz pausada:
“aqui João, começa o céu,
E as mágoas em quantidade...93
O salto de Cavalcanti em direção ao sonho, e a experimentação na
Inglaterra, trouxe consigo uma boa dose de amargura, de conflito, alimentada pelo
abismo entre os pontos de vista do brasileiro e de Grierson, em divergências qu
envolviam questões como os créditos dos filmes, que repetidamente omitiram a
participação de Cavalcanti, a diferença dos conceitos defendidos por ambos sobre
o que deveria ser o cinema documental e as fronteiras entre o documentário e a
ficção e a distribuição dos filmes realizados pela G.P.O.
Mas havia também uma rota consistente de convergência entre ambos; a
função social do cinema foi desde o início uma das bases do pensamento de
Grierson sobre o documentário que ele pretendia realizar na G.P.O “A consciência
da responsabilidade social faz do documentário uma arte perturbadora e difícil”94,
93
FILHO BORBA, Hermilo Uma Vida In PELLIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio
Alberto Cavalcanti p. 136.
Obs: Infelizmente não encontrei a origem deste poema, que Borba Filho, chama de romance
popular.
94
Trechos de GRIERSON John Primeiros Princípios do documentário, Revista Cinemais nr 8
novembro-dezembro de 1997 Rio de Janeiro: Ed. Cinemais, p. 65.
61
diria Grierson à revista Cinema Quarterly, em 1932, três anos depois dele ter
realizado Drifters (1929), seu único trabalho como diretor. Neste artigo, Grierson
estabeleceria também alguns princípios fundamentais para a consolidação do
documentarismo inglês. Premissas estas que vão ao encontro de algumas bases
conceituais e estéticas atribuídas ao Neorrealismo italiano: “O documentário
filmado nas ruas, indo aos bairros pobres, mercados e fábricas, tomou para si a
tarefa de fazer poesia lá onde nenhum poeta tinha ido”.95
Assim como aconteceu com o Neorrealismo na Itália do pós-guerra, e
posteriormente em outras cinematografias autorais e independentes,
a
precariedade de produção dada a pequenez dos orçamentos, acabou por se
configurar como um potente catalizador artístico.
Filmar em estúdios era caríssimo por todo o investimento que o
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
departamento de arte e fotografia demandava, a saída para as ruas se mostrou uma
alternativa esteticamente pioneira que era também louvável em termos de
orçamento. Grierson defendia a mobilidade técnica do cinema, a sua capacidade
de transitar livremente pelos espaços onde a realidade acontecia a 24 quadros por
segundo: as ruas; “Os filmes de estúdio ignoram totalmente a possibilidade de se
abrir ao mundo real, eles fotografam histórias artificiais em panos de fundo
artificiais. O documentário fotografa cenas vivas, histórias vivas”96.
No mesmo artigo Grierson toca em outra premissa, que viria a ser uma das
vertentes cruciais da estética do Neorrealismo. Vertente esta que foi antecipada e
adotada largamente pelos documentários da G.P.O: o uso de não atores, ou de
atores não profissionais:
Nós acreditamos que o ator verdadeiro (ou natural) e a cena verdadeira (ou
natural) são os melhores guias para uma interpretação de um mundo moderno na
tela. Eles dão ao cinema um fundamento mais sólido. Eles dão ao cinema o poder
de um milhão e uma imagens...Nós acreditamos que o material e as histórias
extraídas da realidade em seu estado bruto podem ser mais belos (mais real no
sentido filosófico) que o material interpretado 97.
95
Ibidem.
Ibidem, p. 66.
97
GRIERSON John Primeiros Principios do documentário (fragmentos) Revista Cinemais nr 8 p.
66.
96
62
O uso de atores não profissionais seria um dos pontos de sustentação
estética do Neorrealismo:
No após-guerra, o uso de atores não profissionais foi uma prática bastante
circunscrita – às vezes, ditada por razões econômicas; outras, adotada na busca de
determinados resultados estéticos – mas muito alardeada, principalmente fora da
Itália, a ponto de se transformar em um dos aspectos míticos do neo-realismo98.
Diretores como Rossellini, De Sica e Visconti recorreram fortemente a
este “recurso”, quase sempre sob o argumento de objetivos estéticos e conceituais,
objetivos estes que iam ao encontro do discurso de Grierson:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Em La Terra Trema(1948), Visconti serviu-se de pescadores verdadeiros como
intérpretes...Rossellini também preferiu muitas vezes trabalhar com atores nãoprofissionais, porque, em sua opinião, não tinham ideias pré-concebidas, e uma
vez, desbloqueados do medo que os paralisava na frente de uma câmera e que
podia levá-los a representar, conseguiam ser eles mesmos... Zavattini levou ao
extremo esta proposta, pelo menos no plano teórico: ele esperava que todos se
tornassem atores ao menos uma vez na vida...Na prática, nos filmes que fez em
colaboração com De Sica, a presença dos não atores será uma constante99.
Diferentemente do que acontecia no documentarismo inglês, em que os
personagens tinham poucas falas, deixando com a voz em off o papel de conduzir
a história, no Neorrealismo o uso de atores não profissionais exigia, na maioria
dos casos, que os filmes fossem dublados:
O caso de La Terra Trema constituiu praticamente uma exceção no que diz
respeito aos diálogos serem falados pelos próprios intérpretes, pois, na maioria
dos filmes em que trabalharam atores não-profissionais, foi necessário recorrer à
dublagem. Infelizmente esta experiência acabou sendo frustrada, uma vez que,
como já dissemos, a cópia que circulou no circuito comercial foi dublada100.
Na conclusão de seu artigo, Grierson sintetiza o que viria a ser a questão
central do Neorrealismo: a absorção da linguagem documental na ficção, a
transformação do drama cotidiano em arte, a ressignificação do prosaico em obra
de arte, a ruptura com a estrutura narrativa clássica.
É importante também se destacar a questão do gesto, quando Grierson fala
gesto espontâneo e ou banal, pensamos no cotidiano e nas vidas comuns que
foram extraordinariamente ressignificadas no Neorrealismo: “O gesto espontâneo
98
FABRIS, Mariarosaria O neorrealismo cinematográfico italiano. p. 82.
Ibidem p.83.
100
FABRIS Mariarosaria O neorrealismo cinematográfico italiano. p. 104.
99
63
na tela tem um valor particular. O cinema possui a extraordinária capacidade de
valorizar o gesto que a tradição tornou banal. Seu retângulo arbitrário revela
especialmente o movimento. Valoriza o movimento no tempo e no espaço”.101
É interessante pensar como Grierson elaborou neste texto, aqui citado, uma
visão seminal e ousada sobre o documentário, elegendo-os ao patamar de registro
de histórias vivas, mas, na prática, na G.P.O, teve dificuldade em lidar com o
alcance deste gesto, ou a territorialidade que aquele cinema deveria ter. Grierson
tinha dificuldade em aceitar a proposta de Cavalcanti de que os documentários
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
deveriam ocupar circuitos de maior visibilidade:
Eu considerava que não havia diferença alguma entre o cinema de ficção e o
resto, e achava que os filmes deveriam ser projetados nas salas de cinema. Aos
poucos, Grierson começou a elaborar uma teoria segundo a qual esses filmes
deveriam ser difundidos num outro circuito, paralelamente aos das salas
comerciais. Achava isso tão estúpido quanto chamá-los de documentários. Na
minha opinião, se um filme é bom ele deve poder ser mostrado em toda parte.
Não há razão nenhuma para reservá-los unicamente às salas de paróquia e outros
lugares do gênero102.
Segundo Sussex: “Na verdade, Cavalcanti questiona os fundamentos que
Grierson designou ao desenvolvimento do documentário. Toda aproximação da
existência de que prova Cavalcanti é tão estranha a Grierson que ele não apercebe
nem mesmo da crescente gravidade dos seus erros”103.
1.2.
O real sob o signo da guerra
Há um interposto histórico crucial que separa os filmes de Cavalcanti dos
realizados na Itália de Rossellini, De Sica e Fellini: a Segunda Guerra Mundial.
Em entrevista ao escritor Mario Alves Coutinho, para o livro André Bazin – O
realismo impossível, o teórico francês Alain Bergala fala sobre esta relação entre o
Neorrealismo e a guerra:
O Neorrealismo... Foi um fruto da guerra, no sentido de que, depois da guerra,
sobretudo quando se descobriu os campos de concentração, ficou obsceno
constituir um mundo que não devia grande coisa ao verdadeiro mundo, pois isso
tinha levado à catástrofe: a negação da realidade tinha levado à catástrofe. Depois
101
GRIERSON, John In Primeiros Princípios do documentário, revista Cinemais nr 8 p. 66.
SUSSEX, Elizabeth Cavalcanti na Inglaterra In PELLIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI,
Claudio Alberto Cavalcanti p. 324 e 324.
103
Ibidem, p.325.
102
64
disso, alguns cineastas disseram: não podemos fazer este cinema, este cinema do
artifício, é preciso partir da realidade, das pessoas comuns, de corpos comuns.104.
Assim como em Rien que heures, filmes como Roma Cidade Aberta,
Paisá e Alemanha ano zero, a trilogia da guerra de Rossellini, mostram que na
Europa sob o fantasma da miséria e da fome, a prostituição era uma saída
recorrente para se sobreviver. A degradação moral da Europa no pós-guerra viria
para reforçar o caráter trágico das fronteiras marginais que separavam a sociedade
rica, dos miseráveis, em contradições reveladas de forma pioneira por Cavalcanti.
Cavalcanti filmou a guerra em documentários pela G.P.O e posteriormente na
ficção no Ealing em 48 horas (Went the day well). Em suas memórias ele conta
como era o clima na Inglaterra na época das filmagens, era 1942, a Europa estava
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
sob a mira das bombas no auge da guerra:
Nessa época trabalhavam sob bombardeio constante, e quando o diretor brasileiro
saía de casa pela manhã, não sabia o que haveria de encontrar ainda de pé, o que
teria desaparecido, os amigos que teriam morrido. Apesar de todo aquele horror e
com a morte suspensa sobre a sua cabeça, podendo cair a qualquer momento, não
sentia medo...105
A pesquisadora inglesa Elizabeth Sussex considera 48 horas uma espécie
de filme síntese da obra de Cavalcanti, no sentido de que reúne:
...a autenticidade documentária, o drama, o surrealismo. Coisa notável, ainda que
fosse um brasileiro eroipezado, ou talvez precisamente por causa disso, ele tocou
o caráter do britânico e fez desta observação um ponto especial do filme. O
movimento documentário sem dúvida aproveitou mais do que se imagina de sua
faculdade de ver e colocar em evidência o que saltava aos olhos106.
O curioso é que mesmo durante a guerra, com toda a propaganda hitlerista,
as instituições estatais inglesas ainda se mostravam reticentes sobre o potencial
caráter anti-bélico do cinema, mas Cavalcanti já apostava nesta possibilidade tanto
no documentário como na ficção, em filmes como Yellow Caesar (1941) e no
próprio 48 horas - Went the day well (1942), que o cineasta considera a sua
104
BERGALA, Alain Pósfácio – O cinema epifânico e sagrado de André Bazin – Depoimento de
Alain Bergala a Mário Alves Coutinho In COUTINHO, Mario Alves. André Bazin - O realismo
impossível . Belop Horizonte: Autêntica, 2016. p.203.
105
BORBA FILHO, Hermilo Uma Vida In PELLIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio
Alberto Cavalcanti p.145.
106
SUSSEX Elizabeth Cavalcanti na Inglaterra In PELLIZZARI Lorenzo e VALENTINETTI
Claudio Alberto Cavalcanti p.330.
65
melhor produção na Ealing:107 As pessoas, as mais doces, como as da cidade
inglesa (do filme) tornam-se seres totalmente monstruosos quando são tocados
pela guerra”.108
Sussex diria sobre o pioneirismo do filme que: “Que um filme desse
pudesse ser produzido na época em que foi, diz muito sobre a indústria
cinematográfica inglesa e o governo, e não se fica surpreso de ver que provocou
reações109.
De fato as instituições representativas do Estado inglês demoraram a se
posicionar em relação à guerra que se anunciava, e mesmo durante o conflito, não
houve um empenho por parte do Estado para que o cinema cumprisse um papel de
propaganda pacifista, a cobertura das batalhas partiu de iniciativas isoladas. É
importante lembrar que, quando a guerra eclodiu na Europa, Grierson partiu para
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
o Canadá (1939), uma polêmica decisão, que acabou por ceder a Cavalcanti, a
condução da G.P.O. Sussex atenta, a partir desta espécie de “fuga” de Grierson,
para a diferença entre a sua relação com o mundo e a de Cavalcanti: “Quando
eclodiu a guerra em 1939, Grierson se instalou no Canadá para criar o National
Film Board, uma operação espantosa, que demonstra por si mesma, a diferença
que separa seu tipo de ambição daquele de todos os gentis Cavalcantis deste
mundo”110.
Com a saída de Grierson e o começo da guerra a unidade de cinema da
G.P.O entrou em uma espiral de caos, segundo Harry Watt:
nenhuma instrução foi transmitida durante um período interminável, e nada podia
ser empreendido. Pois Cavalcanti tomou a decisão de nos enviar ao trabalho. Foi
então grandioso, ele dizia: “A história está prestes a se fazer, não podemos esperar
sentados!111.
107
Ibidem, p.330.
Ibidem, p.330.
109
Ibidem.
110
SUSSEX, Elizabeth Cavalcanti na Inglaterra In PELLIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI,
Claudio Alberto Cavalcanti p.326.
111
WATT Harry apud SUSSEX, Elizabeth Cavalcanti na Inglaterra In PELLIZZARI, Lorenzo e
VALENTINETTI, Claudio. Alberto Cavalcanti p.326.
108
66
Esta decisão de Cavalcanti colocou a equipe na estrada e um filme foi
feito, intitulado The first days (1939 – 1940), a direção ficou a cargo de
Humphrey Jennings.
112
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Figura 17: Fotograma de The First Days (1939 – 1940).
Em 1938, o produtor Sir. Michael Balcon, que viria a contratar Cavalcanti
para a sua temporada na Ealing, escreveu uma carta ao Governo Inglês na
tentativa de sensibilizá-lo para a importância do uso do discurso cinematográfico
no combate à guerra que se anunciava no horizonte europeu: “...O importante é
que naqueles anos comecei a acreditar, junto com outras pessoas, que os filmes
podiam servir para lutar contra o Facismo, tanto neste país como em outros
lugares”.113
Mesmo que a coroa não se atentasse, ou em uma pior opção que não se
importasse, sobre a força pacifista do discurso audiovisual, Grierson já conseguira
desde a década de 1920, convencer os financiadores do EMB – Empire Marketing
Board e mais tarde da GPO, do poder de propaganda do cinema.
Dois ou três anos de trabalho entusiástico transformaram o conhecimento da
equipe num prestígio invulgar, apesar de ter sido muito difícil trabalhar com
Grierson, homem muito esquisito, cuja maior qualidade era o poder de lançar
iniciativas e de fazer propaganda, inigualável em qualquer outra pessoa do
mundo114.
112
Fonte imagem: BFI – British Film Institute.
MALCON, Michael apud DANISCHEWSKY, M. (org) Michael Balcon’s 25 years in film.
London: World Film Publications 1947. P.68-69
114
Trecho memórias acervo Sergio Caldieri páginas sem numeração.
113
67
O documentarismo inglês, que nascera sob o pragmático objetivo de ser
uma propaganda do estado industrializado, com a chegada de Cavalcanti, pouco a
pouco se transformava em um registro experimental e poético das condições de
vida do proletariado e de uma sociedade vista sob uma nova perspectiva, a do
povo, que de espectadores passivos acostumados a se sentar na plateia, passava a
partir dali, a assistir a sua realidade na tela.
A GPO pós Cavalcanti inaugurou uma leva de retratos do cotidiano
urbano, em que realismo e invenção se uniram para fazer do cinema um registro
autoral do homem moderno. Cavalcanti conversou com Sussex sobre esta
mudança de perspectiva, que ele já antecipara na França:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
O cinema só evocava países longínquos, crepúsculos do Pacífico, tudo
harmonioso, e ninguém imaginava que a cidade onde se vivia podia ter algum
interesse. Ora, é o que Rien que les heures colocou em envidência...o que lhe deu
imediatamente o ar de documento social, que evoca o desemprego, a vida nos
bairros pobres. Houve muitos aborrecimentos com a censura, você sabe115.
Em suas memórias Cavalcanti destaca a seriedade com que os ingleses
encaravam o trabalho, e sobre a “insurreição” que se formou no grupo em direção
ao desejo de retratar o trabalhador por um prisma mais nobre:
...pois mesmo o teatro britânico moderno tinha respeitado, até aquele momento, o
fato de que o drama só acontece no meio das classes abastadas e que o operário
era, por excelência, um personagem cômico; ...Imediatamente surgiu na equipe
cinematográfica do G.P.O (General Post-Office) uma revolta contra esta regra
que limitava os sentimentos humanos num escalonamento econômico e
aristocrático, procurando dignificar e dramatizar, não somente o trabalho, mas – e
principalmente – o trabalhador...Dessa revolta e da engenhosidade com que o
som foi estudado e aplicado, surgiu a escola de documentários na qual o filme
inglês dos nossos dias é quase todo baseado116.
Em entrevista a Mário Alves Coutinho, Alain Bergala fala sobre a
importância desta jornada do homem comum para o cinema neorrealista, e
sobretudo, de como teóricos como Bazin apreenderiam este fator e ampliariam a
importância do Neorrealismo a partir dele:
Penso que Bazin compreendeu imediatamente a ideia de um filme contar um dia
na vida de uma pessoa comum, sem que houvesse dramatização. Que sua jornada
115
CAVALCANTI, Alberto apud SUSSEX, Elizabeth Cavalcanti na Inglaterra In PELIZZARI,
Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti, 1995 p.323.
116
FILHO, Hermilo Borba. Uma Vida In PELIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio M.
Alberto Cavalcanti, 1995, p. 138.
68
pudesse ser um filme possível, isso diz muita coisa a Bazin. É isso por exemplo,
que faz de Umberto D e Ladrões de Bicicleta grandes filmes117.
A experiência de levar a vida do homem comum para a tela, que viria a se
consolidar como temática central no cinema pós-guerra, talvez só se consolidou
de forma tão contundente porque o cinema inglês arriscou apostar em não atores
para viverem aquelas histórias. Michael Balcon refletiria sobre a possibilidade de
representar estes personagens através da performance de atores não profissionais,
em um uma revisão de sua trajetória:
Havia é claro a questão dos não atores, Hoje, nós sabemos que os irmãos Lumiere
não estavam tão distantes da regra quando escolheram seu jardineiro e seu filho
para serem atores. Grierson, Flaherty, Cavalcanti, Harry Watt, Humphrey
Jennings e tantos outros realizadores do nosso documentário mostraram-nos que
existe uma escola estritamente naturalista que permite ao produtor lançar sua
história com pessoas sem experiência de atuação e produzir resultados
excelentes118.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Mais de um século após sua primeira projeção, o cinema ainda caminha
sobre o fio da navalha de uma polêmica que já nasceu ultrapassada, mas que teima
em determinar as fronteiras de sua linguagem: a relação entre ficção e
documentário.
Esta questão se tornou notoriamente mais provocativa com o surgimento
do Neorrealismo, quando os filmes passaram a trafegar livremente entre estes dois
gêneros distintos.
A grande maioria dos filmes modernos são reportagens ou ensaios sobre uma
ficção [...] O cinema moderno generalizou o apelo ao documentário. Não existem
mais documentário puro ou ficção absoluta. A dissolução dos gêneros é outra
constante
(...) Os grandes cineastas da atualidade são, todos eles,
documentaristas: Antonioni, Resnais, Visconti (documentaristas da alma)
Godard, Losey e Hawks (documentaristas do corpo). Ou quando adotam uma
ficção dão um tratamento que pode ser definido como uma ficção documental119.
117
BERGALA, Alain Posfácio. O cinema epifânico e sagrado de André Bazin, In COUTINHO,
Mario Alves. André Bazin - O realismo Impossível, p. 212.
118
BALCON, Michael In DANISCHEWSKY, M. Michael Balcon 25 years in films London:
World Film Publication. 1947. p.67 – Original em Inglês, traduzido por mim: Today we know tha
Brothers Lumiere were not so wide off the mark In choosIng their gardener and his son to be their
actors. Grierson, Flaherty, Cavalcanti, Harry Watt and Humphrey JennIngs and many other of our
documentary film-makers have show us sInce that there is a strictly naturalistic school of screen
actIng wich can allow the film producer to cast his story with people with no acting experience
whatsoever, and produce excellets results.
119
SGANZERLA, Rogério. Por um cinema sem limite. Rio de Janeiro: Azougue, 2001. p. 34 e 19.
69
Esta observação faz parte de um texto crítico de autoria do diretor Rogério
Sganzerla, se naquela época, em meados de 1960, já era profético falar da
dissolução das fronteiras entre ficção e realidade, é ainda mais surpreendente que
Cavalcanti já propusesse isso em seu cinema no começo da década de 1920.
Quatro décadas antes da explosão criativa do cinema de invenção no
Brasil, do qual Sganzerla foi um dos mestres, Cavalcanti já propunha um cinema
que inventava realidades, que interferia poeticamente no real, fazendo da técnica
um instrumento para a construção de um discurso social pautado pela poesia:
É menos fácil compreender (...), mas Cav tinha razão: são o efeito e a emoção,
veiculados indiferentemente pela gravação ou reconstituição, o documento ou a
invenção, o natural ou a simulação que conferem um valor de realidade e nos
mantêm em relação com ela120.
Acredito que este “efeito e emoção”, a que os italianos se referem nesta
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
citação, sejam o “resultado” da equação Poesia + Técnica + Discurso Social,
expressa na fórmula essencial da trajetória de Cavalcanti.
120
CAVALCANTI Alberto apud PELLIZZARI Lorenzo O sonoro, a Paramount e o cinema
inglês (1929 – 1949) In PELIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio. M. Alberto
Cavalcanti. p.34.
2.
Rien que les heures: representar o real - do realismo
poético ao surrealismo
Compreender o mundo é primeiramente saber olhá-lo
André Bazin121
Durante a avant-garde, o cinema e as outras artes não tinham fronteiras
estabelecidas, em um movimento orgânico que guiava toda a criação artística,
independente da sua linguagem, em uma mesma direção: o da experimentação.
Foi este pensamento, coletivo em forma, mas absolutamente particular em
essência, que constituiu o primeiro capítulo da arte moderna no século XX. Fato
que não se repetiria novamente na historia do cinema na França e nem em parte
alguma do mundo, “Os cineastas deste tempo, os Delluc, os Gance, os Epstein, eu
mesmo, éramos muito ligados aos escritores, aos pintores, ao movimento artístico
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
em geral. Hoje me parece que os jovens da Nouvelle Vague vivem em círculo
fechado”. 122
Para se entender a trajetória do cinema até a avant-garde que abrigou
Cavalcanti, proponho visitar o cenário pioneiro em que se constituiu o mercado e
o público de cinema nos Estados Unidos, para que se compreenda o momento que
propiciou a gênese do cinema de propaganda, peça fundamental na construção do
documentarismo inglês.
Nos primeiros anos do século XX o cinema fluía o seu curso de espetáculo
das massas, elegendo como salas de exibição espaços como os nickelodeons, que
funcionavam em armazéns improvisados, sujos e desconfortáveis. O público era
formado em sua maioria pela camada mais pobre da sociedade, como o ingresso
custava muito barato, “um níquel”, estas salas tinham um papel irrisório no
cenário econômico de filmes, se comparados aos vaudevilles na Europa.
Os nickelodeons galgaram importância com o surgimento do filme
narrativo, que trouxe o maior envolvimento da plateia e viabilizou os filmes de
longa duração. Até aquele momento o cinema ainda exigia a presença do
121
BAZIN, André apud COUTINHO, Mario Alves O realismo impossível, quarta capa.
Alberto Cavalcanti apud BEYLIE Claude, LEMARCHAND Didier e MICHAULD Christian.
Ecran de novembro de 1974. Nº 30 In CAVALCANTI, Alberto. Filme e realidade, 1977. p.249.
122
71
explicador, se afirmando como mais um número de vaudeville, e não como uma
linguagem artística ou um espetáculo consolidado.
O público de todas estas casas era constituído principalmente pelas camadas
proletárias dos cinturões industriais. Era uma clientela predominantemente
masculina, recrutada nos segmentos mais pobres e mais desclassificados
culturalmente da população. Nos Estados Unidos, particularmente, os imigrantes
constituíam o público principal das salas de exibição, pois o desconhecimento da
língua inglesa interditava o teatro e outras formas de espetáculos baseadas
predominantemente na palavra a estas multidões originárias na maior parte delas
da Europa Central. Não se pode esquecer que, no período inicial da formação da
indústria cinematográfica, a imigração estava no seu pico máximo... O Governo e
instituições privadas chegaram mesmo a lançar mão do cinema para dar aos
recém-chegados informações sobre as leis e os costumes americanos 123.
O cinema em sua primeira década de existência ia buscar nos espetáculos
populares não só o seu modelo de representação - gags, contos de fadas,
pornografia e números de vaudeville - ele buscava também nestes territórios os
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
seus atores e figurantes. O elenco dos primeiros filmes era formado, em sua
maioria, por atores circenses, cantoras dos vaudevilles, e dançarinas dos teatros
franceses.
Sobre o conteúdo moral e seus arquétipos, aqueles filmes “não só davam
exemplos abundantes de cinismo e perversão, como ainda ridicularizavam a
autoridade, invertendo os valores morais”
124
. Policiais corruptos, criminosos
retratados como heróis e a figura do vagabundo carismático eram personagens
comuns neste primeiro cinema.
A pornografia era tema recorrente, a Pathé francesa e a Biograph
americana se transformaram em especialistas no assunto, fazendo a alegria das
plateias na sala escura onde tudo era permitido. Havia também as peepshows,
onde o público espiava os filmes eróticos nos visores individuais dos
quinetoscópios. Na França a Pathé recorria ao nu frontal nos mutoscópios, um
tipo diferente de quinestocópio que não usava película, funcionava como uma
espécie de fleep book, um livro em que as páginas corriam em frente ao visor
dando a sensação de imagem em movimento. Tanto nos EUA como na França, a
123
MACHADO, Arilindo. Pré-cinemas & pós- cinemas, Campinas (SP): Papirus Editora, 2007. p.
79.
124
Ibidem p.81.
72
masturbação corria solta na sala escura, desafiando a censura moral e a ação
policial.
A reação não demorou a surgir nos Estados Unidos, e uma corrente
moralista movida pela sociedade, pelas autoridades policiais e o clero levou o
governo a proibir os quinetoscópios. O prefeito de Nova Iorque decidiu fechar os
nickelodeons, com medo que estes espaços se transformassem em antros de
bandidos e centros de criminalidade. Sob o argumento de riscos de acidentes - os
incêndios provocados pela combustão do nitrato de prata das películas eram
constantes - os deputados conservadores pediram o fechamento das salas de
exibição. O cenário para o estabelecimento da censura estava formado, proibiu-se
a bebida alcoólica e a pornografia, e a imprensa entrou na batalha censurando a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
degeneração moral do cinematógrafo.
125
Figura 18: Foto da fachada de um Nickelodeon na primeira década do século XX nos EUA.
Criou-se assim o ambiente favorável para que os produtores de cinema
percebessem nos EUA que a continuidade do cinema no país estava condicionada
à formação de um novo público, que incluísse, sobretudo a burguesia e a classe
média. Além de aumentar o impacto financeiro do cinema na economia e criar o
cenário ideal para o seu desenvolvimento como indústria, esta nova plateia
125
Fonte: http://pabook2.libraries.psu.edu/palitmap/Nickelodeon.html
73
dispunha também de mais tempo para se dedicar ao entretenimento, ao contrário
do público operário.
Para conquistar esta plateia mais sofisticada e exigente intelectualmente, o
cinema deveria substituir a sua origem naif por um diálogo mais profundo com as
artes “mais elevadas”, leia-se teatro e literatura, opinião partilhada tanto pelos
comerciantes como pelos realizadores da época. Sob este contexto nasceu o
cinema narrativo, herdeiro direto das matrizes teatrais e literárias. Para sobreviver,
o cinema deveria contar histórias, de preferência inspiradas em fontes
consolidadas pela assinatura de autores como Shakespeare, Dickens e Tolstoi,
entre outros.126
Estas medidas “higienizadoras” no cinema popular da primeira década do
século XX no mundo fizeram surgir duas correntes: o film d’art na França e o
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
cinema de aspiração narrativa nos EUA. Nesta segunda seara D.W. Griffith com
seus dramas morais e psicológicos despontou à frente da Biograph como cineasta
de sucesso, apostando no naturalismo e na verossimilhança, dois pilares que
sustentariam o cinema clássico.
Os primeiros tempos do cinema como veículo instrutivo para imigrantes
europeus renderam outras possibilidades àquela linguagem: o cinema de
propaganda.
Se na América a indústria cinematográfica dava os seus primeiros passos,
na Europa o cinema era ainda uma diversão sem grandes ambições comerciais.
Em Paris: “Nenhum povo no mundo aprecia tanto os divertimentos – ou
distrations como eles os chamam – quanto os parisienses. Manhã, tarde e noite,
verão e inverno, há sempre algo para ser visto, e uma grande parte da população
parece absorvida na busca do prazer”127, dizia o Guia Cassel de Paris de 1884.
Em Paris é interessante ressaltar como a vida da cidade e de seus
habitantes se tornou rapidamente uma inspiração direta para o cinema. Quando o
126
MACHADO, Arlindo Pré-cinemas & pós-cinemas.
HANSEN, Mirian Bratu. Estados Unidos, Paris, Alpes: Kracauer (e Benjamin) sobre o cinema
e a modernidade In CHARNEY, Leo e SCHWARTZ, Vanessa R (org). O cinema e a invenção da
vida moderna, São Paulo (SP) : Cosac Naif, 2001. p.411.
127
74
cinema chegou à capital francêsa, a cidade já estava pronta e ávida por mais
espetáculo, “a vida real era vivenciada como um show, mas, ao mesmo tempo, os
shows tornavam-se cada vez mais parecidos com a vida”128. Esta conjunção do
gosto do público parisiense pelo espetáculo inspirado na realidade criou um
cenário favorável para que o cinema se instalasse como atrativo artístico na
apreensão da vida real. “O espetáculo e a narrativa estavam inseparavelmente
ligados na florescente cultura de massa de Paris: o realismo do espetáculo, na
verdade, quase sempre dependia da familiaridade com as narrativas
supostamente reais dos jornais”129.
Esta tentativa de apreensão do real tinha como ferramenta a fotografia, que
atendia à demanda do público de se reconhecer na tela.
O cinema nasceu
documental, a chegada do trem à estação Ciotat130 eternizada pelos irmãos
Lumière e o impacto que aquelas imagens provocaram no público determinaram a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
partir dali um caminho da imagem em movimento ao encontro da reprodução da
realidade.
O aparato técnico permitia esta premissa, e o desejo do público de se
identificar nas histórias contadas foi uma consequência natural diante deste
cenário. “O cinema materializa um desejo profundamente enraizado de substituir
o mundo por seu duplo. Combina a mimese fotográfica estática à reprodução do
tempo”. 131
Cavalcanti diria à revista Le Cahiers du mois, em 1925, sobre a capacidade
avassaladora como o cinema, em relação às outras artes, se propôs a apreender a
vida, que:
Não é irrefletido dizer que essa educação tão brusca, como esse avanço em
direção a uma perfeição e uma precisão completas, influenciarão (sic) no futuro,
não somente as artes, mas também a vida em geral, onde já estamos surpresos em
128
Ibidem.
Ibidem, p. 412.
130
L’Arrivée d’um triain en gare de La Ciotat, primeiro registro fílmico da história do cinema,
dirigido pelos irmãos Auguste e Louis Lumière em 1895.
131
STAM, Robert Introdução à teoria do cinema, Campinas (SP): Papirus Editora, 2006. p. 93.
129
75
constatar que não são mais os filmes que reproduzem a vida, mas a vida que, às
vezes, reproduz os filmes...132
A questão que se apresentava então era como transformar a realidade em
histórias a serem contadas. “O objetivo era um cinema sem mediação aparente, no
qual os fatos ditassem a forma e os acontecimentos parecessem contar-se a si
próprios.” 133
Com a formulação do conceito de fotogenia, na América por Griffith e na
Europa por Germaine Dullac e Jean Epstein, a capacidade de o cinema “domar” e
recriar a imagem real em sua projeção da realidade se instaurou de forma
definitiva. A apreensão da realidade e a consolidação da linguagem
cinematográfica galgaram posições dentro do universo artístico, e mesmo com o
florescimento do cinema de arte na Europa nos primeiros sopros de vanguarda, ou
as viagens fantasiosas de Méliès em direção à ficção fantástica, o naturalismo e o
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
cinema como representação do cotidiano mostrava que iria se consolidar como
caminho de sucesso junto ao público. A reação dialética a esta busca de um duplo
para o real veio com a avant-garde, e, sobretudo o Surrealismo.
Numa famosa conferência, Luis Buñuel fala do cinema como instrumento de
poesia e toma esta palavra “no sentido libertador, de subversão da realidade, de
limiar do mundo maravilhoso do subconsciente, de inconformismo com a estreita
sociedade que nos cerca” e mais adiante afirma que, nas mãos de um espírito
livre, “o cinema é uma arma magnífica e perigosa” ... O mecanismo produtor das
imagens cinematográficas é por seu funcionamento intrínseco, aquele que, de
todos os meios de expressão humana, mais se assemelha à mente humana 134.
Foi sob esta conjunção estética, sob a luz do Surrealismo, que Alberto
Cavalcanti se estabeleceu em Paris, em 1918, durante os últimos, mas ainda
pungentes suspiros da Primeira Guerra Mundial.
A cidade já se afirmava como o “quartel general” da avant-garde, como
diria Kracauer, e o desejo de experimentar fazia a arte fluir em uma rota, onde
cinema, artes visuais, dança, poesia e música se imbricavam em obras orgânicas e
totais, um espaço de experimentação na contramão do realismo e do naturalismo
132
CAVALCANTI, Alberto. Notas sobre a influência do cinematógrafo nas artes plásticas Les
Cahiers du mois, 1925 In PELLIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio M. Alberto
Cavalcanti p. 183.
133
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Campinas (SP): Papirus Editora, 2006. p. 92.
134
CAÑIZAL, Eduardo Peñuela Cinema e Poesia In O cinema no século – XAVIER Ismail (org).
Rio de Janeiro (RJ): Imago, 1996. p. 358 (grifos do autor).
76
vigentes na narrativa clássica que começava a ganhar o seu contorno, seus pilares
e seus teóricos nas primeiras décadas do cinema.
Historicamente, os filmes experimentais se originam no movimento vanguardista
europeu, dos anos vinte que, por sua vez, inspirou muito a arte contemporânea ...
Com a sede em Paris, esse movimento muito complexo também foi fortemente
influenciado pelo surrealismo na literatura e na pintura; e, claro, se deixa
estimular por várias abordagens novas nos cinemas nacionais em geral, como o
filme expressionista alemão, a comédia de cinema americana, o filme sueco com
sonhos e superposições e os métodos de montagem engenhosos dos russos135.
Um dos observadores mais atentos deste momento histórico, Walter
Benjamim registrou as suas reflexões sobre a Paris das primeiras décadas do
século XX. Adepto da flanerie, Benjamim traduziu o espírito da cidade. Paris não
era só o cenário daquele momento único para a história da arte, ela era também
personagem da avant-garde. Para Benjamim, o Surrealismo era um filho
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
melancólico do pós-guerra:
O movimento que brotou na França, em 1919, entre alguns intelectuais (citemos
de imediato os mais importantes: André Breton, Louis Aragon, Philippe
Soupault, Robert Desnos, Paul Élouard), pode ter sido um estreito riacho,
alimentado pelo úmido tédio da Europa de após-guerra e pelos últimos regatos da
decadência francesa136.
E ainda:
No centro deste mundo de coisas está o mais onírico dos seus objetos, a própria
cidade de Paris. Mas somente a revolta desvenda inteiramente o seu rosto
surrealista (ruas desertas, em que a decisão é ditada por apitos e tiros) E nenhum
rosto é tão surrealista quanto o rosto verdadeiro de uma cidade137.
É este “rosto verdadeiro de uma cidade”, de que fala Benjamin, que
Cavalcanti retratou em Rien que les heures, obra que atraiu os olhos do mundo
sobre o seu cinema. Este era o espírito que habitava sob o véu de glamour e
sofisticação que pairava sobre o arquétipo da cidade luz, em seus becos e guetos
escuros a Paris de Rien que les heures apontava em direção ao cinema moderno, a
135
KRACAUER, Siegfried. Theory of film - The Rendemption of physical reality London: Oxford
University Press, 1965. p.177 Original em inglês: Historically, experimental films origInates In the
European Avant-garde movement, of the twenties which In turn took much of Inspiration from
contemporary art... With headquarters In Paris, this very complex movement was also strongly
Influenced by surrealism In literature and paIntIng; and of course, it let itself be stimulated by
various fresh approaches withIn the national cinemas at large, such as the German expressionist
film, American film comedy, the Swedish film with it dreams and superimpositions, and the
Ingenious montage methods of the Russians.
136
BENJAMIM, Walter. Magia e técnica, arte e política, São Paulo(SP): Brasiliense, 2011. p.21.
137
Ibidem, p. 26.
77
um novo realismo, onde estava contida uma poderosa crítica social, que se
firmaria como escola nos anos seguintes.
A primeira temporada de Alberto Cavalcanti em Paris se estendeu de 1918
a 1933, isto em companhia da mãe, do pai cego e em uma cadeira de rodas, que a
toda sirene tinha de ser carregado por Cavalcanti para o porão da casa onde
viviam, e de sua ex-babá Madalena, que acompanhou a família em todas as
incursões que fizeram na Europa. Foi uma época difícil de pouco dinheiro e muita
escassez em uma Paris sob ataque138.
No início Cavalcanti frequentou a escola de Beaux Arts, depois se
matriculou na Sorbonne para estudar estética, no curso ministrado por Victor
Bach, para em seguida ir trabalhar no escritório de arquitetura de Alfred Agache
(responsável pelos projetos da Cinelândia e do Aeroporto Santos Dumont, no Rio
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
de Janeiro). A relação dos dois era amistosa, Cavalcanti chegou a chef d’agence.
É nesta época que Cavalcanti tem contato com o cinema sueco e gosta em especial
da obra do diretor Sjöström.
O primeiro retorno de Cavalcanti ao Brasil acontece quando o cineasta
deixa o escritório de Agache e decide abrir uma filial do bureau do arquiteto no
Rio de Janeiro, mais precisamente na Rua do Ouvidor no centro do Rio. O calor
insuportável dos trópicos sob um teto de zinco, o dinheiro curto e as raras
encomendas tornaram impossível a continuidade de Cavalcanti no Rio, a família
então se articula para que ele volte à Europa, desta vez para trabalhar em
Liverpool.
Foi nesta época que Cavalcanti teve contato com o cinema do surrealista
Marcel L’Herbier, através do filme Rose France (1919). Ele escreveu a L’Herbier
e se ofereceu para trabalhar em sua equipe, a aproximação por missivas funcionou
e, após algumas cartas trocadas e projetos enviados, Cavalcanti foi contratado
como cenógrafo pelo diretor.
138
Este primeiro período de Cavalcanti em Paris é narrado com detalhes todos os seus textos
memoriais que usei como referência.
78
Acompanhado de sua mãe, Cavalcanti deixa Liverpool movido pelo sonho
de fazer cinema e com a missão de ser tutor em Paris das duas filhas do cônsul
brasileiro Dario Freire, começa assim a sua temporada no cinema francês.
A parceria com L’Herbier renderia os primeiros trabalhos de Cavalcanti no
cinema, Réssurection (1922), L’Inhumaine (1923) La galerie des monstres (1924)
e Feu Mathias Pascal (1924 – 1925) este último uma adaptação de uma peça de
Luigi Pirandello. Segundo o próprio Cavalcanti em suas memórias, o dramaturgo
havia adorado os cenários de Cavalcanti e detestado o filme139.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Comecei como cenógrafo assistente, para aprender um pouco sobre a profissão,
mas no filme seguinte – La Galerie des monstres (1924) – eu era não somente
cenógrafo chefe como também assistente de direção, pois o filme era feito na
Espanha e eu falava um pouco de espanhol ... As primeiras sequências que rodei
como diretor foram para Feu Mathias Pascal, pois L’Herbier se ausentara e me
deixou filmar no seu lugar durante mais ou menos três dias. Foi a primeira vez
que fui para trás de uma câmera 140.
141
Figura 19: Desenhos e fotogramas dos cenários de Cavalcanti para Feu Mathias Pascal (1924).
O trabalho de Cavalcanti no decor cinematográfico trazia muito de sua
formação na arquitetura, mas imprimia também a sua genuína intuição
cinematográfica, ele foi pioneiro ao criar uma paleta de cores nos cenários, que
melhor imprimissem na fotografia em preto e branco. Até então os cenários eram
todos concebidos em uma escala de tons entre o branco e o preto:
Para obter uma paleta maior de cinza, certos diretores de arte, eu inclusive,
pintavam o cenário controlando cuidadosamente o efeito com a ajuda de tabelas
fotográficas. Hostis ao método, nossos colegas não queriam falar disso.
Consideravam que as cores no cinema eram exclusivamente o preto e o branco, e
139
FILHO BORBA, Hermilo Uma Vida In PELLIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio
M. Alberto Cavalcanti, p.108.
140
ALBERTO, Cavalcanti apud CANOSA, Fabiano. Conversa com Alberto Cavalcanti In
PELLIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti, p 288.
141
Desenhos realizados por Amanda Freitas Coelho para sua dissertação de mestrado, a partir de
fotogramas dos filmes estudados In: Amanda de Freitas Coelho, Le décor de cInéma ou la musique
pétrifiée : Alberto Cavalcanti à l'ombre d'EisensteIn, Universidade Paris-Sorbonne, Paris 2014,
vol. III, 135 p.
79
que os cenários deveriam ser consequentemente pretos, brancos ou cinza. Não
levaram muito em conta o fato de que um certo equilíbrio deve ser estabelecido
de uma externa a outra. Eles negligenciavam além disso um dado psicológico de
fundamental importância: o desempenho dos atores é sempre melhor se estão
rodeados por um ambiente realista, e se deprimem se são obrigados a mover-se
constantemente numa atmosfera cinza142.
A pesquisadora Amanda Freitas Coelho estudou a obra de Cavalcanti pelo
aspecto do décor, pela composição da imagem em seus aspectos estritamente
formais. Mas, segundo ela, as questões estéticas em Cavalcanti inevitavelmente
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
irão encontrar um viés social e poético:
Ao colocarmos em paralelo um filme realizado por Cavalcanti, e outro para o
qual ele concebe a cenografia, percebemos que a concepção que o cineasta tinha
do décor implicava igualmente sua concepção do cinema em si mesmo. Ao
conceber o cinema como um fator social e estético, Cavalcanti explora os décors
como meios de aceder à uma realidade sensível. É através do recurso das
« comparações cinematográficas », da expressão dos traços e das formas, que ele
explora o aspecto sensível, simbólico, enfim, poético, do cinema. Podemos
concluir que em En rade e em Feu Mathias Pascal o processo de montagem e de
composição dos quadros é guiado por similitudes entre décors, personagens e
paisagens. As imagens encadeiam-se umas às outras, seguindo uma lógica de
« aproximações plásticas », criando rimas visuais, uma poesia em imagens143.
O período que antecedeu a tomada de posição na direção por Cavalcanti
marcou o seu aprendizado em outras funções, como diretor de arte e cenógrafo,
um aprendizado para que ele rapidamente levasse adiante a direção do seu
primeiro filme, Le train sans yeaux (1925).
Minha primeira tarefa como diretor de arte me foi confiada em 1922, nos Studios
Epinay, na periferia de Paris. Tinha no bolso um diploma e fui encarregado dos
planos e da execução dos cenários de Résurection, a partir de Tolstoi, filmado por
Marcel L’Herbier... Minha função era a de primeiro-assistente e quebra-galhos do
estúdio. O filme ficou inacabado, mas o que resta me parece importante e
comovente...Quando começamos Feu Mathias Pascal (CinegraphicAlbatros,1925), dirigido por L’Herbier a partir do romance de Pirandello, tive a
grande alegria de me ter sido confiada a realização de uma série de cenários... A
concepção do cenário se inspirava no velho princípio italiano da falsa perspectiva
normalmente utilizada hoje nos ateliês144.
142
CAVALCANTI, Alberto. Notas para uma história do cenário de cinema (Compenhague,
1950/Roma, 1956) In PELLIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti
p 234.
143
http://www.lafuriaumana.it/Index.php/56-archive/lfu-23/327-amanda-de-freitas-coelh-poesiaem-imagens-sobre-o-cinema-de-alberto-cavalcanti.
144
CAVALCANTI, Alberto Notas para uma história do cenário de cinema (Copenhague,
1950/Roma, 1956) In PELLIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio M. Alberto
Cavalcanti, p.232 e 233.
80
A 1h 08’50’’ de Feu Mathias Pascal temos um belo plano que representa
bem esta falsa perspectiva a que Cavalcanti se refere, em profundidade de campo
vemos uma janela que marca um ponto de encontro para as duas linhas verticais
que delimitam o plano em ponto de fuga. Segundos depois, surge em primeiro
plano um homem, formando uma belíssima composição de plano que representa
um domínio da linguagem impressionante.
No círculo de amigos que Cavalcanti constrói em Paris figuram nomes
como o escritor e dramaturgo Luigi Pirandello, que conheceu na época da
filmagem de Feu Mathias Pascal, a bailarina Isadora Duncan, o escritor André
Gide, as atrizes Emy Linn, Eve Francis, musa de Paul Claudel, e Catherine
Hessling, nome artístico de Andrée Heuschling, mulher que encantou a família
Renoir, foi modelo do pintor Pierre-Auguste Renoir, e depois foi profundamente
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
importante na vida e na carreira de seu filho, o cineasta Jean Renoir.
Hessling ela faria sete filmes com Cavalcanti, alguns deles depois que
separara de Jean Renoir, com quem ficou casada por seis anos, até 1931.
Curiosamente Renoir se separou de Catherine para se casar com outra mulher
ligada a Cavalcanti, Dido Freire, filha do consul Dario Freire. Cavalcanti conta
em suas memórias que:
Catherine Hessling era uma refugiada belga da guerra 14-18, recolhida pelo
pintor Renoir, que tinha adoração por ela e talvez tenha pintado mais Catherine
que qualquer outro modelo em sua vida. Ao completar 15 anos, naquele ambiente
artístico onde conheceu o amor paternal do pintor, cercada de atenções, quase
esquecida dos horrores que sua pátria havia sofrido com a invasão dos alemães,
sentiu-se amada por Jean Renoir – filho do meio do pintor, sendo Pierre o
primogênito e Claude o caçula – transformando-se o amor em uma paixão
desgarradora, Jean casou-se com ela, e em seguida entendeu de fazer cinema,
produzindo com Dieudonne um filme intitulado Catherine. O segundo intitulavase La fille de l’eau, sendo o terceiro Nana, que se transformou em um grande
esforço de produção... o filme obteve uma crítica péssima e uma aceitação por
demais fria. Outros fatores agravaram ainda mais a situação de Renoir, entre as
quais o fato de estar financiando a si próprio com o dinheiro dos quadros do pai,
usando a própria mulher como protagonista principal do filme145.
145
FILHO BORBA, Hermilo. Memórias acervo Sergio Caldieri, sem numeração nas páginas.
81
146
Figura 20: Blonde a la rose 1915-1917 Renoir.
Figura 21: Catherine em fotog. de Nana - J. Renoir.
Renoir e Hessling estrelaram La P’tite Lili (1927), dirigido por Cavalcanti.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Filmado em um cenário construído nas ruas de Paris em Billancourt, que acabou
sendo inutilizado pelo mau tempo, este pequeno filme custou 7.100 francos.
Segundo Bazin:
A pequena Lili foi rodado em três dias num tempo cinzento e a ideia de filmar
através de uma tela do tipo saco de batatas constituirá um álibi artístico para o
cinzento da foto. Entre os atores, Jean Renoir, Guy Ferrant, Roland Caillaux, Erik
Aes, Rogers, Dido Freire (sobrinha de Cavalcanti e futura senhora Jean
Renoir)147.
Em 1924 Cavalcanti assinou os cenários de L’Inondation, de Louis Delluc,
autor da obra que inspirou Le train sans yeaux (1926). A crítica chamou a atenção
para a ascensão de Delluc sobre “o novo diretor” que despontava no cinema
francês, mais tarde Cavalcanti comentaria a relação dos dois “Eu admirava a
honestidade artística do seu trabalho e considerava os seus filmes excelentes para
a época, mas meus métodos não tinham nada a ver com as técnicas artísticas
daquele diretor”.148
146
Fonte das figuras 22 https://www.thecinetourist.net/paIntIngs-In-pierrot-le-fou.html / 23:
https://br.pInterest.com/pIn/63683782201266639/?lp=true.
147
BAZIN, André In COUTINHO, Mario Alves, p.51 Aqui Bazin diz que Dido Freire era sobrinha
de Cavalcanti, de fato ela era protegida de Cavalcanti, uma incumbência que este recebeu do
cônsul brasileiro Dario Freire, como condição para bancar a ida de Cavalcanti para Paris.
148
CAVALCANTI, Alberto apud VALENTINETTI Claudio As origens e o cinema francês (1897
– 1928) In PELLIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti, p. 18.
82
Entre o sucesso como cenógrafo e a estreia na direção Cavalcanti
enfrentou alguns percalços, segundo narra em suas memórias, o produtor de Feu
Mathias Pascal, o russo Kamenka, “observando que Cavalcanti havia dirigido
muita coisa no filme, não se limitando apenas aos ambientes, propôs-lhe o
primeiro filme como diretor”149.
Cavalcanti conta que depois de muito pensar sugeriu como argumento Le
chapeau de paille d’Italie, de Eugéne Labiche. “Não haveria dificuldades em
relação aos intérpretes que poderiam ser os russos, pois o filme mudo não
obrigaria o uso da língua francêsa...Kamenka leu a peça, bateu palmas à ideia de
Cavalcanti e mandou que o brasileiro esperasse um pouco pelo resultado daquilo
tudo.”150
Mas não seria desta vez que Cavalcanti assinaria o seu primeiro filme
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
como diretor, o russo havia prometido também um lugar ao sol a um emergente
René Clair. Cavalcanti conta em suas memórias que:
Esperou em vão, pois um belo dia surge nos escritórios da Cinégraphic o diretor
René Clair que, muito sorridente e morrendo de satisfeito, comunicou a
Cavalcanti a “boa nova”: Kamenka estava decidido a lançá-lo, a ele, Rene Clair,
como diretor, solicitando-lhe um argumento baseado na peça de Labiche,
indicada pelo brasileiro151.
A realização de Le train sans yeaux viria por outro caminho, descartado o
argumento de Labiche, Cavalcanti se voltou para Pirandello, de quem se tornou
amigo, e escolheu Lontano como obra matriz para a adaptação. O autor italiano
cederia os direitos ao brasileiro segundo ele “em condições muito boas”.152 O
entusiasmo pela estreia na direção perseguia Cavalcanti que “Sonhava acordado e
quase não podia dormir de tão excitado que se encontrava. Afinal não era
brincadeira que um brasileiro nascido em Botafogo se largasse naquele mundão e
começasse a competir com diretores já então famosos no mundo inteiro”.153.
149
BORBA FILHO, Hermilo Uma Vida In PELLIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio
M. Alberto Cavalcanti, p.110.
150
Ibidem, p. 110 e 111.
151
Ibidem, p.111.
152
Ibidem, p.112.
153
Iibidem.
83
Mas não foi nem Labiche, nem Pirandello que cederam suas obras à estreia
de Cavalcanti na direção. Com a falência da Sacex, companhia que iria produzir
Lontano, Cavalcanti teve de mais uma vez adiar seus planos, até que caiu em seu
colo um argumento baseado no romance Le Train sans yeux, de Lous Delluc, e ele
agarrou.
Le train sans yeaux levou dois anos para ficar pronto e não agradou nem
ao próprio Cavalcanti que resumiu assim a sua primeira experiência como diretor
“uma história muito ruim escrita por um homem de cinema inteligente que queria
ser romancista”154.
Cavalcanti teria que reverter todos os pontos problemáticos daquele
presente do destino, em aliados para estrear como diretor, e os problemas não
eram insignificantes:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
O romance possuía coisas praticamente intraduzíeis em imagens? Não importa,
contornaria as dificuldades, inclusive a dos próprios atores... Os atores alemães
eram uns canastrões, emperrados sob a direção, todos tremendamente
desconfiados contra aquele sujeito que nunca havia dirigido um filme completo e
que aparecia assim sem mais nem menos, saltando dos ambientes para o
comando. O consolo é que no cast francês, encabeçando-o havia uma mulher
como Gina Manes, inculta, até certo ponto ignorante, porém cheia de coragem...
Dela ouviu as melhores palavras de incentivo155.
154
CAVALCANTI, Alberto apud VALENTINETTI Claudio As origens e o cinema francês In
PELLIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti, p. 19.
155
BORBA FILHO, Hermilo Uma Vida In PELLIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio
M. Alberto Cavalcanti, p.112.
84
156
Figura 22: Gina Manes em raro fotograma de Le train sans yeux.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
O longa-metragem foi filmado em 1924 na Côte d’Azur (externas) e em
velhos armazéns de Berlim que funcionaram como estúdios, Le train sans yeux só
estreou depois de Rien que les heures, em 1928 “Não podia ser lançado Le train
sans yeux, não podia porque não podia mesmo, falta de dinheiro não é
brincadeira”157.
Cavalcanti narrou em suas memórias a experiência insólita que se
configurou a realização de Le train sans yeux:
Durante aquele longínquo ano de 1924 o trabalho era cada vez mais duro, com
todas as peripécias com que se depara um diretor novo em luta contra uma série
de coisas. Terminado o serviço na Côte d’Azur toda a equipe se transportou para
o estúdio na Alemanha em Staacken, bairro de Berlim. O engraçado é que os
estúdios foram construídos em antigos angares de zepelins ...Uma coisa saltava
logo à vista: a diferença entre a organização industrial da cinematografia alemã e
o método “maria-vai com as outras”, muito próprio da displicência francesa... O
filme era puramente comercial, sem outra finalidade que não a de ganhar
dinheiro. Há no entanto, em qualquer produção comercial quando dirigida por um
temperamento artístico, trechos nos quais poderemos constatar, pelo menos,
virtuosismo técnico158.
156
Fonte: https://www.ebay.co.uk/itm/GINA-MANES-Le-train-sans-yeux-Train-without-Eyes13206-/300539398193.
157
BORBA FILHO, Hermilo Uma Vida In PELLIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio
M. Alberto Cavalcanti, p. 114.
158
Ibidem, p. 113 e 114.
85
Com dois longas em sua recente trajetória, Cavalcanti consolidou o seu
nome entre um grupo que a crítica chamou de avant-garde, embora, como na
maioria dos movimentos artísticos, as afinidades estéticas residiam mais no
ímpeto aglutinador da crítica do que na própria concepção cinematográfica dos
autores:
As pessoas da minha geração, René Clair, Epstein, ou eu mesmo, nós éramos
classificados como vanguarda, como uma escola, assim como os críticos que
começaram a filmar há alguns anos foram denominados como Nouvelle Vague.
Primeiramente nós não éramos uma escola, não havia união, ao contrário, nós nos
odiávamos, mas tínhamos uma coisa em comum, sabíamos que o cinema não
devia ser uma coisa da forma como era feita, improvisando, sem tema verdadeiro,
muito literário e teatral, pensávamos que se podia inventar uma linguagem
cinematográfica... Quando os surrealistas apareceram, adotaram muitos dentre
nós, entre os quais, eu mesmo159.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
2.1.
O Cinema Puro
A década de 1920 na França marcou a intensa defesa do Le cinema pur,
que permitiu que o audiovisual se descolasse das matrizes literárias e teatrais e,
sobretudo, se distanciasse do caminho naturalista do cinema norte americano
inaugurado por D.W. Griffith. O experimentalismo e a fronteira com as outras
artes moldaram outra rota para a linguagem cinematográfica na Europa naquele
momento de efervescência artística e política. Caminho este que pavimentaria a
teoria do cinema para que os conceitos sobre o realismo ganhassem teóricos
ávidos por aprofundamento, entre eles Siegfried Kracauer e André Bazin.
Os artistas de vanguarda se afastaram do cinema comercial, não só por causa da
qualidade inferior de muitas adaptações de peças e romances que inundaram a
tela, mas, principalmente, pela convicção de que a história como elemento
principal dos filmes é algo estranho ao meio, uma imposição de fora. Foi uma
revolta contra o filme narrativo como tal, como um esforço empenhado em
sacudir os grilhões da intriga a favor de um cinema puro160.
159
CAVALCANTI, Alberto apud CANOSA, Fabiano, Conversa com Alberto Cavalcanti, In
PELLIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti p 289.
160
KRACAUER, Siegfried, Theory of film - The Rendemption of physical reality p.178 Original
em inglês: The avant-garde artists broke away from the commercialized cinema not only because
of the Inferior quality of the many adaptations from plays and novels that swamped the screen but,
more important, out the conviction that the story as the main element of the feature films is
something alien to the medium, and imposition from without. It was a revolt against the story film
as such, as concerted effort to shake off the fetters of the intrigue in favor of a purified cinema.
86
Kracauer assim como Walter Benjamin, tinha uma relação de
encantamento pela Paris da primeira metade do século XX. O hábito de flanar
pela capital francesa permitia que ele se lançasse na verdadeira “embriaguez das
ruas” (Strassenrausch), o mosaico de raças, de tipos, e a resistência aos efeitos da
americanização inspiravam Kracauer a conhecer mais profundamente o cinema
francês, principalmente os filmes de Rene Clair, criticando-os por “recaírem em
sentimentalismos e afetações artísticas, bem como por sua posição romântica à
mecanização”161.
Foi sob este contexto, que Kracauer, em uma experiência solitária, começa
a formular as suas teorias sobre o cinema como registro das “superficialidades
mecanizadas”, das micro calamidades e das epifanias cotidianas “Se (o cinema)
retratasse coisas como realmente são hoje em dia (escreveu em 1931) os
espectadores se sentiriam constrangidos e começariam a indagar sobre a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
legitimidade da nossa atual estrutura social”162.
O crítico Peter Harcourt, assim descreveu Kracauer em seu exercício da
escrita de A Teoria do filme:
Kracauer é o tipo de homem... que assim decidiu depois de 40 anos vendo filmes,
que precisava colocar para fora e escrever as suas idéias sobre este veículo; assim
foi direto para uma biblioteca e se trancou lá. Lendo muito, pensando
infindavelmente e trabalhando quase sempre sozinho, sempre afastado do barulho
e das conversas sobre cinema e da produção cinematográfica, lenta e
penosamente deu nascimento à sua teoria. Seu livro é cheio de ganhos e perdas
decorrentes deste tipo de desprendimento sincero163.
Para Kracauer o cinema era uma espécie de instrumento científico para o
estudo da realidade, ele não descartava o aparato artístico, mas ao contrário de
Bazin, Kracauer entendia a questão da forma e do conteúdo através de uma
abordagem quase matemática, em uma equação que tinha a realidade, ao mesmo
tempo, como resultado e variável:
161
KRACAUER, Siegfried In SCHWARTZ, Vanessa R. In CHARNEY, Leo e SCHWARTZ,
Vanessa R (org). O cinema e a invenção da vida moderna, p 533.
162
KRACAUER, Siegfried In STAM Robert Introdução da teoria do cinema, p. 81.
163
HACOURT, Peter apud DUDLEY J. Andrew As principais teorias do cinema uma introdução.
Rio de Janeiro (RJ): Editora Jorge Zahar, 1989. p.115.
87
Kracauer considera o cinema criado para explorar alguns níveis ou tipos
particulares de realidade... As propriedades básicas do cinema são inteiramente
fotográficas, sua capacidade de registrar ...o mundo visível e seu movimento...O
mundo existe enquanto fotografado ou fotografável, e este mundo é a matéria
prima do cineasta164.
Desta forma, Kracauer estabeleceu uma hierarquia dentro da linguagem do
cinema, em que a fotografia se configura como quesito da maior importância na
constituição desta linguagem:
Kracauer associa o meio básico da fotografia à matéria prima do cinema. Rotula
todos os outros aspectos do veículo cinema de propriedades “técnicas”
suplementares. Esses luxos do veículo incluem a montagem, o primeiro plano, a
distorção da lente, os efeitos ópticos, e assim por diante, Kracauer torna claro que
as propriedades técnicas estão apenas indiretamente relacionadas ao conteúdo...
Em suma, o assunto do cinema é o mundo fotografável, a realidade que parece
dar-se naturalmente ao fotógrafo165.
O cinema como obra de arte para Kracauer era primordialmente
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
documental, em sua concepção o cinema de ficção era um objeto de puro
entretenimento: “O cinema não realista é como um instrumento científico usado
como brinquedo. Pode ser interessante, excitante e engraçado, mas sempre será
uma diversão”166.
Kracauer dividia as ficções ou filmes de enredo, em três categorias: o
filme teatral, a adaptação e a história inventada, ou episódio. O filme teatral para
ele, estava ligado à tradição do filme de arte no cinema mudo, as adaptações,
como claramente sugere, vêm de uma matriz literária, e a história inventada ou
episódio, transitava entre os dois gêneros anteriores.
Para Kracauer o cinema é um veículo essencialmente visual, em que os
recursos sonoros
são na maioria das vezes uma declaração de fracasso do
realizador em sua imaginação visual ou na escolha do tema.
Cavalcanti também era um defensor da plenitude do cinema silencioso, ele
divide a chegada do som ao cinema em duas etapas, a primeira, que se configurou
em um imenso retrocesso para a autonomia da linguagem do cinema, e uma
164
ANDREW, J. Dudley As principais teorias do cinema uma introdução Editora Jorge Zahar,
Rio de Janeiro RJ pgs.117,118.
165
Ibidem.
166
KRACAUER, Siegfried In ANDREW, J. Dudley As principais teorias do cinema uma
introdução. Editora Jorge Zahar, Rio de Janeiro RJ p. 118.
88
segunda etapa, quando ele e outros cineastas, se lançaram ao desafio de fazer
experimentações sonoras:
O filme sonoro teve de estrear através de uma regressão em direção ao teatro...O
filme mudo havia alcançado, quando da chegada do som, uma tal maturidade, que
a adaptação desse aperfeiçoamento, se tivesse sido tratada com imaginação e um
sentido de expressão cinematográfica, deveria ter acontecido, não apenas muito
mais rapidamente, mas também de uma maneira bem mais completa167.
Contrapondo o documental e os filmes de enredo, Kracauer encontrou um
gênero que classificou como ideal - o enredo encontrado:
Quando você olha por tempo suficientemente longo para a superfície de um rio
ou lago, vai detectar na água determinados padrões que podem ter sido
produzidos por uma brisa ou redemoinho. Os enredos encontrados são da
natureza de tais padrões descobertos ao invés de inventados, são inseparáveis dos
filmes com intenções documentais. Desse modo, são mais capazes de satisfazer a
demanda pelo enredo que “reemerge da tumba do filme sem enredo” 168.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
É nesta categoria que se situa, para Kracauer, Rien que les heures e a
maior parte da cinematografia do cineasta na G.P.O e também a produção do
neorrealismo italiano, sobretudo em sua primeira fase. “Por definição, os enredos
encontrados dependem do caótico e do imprevisível giro da vida que os
movimenta. São abertos, não interpretados e indeterminados.” 169
A propriedade deste cinema em revelar o todo partindo de um único
elemento é notável, é a partir do microcosmo que se amplia o olhar sobre o
mundo, ideia brilhantemente sintetizada por Cavalcanti em sua famosa afirmação
de que: “Não trate de assuntos generalizados: você pode escrever um artigo sobre
os correios, mas deve fazer um filme sobre uma carta”170. Foi desta forma que
Alberto Cavalcanti explicou aos jovens documentaristas dinamarqueses em 14
tópicos, princípios que seriam intensamente explorados por este cinema de
historias encontradas.
167
CAVALCANTI, Alberto O estudo do cinema enquanto meio de expressão (Bianco e Nero,
Roma 1938) texto Originalmente publicado em francês e traduzido por Claudio Valentinetti e
Lorenzo Pellizzari em PELLIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti
p. 197.
168
KRACAUER, Siegfried In ANDREW, J. Dudley As principais teorias do cinema uma
Introdução. Editora Jorge Zahar, Rio de Janeiro RJ p 127. - Grifos do Original.
169
DUDLEY, J. Andrew As principais teorias do cinema uma introdução. Editora Jorge Zahar,
Rio de Janeiro, RJ p. 128.
170
CAVALCANTI, Alberto. Filme e realidade, p. 81.
89
Temos aqui um exemplo claro da relação entre o cinema de Cavalcanti e o
Neorrealismo, podemos comparar a carta que, funcionou como o objeto
catalizador da narrativa de Night Mail, com a bicicleta de Vittório de Sica, usada
de forma magistral para falar da miséria e do desamparo na Itália pós-guerra. As
cartas, assim como a bicicleta, são retiradas de sua condição prosaica, para se
ressignificarem em potentes metonímias visuais em um discurso humanista.
O indivíduo existe nestes filmes para revelar as dimensões humanas de uma
situação ampla e objetiva, para fazer com que nós telespectadores a vejamos,
profunda e apaixonadamente, e não por seu conteúdo de informação, como
poderíamos ver um documentário sobre o mesmo problema. Ladri di bicicletta
(Ladrões de bicicleta) de Vittorio de Sica, torna-nos conscientes de um enorme e
disseminado problema social na Itália depois da guerra, mas ao mesmo tempo
nos revela o problema em todo o seu phatos, ao focalizar um homem em sua
desgraça 171.
É preciso considerar que o cinema russo teve um papel fundamental para o
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
pensamento dos realizadores da primeira metade do século XX, o papel social e
ideológico da arte, o discurso dialético e os recursos estéticos da linguagem do
cinema, sobretudo, a montagem, eram instrumentos narrativos a serviço de um
ideal político. A estética cinematográfica como meio de expressão ideológica iria
inaugurar um novo tempo para a história do cinema a partir das primeiras décadas
do século XX172. E o discurso político-social iria impregnar boa parte do cinema
de invenção.
Quando filmou Rien que les heures, Cavalcanti reconstruiu ficcionalmente
uma narrativa predominantemente documental, era a primeira vez que um diretor
construía uma ponte entre as duas narrativas ao realizar uma ficção sobre o
universo urbano:
O documentário era sinônimo de trabalhos românticos, folclóricos, como os
filmes de Flaherty, Nanook ou Moana, que se passavam em terras distantes.
Ninguém teve a ideia de fazer um documentário sobre o que se passa em volta de
nós. Rien que les heures foi o primeiro173.
171
DUDLEY, J. Andrew As principais teorias do cinema uma introdução. p. 128.
De acordo com várias fontes bibliográficas, Cavalcanti foi amigo próximo de EisensteIn,
quando o diretor russo fugiu para Paris, sob a mira de Stalin, foi Cavalcanti quem primeiro se
mobilizou para buscar apoio ao exílio de Eisenstein na capital francesa.
173
CAVALCANTI, Alberto apud CANOSA, Fabiano, Conversa com Alberto Cavalcanti In
PELLIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti. p. 290.
172
90
O filme foi também pioneiro ao dar protagonismo a personagens oriundos
das camadas mais pobres da sociedade, o homem comum, o marinheiro, a
prostituta, os indigentes ganharam a tela no filme de Cavalcanti.
Desde as origens da ficção, no teatro, passando pela sua consagração magistral
com Shakespeare, prevalecia a ideia de que os heróis só podiam ser nobres ou
ricos. Personagens do povo apareciam apenas como elementos cômicos para
alegrar o ambiente carregado de problemas de gente grã-fina. O filme, e
sobretudo, o filme documentário, mostrou pela primeira vez ao mundo a grande
dignidade dos trabalhadores e provou também que seus dramas são mais reais e
mais profundos do que aqueles desenvolvidos pelas convenções do teatro174.
Rien que les heures foi exibido pela primeira vez em Londres no programa
da Film Society, cineclube cuja parte dos membros era ligada ao Empire
Marketing Board. O longa-metragem de Cavalcanti abriu a sessão antecedendo a
Drifters, de J. Grierson e Encouraçado Potemkin, de Eisenstein. Rien que les
heures teve grande repercussão junto aos ingleses, seu sucesso se expandiu no
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
universo do cinema, elevando a posição de Cavalcanti ao posto de um dos
principais realizadores do seu tempo. Nas palavras de Kracauer: “Cavalcanti com
seu Rien que les heures iniciou a série de sinfonias da cidade que vão do Berlim
de Ruttmann ao filme pós-guerra de Sucksdorff em Estocolmo "People in the
city”.175
Para a pesquisadora inglesa Elizabeth Sussex, uma das maiores estudiosas
da obra de Cavalcanti no mundo:
Rien que les heures, o primeiro filme que ousou mostrar a vida comum do dia a
dia de uma cidade, merece um olhar com o olho do presente. Grande parte das
coisas ditas sobre isso nos ajuda a desvendar a carreira de Cavalcanti como um
todo: o approach dramático, a consciência social contrastando a vida de ricos e
pobres (não era na realidade a prerrogativa da escola de Grierson), o Surrealismo
(como Cavalcanti aponta a avant-garde francesa incluiu todas as tendências
surrealistas da época). Sua reputação sofreu uma negligência inicial porque o seu
impacto foi roubado pelo Berlim de Ruttmann, realizado depois, mas mostrado
primeiro na Inglaterra e na América... De acordo com Rotta (Paul Rotta), por
exemplo, Cavalcanti pode ter falhado nesta ocasião, ao trazer uma completa
174
CAVALCANTI, Alberto. Filme e realidade – O valor social do cinema. p. 219.
KRACAUER, Siegfried. Theory of film - The Rendemption of physical reality. p.180-181.
Original em Inglês: Cavalcanti with his Rien que les heures initiated the serie of city simphonies
rangIng from Ruttmann’s Berlim to Sucksdorff’s postwar film on Stockholm “People In the city.
175
91
realização social, pois o seu propósito ainda segundo Rotta, era mostrar o homem
contra a rua, contra a confusão da cidade 176.
Rien que les heures foi realizado como um “acidente”, depois do
infortúnio de Le Train sans yeaux, como os produtores não pagaram a conta, o
filme foi apreendido pelos estúdios alemães, que não liberaram os negativos para
a copiagem, em outra experiência em que se reverteu o revez em fortuna no
caminho de Cavalcanti:
Assim reuni alguns amigos e resolvemos, devemos fazer um filme custe o que
custar, porque vamos perder este inverno. Meu filme não está saindo e as pessoas
vão pensar o pior.... Não tínhamos estúdio, rodamos tudo nas ruas e
evidentemente montamos muito rápido e surgiu como ficou177.
O conceito de documento social era ainda inédito na época, trazia em seu
cerne uma inspiração diferente do cinema ideológico da escola russa. O objetivo
não era conduzir um discurso ideológico didático, mas construir uma estética que
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
transitasse de forma dialética entre o social e o poético para exprimir as suas
impressões sobre a realidade, uma realidade que exibia frestas de um tecido social
castigado pelo entre-guerras.
Rien que les heures foi exibido pela primeira vez em Paris no Studio des
Ursulines, e apesar dos problemas com a censura, teve uma ótima recepção pelo
público ligado às artes.
A censura cortou um monte de coisas. O filme deu certo junto ao público e o
distribuidor fez algo bastante engraçado, a cada vez que a censura havia cortado
uma passagem, duas ou três ao todo, ele colocou a legenda: cortado pela
censura... A curiosidade crescia e a censura acabou por fechar a sala do Studio des
Ursulines..., Mas a sala pressionou para reprogramar o filme, e era preciso fazêlo, pois só se falava nisso178.
A censura à Rien que les heures não se apresentou apenas como uma
censura moral, embora o filme mostrasse prostitutas e outros personagens
marginais, o que os olhos dos censores parecem não ter admitido era assistir à
Paris ser revelada nua, sem véus, despida de sua veste de glamour que a elegeu
capital do mundo. A censura era uma tentativa de castração da verve social do
176
SUSSEX, Elizabeh Cavalcanti na Inglaterra In CAVALCANTI, Alberto. Filme e realidade, p.
231 – 232 (colchete meu).
177
CAVALCANTI, Alberto. Filme e realidade, p. 232.
178
CAVALCANTI, Alberto apud CANOSA, Fabiano, Conversa com Alberto Cavalcanti, In
PELLIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti, p 290.
92
filme, potencializada pelas imagens documentais da cidade luz. Embora
considerado um documentário por parte dos teóricos (Kracauer classificou o filme
como avant-garde documentar) Rien que les heures se consolidou como uma
ficção do realismo poético francês.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
179
Figura 23: Fotograma Rien que les heures.
Se inaugurava com o filme a proposta pioneira de Cavalcanti na direção
das “realidades inventadas”, do realismo que se abria a intenvenção poética do
autor.
Rien que les heures é uma curiosa mistura de imagens feitas na Paris que os
turistas não vão ver. Um vago fio condutor se desenha de acordo com os planos
recorrentes de uma capenga miserável que se arrasta lentamente ao longo das
aleias e dos caminhos afastados, mas estas imagens surgem sem o mínimo
comentário. São bizarras, deslocadas, cômicas até.... É talvez porque os planos na
sua triste desesperança provocam quase o riso, que ficam fortemente fixados na
memória. Censurou-se Cavalcanti por ter mostrado neste filme uma certa falta de
calor e de sensibilidade em geral. Creio que não se compreendeu exatamente que
sua visão é mais surrealista do que realista, e que como consequência tem a
virtude de escapar da sentimentalidade. Dito isto será preciso esperar oito anos
antes que o documentário inglês ouse produzir um documento social comparável
a esse, mostrando as condições sociais durante a depressão180.
Esta afirmação da pesquisadora Elizabeth Sussex faz uma ponte
interessante entre o cinema de Cavalcanti na França e a continuidade da sua
proposta conceitual no documentarismo inglês. Esta transição representou ao
mesmo tempo uma ruptura e uma continuidade: a ruptura com um novo cinema
179
Fonte: https://filmow.com/rien-que-les-heures-t54517/.
SUSSEX, Elizabeth Cavalcanti na Inglaterra In PELLIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI,
Claudio M. Alberto Cavalcanti, p 323.
180
93
que se estabeleceu na França, de forte apelo comercial, e a continuidade da
proposta de invenção sobre o tecido do real.
Paul Rotha, companheiro de Cavalcanti na G.P.O Film Unit, que
posteriormente se transformou em teórico e crítico respeitado, falou sobre a
importância de Rien que les heures naquele momento em que foi realizado: “Rien
que les heures será lembrado como a representação da passagem do tempo
durante um dia em Paris, os mesmos personagens reaparecendo em diferentes
momentos e em diferentes tarefas. Foi a primeira tentativa de expressar de forma
criativa a vida de uma cidade na tela”181.
As colunas de Siegfried Kracauer no jornal Frankfurter Zeitung realçavam
a tarefa do cinema de “enfrentar o mal-estar social sem pestanejar, promover uma
espécie de pessimismo ativista, mostrar que não vivemos no melhor dos mundos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
possíveis” 182.
Existia naquele momento entre os teóricos o ímpeto de classificar e
canonizar a tarefa do cinema na apreensão da realidade. A proposta ético-realista
de Bazin para o documentário encontrava-se com o pensamento de Kracauer na
medida em que ambos partiam do princípio de que o cinema poderia proporcionar
um bem maior para a sociedade.
O cinema documental na opinião de Kracauer estabelecia uma ponte direta
entre o homem e o mundo, materializando a nossa relação com o extrato social e o
fluir do mundo em seu estado natural e fortuito. Esta possibilidade de apreensão
da natureza em seu estado “bruto”, primeiro pela fotografia e depois pelo cinema,
atraiu a atenção de Kracauer sobre a imagem em movimento, aspectos que para
ele, foram outrora negados ao homem pela ciência e pelas ideologias. O “não
encenado”, próprio do documental, era para Kracauer um aspecto fundamental da
apreensão da vida e da realidade.
181
ROTHA, Paul Documentary film. London: Faber and Faber, 1936. p.86 –Minha tradução a
partir do Original em inglês: Rien que les heures will be remembered as depictIng the passage of
time durIng a day In Paris, the same characters reappearIng at diferent times and at diferents tasks.
It was the first attempt to express creatively the life of a city on the screen.
182
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema, p.80.
94
Apesar de certa permissividade em relação à montagem, Kracauer
criticava o cinema soviético do início do século XX, a montagem dialética de
Eisenstein na opinião dele apostava na forma, no discurso ideológico, mas
afastava o espectador da realidade em sua fluidez natural.
O senso comum consolidou a teoria de que Bazin repugnava alguns
recursos de interferência técnica na apreensão da realidade, mas em recentes
estudos sobre a obra do teórico Francês mostram que de fato convivemos durante
muito tempo com um equívoco de interpretação. Em seu livro O realismo
impossível – André Bazin, o escritor e pesquisador Mario Alves Coutinho
desconstrói a premissa de que Bazin desprezava a intervenção do autor na
representação da realidade:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Ora, apesar de ser o teórico do realismo automático da câmera, se lermos
atentamente todo o Bazin, tudo o que escreveu, o que mais encontramos nos seus
ensaios é exatamente a defesa e a explicação das várias “interferências” possíveis
e necessárias para a constituição e construção deste mesmo realismo no cinema...
Para conseguir filmar o real, segundo Bazin, é preciso tanta interferência ...Como
para filmar qualquer fantasia: o automatismo da câmera pode ser necessário, mas
não é suficiente, pois ele sozinho não capta o real183.
Coutinho cita alguns exemplos que comprovam a sua afirmação:
Alguns exemplos? Escrevendo o clássico ensaio “O realismo cinematográfico e a
escola italiana de libertação” ele afirma que tanto o real como o imaginário
pertencem, em arte, apenas ao artista, a carne e o sangue da realidade não são
mais fáceis de caírem nas malhas da literatura ou do cinema do que as fantasias
mais gratuitas da imaginação184.
Este “pertencimento” do real ao artista surgiria em Bazin em outros textos
seminais, como em De Sica diretor: “... há em arte, no princípio de todo realismo,
um paradoxo estético a ser resolvido. A reprodução fiel da realidade não é
arte”185. Considerando a apurada revisão da obra de Bazin de Coutinho, arrisco
afirmar que alguns filmes de Cavalcanti, tanto na fase francesa (Rien que les
heures), como na G.P.O se enquadravam na perspectiva realista de André Bazin.
183
COUTINHO, Mário Alves. O realismo impossível, 2016. p. 22.
BAZIN, André apud COUTINHO, Mario Alves O realismo imporssível. 2016, p. 22.
185
BAZIN, André De Sica diretor. In O cinema. Tradução de Eloísa de Araújo Ribeiro. São
Paulo(SP): Brasiliense, 1991. p.281.
184
95
Ao analisarmos a atração de Kracauer sobre o Neorrealismo, iremos nos
deparar com alguns pontos chave que delimitaram as bases de teorias
desenvolvidas por Cavalcanti e consolidadas por Grierson em seu tratado sobre o
filme documentário. O Neorrealismo era para ele um cinema sem anteparos que se
interpusesse entre a lente e o real, porque apostou em algumas regras como: o uso
de “não atores”, a captação de histórias comuns, de cotidianos frugais, o que
potencializava o discurso universal destes filmes.
Na “escala Kracauer” de classificação dos filmes em seu grau de relação
com a realidade, o Neorrealismo era por ele classificado na mesma categoria de
Rien que les heures, como um filme de “histórias encontradas”, cujo roteiro brota
da vida em sua fluidez mais verdadeira, em seu estado físico natural186.
Para Kracauer não há uma regra rígida de linguagem que defina o patamar
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
ideal de relação entre cinema e realidade, ele não descarta o uso do experimental,
do poético, desde que estes recursos não afastem o filme do seu propósito de
captar a vida. Segundo Kracauer, ao contrário do teatro, o cinema foi talhado para
captar o inusitado.
Kracauer cita Alberto Cavalcanti e Joris Ivens como autores que partiram
da vanguarda em direção ao realismo, calcado em “histórias encontradas”, em que
o apuro estético era bem-vindo, desde que não se esgotasse em exercício formal.
Neste sentido a escola griersoniana trafegava entre os dois mundos, o
formal e o realista, para Kracauer aqueles eram filmes de realidade mental, que
apostavam mais na força da palavra (voice over) do que nas imagens. Na opinião
de Kracauer os trabalhos que mais se destacavam na produção do G.P.O Film
Unit eram Song of Ceylon (1934), de Basil Wright e Night Mail (1936), de Harry
Watt e Basil Wright187.
Com montagem e produção de Cavalcanti, Night Mail era para Kracauer
uma espécie de road movie noturno sobre o comboio que liga Londres a Glasgow.
“A poesia de Night Mail, que no final chega a emancipar-se do visual para
assumir uma certa independência dos versos de Auden, é ainda a poesia do
186
187
KRACAUER, Siegfried Theory of film.
Ibidem, p.200.
96
comboio dos correios real e da noite que os envolve.” 188 Na opinião de Kracauer,
Night Mail se equilibrava entre o realismo e o formalismo, sendo ao mesmo
tempo um filme “cinemático” (calcado na imaginação do artista) e fortemente
realista, o que era para ele uma característica rara nos documentários até então.
Para o teórico, o documentário tinha de forma geral um universo
específico, restrito, que impedia que ele alcançasse a universalidade do público “a
dramatização da história humana”. Esta universalidade só seria alcançada com o
Neorrealismo; “Os filmes tendem a explorar a vida cotidiana, cuja composição
varia de acordo com o lugar, as pessoas e o tempo. Então, eles nos ajudam não só
a apreciar o ambiente que nos cerca, mas a estendê-lo em todas as direções.
Virtualmente tornam o mundo o nosso lar”189.
O fato de Kracauer identificar esta potencialidade poética e social em
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Night Mail alimenta a tese de que Cavalcanti antecipou em sua atuação na G.P.O
Film Unit o que o cinema consagraria mais tarde no Neorrealismo. Kracauer não
via, por exemplo, este encontro feliz entre o cinemático e o realista nos filmes de
Flaherty,
que
ele
não
considerava
suficientemente
cinemático
(ou
cinematográfico).
Para ele, assim como a fotografia, o cinema deveria quebrar as nossas
relações automáticas, familiares com o mundo para em seguida reconstruí-las,
ressignificando objetos conhecidos sob novos ângulos, ampliando as fronteiras da
realidade convencional e dos olhares pré-concebidos sobre o mundo. Podemos
citar como exemplo desta ressignificação a forma como Cavalcanti representou a
importância e a dimensão da conectividade proporcionada pelos correios ingleses,
tendo as cartas como objetos ressignificados.
A obra de Cavalcanti tem um componente particular que chamava a
atenção de Kracauer sobre o cinema em toda a sua potencialidade de releitura
livre do mundo: o som. Para Kracauer, o som é um elemento de trabalho
privilegiado porque está fora da esfera do racional, levando-nos para camadas
188
ibidem, p.203.
KRACAUER, Sigfried Theory of film p. 304 Tradução minha feita a partir de Original em
inglês: Films tends to explore this everyday life, whose composition varies accordIng to place,
people and time. So they hepl us not only to appreciate our given material environment but to
extend it In all directions. They virtually make the world our home.
189
97
profundas do sensorial. Para ele o som pertence ao mundo das sensações, assim
como as imagens. Esta faceta pode ser enfatizada ainda mais se colocada em
contraposição às imagens, este pensamento vai ao encontro do conceito que
Cavalcanti criou para a sua montagem sonora inovadora, que libertava o som da
sincronicidade imagética.
Nas primeiras duas décadas do século XX, o embate entre o realismo
(naturalista) e as vanguardas, sobretudo o Surrealismo, significou uma primeira
etapa do movimento dialético que iria forjar a linguagem cinematográfica em sua
totalidade. O componente poético veio para permeabilizar a relação entre o
cinema e a realidade através da ambiguidade, seja na proposta realista da
representação da vida (no realismo poético) ou no caminho que radicalmente
rompeu com o naturalismo através do experimental (surrealismo).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Seja na década de 1920 ou nas ressonâncias das vanguardas nos Cinemas
Novos na década de 1960, o componente poético se mostrou fundamental na
construção do discurso fílmico.
Em filmes como Terra em Transe – ou se deseja um exemplo mais radical, em
filmes como Ballet Mécanique e Large d’Or – os procedimentos retóricos se
apresentam sem nenhum tipo de camuflagem, obrigando o espectador a decifrar,
a todo o instante, emblemas e configurações metafóricas impregnados de
ambiguidade Por conseguinte, quer a poesia esteja nos sentidos que ocultam os
objetos do mundo, quer na espessura dos significantes do discurso
cinematográfico, a única coisa de que temos garantida é que ela anda sempre de
mãos dadas com a ambiguidade190.
Neste sentido Rien que les heures teve uma importância seminal na
associação do componente poético ao social. Diferentemente do cinema russo que
o antecedeu, com o seu forte discurso ideológico e político, Rien que les heures
transitou na interface do documentário social e do experimentalismo poético,
unindo duas vertentes até então apartadas na linguagem do cinema,
potencializando signos realistas e poéticos em uma mesma narrativa
Creio, pois, que, nesse confronto de significados que palpita no interior dos
processos conotativos, atuam de um lado, os valores emblemáticos e, de outro, os
valores simbólicos. No caso do cinema, os primeiros se manifestam naquilo que
as imagens cinematográficas preservam da “realidade” dos objetos representados,
190
CANIZAL, Eduardo Peñuela. Cinema e Poesia In XAVIER Ismail (org) O cinema no século,
Rio de Janeiro(RJ): Imago, 1996. p. 361.
98
ao passo que os segundos dependem da expressividade que estes mesmos objetos
ganham nas malhas da linguagem... Nesse labirinto de signos, o cinema se
encontra com a poesia no instante em que o emblematismo da representatividade
mecânica da linguagem fotográfica se transforma no simbolismo da linguagem
fotogênica191.
O cinema se afirmou como arte a partir do momento que ampliou suas
fronteiras além da representação mimética da realidade, deixando realçar a
presença do autor, a visão idiossincrática do artista por trás da câmera foi
fundamental para esta conquista. “Ao transcender a representação mimética
permitida pelo dispositivo mecânico, o cinema se instituiu como arte
autônoma”192.
A ruptura do cinema com as matrizes literárias e teatrais foi fundamental
para a sua afirmação como arte plena. Em 1938, no texto O estudo do cinema
enquanto meio de expressão, publicado na revista Bianco e Nero, aqui já
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
mencionado, Cavalcanti escreveria sobre a necessidade de se alimentar o arsenal
teórico cinematográfico para a consolidação do cinema como arte autônoma:
A bibliografia do filme ainda é muito pobre, e isto apesar da importância do
material, não somente do ponto de vista social, mas também do ponto de vista
estético. O número de ensaios sérios dedicados ao filme permanece ínfimo,
comparado, por exemplo, àqueles dedicados ao teatro. Por outro lado, a critica
cinematográfica é, no seu conjunto, inferior à crítica dramática... O que
permanece irremediavelmente atrasado não é menos vital: é a afirmação da
independência crescente do filme com relação ao romance e ao teatro; é o
estabelecimento definitivo das características do assunto cinematográfico e de sua
necessidade no filme do futuro. E, enfim, as bases da autonomia do filme
enquanto meio de expressão 193.
Esta questão provocou um imenso debate teórico em torno das
propriedades técnicas do cinema, sua capacidade de apreensão da realidade e das
armadilhas que o realismo poderia provocar como aprisionamento da linguagem e
da afirmação do cinema como arte autônoma em relação ao teatro e à literatura.
Para Bazin e Kracauer os anteparos mecânicos de reprodução fotográfica
garantiam a objetividade essencial ao cinema, já para Rudolf Arnheim “os
defeitos do cinema ... ofereciam um trampolim para a excelência artística...O que
191
CANIZAL, Eduardo Peñuela. Cinema e Poesia In XAVIER, Ismail (org) O cinema no século,
p. 362.
192
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema, p.78.
193
CAVALCANTI, Alberto. O estudo do cinema como meio de expressão In PELLIZZARI,
Alberto e VALENTINETTI, Claudio M. p 196 e 197.
99
Arnheim percebia como algo a ser transcendido – a reprodução mecânica, pelo
filme, das aparências fenomênicas – para Bazin e Kracauer era a própria chave
para a sua força”.194
Em seu artigo The evolution of film language Bazin desenvolveu a sua
defesa sobre o triunfo do realismo no cinema, distinguindo os cineastas que
apostam na imagem e os que apostam na realidade:
Os cineastas “da imagem”, em especial os expressionistas alemães e os diretores
soviéticos da montagem, dissecaram a integridade do continuum espaço temporal
do mundo, segmentando-o em fragmentos. Os cineastas “da realidade”, em
contraste, utilizaram a duração do plano-sequência em conjunto com a encenação
em profundidade para criar uma sensação em multiplus planos da realidade em
relevo195.
Se considerarmos apenas esta classificação baziniana acima citada,
Cavalcanti seria um cineasta da imagem, por todas as suas interferências
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
realizadas na montagem. Mas se reavaliarmos os conceitos de Bazin a partir da
releitura proposta por Mário Alves Coutinho, será preciso que se reavalie esta
classificação, porque, como vimos, a intervenção do autor sobre a realidade era
para Bazin, uma premissa inevitável, sendo assim, inerente também aos cineastas
“da realidade”.
2.2.
A chegada do som e o ocaso da avant-garde
A representação do real ganha um novo elemento em 1927 com a chegada
do som, o que representou mais um marco para a elaboração do cinema como
linguagem autônoma.
Ainda no final dos anos 1920, mais precisamente em 1928, cineastas
russos como Eisenstein, Alexandrov e Pudovkim lançaram um manifesto pedindo
a não sincronicidade entre som e imagem como exigência mínima para um cinema
sonoro não submetido ao teatro. O uso do som como elemento autônomo e
criativo seria um desafio ao longo da história do cinema.
Todo o trabalho do cinema clássico e de seus subprodutos, hoje predominantes,
visou, portanto, especializar os elementos sonoros, oferecendo-lhes
194
195
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. p. 93.
BAZIN, André apud STAM, Robert. Introdução á linguagem do cinema, p. 94 – 95.
100
correspondentes na imagem – e, portanto, a garantir, entre o som e a imagem um
vínculo biunívoco, redundante, poderia-se dizer.... Há alguns anos, assiste-se a
um retorno de interesse por formas de cinema, nas quais o som já não seria, ou
nem sempre seria, submetido á imagem, mas sim tratado como um elemento
autônomo do filme.196
Foi nas possibilidades criativas da banda sonora que o Cavalcanti ancorou
a sua nova jornada no cinema britânico. Em seu Filme e Realidade, ele
desenvolveu a sua ideia sobre o uso do som no cinema e os caminhos que esta
relação tomou no cinema clássico.
No cinema tem o ruído um valor puramente abstrato, que é independente do seu
valor real. A imaginação agindo sobre os ouvidos, mostrou, por exemplo, que o
som do vento pode sugerir profundidade ou velocidade, que o ruído de um motor
de avião pode dar a ideia de altura. O filme dramático porém ignorou durante
muito tempo todas estas possibilidades do ruído. Este era usado somente em
estrita sincronicidade197.
No capítulo sobre o som, que Cavalcanti publicou em seu livro testemunho
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Filme e Realidade, o cineasta divide o som nas categorias de palavra e músicaruído. Ele lembra que o cinema sempre foi sonoro, na medida em que nunca foi
silencioso. O som sempre foi um instrumento de apoio ao espetáculo da imagem
Para um estudo razoável do filme sonoro é preciso voltar, ainda uma vez, aos
primeiros tempos do cinema. A história do som no cinema começa com a
invenção deste último. Em nenhum período de sua evolução, foi costume mostrar
filmes ao público sem um acompanhamento sonoro qualquer e assim podemos
dizer que o filme realmente silencioso nunca existiu...Desde o início, e muito
antes da existência das salas de projeção especializadas...se preocupavam em
achar meios de justapor esse acompanhamento sonoro que completasse a
ilusão198.
No mesmo ensaio, Cavalcanti comenta a incredibilidade da classe em
relação ao som, lamenta também os erros cometidos em busca de uma
sincronicidade absoluta, negligenciando a potencialidade experimental do som
como elemento criativo, e valorizando apenas, a capacidade da banda sonora em
realçar os aspectos realistas dos filmes.
Teoricamente, a adição da banda sonora ao filme deveria simplificar o problema
do som no cinema. No entanto, a sua história narra um lento progresso, alcançado
com imenso desperdício de tempo, dinheiro e energia. Muitos dos diretores do
filme mudo, inclusive alguns dos mais inteligentes, não acreditavam que o filme
196
AUMONT, Jacques. A estética do filme. Campinas (SP): Papirus, 1995. p. 49.
CAVALCANTI. Alberto. Filme e realidade, p.153-154.
198
Ibidem, p. 135.
197
101
sonoro fosse aceito definitivamente. René Clair, em entrevista à revista “Pour
Vous”, declarou terminantemente: “O filme sonoro não durará seis meses” ... A
banda sonora era para estes estetas um novo brinquedo, do qual o público logo se
cansaria... Enganaram-se num ponto: o público não se cansou. Mas noutro ponto
estavam certos: a crítica à maneira como eles estavam sendo usados. O público e
os produtores agarraram-se à única coisa que lhes pareceu nova na recente
invenção, que era a palavra sincronizada. E os filmes começaram a falar louca e
abundantemente199.
O uso da palavra não sincronizada, defendido por Cavalcanti, não chegou
a se consolidar entre os filmes de ficção, se restringindo na maioria das vezes aos
documentários.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Certos narradores perceberam intuitivamente que a palavra não sincronizada
deveria acrescentar ideias à imagem e não a descrever. O poema de W.H.Auden,
para Night Mail, os versos de Pare Lorentz para The River, e a prosa ritmanda de
Ernest Hemingway para Spanish Earth valem como os melhores exemplos de
comentários líricos e mostram o valor da palavra não sincronizada200
201
Figura 24: Fotograma de O Rio (The river) (1951) de Jean Renoir.
A Paris das primeiras décadas do século XX vivia ávida por um cinema
que refletisse a contemporaneidade: “O espetáculo e a narrativa estavam
inseparavelmente ligados na florescente cultura de massa de Paris: o realismo do
espetáculo, na verdade, quase sempre dependia da familiaridade com as narrativas
supostamente reais dos jornais” 202.
199
Ibidem, p.141.
CAVALCANTI, Alberto. Filme e Realidade, p. 142 – Cavalcanti se refere aos filmes.
The River (1951) direção: Jean Renoir e The Spanish Earth (1937) dir: Joris Ivens.
201
Fonte da imagem: https://br.pinterest.com/pin/177751516512380656/?lp=true.
202
HANSEN, Mirian Bratu. Estados Unidos Paris Alpes Krakauer (e Benjamin) sobre o cinema e
a modernidade In O cinema e a invenção da vida moderna CHARNEY, Leo e SCHWARTZ R,.
(org) p. 412.
200
102
Apesar desta demanda pela representação realista daquela Paris, a
atmosfera que cercava o cinema na França na época das vanguardas propiciava
sua relação profunda com as outras artes, integrando diferentes linguagens no
processo criativo da imagem em movimento “De nossa parte, encontrávamos
Derain, Léger, Mac Orlan, o próprio pai Gide, que se interessava muito pelo que
fazíamos. Havia também uma violência, uma agressividade, sobretudo nos
surrealistas,
que
se
perdeu.
Agora,
ninguém
protesta,
aceita-se
tudo
passivamente203”, disse Cavalcanti sobre os primeiros anos de explosão da avantgarde.
Depois de Rien que les heures Cavalcanti realizou outros filmes
importantes na Paris da vanguarda, entre eles En Rade (1927) - que foi mais tarde
adaptado para a realidade brasileira em O canto do Mar - Yvette (1927), baseado
em uma novela de Guy de Maupassant, e La P’tite Lilie (1927) Cavalcanti diria
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
sobre sua amiga Catherine Hessling:
Era uma mulher muito bonita, elegante, uma atriz fenomenal como já não se faz
mais, creio... Eram mulheres que não eram de sua época. Tinham qualquer coisa
de atemporal, de misterioso, que sempre me fascinou. Creio que fiz com
Catherine os meus filmes franceses menos ruins, Em Rade e La P’tite Lilie. Era
uma comediante inquieta, obcecada por Chaplin, era difícil segurá-la204.
Assim como Rien que les heures, En Rade também sofreu com a censura,
apesar de algumas críticas elogiosas o filme foi recebido negativamente de forma
geral, sofreu cortes e foi considerado por alguns críticos um filme doentio. Todo
este clima ,alguma inércia e a falta de dinheiro em seu lançamento resultaram em
um mau desempenho comercial.
203
CAVALCANTI, Alberto apud BEYLIE Claude, LEMARCHAND Didier e MICHAUD
Christian. Entrevista com Alberto Cavalcanti em Ecran, 30, de novembro de 1974 In Alberto
Cavalcanti PELLIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, M. Claudio, p.301.
204
Ibidem, p.303,
103
205
Figura 25: Fotograma de En Rade (1927) Alberto Cavalcanti.
Cavalcanti narrou detalhes da realização:206 “Os interpretes para o filme
eram excelentes, contava-se com a colaboração da Nathalie Lissenko no papel da
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
mãe, Georges Chalia no de rapazinho, Catherine Hessling fazendo a mocinha e
Philippe Heriat o papel do idiota.”
Catherine tinha acabado de estrelar Nana, de Jean Renoir, filme que
resultou em um desastre de crítica, muito pelo desempenho da atriz, o que
Cavalcanti considerou uma imensa injustiça:
Catherine Hessling possuía um talento invulgar, com uma grande força interior,
não se exibindo diante da câmera como uma vedete qualquer, mas como uma
atriz que sabia e podia ia às profundezas do personagem, desde que orientada e
auxiliada por um diretor capaz. Foi isso que aconteceu em En Rade. Creio que o
seu desastre em Nana foi mais uma consequência do desvairio em que se meteu
Jean Renoir, levando ao máximo, sem auto-crítica, o seu romance com a
mulher207.
205
Fonte:
http://malcolmlowryatthe19thhole.blogspot.com.br/2009/07/cavalcantis-en-rade1927.html.
206
BORBA FILHO, Hermilo, memórias Cavalcanti acervo Sergio Caldieri sem número nas
páginas.
207
Ibiden, sem numeração nas páginas.
104
208
Figura 26: Still de Catherine Hessling no set de En Rade
Este foi o momento em que Cavalcanti se aproximou intimamente da
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
família Renoir, como ele narrou em suas memórias:
A partir desse período, Cavalcanti tornou-se mais íntimo da casa, onde se
respirava uma atmosfera formidável e foi lá que o aspecto da pintura se esclareceu
diante dos seus olhos e da sua inteligência de maneira completa e absoluta209.
Cavalcanti narra também como pressentiu neste momento que um novo
cinema estava surgindo, que a sua geração, apostando nos experimentos de
maneira muitas vezes intuitiva, estava preparando o território para a solidificação
de um cinema potencialmente comercial e industrial.
Afinal de contas o cinema daquele tempo apenas se iniciava num caminho de
experiências, os cineastas preparando o terreno para os grandes filmes que
haveriam de surgir, com todos os recursos da técnica, da propaganda, da
interpretação baseada na “naturalidade artística”.210.
O insucesso de Hessling e a confiança depositada na atriz por Cavalcanti
acabou por associar ambos em um mesmo naufrágio crítico.
O fato é que qualquer pessoa de coragem-menor se haveria afastado dela sem
pesquisar as causas do seu insucesso ou a frieza com que recebiam críticos e
espectadores, mas a crença de Cavalcanti naquela mulherzinha fabulosa era
realmente sincera. Não se pode negar, é claro, que essa crença na refugiada belga
prejudicou um bocado a sua carreira como diretor, pois pode perceber que
208
Fonte:
http://malcolmlowryatthe19thhole.blogspot.com.br/2009/07/cavalcantis-en-rade1927.html.
209
BORBA, Filho Hermilo memórias acervo Caldieri.
210
Ibidem.
105
aquelas pessoas que não acreditavam na Hessling, por tabela, também, não
acreditariam em Cavalcanti e os dois se juntavam na boca dos descrentes e dos
botocudos habitantes de qualquer lugar do mundo211.
Nas dezenas de artigos que Bazin dedicou ao cinema de Jean Renoir, ele
afirmou, mais de uma vez, que o período não sonoro do cineasta francês foi
completamente guiado pela presença e influência de Catherine Hessling212. Bazin
exalta em seus artigos a força de Hessling, segundo ele: “uma mulher
extraordinária, de corpo imperfeito, mas estrategicamente articulado, talvez pela
bagagem que trouxera como musa do impressionismo, uma curiosa criatura,
mecânica e vívida, etérea e sensual”. 213
A má estratégia de lançamento de En Rade por parte dos produtores
também ajudou na não visibilidade do filme. Cavalcanti considerou um erro em
potencial o lançamento do longa-metragem no Vieux Colombier, em detrimento
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
do Estúdio das Ursulinas, sala consagrada no meio cinematográfico e no circuito
de exibição comercial de Paris. 214
Apesar do insucesso de En Rade, Cavalcanti ainda iria participar de mais
tres produções da Neo Film, duas delas estreladas por C. Hessling, Yvette (1927) e
La P’Tite Lili (1927)215, que Cavalcanti apresentou com sucesso no Festival de
Baden-Baden, em uma sessão que contou com a música de Darius Milhaud
executada ao vivo pelo músico. Cavalcanti destaca em suas memórias a viagem de
carro que fez para o Festival, na companhia de André Gide, de quem ficou amigo.
Nesta viagem conviveu muito com Gide e pôde de perto admirar a lucidez do seu
espírito completamente ausente de preconceitos, com uma qualidade peculiar às
pessoas de talento real: ausência de pedantismo e uma simplicidade
encantadora216.
211
Ibidem.
BAZIN, André What is Cinema? Volume 1 (1967) and Volume 2 Los Angeles: University of
California
Press,
1971.
Trecho
citado
na
página:http://dreamsandvisions.squarespace.com/journal/2016/8/30/andre-Bazin-on-catherInehessling-and-renoirs-silent-films.html.
213
Ibidem.
214
BORBA FILHO, Hermilo Uma Vida In PELIZZARI, Lorenzo In PELIZZARI, Lorenzo e
VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti, 1995, p. 119.
215
Há divergências sobre o título do filme, no IMDB e em outras fontes ele apresenta como La
P’Tite Lili, e nas memórias de Cavalcanti é sempre citado como La P’Tite Lilie.
216
BORBA FILHO, Hermilo Uma Vida In PELIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio M.
Alberto Cavalcanti, 1995, p. 123.
212
106
La P’Tite Lili é uma transposição para a tela de uma famosa canção
francesa, La Barrièri, de Eugène Gavel e F. L. Benech. O filme propõe uma série
de experimentos, como o uso de uma estopa como filtro para simular neblina,
algumas trucagens a la Méliès, e gags chaplinianas. A trágica história de uma
costureira que se prostitui e acaba assassinada, vivida por Catherine Hessling, tem
Jean Renoir no elenco. Cavalcanti optou por assumir a estrutura musical da matriz
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
original na tela, e há a inserção de partituras em vários momentos do roteiro.
217
Figura 27: Catherine Hessling em Fotograma de La P'Tite Lili Dir: Alberto Cavalcanti.
A ideia de La P’Tite Lili nasceu durante as filmagens de Yvette, um
pequeno “divertimento”, criado pelo mal tempo durantes as filmagens:
Quando estavam rodando os exteriores de Yvette, nos estúdios de Billancourt, o
tempo tornou-se ruim e nada poderiam fazer até que aquilo passasse. Então,
apenas para se divertirem, procuraram fazer um filme curto, onde o tempo
cinzento fosse um dos fatores positivos e não negativos...O filme foi rodado em
praticamente quatro dias, custando aos produtores a quantia de sete mil e
quinhentos francos. Foi um sucesso brutal. Sucesso de prestígio e
comercial...Talvez tenha sido La P’tite Lili o filme que apresentou maior renda
até hoje na história do cinema em proporção ao seu custo218.
Yvette foi considerado por Cavalcanti como um filme menor em sua
trajetória, de cunho estritamente comercial. A livre adaptação da obra homônima
de Guy de Maupassant, a fita foi incompreendida em todos os meios: “Com esta
obra aconteceu uma coisa muito curiosa em relação ao público, os intelectuais
217
218
Fonte: fotograma captado do YouTube https://www.youtube.com/watch?v=eUpZBCpyGTo
BORBA FILHO, Hermilo. Memórias acervo Sergio Caldieri páginas não numeradas.
107
achavam que o filme era muito comercial, enquanto os comerciantes
consideravam o filme demasiadamente intelectual”.219
220
Figura 28: Catherine Hessling em Yvette (1927).
Abrirei aqui um parêntesis para contar como, em suas memórias, quando
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
fala sobre a experiência de realizar La P’Tite Lili, Cavalcanti conta uma história
interessante, de como conheceu o escritor James Joyce:
Foi depois do lançamento de La P’Tite Lili que James Joyce, gostando do filme,
mandou convidar Cavalcanti para ir a sua casa. Ao contrário da impressão que
teve de Gide, ficou muito decepcionado. Era um apartamento à margem esquerda
do Sena, a casa sempre muito cheia, quase só de irlandeses e de pessoas
desconhecidas. Joyce estava quase cego, e durante horas a fio, não fez outra coisa
senão cantar, bastante mal, canções irlandesas, e também mal acompanhando-se
ao piano. Voltou ainda várias vezes, com esperança de compreender melhor
Joyce, o que nunca conseguiu221.
É interessante pensar como alguns aspectos fundamentais abordados por
Cavalcanti em Rien que les heures foram negligenciados em sua filmografia
posterior. Com exceção de En Rade, que manteve o compromisso com o realismo,
retratando a vida portuária e seu universo marginal, os demais filmes realizados
pelo brasileiro em sua fase francesa não tiveram o mesmo aspecto de documento
social que ele imprimiu em Rien que les heures.
Propostas menos comprometidas com o discurso social, como foi o caso de
Yvette e La P’Tite Lili, e produções de cunho exclusivamente comercial, como
219
ibidem.
Fonte: https://alchetron.com/Catherine-Hessling.
221
BORBA FILHO, Hermilo Uma Vida In PELIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio M.
Alberto Cavalcanti, 1995, p.126.
220
108
foram as da Paramount, contribuíram para que estes filmes não tivessem o caráter
de ruptura que marcou o trabalho de Cavalcanti.
Após a realização dos dois filmes com Catherine Hessling, as relações
entre o brasileiro e Jean Renoir estavam em oscilação, como de costume, entre
altos e baixos. Em suas memórias, Cavalcanti conta que havia oferecido a Renoir
a realização de Tire au flanc (1928), a partir de uma adaptação que ambos haviam
feito, com a colaboração de Claude Heymann e Andre Cerf a partir de um
vaudeville de Andre Mouezy-Eon e André Sylvane222. A crise entre os cineastas é
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
assim tratada nas memórias de Cavalcanti:
Pouco tempo depois, Renoir, com finanças esgotadas, afastou-se. Foi a primeira
desilusão na amizade com aquele homem tão cheio de arestas, talvez pela
concepção besta, ainda hoje em uso por certos excêntricos, de que um artista é
um homem anormal e a quem se permite uma série de pequenas tratantadas
proibidas aos homens comuns...O que magoava Renoir, no fundo, era o fato do
diretor brasileiro ser amicíssimo de Catherine Hessling, de quem, ele se havia
divorciado para ligar-se a Dido Freire, filha daquele consul tão camarada de
Liverpool223.
Em 1927, surgiu uma grande oportunidade, em mais um episódio
surpreendente na trajetória de Cavalcanti. O diretor francês Maurice Torneur, que
havia se exilado nos Estados Unidos durante a primeira guerra, desde 1914, havia
recebido o convite da produtora Lutèce-Films para dirigir Le Capitaine Fracasse,
uma adaptação da novela homônima de Theóphile Gautier. Porém, a população
francesa, revoltada com a “fuga” de Torneur para a América durante a guerra, fez
tanto alvoroço que a produtora desfez o convite (Tourneur iria para a Alemanha e
realizaria a primeira produção internacional com Marlene Dietrich).224
Cavalcanti, assim foi convidado para assumir o lugar de Maurice Tourneur na
direção de Le Capitaine Fracasse... Para ele o filme revestia-se de uma grande
importância, pois havia principalmente a possibilidade de reunir um elenco com
atores de primeira grandeza... Para o principal papel feminino havia contratado
uma jovem holandesa que muito aplaudira num filme de Fritz Lang: Lien
Deyers225.
222
Catálogo Mostra Alberto Cavalcanti um brasileiro cineasta do mundo – Rio de Janeiro (RJ):
SESC 2005, p. 30.
223
BORBA FILHO, Hermilo. Memórias acervo Sergio Caldieri, sem numeração nas páginas.
224
Ibidem.
225
Ibidem, O filme de Fritz Lang ao qual Cavalcanti se refere é Spione (1928) – fonte: IMDB
109
Durante as filmagens de Le Capitaine Fracasse, surgiu um personagem
que seria revolucionário para o cinema: o som. Cavalcanti insistiu com os
produtores que sincronizassem pelo menos algumas sequências do filme, mas: “os
produtores, porém, como muita gente boa daquela época, não acreditavam que o
som viesse para ficar e recusaram servir de pioneiros numa batalha que pensaram
estar perdida, antes de começada”. 226
Capitão Fracasso é um épico de aventura, com ótimas sequências de ação,
como aos 01h04’, em que a trupe tenta invadir o castelo para salvar a mocinha. O
filme tem um roteiro clássico, com bons desempenhos do elenco e uma direção
eficiente de Cavalcanti. Com muitos cenários, figurantes e produção de objetos e
figurinos de época, o filme talvez se tornasse um grande sucesso se tivesse se
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
rendido à sonorização.
227
Figura 29: Fotograma com cena de ação de Capitão Fracasso (1928).
No início da década de 1930, com a chegada do cinema falado, a
vanguarda começava a perder força em Paris, e Cavalcanti iniciava a sua relação
com a Paramount, que impulsionaria a sua mudança para a Inglaterra.
...Sempre fui sedento pela experimentação, por novas técnicas. Naquele
momento eu estava contratado na Paramount, onde fazia um pouco de tudo,
comédias de boulevard, versões francesas de filmes estrangeiros. Oh! Não era
absolutamente grande arte, eu deveria ter reprimido minhas ambições...Pude
226
227
BORBA FILHO Hermilo memórias acervo Sergio Caldieri, sem numeração nas páginas.
Fonte: fotograma retirado do YouTube https://www.youtube.com/watch?v=UiiyljJD9uw
110
ainda fazer algumas pesquisas sobre o som...depois cansei, argumentei que
estava doente, apresentei um falso atestado médico e parti para Londres228.
O cineasta ainda iria dirigir alguns trabalhos na França, fora do aparato da
Paramount, como os longas-metragens Au pays du scalp (1931), Le truc du
Brésilien (1932) – este com algum sucesso de público e crítica, e que no Brasil
recebeu o título de O tio da América, já que o original tinha uma conotação
negativa - Coralie et cie (1933) e Le Mari Garçon (1933). Mas nenhuma delas
alcançou grande repercussão e nem expressou maiores ambições artísticas.
Em suas memórias, o cineasta traduz o sentimento que o impulsionou a
buscar novos rumos: “Abandonando aquele desgraçado emprego de dirigir coisas
alheias, o que lhe dava uma verdadeira sensação de prostituição artística...Daquela
aventura restava, no entanto, como em toda experiência, um melhor
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
aprimoramento da técnica”.229
228
CAVALCANTI, Alberto apud BEILYE, Claude; LEMARCHAND, Didier; MICHAUD
Entrevista com Alberto Cavalcanti (em Ecran, 30 de novembro de 1974, Paris) In PELIZZARI,
Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti, 1995, p. 301-302.
229
BORBA FILHO, Hermilo Uma Vida In PELIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio M.
Alberto Cavalcanti, 1995, p. 135.
3.
A conquista da Inglaterra e a invenção da realidade
Não esqueçam que o valor de um filme repousa sobre três
aspectos: social, poético e técnico
Alberto Cavalcanti230
I look on cinema as a pulpit
John Grierson231
Os anos 1920 e 1930 marcaram, além de uma legitimação de teorias
estéticas e de estratégias comerciais para o cinema, a consolidação de uma nova
vertente para o potencial discursivo da imagem em movimento: a propaganda.
Como vimos no capítulo anterior, desde os primórdios do cinema nos EUA o
governo norte americano já havia percebido esta vertente, usando-a para “ensinar”
aos imigrantes europeus as regras de comportamento e jurídicas do país, em uma
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
espécie de cartilha do “american way of life” 232.
Na Europa o cinema russo também entendera desde a sua aurora a força da
narrativa cinematográfica como discurso ideológico, se tornando um “bem
valioso” desejado pelo Estado.
A Itália fascista e, sobretudo a Alemanha nazista também teriam no
cinema uma poderosa arma ideológica, foi assim que as ideias de Hitler ganharam
forma através da diretora Leni Riefenstahl “Assim que Hitler chegou ao poder em
1933, seu ministro de Esclarecimento Popular e Propaganda de trinta e seis anos,
Joseph Goebbels, começou a tomar medidas para ter todas as mídias sob seu
controle ... Ele gradualmente se encarregou de todos os aspectos da produção,
distribuição e exibição”233.
230
CAVALCANTI, Alberto. Notas aos jovens documentaristas (DF Bulletin, Copenhague, 1948)
In PELLIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Cladio M. Alberto Cavalcanti, p. 210.
231
BARNOUW, Erick. Documentary- the history of non-fiction film London: Oxford University
Press, 1983, p.85. – tradução: “Eu vejo o cinema como um púlpito”.
232
GUNNING, Tom. O retrato do corpo humano, a fotografia, os detetives e os primórdios do
cinema In CHARNEY, Leo e SCHWARTZ, Vanessa R (org). O cinema e a invenção da vida
moderna, p. 44.
233
BARNOUW, Erick. Documentary- the history of non-fiction film. p. 100 Original em inglês: As
soon as Hitler came to power in 1933, his thirty-six-year-old Minister of Popular Enlightenment
and Propaganda, Joseph Goebbels, began steps to brIng all mídia under his control...He gradually
took charge of all aspects of production, distribution, and exhibition.
112
Em agradecimento aos investimentos e apoio oferecidos pelo estado
nazista Riefenstahl retribuiu: “O Führer elevou o cinema a uma posição de tal
preeminência que atesta a sua consciência profética do poder sugestivo não
realizado desta forma de arte”234.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
235
Figura 30: A excelência estética de O triunfo da Vontade (1934) de Leni Riefensthal.
Percebendo o potencial de propaganda da imagem em movimento, outros
países europeus criaram departamentos de filmes ligados ao Estado e às suas
instituições, que se especializaram na produção de filmes, um destes países foi a
Inglaterra. Os objetivos eram amplos, desde educar, orientar sobre regras de
comportamento, até propagar de forma didática como funcionavam alguns órgãos
e serviços estatais.
Para John Grierson o atributo primordial do cinema era educar, filho de
professores, as ideias deste escocês sobre uma nova educação para a reconstrução
de uma nova relação com o estado vieram principalmente do teórico Walter
Lippimann, que propôs uma reflexão sobre o tema no livro Public Opinion, de
1922. Nas palavras de Grierson “O cineasta documental, dramatizando questões e
234
Ibidem, p. 103. Original em Inglês: The Führer has raised film-makIng to a position of such
pre-emInence testifies to his prophetic awareness of the unrealized suggestive power of this art
form.
235
Fonte da Imagem: http://www.cineset.com.br/o-triunfo-da-vontade-de-leni-riefenstahl/.
113
suas implicações de forma significativa, poderia levar o cidadão através de regiões
selvagens”236.
Grierson teve contato com o cinema de propaganda durante os três anos
que passou nos Estados Unidos na primeira metade da década de 1920. Junto de
Grierson estava William Crawford, diretor então de uma das maiores agências de
propaganda do Reino Unido, que viria também se tornar um membro do EMB –
Empire Marketing Board Film Unit, unidade de cinema dentro do departamento
de propaganda estatal do governo britânico.
O desejo de Grierson de criar um novo cinema documental comprometido
com a formação educacional do moderno cidadão britânico era consonante com a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
estratégia do Estado em estabelecer um sólido departamento de propaganda.
O EMB (Empire Marketing Board) nasceu em um momento de crescente
conscientização sobre os valores publicitários dos filmes. A maior parte desta
atenção se relacionou com o desejo de aumentar o número de filmes britânicos
dentro do Império como um meio de anunciar produtos britânicos e imperiais ...
O EMB foi o ponto de entrada na Grã-Bretanha para muitas idéias sobre
publicidade e relações públicas importadas da Estados Unidos por homens como
Grierson 237.
Em 1927, Grierson procurou Sir Stephen Tallents, diretor do Empire
Marketing Board, o órgão tinha na época como diretor do departamento de filmes
o escritor Rudyard Kipling, que acabara de finalizar a ficção One Family, que
além de consumir parte do orçamento anual do EMB resultara em um desastre de
bilheteria.
Tallents colocou Grierson em contato com Arthur M. Samuel, secretário
do tesouro britânico e Grierson convenceu Samuel de que o EMB deveria
financiar um filme sobre a pesca do arenque. E foi assim que, com um orçamento
de 2.500 libras, Grierson realizou o seu primeiro trabalho como diretor e produtor,
236
BARNOUW. Erick. Documentary – a history of non fiction film p. 85 Original em Inglês: The
documentary filmmaker, dramatizIng issues and their implications In a meanIngful way, could
lead the citizen through the wilderness.
237
SWANN, Paul. The British Documentary Film Movement 1926 – 1946. Cambridge: Cambridge
University Press, 1989. p.25 Original em inglês: The EMB (Empire Marketing Board) was born at
a time of growing awareness of the publicity values of films. Most of this attention related to the
desire to increase the number of British films within the Empire as a means of advertising British
and Empire products... The EMB was the point of entry into BritaIn for many ideas about publicity
and public relations imported from the United States by men like Grierson.
114
o documentário Drifters, que seria mais tarde, em 1929, lançado no London Film
Society (Grierson só realizaria outro filme como diretor em 1934, Granton
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Trawler, que contou com Cavalcanti na criação do som).
238
Figura 31: Cartaz anunciando a exibição de Drifters em 02 de dezembro de 1929.
238
Fonte imagem: http://archives.wordpress.stir.ac.uk/2014/03/05/drifters-at-the-hippodromesilent-film-festival/.
115
Com Drifters, Grierson “inaugura” por sua vez o documentário na GrãBretanha, um alicerce e também um impulso para tradição realista do cinema
britânico.
Filme mudo, Drifters moldou uma estrutura exemplar para os documentários
feitos posteriormente no departamento de cinema da EMB: o processo de
produção (um realizador sem experiência é assistido por um operador de câmera
profissional), e a atitude do filme relativamente aos trabalhadores (pescadores
projetados como figuras heroicas que lutam sem queixumes contra a agruras da
vida)239.
Grierson diria sobre o processo que culminou no filme, que tratava-se de
“convencer os homens do dinheiro de que uma frota pesqueira industrializada
podia ser tão forte para o olhar como as velas negras dos sentimentos...”.240
Graças a atuação dos cineclubes, os filmes realizados sem grandes aparatos
comerciais ou que eram impedidos pela censura ganhavam espaço e potencial para
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
despertar discussões e reflexões.
O London Film Society foi um dos pioneiros entre o movimento
cineclubista na Europa, criado em 1925, o cineclube exibia programas temáticos
com filmes em sequência. Em 10 de novembro de 1929 a programação exibiu O
Encouraçado Potenkim seguido de Drifters. O filme de Eisenstein fora proibido
nos cinemas da Inglaterra, mas como o cineclube era privado, a sua exibição não
sofreu qualquer tipo de censura. Potenkim foi um enorme sucesso entre os
membros do grupo, que também se impressionaram com Drifters. O êxito do
filme de Grierson consolidou seu prestígio e ampliou a sua zona de influência
junto às autoridades que mantinham o EMB. Este movimento acabou por levar
Grierson ao cargo de gestor da unidade.
O poder de articulação de Grierson e a sua experência bem sucedida como
diretor em Drifters convenceu o Governo de que a Film Unit do EMB deveria se
firmar permanentemente como produtora de filmes, o que nos permite afirmar que
Drifters pode ser considerado a pedra fundamental do documentarismo inglês.
239
BOTELHO, João e VIEGASE, Manuela (org e autoria). O cinema realista britânico – Journey
to a Legend and Back . Lisboa: Cinemateca Nacional 1978 p. 14 – Catálogo da Mostra que
aconteceu na Cinemateca Nacional entre 27 de novembro e 15 de dezembro de 1978. Infelizmente
no catálogo que tive acesso não consta os nomes dos autores dos textos.
240
ibidem.
116
Do cinema russo, Grierson se apropriou da representação do trabalhador como
herói e também do uso da montagem para dramatizar o material realista. De
Robert Flaherty, Grierson tinha aprendido o valor do trabalho de filmagem
observacional simples que capturava com frieza a essência das coisas em um
gesto ou uma expressão facial, e a possibilidade de encontrar romance no
documental241.
O investimento do governo inglês no audiovisual veio também de uma
tentativa de ganhar terreno em seu mercado interno de exibição. Já na década de
1920 o cinema americano começava a ganhar uma parcela significativa do
mercado exibidor na Inglaterra, e na década de 1930 os filmes produzidos nos
EUA já dominavam as estatísticas. Apesar das leis de cota de tela para os curtas
metragens, a produção inglesa de longas de ficção ainda era insipiente.
Além de seu talento como produtor, Grierson logo revelaria a todos a sua
imensa capacidade diplomática, que fora fundamental para o crescimento e a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
consolidação do G.P.O Film Unit, que ocuparia o lugar do EMB na produção de
filmes institucionais em 1934.
Calcado em ideias marxistas, que Grierson preferia chamar de socialistas,
e moldado para ser didático, se instaurava assim o cinema documental na
Inglaterra. Como bem lembrou Barnouw, a cartela final de Drifters sugere um
traço de Grierson que marcaria a sua atuação no G.P.O Film Unit, o talento para
agradar os financiadores do cinema que ele desejava realizar, sem trair as
premissas artísticas que acreditava: “Grierson deve ter tido o Empire Marketing
Board em mente na cartela final: "Então, para os confins da terra, vai a colheita do
mar”. 242
As motivações artísticas de Grierson eram sólidas, mas desempenhavam
quase sempre papel coadjuvante diante dos seus objetivos como produtor. Em
sintonia com o seu tempo e com todo o contexto histórico e político que marcava
a passagem da década de 1920 para a de 1930, Grierson não poderia ignorar o
241
BARNOUW, Erick. Documentary a history of the non-fiction film, p.33. Original em Inglês
From the Russian cinema, Grierson had appropriated the notion of the workIngman as hero and
also the use of montage to dramatize realistic material. From Robert Flaherty, Grierson had
learned the value of simple observational camerawork that cold capture the essence of things in a
gesture or a facial expression. And the possibility fIndIng romance In realistic material.
242
BARNOUW, Erick. Documentary a history of the non-fiction film - Original em inglês - p. 88 –
tradução: Grierson must have had the Empire MarketIng Board In mInd In his fInal subtitle: “So
to the ends of the earth goes the harvest of the sea.
117
cenário artístico que o rodeava, onde o interesse pela classe trabalhadora ganhava
cada vez mais terreno. A depressão, o desemprego e a miséria motivaram a
mobilização em massa dos trabalhadores, o que atraiu completamente a atenção
da intelectualidade britânica, que já estava consideravelmente impactada pela
Revolução Russa.
Desenvolveu-se o movimento Mass Observation... formou-se o Departamento de
investigação do Trabalho, ligado ao Partido Comunista... As preocupações de
John Grierson (1898 – 1972) pertencem a estes tempos...Não particularmente
interessado pelo cinema como forma de expressão artística, Grierson desenvolveu
um trabalho importante, decisivo no cinema britânico, pelo modo como teorizou e
pôs em prática uma atitude nova relativamente à função do cinema... E enquanto
Grierson se interessava pelo poder de intervenção social do cinema, os mesmos e
outros interesses estavam a fazer surgir através do mundo, aquilo que se
convencionou chamar documentário243.
Através do prestígio conquistado, Grierson deu início ao trabalho de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
transformar o EMB em um celeiro para o documentarismo britânico, e o primeiro
passo era recrutar jovens entusiastas das ideias que ele gostaria de propagar, entre
elas, a de adaptar as teorias marxistas do cinema russo para a social-democracia.
Um cinema que dialogasse com as premissas didáticas defendidas por ele,
somadas aos interesses do império britânico, que financiaria a empreitada.
“Pensamos em como uma apreensão dramática da cena moderna poderia resolver
o problema, e nos voltamos para os novos instrumentos de grande alcance, o rádio
e cinema, como instrumentos necessários, tanto na prática do governo quanto no
gozo da cidadania”244 , disse Grierson sobre o desafio de reinventar o EMB e
transformá-lo em uma fértil produtora de filmes sob todas as expectativas que
cercavam o projeto.
Foi sob este espírito de uma nova escola a serviço dos interesses do
império, mas com abertura para experiências estéticas e para um cinema
243
Ibidem, p.12. Original em inglês: The Mass Observation movement was developed ... the
Department of Labor investigation was formed, connected to the Communist Party ... The
concerns of John Grierson (1898 - 1972) belong to these times ... Not particularly interested in
cinema as In the form of artistic expression, Grierson developed an important and decisive work in
British cinema, for the way he theorized and put into practice a new attitude towards the function
of cinema ... And while Grierson was interested in the power of social intervention of cinema, the
same and other interests were causing to arise through the world, what was conventionally called
documentary
244
GRIERSON, John apud HARDY, Forsyth Grierson on documentary, London: Faber & Faber,
1966. p.79. Original em inglês: We set to thinking how a dramatic apprehension of the modern
scene might solve the problem, and we turned to the new wide-reachIng instruments of radio and
cinema as necessary instruments in both the practice of government and enjoyment of citizenship.
118
comprometido com o social, que Grierson recrutou os seus pupilos. O time era
formado por jovens com pouca ou nenhuma experiência em audiovisual, em sua
maioria rapazes idealistas vindos de respeitadas universidades britânicas e no auge
dos seus vinte e poucos anos. Sobre preferências estéticas eles tinham um
denominador comum: estavam encantados pelo impacto do cinema russo,
sobretudo de O Encouraçado Potenkim.
Do cinema soviético Grierson quis guardar a montagem e a eficácia, mas como
afirmou um seu contemporâneo, Grierson era um não marxista que acreditava na
capacidade educadora do cinema, ao ponto de sustentar que a crise do capitalismo
poderia ser ultrapassada se as pessoas fossem educadas para o cumprimento de
suas responsabilidades cívicas.245
Entre os jovens recrutados por Grierson estavam: Edgar Anstey, Arthur
Elton e Stuart Legg, o chefe de preparação e ex-membro do London Film Society,
de onde veio também Paul Rotha, que já havia escrito o livro The Film Till Now
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
(1930), mas que nunca havia produzido ou dirigido um filme.
Na equipe original do EMB, além de Grierson, o único que havia dirigido
um filme era Basil Wright, que havia feito um experimento de avant-garde
inspirado em Vertov: “O próprio Grierson, com apenas Drifters na bagagem, teve
uma breve introdução na equipe e era poucos anos mais velho. No entanto,
assumiu imediatamente uma posição quase divina entre eles, dominando-os com
uma feroz benevolência. Ele era o chefe”246.
O clima na EMB era quase monástico, namoradas eram proibidas, Grierson
ficou casado por 18 meses com Margaret Taylor, funcionária da EMB e irmã de
um dos membros da equipe John Taylor, sem que ninguém soubesse, para isso
eles chegavam e saíam do trabalho separados.
Harry Watt se juntou ao time em 1932, ele descrevia Grierson como uma
espécie de pastor presbiteriano. Para equilibrar a pouca experiência de sua equipe,
Grierson preteriu os talentos individuais em prol do coletivo, para isso, em alguns
245
BOTELHO, João e VIEGASE, Manuela (org e autoria). O cinema realista britânico – Journey
to a Legend and Back (catálogo) Lisboa: Cinemateca Nacional 1978 p. 13.
246
BARNOUW, Erik. Documentary – a history of the non-fiction film p. 89 Original em Inglês:
Grierson himself, whit only Drifters behind him, scarcely had a start on the staff and was only a
few years they senior. Yet he assumed at once an almost god-like position among them,
domInatIng them with a fierce benevolence. He was the chief.
119
momentos, Grierson colhia sozinho os louros do sucesso de algumas produções,
pelo menos era esta a justificativa que costumava deixar transparecer. Como já
vimos aqui a questão dos méritos individuais e dos créditos atribuídos à equipe
sempre foi um problema no G.P.O Film Unit, que sucederia o EMB na produção
de filmes de propaganda do império inglês. Por outro lado, esta unidade coletiva
que se formou entre a equipe de realizadores deu unicidade ao embrião do
documentarismo britânico.
Somente na Grã-Bretanha, no entanto, os realizadores imaginavam que os
esforços eram parte de um movimento. Eles se conceberam como uma escola
claramente definida, trabalhando em uma determinada forma de arte, trabalhando
para fins comuns e, inicialmente pelo menos, com um líder comum247.
Mas apenas idealismo, disciplina presbiteriana e boa vontade não seriam
suficientes para conduzir aquela equipe, foi assim que Grierson chamou o norte-
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
americano Robert Flaherty para encabeçar o seu time dos sonhos do cinema
documental. Mais tarde, Grierson convocaria Cavalcanti para o posto deixado por
Flaherty:
Para inspirar e educar sua equipe e dar o prestígio à unidade, Grierson trouxe dois
nomes célebres para o trabalho. Da França veio o brasileiro Alberto Cavalcanti,
que se mostrou inestimável em experiências sonoras. Da América veio Robert
Flaherty, para fazer fotografia para Industrial Britain (1933)248.
O período de Cavalcanti na G.P.O sucedeu ao de Flaherty, que deixou a
produtora para realizar O homem de Aran (1934), uma produção dos estúdios
Ealing, de Sir. Michael Balcon.
Grierson reuniu em torno de si todos os elementos que lhe pareciam úteis a seu
fim. Tinha ele imagem para escolher (sic) rapazes saídos das duas grandes
universidades inglesas: Oxford e Cambridge... Grierson também trouxe Flaherty,
a quem só vim reconhecer pessoalmente dez anos depois de ter feito Moana.
Flaherty, como eu, ficou ligado, daí por diante, ao movimento do documentário
britânico... Tomei na equipe de Grierson o lugar de Flaherty como instrutor.
247
SWANN, Paul. The British Documentary Film Movement 1926 – 1946 p 18 Original em inglês:
Only In BritaIn, however, did the filmakers envisage the efforts as beIng part of a movement. They
conceived of themselves as a clearly defIned school, workIng withIn a particular art form, workIng
toward common ends, and, initially at least, with a common leader.
248
BARNOUW, Erik. Documentary – the history of the non-fiction film, p. 90. Original em Inglês:
To Inspire and educate his staff, and to give the unit prestige, Grierson brought two celebrated
names into the work. From France came the Brazilian Alberto Cavalcanti, who proved invaluable
in sound experiments. From America came Robert Flaherty, to do photography for industrial
BritaIn, 1933.
120
Estava obcecado com a banda sonora e comecei, então, uma série de experiências
neste sentido249.
Harry Watt diria sobre a vinda de Cavalcanti:
Eu acredito fundamentalmente que a chegada de Cavalcanti na GPO Film Unit
foi o ponto de virada do documentário britânico, porque, como eu disse, nós
realmente éramos imaturos, e muitos filmes eram de segunda categoria. Havia
apenas a novidade da idéia de mostrar trabalhadores e logo isso faria sucesso.
Mas Cavalcanti era um ótimo profissional, e ele chegou mais ou menos ao
mesmo tempo em que conseguimos os instrumentos para o som ... Ninguém sabia
editar o som até que Cavalcanti chegasse. Então ele se sentou, antes de tudo, para
nos ensinar apenas os fundamentos, mas sua contribuição foi muito mais do que
isso 250.
Um dos filmes mais importantes realizados pelo EMB foi o médiametragem Industrial Britain (1931-1933), filmado por Flaherty, mas que também
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
teve em sua montagem sequências dirigidas por Grierson, Wright e Elton. As
imagens de Flaherty imprimiram a face realista dos trabalhadores, com suas
mazelas, seus rostos e mãos marcados pela dureza das condições trabalhistas na
época, mas a montagem final da responsabilidade de Grierson e Edgar Anstey
tratou de dar um ar de nobreza àqueles homens, inclusive com alusões à Roma e à
Grécia antiga. Sem falar da banda sonora, que foi criada depois pela distribuidora
Gaumont-British, que também não favoreceu em nada a ideia original que
Flaherty tinha para a fita251.
249
CAVALCANTI, Alberto. O filme documentário In PELLIZZARI, Lorenzo e
VALENTINETTI, Cladio M. Alberto Cavalcanti, p. 247.
250
BARTZ Dorea Carla Coalface um filme de Alberto Cavalcanti (Tese de doutorado) USP, 2003.
p. 30 Original em Inglês: I believe fundamentally that the arrival of Cavalcanti In the GPO Film
Unit was the turnIng poInt of British documentary, because, as I say, we really were pretty, and a
lot of films were second-rate, don’t let kids ourselves. It was only the newness of the idea of
showIng workIngmen and soon that was makIng them successful. But Cavalcanti was a great
professional, and he arrived at the same time, more or less, we have sound... Nobody had cut
sound at all untill Cavalcanti arrived. So he sat down, first of all, to teach us just the fundamentals,
but his contribution was enormously more than that
251
PELLIZARI Lorenzo e VALENTINETTI Claudio Alberto Cavalcanti 1985.
121
252
Figura 32: O trabalhador das minas de carvão em fotograma de Industrial Britain (1933).
Flaherty ficou pouquíssimo tempo na EMB, exatamente no período em que
a unidade de filmes migrou para a G.P.O, mas mesmo que sua passagem tenha
sido breve, sua assinatura ficaria impressa de forma indelével nas produções de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Grierson, que usou muitas de suas imagens em Industrial Britain em outras
produções, como Coalface, por exemplo, infelizmente sem creditá-lo.
3.1.
Grierson x Cavalcanti - Experiência Artística x Funcionalidade
Se a ideia e inspiração do movimento documentarista britânico veio
de Grierson, o estilo e a qualidade vieram de Cavalcanti253
Harry Watt
Quando o grupo do E.M.B foi encerrado, seus jovens componentes já
haviam conquistado uma experiência razoável no documentário. Além do trio
central (Wright, Elton e Legg) o trabalho do grupo conquistara ramificações
inclusive nas fontes de financiamento, Edgar Anstey já havia implantado o
departamento de cinema na Shell e Donald Taylor havia criado a Strand, que
durante muitos anos foi uma das maiores produtoras de documentários na
Inglaterra.
Com a transição para do E.M.B para a G.P.O, o documentário britânico
encontrou os seus melhores anos “decisivamente influenciada pela aquisição de
equipamentos sonoros e pela presença como produtor e realizador do brasileiro
252
Fonte: Fotograma do YouTube https://www.youtube.com/watch?v=OzQmyV7IXww .
WATT, Harry apud O cinema realista britânico – Journey to a legend and back (catálogo)p.
19.
253
122
Alberto Cavalcanti...Contra o amadorismo reinante no “movimento”, ele
introduziu métodos profissionais de trabalho”.254
Grierson aproveitou o potencial que tinha em mãos e fez da G.P.O Film
Unit uma associação entre um celeiro de experimentação e uma eficiente
produtora de institucionais do império britânico.
A presença de Cavalcanti na G.P.O transformaria a produção, introduzindo
elementos poéticos e experiências sonoras que marcariam definitivamente o
cinema documental feito a seguir. Cavalcanti esteve envolvido em especial em
três projetos que se destacariam na produção da G.P.O: Song of Ceylon (1934),
Coalface (1935) e Night Mail (1936).
Cavalcanti levou para a G.P.O o seu desejo de refletir na tela a conturbada
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
relação entre o homem e a realidade sob o prisma da representação
cinematográfica, em especial a realidade urbana. Paul Rotha diria que “Cavalcanti
provavelmente fracassou, na época, na sua intenção”255 Intenção esta que segundo
Elizabeth Sussex seria: “a de mostrar o homem em oposição à rua, confrontando
com o turbilhão da cidade”256, como o brasileiro fizera com maestria em filmes
como Rien que les heures.
Este fracasso a que se refere Rotha, provavelmente viria das limitações que
se impuseram na G.P.O, algumas delas orçamentárias, e outras, pelo embate
estético que se estabeleceu entre Grierson e Cavalcanti, sobre o tipo de filme a
fazer, e também uma curiosa discussão sobre o nome que seria dado àquele
gênero que se construía ali:
Tive uma conversa muito séria com Grierson, nos róseos tempos passados sobre
este rótulo “documentário”, porque eu insistia que os filmes deveriam ser
chamados, engraçado, aliás (é apenas uma coincidência mas rendeu uma fortuna
na Itália) “neo-realismo”. O argumento de Grierson – eu me lembro bem
claramente- era a atitude de apenas rir e dizer: “Você é realmente uma figura
254
BOTELHO, João e VIEGASE, Manuela (org e autoria). O cinema realista britânico - Journey
to a legend and back (catálogo) p. 18.
255
ROTHA, Paul apud SUSSEX Elizabeth Cavalcanti na Inglaterra In Alberto Cavalcanti
PELIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio M. p. 322.
256
Ibidem.
123
bastante inocente, eu negocio com o governo e a palavra “documentário” os
impressiona como algo sério”257.
A opção por uma abordagem esteticamente sofisticada introduzida no
documentarismo britânico por Cavalcanti, em contraponto ao projeto social e
didático do cinema defendido por Grierson e à representação romântica da obra de
Flaherty, foi determinante para a formação da base sobre a qual se constituiria
alguns dos pilares do cinema moderno no mundo.
De acordo com dados colhidos nesta pesquisa, percebi que a G.P.O era
uma das poucas produtoras na época que tinha mulheres em seu quadro de
colaboradores. Além da esposa de Grierson, Margaret Taylor, havia também as
irmãs de Grierson Ruby e Marion, e a diretora Evelyn Spice.
Poetas, músicos e artistas de outras searas também enriqueceram o time da
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
G.P.O Film Unit, os mais notórios são W.H Auden, que compôs o Madrigal de
Coalface e o músico Benjamim Britten, que além de Coalface assinou também a
trilha sonora de Night Mail. Passaram também pelo G.P.O Film Unit os músicos
Walter Leight, Maurice Jaubert, Ernest Mayer e Darius Milhaud (amigo e
colaborador de Cavalcanti na França), o poeta Montagu Slater, o pintor Willian
Coldstream, o escultor John Skeaping e o dançarino Rupert Doone, que fora
protégé e amante de Jean Cocteau.
A possibilidade de trabalhar em um ambiente onde haveria liberdade e boa
acolhida para a experimentação motivou Cavalcanti na aceitação do convite de
Grierson. O fato de dividir o set com jovens entusiastas saídos da universidade e
com mulheres que tinham ali a rara oportunidade de atuar na indústria do cinema,
criava um ambiente propício para que o “mestre” Cavalcanti pudesse exercer em
sua plenitude todos os conceitos que moldavam a sua visão particular sobre o
cinema a ser feito. O perfil de formador de novos cineastas era novo para
Cavalcanti, mas ele soube exercê-lo com plenitude.
Os filmes produzidos pelo G.P.O Film Unit foram além das pretensões de
Grierson, vencendo os limites do caráter didático para conquistar também o
257
CAVALCANTI, Alberto apud SUSSEX, Elizabeth Cavalcanti na Inglaterra
CAVALCANTI, Alberto. Filme e realidade, 1977 p. 233. e 207 (grifos do autor).
In
124
circuito comercial. “Filmes notáveis como Song of Ceylon e Night Mail obtiveram
ampla exposição nas salas de cinema; enquanto isso, a distribuição não comercial,
encorajada pelo aumento do filme de 16 milímetros, começou a assumir alguma
importância”258.
A questão das fontes de financiamento foi um ponto de discórdia no grupo,
segundo Paul Rotha:
Grierson teve a notável ideia de tentar arranjar dinheiro fora da indústria
cinematográfica ou dos bancos.... Conseguiu arranjá-lo junto ao Governo
Britânico (conservador) e isso levou-o a ter de fazer acordos com aquilo que
chamamos Civil Service.... Por isso Grierson raras vezes falava de arte, mas sim
de filmes informativos. Então descobriu uma expressão magnífica, eficaz nos
seus contatos de produtor, que era “dar vida” – “vamos dar vida ao trabalhador
inglês!”259
A fonte de financiamento governamental que mantia a produção da G.P.O
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
gerava uma série de questionamentos, Night Mail foi duramente criticado por não
mostrar “as escandalosas condições de trabalho nos correios”260. De fato, embora
o filme faça nas entrelinhas uma menção às diferenças sociais na Inglaterra
daquele tempo, ele em nenhum momento denuncia as questões trabalhistas que
afetavam os trabalhadores do comboio postal. Harry Watt justificaria assim o fato
de Grierson aceitar com natural pragmatismo a realidade de trabalhar com
financiamento estatal: “a verdade é que, se nós tivéssemos envolvido numa
verdadeira crítica social, de qualquer tipo, perderíamos imediatamente os apoios
financeiros e toda a nossa experiência, que artisticamente era boa, teria acabado.
Por isso fizemos concessões”261.
As experiências artísticas, em sua maioria capitaneadas por Cavalcanti,
mantiveram o ímpeto artístico da produção da G.P.O. Foram as inovações
propostas nas montagens sonoras ou na intensa conexão com outras linguagens,
como poesia e música, que permitiram alguma crítica social ao sistema vigente
(como é o caso do Madrigal, em Night Mail, que faz uma alusão à desigualdade
258
BARNOW, Erik. Documentary a history of the non fiction film ( número de página não
identificado no texto em PDF) Original em inglês: Outstanding films such as Song of Ceylon and
Night Mail got wide theatrical exposure; meanwhile nontheatrical distribution, encouraged by the
rise of 16 mm film, began to assume some importance.
259
Ibidem, p. 20.
260
Ibidem, p.21.
261
BOTELHO, João e VIEGASE, Manuela (org e autoria). O cinema realista britânico – Journey
to a legend and back, p. 22.
125
social entre o operariado e a burguesia, ou nos belos planos de Coal Face, que
revelam a expressão exaurida do trabalhador das minas inglesas).
262
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Figura 33: A representação do trabalhador em fotograma de CoalFace (1935).
Enquanto o brasileiro buscava realizar sobretudo experiências estéticas,
Grierson ambicionava um cinema com fins didáticos, que ele chama de
sociológicos. Estas experiências têm seu apogeu em filmes como Night Mail
(1936), dirigido por Harry Watt, que contou com a participação de Cavalcanti
como engenheiro de som e produtor. Segundo o teórico Erik Barnow: “A narração
triunfalmente rítmica do Night Mail, escrita por W.H. Auden e ritmada por
Benjamim Britten, foi imensamente bem-sucedida e tornou-se um modelo para
inúmeras imitações. O filme foi editado ao ritmo de sua banda sonora "263.
Night Mail tem o seu ápice aos 1h 4’21’’, quando o poema de W. H.
Auden é sobreposto ao som da locomotiva na montagem sonora de Cavalcanti, e
temos uma bela locução de John Grierson e Stuart Legg marcada pelo ritmo da
“Maria Fumaça” dos correios britânicos:264
I
This is the night mail crossing the Border,
Bringing the cheque and the postal order,
262
Fonte: www.bfi.org.uk
BARNOUW, Erik. Documentary a history of non-fiction film. New York: Oxford University
Press, 1993. p.94. Original em Inglês: “The trippingly rhythmical Night Mail narration, written by
W.H. Auden and scored by Benjamim Britten, was immensely successful, and became a model for
numerous imitations. The film was edited to the rhythm of its sound track”.
264
Optei por manter o poema em sua língua Original por se tratar de um texto artístico
263
126
Letters for the rich, letters for the poor,
The shop at the corner, the girl next door.
Pulling up Beattock, a steady climb:
The gradient's against her, but she's on time.
Past cotton-grass and moorland boulder
Shovelling white steam over her shoulder,
Snorting noisily as she passes
Silent miles of wind-bent grasses.
Birds turn their heads as she approaches,
Stare from bushes at her blank-faced coaches.
Sheep-dogs cannot turn her course;
They slumber on with paws across.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
In the farm she passes no one wakes,
But a jug in a bedroom gently shakes.
II
Dawn freshens, Her climb is done.
Down towards Glasgow she descends,
Towards the steam tugs yelping down a glade of cranes
Towards the fields of apparatus, the furnaces
Set on the dark plain like gigantic chessmen.
All Scotland waits for her:
In dark glens, beside pale-green lochs
Men long for news.
III
Letters of thanks, letters from banks,
Letters of joy from girl and boy,
Receipted bills and invitations
To inspect new stock or to visit relations,
And applications for situations,
And timid lovers' declarations,
And gossip, gossip from all the nations,
News circumstantial, news financial,
Letters with holiday snaps to enlarge in,
Letters with faces scrawled on the margin,
Letters from uncles, cousins, and aunts,
Letters to Scotland from the South of France,
Letters of condolence to Highlands and Lowlands
Written on paper of every hue,
The pink, the violet, the white and the blue,
The chatty, the catty, the boring, the adoring,
The cold and official and the heart's outpouring,
Clever, stupid, short and long,
The typed and the printed and the spelt all wrong.
IV
Thousands are still asleep,
Dreaming of terrifying monsters
127
Or of friendly tea beside the band in Cranston's or Crawford's:
Asleep in working Glasgow, asleep in well-set Edinburgh,
Asleep in granite Aberdeen,
They continue their dreams,
But shall wake soon and hope for letters,
And none will hear the postman's knock
Without a quickening of the heart,
For who can bear to feel himself forgotten?
A proposição de um documentário em que o autor se coloca no centro da
obra, intervindo claramente na representação do real em filmes que se abrem para
a dramaturgia ficcional, em um contexto em que os documentários em geral
flertavam com os cinejornais, podemos afirmar que temos nesta proposição um
gesto pioneiro, que diluiria as fronteiras entre a ficção e o documentário,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
contrariando os cânones, que atribuem este feito ao Neorrealismo.
As inovações estéticas e poéticas propostas por Cavalcanti no território do
som foram de fundamental importância para a consolidação daquelas experiências
no campo imagético do documentário. A independência do som em relação à
imagem, libertando-o do papel de coadjuvante narrativo foi de vital importância
para o cinema autoral que sucedeu às experiências de Cavalcanti.
O Neorrealismo tem em um dos seus filmes uma sequência magistral que
dialoga com a força poética da proposta estética de Cavalcanti: em Alemanha Ano
Zero (1948), de Roberto Rossellini, aos 27’18’’, o protagonista, Edmund,
personagem do ator mirim Edmund Moeschke, tenta vender um LP com a
gravação de um discurso de Hitler a soldados da Berlim ocupada. O ponto de
encontro para a transação são as ruínas da Chancelaria, prédio onde Hitler e Eva
Brown morreram em 1945, no final da guerra. Neste momento, o disco é colocado
em um gramofone, temos então as imagens das ruínas da chancelaria
bombardeada pelos aliados e o som da voz inconfundível de Hitler. A câmera faz
um travelling pelo cenário enquanto a banda sonora do filme reproduz o discurso
enfurecido de Hitler. Um pai e uma criança ouvem apavorados a voz do Fuher
sem compreender bem o que se passa, é como se através do som o fantasma do
nazismo retornasse dos infernos.
128
265
Figura 34: Fotograma da chancelaria em Alemanha Ano Zero.
Quando se mudou para Londres para se integrar ao time da G.P.O Film
Unit, Cavalcanti tinha 37 anos, a recente chegada do som ao cinema havia
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
deslocado completamente as estruturas já consolidadas de então:
...porque os franceses como os americanos, estavam convencidos de que os
diretores do cinema mudo eram incapazes de rodar filmes sonoros... Aprendi
sobre o som à força... O beabá da gravação de um diálogo, mas pensava que o
diálogo não passava de uma pequena parte do som e que não representava o
cinema sonoro266.
Grierson na época havia acabado de receber o equipamento de som da
G.P.O Film Unit quando Cavalcanti entrou em contato com ele, a acolhida foi
imediata: “Meus rapazes não têm ideia do que é o som”.267 No entanto os rapazes
sabiam bem quem era Cavalcanti, o impacto de Rien que les heures nas sessões da
London Film Society havia sido enorme, quando chegou à G.P.O Cavalcanti era
uma estrela na visão da jovem equipe de Grierson
Certamente não faltam provas que permitam demonstrar que a contribuição de
Cavalcanti para o documentário inglês – uma contribuição de natureza
essencialmente estética – sempre foi algo atenuado em relação aos propagandistas
sociais, cuja autoridade era mantida diretamente por Grierson268.
265
Fonte imagem: www.adorocinema.com
CAVALCANTI, Alberto apud SUSSEX, Elizabeth Cavalcanti na Inglaterra In Alberto
Cavalcanti. PELIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio M. p. 321.
267
GRIERSON, John apud SUSSEX, Elizabeth Cavalcanti na Inglaterra In Alberto Cavalcanti
PELIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio M. p. 322.
268
SUSSEX, Elizabeth Cavalcanti na Inglaterra In Alberto Cavalcanti PELIZZARI, Lorenzo e
VALENTINETTI, Claudio M. p. 322.
266
129
A chegada de Cavalcanti a Londres não poderia acontecer em um
momento mais oportuno. Depois de quase uma década de hegemonia do cinema
norte-americano, as produções inglesas começavam a ganhar mercado. O sucesso
dos filmes realizados pela G.P.O Film Unit fez com que os documentários
finalmente chegassem ao circuito comercial, vencendo as expectativas sobre eles e
cercados de sólido prestígio:
Desde 1930, na Grã-Bretanha, a projeção nos cinemas de documentários de
prestígio e o sucesso do filme de “interesse” nos circuitos comerciais, teve uma
tal renda que as produtoras de Wardour Street começaram a se inquietar. Os
críticos eram unânimes em louvar o seu valor cinematográfico, em aclamar a sua
contribuição capital no domínio social e em reconhecer o seu valor educativo269.
Na época criou-se uma grande expectativa sobre o novo filme de Flaherty O homem de Aran (1934) - para o qual ele havia se desligado da G.P.O Film Unit
e se dirigido às terras geladas da Ilha de Aran, na Irlanda. Financiado pela Ealing
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
de Michael Balcon, posteriormente, Sir M. Balcon, Flaherty partiu para a sua nova
empreitada acompanhado de sua esposa Frances, do seu irmão David e por John
Taylor, ex-GPO, que se encarregaria entre outras tarefas da revelação dos
negativos. Cavalcanti diria sobre o filme:
Conta-se que Flaherty vira os enormes caldeirões de ferro onde os ilhéus faziam
outrora óleo da gordura dos tubarões. Mas a indústria se extinguira. Procurando
meios de dramatizar a vida miserável dos pescadores de Aran, Flaherty decidiu
reconstruir a pesca do tubarão. E um navio foi para a baía de Biscaia buscar um
tubarão a reboque. O tubarão chegou às frias aguas do mar da Irlanda mais morto
do que vivo. As cenas foram filmadas, mas mesmo um grande diretor não pode
reviver um tubarão exausto e resfriado, e o episódio não foi o mais feliz do
filme270.
269
CAVALCANTI, Alberto O filme documentário (1951) In PELIZZARI, Lorenzo e
VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti, 1995, p. 246.
270
Ibidem, p. 247.
130
271
Figura 35: Fotograma da “pesca do tubarão” em O homem de Aran (1934)
Cavalcanti conta ainda que a distribuidora Gaumont-British decidiu que
um tubarão que viera de tão longe deveria ter um destino “produtivo” o animal foi
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
então empalhado, encaixotado e despachado para as vitrines da Wardour Street.
No entanto as vitrines da Gaumont não eram suficiente grandes para conter o
bicho, que teve de ser mutilado para atender aos caprichos dos produtores:
E eu, sempre que passava diante desta vitrina, pensava que Flaherty tinha alguma
coisa de comum com aquele peixe: grande demais para uma vitrina de Wardour
Street, pertencente à gente da indústria do filme que tão mal o compreendia272
A festa de lançamento de O homem de Aran contou com a presença dos
ilhéus, que vieram em peso para a cerimônia, trazidos para Londres por Flaherty.
Foi nesta ocasião que Cavalcanti e Flaherty se conheceram:
A psicologia de Flaherty era muito simples. Antes de todo era a de um homem
bonito, de um homem feliz, de um homem probo. Ele fazia filmes porque sentia
necessidade de fazê-los. Na época ele penava muito em um projeto de historia
passada nas ilhas de carvão. 273
O homem de Aran se tornaria um filme emblemático na história do
cinema, a capacidade de Flaherty reconstruir a realidade com uma veracidade
documental inquestionável e dotada de uma dramaticidade consagrariam o
cineasta como um dos maiores do seu tempo.
271
Fonte imagem: http://entretenimento.band.uol.com.br/tv/noticia/100000658725/o-homem-dearan-mostra-vida-de-pescadores.html.
272
CAVALCANTI, Alberto O filme documentário (1951) In PELIZZARI, Lorenzo e
VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti, 1995, p 248.
273
Ibidem, p 248.
131
Mas a fragilidade da banda sonora não agradou a Cavalcanti; “Man of
Aran nos decepcionou pela fraqueza de sua banda sonora, que não passava de uma
espécie de acompanhamento musical, penosamente sincronizado. Mas isso não
tinha importância, mais tarde o filme tomaria o seu lugar na obra de Flaherty”274.
O homem de Aran teve um longo trabalho de pós-produção, inclusive na banda
sonora, que teve os sons do vento e da natureza mixados depois do filme editado.
O longa-metragem de Flaherty ganharia o prêmio de melhor filme
estrangeiro no segundo Festival de Cinema de Veneza, realizado em agosto de
1934, ironicamente o prêmio oferecido à categoria de filme estrangeiro naquele
ano se chamou Mussolini Cup. Uma premiação financiada pelo partido fascista,
oferecida a um cineasta influenciado por ideias socialistas.
A saída repentina de Flaherty do G.P.O Film Unit não agradara Grierson
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
de todo, que fazia questão de negar qualquer tipo de prejuízo financeiro com a
contratação do cineasta norte-americano. Para Grierson “Flaherty foi um dos
grandes mestres do nosso tempo, nos enriquecemos com seu exemplo devo
acrescentar, mas digo mais, foi ainda mais enriquecedor o fato de falharmos no
ímpeto final de segui-lo”275
Flaherty seria para sempre lembrado como um dos cineastas que passaram
pelo G.P.O Film Unit, mas o cinema que ele deixaria para a história nunca estaria
associado ao legado de Grierson.
Grierson e seu movimento, em alguns anos, mudou as expectativas suscitadas
pela palavra documentário. O documentário de Flaherty foi um retrato em closeup de um grupo de pessoas, localizado remotamente, mas familiar em sua
humanidade. Já, o documentário característico de Grierson tratou de processos
sociais impessoais276.
274
Ibidem.
GRIERSON, John apud BARNOUW, Erik In Documentary the history of non-ficion film p. 97
Original em Inglês: Flaherty has been one of the great film teachers of our day, and not one of us
but has been enriched by his example and, I shall add, but has been even more greatly enriched by
failIng In the fInal issue to follow it.
276
BARNOUW, Erik. Documentary the history of non-ficion film p.99 Original em Inglês:
Grierson and his movement had In a few years changed the expectations aroused by the word
documentary. A Flaherty documentary had been a feature-lenght, close-up portrait of a group of
people, remoted located but familiar In their humanity. The caracteristic Grierson documentary
dealt with impersonal social processes.
275
132
Mesmo que Cavalcanti tenha interferido com intensidade para que
poeticamente aquelas narrativas tivessem rostos, como em Night Mail e CoalFace
e, sobretudo, em filmes como North Sea, de Harry Watt (1938), que tem uma
construção de personagens mais elaborada, o documentário realizado pela G.P.O
tem o cunho social e coletivo que prepondera sobre os dramas humanos
individuais, a instituição se coloca acima do indivíduo.
Enquanto Nanook of the North (1922) de Flaherty, é capaz de criar uma
estrutura dramática em que propõe a identificação do público com os personagens
em suas lutas heroicas com a natureza, Night Mail ou CoalFace, criam um
distanciamento em relação aos dramas individuais expostos na tela, privilegiandose as instituições por trás do indivíduo, que no caso são os correios e o Estado,
detentor das minas de carvão, cedendo o lugar das batalhas singulares às
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
engrenagens coletivas.
277
Figura 36: Fotograma de Nanook (1922).
278
Figura 37: Fotograma de Night Mail (1936).
A G.P.O iria evoluir consideravelmente na abordagem de dramas humanos
e individuais em filmes posteriores, trabalhos como North Sea, de 1938,
produzido por Cavalcanti e dirigido por Harry Watt, trazem um outro viés de
representação dos trabalhadores, no caso, pescadores do Mar do Norte. No intuito
de mostrar a eficiência e importância da comunicação via rádio na Inglaterra, o
filme narra a saga de marinheiros que se veem à deriva e incomunicáveis em meio
a uma terrível tormenta marítima.
277
Fonte imagem 37:
http://obviousmag.org/archives/2012/05/nanook_o_esquimo_um_pioneiro_do_filme_documental.
html
278
Fonte figura 38: https://saudigitalcinema.wordpress.com/tag/night-mail/
133
North Sea propõe um enredo para alguns dos personagens, com sugestão
de histórias pregressas que intensificam o teor dramático do roteiro. O filme traz
também diálogos elaborados em relação ao que era feito no cinema documental
até então na G.P.O. A direção de Watt chama atenção pela forma como consegue
construir um clima de suspense sobre a batalha entre o homem e a natureza.
A relação do homem com a natureza, ou do personagem com a paisagem,
será um dos pontos fortes do cinema italiano pré-Neorrealismo. Mariarosaria
Fabris em seus escritos chama a atenção para este aspecto: “A interação entre
personagens e paisagem, uma paisagem italiana, não só focalizada em seus
elementos pitorescos, mas integrada como algo vivo e determinante à ação”279.
Fabris destaca ainda uma fala do crítico italiano Giuseppe De Santis sobre esta
relação, em uma resenha de Piccolo Mundo Antico (1941), de Mario Soldadi, uma
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
produção pré-Neorrealismo:
Pela primeira vez em nosso cinema vimos uma paisagem, não mais cafonararefeita, mas finalmente correspondente à humanidade das personagens, seja
como elemento emotivo, seja como índice de seus sentimentos...Dessa forma, as
sequências mais importantes no filme, parecem-nos ainda, aquelas em que todos
os elementos supracitados estavam presentes280.
A “redescoberta” desta Itália genuína conduz também a uma redescoberta
de seus personagens mais autênticos:
Em Sissignora, essa realidade italiana, vista em termos quase de documentário,
afirma-se: a paisagem é protagonista tanto quanto Cristina, a humilde criadinha
(precurssora talvex, da indefesa Maria de Umberto D) Poggioli, “seguindo os
módulos de uma narrativa naturalista”, redescobre uma Itália “proletária,
suburbana, anti-heróica”, a Itália da “periferia genovesa, de uma espontaneidade
não enfeitada, feita de rostos e de escorços populares, de becos e salões de baile,
de portuários e soldados281.
A vida dos portuários, mineradores, operadores de rádio e outros
representantes da classe trabalhadora em seus ambientes de ação era o foco central
da G.P.O, embora as contendas entre Grierson e Cavalcanti tivessem motivações
concretas, eles tinham também pontos sólidos de convergência, entre eles, o
protagonismo do trabalhador e a competência de Grierson como gestor do grupo:
279
FABRIS, Mariarosaria. O Neorrealismo cinematográfico italiano, 1996. p. 66.
FABRIS, Mariarosaria. 1996. p.66.
281
Ibidem, p.67. – Aspas da autora – Fabris se refere ao filme Sissignora (1942) de Ferdinando
Maria Poggioli, e a Umberto D (1951) de Vittorio De Sica. Fonte Original:
280
134
Enquanto Flaherty, como realizador, continuava sozinho a sua luta pela
sobrevivência do documentário como ele o compreendia, na Inglaterra, junto o
G.P.O Film Unit, Grierson dava constantes provas da sua habilidade, manejando
as coisas de tal sorte, que malgrado as subvenções do Governo britânico, este
nunca intervinha nas questões de organização interior, inerentes à produção282.
Cavalcanti não estava acostumado a um sistema tão organizado e à figura
de um produtor de verdade como Grierson se transformara. Na França da avantgarde, os diretores contavam na maioria das vezes com a ajuda financeira de um
mecenas, quase sempre um amigo abastado generoso que financiava o projeto.
Quando o filme estava concluído ele era entregue a figuras que se diziam
distribuidores, mas na realidade eram aventureiros que tentavam a toda sorte, sem
nenhum método ou critério, divulgar e vender o filme aos exibidores. Neste
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
processo, eles não tinham nada a perder, só a ganhar:
Se um filme obtinha uma pequena renda, tanto melhor. Se os exibidores não
queriam projetá-lo, tanto pior... os distribuidores afinal de conta não arriscavam
coisa alguma. E foi nesta dura escola de incertezas que cresceu o cinema francês,
e só chegou a ser o que é quando o Governo decidiu organizá-lo e defendê-lo283.
Com a chegada do cinema sonoro à França, esta nova estrutura proposta
pelo governo se fortaleceu, e os distribuidores de outrora passaram a ter de se
submeter a regras rígidas que lhes exigiam também responsabilidades:
Foi assim que Renoir, Painlevé, Chenal, Carné e outros arrecadaram exíguos
meios para filmar. Mas eles eram poucos comparados aos vencidos, aos
sacrificados. E é aí que não podemos deixar de citar novamente aquele que teria
sido o melhor de todos, Jean Vigo, que morreu vítima de tudo isso284.
Os correios eram um dos maiores departamentos do Governo Britânico na
época, e uma das maiores organizações industriais da Grã-Bretanha, arrecadando
anualmente uma quantia que girava em torno de dez milhões de libras esterlinas.
A publicidade da empresa contava com um sólido conselho presidido por Sir.
Sthephen Tallents e a orientação da agência Shell-Mex, uma das mais influentes e
282
CAVALCANTI, Alberto O filme documentário (1951) In PELIZZARI, Lorenzo e
VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti, 1995, p 250.
283
CAVALCANTI, Alberto O filme documentário (1951) In PELIZZARI, Lorenzo e
VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti 1995 p 251.
284
Ibidem, p. 251.
135
poderosas empresas de propaganda da época285. O propósito de formar técnicos e
impulsionar o marketing dos serviços e departamentos britânicos, sem perder de
vista a educação social dos súditos da rainha fez da empresa uma pulsante e
eficiente usina de criação. “Foi graças a este espírito avançado que o
documentário inglês se tornou, com o documentário soviético, o mais eficiente na
propaganda dos aliados na guerra mundial, e em seguida o berço do florescente
cinema inglês do pós-guerra.”286
A perspectiva do audiovisual como instrumento de propaganda ideológica,
disseminada pela potência do cinema soviético, contaminou também a Itália, que
assitia na década de 1930 o crescente fortalecimento do regime fascista, segundo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Fabris:
Em contraposição ao mito norte-americano, em que os intelectuais buscavam as
raízes da própria identidade, surgiu o mito soviético, pelo qual o regime político
vigente procurava fundir o modelo socialista com o fascista. Apesar de ser muito
reduzido o número de filmes russos que nos anos 30 entraram na Itália e de a
maioria deles só ter sido conhecida pelos frequentadores do Centro Sperimentali
di Cinematografia, o fascismo esteve extremamente interessado na realidade
política, econômica e cultural da Rússia, uma vez que o exemplo soviético se
impunha como o de uma sociedade rigorosa e eficiente... a descoberta da força de
persuasão e de penetração do cinema (que Lênin havia considerado a mais
importante das forças artísticas) levou à politização: o regime fascista encontrava
sua melhor arma de propaganda287.
Enquanto isso na Inglaterra a produção da G.P.O se encontrava em seu
período mais fértil na segunda metade da década de 1930. Os documentários
ingleses, pouco a pouco, ocupavam um lugar de destaque e prestígio entre os
estudiosos da perspectiva realista do cinema:
Eu não pensei em Wardour Street. As experiências sonoras foram um dos maiores
êxitos desta escola fecunda; mas o som não era a nossa única preocupação. O
argumento, o uso da câmara e a montagem, eram estudados por mim, juntamente
com jovens entusiastas, trabalhadores e disciplinados. Pouco a pouco compreendi
que a esperteza de Grierson era importante. Esta palavra documentário iria em
breve ser substituída pela palavra realista, que eu preferia. Wardour Street
felizmente já tinha se esquecido de mim, e eu trabalhava feliz nos minúsculos
estúdios de Blackheat288.
285
PELIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti 1995.
CAVALCANTI, Alberto O filme documentário (1951) In PELIZZARI, Lorenzo e
VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti, 1995, p. 254.
287
FABRIS, Mariarosaria. 1996, p. 60 e 61.
288
Ibidem, p. 253.
286
136
Os bens sucedidos resultados artísticos dos filmes pareciam superar a dura
conjuntura salarial da produtora. Havia também o comprometimento social e
político por parte da equipe, sobre o qual resumiu bem Basil Wright:
Eu estava morando em uma casa e tinha uma pequena renda privada, e assim
conseguia continuar. Mas o pagamento no documentário nunca foi bom. Se
aceitava o pagamento pelo privilégio de trabalhar em documentário e obter
liberdade criativa. E foi uma dupla liberdade porque a maioria de nós era
politicamente consciente, e sentimos que havia uma contribuição social a ser
feita289.
Quando Cavalcanti ingressou na GPO, ele assinou um contrato no qual
concordava em receber sete pounds por semana, enquanto os jovens colaboradores
como o próprio Wright recebiam cerca de quatro pounds por semana, um salário,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
que na época, se comparava ao dos bombeiros.
Comparado com a maioria dos salários profissionais, 4 libras em 1930 estavam
perto do limite da tabela (...) Um motorista poderia receber até 4,10 libras e um
marinheiro poderia receber 9 libras semanalmente. Por outro lado, a maioria dos
trabalhadores qualificados teve que aceitar até menos de 4 libras. Cabelereiros,
carpinteiros, estofadores, pedreiros, encanadores, ganhavam cerca de 3,10 libras.
Os trabalhadores da construção conseguiam menos de 3 libras ... Já os ganhos de
Grierson se equiparavam aproximadamente aos de um inspetor de escolas...290
O orçamento dos projetos do G.P.O Film Unit era mínimo, para se
conseguir manter o alto fluxo de produção de um filme por semana, se reduzia ao
máximo o custo das produções. A preferência pelos exteriores, levando as equipes
para as ruas com o mínimo de equipamento possível, o uso de iluminação natural
e de não atores eram algumas das regras para que se mantivesse o alto fluxo de
produção com o mínimo orçamento possível.
Havia filmes com orçamento de 15 pounds, um valor inimaginável para
qualquer produção, mesmo da época. “Tínhamos de fazer um filme por semana, e
tínhamos quinze libras para fazer um filme, não eram 1.500 libras ou 15 mil
289
WRIGHT Basil apud SUSSEX, Elizabeth. The rise and fall of British documentary, Berkeley:
University of California Press, 1975. p.14. Original em inglês: I was livIng a home and I had a
slight private Income, and I could get by. But the pay In documentary was never good. You
accepted the pay for the privilege of workIng In documentary and gettIng criative freedom. And it
was a double freedom because we were most of us politically conscious, and we felt there was a
social contribution to be made.
290
BARTZ, Dorea Carla. Coalface um filme de Alberto Cavalcanti, p. 38. Original em Inglês:
Compared with most professional salaries, 4 pounds in 1930 was near the bottom end of the scale
(...) An engine driver could brIng In as much as 4,10 pounds and an able seaman 9 pounds weekly.
On the other hand, most skilled workers had to get by on less than 4 pounds. CabInetmakers,
Carpenters, upholsterers, stonemason, plumbers, earned around 3,10 pounds. BuildIng labourers
got less than 3 pounds... Grierson’s earnIng were roughly on a par with those of an Inspector for
schools.
137
libras, eram 15 libras para fazer um filme, e a nós era dado um tema!291”, disse
Paul Rotha sobre os milagres que eles realizavam com pouco dinheiro e muita
criatividade.
O orçamento anual do G.P.O Film Unit girava em torno de 13 mil pounds
- este foi o orçamento de 1935 – para produzir uma média de 200 filmes ao ano.
Produções como Night Mail, uma das obras mais célebres da produtora custou na
época 2.000 pounds.
A primeira produção em que Cavalcanti trabalhou na G.P.O foi Pett and
Pott – a fairy estory of the suburbs (1934), com direção assinada por ele, e roteiro
não creditado, mas atribuído a Cavalcanti e Stuart Legg. O filme não foi bem
recebido pela equipe depois de concluído. Segundo Basil Wright, a ideia de gravar
a banda sonora antes da montagem veio de Grierson e Cavalcanti 292, a realização
de Pett and Pott representou uma oportunidade de experimentar o novo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
equipamento que tinham adquirido para a captação do som. Wright diz também
que a concepção do filme como uma comédia burlesca foi ideia de Cavalcanti,
talvez influenciado por sua fase anterior em Paris.
293
Figura 38: Fotograma de Pett and Pott.
Mesmo não alcançando as expectativas da equipe, Pett and Pott revelaria o
desejo de Cavalcanti em experimentar, a opção por realizar uma espécie de
291
ROTHA, Paul apud SUSSEX, Elizabeth. The rise and fall of British documentary, p.14 –
Original em Inglês: We had to make a film a week, we had fifteen pounds to make a film with –
not fifteen hundred or fifteen thousand, but fifteen quid - and we were given a subject We had to
make a film a week, we had fifteen pounds to make a film with – not fifteen hundred or fifteen
thousand, but fifteen quid - and we were given a subject!
292
SUSSEX Elizabeth Cavalcanti na Inglaterra In PELLIZARI Lorenzo e VALENTINETTI
Claudio.
293
Fonte: http://nyjff.org/film-detail/?film_id=1355.
138
comédia de costumes, “um conto de fadas suburbano” para exaltar as maravilhas
da telefonia, foi um tanto arriscada e irritou alguns membros da equipe que
defendiam a opção por um documentário tradicional.
O filme demonstrou muito que a leveza e o documentário inglês combinavam
como água e óleo. Paul Rotha no entanto, comete um erro grosseiro, quando diz
em Documentary Diary, que “a influência de Cavalcanti ali se revela em seus
aspectos mais prejudiciais”. Esta não é uma opinião isolada. John Taylor por
exemplo, se lembra de Pett and Pott como do “início da divisão...Quero dizer que,
olhando para trás, foi um erro ter Cavalcanti, pois ele não compreendia do que era
capaz o documentário294.
Pett and Pott foi um laboratório para Cavalcanti, em seu trabalho de
estreia na G.P.O ele propôs com veemência a ideia de que ficção e documentário
são linguagens convergentes, apostando na capacidade do público inglês em
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
absorver traços e ousadias estéticas trazidas da vanguarda francesa:
Outra sequência experimental memorável ocorre quando a Sra. Pott tornou-se um
escravo virtual da própria empregada doméstica. Seu trabalho é expresso através
de uma seqüência de montagem: primeiro, um calendário é mostrado e
intercalado com os passos da Sra. Pott com uma grande quantidade de compras.
À medida que o calendário atravessa rapidamente os dias, a mesma imagem
repetitiva da Sra. Pott é mostrada, enquanto um padrão de bateria monótono e
escasso é ouvido na trilha sonora. Este momento lembra uma seqüência no filme
de vanguarda Ballet Mécanique (René Clair, França, 1924), no qual vimos o
movimento de uma mulher subindo em loop295.
A divisão à qual John Taylor se refere na citação anterior é claramente
relativa ao abismo cada vez mais profundo que se abriu entre Grierson e
Cavalcanti na G.P.O Film Unit. Grierson era uma figura essencialmente
pragmática, que não fazia a menor questão em disfarçar a forma conservadora
como encarava o cinema. Esta abordagem se revelaria em diversas ocasiões ao
longo de sua biografia, como o fez no notório diálogo que estabeleceu com
Norman McLaren no momento de sua contratação (McLaren integrou o time do
G.P.O a parti de 1936): “O que você aprenderá aqui é a disciplina. Você tem
294
SUSSEX, Elizabeth Cavalcanti na Inglaterra In PELIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI,
Claudio M. Alberto Cavalcanti, 1995, p. 324.
295
Fonte: Site www..screenonlIne.org.uk Original em Inglês: Another memorable experimental
sequence occurs when Mrs Pott has become a virtual slave to her own maid. Her toil is expressed
through a montage sequence: first, a calendar is shown and is Intercut with Mrs Pott trudgIng up
steps with a heavy load of shoppIng. As the calendar rapidly flicks through the days, the same
repetitive image of Mrs Pott is shown, while a sparse, monotonous drum pattern is heard on the
soundtrack. This moment recalls a sequence In the avant-garde film Ballet mécanique (d. René
Clair, France, 1924), In which a woman's movement goIng up steps is looped.
139
imaginação suficiente, não precisa se preocupar com isso. Mas se tornará
disciplinado”296.
Enquanto o cinema documental conquistava respeito e espaço no mercado,
o cinema comercial inglês vivia um momento conturbado, marcado por
escândalos de desvio de verbas. Na época foi criada uma revista dedicada ao
cinema independente, a World Film News (1936 – 1938), que desde o início
conquistou prestígio considerável junto à classe cinematográfica. Em suas páginas
foi publicado o artigo Money Behind the Screen, escrito por Stuart Legg e F.D.
Klingender, que mais tarde foi reproduzido em um livro que recebeu prefácio de
John Grierson.297 Este artigo denunciava os mecanismos que permitiam que os
“intermediários” dos filmes pudessem desviar boa parte da verba das produções, o
texto ressalta também a hegemonia da produção norte-americana nas telas
inglesas, os autores afirmaram que dois terços do mercado pertenciam à
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
hollywood.
A situação era curiosa: na Grã-Bretanha, onde se gastava milhões de libras
esterlinas na indústria cinematográfica, malgrado as leis de contingente muito
hábeis, não existia por assim dizer o filme inglês. Todos os que se interessavam
pelo problema, os críticos, os técnicos, os artistas, não tinham senão uma única
esperança: o G.P.O Film Unit.... Os neorrealistas tinham consciência das grandes
responsabilidades que lhes tocava298.
A fortuna teórica inglesa procurou acompanhar a emergente produção
cinematográfica, o começo da década de 1930, que marcou um novo tempo para o
cinema na Inglaterra, assistiu também ao surgimento de cineclubes e de revistas
especializadas no assunto, como a consagrada Sign and Sounds, que teve o seu
primeiro número editado em 1932.
O estabelecimento da Film Society em 1925 criou uma comunidade de cinéfilos,
pelo menos em Londres (outras cidades seguiram o exemplo) e dois anos depois,
o jornal Close-Up, que se entusiasmou pela vanguarda, se tornou uma fonte de
notícias, informações e uma plataforma para debater, discutir e expressar seus
296
GRIERSON, John In CUNNINGHAM, John. The Avant-garde, the GPO Film Unit, and
British Documentary in the 1930s, p. 165. Original em inglês: What you will learn here is
discipline. You have enough imagination, you need not worry about that. But you are goIng to get
disciplined.
297
O artigo na íntegra foi digitalizado em 2013 e se encontra na íntegra neste li237nk:
https://archive.org/stream/moneybehindscree00fdli/moneybehIndscree00fdli_djvu.txt.
298
CAVALCANTI, Alberto O filme documentário (1951) In PELIZZARI, Lorenzo e
VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti, 1995, p 254. (Os neorrealistas a que a citação
acima se refere são os documentaristas do grupo de Cavalcanti e Grierson).
140
pontos de vista. Close-Up juntou-se a outras publicações vanguardistas, como a
Film Art , que apareceu de forma errática de 1933 a 1937. O ano de 1932 assistiu
àprimeira edição de Sight and Sound, que continua sólida até hoje. No ano
seguinte, os britânicos criaram o British Institute. Em um tempo relativamente
curto, houve uma grande mudança nas bases299.
A G.P.O Film Unit cresceu de forma exponencial, grandes empresas
britânicas de diferentes setores procuraram os serviços da produtora capitaneada
por Grierson, entre elas a Travel Association, a Shell Mex, a Gas Light and Coke,
Anglo Persian Oil, entre outras. Para atender a demanda a G.P.O contava com
mais de vinte equipes trabalhando ao mesmo tempo.
O perfil surrealista de Cavalcanti encontrava ecos no contexto artístico
daquela época, em 1936 Londres recebera a exposição International Surrealism
Exhibition. Liderado por André Breton, com obras de Klee, Duchamp e Picasso,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
entre outros, o evento recebeu a visita de mais de mil ingleses por dia. 300
Uma divisão de tendências então se precisa: Grierson acentua o estilo direto
funcional, enquanto que, em torno de mim mesmo, se agrupam os fiéis às
pesquisas, experimentando, até os limites de um certo preciosismo, com o som e
a cor301.
3.2.
O começo do fim
Diante do boom do cinema documental inglês e do imenso volume de
trabalho, em 1937, Grierson cria a sua própria produtora, o Film-Center, que
desde o começo se mostraria tão poderosa quanto a G.P.O. Enquanto isso
Cavalcanti iria assumir um projeto que expandiria as fronteiras do documentário
inglês além das ilhas britânicas.
299
CUNNINGHAM, John. The Avant-garde, the GPO Film Unit, and British Documentary in the
1930s p.157 Original em Inglês: The establishment of the Film Society In 1925 created a
community of cInephiles, at least In London (other cities followed suit) and two years later the
journal Close-Up, which took a keen Interest In the avant-garde, gave film enthusiasts news,
Information, and a platform to debate, discuss and express their views. Close-Up was joIned by
other publications such as the enthusiastically avant-gardist Film Art which appeared somewhat
erratically from 1933 to 1937. 1932 saw the first issue of Sight and Sound, still goIng strong today
and In the following year the British Film Institute was established. In a relatively short time there
was a major ground shift.
300
Ver CUNNINGHAM, John. The Avant-garde, the GPO Film Unit, and British.
Documentary in the 1930s, p.158.
301
Ibidem, p. 255.
141
O contrato com a March of Time, dirigida pelos irmãos norte-americanos
Rochemont, produtores de reportagens cinematográficas, em uma co-produção
com o governo suíço, dirigida e produzida por Cavalcanti, iria render uma série de
filmes, entre eles, We live in two worlds (1936), com argumento de J.B. Priestley
e música de Maurice Jaubert.
Enquanto isso, com uma distribuição fora do circuito comercial, os filmes
realizados pela G.P.O alcançavam um público de mais de 10 milhões de
espectadores por ano; “Não se tratava mais de um duelo com os comerciantes: era
um cerco que lhes mostrava de todos os lados que havia filmes diferentes e
socialmente superiores ao filme que eles defendiam”302.
Mesmo diante do sucesso do documentarismo inglês junto ao mercado e à
crítica, a estrutura de produção e os recursos permaneciam escassos. A imensa
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
diferença de estrutura entre o cinema documental e comercial na Inglaterra
daquele tempo, e, sobretudo, o abismo entre a postura dos magnatas do cinema
comercial, e a idealista existência dos marxistas/socialistas do documentário,
inspirou um belo texto do escritor Graham Greene, que mais tarde se tornaria
amigo de Cavalcanti no período em que foram vizinhos em Capri:
Porém a impressão que eu quero dar é que aqui, nestas pequenas companhias de
produção de documentário, existem ainda diretores que vivem normalmente,
apanhando material imaginativo na rua, na casa vizinha, e não diretores
internados, com centenas de libras por semana, em escritórios atapetados,
silenciosos, tão em moda no cinema comercial, lutando para se lembrar como a
gente vivia quando eles ainda viviam, quando havia o fogão à gás, o café com pão
e a conta do senhorio. E como a memória se vai apagando enquanto as
taquígrafas rabiscam o seu caderninho, eles se recostam com um suspiro de
cansaço e recomeçam a velha história do amor eterno303.
Cavalcanti tinha consciência da importância daquele momento para o
cinema britânico junto à G.P.O, instaurando um novo tempo no cinema, em que a
realidade e a ficção se misturavam na narrativa:
Todos (os filmes) tendendo a dramatizar o real, a forçar o público a se interessar
pelas questões essenciais do país. Todos tratados com grande preocupação de
veracidade e, malgrado os orçamentos muitas vezes restritos, de uma grande
302
CAVALCANTI, Alberto. O filme documentário In PELIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI,
Claudio M. Alberto Cavalcanti, 1995, p. 255.
303
GREENE, Graham apud CAVALCANTI Alberto O filme documentário (1951) In
PELIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti, 1995, p 255.
142
perfeição técnica. Todos, sem dúvida, mais dramáticos, e mais cinematográficos
que o adultério da Sra. X, o ciúme do Sr. Y, ou a inconstância da Srta. Z304.
Muito à frente do seu tempo Cavalcanti já percebia como a dramaturgia
era inerente à linguagem cinematográfica de forma orgânica, “Eu considerava que
não havia diferença alguma entre o cinema de ficção e o resto”.305 Foi este
pensamento que aproximou Cavalcanti do cinema que Sir. Michael Balcon se
interessava em fazer na Ealing, como veremos a seguir.
Havia uma real curiosidade sobre aquela camada da sociedade britânica
que sustentava o tão celebrado crescimento industrial do país. Grierson, em sua
formação social-democrata, e Cavalcanti e seus companheiros de G.P.O, com sua
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
predileção marxista, souberam aproveitar aquele momento. Aitiken diria que:
Essas idéias representavam uma concepção corporativa da sociedade, na qual os
fenômenos individuais e sociais eram percebidos como sendo integrados, em
diferentes níveis, dentro da totalidade social. Como consequência dessa crença,
Grierson argumentava que ideologias que promoviam a integração eram "boa
propaganda", enquanto as que promoviam a divisão eram "propaganda do diabo".
Ele acreditava que ocorriam conflitos porque indivíduos e instituições
desconheciam a interdependência social subjacente, e porque eles foram
enganados por uma percepção superficial de conflito e divisão. Ele rejeitava a
idéia de que havia divisões fundamentais e irredutíveis na sociedade, e acreditava
que era uma ignorância não apostar no conceito da realidade como uma
interdependência em evolução 306.
A função do documentário passa a ser então explicar o mundo às pessoas e
“promover a integração social”, mesmo que nesta explicação do mundo, não
caibam, por exemplo, as mazelas daquele mundo a ser explicado. A maioria dos
filmes do G.P.O, embora exaltassem o trabalhador, não se preocupava em
explicitar as contradições do capitalismo industrial e as péssimas condições de
trabalho dos seus personagens.
304
CAVALCANTI, Alberto. Filme e realidade, p. 79.
CAVALCANTI, Alberto apud SUSSEX Elizabeth Cavalcanti na Inglaterra In PELIZZARI,
Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti, 1995, p 324.
306
AITKEN, Ian In CUNNINGHAM, John. The Avant-garde, the GPO Film Unit, and British
Documentary In the 1930s (Eger Journal of English Studies VIII. 2008) p.159 - Original em
Inglês: These ideas amounted to a corporatist conception of the society, In which Individual and
social phenomena were perceived as beIng Integrated, at different levels, withIn the social totality.
As a consequence of this belief, Grierson argued that ideologies which promoted Integration were
‘good propaganda’, whilst those promoted division were ‘propaganda of the devil.’ He believed
that social conflict occurred because individuals and institutions were unaware of underlyIng
social inter-dependency, and because they were deceived by a superficial perception of conflict
and division. He rejected the idea that there were fundamental and irreducible divisions In society,
and believed that it was an ignorance of the underlyIng ‘continuing reality’ of evolvIng Interdependence which led to such perceptions.
305
143
Contraposto a Grierson, existe a influência de Cavalcanti a ser considerada.
Quase todos os filmes da GPO Film Unit com quaisquer inclinações para a
experimentação ou a vanguarda têm o envolvimento de Cavalcanti em algum
nível. Ele é diretor da Coalface, produtor de todos os filmes de Len Lye, e (com
uma exceção) os filmes de Norman McClaren e cinco filmes de Jennings, ele
também tem créditos de produção em ambos os filmes da Lotte Reiniger. Como
um todo, Cavalcanti trabalhou diretamente em mais filmes da GPO do que
Grierson. Sua importante influência nunca deve ser subestimada, mas isso
também não deve prejudicar a nossa compreensão de Grierson como a autoridade
máxima na Film Unit307.
Esta conjuntura da representação da realidade conectada com a
manutenção de suas estruturas encontra eco nas palavras de Kracauer em As
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
pequenas balconistas vão ao cinema:
Os filmes são o espelho da sociedade constituída. Eles são financiados por
corporações que, a todo custo, precisam identificar o gosto do público para obter
lucro... De fato, os filmes feitos para as classes mais baixas da população são
sempre mais burgueses do que aqueles para o público mais refinado,
precisamente porque eles tocam em pontos de vista mais subversivos sem
explorá-los, no entanto, introduzem furtivamente uma forma de pensamento
respeitável308.
Embora Cavalcanti tivesse objetivos artísticos para o cinema que desejava,
ele estava tutelado por uma estrutura institucional, que certamente estabelecia
algum tipo de limite para a sua liberdade de criação em pontos decisivos.
John Cunningham, em seu artigo sobre a relação da avant-garde com o
cinema realizado pelo G.P.O Film Unit - e de uma forma mais ampla, o cinema
britânico - estabelece alguns pontos primordiais que podem ter impedido um
maior florescimento da vanguarda dentro do movimento.
1) A posição artística de Grierson, em particular sua “impulsão racional”, atitude
inconsistente com o que ele freqüentemente descartou como "estética"
2) Censura. Não podemos esquecer de que os filmes britânicos neste momento
eram muito censurados.
307
CUNNINGHAM, John. The Avant-garde, the GPO Film Unit, and British Documentary In the
1930s, p. 160. Original em Inglês: Counterposed to Grierson there is the Influence of Cavalcanti
to be reckoned with. Almost all the films of the GPO Film Unit with any InclInations towards
experimentation or the avant-garde have Cavalcanti’s Involvement In some capacity. He is director
on Coalface, producer for all the films of Len Lye, and (with one exception) Norman McClaren’s
films and five of JennIngs’ films, he also has production credits on both films of Lotte ReIniger. In
all, Cavalcanti worked directly on more GPO films than did Grierson and his Influence should
never be underrated, important as this is it should also not detract from our understandIng of
Grierson as the ultimate authority at the Film Unit.
308
KRACAUER, Siegfried. O ornamento das massas. São Paulo: Cosac Naif, 2009. p. 311.
144
3) Custo. A Unidade de Filme era constantemente sufocada por escassos
recursos. Por exemplo, eles foram forçados a comprar o sistema de som mais
barato disponível.
4) Eu acredito que há alguma falta de clareza sobre a "missão" da Film Unit, ou
mais especificamente, como esta missão deveria ser implementada e após a
partida de Grierson, estas lacunas se revelaram.
5) Uma hostilidade subjacente à arte abstrata e não representativa entre grande
parte da intelligentsia britânica na época.
6) A crise política em desenvolvimento na década de 1930 e a pressão para o
realismo, particularmente a partir da esquerda.
7) A hostilidade da indústria cinematográfica britânica para o trabalho da
Unidade de Cinema que viu o apoio do governo recebido pelo GPO Film Unit
como "concorrência desleal"309.
8) Hostilidade do governo. Círculos governamentais da época percebiam A GPO
Film Unit como um viveiro do bolchevismo, apesar da clareza apolítica nas
atitudes de muitos funcionários e a natureza não-incendiária dos filmes 310.
Grierson não apostava no cinema como um espelho da realidade, o seu
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
“cinema-martelo” era antes de tudo um instrumento funcional que deveria moldar
a sociedade, disciplinando-a para que atendesse à coletividade. Na contramão
desta premissa, Cavalcanti acreditava na experimentação como caminho para o
cinema como obra de arte. “De fato, ele (Cavalcanti) deixava entender que sua
concepção de cinema “realista”, era mais ampla do que a noção etiquetada do
termo documentário, de Grierson.” 311
Enquanto isso Cavalcanti seguia arriscando em suas experimentações,
como foi o caso de Night Mail, que teve edição sonora construída antes das
imagens. E de outros filmes em que defendeu a montagem não sincronizada.
309
ROTHA, Paul. Documentary Film. London, Faber and Faber, 1973, p. 115-122.
Ibidem, p. 161-162. Original em inglês: 1) The artistic stance of Grierson, particularly his lukewarm and Inconsistent attitude to what he frequently dismissed as the ‘aesthetic’ 2) Censorship. It
is easy to forget that British films at this time were heavily censored. 3) Cost. The Film Unit was
constantly strapped for cash. For example they were forced to purchase the cheapest sound system
available. 4) I believe there is some lack of clarity in what the ‘mission’ of the Film Unit actually
was, or more specifically, how the mission was to be implemented and after Grierson’s departure
clear fault lInes were to emerge. 5) An underlyIng hostility to abstract and non-representational art
among large sections of the British Intelligentsia at the time. 6) The developIng political crisis In
the 1930s and the pressure for realism, particularly from the left. 7) The hostility of the
maInstream British film Industry to the work of the Film Unit who saw the government support
received by the GPO Film Unit as 'unfair competition'(See Rotha 1973: 115-122). 8) Government
hostility. Government circles of the time perceived of the GPO Film Unit as a hotbed of
Bolshevism despite the obvious apolitical attitudes of many of the staff and the non-Incendiary
nature of the films.
311
SUSSEX, Elizabeth Cavalcanti na Inglaterra In PELIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI,
Claudio M. Alberto Cavalcanti, 1995. p. 333.
310
145
Com a coragem de cometer erros deste tipo certos filmes de curta-metragem do
G.P.O Film Unit em Londres, foram mais longe e provaram que o valor
dramático da palavra-diálogo na tela está também fora do sincronismo.... Esse uso
da voz não-sincrônico tem possibilidades infinitas que permitirão o
restabeecimento do ritmo cinematográfico. Infelizmente ele é empregado muito
raramente. 312
Em CoalFace Cavalcanti já havia experimentado os resultados estéticos da
montagem não sincronizada, ele mencionaria algumas vezes em suas entrevistas,
que CoalFace, de alguma forma, havia sido um laboratório para Night Mail. Em
CoalFace, assim como anteriormente em Pett and Pott – como foi dito aqui em
uma decisão conjunta de Cavalcanti e Grierson - Cavalcanti optou por montar
primeiro a banda sonora, para depois anexar as imagens. Se em Pett and Pott o
resultado não alegrou os realizadores, em CoalFace, ocorreu o oposto, e o filme
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
se mostrou potencialmente inovador e ousado, diria Paul Rotha sobre o processo:
O montador mais sábio irá editar sua imagem apenas de forma preliminar antes
de criar sua banda sonora, e mesmo durante esta primeira montagem, como
durante o roteiro e filmagem, o som é mantido em mente. Alternativamente,
Cavalcanti fez alguns experimentos para compor primeiro a montagem sonora e a
partir disso montar as imagens313.
3.3.
Filme e realidade – ensaio imagético sobre o documental
Nos seus últimos anos de G.P.O, em 1939, Cavalcanti realizou uma obra
que de alguma forma, se exprimiu como filme síntese do seu relicário conceitual
Com produção do The National Film Library e do BFI – British Film Institute,
“Filme e Realidade” é um documentário de 100 minutos, no qual o diretor faz
uma colagem de trechos de filmes fundamentais para o seu entendimento do que é
o cinema.
Infelizmente, a seleção de trechos escolhidos por Cavalcanti não agradou a
todos, em especial os seus companheiros de G.P.O Paul Rotha, que não teve
312
CAVALCANTI, Alberto O estudo do cinema como meio de expressão (Bianco e Nero, Roma,
1930) In PELIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti, 1995, p. 199.
313
ROTHA, Paul. Documenthary Film: the use of film as médium interpret creatively and in social
terms the life of people as it exists In reality. London: Faber and Faber, 1966.p. 159. Original em
Inglês: The wiser cutter will edit his Picture only in rough form before the creates his sound, and
even during this first assembly, as durIng the script and shooting, the sound is kept closely In
mInd. Alternatively Cavalcanti has made some experiments In composIng first his sound and than
cuttIng his picture to it.
146
nenhum filme incluído na coletânea de Cavalcanti, e Grierson, que teve o trecho
do seu Driffters “musicado” por Cavalcanti:
Com meu senso de humor inconveniente coloquei em Driffters a música de La
Grotte de Fingal de Mendelssohn, o que o transformava numa espécie de filme
romântico, e não creio que Grierson tivesse ficado realmente encantado..., mas
você deve entender que Grierson no fundo era um demagogo. Sim, com parentes
pastores, tinha tendências para a pregação. E ele adorava pregar – este tipo de
coisa, vale dizer que ele fazia isso muito bem314.
Filme e Realidade demorou três anos para ficar pronto, só foi finalizado
em 1942, no auge da guerra. No longa-metragem de 100 minutos, Cavalcanti
desenvolve um ensaio audiovisual sobre a evolução da narrativa documental no
cinema, reunindo trechos de 59 filmes, quase todos documentais, com raras
exceções como Rien que les heures. Montado em ordem não cronológica, Filme e
realidade incorpora trechos de filmes de Lumière, Tom Mix, Eisenstein, Dieterle,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Méliès, Renoir na primeira parte da narrativa, na segunda parte Cavalcanti elegeu
Allégret e André Gide, Robert Flaherty, Walter Ruttmann, Eisenstein, Harry Watt
(North Sea), Benoît-Lévy e Jean Vigo entre outros.
Elizabeth Sussex reservaria alguns parágrafos do seu texto antológico
sobre a passagem de Cavalcanti pela Inglaterra315, para falar de Filme e
Realidade: “Sugestivo e às vezes surpreendente, esta coleção de extratos de filmes
realistas de todas as épocas, incluindo a atualidade, provocou a ira violenta de
certos documentaristas britânicos”.316
Rotha em 1973 (mais de 30 anos após o lançamento de Filme e Realidade),
em seu Documentary Diary diria que esse filme:
...não fazia justiça aos objetivos sociais do grupo documentário britânico, cujo
trabalho aparece de uma maneira inadequada e falsa...A despeito dos protestos da
Associated Realist Film Producers, em particular sob a forma de uma longa carta
ao Times, o filme não foi retirado de circulação, ainda que certas cinematecas
314
CAVALCANTI, Alberto apud SUSSEX Elizabeth Cavalcanti na Inglaterra In PELIZZARI,
Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti, 1995, p. 332.
315
SUSSEX, Elizabeth Cavalcanti na Inglaterra In PELIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI,
Claudio M. Alberto Cavalcanti, 1995.
316
SUSSEX, Elizabeth Cavalcanti na Inglaterra In PELIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI,
Claudio M. Alberto Cavalcanti, 1995, p. 331.
147
continentais suspendessem sua difusão. Creio saber que em certos lugares ele
ainda hoje é visto317.
O crítico William Whitebait sairia em defesa de Cavalcanti, depois dos
ataques Rotha, dizendo que o Ministério de Informação tinha dívidas eternas com
Cavalcanti, Rotha rebateria afirmando que “é a um único homem, a John
Grierson, que era justo atribuir a inspiração dos cerca de 300 filmes
documentários feitos na Grã-Bretanha entre 1929 e 1939, incluindo aqueles que
Cavalcanti dirigiu”. 318
Infelizmente não existe nenhuma cópia de Filme e Realidade no Brasil,
nem na Cinemateca do MAM ou na Cinemateca Brasileira. A única cópia
existente, segundo as minhas pesquisas, está depositada no BFI. O filme foi
exibido no Brasil em pelo menos duas ocasiões, no Festival de Cinema do Rio,
organizado pelo Círculo de Estudos Cinematográficos do Rio de Janeiro, na
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
sessão Gala Cavalcanti, em 10 de dezembro de 1950319 e na 26ª edição da Mostra
de Cinema de São Paulo, em 2002320.
Diante da impossibilidade de assistir a Filme e Realidade, não pude
construir uma avaliação crítica do longa-metragem. Nos textos críticos a que tive
acesso é recorrente a informação de que a colagem de Cavalcanti irritou
profundamente à nata da produção documental britânica. Paul Rotha e Grierson
certamente não estavam sozinhos na posição de ofendidos pela resenha fílmica de
Cavalcanti, ameaçando até mesmo a sua exibição em alguns circuitos. Ao que
tudo indica, o grande dissabor de Rotha veio do fato de ele ter sido eliminado do
inventário de Cavalcanti sobre o cinema documental, segundo o brasileiro, por
pura falta de tempo narrativo ele teve de cortar os trechos de Rotha que usaria em
Filme e Realidade. Sussex avalia o longa testemunho de Cavalcanti, que abre com
Rien que les heures, e passa “uma estimulante impressão da grande variedade do
material cinematográfico rodado numa veia naturalista bem antes que se sonhasse
317
ROTHA, Paul apud SUSSEX, Elizabeth Cavalcanti na Inglaterra In PELIZZARI, Lorenzo e
VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti, 1995, p 331.
318
Ibidem, p 332.
319
Revista Cinemin nr. 48 Rio de Janeiro (RJ) : Editora Brasil América, 1988. p. 20.
320
http://40.mostra.org/br/filme/3100-Filme-e-Realidade.
148
com o documentário britânico. De Marey e os irmãos Lumiere, passando pelas
atualidades e os filmes educativos”321. Sussex conclui dizendo que:
O documentário britânico é visto como um movimento que visa utilizar o cinema
para a educação cívica...Só posso dizer que recentemente vi Film and Reality no
British Film Institute e que enquanto for visível, revisões serão possíveis. Aliás, o
tempo também devolve as coisas ao seu devido lugar 322.
Uma das consequências mais importantes das diferenças e eventuais
embates entre Grierson e Cavalcanti foi o quanto isso dificultou o registro da
importância de Cavalcanti para a historia do cinema britânico, e por consequência,
para a historia do cinema em sua totalidade. “Se existe um cinema britânico”, diz
Michael Balcon, “eu situaria a contribuição de Cavalcanti entre as mais
importantes... pois (sic) curiosamente sua obra não aparece nos créditos. Todo o
problema reside aí”323.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Grierson costumava argumentar que o próprio Cavalcanti pediu que seu
nome não constasse nos créditos dos filmes, segundo ele, para não impedir uma
eventual carreira do cineasta na ficção na Inglaterra, mas não é o que Cavalcanti
diz, como foi citado aqui, o interesse dele na ficção em sua mudança para a
Inglaterra era nulo. Grierson costumava dizer também que: “Durante os anos
Cavalcanti não constou dos créditos. A coisa nos importava pouco, só depois é
que se tornou importante para as pessoas do documentário”324.
Mas não era bem assim que Cavalcanti via a questão dos créditos: “Na
maioria das vezes meu nome era omitido, e agora dizem que eu tentava me
refugiar na indústria da ficção. Trabalhei durante sete anos em troca de um salário
de fome...”325. E continua sobre CoalFace:
É um filme que eu montei integralmente e concebi eu mesmo o som. Era um
filme de montagem. Harry filmou uma sequência e Jennings outra. Utilizamos
algumas tentativas de Flaherty. Truquei tudo, fiz muitas tomadas no estúdio para
321
SUSSEX, Elizabeth Cavalcanti na Inglaterra In PELIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI,
Claudio M. Alberto Cavalcanti, 1995, p. 332 e 333.
322
Ibidem, p. 333.
323
Ibidem, p. 333.
324
GRIERSON, John apud CAVALCANTI, Alberto In PELIZZARI, Lorenzo e
VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti, 1995, p. 318.
325
CAVALCANTI, Alberto apud SUSSEX Elizabeth Cavalcanti na Inglaterra In PELIZZARI,
Lorenzo In PELIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti, 1995, p.
318 e 319.
149
montar o material de Flaherty, e nada disso me foi atribuído. Não reclamei.
Afinal de contas não passava de um pequeno filme. Uma experiência com Night
Mail me valeu o prêmio Auden e Britten pela “direção de som”, mas este posto
não me foi creditado. Fiz mais que isso, toda a montagem, a concepção de
conjunto, saindo diretamente de Coalface326.
De fato, a questão dos créditos vai além do território das vaidades para
transitar pelo campo da memória, do registro impresso na história oficial que será
fonte para cinéfilos e pesquisadores. O fato é que a restauração de créditos
fidedignos parece estar sendo feita ao longo do tempo, sobretudo, pelo BFI. Ao
longo da minha pesquisa me deparei com inifinidades de ambiguidades e
informações controversas nesta seara, para tentar sanar esta incerteza sobre a
informação correta, criei uma espécie de método em que eu comparei o crédito do
mesmo filme em diferentes fontes para me certificar de qual seria a mais confiável
a partir do critério da repetição, levando-se em conta é claro uma hierarquia de
confiabilidade, em que o BFI é a fonte soberana. Na opinião de Sussex, a questão
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
dos créditos vai além da importância que a ela tem sido dedicada:
A reputação de Cavalcanti repousa, de uma maneira muito ampla, no testemunho
daqueles que trabalharam com ele, o que não leva forçosamente a que não se lhe
faça justiça. Muitas vezes, a formulação do crédito, não permite que se ressalte
uma influência tão variada e sutil como a sua. A exemplo do grande esforço que
representou a obtenção, através de Grierson, dos fundos iniciais do documentário,
a marca que lhe imprimiu Cavalcanti em seguida só pode ser diminuída pelo
conjunto de funções que transmitem os créditos327.
A questão dos créditos era um ingrediente a mais na conturbada relação
interpessoal entre os cabeças da G.P.O, a atmosfera de desafeto entre ambos se
tornou notória entre a equipe da G.P.O, Cavalcanti dizia que: “Ele vinha ao
estúdio para atrapalhar meu trabalho...Tinha por hábito transferir as pessoas
sistematicamente, o que me incomodava muito... Mas todo mundo em Blackheath
sabia disso”328.
Em sua biografia, Harry Watt endossou as suspeitas de Cavalcanti sobre o
comportamento nada amistoso de Grierson em relação a ele: “Grierson não pode
326
Ibidem, p. 319.
BALCON Michael apud SUSSEX, Elizabeth Cavalcanti na Inglaterra In PELIZZARI,
Lorenzo In PELIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti, 1995,
p.334.
328
CAVALCANTI, Alberto apud SUSSEX, Elizabeth Cavalcanti na Inglaterra In PELLIZZARI,
Alberto e VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti, p. 319.
327
150
suportar bem o fato de que nós, os técnicos, cada vez mais frequentemente
apelávamos a Cavalcanti para discutir os nossos problemas”329.
Quando Grierson deixa o G.P.O em 1937 para criar o Film Center, Sir
Stephen Tallents que sempre o havia apoiado desde os tempos do Empire
Marketing Board, era então o surpevisor de relações públicas de além-mar da
BBC, e havia se tornado membro ativo do Imperial Relations Trust, criado pelo
governo britânico naquele mesmo ano. E foi através deste órgão que Tallents
mandaria Grierson para o Canadá em 1939.
A saída de Grierson às vésperas da eclosão da guerra deixou um rastro de
caos entre a equipe, mesmo que sua ausência significasse maior liberdade para
Cavalcanti. A guerra era um fantasma o brasileiro conhecia bem, desde os tempos
em Paris durante a primeira grande guerra, quando tinha de se esconder com a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
família em abrigos anti-aéreos. A relação profunda com as guerras, que
permearam toda a sua temporada na Europa, fez de Cavalcanti um pacifista
ferrenho, e foi talvez movido por este ímpeto que ele tentou participar mais
ativamente da resistência ao fascismo durante a Guerra Civil Espanhola, como
relata em suas memórias um episódio surpreendente, Cavalcanti contou que Buñel
teria sido enviado pela resistência espanhola para solicitar que a Inglaterra
apoiasse a causa:
...dirigia-se Cavalcanti ao público e fez um apelo no sentido de angariar donativos
para a guerra na Espanha. Isto em Glasgow. Logo que voltou a Londres foi
chamado à direção do G.P.O. que o informou muito gentilmente , que ele como
estrangeiro, era de qualquer modo, um funcionário do Governo Inglês, e como tal
estava proibido de tomar partido pela causa dos republicanos espanhóis. Isto no
famoso governo do senhor-chapéu-de-chuva Chamberlaim, que conduziu todo
mundo à segundo pavorosa guerra mundial...O fato, minha gente, é que o governo
inglês, diante do assalto fascista levado a cabo na Espanha, se manteve em uma
indiferença de mandarim, a ponto de recusar a Buñuel, enviado especial do
governo espanhol, a venda de armas, sob o pretexto de neutralidade, enquanto a
Alemanha e a Itália abastecia Franco de tudo que necessitava, aproveitando-se do
povo espanhol como verdadeira cobaia, experimentando forças que logo depois
seriam usadas contra a própria Inglaterra...Foi por ocasião que o cineasta a
espanhol...declarou a Cavalcanti: “Não tenho mais dúvida nenhuma meu amigo.
A guerra mundial começará logo que acabar a guerra de Espanha”. E assim foi
para a desgraça dos Lorcas330.
329
WATT, Harry apud SUSSEX, Elizabeth Cavalcanti na Inglaterra In PELLIZZARI, Alberto e
VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti, p. 319.
330
BORBA FILHO, Hermilo. Memórias acervo Sergio Caldieri páginas não numeradas.
151
Com a saída de Grierson a G.P.O Film Unit passou a se chamar The
Crown Film Unit e a sede da produtora passa para a Pinewood Studios. A equipe
ficou sob a tutela de Cavalcanti, que permaneceu no posto até 1940, quando saiu
depois da exigência do Ministério das Relações Exteriores britânico de que se
naturalizasse cidadão britânico.
A iminência da guerra, trouxe questões urgentes a serem tratadas pelo
cinema, fazendo o realismo ampliar a sua zona de influência:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Quando a Segunda Guerra Mundial se aproximou, ouviu-se um clamor que pedia
uma mudança decisiva para o realismo ... Após a partida de Grierson, estas
pressões começaram a se mostrar dentro da própria unidade e há o início de uma
mudança para a mistura de ficção e documentário que atingiu seu pico durante a
guerra com filmes como Fires Were Started. A experimentação formal tornou-se
muito mais limitada, e enquanto o cinema britânico como um todo entrou em um
período dourado na década de 1940, isso aconteceu, até certo ponto, pagando o
preço de enterrar a vanguarda sob o peso do seu realismo331.
A partida de Grierson em 1939, se deu após um convite do Ministério das
Relações Exteriores canadense, para que fundasse o National Film Board of
Canada, que se tornaria um celeiro de experimentação sobretudo no campo da
animação. Um dos nomes fundamentais neste processo foi um antigo colaborador
de Grierson e Cavalcanti no G.P.O Film Unit: Norman McLaren.
A partida de Grierson e a pressão do governo inglês para que Cavalcanti se
naturalizasse cidadão britânico somados ao esgotamento do modelo de
documentário com forte teor experimental que ele esperava realizar, criaram uma
equação que iria catalisar a partida de Cavalcanti da G.P.O. O realismo em
tempos de guerra asfixiava as aspirações estéticas, e Cavalcanti viu seu trabalho
no documentarismo estagnado sob a efígie da urgência do factual, do filme como
mero registro, estes fatores desenharam então a ponte para que ele atravessasse
um atalho em direção ao cinema de ficção no Ealing Stúdios.
331
CUNNINGHAM, John. The Avant-garde, the GPO Film Unit, and British.
Documentary In the 1930’s, 2008. p. 165 – Original em inglês: As World War two approached the
voices callIng for a decisive shift towards realism... After Grierson’s departure these pressures
began to show withIn the unit itself and there is the begInnIng of a shift towards the blendIng of
narrative and documentary which reached its peak In the war years with film such as Fires Were
Started. Formal experimentation became much more limited and while British cinema as a whole
entered a golden period In the 1940s, it did so, to some extent, at the cost of buryIng the avantgarde under the weight of its realism.
152
3.4.
Zonas de convergência - Cavalcanti, o Neorrealismo italiano e o
Cinema Novo brasileiro
O realismo não é neo nem passado, é realismo e ponto.
Alberto Cavalcanti332
O realismo para Cavalcanti ia muito além da representação simétrica da
realidade, para ele o cinema documental deveria romper as fronteiras estéticas e
conceituais que o encarceravam e alcançar a imagem em movimento em sua
totalidade. Foi acreditando nesta premissa que Cavalcanti deixou a sua marca na
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
proposta cinematográfica do G.P.O:
A vanguarda não conheceu o documentário. Ele é uma das formas do cinema, um
gênero, e então se tratava de definir esta arte para além dos gêneros que poderiam
aparecer ulteriormente. Para mim o documentário nasceu na Inglaterra. Utilizo
este termo a contragosto. É a palavra mais desapropriada, e inevitavelmente
evoca em minha mente a velha papelada poeirenta. Sempre me esforço para
descrevê-lo como um testemunho realista da vida. O realismo não é neo nem
passado, é realismo e ponto333.
No capítulo dedicado ao cinema noir realizado na Ealing (Dark shadows
around Ealing), escrito por Robert Murphy para o livro Ealing Revisited, (2012) o
autor diz que “Cavalcanti viu o realismo como um elemento cinematográfico
essencial, uma forma de expressão específica para o cinema334”. E complementa
dizendo que: “Os seus protegidos na Ealing tinham suas próprias idéias sobre
como o realismo deveria ser tratado335”. Nos parágrafos seguintes o autor enumera
diretor a diretor, trabalho a trabalho, como a influência de Cavalcanti fora
absorvida por seus “protégés” enquanto esteve na Ealing, revelando como o
brasileiro somou em seu currículo um incrível talento para formar novos
realizadores por onde passou, transcendendo o espírito didádico grisorniano em
uma forma única de transmitir conhecimento e influenciar novas gerações.
Em vários textos publicados na Inglaterra sobre Cavalcanti os autores se
referem a ele como “Brazilian cosmopolitan”, o que sugere a imensa importância
332
CAVALCANTI, Alberto apud MARTIALAY I. F. “Eu era surrealista com tendência ao
realismo” (em: Film Ideal, 62, dezembro de 1960, Madri) (aspas do original) In PELLIZZARI,
Alberto e VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti, p. 282.
333
Ibidem.
334
MURPHY, Robert Dark shadows around Ealing In DUGUID Mark, FREEMAN Lee,
JOHNSTON Keith e WILLIAMS Melaine Ealing Revisited . London: BFI, 2012, p. 90.
335
Ibidem.
153
que atribuem ao fato do cineasta ter transitado não só por diferentes territórios,
mas também por múltiplas culturas. Sua experiência na França, e posteriormente
na Inglaterra, Alemanha, Suíça, Itália, Israel e Brasil, enumerando apenas parte
dos países onde Cavalcanti trabalhou, é imensamente valorizada na imagem que
se desenhou dele na fortuna crítica e ensaística publicada no mundo.
Cavalcanti plantou raízes flexíveis, livres e inventivas que fizeram nascer
em seu cinema a semente de uma estética que foi absorvida por diferentes
cinematografias posteriores. Me concentrarei aqui no Neorrealismo italiano, para
mim o herdeiro mais notório do cinema proposto por Cavalcanti em sua face
documental. Estabelecerei neste tópico alguns pontos chave desta zona de
convergência, na tentativa de se ampliar a reflexão sobre a poética social
fundadora do cinema moderno, atribuída por alguns autores ao Neorrealismo.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Usarei como texto de referência teórica, as premissas que Cavalcanti
estabelece em Notas aos jovens documentaristas, a famosa carta que escreveu
com quatorze tópicos fundamentais para o cinema documental, destinada à jovens
estudantes de cinema dinamarqueses, em 1948336.
A opção de ter como referência textual a Carta aos jovens Dinamarqueses
–publicada em 1976 em Filme e Realidade337, vem do seu poder de síntese teórica
e do fato dela ser uma espécie de guia para se entender o olhar de Cavalcanti
sobre a representação realista no cinema. Cavalcanti disse sobre esta famosa carta,
quase 30 anos depois, em 1976: “Se me pedissem que resumisse em poucas linhas
as normas de conduta que os realizadores de documentários no Brasil devem
seguir, repetiria, ainda hoje, aquelas que, baseado na minha experiência neste
terreno, remeti aos jovens diretores dinamarqueses, em 1948”338.
Levarei em consideração alguns marcos temáticos , como a mudança de
paradigma da representação do trabalhador pelas artes é seminal para a construção
da estética neorrealista. Cavalcanti disse em 1960 sobre o documentarismo inglês:
336
CAVALCANTI, Alberto Notas aos jovens documentaristas (DF Bulletin, Copenhague, 1948)
In PELLIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti, p. 210.
337
CAVALCANTI, Alberto. Filme e Realidade, 1976, p.80 – 82.
338
Ibidem, p.80.
154
A importância destes “testemunhos realistas” ingleses foi dupla. Em primeiro
lugar, eles quebraram um tabu que reinava na Inglaterra. Você vê, Shakespeare
havia estabelecido uma norma seguida pelo espetáculo inglês e o mundo inteiro.
Ele havia feito os membros da classe trabalhadora os cômicos de suas obras. O
homem do povo é sempre um polichinelo, o caipira cômico, tanto nas suas
comédias quanto nas tragédias. O cinema reconduziu essa tradição até os
primeiros filmes do próprio Hichcock. O “documentário” quebrou este mito e
mostrou na tela os trabalhadores tais como são: homens como todo mundo,
dignos e respeitáveis... Com suas qualidades e seus defeitos 339.
Considerarei também questões técnicas pontuais que são comuns ao
documentarismo inglês e ao neorrealismo, como: o uso de iluminação natural, de
equipamentos leves que permitiam o deslocamento entre as locações, muitas
vezes feito de metrô, e de não atores no elenco. Estas soluções bastante arraigadas
a questões orçamentárias, mas que que se consolidaram pelo pioneirismo estético,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
se converteram em pilares do movimento, segundo Grierson:
Acreditamos que o ator original (ou nativo) e a cena original (ou nativa) são
melhores guias para uma interpretação de tela do mundo moderno. Eles dão ao
cinema um fundo maior de material. Dão poder sobre um milhão e uma imagens.
Eles dão uma interpretação poderosa sobre acontecimentos mais complexos e
surpreendentes no mundo real do que a criação em estúdio pode conjurar ou os
mecanismos do estúdio podem recriar340.
As razões pelas quais Grierson justifica a sua preferência por não atores e
locações reais são basicamente as mesmas razões e argumentos consagrados pelo
Neorrealismo italiano, em síntese: a busca do realismo e de uma aproximação
mais verdadeira e transparente do real, rompendo com os vestígios do ilusionismo
que conduzia o cinema clássico e criando o cenário ideal para o nascimento do
cinema moderno.
Assim como Cavalcanti, Grierson sabia da importância daquelas escolhas
para a construção de uma nova narrativa, ele endossava, e até se apropriava dos
méritos da recondução da figura do operário da invisibilidade para o patamar de
herói da Inglaterra industrial; “Lembre-se de que não havia classe trabalhadora na
339
CAVALCANTI, Alberto apud MARTIALAY I. F. “Eu era um surrealista com tendência ao
realismo” In PELLIZZARI, Alberto e VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti, p. 282.
340
GRIERSON, John. apud HARDY, Forsyth Grierson on documentary. (1966) p.36. Original em
Inglês: We believe that Original (or native) actor, and the Original (or native) scene, are better
guides to a screen Interpretation of the modern world. They give cinema a greater fund of material.
They give it power over a million and one images. They give it power interpretation over more
complex and astonishIng happenIngs In the real world than the studio mind can conjure up or the
studio mechanician recreate.
155
tela quando comecei. Eu fui o primeiro cara a colocar a classe trabalhadora na
tela, acredite ou não”341.
A reinvenção da representação do homem da classe baixa e do operário,
sem os cacoetes herdados das comédias populares e do primeiro cinema, foi
fundamental para a construção de uma nova dramaturgia no cinema moderno. A
afirmação do cineasta Edgar Anstey sintetiza bem esta mudança de paradigma:
O trabalho comum em nossos primeiros documentários nunca mostrou qualquer
fraqueza ... Mas este é um dos grandes contrastes entre o tratamento das pessoas
nos primeiros documentários e, mais tarde, não só na Inglaterra;... penso em
Cavalcanti na França e Ruttmann em Berlim e os russos. O homem era sempre o
símbolo heróico, na verdade, a menos que ele fosse uma espécie de kulak
perverso ou explorador de terra. Nós, em nossos filmes, não lidamos com essas
pessoas, mas o trabalhador comum era visto como um símbolo heroico342.
Financiados pelo Império (sob as censuras que já tratamos aqui) e com a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
proposta a priori de ser uma propaganda do Estado, os filmes da G.P.O Film Unit
não tinham o conteúdo revolucionário e de crítica social presentes na vanguarda
Russa. É esperado que o teor marxista, ou social-democrata, como preferia
Grierson, se limitasse a mostrar a nobreza de caráter daqueles homens, sem
revelar ou criticar a estrutura desigual da sociedade que os condenava a mergulhar
as suas vidas nas minas de carvão.
O componente social era fundamental para Cavalcanti, desde Rien que les
heures com seu universo marginal em uma abordagem documental, que se traduz
bem no que Kracauer definiu como componente oculto, que segundo o autor,
retirava aqueles filmes de sua condição impressionista transferindo-os para a seara
do documental, onde pulsa, segundo Kracauer, o verdadeiro cinema de fluxo da
vida material343.
341
SUSSEX, Elizabeth. The rise and fall of British documentary, (1975) p. 194. Original em
Inglês: Remember there were no workIng class on the screen when I started out. I was the first guy
to put the working class on the screen, believe it or not.
342
ANSTEY, Edgard apud SUSSEX, Elizabeth. The rise and fall of British documentary, p. 18.
Original em inglês: The ordinary working in our early documentaries never showed any
weaknesses at all.... But this is one of the big contratsts between th treatment of people In the early
documentaries and later – not only In England; ... I think of Cavalcanti in France and Ruttmann in
Berlin and the Russians. Man was aways the heroic symbol, really unless he was a sort of wicked
kulak or exploiter of land. We didn’t In our films deal with such people, but the ordInary
workingman was seen as a heroic symbol.
343
KRACAUER, Sigfried. Theory of film: the redemption of physical reality, 1997. p.300.
156
O Neorrealismo absorveria bem a equação: técnica + poesia + conteúdo
social que Cavalcanti adotou como tríade fundadora do seu cinema.
344
No
Neorrealismo, o homem do povo, o anti-herói da miséria, seria inserido em um
contexto mais demolidor, o da guerra, onde as constradições dos abismos sociais
da sociedade capitalista ficam expostos como uma ferida aberta.
Outro ponto que considerarei como essencial na analogia é a
experimentação sonora nos filmes em que Cavalcanti teve um papel fundamental .
O brasileiro explicou tecnicamente as suas experiências em uma entrevista
concendida a Allistair Cooke para a Intercine em Roma, em 1935:
“Primeiramente reduzimos a música e a palavra... Banimos o sincronismo
absoluto e as leis da encenação teatral. E tomamos os sons naturais como matéria
prima, os quais cortamos, regravamos, orquestramos e tentamos estilizar o
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
conjunto”345.
Nesta afirmação de Cavalcanti encontramos mais indícios de como ele
antecipou na G.P.O Film Unit alguns dos pilares do Neorrealismo, primeiro a
redução da música (típica do melodrama e elemento essencial dos filmes
verborrágicos do cinema norte-americano do pré-guerra). Em seguida ele fala de
uma dramaturgia naturalista, realista, não submetida às leis de encenação teatral, e
finalmente, ele fala dos sons naturais e da sinfonia de barulhos da rua, que seriam
essenciais para o cinema moderno e posteriormente para os Cinemas Novos.
Filmes como North Sea, Night Mail e Driffters tinham trabalhadores e
homens do povo como elenco, foi o caso também de O homem de Aran de
Flaherty, que já não mais estava na G.P.O, mas tinha toda a sua equipe formada
pelos por jovens da equipe de Grierson.
A questão da iluminação também é um ponto fundamental que liga o
cinema de Cavalcanti e o documentarismo defendido por ele na G.P.O às bases
estéticas do Neorrealismo. Em CoalFace, a precariedade da iluminação ambiente
com pouquíssimo ou nenhum equipamento de luz, em especial nas filmagens
344
CAVALCANTI, Alberto. Filme e realidade, 1976, p. 81 – 82.
CAVALCANTI, Alberto Discussão sobre o filme sonoro In PELLIZZARI, Lorenzo e
VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti, 1985, p. 189.
345
157
dentro das minas de carvão, resulta em “chiaroscuros” espetaculares, uma luz
contrastada que mais tarde seria bastante explorada pelo Neorrealismo.
O “fluxo da vida” (o flow of life, de que fala Kracauer)346, que seria tão
caro ao cinema neorrealista e o consagraria como um modelo de cinema moderno,
já era um elemento determinante no documentarismo britânico. Como bem
definiu Paul Rotha: a imprevisibilidade das condições naturais nas locações era,
no final, aliada da atmosfera e dos “efeitos” que o diretor desejava:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
A filmagem documental é, em geral, um tiro único sem tempo para iluminação
cuidadosa ou condições climáticas perfeitas, disparando em todas as
circunstâncias que o cinegrafista de estúdio consideraria impossível. Nevoeiro,
névoa de chuva, poeira e meia-luz são condições normais para fotografia
documental; são, de fato, muitas vezes as condições exatas em que o
documentário exige que seu material seja obtido. Tais condições são o que o exfotógrafo de estúdio chamaria de adequado para o "material de efeito", mas
quando o ambiente desempenha uma parte tão importante como no documental,
essas condições não são mais as de "efeito", mas as perfeitamente normais347.
Como estratégia para mapear a zona de convergência entre o Cavalcanti
documental e o Neorrealismo decidi eleger aqui alguns filmes da fase General
Post Office, abri uma exceção para Rien que les heures, por sua importância
seminal na carreira de Cavalcanti e também por ser a matriz dos aspectos
surrealistas que ele levou para o documentarismo na Inglaterra. É importante
lembrar também que o próprio Cavalcanti incluiu Rien que les heures no
inventário do cinema documental que realizou em Filme e Realidade.
Do Neorrealismo me concentrarei em especial em três filmes de Roberto
Rossellini (Roma Cidade Aberta (1945), Paisá (1946) e Alemanha Ano Zero
(1948)), uma das razões centrais de tal
escolha é que considero esta a
cinematografia mais “documental” do Neorrealismo, além de incorporarem
trechos documentais em sua narrativa, esta trilogia foi realizada imediatamente
346
KRACAUER, Siegfried. Theory of Film: The Redemption of Physical Reality. Princeton:
Princeton University Press, 1997.
347
ROTHA, Paul. Documentary Film NY: W.W Norton & Company Inc. 1939 p. 128. Original
em inglês: Documentary shootIng is most generally shootIng on sight shootIng without time for
carefull lighting or perfect weather conditions, shooting in all manner of circumstances which the
studio cameraman would consider impossible. Fog, rain mist, dust, and half-light are all normal
conditions for documentary photography; are, in fact, often the exact conditions under which the
documen requires his material to be obtained. Such condtions are what the ex-studio photographer
would call suitable for “effect stuff”, but when atmosphere plays such an important part of it does
In documentary, these conditions are no longer those of “effect” but perfectly normal.
158
após o final da segunda grande-guerra, tendo os escombros e as ruínas europeias
como cenário natural. Estes filmes são portanto um bom exemplo de um cinema
que transpõe plenamente a barreira entre o documental e a ficção, questão central
para Cavalcanti, tanto em sua obra teórica, como tambémpara seu inventário
fílmico.
É importante também pensar o cinema italiano dos anos 1920 como uma
cinematografia impregnada pela ideia da propaganda, muitas vezes sob o disfarce
de uma intenção de cinema educativo. Não foi por acaso que o primeiro projeto
fascista de Benito Mussolini voltado para o cinema foi o LUCE – L’Unione
Cinematografica Educativa – um celeiro dos filmes de propaganda, mas que
teoricamente teria intenções educativas. O LUCE foi criado por um decreto de lei
em 1925, e por ele passaram alguns dos maiores nomes do cinema Italiano de
todos os tempos, entre eles, Roberto Rossellini e Ettore Scola. Mais um indício
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
das sólidas conexões entre o berço do Neorrealismo e as produções capitaneadas
por
Grierson.
Em 2012 todo o acervo do Instituto LUCE – rebatizado em 2011 de
Instituto LUCE Cinecittá - foi digitalizado e disponibilizado no YouTube. Entre o
vasto e rico material, há uma entrevista com o cineasta norte-americano Martin
Scorcese, em que ele fala sobre o cinema de Rossellini. No depoimento ele
defende a tese de que o Neorrealismo teria inaugurado o cinema moderno, mas
quando analisa o filme Stromboli (1950), de Rossellini, ele afirma que “o filme
embora pareça pretender ser um melodrama norte-americano, realizado por
Rossellini como um presente à Ingrid Bergman, é claramente neorrealista porque
é carregado de aspectos documentais"
348
. Ou seja, Scorcese traz mais uma vez à
luz a fundamental importância do documentário sobre a matriz neorrealista.
No caso de alguns filmes, como Song of Ceylon (1934), de Basil Wright,
usei
como
referência
comparativa
uma
cinematografia
que
considero
profundamente influenciada pelo Neorrealismo, o Cinema Novo brasileiro, em
especial na figura de Glauber Rocha. Desta forma, busquei identificar a marca de
348
https://www.youtube.com/watch?v=NFEt_EqqUqA.
159
Cavalcanti em desdobramentos do cinema moderno, herdeiros diretos da
genealogia neorrealista.
3.4.1.
Rien que les heures (1926) – A margem no centro da narrativa
Um dos filmes mais emblemáticos do realismo poético francês, e obra que
lançou o nome de Cavalcanti ao mundo. Grierson salientou, ao falar sobre o filme,
que “Pela primeira vez se usa a palavra sinfonia em lugar de história”.349
Já na primeira cartela de Rien que les heures, o filme avisa que a cidade
será um dos seus personagens centrais quando diz: “Todas as cidades seriam
parecidas se os seus monumentos não as distinguissem”.
É nesta tênue rede de similaridades e idiossincrasias que reside toda a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
singularidade de Rien que les heures, um filme que deixa exposto o tecido
humano entre os monumentos que aponta. Aos 2’02’’ o filme adverte ao público
que irá falar sobre a vida dos marginalizados, o que vemos a seguir é uma
sucessão de imagens em montagem dialética, que revela o abismo entre os
abastados e os marginais na capital francesa. Como aos 2’13’’, quando, em fusão,
assistimos uma carroça “se transformar” em um coche confortável e luxuoso.
350
Figura 39: A mão que invade a tela e rasga uma foto em fotograma de Rien que les heures
(influência Surrealista).
Aos 2’47’’ temos uma colagem de aquarelas de Paris sob o pincel de
pintores famosos (Matisse, Chagall), em seguida telas de diferentes estilos
pictóricos retratam a cidade, era a plenitude da vanguarda, em que várias
349
350
Revista Cinemin nr.48 p.13.
Fonte: www.old.bfi.org.uk
160
linguagens se tangenciavam no cinema. Aos 4’03’’ um fotograma resume a
profunda influência surrealista que paira sobre o filme, quando dezenas de olhos
formam uma imensa colmeia na tela. Em seguida, uma cartela traduz ao público
que, “Mas somente uma sucessão de imagens pode nos restituir a vida” (4’30’’).
351
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Figura 40: Exemplo de colagem em fotograma de Rien que les heures.
Este restituir a vida se dá em Rien que les heures através de pequenas
histórias, de microcosmos da cidade, o que viria a ser uma matriz central no
Neorrealismo, como a metonímia na literatura escolhe-se uma parte para se falar
do todo, é a configuração da carta de Cavalcanti em outros elementos, como a
bicicleta de De Vittório de Sica, que Kracauer chamava de “caminhos
microscópicos individuais”352.
Aos 4’37’’ temos a primeira sequência de relógios na tela, Rien que les
heures é sobre o tempo, e sobre como ele incide sobre as pessoas e a cidade. Só
que os ponteiros de Cavalcanti não obedecem a ordem linear, e o tempo, assim
como o ritmo da vida, escolhe uma ordem inventiva, em conjunção com outros
elementos que o atravessam. Assim o filme nos oferece marcações “livres” do que
se convencionou chamar de linearidade, de meia-noite passamos às 12 horas em
fragmentos livres, apresentando o que Delleuze estabelece como marco do cinema
moderno: a quebra na linearidade do tempo e espaço.
351
Fonte: http://www.filmreference.com/Films-Ra-Ro/Rien-Que-les-Heures.html.
KRACAUER, Siegfried apud CORPAS, Danielle. Variações sobre um filme sinfonia na crítica
de Siegfried Kracauer. http://www.herramienta.com.ar/coloquios-y-seminarios/variacoes-sobreum-filme-sinfonia-na-critica-de-siegfried-kracauer.
352
161
Aos 6’24’’ começamos a acompanhar a trajetória de uma senhora que vive
à periferia da sociedade parisiense, com a cartela “Uma velha errante”. O filme de
Cavalcanti abre amplia seu foco sobre os marginalizados, e quase duas décadas
antes do Neorrealismo, os desvalidos ganham as telas. E em uma linguagem
essencialmente documental, trazendo a realidade para a tela, o mundo conheceu
uma Paris nunca antes revelada, desnuda dos véus de luxo e glamour, com os
quais costumava se vestir para o cinema. Uma Paris que vai além das
“manifestações da superfície”.
Aos 6’57’’ uma cartela nos diz: “Os primeiros trabalhadores”. Antes de ir
para a G.P.O, quando estes personagens tiveram destaque no cinema de
Cavalcanti, o cineasta já atentara para a importância do discurso social no cinema,
trazendo o trabalhador para o centro da narrativa, iluminando espaços ocultos da
cidade, espaços estes invisíveis ou indesejáveis por boa parte da produção
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
cinematográfica daquela época. Aos 7’10’’ a face miserável de Paris é mostrada
mais uma vez, comensais fazem um banquete entre as lixeiras da cidade, aos
11’18’’, lixos e flores ganham a tela em uma montagem dialética claramente
influenciada pelo cinema russo.
Aos 7’42’’, com a cartela “A garota” começamos a acompanhar a história
da personagem central da trama, Rien que les heures inaugurou também a
narrativa de “filme coral”, em que muitos personagens dividem a trama, tendência
esta que iria marcar o cinema independente, e que até os dias de hoje, se mostra
forte entre as narrativas autorais. A garota é uma prostituta que se arrisca à
margem de Paris.
Ao longo de Rien que les heures, as contradições de uma Paris em tempos
de crise dividem as telas, a elite rica mantém os seus hábitos e rituais de luxo, as
vitrines da cidade convidam ao glamour, enquanto a grande maioria da população
divide o lixo, os becos sujos e a violência contida na periferia urbana. Uma crítica
contumaz, que já avisa ali, que Cavalcanti via no cinema um instrumento de
contundente discurso social. Assim como o Neorrealismo, Rien que les heures é
um produto do pós-guerra, só que neste caso temos a referência é a primeira
grande guerra. O filme nos mostra uma cidade sob ruínas, sociais, pela crise
econômica, e física, com um entorno pobre, sujo e feio. É um filme sobre os
162
sobreviventes da miséria, aos 17’53’’ uma cartela diz: “Nos esforçamos para
esquecer o desemprego”.
353
Figura 41: A miséria em fotograma de Rien que les heures.
Aos 18’12’’ temos um bom exemplo do que Cavalcanti faria com o som
no cinema, um ano antes da chegada deste recurso à imagem em movimento:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
enquanto uma mulher dorme, a sua respiração dita o ritmo da montagem, que
mostra na tela a engrenagem industrial da cidade em movimento.
Aos 28’39’’ começa o desfecho da trama da prostituta, em uma atmosfera
noir que antecipa o gênero, Cavalcanti revela o destino trágico da moça. Ela beija
um homem em um beco, em seguida vemos a cidade literalmente “de cabeça para
baixo”, homens na fila de emprego. Aos 31’06’’, várias manchetes de jornal
ganham a tela em uma colagem, é a realidade impregnando a ficção. As fachadas
das casas de espetáculo dividem a montagem com imagens de marginais na sarjeta
em uma montagem dialética.
E finalmente a noite chega, com toda a sua carga sombria de incertezas,
uma cartela anuncia aos 36’14’’: “Noite mistério ansiedade”. Aos 37’10’’ temos
uma montagem paralela entre as tramas da prostituta e da vendedora de jornais,
que também é a cartomante (seria uma crítica à mídia?).
353
Fonte: www.old.bfi.org.uk.
163
354
Figura 42: Cartela em fotograma de Rien que les heures “noite, mistério e inquietude”.
Aos 38’45’’ temos o ápice do clima de suspense: crime, quando o
marginal mata a vendedora de jornal. A ação da prostituta, que parecia nos
conduzir para o mesmo desfecho, se conclui com um melancólico encontro com o
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
marinheiro vivido por Hériat.
Aos 43’12’’ uma cartela diz: “Nós podemos fixar um tempo no espaço,
imobilizar um momento no tempo”. Para um minuto depois completar a reflexão:
“Mas o espaço e o tempo escapam à nossa possessão”. Aqui Cavalcanti dialoga
diretamente com a teoria do cinema moderno de Delleuze, em que os mecanismos
de montagem e de construção de narrativa desencadeiam a possibilidade inventiva
de subverter a linearidade espacial e temporal, libertando o cinema da construção
literária e teatral, lançando-o à possibilidade de criar uma linguagem autônoma e
livre, quase vinte anos antes do que se consolidou, por boa parte dos teóricos,
como o começo do cinema moderno.
3.4.2.
Song of Ceylon (1934) – O chá, o imperialismo e as sementes de
cinema novo
O filme que marcou a transição do EMB para o G.P.O Film Unit foi Song
of Ceylon (1934), de Basil Wright. O longa-metragem obteve grande sucesso no
London Film Society e também nas salas de cinema, dando um passo importante
no documentário britânico para que conquistasse prestígio internacional. Song of
Ceylon foi financiado pela Ceylon Tea Marketing Board, e teve como propósito
354
http://silentintertitles.tumblr.com/post/60544644760/from-rien-que-les-heures-1926-anexperimental.
164
mostrar a beleza da cultura do Ceilão em seu trabalho milenar com o chá, e é
claro, fazer assim uma propaganda das relações amistosas entre a coroa britânica e
uma de suas colônias no oriente.
A montagem da banda sonora incluía as vozes de Cavalcanti, Grierson,
Legg e do próprio Wright, Barnow diria que: “Song of Ceylon exemplificou a
atmosfera de trabalho da (GPO) Film Unit, na qual qualquer pessoa poderia se
alistar para qualquer tipo de tarefa”355.
Dividido em quatro capítulos, Song of Ceylon é um dos documentários
mais longos da década de 1930. O filme combina imagens de Wright com uma
narração de um diário de viagem de 1680.
A música de Walter Leigh recebeu uma montagem de som assinada por
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Cavalcanti, o resultado é uma das peças mais líricas do cinema documental. Os
sons cingaleses, as danças tribais, somadas às imagens de camponeses
caminhando em um território árido, com um primeiríssimo plano de seus pés,
remetem ao Cinema Novo glauberiano. O componente religioso e místico do filme
também aponta para esta relação, com imagens de Buda e rituais de dança
sagrada, Song of Ceylon dialoga diretamente com algumas obras essenciais do
cinema moderno brasileiro, em especial, Barravento (1962), de Glauber Rocha.
356
Figura 43: Pescadores em Song of Ceylon.
Figura 44: Pescadores em Barravento.
Aos 5’ de Song of Ceylon, temos uma belíssima sequência de uma família
em uma cerimônia religiosa, o texto narrativo e as imagens, imbuídas de
355
BARNOUW, Erik. Documentary – the history of non-fiction film, p. 93 – Original em Inglês:
Song of Ceylon exemplified the workIng atmosphere of the film unit, In which anyone could be
enlisted for any sort of task.
356
Fonte da imagem 44: http://www.sundaytimes.lk/120108/Plus/plus_09.html / fonte da imagem
45: https://www.papodecinema.com.br/filmes/barravento/.
165
misticismo também apontam para filmes do Neorrealismo (Roma Cidade Aberta)
e do Cinema Novo, como Terra em Transe (1967) e A Idade da Terra (1980) que
apostariam na relação do povo com o místico para refletir sobre questões sociais
profundas.
Nesta sequência de Song of Ceylon os componentes poético-sociais
transbordam na tela, não temos apenas o olhar do realismo romântico de Flaherty,
da idealização dos mundos distantes e de culturas exóticas, temos sim, uma
construção realista, plena de discurso social, sobre uma comunidade que vive da
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
colheita do chá, em uma estrutura colonial.
357
Figura 45: Religiosidade e musicalidade em Song of Ceylon.
Aos 8’ o filme mostra uma espécie de procissão, um cortejo místico que
cruza os campos agrestes do Ceilão. Nesta sequência, de novo, é impossível não
pensar no Cinema Novo, desta vez em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) de
Glauber Rocha ou em Vidas Secas (1963) de Nelson Pereira dos Santos. A
natureza se sobrepõe ao humano, a paisagem árida, o sol, e no caso de Song of
Ceylon, o componente tempo, determinam o destino do componente homem.
Vemos o primeiro plano de uma estátua de Buda tomada pela natureza, onde heras
e arbustos se encarregaram de mostrar que são capazes de se sobrepor ao humano
e ao sagrado. Misticismo e natureza formam então uma espécie de poder
confluente que governa e provém os destinos daquele povo.
357
Fonte: http://thefiltonsuburbproject.blogspot.com.br/2011/02/song-of-ceylon-1934-by-basilwright.html.
166
358
Figura 46: "Os sertanejos" do Ceilão em Song o Ceylon.
No capítulo 2 – Ilhas Virgens, temos a imagem do cotidiano dos ilhéus, de
novo permeado pela convivência harmônica com a natureza, em um rio, homens,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
barcos e elefantes dividem as mesmas águas.
No plano seguinte, as imagens dos homens trabalhando lembram Aruanda
(1960), de Linduarte Noronha, um filme notadamente influenciado pelo
Neorrealismo, e declaradamente influenciador do Cinema Novo brasileiro, em
uma sucessão de afinidades estéticas que revelam interfaces poéticas de diferentes
momentos da história do cinema. Aos 16’ de Song of Ceylon, temos belíssimos
planos de mulheres carregando pesados feixes de capim, que nos remetem às
imagens das mulheres carregando a argila em Aruanda.
359
Figura 47: Mulheres trabalham em Song of Ceylon.
358
359
Fonte: https://ethnofest.wordpress.com/2010/11/.
Fonte: https://mubi.com/films/the-song-of-ceylon.
167
Em seguida o filme nos mostra uma sequência impregnada pela assinatura
criativa de Cavalcanti, crianças andam e brincam no ritmo do pilão das mulheres,
em uma sofisticada montagem sonora.
Ainda no Capítulo 2, temos uma sequência detalhada com profundidade
por Marie Seton no livro The documentary Tradition – From Nanook to
Woodstock, na página 102 ela diz: “Os pescadores lançam suas redes com
movimentos rítmicos como a música, os sacerdotes errantes oram por seu arroz.
Nas aldeias, meninos pequenos aprendem os passos preliminares da dança da
virilidade que peformam em memória de Buddha”360.
No Capítulo 3 – The voices of commerce, de novo Cavalcanti mostra a sua
presença pairando sobre o filme, imagens justapostas de elefantes, homens e
barcos, são conduzidas por uma montagem sonora ousada, que mistura um poema,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
locução de rádio, sons de telefone e de máquina de escrever.
A trilha sonora que acompanha o corte das cenas parece seguir o toque
extraordinário de instrumentos, e transmite perfeitamente uma sensação de êxtase
que se aproxima. Este efeito engenhoso foi obtido com seis gongos no estúdio do
GPO Unit London. A primeira foi realizada em direção ao microfone com o lado
oco para fora. Assim que ele foi atingido, o microfone na outra extremidade do
estúdio foi movido para frente para que as vibrações fossem captadas; A faixa foi
então executada para trás361.
A montagem de Song of Ceylon retrata a convivência das tradições
coloniais cingalesas com a chegada do progresso trazido pelos ingleses. Uma
clássica propaganda imperial que foi bem traduzida por Grierson “As antigas
bandeiras da exploração foram substituídas pelas novas bandeiras do esforço
conjunto”362.
360
SETON, Marie In LEWIS, Jacob. The documentary Tradition – From Nanook to Woodstock
p.102. Original em inglês: The fishermen fling out their nets with movements as rhythmic as
music , the wanderIng priests beg their rice. in the villages, small boys learn the primary steps of
the dance which In manhood they will peform In memory of Buddha.
361
The soundtrack accompanying these cut-in shots appears to be the most extraordinary twangIng
of Instruments, and it perfectly conveys a sense of approachIng ecstasy. This ingenious effect was
obtained with six gongs In the GPO Unit London studio. The first was held toward the microphone
with the hollow side outward. As soon as it was struck, the microphone at the other end of the
studio was swung forward so that the vibrations were picked up; the track was then run backward.
362
GRIERSON, John apud BOTELHO, João e VIEGASE, Manuela (org e autoria). O cinema
realista britânico – Journey to a legend and back, (catálogo) 1978 p.20.
168
A montagem paralela de sons e imagens continua nas próximas
sequências, cessando nos últimos 15’ de filme, no Capítulo 4 – The apparel of a
God - quando temos então, algumas das sequências mais belas de Song of Ceylon:
o roteiro nos reconduz ao misticismo e às tradições ritualísticas do povo do
Ceilão, culminando com o som de tambores, e o movimento impressionante de
dançarinos escondidos em máscaras sagradas ancestrais nos convidam a imergir
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
em um transe belo e poderoso, puro Cinema Novo glauberiano.
363
Figura 48: Misticismo e signo glauberiano em Song of Ceylon.
3.4.3.
Pett and Pott – A Fairy Story of the Suburbs (1934)
Pett and Pott foi realizado com o objetivo de difundir o telefone entre os
súditos da rainha. Cavalcanti aborda a utilidade social do novo meio de
comunicação pelo viés satírico, e realiza neste filme suas primeiras experiências
sonoras na G.P.O, este é também o seu primeiro documentário com enredo na
equipe de Grierson.
Uma curiosidade, o filme conta com as participações de Humphrey
Jennings (marceneiro), Basil Wright (pastor), Stuart Legg (almirante) e do próprio
Alberto Cavalcanti como J. Levitucus.
Aos 8’54’’ temos um primeiro exemplo da ousada montagem sonora que
Cavalcanti propõe em Pett and Pott, um coro de vozes em ritmo de suspense se
funde ao apito do trem. Aos 18’18’’ e 19’02’’ temos novamente uma edição de
som e imagens extremamente criativa, na segunda minutagem pessoas ao telefone
363
https://player.bfi.org.uk/free/film/watch-song-of-ceylon-1934-onlIne.
169
em uma montagem paralela com aves, aqui Cavalcanti cria a analogia entre o
telefone, as ondas sonoras de transmissão pelos fios, e a capacidade de
comunicação do novo meio (Walt Disney usaria este recurso em filmes como
Dumbo (1941), em que ele usa as imagens de aves sobre fios para sugerir
comunicação).
Este trecho de Pett and Pott nos remete a um dos lemas divulgados por
Cavalcanti na carta, quando ele diz: “Não confie no comentário para contar a sua
história (sic): as imagens e o seu acompanhamento sonoro devem fazê-lo; o
comentário irrita, e o comentário engraçado irrita ainda mais”.
364
Podemos
também aplicar aqui a “norma” 12 da carta de Cavalcanti “Não hesite em tratar
elementos humanos, e relações humanas...”365 e também a premissa 14, que
sintetiza o conceito por trás da obra do diretor “Não perca a oportunidade de
experimentar: o prestígio do documentário só foi conseguido pela experiência”
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
366
.
A questão dos elementos humanos como centro da narrativa foi
fundamental para a consolidação do Neorrealismo, assim como as micro-histórias
para se falar da macro-história, no caso, a guerra, foi através dos dramas pessoais
dos personagens comuns que o Neorrealismo tratou de temas universais.
3.4.4.
Night Mail (1936) Harry Watt/ Basil Wright – A carta e o cinema de
metonímia
Este é sem dúvida um dos filmes mais importantes do documentário
inglês, enquanto um trem postal atravessa a Inglaterra durante a noite, o cinema
assiste à possibilidade de se reinventar a realidade, de se intervir criativamente
naquela linguagem documental até então cristalizada pelos vícios dos newsreeels:
“observação realista, reconstruções em estúdio e uma progressão rítmica muito
forte construída por Cavalcanti a partir das contribuições de Auden e Britten, mais
364
CAVALCANTI, Alberto. Filme e realidade, 1976. p. 81.
Ibidem, p.82.
366
Ibidem.
365
170
uma vez. De vários pontos de vista, Night Mail é o ponto alto do período
G.P.O)”367.
Em uma montagem ritmada o poema Night Mail de W. Auden, a música
de Benjamim Britten e a montagem imagética e sonora transformam este que
deveria ser um documentário institucional sobre as atividades dos correios
britânicos em uma obra de puro senso poético. O nome de Cavalcanti aparece
como direção de som, ao lado de Britten e Auden. A bela fotografia é assinada por
Jonah Jones e Chick Fowle, que mais tarde viria a trabalhar na Vera Cruz a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
convite de Cavalcanti.
368
Figura 49: Fotografia still de Night Mail (mulheres no set).
Nos primeiros minutos de filme temos uma montagem que coloca
paralelamente homens e máquinas, lembremos que estávamos em um momento
pós-Futurismo, em que a intelectualidade via com entusiasmo a ideia de
progresso, a revolução industrial, e o êxito de uma nação dependia de sua
capacidade de se modernizar, os signos da modernidade ainda viviam o seu
apogeu.
367
BOTELHO, João e VIEGASE, Manuela (org e autoria). O cinema realista britânico – Journey
to a Legend and back – Lisboa: Cinemateca Nacional, 1978. p. 19.
368
Fonte: https://mattbeedie.wordpress.com/research-on-documentary-2/night-mail-3/.
171
Aos 3’49’’, e de novo aos 16’ do filme temos personagens com fala e
representação dramatúrgica, o documentário encenado e impregnado de ficção,
uma aposta acertada da G.P.O. Conceito também defendido pelo Neorrealismo,
em sua busca constante em reduzir as fronteiras entre documentário e ficção. No
caso da G.P.O, esta era uma estratégia para aproximar o público do filme,
humanizando os personagens, o que nos remete mais uma vez à regra 12 da carta
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
de Cavalcanti: “Não hesite em tratar elementos humanos e relações humanas”.
369
Figura 50: Elemento humano em Night Mail.
Aos 4’36’’ temos a imagem de um homem do campo, em sua vida
simples, que nos leva a refletir sobre a importância daquele trem para conectar
vidas, para unir áreas urbanas e rurais. O poema de Auden reforça o conceito:
“Cartas para os ricos, cartas para os pobres,
A loja na esquina, a garota ao lado”370
A montagem de Night Mail tem um rítmo dramatúrgico, criando
momentos de suspense, como a partir dos 18’, em que os carteiros têm de
sincronizar com perfeição o momento de colocar as sacolas de cartas em seus
suportes na linha de trem. O jogo de olhares, a montagem intercalando os
trabalhadores e a máquina, no rítmo da locomotiva é perfeito em seus objetivos.
O cineasta descreveu no ensaio O estudo do cinema enquanto meio de
expressão, escrito para a revista italiana Bianco e Nero371, como foi passo a passo
a concepção da banda sonora, cito aqui um pequeno trecho:
369
Fonte: https://mubi.com/films/night-mail (curiosamente esta fonte não inclui o nome de
Cavalcanti nos créditos de Night Mail).
370
Letters for the rich, letters for the poor, the shop at the corner, the girl next door.
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=UHaNTsRfyI8.
172
(O roteiro estabelecido descrevia a viagem noturna de um trem postal através da
Inglaterra). A solução adotada foi a seguinte: primeiramente selecionamos os
ruídos. Depois construímos cada sequência com sua dominante, que a diferencia
das outras. Inútil dizer que nesse caso em particular a composição sonora, teve de
reger em parte a própria construção do filme372.
O poema de Auden aos 19’20’’ do filme é altamente cinematográfico, o
seu rítimo e a beleza como ele justapõe as palavras nos fazem pensar em uma
composição de paisagem geográfica e humana, habitado por ricos, pobres,
festivos e solitários. Ele sugere também que naquele mundo pré-guerra tudo
estava unido em harmonia através das locomotivas postais:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Adormecido em Glasgow trabalhando, adormecido em Edimburgo bem-ajustado,
Adormecido em granito Aberdeen,
Eles continuam seus sonhos,
Mas deve acordar logo e esperar por cartas,
E ninguém vai ouvir o carteiro bater
Sem uma aceleração do coração,
Pois quem pode suportar se sentir esquecido?373
3.4.5.
Coal Face (1936) – Um mergulho na usina humana do Império Inglês
Este curta-metragem, brilhante em suas inovações estéticas, foi uma
espécie de laboratório para as experiências sonoras que Cavalcanti iria
desenvolver em Night Mail.
O filme é também um excelente objeto para estudo de caso das teorias
levantadas por Cavalcanti em sua carta aos dinamarqueses, já que Coal Face
consegue reunir de forma concisa boa parte dos ensinamentos que o brasileiro
perpetua no documento. Ele representa por exemplo a segunda regra em sua
plenitude, reunindo o poético (poema, músico, textura fotográfica), o social (a
dura lida dos trabalhadores), e o técnico (nas experiências imagéticas e sonoras).
O dia a dia dos trabalhadores das minas de carvão, o motor da economia
inglesa na época, é o mote para que seja realizado este belo trabalho de imersão
poética e social. Imersão esta que revela mais fortemente o comprometimento
371
Revista Bianco e Nero 1938 .
CAVALCANTI, Alberto O estudo do cinema como meio de expressão In PELLIZZARI,
Alberto e VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti, p. 200.
373
Asleep in workIng Glasgow, asleep In well-set EdInburgh/ Asleep in granite Aberdeen/
They contInue their dreams, But shall wake soon and hope for letters/ And none will hear the
postman's knock /Without a quickenIng of the heart/For who can bear to feel himself forgotten?
372
173
social (marxista) que Cavalcanti atribuía ao cinema, arrisco afirmar que neste
filme conseguimos ver claramente a atuação de Cavalcanti por trás deste conteúdo
político-social, e menos a voz de Grierson, que defendia mais claramente o
documentário em seus objetivos institucionais e de propaganda de um Estado
neutro. Coal Face é talvez a produção que reflita de forma mais explícita as
questões sociais dentre os filmes realizados pela G.P.O, indo na contramão da
visão de Grierson, que na opinião de alguns teóricos:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
As preocupações de John Grierson (1898 – 1972) pertencem a estes tempos.
Sendo de ordem social, não correspondiam contudo a convicções claras e
francamente assumidas. Como as dos companheiros de viagem do realismo
apaziguador não ultrapassavam uma rosada filosofia New Deal, de tom
autoritário e baseada numa concepção do estado como organismo neutro,
independente de interesses de classe... Grierson como Rotha, atacava as
frivolidades dos filmes de “entretenimento”, mas nunca questiona as implicações
intrínsecas ao “espelho da realidade” imaginado pelo realismo. É cada vez mais
claro que esta posição transporta implicações morais em última análise traduzidas
num compromisso completo com o “status quo”374.
375
Figura 51: O elemento humano/social em CoalFace, o “pão do trabalhador “em meio ao carvão.
Com texto de W. Auden e som de Benjamin Britten, Coal Face teve
direção, roteiro e som assinados por Cavalcanti (embora não haja consenso sobre
os créditos do filme, em fontes como o BFI, Cavalcanti só aparece como diretor).
A GPO também não creditou à Flaherty as inúmeras imagens de Industrial Britain
que entram no filme.
374
BOTELHO, João e VIEGASE, Manuela (org e autoria). O cinema realista britânico – Journey
to a legend and back, 1978. p. 4 e p.17 (New Deal foi a política norte-americana voltada para a
recuperação da economia após a depressão de 1930, sob o governo do presidente F. D. Roosevelt).
375
Fonte: http://www.moviemoviesite.com/Countries/Countries%20G/Gt.%20BritaIn/GB%20%201931-1940/gb_1935.htm.
174
Embora seja um curta-metragem, Coal Face não reduz em nada a
complexidade de sua proposta estética sofisticada, pelo contrário, o filme exerceu
com plenitude o papel de laboratório experimental para outros trabalhos que o
sucederam.
Hoje, Coal Face é também uma fonte histórica para que se entenda o papel
das minas de carvão para a Inglaterra naquele tempo, e reflete também a abismal
diferença entre o universo dos mineiros daquela época e o de hoje, quando as leis
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
trabalhistas garantem uma lida mais humana.
376
Figura 52: As condições de trabalho dos mineiros na Inglaterra na década de 1930.
A narrativa do filme é dividida em três segmentos: o primeiro apresenta as
minas de carvão, o segundo os trabalhadores, e o terceiro fala da distribuição da
matéria prima. Na primeira parte, temos a narração clássica, que mesmo em seu
tom solene, não consegue suplantar a proposta experimental da trilha de Britten e
das belas imagens e ousados enquadramentos que vemos na tela.
Aos 1’41’’ temos uma imagem que mostra uma espécie de balé das águas
que brotam dos encanamentos nas carvoeiras. Tudo é movimento, engrenagens e
esteiras por onde as “pepitas” de carvão escorregam no ritmo da música de
Britten.
Aos 2’40’’ começa o segundo segmento, e talvez o mais bonito
plasticamente, o jogo de luz e sombras da fotografia de Stuart Legg e Basil
Wright sobre os trabalhadores nas minas, que marcham no compasso da trilha,
criando um belo espetáculo na tela. É neste trecho que temos o poema de Auden,
376
Fonte: https://mubi.com/films/coal-face.
175
tudo em uma montagem precisa que mistura música e poesia sobre imagens
lindamente fotografadas e orquestradas. É importante lembrar que as imagens
foram montadas “sobre” a banda sonora, que foi criada antes da edição de
imagens.
Aos 4’55’’ temos outro belo momento de Coal Face, quando assistimos ao
dia a dia dos mineiros dentro das minas, sob o calor subterrâneo eles comem e
bebem. As imagens lembram o primeiro episódio de Paisá, quando os soldados
caminham perdidos em uma fortaleza abandonada no litoral italiano. A montagem
sonora de Cavalcanti consegue conciliar a narração, o poema que é dito em coro, e
a trilha de Britten.
Finalmente aos 7’ começa o último bloco do filme com a saída dos
trabalhadores das minas, que em seguida cedem a tela para planos de máquinas
até o último minuto do filme, quando o trabalhador volta à cena, fechando de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
forma circular o roteiro de Coal Face.
O filme de Cavalcanti tem o “tom” exato no contraste da fotografia que
Rossellini usaria nas partes documentais de sua trilogia aqui analisada: Paisá
começa com imagens documentais da guerra filmadas no estilo clássico das
tomadas documentais de produções da G.P.O. Estas imagens documentais voltam
à tela ao longo da narrativa, como aos 22’07’’, se estendendo até o final do
primeiro episódio, quando vimos os vestígios das bombas sobre as ruínas de
Roma.
377
Figura 53: O claro e escuro e o documental em Roma Cidade Aberta.
377
Fonte:
realismo.html
http://luziacinemaufpe.blogspot.com.br/2010/09/roma-cidade-aberta-para-o-neo-
176
Em Roma Cidade Aberta, de novo, os aspectos documentais da narrativa
reforçam o realismo da história, aos 31’ temos no repertório imagens de rua,
fábricas e linhas de trem, bem ao estilo do discurso que compunha o humano em
justaposição à modernidade, no documentário inglês na era Grierson. Aos 31’35’’
a montagem sonora não sincronizada lembra o trabalho de Cavalcanti, aqui o
assovio da resistência se funde com o apito da locomotiva, criando uma intrigante
banda sonora. Lembramos então a nona premissa da carta, quando Cavalcanti diz:
Sons complementares constituem a melhor banda sonora”378.
Em Alemanha Ano Zero as imagens documentais de uma Berlim devastada
pelas bombas nos lembram o claro escuro da fotografia de filmes como Coal
Face. A 1h02’25’’ temos uma das mais belas sequências do longa-metragem de
Rossellini, quando um plano geral mostra o que restou da capital de Hitler, apenas
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
ruínas e vestígios de um projeto de império.
379
Figura 54: As ruínas de Berlim em Alemanha Ano Zero.
O filme de Rossellini não tem efeitos óticos, nem muitos close ups, temos
na tela quase em sua maioria, planos gerais. Sobre isso Cav havia dito: “Não filme
muitos close ups: guarde-os para o clímax”380 e é exatamente o que temos, tanto
em Alemanha Ano Zero, como em Roma Cidade Aberta.
378
CAVALCANTI Alberto Filme e Realidade Rio de Janeiro: Embrafilme. 1977p. 81.
http://sound--vision.blogspot.com.br/2015/04/a-guerra-segundo-rossellIni.html.
380
CAVALCANTI, Alberto. Notas aos jovens documentaristas In PELLIZZARI, Lorenzo e
VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti p. 210.
379
177
A 1h13’21’’, de Alemanha Ano Zero, a montagem sonora quebra o tom
documental, e o som do piano tocado por um padre dá lirismo à sequência que
antecede ao trágico desfecho do filme: quando o pequeno Edmund se joga do alto
da ruína de um prédio. Alemanha ano zero tem pouquíssimas inserções de música,
Cavalcanti havia na oitava regra de sua carta lembrado como a trilha sonora pode
engrandecer e destruir uma obra, ele disse: Não use música em excesso: se você o
faz, a audiência deixa de ouvi-la”381.
Na sequência final temos um plongeé seguido de um plano geral, assim
como havia dito Cavalcanti na premissa número 6 da sua carta: “Não invente
ângulos de câmera, quando não são necessários: ângulos gratuitos são dispersivos
e destroem a emoção”, por isso talvez, em um dos momentos mais trágicos do
cinema moderno, temos um plano-geral.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Ao tecer esta relação é possível se pensar o Neorrealismo como o apogeu
do que Cavalcanti chamou de “elementos humanos”, quando disse: “NÃO hesite
em tratar elementos humano e relações humanas”
382
. Este é o alicerce
dramatúrgico do Neorrealismo, uma cinematografia que usou estes elementos
humanos para falar de males coletivos, como a guerra, a desigualdade social, o
abandono e também virtudes humanistas, como a empatia, a solidariedade, o afeto
e a compaixão. Estas relações são traduzidas de forma magistral por esse cinema,
como em um dos mais belos momentos de Paisá, no episódio em que o garoto
italiano cria um laço de amizade com Joe o soldado norte-americano, mesmo sem
que falem a mesma língua. Ou quando assistimos à decadência da nação italiana
através da história de uma moça que se obriga a se prostituir, na terceira história
de Paisá.
381
382
ibidem.
ibidem.
178
383
Figura 55: As conexões afetivas na guerra em Paisá.
E finalmente, é impossível pensar o Neorrealismo sem a experimentação,
era o único modo de se fazer cinema diante da condição social em que aqueles
diretores se encontravam, sob a sombra de uma guerra devastadora. Ampliamos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
então a premissa conclusiva da carta de Cavalcanti para a ficção, ou para o cinema
como um todo, quando ele diz: “NÃO perca a oportunidade de experimentar: o
prestígio do documentário só foi conseguido pela experiência. Sem experiência o
documentário perde o seu valor. Sem experiência, o documentário deixará de
existir”384.
3.4.6.
North Sea (1938)
Cavalcanti assina a produção deste documentário dirigido por Harry Watt
e produzido pela Crown Film Unit (pós-GPO).
North Sea é sobre o trabalho dos pescadores que têm de enfrentar o
perigoso Mar do Norte com suas ondas gigantes e tempestades hostis. Uma cartela
antes dos créditos iniciais avisa que o filme é baseado em história e personagens
reais.
Este é um documentário totalmente representado aos moldes de Flaherty,
quase uma ficção, os personagens têm subtramas, diálogos e nuances
dramatúrgicas.
383
https://fanwithamovieyammer.wordpress.com/2014/07/13/202-tie-paisa-1946-dir-robertorossellini/.
384
CAVALCANTI, Alberto. Filme e Realidade. p. 82.
179
Guardadas as diferenças “geográficas”, o universo da pesca, com toda a
simbologia do mar e suas incertezas, e a construção dos personagens lembram A
terra treme, de Viscontti, realizado dez anos depois, em 1948.
As relações de trabalho no mundo da pesca no filme de Viscontti são
esteticamente muito próximas de alguns dos filmes da G.P.O. Em um caminho
inverso ao de Mar do Norte (do documental para o ficcional), Visconti optou pela
linguagem documental e o uso de atores não profissionais para dar veracidade ao
seu drama “...Visconti serviu-se de pescadores verdadeiros como intérpretes e os
fez falar no seu dialeto, em busca de uma maior autenticidade. Os diálogos eram
elaborados, à medida, pelos próprios protagonistas, aos quais o diretor explicava a
situação filmada”385.
Nos primeiros minutos de North Sea temos a “apresentação” dos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
personagens, como em um roteiro clássico de ficção. Como em A Terra Treme, o
papel das mulheres no filme de Watt é o mesmo das mulheres inglesas, a tessitura
de redes de pesca.
386
Figura 56: As mulheres em A Terra Treme.
Na sequência seguinte temos imagens de telégrafos, mais uma vez a G.P.O
exalta o papel da comunicação como um pilar estratégico para uma nação. Após o
telégrafo, aos 8’ o filme nos lembra o papel crucial do rádio na vida dos
pescadores, como vimos aos 10 minutos, em que temos o clímax do filme, o
385
FABRIS, Mariarosaria. O neo-realismo cinematográfico na Itália, p. 82.
Fonte: http://omelhordocinemaitalianoluisatodi.blogspot.com.br/2015/04/a-terratreme-1948em-1943-visconti.html.
386
180
primeiro plot point narrativo: durante uma terrível tempestade os marinheiros
perdem a comunicação via rádio com a terra. A tensão dramática se acentua.
Como em um roteiro clássico, temos a ação paralela na cidade, a mulher
do capitão ainda não sabe da situação de perigo do marido, a mocinha
intuitivamente sente que o seu amado corre risco de morte, até que chega a notícia
do barco em perigo.
Aos 21’ temos uma interessante montagem paralela, os fiéis que rezam na
igreja, a calmaria na base em terra que tenta contato, e o desespero dos
marinheiros em meio ao tempestuoso Mar do Norte. A trilha acentua a tensão do
barco em perigo.
Finalmente aos 24’ minutos de filme o rádio volta a funcionar, os
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
marinheiros à deriva na tempestade poderão ser resgatados. O filme termina com
as heroicas antenas de rádio, essenciais para a vida dos ingleses daquele tempo.
North Sea é a realização plena de um projeto que se ensaiava nos filmes da
GPO que o antecederam, a ruptura da barreira entre a ficção, antecipando uma
estética que seria determinante para o Neorrealismo e o cinema que se faria depois
dele.
3.5.
Ealing – Luz, sombra e realismo
Foi na Ealing que o novo cinema britânico começou387
Alberto Cavalcanti
A passagem de Cavalcanti pela Ealing, de 1940 a 1947, marcou o
interlúdio entre a sua saída do documentário, na G.P.O Film Unit e a sua vinda
para o Brasil para assumir a Vera Cruz.
No começo da década de 1940, a Ealing era uma produtora sólida,
capitaneada por Michael Balcon, um dos nomes mais importantes do cinema
inglês, que tinha em seu currículo de parcerias nomes como Alfred Hitchcock,
com quem trabalhara nos estúdios Gaumont-British, em filmes como O homem
387
48.
CAVALCANTI, Alberto apud DANISCHEWSKY, M. Michael Balcon’s 25 years in films, p.
181
que sabia demais (1934). Antes de ir para a Ealing, Balcon ainda passaria pelos
estúdios da MGM.
A chegada de Balcon a Ealing aconteceu em um momento em que a
produtora passava por um momento difícil, após o fracasso de produções caras e
sem personalidade: “Todavia, a Ealing perdera muito dinheiro com produções
caras e malsucedidas que eram imitações de Korda, e Basil Dean, Grace Fields e
George Formby deixavam o grupo, que passou a contar, porém, com a presença
de Balcon”388
O convite a Cavalcanti para ingressar à Ealing partiu do brasileiro, que
procurou Balcon após o esgotamento da sua relação com a Crown Film Unit,
quando a produtora começou a ser gerida pelo Ministério da Informação inglês.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Assim ele descreve esta passagem em suas memórias:
Cavalcanti vendo por água abaixo toda a pretensão artística do seu pessoal,
dirigiu-se a Michael Balcon, expôs ao amigo toda a situação, tudo o que pensava
a respeito, confessando que desejaria voltar ao cinema comercial. Michael
Balcon aceitou as razões de Cavalcanti e assim o diretor brasileiro transportou-se
para a Ealing, onde conseguiu uma situação privilegiada, uma vez que era o
elemento mais velho e o mais acatado, podendo guiar uma porção de diretores
jovens, hoje em dia transformados nos maiores diretores do cinema inglês:
Robert Hamer, Charles Crichton, Charles Frend e Robert Bennet (atualmente em
Hollywood), entre outros389.
A partida para o cinema comercial não desenlaçou a relação de Cavalcanti
com o realismo, o fato dele ter transitado para a ficção não cessou a sua dedicação
ao cinema documental. Segundo narra em suas memórias, a sua saída da G.P.O
teria causado uma reação constestadora entre intelectuais e cineastas ingleses,
reação esta que teria sido amenizada com a possibilidade de seguir realizando um
cinema comprometido com a realidade na Ealing:
Essa falha, no entanto, foi sanada pelo próprio Cavalcanti, pois ao lado do seu
trabalho em filmes de longa-metragem, comerciais, obteve de Michael Balcon
que continuassem a produzir filmes de produzir filmes de propaganda e a serie de
documentários realizada em (sic) Ealing possuía a mesma qualidade dos
melhores do G.P.O.390.
388
Catálogo Cinema Britânico, São Paulo (SP) : Cinemateca Brasileira, 1963.
CAVALCANTI, Alberto. Memórias acervo Sergio Caldieri (páginas sem numeração).
390
Ibidem.
389
182
Entre os documentários realizados por Cavalcanti na Ealing se destaca
Yellow Caesar (1941), um filme de montagem que propõe uma sátira sarcástica
do ditador fascista Benito Mussolini. Cavalcanti contou em sua equipe com a
presença de três nomes que ele julgava como “brilhantes”391: Danichevsky, Frank
Owen e Michael Foot, este último se tornaria um renomado jornalista e escritor e
faria parte do Parlamento inglês como líder do Partido dos Trabalhadores.
Yellow Caesar ficou pronto em fevereiro de 1941, no auge da guerra. O retrato
que Cavalcanti e sua equipe construiu de Mussolini lembra pelo tom satírico o
Hitler composto por Chaplin em O Grande ditador (1940), lançado um ano antes
com grande repercussão mundial. Ao contrário de Chaplin, Cavalcanti optou por
fazer um filme sem diálogos, apostando na força das imagens, brilhantemente
justapostas, mixando cenas documentais e composições ficcionais, tendo Jack
Warrock no papel de Benito Mussolini. O média-metragem de Cavalcanti realiza
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
com plenitude a sua equação primordial: técnica + social + poético.
392
Figura 57: Fotomontagem de Yellow Caesar.
A passagem de Cavalcanti pelo departamento de publicidade da Ealing iria
reforçar o seu prestígio. A publicação Ealing Revisited (o.c.) enfatiza a boa
relação entre Cavalcanti e M. Balcon, o livro faz um primoroso trabalho de
pesquisa sobre as diferentes fases do estúdio, inclusive com algumas passagens
391
Ibidem.
Fonte: https://www.mymovierack.com/show/yellow-caesar / Considerações: existe pouquíssimo
material ilustrativo referente à Yellow Caesar na web, no entanto tive acesso ao filme na íntegra a
partir de um lInk que me foi enviado pelo escritor Claudio ValentInetti.
392
183
claramente críticas sobre algumas obras de Cavalcanti, mas que invariavelmente,
confirmavam o prestígio conquistado por ele e a importância do brasileiro nas
decisões da Ealing e do próprio Balcon.
Balcon estava excessivamente orgulhoso desses filmes e Cavalcanti assumiu uma
posição altamente influente na Ealing. De acordo com Michael Relph: “era
necessário ter uma conversa com ele se esperássemos obter um projeto aprovado.
Isso foi surpreendente já que Cav, como o chamamos, permaneceu
obstinadamente estrangeiro - seu inglês era quase incompreensível - e seu lado
boêmio e homossexual poderia ter ofendido os princípios conservadores de
Balcon393.
No texto clássico Realism or Tinsel? Publicado por Michael Balcon em
1943, o autor discorre sobre o realismo no cinema. Ele abre sua reflexão falando
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
de seu débito a Cavalcanti, inclusive para a sua formação:
Aqui está, editado e datado para o que possa servir. Seria errado publicá-lo sem
reconhecer o meu débito ao meu antigo colega Cavalcanti por me fornecer tanto
material útil sobre o assunto em que ele é mestre – o documentário e sua história.
Muitas coisas eu tomei direto (e com sua permissão) dos comentários de seu
Filme e Realidade394.
No mesmo texto, Balcon fala também da origem documental do cinema,
de sua aproximação congênita com a realidade, e do distanciamento criado a partir
da adoção da linguagem teatral pelo filme de ficção. Assim como Grierson e
Cavalcanti, Balcon também estava atento ao uso de não atores:
Havia a questão dos atores. Hoje sabemos que os irmãos Lumiere não estavam
tão abertos à escolha de seu jardineiro e seu filho como seus atores. Grierson,
Flaherty, Cavalcanti, Harry Watt, Humphrey Jennings e muitos outros cineastas
do documentário nos mostram, que desde que seja em uma escola estritamente
393
MURPHY, Robert. Dark shadows around Ealing In DUGUID Mark, FREEMAN Lee,
JOHNSTON Keith e WILLIAMS Melaine Ealing Revisited, p. 84 e 85 – Original em Inglês:
“Balcon was inordInately proud of these films and Cavalcanti assumed a highly Influential
position at Ealing. AccordIng to Michael Relph: It was one had to get on one's side if we hoped to
get a project approved. This was surprisIng In that Cav, as we called him, remaIned
obstInatelyforeign - his English was almost Incomprehensible - and his homosexual bohemianism
might have been expected to offend Balcon's straight laced principles” – Os filmes a que o autor se
refere são Dead of night e outros filmes em que Cavalcanti realizou os seus experimentos de fusão
do documentário com a ficção (O.C. p. 84).
394
BALCON, Michael Realism or TInsel? In DANISCHEWSKY, M. Michael Balcon’s 25 years
In films, p. 66. – Original em inglês: Here it is now, curtailed and dated and for what it may be
worth. It would be wrong to publish it without acknowledgIng my Indebtedness to my erstwhile
colleague Cavalcanti for providIng me with so much useful material on the subject In which he
stands supreme - the documentary film and its history. Much of it I have taken straight (and with
his permission) from the commentary of his Film and reality – Balcon se refere ao documentário
Filme e Realidade (1939 – 1942), já que o livro só seria publicado depois.
184
naturalista o produtor pode se permitir lançar sua história com pessoas sem
qualquer experiência de atuação, e produzir resultados excelentes395
Balcon comenta no texto como foi feito casting de alguns filmes como
North Sea, que como comentei, representou na G.P.O a transição para um
documentário em que a ficção era completamente incorporada, com subtramas e
tramas pregressas dos personagens: “Harry Watt me surpreendeu, quando eu
ainda era conservador nesses assuntos, dizendo-me que, quando ele fez o North
Sea, ele se escondeu atrás de um anteparo no cais para escolher seus atores”
396
.
Ao longo do texto, Balcon fala do realismo como uma herança direta dos
newsreels, dos filmes de viagem e dos filmes científicos. Ele identifica o
nascimento do “tinsel”, que seria o ar falso (ficcional) de alguns filmes, como um
produto da relação do cinema com o teatro, e usa um trecho de um comentário de
Filme e Realidade para dizer de como as interpretações teatrais de alguns atores,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
que optaram por este estilo de atuação, envelheceram com o tempo: “Poderiam ter
previsto como essas performances nos apareceriam hoje, eles podem ter preferido
diante do transitório, a fama lendária do teatro”397.
A Ealing teve durante a guerra uma relação conturbada com o MOI –
Ministry of Information (Ministério da Informação) do Reino Unido, existia uma
constante tentativa de intervenção do órgão junto à produtora através das regras
que foram criadas sobre os filmes de propaganda da coroa, o que deixava Balcon
bastante descontente. Era de fato um código de conduta e de procedimento na
propaganda baseado na “obrigação civil” em abraçar as causas do Reino Unido
durante a guerra, para isso o Ministério criou uma cartilha e comissões para fazer
com que tudo funcionasse sob o controle do estado. Deveriam ser feitos filmes de
395
BALCON Michael Realism or tinsel? In DANISCHEWSKY M. Michael Balcon’s 25 years In
films, p. 67. Original em Inglês: There was the question of actors. Today we know that the brothers
Lumiere were not so wide off the mark In choosIng their gardener and his son to their actors.
Grierson, Flaherty, Cavalcanti, Harry Watt, Humphrey Jennings and many other of our
documentary film-makers have show us sInce that thre is a strictly naturalistic school of screen
actIng which can allow the film producer to cast his story with people with no actIng experience
whatsover, and produce excellent results.
396
Ibidem – Original em Inglês - Harry Watt astonished me when I was still somethIng of a
reactionary In these matters by tellIng me that when he made North Sea he hid behInd the grill of a
labour exchange to pick his actors.
397
CAVALCANTI Alberto apud BALCON Michael Realism or Tinsel? In DANISCHEWSKY,
M. Michael Balcon’s 25 years in films, p. 68.
185
cinco minutos que seriam distribuídos aos cinemas e exibidos junto à
programação comercial.
Balcon já estava descontente com o tratamento que o Governo dava ao
filme comercial, que segundo ele, não era regido de forma transparente, ele
decidiu então romper com o MOI em 1940 e determinar que a Ealing faria os seus
filmes de propaganda dentro dos seus próprios modelos, seguindo parâmetros
comerciais398. Este departamento de propaganda interno da produtora de Balcon
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
ganhou um reforço fundamental com a chegada de Cavalcanti:
A nova unidade foi encabeçada pelo Alberto Cavalcanti, um gigante criativo cuja
experiência se estendeu dos longas-metragens europeus à vanguarda e, mais
recentemente, ao movimento documentário britânico - ele juntou-se a Ealing
depois de ser chefe interino da GPO Film Unit. Sob Cavalcanti, os filmes de
propaganda de Ealing afastaram-se dos tratamentos fictícios do trabalho
comissionado pelo MOI partindo para uma prática documental mais ortodoxa. Os
primeiros frutos desse movimento podem ser vistos nos últimos lançamentos da
Ealing de 1940: Sea Fort (D. Ian Dalrymple), sobre uma instalação de defesa
costeira, Young Veteran (A. Cavalcanti), sobre a nova geração de soldados que
se alistaram no início da guerra e Mastery of the sea (A. Cavalcanti), sobre o
trabalho vital dos bloqueios navais399.
A equipe da Ealing era aberta a estrangeiros, embora Balcon fizesse
questão de lembrar o caráter britânico de sua produção como um fim e um
princípio para a sua existência. A Ealing manteve este caráter nacionalista,
sobretudo, durante a guerra, quando Balcon declarou que: “A função da indústria
cinematográfica é agora clara: primeiro, a propaganda, a projeção de nossas
ideias, de nossa força e de nossos recursos; segundo: a instrução, tanto para
militares quanto para civis; terceiro, a diversão”.
O grande desafio do Shorts Departament era criar entretenimento a partir
do tema da guerra, as críticas da época afirmavam o louvável trabalho de
Cavalcanti em “fazer talvez a tarefa mais difícil, de tirar recreação de
398
http://www.screenonline.org.uk/film/id/1423768/Index.html.
Ibidem – Original em inglês: The new unit was headed up by the Brazilian-born Alberto
Cavalcanti, a creative giant whose experience stretched from European feature films to the avantgarde and, more recently, the British documentary movement - he joIned EalIng from his position
as actIng head of the GPO Film Unit. Under Cavalcanti, Ealing's propaganda films pulled sharply
away from the fictional treatments of the MOI-commissioned work and towards more orthodox
documentary practice. The first fruits of this move could be seen in EalIng's fInal short releases of
1940: Sea Fort (d. Ian Dalrymple), about a coastal defence installation, Young Veteran (d.
Cavalcanti), about the new generation of soldiers who enlisted at the start of the war, and Mastery
of the Sea (d. Cavalcanti), about the vital work of the naval blockades.
399
186
sentimentos”.400 Os objetivos comerciais de M. Balcon encontraram em
Cavalcanti a possibilidade de realização, mesmo que o tema fosse a guerra.
O título do ensaio que trata deste período da Ealing no livro dedicado à
produtora (Ealing Revisited) diz muito sobre os desafios daquele momento:
“From tinsel to realism and back again” algo como “Da imitação da realidade ao
realismo e de volta novamente”401. É um título síntese deste breve período em que
a Ealing flertou com o realismo, para no pós-guerra retomar o seu grande projeto
de cinema comercial de ficção. Na resenha que a Documentary News Letter
dedica ao filme Young Veteran, dirigido e produzido por Cavalcanti em 1940,
pode-se perceber o entusiasmo em que estes curtas de propaganda eram recebidos:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Os primeiros frutos do pequeno departamento dos Ealing Studios justificam a
veia comercial de Michael Balcon de conteúdo curto que combina entretenimento
com sabor propagandista sob a direção de Cavalcanti ... Se este é um exemplo
típico, à Unidade Cavalcanti é assegurada de um futuro distinto402.
A Ealing só faria as pazes com o MOI em 1942, quando voltaria a produzir
os “Five-Minutes Films”.
403
Com o fim da guerra o trabalho do departamento de
propaganda dentro da Ealing tinha cumprido a sua missão. Mas o legado do
cinema documental animado na produtora por Cavalcanti teria uma vida mais
longeva, a abordagem realista estaria presente nas produções que marcaram época
na Ealing no pós-guerra:
Em 1944, o fim da guerra se anunciava e o trabalho da unidade de curtas de
propaganda estava em grande parte feito. Seus aprendizes ganharam
personalidade, estabelecendo-se como cineastas que moldariam a glória pósguerra de Ealing. Embora seus filmes gradualmente abdicassemdo estilo
documental ,sua formação documental ainda se revelaria, particularmente na
atenção aos detalhes e na sensação de realidade dada às externas: as ruas
bombardeadas de Hue and Cry (Charles Crichton, 1947) e Passaporte para
Pimlico (1949), os vestidos e salas de sinuca da The Blue Lamp (Dearden, 1950),
as docas de Pool of London (Basil Dearden, 1951). Cavalcanti deixou Ealing em
1947, mas sua influência permaneceu muito mais404.
400
DUGUID, Mark e MCGAHAN, Katy. From tinsel to realism and back again In Ealing
Revisited, p. 63.
401
DUGUID, Mark e MCGAHAN, Katy. From tinsel to realism and back again In Ealing
Revisited, 2012. p 58.
402
Ibidem, p. 63.
403
http://www.screenonline.org.uk/film/id/1423768/Index.html.
404
Ibidem – Original em inglês: By 1944, the end of the war was in sight and the shorts unit's work
was largely done. Its apprentices graduated to features, establishIng themselves as the filmmakers
who would shape EalIng's postwar glory. Although their films gradually retreated from the
187
De acordo com as suas memórias, Cavalcanti tinha previsão contratual de
trabalhar alternadamente na Ealing como produtor e diretor: “Com Michael
Balcon sua tarefa era muito mais fácil do que com Grierson e com ele estabeleceu
um contrato muito satisfatório, segundo o qual produziria um filme como produtor
executivo e outro como diretor, alternadamente”405.
É curioso que, mesmo parecendo satisfeito quanto aos termos contratuais,
alguns parágrafos depois em seu texto memorial, quando fala do seu último ano
na Ealing (1947), Cavalcanti irá reclamar da remuneração oferecida pela Ealing a
seus profissionais.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Nessa época Michael Balcon havia entrado para a organização Rank, existindo,
por outro lado, um grande descontentamento entre os diretores da Ealing,
inclusive os mais moços, pelo fato de não existirem contratos escritos e mesmo
porque, comparando-se os salários que percebiam com os de outras entidades,
chegava-se a conclusão de que estavam sendo mal pagos406.
Esta passagem alimenta o depoimento de Balcon sobre as razões da saída
de Cavalcanti da Ealing, de que seriam motivações puramente financeiras, ele
revela à pesquisadora Elizabeth Sussex que:
Havíamos entrado em um período mais duro e mais cínico, os valores que as
pessoas defendiam começavam a se alterar e se passou a medir seu sucesso em
termos monetários. Se Cav queria se interrogar realmente a este respeito, ele
reconheceria ter sido tentado como todo mundo. Oscar Wilde dizia que um
homem é capaz de resistir a tudo, menos às tentações, e foi bem isso que
aconteceu... Todo mundo se dispersou e o trabalho não faltou para ninguém, mas
se você se da ao trabalho de avaliar o que disso resultou, constatará que nenhum
de nós foi tão bom separadamente quanto havíamos sido juntos. Creio que Cav
padeceu disso mais do que qualquer outro que conheço...407
documentary style, their documentary education still sometimes showed through, particularly In
the attention to detail and their feel for locations: the bombed-out streets of Hue and Cry (d.
Charles Crichton, 1947) and Passport to Pimlico (1949), the seedy bedsits and pool halls of The
Blue Lamp (d. Dearden, 1950), the docklands of Pool of London (d. Basil Dearden, 1951).
Cavalcanti left EalIng In 1947, but his Influence lIngered far longer.
405
BORBA FILHO, Hermilo em memórias de Alberto Cavalcanti acervo Sergio Caldieri, páginas
não numeradas.
406
Ibidem. Criada por J. Arthur Rank, a Rank Organization foi um dos maiores conglomerados de
entretenimento do ReIno Unido, fundada em 1937 ela se transformou em uma gigante na
produção, distribuição e exibição de conteúdo para rádio, cinema e televisão, Incorporando
estúdios e produtoras.
Fonte: https://www.theguardian.com/film/2005/jul/13/features.features11
407
BALCON, Michael apud SUSSEX, Elizabeth Cavalcanti na Inglaterra In PELLIZZARI,
Alberto e VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti, p 334.
188
Nos primeiros anos da parceria de ambos na Ealing, Michael Balcon
apostava consideravelmente mais no lado produtor de Cavalcanti do que em seu
talento como diretor, o brasileiro só conquistaria prestígio dentro da produtora
depois de se afirmar através dos longas-metragens de ficção:
Balcon valorizava muito Cavalcanti como produtor e administrador; e tinha
menos segurança quanto ao seu lado de diretor. Went the day well? (1942), a
primeira película dirigida por Cavalcanti na Ealing, perturbou Balcon e a maioria
dos críticos de cinema pela selvageria de sua violência e sua representação de
alemães rudes e brutais. Seus dois filmes seguintes foram igualmente
idiossincráticos, mas encontraram uma recepção mais calorosa. Champagne
Charlie (1944), uma celebração carnavalesca da cultura popular, foi feita quando
o fim da guerra parecia à vista ... Dead of Night (1945), um conjunto macabro de
histórias de fantasmas inteligentes e interligadas, despertou críticas entusiasmadas
e audiências satisfeitas408.
Dead of Night é um dos filmes mais emblemáticos da carreira de
Cavalcanti, o seu mergulho no cinema noir pelo viés do drama de terror
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
psicológico conquistou admiradores entusiasmados ao longo de gerações que
sucederam a este longa-metragem de direção coletiva, que teve Cavalcanti por trás
de dois dos episódios. Em suas memórias ele deixa revelar uma grande
despretensão em relação a esta obra, que ao longo da história do cinema, seria
uma das mais referenciadas de sua trajetória ao lado de Rien que les heures e
CoalFace:
Esse filme foi muito feliz e para Cavalcanti muito fácil de fazer, porque todos os
rapazes que trabalhavam no filme tinham começado a dirigir sob sua influência,
ganhando a obra, justamente por causa disso, uma grande homogeneidade. O
papel do ventríloquo, inicialmente havia sido proposto a um ator francês Claude
Dauphin, que recusou a sua participação alegando que achava o papel muito
pequeno. Cavalcanti em vista disso, pediu a Michael Redgrave muito seu amigo,
para interpretar aquele estranho personagem e a interpretação transformou-se em
um grande sucesso409.
408
MURPHY, Robert. Dark shadows around Eailng In DUGUID Mark, FREEMAN Lee,
JOHNSTON Keith e WILLIAMS Melaine Ealing Revisited, p. 85 – Original em Inglês: Balcon
valued Cavalcanti highly as a producer and organiser; he was less sure of him as a diretor. Went
the day well ? (1942) , the first feature Cavalcanti directed at Ealing , disturbed Balcon and
majority of film critics with the savagery of its violence and its depiction of Germans and boorish
and brutal. His next two films were equally idiosyncratic but found a warmer reception.
Champagne Charlie (1944), a carnivalesque celebration of popular culture , was made when the
end of the war seemed in sight...Dead of night (1945) , a macabre set of cleverly InterlInked ghost
stories , chillIng thought it was , impressed critics and pleased audiences.
409
BORBA FILHO, Hermilo Uma Vida In VALENTINETTI, Claudio e PELLIZZARI, Lorenzo
Alberto Cavalcanti, p. 147.
189
410
Figura 58: Michael Redgrave em Dead of Night.
Dead of Night representa com clareza como a Ealing se rendeu ao cinema
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
noir no pós-guerra, e neste caso específico, sob o viés surrealista. O filme teve
grande impacto em seu lançamento no cenário internacional, nos Estados Unidos
chegou a ter dois episódios censurados, um deles dirigido por Charles Crichton
inspirado em Wells e o outro dirigido por Cavalcanti; a história infantil que tem
início aos 19 minutos, acabou se consagrando como o episódio de maior sucesso
na França. Infelizmente a versão que chegou ao Brasil na época do lançamento de
Dead of Night foi a censurada, exibida no circuito norte-americano411.
Cavalcanti teve um cuidado especial com a composição da trilha e a
concepção da montagem sonora de Dead of Night. O filme marcou a estreia do
compositor francês Georges Auric na Ealing, há versões que dizem que Auric
teria aceitado o convite justamente pelo falo de conhecer a ligação de Cavalcanti
com outros compositores franceses de renome, em sua temporada na avant-garde.
O canal particular para a contratação de Auric em 1945 não é claro: pode ter sido
via o cosmopolitismo de Cavalcanti, que esteve anteriormente na GPO Film Unit,
e era então produtor associado da Ealing. As conexões musicais de Paris de
Cavalcanti eram sólidas, e ele era suficientemente amigo de compositores como
Maurice Jaubert e do imigrante alemão Ernest Meyer, a partir de músicas escritas
410
Fonte: https://player.bfi.org.uk/rentals/film/watch-dead-of-night-1945-onlIne.
BORBA FILHO, Hermilo Uma Vida In VALENTINETTI, Claudio e PELLIZZARI, Lorenzo
Alberto Cavalcanti, p. 147.
411
190
para seus filmes. Além das afinidades culturais de Cavalcanti com a França, havia
várias razões práticas pelas quais a contratação da Auric fazia sentido absoluto412.
A trilha de Dead of Night foi gravada nos estúdios Abbey Road, em
Londres, os sons dissonantes - como cordas trêmulas e um piano tocado de forma
frenética - a captação de instrumentos gravados separadamente e em diferentes
faixas e tons criaram uma sofisiticada trilha de terror que acentua o clima do
filme. Para o episódio do ventríloquo Auric apostou no silêncio, o resultado se
mostrou aterrorizante “um ingrediente que lhe foi prontamente aceito pelos
produtores ingleses, mais rapidamente que na França”413.
Além de Dead of Night, Cavalcanti realizou na Ealing outras obras
fundamentais para a sua trajetória, como o já citado Went the day well?(48 horas),
de 1942, longa-metragem inspirado em Graham Greene que retrata o lado
selvagem escondido sob a fleuma britânica, mostrando personagens ingleses como
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
criaturas capazes de matar quando movidas pelo ódio ou pela vingança e
introduzindo um clima noir ao seu retrato de uma pacata comunidade interiorana
da Inglaterra em tempos de guerra.
414
Figura 59: A face obscura dos britânicos em Went the day well?.
Baseado em uma novela de Charles Dickens, em seu último ano na Ealing,
Cavalcanti filmou The life and adventures of Nicholas Nickleby (1947) (As vidas
e aventuras de Nocholas Nickleby), que não foi bem recebido por parte do
412
BROWN, Geoff. EalIng’s french dressing In DUGUID Mark, FREEMAN Lee, JOHNSTON
Keith e WILLIAMS Melaine Ealing revisited, 2012. p. 105.
413
Ibidem, p. 107. Original em Inglês: an ingredient which he approvingly found that English
producers welcomed more readily than the France.
414
Fonte: http://thrillIngdaysofyesteryear.blogspot.com.br/2014/08/the-british-invaders-blogathonwent-day.html.
191
estúdio, e They made me a fugitive (Nas garras da fatalidade) de 1947, um típico
exemplar do cinema noir, muito próximo da abordagem que o cinema norteamericano deu ao gênero, com direito a criminosos cruéis, femmes fatal e
perseguições policiais.
Boa parte da crítica e do público considerou They made me a fugitive
excessivamente violento, sobretudo em relação às mulheres415. O crítico Arthur
Vesselo da revista Sight and Sound chamou o filme de “um conto de sordidez,
corrupção e violência quase sem restrições... uma inversão e desordem dos valores
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
morais, uma tentativa de atrair os mais sombrios recessos da mente” 416.
417
Figura 60: O noir em They made me a fugitive.
No pós-guerra, o cinema noir assumiu o papel de uma espécie de espelho
exorcizante dos traumas da guerra. Tanto na Europa como no cinema norteamericano, estes filmes recriaram um ambiente niilista de inversão de valores e
violência em personagens amorais, que expunham as feridas abertas que o mundo
ainda não era capaz de deglutir, e muito menos de curar.
Este caráter exorcizante foi questionado por Kracauer, que viu no cinema
noir um potente amplificador destas feridas, ao pintar um retrato de profundo
desencanto com o humano, cercado por uma sociedade que se via ali esfacelada
pela experiência aniquiladora da guerra.
415
MURPHY Robert Dark shadows around Ealing In DUGUID Mark, FREEMAN Lee,
JOHNSTON Keith e WILLIAMS Melaine Ealing revisited, 2012 p. 86.
416
Ibidem. Original em inglês: “a tale of sordidness, corruption and violence almost unrelieved...
an Inversion and disorderIng of moral values , a gropIng Into the grimier recesses of the mInd”.
417
Fonte:http://invisibleworkfilmwritIngs.tumblr.com/post/80203302137/they-made-me-a-fugitive1947-dir-alberto.
192
As lembranças traumáticas da guerra combinadas com um tradicional apreço
britânico pelo melodrama escuro e sangrento, fizeram daquele momento o que
Siegfried Kracauer advertiu em seu influente “De Caligari a Hitler”: que o
cinema poderia amplificar em vez de exorcizar esses traumas418.
E Cavalcanti, um surrealista por auto-definição e um realista por vocação,
se viu como um diretor de cinema noir, dividindo opiniões da crítica, exaltado por
alguns textos e criticado por outros. Diante desta dicotomia de leituras, Balcon se
viu assustado com a repercussão negativa das produções da Ealing junto à parte
da crítica. O jornalista e roteirista Paul Dehn, responsável pelo roteiro de
Golfinger (Guy Hamilton, 1964), disse sobre Cavalcanti: “Cavalcanti, um dos
nossos melhores diretores de documentário transformou-se de repente em um
bacteriologista, levando a sujeira à superfície e manchando-a, para nossa inspeção
minuciosa sob o vidro”419.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Estas sujeiras, a que Dehn se refere, ficam claramente expostas em Dead
of Night, o filme é centrado na face doentia da mente, o medo, a loucura, a
violência. O plot é uma reunião em uma casa de campo em que um psiquiatra e
um grupo de convidados avalia os sonhos e experiências extraordinárias
vivenciadas por eles.
Com um claro componente surrealista - com coches funerários
assustadores 12’51’’, relógios que subvertem o tempo linear 13’04’’ e espelhos
que manipulam a realidade espectral 1h08’- e uma dose de violência latente que
dialoga com o cinema noir. Dead of Night é uma sofisticada proposta que rompe
com o realismo que marcou a trajetória de Cavalcanti, em especial na sequência
final, quando os episódios se entrecruzam na mente perturbada de um dos
personagens. O BFI credita o filme como sendo dirigido por Cavalcanti e
Crichton, enquanto os créditos do próprio filme dizem que a direção tem ainda a
participação de Basil Dearden e Robert Hamer, versão que vai ao encontro da
postulada por Cavalcanti.
418
MURPHY, Robert. Dark shadows around Ealing In DUGUID Mark, FREEMAN Lee,
JOHNSTON Keith e WILLIAMS Melaine Ealing Revisited, p. 86. – Original em Inglês: “But
traumatic memories of the war combIned with a tradicional British fondness for dark and bloody
melodrama to seepmInto the cinema of the period and Siegfried Kracauer warned In his Influential
From Caligari to Hitler that cinema could amplify rather than exorcise those traumas”.
419
DEHN, Paul apud MURPHY, Robert. Dark shadows around EaiIng In DUGUID Mark,
FREEMAN Lee, JOHNSTON Keith e WILLIAMS Melaine Ealing Revisited, p. 86. - Original em
inglês: Cavalcanti, one of our best directors of documentary turned suddenly bacteriologisthaulIng muck to the surface and smearing it, for our minute inspection under glass.
193
420
Figura 61: Fotograma da sequência em que os episódios se cruzam em Dead of Night.
Em They made me a fugitive, Cavalcanti faz uma imersão total no universo
do cinema noir, ao contrário de Dead of night, o filme finca os pés no submundo
da realidade para revelar toda a patologia de uma engrenagem social contaminada
pela violência e pela ganância.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Apesar das críticas sobre a dose que o diretor deu a este realismo
pessimista, houve também uma série de reflexões teóricas posteriores realizadas
sobre a obra de Cavalcanti, que perceberam o potencial que aquele filme teria para
catapultar a carreira de Cavalcanti em direção a Hollywood: “Cavalcanti não
alcançou muito, They made me a fugitive talvez o tivesse levado a Hollywood,
onde outros mavericks - Lang, Welles, Tourneur, Siodmak - estavam fazendo
filmes com brilhantismo inventivos filmes noir. No entanto, ele ficou na
Inglaterra...”421.
Depois de They made me a fugitive, Cavalcanti ainda ficaria mais um ano
na Ealing, onde realizaria The First Gentleman, que não foi bem recebido pela
crítica.
Neste momento começam a surgir as questões que o levaram a deixar a
Inglaterra subitamente e retornar ao Brasil. Há uma série de teorias sobre as reais
razões que fizeram com que Cavalcanti tomasse esta decisão, além da financeira,
420
https://prowlerneedsajump.wordpress.com/2015/10/25/dead-of-night-1945/.
DEHN, Paul apud MURPHY, Robert. Dark shadows around Ealing In DUGUID Mark,
FREEMAN Lee, JOHNSTON Keith e WILLIAMS Melaine Eaiing Revisited, 2012.p. 87. Original
em inglês: “Cavalcanti achieved even less. They made me a fugitive could perhaps have taken him
to Hollywood, where other mavericks - Lang, Welles, Tourneur, Siodmak - were making
brilliantly inventive films noirs. Instead, he stayed in Britain...”
421
194
que já foi aqui exposta, o livro Ealing Revisited
422
fala também de um profundo
desgaste emocional que Cavalcanti estaria vivendo pela morte recente de sua mãe
em 1945 e também pela visita que ele fez à Alemanha e França para visitar as
locações de The Captive Heart (1946), de Basil Dearden. Isso tudo acontecia
exatamente no momento de maior êxito de Cavalcanti na Ealing, após o sucesso
de sua temporada no departamento de propaganda durante a guerra e também pelo
prestígio conquistado com Dead of Night.
No momento em que deveria ter sido um ponto alto para Cavalcanti na Ealing, as
coisas começaram a dar errado. O seu retorno à Europa para supervisionar as
locações de The Captive Heart de Dearden o deixou deprimido e marcado pela
extensão da pobreza, corrupção e devastação que ele testemunhou ... No capítulo
de Charles Drazin sobre Cavalcanti em The Finest Years, p. 131. Drazin também
aponta para a morte da mãe de Cavalcanti no final da guerra como um fator que
contribui para o seu estado de insatisfação e infelicidade423.
Cavalcanti narra com detalhes em suas memórias como foi este período
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
em sua vida e o impacto que esta viagem “à Europa”, segundo os ingleses, o
marcou profundamente:
Seguiu, então, para a Alemanha a fim de produzir The Captive Heart, direção de
Basil Dearden. Essa foi uma época triste de sua vida, andava numa inquietação
louca provocada pelo excesso de trabalho na Inglaterra durante a guerra, por uma
paixão já tardia e pela moléstia de Dona Ana Olinda, que faleceu pouco
depois...A situação agravada pelos ordenados baixos que recebia continuava tensa
e The captive Heart foi o último filme rodado por Michael Balcon, cuja amizade
ficou abalada com o desligamento de Cavalcanti que pediu que retirasse seu nome
do filme. Logo depois reatou a amizade com Balcon e avida continuou a andar...A
impressão que teve de Paris depois da guerra foi realmente péssima. Antes de
tudo pelo ponto de vista puramente pessoal: os alemães tinham se instalado em
seu apartamento, agindo como cães selvagens que eram ... Quanto a casa de
Borgonha, tinha sido completamente arrasada...424
O desejo de que Cavalcanti retornasse ao Brasil era explicitado de forma
recorrente por sua mãe, Ana de Olinda, como o diretor confidenciou mais de uma
422
O.c. p. 85.
MURPHY, Robert. Dark shadows around Ealing In DUGUID Mark, FREEMAN Lee,
JOHNSTON Keith e WILLIAMS Melaine Ealing Revisited, 2012. p. 85 e 240. Original em inglês:
At what ought to have been a highpoint for Cavalcanti at Ealing, things started to go wrong. A
return to Europe to supervise the location sequences of Dearden's The Captive Heart left him
depressed and unsettled by the extent of poverty, corruption and devastation he witnessed...See
Charles DrazIn's chapter on Cavalcanti In The fInest Years, p. 131. Drazin also points to the death
of Cavalcanti's mother at the end of the war as a contributIng factor to his unsettletd and unhappy
state (A obra em que o autor se refere é: DRAZIN Charles The fInest years - British cinema of
1940s I B Tauris & Co Ltd (29 Aug. 2007). 296 páginas.
B
BORBA FILHO Hermilo Uma Vida In PELLIZZARI Lorenzo e VALENTINETTI Claudio p.
149
423
195
vez em entrevistas. Talvez isso em um momento de luto tenha influenciado na
escolha do diretor em retornar a sua terra natal.
Antes de voltar ao Brasil, Cavalcanti tinha entrado para o time da Rank na
Inglaterra, onde trabalharia como produtor independente na adaptação do livro
Sparkenbroke de Charles Morgan, mas uma semana antes de começarem a
filmagem Rank chamou Cav ao seu escritório e disse que a Universal não
concordara em distribuir o filme no mercado norte-americano, o projeto foi então
abortado e deveria ser prontamente substituído por outro. Cavalcanti, segundo
suas memórias estava esgotado mentalmente425, preferiu então aceitar o convite de
Assis Chateubriand para vir ao Brasil, dando início ao capítulo mais melancólico
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
de sua carreira.
425
Ibidem.
4.
Reminicências e Ressonâncias: Vera Cruz, Maristela, KinoFilmes e Brecht
Suas raízes não pertencem a uma nação, mas a uma espécie de civilização
amarrada a um período em que ainda se pudesse encontrar, acima das
nações, a sociedade sem fronteiras que o fazia426
Henri Langlois sobre Alberto Cavalcanti
Seq 82 Lettering sobre fundo negro
Existem possibilidades estranhas em cada homem. O
presente estaria cheio de todos os futuros, se o
passado ainda não projetasse uma história
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
André Gide427
Seq 83 Ext/Dia Aeroporto de Friburgo – Suíça 1912
Um menino de 15 anos caminha sozinho pelo saguão de um
aeroporto vazio, ele carrega com dificuldade o peso de
uma mala que parece conter a sua própria vida. O menino
sozinho não tem ninguém ao leu lado, ele veste roupas
antiquadas, como se saísse de uma província distante
daquele aeroporto europeu gelado e vazio.
Voz Over
Longe, muito longe ficou o Brasil. Ficaram, na terra,
as primeiras experiências de amor, ódio, intrigas; os
primeiros deslumbramentos; a família, na sua
imaginação, estava parada como fotografia428
426
LANGLOIS, Henri. Texto com páginas não numeradas acervo Cinemateca Brasileira. Original
em inglês: His roots dont belong to a nation, but to a kInd of civilization tied to a period where
there could still be found, abve the natons, the society without frontiers which made him (tradução
mInha).
427
GIDE, André apud BORBA FILHO, Hermilo Uma Vida In VALENTINETTI, Claudio e
PELLIZZARI, Lorenzo Alberto Cavalcanti, p. 83. Original em francês: Il y a d'étranges
possibilités dans chaque homme. Le présent serait plein de tous les avenirs, si le passé n'y projétait
déjà une histoire.
428
BORBA FILHO, Hermilo Uma Vida In VALENTINETTI, Claudio e PELLIZZARI, Lorenzo
Alberto Cavalcanti, p. 83.
197
O menino caminha até a porta do aeroporto, a porta
automática se abre, uma luz branca explode na tela, não
se vê o lado de fora. Ele abandona a mala pesada no
chão e atravessa
a porta que em seguida se fecha em
fade in
Entra o crédito final sobre a tela escura:
FIM
Escolhi como sequência final, deste filme imaginário que aqui construo
nesta breve introdução em estrutura de roteiro, a que lança Cavalcanti ao mundo,
em um pensamento cíclico sobre a jornada deste homem, no interlúdio entre duas
partidas: a primeira, acima descrita, em que ele se lança ao mundo aos 15 anos,
sozinho em uma Europa que nos anos 1910 tinha como obstáculo uma travessia
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
oceânica, e a que abriu esta tese, quando este personagem, já octogenário, conclui
amargamente o seu retorno ao Brasil, que já não é mais apenas uma fotografia. A
proposta de desenhar um círculo inverso que começa pelo fim é uma espécie de
homenagem a este cineasta, que nunca prezou nem no cinema ou em sua vida, as
zonas de conforto.
Cavalcanti deixou o Brasil no começo dos anos 1910 como um menino
provinciano, nascido no Rio de Janeiro, mas criado dentro de uma engrenagem
moldada pelos engenhos de cana-de açúcar de Pernambuco, com suas amas de
leite negras, em uma relação patrimonial com os empregados, laços que
frequentemente afrouxavam as amarras sociais e se deixavam embuir de afeto. Em
suas memórias, Cavalcanti conta que levou sua antiga babá Madalena, para a
Europa na primeira temporada que passou com a família em Paris, e isso é
narrado de forma natural, como se aquela amável companhia pertencesse ao
inventário dos Cavalcanti. Madalena “a preta”, saberíamos, teria um destino
trágico, seria brutalmente assassinada pelo marido, sabemos disso através das
memórias de Cavalcanti, entre uma passagem infeliz na Paramount e o primeiro
encontro com Eisenstein: vida e obra entrelaçadas429.
429
BORBA FILHO, Hermilo Uma Vida In VALENTINETTI, Claudio e PELLIZZARI, Lorenzo
Alberto Cavalcanti, 1985. p. 134.
198
É sob esta égide patriarcal, de uma família criada sobre as regras austeras
de um positivista ferrenho, que Cavalcanti escapa das rotas do destino a ele
socialmente reservadas e foge pelo labirinto da arte, acompanhado por sua mãe,
que esteve com ele durante quase todo o período que passou na Europa. Sob este
contexto de formação, criado no seio de uma família de militares e educadores
positivistas, o mundo ganha um cineasta homossexual, que rompe com o seu país
de origem e queima os seus navios na travessia em direção a um novo tempo que
se reinventava sob o signo da modernidade.
O ponto de partida desta odisseia transformadora fora a expulsão por
indisciplina da Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro,
que Cavalcanti precocemente começou a cursar aos 15 anos. É este rapaz
irreverente, que deixa este universo conservador do século XIX, para atravessar o
tempo em uma elipse mágica, e se lançar à jornada de construir em imagens o
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
século XX.
Inventário de afetos e desafetos pós Vera Cruz
430
Figura 62: Carta assinada por Cavalcanti em que cita amigos, como Yolanda Penteado, Rudá de
Andrade e Almeida Salles.
430
Acervo Sergio Caldieri – A carta era endereçada a Adalberto Vieira.
199
Para iniciar a investigação desta etapa final da trajetória de Cavalcanti,
escolhi as pistas deixadas em cartas, textos, e impressões de admiradores e críticos
do cineasta, realizados após a saída da Vera Cruz, marco que considero simbólico
para se pensar a última fase de sua trajetória cinematográfica. Em escritos que
partiram de diferentes relações e olhares, busquei traçar um recorte da imagem de
Cavalcanti que o seu cinema e sua teia de relações contruiu.
Optei por me dedicar a textos não consagrados, abrindo uma exceção para
Glauber, pela importância seminal que seu artigo tem na revisão do olhar do
cineasta baiano sobre Cavalcanti, após a contenda que se formou entre o Cinema
Novo e a Vera Cruz.
Começo com um uma preciosidade que encontrei na pesquisa que fiz sobre
o acervo em poder de Sérgio Caldieri, um manuscrito assinado pelo crítico
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Francisco de Almeida Salles, não datado, que parece ser o seu discurso de
abertura de um ciclo de filmes sobre cenografia e cinema, intitulado:
“Arquitetura, Imagem e Som” realizado em uma parceria do IAB – Instituto de
Arquitetos do Brasil e o “Museu”, que suponho que seja o MAM – Museu de Arte
Moderna de São Paulo, instituição que Almeida Salles presidiu entre tantas de sua
vida, rendendo-lhe a alcunha de “Presidente”431. Fica claro que se tratava de São
Paulo, já que Salles introduz o texto dizendo “Grande alegria em receber Alberto
Cavalcanti, em São Paulo, cidade onde ele viveu 4 (sic) anos, de 1950 a 1954”432.
431
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/especial/bio/biosalles.htm.
SALLES ALMEIDA, Francisco. Manuscrito acervo Sérgio Caldieiri (primeira página – páginas
numeradas a mão).
432
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
200
433
Figura 63: Primeira página manuscrito discurso Almeida Salles.
Neste texto, Almeida Salles realiza em onze páginas uma síntese afetuosa
da passagem de Cavalcanti pelo cinema, que por sua vez, traduz em grande parte a
passagem de Cavalcanti pela vida, já que estas se converteram em uma rota única,
enumerando seus feitos e sua presença em impressões sensíveis e pessoais de
quem aparentemente teve uma convivência amistosa e sincera com o cineasta.
Almeida Salles começa citando os feitos “milagrosos” da passagem
“explosiva” de Cavalcanti pelo Brasil, como o mapeamento do cinema brasileiro
para a criação do INC – Instituto Nacional de Cinema, respondendo a uma
solicitação de Getúlio Vargas, a realização de filmes como Canto do Mar (1954) e
Simão o Caolho (1952) e a publicação de Filme e Realidade: “A passagem de Cav
pelo Brasil, depois de quasi (sic) 40 anos radicado na Europa, não foi
suficientemente salientada. Só por estas enumerações que fizemos podemos
433
Fonte: acervo de Sergio Caldieri.
201
defini-la como explosiva”434. Em seguida ele exalta o Cavalcanti cenógrafo, tema
da Mostra e fala da melancólica relação do cineasta com o seu país:
um dos maiores, senão o maior, da história da 7ª arte. E na noite em que
exibiremos Feu Mathias Pascal, de Marcel L’Herbier, com sua cenografia que é
marco no decor cinematográfico. Mas comecei falando de Cav e Brasil, seu país
que ele perdeu, mas que bovaristicamente, ama e compreende como poucos435.
A partir deste ponto, Almeida Salles evoca a obra de Cavalcanti em cada
etapa, exaltando o prestígio que conquistou no cenário internacional em uma
“atividade humana admirável, de uma coerência e uma unidade marcantes... Sua
biografia e bibliografia estão longamente descritas em todas as histórias e
antologias cinematográficas de todos os países”436.
Almeida Salles descreve a chegada de Cavalcanti à vanguarda sob o
ataque inclemente da Paris bombardeada de 1917, ano em que a Europa assistiria
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
à Revolução Russa: “Mas em 1917, não terminada ainda a guerra, com o Berta
Alemão bombardeando a França, na Europa do quasi just-guerra vemo-lo fruindo
o ambiente dos movimentos exaltados da vanguarda, que agitavam todos os
campos da arte437” Onde Cavalcanti realizaria “o seu Rien que les heures, de
1926, sua primeira importante direção iria assinalar na avangarde (sic) francesa
uma abertura não crítica, mas descritiva fenomenológica do elemento
existencial”438.
Sobre a fase inglesa, Almeida Salles destaca a inquietação artística que
moveu a trajetória de Cavalcanti “seu fervor, sua capacidade de pesquisa e
renovação o leva a enfrentar o sonoro que nascia não aceitando rotineiramente”439.
E ainda: “Parece que Cav, desejaria chamar os filmes de neo-realistas (sic)
antecipando o filão italiano pós-1945”440. Na fase Ealing, Almeida Salles destaca
“um filme que chocou as plateias do mundo, o Dead of Night... Por ele
434
SALLES ALMEIDA, Francisco. Manuscrito acervo Sérgio Caldieiri. p. 2.
Ibidem, p.3.
436
Ibidem, p. 4.
437
Ibidem, p. 6.
438
Ibidem, p. 7.
439
Ibidem, p.8.
440
Ibidem, p.9.
435
202
coordenado e em que o seu skech do ventríloquo ressucitava em um plano
emocional, a eterna luta da criatura contra o criador”441.
No verso da última página do documento, há uma anotação à mão com o
que parece ser a letra de Cavalcanti (Sérgio Caldieri me confirmou que seria) onde
se lê um número (1223) e o nome Sra. Yolanda Penteado (com quem Cavalcanti
tinha uma relação entre a amizade e o mecenato), ao lado lemos um carimbo onde
se lê “guest advised” (convidado avisado). Não consegui concluir como este texto
teria ido parar nas mãos de Cavalcanti e posteriormente de Gilvan Pereira, e
também não posso ter certeza sobre o que seriam e qual a relevância daqueles
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
números.
442
Figura 64: Página de verso do discurso de Almeida Salles.
Em minha visita de pesquisa à Cinemateca de São Paulo, encontrei, como
já foi aqui mencionado, uma versão em inglês das memórias de Cavalcanti, antes
do texto memorial haviam dois escritos introdutórios, um assinado por Henri
Langlois443, um dos fundadores da Cinemateca Francesa, e outro, do escritor
Jorge Amado, ambos em inglês.
441
Ibidem, p. 10.
Texto do acervo Sergio Caldieri que me foi doado por ele.
443
Encontrei na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro uma referência de que
esse texto de Langlois teria sido publicado pela autora Heloísa Marra no livro Cavalcanti – Meio
século de Cinema, em 29 de janeiro de 1979, mas não encontrei nenhuma confirmação ou pista
que pudesse me levar a esta publicação.
442
203
Ao que parece, Cavalcanti pretendia editar assim as suas memórias. Me
senti especialmente tocada pelas palavras de Langlois, que poeticamente
questiona o “ser estrangeiro” em Cavalcanti, marca que o acompanharia onde
estivesse, francês demais na Inglaterra, europeu demais no Brasil, e brasileiro
demais na França. Como foi falado no capítulo anterior, esta brasilidade
questionada entre os brasileiros, era meticulosamente preservada por Cavalcanti,
que praticava um inglês estrangeiro e que, durante o período G.P.O, negou de
pronto o convite para se tornar cidadão britânico, convite este que lhe traria
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
consideráveis vantagens. Langlois diz que:
Estrangeiro eterno, Cavalcanti vai de um lado do Atlântico para o outro, incapaz
de permanecer ... Destino curioso, aquele deste homem de cinema errante, cujo
trabalho cobre três continentes, porque, apesar de todos os livros escolares, as
Ilhas Britânicas são um continente em si mesmas. Em todos os lugares, essa
criança adotiva está em casa e desempenha um papel essencial, às vezes invisível
ao não inciado, mas sempre eficiente em suas repercussões, antes de partir
novamente, até o dia em que, voltando para sua terra que o nega, ele é tratado
como um alienígena, e é forçado a se exilar novamente444.
Langlois questiona com ênfase a forma como Cavalcanti foi recebido no
Brasil e repensando os caminhos deste diretor que percorreu com desenvoltura a
história do cinema em sua gênese e na sua consolidação como linguagem,
segundo definição do francês: “um homem do século 18, perdido no 20, e mais,
fazendo filmes”445. Definindo Cavalcanti pela representação do que seria o ser
cosmopolita, um cineasta vinculado mais ao seu tempo que ao espaço em que
ocupou erraticamente no mundo:
Onde então, é a pátria deste homem que o Brasil não reconheceu como um de
seus filhos? Onde devemos procurá-lo, onde colocá-lo? E como explicar isso,
onde quer que esteja, seu trabalho faz parte da produção nacional, exceto talvez
no Brasil? ... Tentar explicar o trabalho de Cavalcanti vinculando-o ao Brasil,
França ou Grã-Bretanha, não significa nada. Onde estão as raízes dele? onde é
sua terra natal? Suas raízes não pertencem a uma nação, mas a uma espécie de
civilização amarrada a um período em que ainda se pudesse encontrar, acima das
444
LANGLOIS, Henri. Texto datilografado acervo Cinemateca de São Paulo, páginas não
numeradas. Original em inglês (traduzido por mim): Eternal foreigner, Cavalcanti goes from one
side of the Atlantic to the other, unable to remaIn...Curious destIny, that of this errant film-man,
whose work covers three continents, because, In spite off all the school books, the British Isles are
a contInent in themselves. Everywhere, that adopted child is at home and plays an essential part,
sometimes invisible to the profane, but always efficient In its repercussions, before he departs
again, until the day when, comIng back to his negative land, he is treated as an alien, and is forced
to be exile again.
445
Ibidem. Original em inglês: Cavalcanti is a man of the 18th century, lost in the 20th, and who
what is more, makes filmes.
204
nações, a sociedade sem fronteiras que o fazia. É por isso que ele está sempre em
casa em Roma e em Paris, em Londres e em Berlim, em Viena e no Rio... É por
isso que seu trabalho tem esse brilho, essa clareza, essa facilidade, essa graça,
essa elegância, como as roupas que ele poderia ter usado, ou os quartos em que
ele poderia ter vivido. É por isso que seu trabalho tem essa unidade; ... aqueles
que conhecem o papel desempenhado por ele em Londres na renovação do
documentário social e para quem Cavalcanti não é o autor de Chapeuzinho
Vermelho, mas o de Coal Face e de Noth Sea446.
Assim como o texto de Langlois, as palavras de Jorge Amado falam de um
Cavalcanti “cidadão do mundo” e de sua espinhosa relação com o Brasil. Embora
não estejam datados, o teor desses textos deixa claro que foram escritos após
Cavalcanti deixar a Vera Cruz. O escritor baiano destaca o papel pioneiro do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
cineasta como o grande nome do cinema brasileiro no mundo:
...antes ainda de Humberto Mauro aparecer em Cataguazes com a câmera na
mão... Hoje, o cinema brasileiro se destaca no mundo sob o olhar estrangeiro.
Alguns nomes são citados além de nossas fronteiras. São jovens mestres que
estão na vanguarda da criação cinematográfica: Nelson Pereira dos Santos,
Glauber Rocha, Cacá Diegues, Joaquim Pedro, para citar apenas alguns. Eles
existem porque algumas décadas antes, um jovem brasileiro apareceu na Europa e
se colocou na vanguarda ... Ele manteve-se jovem e na vanguarda até hoje. O
brasileiro Alberto Cavalcanti447.
Sobre o episódio Vera Cruz, Jorge Amado chamou a atenção para a forma
como Cavalcanti tolerou tudo o que viveu no Brasil naquele momento, em que viu
a sua reputação atacada, como descreve em suas memórias:
Foi um julgamento difícil e qualquer outra pessoa teria dado as costas ao país,
onde tantas pessoas o rejeitaram e crucificaram. Não devemos esquecer que,
446
Ibidem. Original em ingles (traduzido por mim): Where then, is the homeland of this man that
Brazil didn’t recognize as one of its sons? Where must we look for it, where to place it? And how
to explaIn that, wherever he is, his work is parto f the national production, except perhaps in
Brazil? To explaIn the work of Cavalcanti through Brazil, France or Great Britain, doesn’t mean a
thIng. Where are the roots? Where is his homeland? His roots dont belong to a nation, but to a
kInd of civilization tied to a period where there could still be found, abve the natons, the society
without frontiers which made him. Yhats why he is Always at home in Rome and in Paris, in
London and in Berlin, in Vienna and in Rio. Thats why his work has that brilliance, that clearness,
that easIness, that grace, that elegance, like the clothes he could have worn, or the rooms he could
have lived In. Thats why his work has this unity; those who know the part played by him in
London In the renewal of the social documentary and for whom Cavalcanti is not the author of The
Little Red RidIng Hood" but that of Coal Face and North Sea.
447
AMADO, Jorge em texto do acervo da Cinemateca Brasileira – Páginas não numeradas /
Original em Inglê (traduzido por mim): Even before Humberto Mauro appeared in Cataguazes,
câmera in hand... Today, Brazilian cinema is winning the markets of the world and the admiration
of foreigners...A few names are quoted beyond our frontiers. They are young masters who are In
the forefront of cinematographic creation: Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, cacá
Diegues, Joaquim Pedro, to name just a few. They exist because some decades earlier a young
Brazilian appeared In Europe and placed himself in the forefront ... He has kept himself young and
In the forefront until today. The brazilian Alberto Cavalcanti.
205
quando Alberto Cavalcanti se colocou a serviço do cinema brasileiro, ele não era
simplesmente um qualquer. Ele trouxe consigo um conhecimento profundo e uma
experiência anormal ... Ele sempre foi, em todo o momento, um criador
brasileiro, trabalhando longe de seu país natal, mas mantendo um apego constante
às suas raízes.
De todos os depoimentos que li sobre Cavalcanti, a maioria deles
elogiosos, outros ligeiramente sarcásticos, como a definição que o escritor
Claudio Valentinetti me ofereceu ao conversarmos pelo Skype, em 09 de março de
2017, quando disse de forma jocosa que: “Cavalcanti era uma prima donna”, o
que mais me instiga é o que Glauber Rocha publicou em seu livro Revisão Crítica
do Cinema Brasileiro448. Não pela contundência da verve de Glauber, que não me
surpreenderia, mas pelas considerações pontuais na avaliação que teceu sobre a
presença de Cavalcanti na Vera Cruz, se antes Glauber fora um dos mais
eloquentes críticos sobre a adoção de um estrangeiro para liderar a ambiciosa
industrialização do cinema brasileiro, desta vez, ele retorna ao ponto de partida
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
para reavaliar o papel dos detratores que impossibilitaram o trabalho de
Cavalcanti.
O cineasta baiano abre o capítulo “Cavalcanti e a Vera Cruz”, com uma
citação do crítico B.J. Duarte retirada do prefácio do livro Filme e Realidade, em
que ele exalta a figura de Cavalcanti no cinema mundial. Em seguida, Glauber
introduz a sua reflexão dizendo que
Ninguém foi expulso do cinema brasileiro a não ser o próprio Alberto Cavalcanti,
que teve de arrumar as malas e retornar ao seu prestígio na Europa. Ele mesmo
confessa que aqui sofreu a única e maior decepção de sua carreira...Nunca, em
torno de um homem só, tamanha e sórdida campanha foi desencadeada, no seio
de uma classe. Quando se compreendeu que Cavalcanti ia de vez, quiseram
evitar, mas já era tarde: não adiantaram as homenagens e os pedidos. Retornando,
Cavalcanti não conseguiu o mesmo brilho do decênio de 40, fase britânica, com
Chapagne Charlie; Na solidão da noite (Dead of Night), A vida e as aventuras de
Nicholas Nickleby (The life and Adventures de Nicholas Nickleby) e Nas garras
da fatalidade (They made me a fugitive), obras-primas que completam uma
filmografia de trinta e seis “direções”; vinte e nove “produções”; suas
“cenografias”, entre curtas e longas-metragens, na França e na Inglaterra, a partir
de 1922 até 1948449.
Glauber considera como o maior erro de Cavalcanti, o fato dele ter
preterido os diretores brasileiros na montagem da equipe da Vera Cruz:
448
449
ROCHA, Glauber. Revisão Crítica do Cinema Brasileiro São Paulo: Cosac Naif, 2003..
Ibidem, p. 70.
206
“Esqueceram Humberto Mauro (uma entre outras graves culpas de Cavalcanti) ...
Sobraram os técnicos estrangeiros (uma, entre outras, grande contribuição de
Cavalcanti)”450. Em seguida Glauber enumera o legado que os estrangeiros
trazidos por Cavalcanti deixaram ao cinema brasileiro, formando uma geração de
técnicos, de publicações sobre cinema, e a semente plantada para futuras
tentativas de se solidificar um cinema comercial genuinamente brasileiro, a mais
famosa delas, a Chanchada. Mas no rastro destes ganhos vieram os danos,
“Surgiram os picaretas dos jornais de atualidades...cresceu a fogueira do lucro
fácil” 451.
Sobre os filmes realizados por Cavalcanti, Glauber se concentra em
especial em O Canto do Mar e cita ainda Mulher de Verdade (1954) como “uma
péssima comédia, ao contrário de Simão, o caolho (1952), filme injustamente
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
esquecido”452.
O cineasta baiano critica Cavalcanti com veemência pelo fato dele traçar
uma rota industrial para o cinema, não só em sua breve e desastrosa passagem
pela Vera Cruz, mas também em seu inventário teórico publicado em Filme e
realidade. Rota esta que entrava em colisão com a proposta essencialmente
autoral defendida por Glauber, que naquele momento acreditava que esta ruptura
com os modelos industriais capitaneada pelo cinema de autor seria peremptória, e
que o tempo revelaria configurações em fronteiras opostas:
Cavalcanti de certa maneira é um cineasta do passado. Em seu livro desenvolve
teorias de argumento, roteiro, cor, cenografia, produção, direção e interpretação
tipicamente industriais – segundo as quais, na prática, torna-se impossível a
liberdade de um autor. Concordo em parte com seus conceitos de “produtor”, mas
até certo ponto: o autor é ser nescessariamente livre; o produtor deve ser, com o
máximo de profissionalização ... uma peça de financiamento, ao planejamento
administrativo, à distribuição e negociações do produto... É justo dizer-se que as
concepções de “filme brasileiro” de Cavalcanti destoavam com o estágio cultural
do Brasil. Está certo dizer que não tínhamos quadros profissionais: mas o filme
brasileiro já estava definido desde 1920...453
Glauber prossegue em seu texto atribuindo a Cavalcanti culpas que não
devem ser imputadas ao seu legado, como o fato da Vera Cruz ter incorporado em
450
ROCHA, Glauber. Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, p. 71.
Ibidem.
452
Ibidem p.73.
453
Ibidem, p. 74 e 75.
451
207
seus quadros uma grande leva de diretores italianos454. É notório que “os
italianos” eram uma exigência de Franco Zampari, e que acabaram por se revelar
os grandes antagonistas de Cavalcanti dentro da Vera Cruz, como fica claro em
suas memórias. Contraditoriamente o próprio Glauber refaz seu raciocínio e
coloca em seguida os italianos na “conta” de Zampari:
Eram boas, e melhores, as intenções de Cavalcanti; lutava contra a mediocridade,
tinha de enfrentar invejosos e caluniadores; é bem possível imaginar-se o seu
nível intelectual e técnico no dia-a-dia com gente da qualidade de Abílio Pereira
de Almeida, Tom Payne; ou ele, sendo brasileiro, insistir por maior compreensão
dos diretores italianos para com o Brasil, se ele mesmo, Cavalcanti, embora
amasse tanto o país; ainda não o entendia bem. E havia Franco Zampari, italiano
que protegia italianos...A burrice e a pretensão das cúpulas aabaram terminaram
por afastar Cavalcanti da vera Cruz...455
Além deste texto com algumas passagens redentoras, como a citada acima,
encontrei em minha pesquisa vestígios da aproximação tardia entre Cavalcanti e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Glauber. Uma delas, é a foto, descoberta e postada na web pelo filho de Sérgio
Caldieri, sobre a qual tive uma breve conversa virtual com Jards Macalé, um dos
personagens da mesma456.
457
Figura 65: João Ubaldo Ribeiro, Jards Macalé, Alberto Cavalcanti e Glauber Rocha.
Além do fato de serem os maiores exponenciais do cinema brasileiro no
cenário internacional, Glauber e Cavalcanti dividiam outra zona de convergência
profunda, o compromisso com o real e a visão do cinema como um instrumento
de reflexão sobre ele, pelo viés poético e experimental. Ambos tinham em sua
454
Ibidem, p.75.
Ibidem, p. 77.
456
Macalé assim me narrou via aplicativo de mensagens de uma rede social, quando o questionei
sobre o que conversavam: “Papo furado na casa do Glauber na Gomes Carneiro, Ipanema”...
457
Fonte da imagem: acervo digital de Sergio Caldieri – sem data.
455
208
trajetória uma permanente pulsão em direção à possibilidade de invenção sobre a
amálgama do real, e, cada um a sua maneira, sofreu os efeitos desta desafiadora
missão. Kracauer em O ornamento das massas, traduziu com profundidade o
doloroso processo do artista em imersão na realidade.
O peso, a rudeza e a impenetrabilidade da realidade revelam-se mais e mais
claramente àqueles que se aproximam dela partindo do ponto de vista da ideia.
Inicialmente esta aparece envolvida numa névoa e é fácil de se fisgar. Somente
quando se inicia a luta com ela é que se tornam visíveis suas crateras e tudo o que
meramente é, mas que, sobretudo, também é e por isso não se permite que seja
colocado de lado, emerge com horrível clareza... 458
O “ponto de vista da ideia”, de que fala Kracauer, é central na obra de
Glauber e de Cavalcanti”, a abordagem da realidade a partir de uma premissa
intelectual, seja pelo viés do arquétipo ou da representação simbólica, é uma
característica que está presente na obra de ambos em diferentes fases. E é esta
busca pela apreensão e sobretudo, pela representação do real, que faz a conexão
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
entre os pontos que aqui busco identificar, entre as cinematografias de Cavalcanti,
o Neorrealismo Italiano e (como um desdobramento do Neorrealismo), sobre o
Cinema Novo.
A produção de Cavalcanti pós Vera Cruz mantém a confluência estética e
social que irá ao encontro da representação do real, traçando rotas tangenciais
entre sua filmografia e os movimentos acima citados, sobretudo, em Canto do
Mar.
Julgo primordial fazer algumas considerações sobre a parcialidade deste
relato que aqui introduzo. A Vera Cruz ainda é um tema obscuro na biografia do
cinema brasileiro, embora citada em um arsenal de textos, artigos e livros, até a
década de 1980 o que havia de publicações sobre o tema era basicamente a
menção que Alex Viany faz à companhia em seu Introdução do Cinema
Brasileiro, de 1958, e o artigo na Revisão Crítica do Cinema Brasileiro (1963) de
Glauber, aqui citada.
Este panorama mudaria em 1981, quando a professora e pesquisadora
Maria Rita Galvão realizou em sua pesquisa de doutorado uma imersão na história
da Vera Cruz, ouvindo diferentes pontos de vista sobre a companhia, inclusive o
de Cavalcanti. Construindo assim uma obra que ampliou a visão geral sobre o
458
CAVALCANTI, Alberto Notas aos jovens documentaristas In PELLIZZARI, Lorenzo e
VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti p. 211.
209
insucesso daquela empreitada, ultrapassando o senso comum e as opiniões
partidárias, que prevaleciam até então, quando o assunto era a produtora de São
Bernardo do Campo. O resultado desta pesquisa é uma tese de doutorado e o livro
Burguesia e Cinema – O Caso Vera Cruz (1981).
Como as memórias de Cavalcanti não foram consideradas nesta
publicação, já que a publicação parcial das mesmas aconteceria quatro anos
depois, no livro de Pellizzari e Valentinetti, preservarei a estrutura memorial
como condutora e farei um contraponto no sub-capítulo que julgo ser central para
que se entenda a fissura que se criou entre Cavalcanti e o Novo Cinema
Brasileiro: a criação do Instituto Nacional de Cinema, o INC, sobre o qual o
cineasta Nelson Pereira dos Santos presta um depoimento revelador à Galvão.
4.1.
Vera Cruz – Memorial de uma breve inquisição
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
No fundo, passei a minha vida a fugir das desgraças,quando deveria afrontá-las sem
medo. Sem dúvida, não tenho coragem para lutar sozinho, como é necessário no
cinema459
Alberto Cavalcanti
460
Figura 66: Página das memórias de Cavalcanti que introduz o capítulo dedicado à Vera Cruz.
459
CAVALCANTI Alberto apud BEILYE, Claude; LEMARCHAND, Didier; MICHAUD,
Christian. Entrevista com Alberto Cavalcanti Ecran 30 de Novembro de 1974 Paris In
VALENTINETTI, Claudio e PELLIZZARI, Lorenzo Alberto Cavalcanti, p. 303.
460
BORBA FILHO, Hermilo. Memórias do acervo Sergio Caldieri páginas não numeradas.
210
Na última página dos originais das memórias nos deparamos com outra a
frase de Shakespeare: “O resto é silêncio”, escrito em inglês (the rest is silence),
substituindo uma brasileiríssima expressão, também escrita à mão, que mesmo
riscada, se permite ser lida: “o resto a Deus pertence”.
Borba Filho conta como as memórias de Cavalcanti foram escritas a partir
de conversas “na casa de Olinda, que domina o mar; dos intervalos de filmagens
no Cupim; dos aperitivos no Bar do Gordo; dos gins no Savoy. Pouco a pouco,
toda a sua vida, de homem de cinema, sobretudo, e de pessoa humana mais
particular, formou um livro...”461.
As impressões sobre o Brasil que encontrou aqui após quarenta anos na
Europa, segundo as memórias de Cavalcanti, falam de um país estrangeiro, onde
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
os laços que criara em suas lembranças não correspondiam à realidade:
Quando Cavalcanti chegou ao Brasil a sua impressão foi a de que estava em um
país completamente novo...nada o ligava mais com a terra...Imediatamente
compreendeu que poderia escolher uma solução entre duas que estavam à sua
frente: ou lutar muito, ou capitular, escolheu a primeira462.
A decisão de Cavalcanti de enfrentar com franqueza os desafios e
obstáculos que surgiram na Vera Cruz, que ele descreve com detalhes no texto “O
projeto Vera Cruz”, publicado em 1955463, foi fatal para que a sua temporada no
Brasil se desenrolasse para um destino tortuoso. Coerentemente, Cavalcanti
preferiu o profissionalismo que aprendeu sobretudo com o cinema inglês, à
informalidade quase amadora oferecida pela engrenagem permissiva da
companhia paulista.
Em suas memórias, no capítulo dedicado à Vera Cruz, o cineasta não
aprofunda em detalhes ou em subjetividades, prefere enumerar objetivamente o
461
Ibidem, p. 154. É importante lembrar que tive acesso a um arquivo das memórias de Cavalcanti
escritas pelo mesmo, em primeira pessoa, em inglês. E que os textos que comparei entre este texto
em Inglês e os assinados por Borba Filho, são traduções literais para o português, só alterando a
pessoa do narrador.
462
BORBA FILHO, Hermilo Uma Vida In VALENTINETTI, Claudio PELLIZZARI, Lorenzo
Alberto Cavalcanti, p. 155.
463
Segundo Informações do livro de Valentinetti e Pellizzari o.c pg. 158, o artigo Projeto Vera
Cruz teria sido publicado pela primeira vez em 1955, pelo jornal Diário da Noite, de 25 a 28 de
abril de 1955. Ele consta também do livro de Maria Rita Galvão, Burguesia e cinema, o caso Vera
Cruz (Rio de Janeiro, 1981).
211
seu percurso e o que lhe foi proposto. Segundo Cavalcanti, foi ele mesmo quem
sugeriu que assumisse o posto de produtor, no lugar do convite para ser o diretor:
... recebeu da Vera Cruz que lhe oferecia um contrato por quatro anos, devendo
Cavalcanti sistematizar todo o planejamento da produção.O convite, aliás, foi no
sentido do brasileiro trabalhar como diretor, mas Cavalcanti argumentou
provando que aqui não havia produtores, e sugeriu a modificação...no intuito de
criar diretores brasileiros, como em (sic) Ealing havia criado diretores ingleses.
Outro importante ponto pelo qual se bateria era atrair para os estúdios de São
Paulo os intelectuais afastados inteiramente do cinema brasileiro464.
Assinado o contrato, Cavalcanti partiu para a Europa para se desfazer de
sua casa em Londres e fechar a casa de Capri, neste trecho de sua memória, pela
primeira vez, o cineasta deixa revelar um tom melancólico em uma despedida,
entre tantas outras que marcaram a sua vida, desde a primeira partirda aos 15 anos
do Brasil: “As despedidas na Europa foram muito comoventes para ele e sentiu
perfeitamente que não tinha direito de possuir ilusões, pois quatro anos de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
ausência equivaliam na carreira de um diretor a um corte de amarras
definitivo”465.
Entre as imposições contratuais da Vera Cruz estava a melhoria do roteiro
de Caiçara que Cavalcanti “consertou da melhor maneira possível, deixando-o em
um tratamento mais ou menos racional”466, o diretor do filme seria indicado pela
companhia. O segundo projeto proposto pela Vera Cruz foi uma cinebiografia de
Noel Rosa que receberia o nome de O Escravo da Noite, também com diretor
imposto pelos financiadores. Mas, “Antes de terminarem Caiçara, porém, o
diretor foi despedido pela companhia, sem que Cavalcanti fosse consultado, por
causa de um insucesso teatral, e a produção ficou desorganizada”467.
464
BORBA FILHO, Hermilo. Acervo Sergio Caldieri página não numerada.
ibidem.
466
Ibidem.
467
Ibidem.
465
212
468
Figura 67: Fotograma de Caiçara (1950) que acabou por ser dirigido por Adolfo Celi.
Lendo os relatos de Cavalcanti sobre a Vera Cruz, fica claro que a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
companhia tinha uma ligação pouco ortodoxa com a companhia de teatro de
Franco Zampari, o TBC – Teatro Brasileiro de Comédia, na maior parte das
desavenças entre Zampari e Cavalcanti, o que transparece é que o italiano
submetia os objetivos da Vera Cruz às necessidades do TBC, prejudicando a meta
de se erguer uma indústria eficiente em São Bernardo do Campo.
Cavalcanti narra em suas memórias uma série de arbitrariedades nas
decisões de Zampari dentro da companhia, demissões de diretores e técnicos sem
conversar com a equipe, o abandono de projetos em detrimento de prioridades
pessoais e apostas em filmes fadados ao fracasso, erguidos sobre argumentos
frágeis e sob a direção de cineastas inexperientes ou incapazes. Este foi o caso de
Terra é sempre terra (Tom Payne, 1951) e Ângela (Abílio Pereira de Almeida e
Tom Payne – 1951), que foi realizado sem a tutela de Cavalcanti, demitido
durante a pré-produção.
No texto O Projeto Vera Cruz469, Cavalcanti é mais detalhista e incisivo,
enfatizando as graves acusações que faz ao grupo de pessoas com quem conviveu
em sua dramática e curta temporada na companhia, de um contrato como
produtor-geral iniciado em 01 de janeiro de 1950.
468
Fonte da imagem: http://cinemaseculoxx.blogspot.com.br/2012/03/caicara-1950.html.
CAVALCANTI, Alberto Projeto Vera Cruz In VALENTINETTI, Claudio PELLIZZARI,
Lorenzo Alberto Cavalcanti, p. 159.
469
213
O contrato, segundo Cavalcanti, não estabelecia o número de filmes a
serem produzidos. Antes da vigência do mesmo, o cineasta foi a Europa resolver
suas pendências, já que deixara a Inglaterra apenas para uma conferencia no
MASP, e em uma reviravolta, decidira se mudar para o Brasil. Este retorno se deu
em 9 de novembro de 1949.
Antes de viajar, deixei instruções precisas sobre três pontos capitais: primeiro, as
modificações a fazer no argumento do primeiro filme, Caiçara, segundo, o estudo
de um contrato de distribuição com uma das duas firmas americanas com quem
tinha ligações decorrentes do meu trabalho na Europa: a Columbia e a Universal,
sendo que aconselhava a primeira como a mais vantajosa, por ter ela proposto um
adiantamento financeiro sobre a renda de distribuição; e terceiro, instruções para
que após a consulta ao técnico de som que eu deveria contratar na Europa,
fossem iniciadas as negociações na América do Norte para a compra do aparelho
sonoro. Dos dois sistemas mais conhecidos eu preferia o Western Eletric, porém
não queria tomar nenhuma decisão antes de ouvir o técnico que iria trabalhar
com o aparelho470.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Ainda na Inglaterra, Cavalcanti conta que telegrafou para o Brasil dizendo
que havia fechado contrato com o técnico de som dinamarquês Eric Rassmussem,
que aprovara a escolha do equipamento da Western, mas recebeu de Zampari a
notícia de que este havia decidido comprar no Rio de Janeiro um aparelho de
segunda mão da norte-americana RCA.
Quando voltou, em 04 de janeiro de 1950, Cavalcanti narra que começou a
perceber que sua escolha lhe seria dolorosa, “o senhor Celi não tinha trabalhado
na estória de Caiçara... Em vez disso começara a dirigir no Teatro Brasileiro de
Comédia a peça de Sartre: Entre quatro paredes471”, atrasando em dois meses as
filmagens. Este foi apenas um dos episódios que se sucederam na relação entre
Cavalcanti e “os italianos” da Vera Cruz.
Se na prática a Vera Cruz teve um histórico desastroso, na teoria as
pretensões eram nobres. No artigo A questão realista no cinema brasileiro:
aportes neo-realistas, a pesquisadora Mariarosaria Fabris aponta as possíveis
influências do cinema neorrealista italiano sobre a produção brasileira entre as
décadas de 1940 e 1960. Ao considerar o papel da Vera Cruz na tentativa de se
dialogar com a realidade social brasileira, Fabris diz que:
470
471
Ibidem, p.161.
Ibidem.
214
A Vera Cruz nascia para implantar no Brasil um cinema de qualidade, como o
produzido em Hollywood, embora seus idealizadores apreciassem também as
realizações européias, identificáveis com o cinema culto, dentre as quais se
incluíam os filmes italianos do pós-guerra Nessas produções, em geral agrupadas
sob a etiqueta do neo-realismo, a burguesia paulista admirava sobretudo o
humanismo que as impregnava, o qual, quando passou a ser entendido como
denúncia social, deixou de entusiasmar472.
No mesmo artigo, Fabris comenta sobre a recepção que a crítica da época,
influenciada pelas premissas neorrealistas, dedicaria à Caiçara. Embora Celi
tenha em seu discurso na pré-estreia declarado que o filme tinha um compromisso
primordial com a cultura por ele retratada: “Se o público que nos assistir
reconhecer em Caiçara as características de sua terra, poderemos então orgulharnos de ter encontrado uma linguagem cinematográfica, realmente brasileira”473 .
Não foi assim que os novos pensadores e futuros cineastas de sua época, como
Nelson Pereira dos Santos, veriam aquela tentativa frágil de representar a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
realidade regional brasileira em sua essência:
Em defesa de um cinema autenticamente nacional e popular, esses jovens críticos
faziam sérias restrições às produções da Vera Cruz, restrições que diziam respeito
antes aos temas abordados, ou ao modo como eram focalizados, pois reconheciam
a grande melhora da qualidade técnica que os filmes brasileiros passaram a ter
graças à companhia paulista. Ao resenhar Caiçara para a Fundamentos, Nelson
Pereira dos Santos falava de “fingimento” neo-realista(sic)474
Em sua resenha de Ângela (1955), de Tom Payne e Abílio Pereira de
Almeida, produção que marcou o rompimento de Cavalcanti com a Vera Cruz,
Nelson assumiria um discuro condenando a visão burguesa do opressor social que
o filme oferece: “Não podemos aceitar como brasileiros os homens da classe que
vivem num alto nível material à custa da exploração da esmagadora maioria da
população do país”475.
472
FABRIS, Mariarosaria. A questão realista no cinema brasileiro: aportes neorrealistas. Alceu,
v. 8, n. 15, 2007. p. 83. (versão web)
473
Ibidem, p. 85.
474
Ibidem, p. 84.
475
Ibidem, p. 85.
215
476
Figura 68: A atriz Eliane Lage em fotograma de Ângela.
Anos mais tarde, em seu filme Cinema de Lágrimas (1995), Nelson
Pereira dos Santos iria reavaliar o papel do melodrama produzido no país, entre as
décadas de 1930 e 1950, na gênese da criação dos novos cinemas na América
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Latina.
Em consonância, Fabris cita a proximidade entre O Cangaceiro, de Lima
Barreto e Mandacaru Vermelho (1961) de Nelson. Segundo ela, “o diretor pagava
o seu tributo à Vera Cruz. De fato é inegável a dívida de Mandacaru Vermelho,
com O Cangaceiro”477.
Embora tenha seu nome ligado de forma indelével à Vera Cruz, pude
concluir que Cavalcanti tinha pouco poder de decisão dentro da companhia. A
ingerência sobre a sua equipe, as relações baseadas em informalidades e falta de
uma estrutura hierárquica minimamente funcional contribuíram para que o
cineasta tivesse pouco ou nenhum controle sobre os filmes realizados sob a sua
tutela na Vera Cruz: “Não me sendo dada nenhuma autoridade sobre os diretores
escolhidos pela companhia, percebi que a minha tarefa seria espinhosa478”.
Os problemas não se limitavam à produção, sobre o contrato de
distribuição, que seria vital para o lançamento comercial dos filmes, mais uma vez
- segundo suas memórias- Cavalcanti teve a sua opinião ignorada, a Vera Cruz
476
Fonte:http://cineugenio.blogspot.com.br/2015/09/angela-e-vera-cruz-entram-sem-sorte-no.html.
FABRIS, Mariarosaria. A questão realista no cinema brasileiro: aportes neorrealistas. Alceu,
v. 8, n. 15, 2007. p. 86.
478
CAVALCANTI, Alberto Projeto Vera Cruz In VALENTINETTI, Claudio PELLIZZARI,
Lorenzo Alberto Cavalcanti, p.161.
477
216
arbitrariamente fechou uma parceria com a Universal, sem nenhuma vantagem
para a companhia paulista, mesmo advertida por Cavalcanti
As falhas estruturais na Vera Cruz só se agravavam, as relações pessoais
contaminaram profundamente as vias de trabalho na companhia. A convivência
com os italianos, segundo Cavalcanti, era dolorosa: “vi logo que o senhor Celi,
além de não conhecer a técnica cinematográfica, o que eu sabia, era um diretor
lento e hesitante no trato com os atores, e possuía um sentido um tanto grosseiro
na direção das cenas onde havia uma certa sensualidade”.
Apesar dos desafios pessoais, do não cumprimento de termos centrais do
contrato, como a prometida residência que nunca fora entregue a Cavalcanti e das
jornadas extenuantes de trabalho, o cineasta se manteve firme em sua missão.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Ainda sobre a equipe, as insatisfações eram permanentes:
Um dos elementos menos importantes da minha equipe, o argentino Tom Payne,
segundo assistente de direção na Inglaterra, e promovido aqui a primeiro, cheio
de ambições, tinha conseguido que Srta Eliane Lage, estrela do filme o aceitasse
como noiva, e que o Sr Abilio, outro ator do filme lhe confiasse suas
peças...Durante a filmagem o Sr Payne veio provar que não tinha nenhuma
qualidade como diretor... O Sr Franco Zampari nesse período tornou-se
insuportável, e cenas de estrelismo à italiana se sucediam...Estas cenas
alternavam-se com demonstrações da mais derramada cordialidade com a visita
dos grã-finos479.
Segundo Cavalcanti, as decisões dos técnicos eram as mais amadoras
possíveis, sob a aprovação dos Zampari, foi instalado um teatro sonoro sem
qualquer tipo de planeamento técnico, sem plantas ou gráficos:
Este mesmo senhor Randall decidiu que o teatro à prova de som para a
sincronização... fosse abandonado, e que os aparelhos fossem montados em um
barracão, cujo isolamento era tão precário, que mesmo o canto dos pássaros
impedia a gravação, causando um prejuízo de tempo, película e dinheiro480.
Os problemas se seguiam, inclusive com transferência de dinheiro da Vera
Cruz para o TBC, “Já eu era sabedor que... a soma de 300 mil cruzeiros tinha sido
transferida da Vera Cruz para o Teatro Brasileiro de Comédia. Declarei então ao
479
480
Ibidem, p.163,164 e 165.
Ibidem, p. 164.
217
Sr Zampari que desejava que no futuro não houvesse ligação alguma entre a Vera
Cruz e o Teatro Brasileiro de Comédia”.481
Apesar de o capital da Vera Cruz, segundo Cavalcanti, ter se multiplicado,
tendo o seu nome como aval de qualidade (de 7 para 25 milhões)482, a relação se
tornou insustentável. “A consciência da minha responsabilidade era tão grande e o
meu trabalho tão sobrecarregado, que eu não percebi que os elementos italianos da
companhia, tentavam fora do estúdio criar um ambiente de animosidade contra
mim”483
No auge da ruptura com os Zampari, foi imposta a Cavalcanti a presença
de Fernando de Barros, “ex-maquilador português dos produtos Coty, cuja
atuação no cinema carioca tinha sido desastrosa”484 como produtor, o que irritou o
cineasta, ferindo o seu contrato de produtor-geral. Cavalcanti diz no texto ter
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
cedido pela intervenção de Ciccillo Matarazzo485.
Quando não havia mais possibilidade de conciliação, Zampari propôs a
Cavalcanti que ele abandonasse a casa em São Bernardo, se transferisse para São
Paulo, e passasse os três anos restantes do seu contrato recebendo sem trabalhar, o
cineasta não aceitou. Não houve mais negociações, e Cavalcanti foi demitido.
A multa foi reduzida por advogados muito hábeis, por intrigas e por ameaças, que
chegaram ao cúmulo de difamar a minha capacidade profissional, Ferido
profissionalmente, estonteado por métodos tão brutais, decidi protestar e trazer a
público os fatos que aqui estou relatando486.
Foi feito um acordo de cavaleiros entre ambas as partes, de que não se
falaria mais sobre o assunto, mas a Vera Cruz não cumpriu a sua parte, Cavalcanti
narra que viu a sua vida ser devassada.
Segundo conta: Franco Zampari procurou Mário Audrá, da Companhia
Cinematográfica Maristela, para que este negasse trabalho ao cineasta. O
aspirante a publicitário Gustavo Nonnenberg, demitido da Vera Cruz por
481
Ibidem, p. 166.
Ibidem.
483
Ibidem, p. 167.
484
Ibidem, p. 168.
485
Ibidem.
486
Ibidem, p. 169.
482
218
Cavalcanti, recebeu salário e um apartamento no Copacabana Palace com a
missão de difamar o cineasta no Rio de Janeiro. Outro funcionário da companhia,
Werner Lowenberg, se gabava por ter jogado no lixo toda a correspondência
europeia endereçada a Cavalcanti. A atriz Cacilda Becker chegou a difamar
Cavalcanti em cena aberta no ensaio-geral de uma peça, e Carlos Ortiz e Alex
Viany fizeram reuniões com o objetivo de insultar Cavalcanti e difamar a criação
do Instituto Nacional de Cinema, projeto encomendado ao cineasta por Getúlio
Vargas. E por fim, Cavalcanti foi taxado de comunista, o que era então uma
acusação grave. 487
Cavalcanti reagiria publicando um artigo na Europa, na opinião dele um
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
território neutro, onde ele tinha prestígio considerável:
Em carta aberta à Revista Sigh and Sound (1952), esbocei em linhas gerais a
minha situação no Brasil. Este documento está como os outros referidos acima à
disposição dos interessados. O meu trabalho insano na Vera Cruz em 1950, a
minha contribuição e da minha equipe em 1951 e os meus projetos são a maior
prova da minha confiança no futuro do cinema nacional488.
4.2.
Vera Cruz e Cinema Novo – A batalha e o legado
O crítico de cinema Ely Azeredo, escreveu um texto contundente para o
primeiro número da Revista Filme e Cultura, intitulado O Nôvo (sic) Cinema
Brasileiro489, em que o jornalista avalia o Cinema Novo sob o ponto de vista de
seus méritos e equívocos. Na opinião de Azeredo, existiu a presença de um legado
da Vera Cruz na constituição do Cinema Novo brasileiro :
Inúmeros fatores alteraram a imagem pública da entidade Cinema Brasileiro...a
mística do Cinema Nôvo(sic) complexa, promocional e polêmica...com a
reinvidicação do estatus de cinema de autor...sob inspiração da Nouvelle Vague e
do Neo-Realismo Italiano...;a lenta e inexorável elevação do nível técnico dos
filmes, consequência da maturação dos elementos que se beneficiaram do
aprendizado
junto
às
equipes
cosmopolitas
da
fase
Vera
Cruz/Maristela/Multifilmes... 490
487
Ibidem, p. 170, 171 e 173.
ibidem.
489
Segundo o site do CTAV – Centro Técnico Audiovisual: http://ctav.gov.br/category/revistafilme-cultura/, a Revista Filme e Cultura circulou entre os anos 1966 e 1988, supõe-se então que a
data desta publicação aqui citada seja 1966.
490
AZEREDO, Ely. Revista Filme e Cultura, n. 1, 1966. p.6.
488
219
Em seguida no texto, sob a retranca “Sementes” Ely se aprofunda na
filiação do Cinema Novo ao Neorrealismo, enumerando citações e carcterísticas
que comprovam esta hereditariedade. O texto também vê no Cinema Novo a
tentativa de ruptura com o cinema de estúdio, representado pela Vera Cruz.
Da reação às sujeições empresariais do “cinema de grandes estúdios”,
exemplificado pela Vera Cruz, surgiu em 1955 Rio 40 graus, de Nelson Pereira
dos Santos...já no primeiro contato mostrava que o cineasta aprendera por alto a
lição neorrealista de Césare Zavattini e hoje só resiste à analise sob o prisma da
nossa pequena história do cinema491.
O autor continua a sua análise a respeito do Cinema Novo realçando os
elementos de sua herança neorrealista, citando o teórico Cezare Zavattini.
Azeredo se baseia na: substituição do “cinema veículo” pelo “cinema expressão”
e na representação do real “como ele é”, sem recorrer a fórmulas que visem
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
despertar a emoção através de metáforas.
Roma Cidade Aberta (1945) e Paisá (1946) – exerceram uma influência decisiva,
sem paralelo possível, para a eclosão do que em 1962, seria rotulado “Cinema
Nôvo... A abertura para a crítica social era não só corajosa como também
vitalmente necessária a um cinema que vinha enclausurando o drama em ficções
melodramáticas492.
Ely Azeredo cita filmes e cineastas da primeira fase do Cinema Novo, para
avaliar em seu conteúdo as “sementes” teóricas lançadas por Zavattini, que diria
que: “A câmera, em verdade, tem tudo à sua frente; vê as coisas e não o conceitos
das coisas”493.
Leituras posteriores revelariam que o mito da representação do real sem a
intervenção do cineasta não sobreviviria perpetuamente. O “tratamento criativo da
realidade”, proposto por Grierson, resistiria às “moscas na sopa” do cinema
verdade e às “moscas na parede” do cinema direto494. Em um artigo sobre o
surgimento da tecnologia digital, o autor Brian Winston faz uma boa comparação
entre o documentário que propõe uma representação do real sem intervenções,
herdeira do cinema direto, e o cinema da escola de Grierson, ele diz que:
491
Ibidem, p.7.
AZEREDO, Ely. Revista Filme e Cultura n. 1, p. 8.
493
ibidem.
494
WINSTON, Brian In MOURÃO, Maria Dora e LABAKI, Amir (orgs) O cinema do real . São
Paulo SP: Cosac Naif, 2005.
492
220
Ao que parece não temos tempo agora para nos determos na definição original de
John Grierson de que – o documentário é o tratamento criativo da realidade – e
acho que isso é injusto. Acho injusto porque os antigos documentários, o cinema
pré-direto, contêm as sementes de todas as abordagens e métodos do
documentário contemporâneo, especialmente a exploração da vitimização social
como o principal tema para o documentário engajado495.
O engajamento do Cinema Novo, na opinião de Azeredo, teria sido a sua
maior conquista e ao mesmo tempo o seu maior erro. O crítico avalia as razões
pelas quais o Cinema Novo teria falhado em sua missão comercial, de oferecer
“biscoito fino para as massas”.
Azeredo fala também da Vera Cruz como um empreendimento lançado
fora do momento oportuno, “Lançado um grande número de sementes positivas, a
colheita desejada não poderia falhar – a não ser que a hora histórica não fosse
propícia, quando não o era na segunda metade da década de cinquenta”496. O
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
insucesso do Cinema Novo em sua comunicação com o público, segundo Azeredo
advém de motivos claros:
a)Insistem na tecla da incompatibilidade ou penosa existência ou penosa coexistência do chamado cinema de autor, independente e socialmente responsável,
com os requisitos da estrutura industrial...
b) A fobia frente à colaboração estrangeira...(Essa tendência chega a negar o
valor da colaboração multinacional no quadro europeu).
c) O medo do cinema de entretenimento, quando a experiência de todos os
centros de produção...indica que nenhuma indústria cinematográfica sobrevive
exclusivamente numa dieta de filmes amargos, sociais ou confessionais
d) O tropismo pelo pensamento monolítico,...pela insistência e pela colocação
monocórdia do tema do misticismo, responsável por alguns dos mais lamentáveis
insucessos de bilheteria.
Em entrevista à revista francesa Ecran, em 30 de novembro de 1974,
Cavalcanti é questionado sobre a sua temporada no Brasil, quando responde
dizendo que “O Brasil, para ser franco, foi um desastre para mim”497, ele avalia
brevemente a sua passagem pela Vera Cruz, e em seguida lança uma afirmação
perturbadora: “Creio que mesmo assim resta alguma coisa da minha passagem por
lá. Por exemplo, desde que deixei o Brasil, começaram a fazer filmes brasileiros,
495
Ibidem, p. 16.
AZEREDO, Ely. Revista Filme e Cultura, 1 p. 9.
497
CAVALCANTI Alberto apud BEYLE Claude, DIDIER Lemarchad, MICHAUD Christian
Entrevista com Alberto Cavalcanti In VALENTINETTI, Claudio e PELLIZZARI, Lorenzo
Alberto Cavalcanti, p. 303.
496
221
assim como eu os concebia. Engraçado né?”498 Estamos em 1974, fica claro que
Cavalcanti faz uma provocação ao Cinema Novo.
Em 2012, Eduardo Escorel, um dos realizadores e teóricos desta escola,
publicou um artigo escrito para o site da Revista Piauí – na ocasião em que o
Festival do Rio promoveu uma mostra especial em homenagem a Cavalcanti em que analisa O Canto do Mar, discorda da afirmação de Cavalcanti, mas, ao
mesmo tempo, consegue perceber zonas de convergências entre o olhar de
Cavalcanti e os filmes da primeira fase do Cinema Novo, marcados pelo
regionalismo. Ele chama atenção também para o DNA da escola britânica presente
no prólogo de O Canto do mar. Escorel exerce a sua verve afiada, engrandecendo
a ruptura proposta pelas obras de Nelson e Glauber, mas finaliza, garantindo a
necessidade do contraponto Cavalcanti para que elas nascessem:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Cavalcanti precursor do Cinema novo? Por essa Glauber não esperava - O
“preâmbulo antológico” de , assim chamado por Almeida Salles, parece um
documentário da escola britânica. O mesmo mapa, a mesma narração. Planos
fortes como a terra rachada pela seca, a sepultura improvisada, o sertanejo que
abandona o casebre de taipa, o cachorro magro, acompanhados pela trilha
orquestral de Guerra Peixe procuram dar grandiosidade ao pau-de-arara a
caminho do litoral, onde os retirantes embarcarão nos itas rumo ao Sul. Nesse
preâmbulo, que poderia ser destacado do resto do filme, estão reunidas imagens
emblemáticas que viriam a ser retomadas por filmes como Vidas secas e Deus e o
diabo na terra do sol, entre tantos outros. Daí, talvez, a paternidade reivindicada
por Cavalcanti. O que parece ter faltado a ele é a percepção da distância que
separa seus filmes dos de Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha. Se os
filmes precursores do Cinema novo da década de 1950, como os do próprio
Nelson e Roberto Santos, ainda guardam certos elos com na precariedade da
encenação de algumas sequências, na interpretação de alguns atores, no estilo da
fotografia etc. com Vidas secas há uma primeira ruptura, seguida de outra com
Deus e o diabo na terra do sol. Nelson transpôs Graciliano Ramos com fidelidade
visual ao despojamento do estilo literário – sem pomposidade e artifícios, em tom
menor. E sem música. Começava um novo tempo.Glauber, no extremo oposto,
apoiado na grandiloquência das Bachianas e na estilização do cangaço, conseguiu
a proeza de ser retórico e criar algo nunca antes visto no cinema brasileiro. Sem
deixar, porém, de transfigurar a realidade, como Cavalcanti, segundo o
comentário de Almeida Salles.Vidas Secas e Deus e o Diabo são a negação
dialética de499 . Mas para poderem negar foi preciso que o filme de Cavalcanti
tivesse existido500.
498
Ibidem.
Na penúltima linha do texto o autor não completou a frase, que suponho se conclua com "a
negação dialética de O Canto do Mar".
500
http://piaui.folha.uol.com.br/o-canto-do-mar/.
499
222
Antes de passar a análise dos filmes que considero fundamentais na
trajetória de Cavalcanti pós-Vera Cruz, irei reservar um “parêntesis” para que se
entenda o que significou para o cineasta a sua imersão no projeto do INC Instituto Nacional de Cinema. E como este empreendimento deflagrou uma
batalha feroz entre Cavalcanti e membros do Cinema Novo e da intelectualidade
brasileira no começo da década de 1950.
4.3.
INC – Instituto Nacional de Cinema
No auge da crise entre Cavalcanti e Zampari na Vera Cruz, quando o
presidente Getúlio Vargas chegou a ser convocado para acalmar os ânimos 501, o
cineasta recebeu um convite do chefe do poder executivo no Brasil para que
fizesse um relatório da atual situação do cinema brasileiro, para que fosse criado
sobre bases sólidas o INC – Instituto Nacional do Cinema, primeiro órgão estatal
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
diretamente voltado para a gestão do audiovisual no país.
A iniciativa , surgida em meio a uma batalha no meio cinematográfico
registrada pela imprensa, em torno do nome Cavalcanti, também foi alvo para os
ataques e as considerações positivas sobre o Instituto. O relatório foi feito, e
posteriormente citado no livro Filme e Realidade.
Borba Filho aborda o episódio brevemente nas memórias de Cavalcanti,
dentro do capítulo dedicado à Vera Cruz:
Deixando a Vera Cruz submeteu-se a uma campanha feroz , decorrendo um ano
inteirinho sem que aparecesse trabalho. Até um dia em que o senhor Getúlio
Vargas mandou chamá-lo para pedir-lhe que não deixasse o Brasil, prometendolhe uma ajuda eficiente. Esperou até o dia em que o presidente da república
encarregou-o de trabalhar no levantamento da indústria cinematográfica, trabalho
que realizou por intermédio do Ministério da Educação e da Agência Nacional, no
prazo que havia fixado, mas achou-se no começo de 1952 em uma situação
financeira péssima, pela primeira vez na sua vida profissional502.
No texto que escreveu sobre a Vera Cruz, aqui citado e comentado,
Cavalcanti diz que reuniu uma equipe para a elaboração do relatório, segundo o
501
CAVALCANTI, Alberto Projeto Vera Cruz In VALENTINETTI, Claudio e PELLIZZARI
Lorenzo, Alberto Cavalcanti p. 169.
502
BORBA FILHO, Hermilo memórias Sergio Caldieri página não numerada.
223
cineasta, este trabalho foi realizado paralelamente à elaboração do livro Filme e
Realidade e à criação da Kino Filmes, produtora de O canto do mar:
Com estes elementos da minha antiga equipe e com outros reunidos no Rio e em
São Paulo, formei um novo grupo e com a colaboração dele , fiz um levantamento
das condições da insdustria e do cinema oficial no Brasil, que constituiu o
relatório solicitado pelo Presidente da República. Escrevi também o livro Filme e
Realidade (...) lançado pela Livraria Martins Editora, e estruturei o lançamento da
Kino Filmes S.A (...)503.
O relatório é implacável sobre a situação do cinema brasileiro, parte dele,
que serviu de inspiração para a introdução de Filme e Realidade, foi reproduzida
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
por Glauber Rocha em sua Revisão Crítica do Cinema Brasileiro504.
Terminando o seu livro Filme e Realidade, Alberto Cavalcanti escreveu em
Dezembro505 de 1951: “...É agora, quando muitos acham coragem para denunciar
o estado lamentável da nossa indústria, que as considerações generalizadas aqui
apresentadas (no livro) podem ser úteis. Só colocada na sua verdadeira
perspectiva e concebida em bases sólidas poderá a nossa indústria
cinematográfica progredir. Tenho absoluta confiança nos nossos técnicos do
futuro. Já tendo trabalhado com essas duas elites que formaram a avant-garde e o
movimento do documentário britânico, desconfio dos falsos estetas e dos
pessimistas506.
Cavalcanti introduz
Filme e Realidade dizendo que “A falta de
planejamento é um mal, que infelizmente tem atrasado de muito a evolução do
nosso país... Talvez seja esta a razão principal porque filmes brasileiros do maior
êxito não chegaram a ser projetados em 50% dos nossos cinemas”. 507
O projeto do INC teve defensores ilustres, como Vinícius de Moraes, que
em seu livro O cinema dos meus olhos, dedicou o artigo, O homem do meu lado
esquerdo, a Cavalcanti, em que relata com afeto de delicadeza a admiração que
tinha pelo cineasta:
Eu conheço Alberto Cavalcanti desde que me conheço; de início através dos seus
filmes vistos em muitas instancias nos vários cineclubes em que fui sócio na
Europa e nos Estados Unidos, e depois graças à minha correspondência com
Marie Seton, a crítica inglesa biógrafa de Eisenstein, que chegou a me descrever
503
CAVALCANTI, Alberto Projeto Vera Cruz In VALENTINETTI, Claudio PELLIZZARI,
Lorenzo Alberto Cavalcanti, p.169.
504
ROCHA, Glauber Cavalcanti e a Vera Cruz In VALENTINETTI, Claudio PELLIZZARI,
Lorenzo Alberto Cavalcanti, p. 307.
505
Na realidade o texto foi publicado em Novembro de 1951, como consta na introdução do livro
Filme e Realidade na página 34.
506
ibidem
507
CAVALCANTI, Alberto. Filme e Realidade, p. 33.
224
com a maior minúcia, toda a tralha brasileira com que o diretor patrício mantinha
o Brasil vivo no interior do seu apartamento em Londres. De tal modo que,
quando fui vê-lo em São Paulo, em sua então casa no estúdio Vera Cruz (isso
antes da famosa ursada que lhe fez a companhia paulista) reconheci
imediatamente vários dos objetos contados por nossa amiga em comum...Os
homens como Cavalcanti, fundamentalmente espontâneos, e de fundo ingênuo,
são em geral capazes de passar para trás qualquer malandro em termos de
conhecimento intuitivo das situações. Cavalcanti viria prová-lo, pouco a pouco,
ao longo de uma das mais impressionantes , e desconhecidas batalhas que já me
foi dado ver. São alguns aspectos desta batalha – a batalha em torno do Instituto
Nacional de Cinema – que pretendo trazer ao público nestes próximos dias508.
No artigo Alberto Cavalcanti e o INC (II), Vinícius publica a segunda e
conclusiva parte do texto, discorrendo sobre a acusação de que Cavalcanti teria
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
sido perdulário na companhia, e que este teria sido o motivo de sua demissão:
Eu trarei brevemente dados do maior interesse que mostrarão à sociedade que
eficiente foi a ação de Cavalcanti dentro da Vera Cruz, nos termos do seu
contrato, em contraposição à atitude arbitrária e à incompetência administrativa
do sr. Franco Zapari, então vice-presidente da Companhia. É claro que ninguém
pode fazer um primeiro filme dentro de uma companhia em organização, sem
gastos iniciais mais elevados, sobretudo quando se quer fugir aos padrões
técnicos usuais da produção nacional. Cavalcanti - cuja probidade moral e
competência técnica podem se provar pelo fato de lhe ter o governo inglês
confiado, durante a guerra, a chefia da sua propaganda no setor do cinema, a ele,
um estrangeiro que nunca se quis naturalizar - é claro que não se poderia
conformar com a guerra surda e os métodos pouco claros que, depois de Caiçara
na rua, a Vera Cruz começou a usar como que para forçar-lhe a saída509.
Alvo da jovem “intelligentsia” brasileira, tendo sua vida pessoal devassada
e suas experiências amorosas reveladas sem pudor, Cavalcanti mais uma vez viu
o seu universo particular se misturar à sua jornada profissional. Na época da
batalha em torno do INC, que de certa forma se deu em continuidade à batalha em
torno da Vera Cruz, as preferências sexuais do cineasta foram recorrentemente
mencionadas publicamente por diferentes fontes, acompanhadas de adjetivos
como devasso, pederasta, entre outros do gênero. Mas o que de fato julgo
interessar são os desdobramentos que viriam a seguir, e quais eram os interesses
que moviam os ímpetos em torno do Instituto. Interesses que foram revelados com
508
MORAES Vinicius In CALIL, Carlos Augusto. (org) O cinema dos meus olhos São Paulo:
Companhia das Letras, 2001. página 267 e 268.
509
http://www.viniciusdemoraes.com.br/es/cine/alberto-cavalcanti-e-o-Inc-ii.
225
franqueza por Nelson Pereira dos Santos à Maria Rita Galvão, no livro aqui
mencionado510.
É interessante perceber que boa parte dos argumentos defendidos por
Nelson são demolidos quando lemos as memórias de Cavalcanti sobre o período,
como é o caso do contrato de distribuição com a Universal. Segundo Cavalcanti,
ele foi absolutamente contra a parceria da Vera Cruz com a distribuidora
americana, justamente por acreditar que ela não traria nenhum benefício para o
cinema brasileiro:
Uma nova contrariedade ocorreu quase imediatamente: o contrato de distribuição
era firmado com a Universal, contrato que, malgrado minhas sugestões, não
estipulava nem um mínimo de garantia sobre as quatro produções nele incluídas.
Agora, depois do lançamento depois dos lançamentos dos quatro primeiros
filmes, a Vera Cruz não renovou contrato com a Universal e, enfim, seguindo
embora tardiamente o meu conselho, assinou novo contrato com a Colúmbia511.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Ignorando a versão de Cavalcanti, Nelson Pereira dos Santos diz a Galvão
que: “Quando a Vera Cruz confiou a sua distribuição de filmes à Universal, não
houve mais dúvida para nós que Cavalcanti se vendera”.
Há no depoimento de Nelson Peirera dos Santos que se segue, uma
perturbadora contradição, o cinemanovista fala de um Cavalcanti que se alterna
entre o arquétipo de mestre e do traidor da pátria:
A presença de Cavalcanti em São Paulo, vindo para dar aulas de cinema, teve
grande repercussão. Depois de ter visto e discutido tantos filmes importantes,
depois de ter conhecido os neo-realistas(sic) e ter compreendido as possibilidades
de tal corrente, eis que chegavam Cavalcanti e suas aulas, que nos ensinariam a
fazer cinema. Na mesma época foi fundada a Vera Cruz. De repente existiam dois
polos de atração para os jovens que queriam fazer qualquer coisa sem saber o
quê, e que haviam decidido fazer cinema. Por um lado havia a descoberta do
cinema com os cineclubes e os seminários, Cavalcanti, o neorrealismo, as
discussões, e por outro a possibilidade financeira de filmar graças aos maiores
industriais de São Paulo, o próprio Matarazzo tendo ajudado a fundar uma
produtora512.
510
GALVÃO, Maria Rita. Burguesia e Cinema: o caso Vera Cruz. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1981.
511
CAVALCANTI, Alberto Projeto Vera Cruz In PELLIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI,
Claudio. Alberto Cavalcanti. p. 161 e162.
512
VALENTINETTI Claudio O período Brasileiro In VALENTINETTI, Claudio e PELLIZZARI,
Lorenzo Alberto Cavalcanti, p. 45.
226
Em seguida, o diretor cinemanovista rompe com o modelo de mestre de
cinema que atribui a Cavalcanti, curiosamente colocando-o no mesmo patamar do
Neorrealismo, para dizer que ele já não servia mais de referência, e que a
ocupação da Vera Cruz pela nova geração dependia do “desaparecimento” da
velha geração, da desocupação dos espaços que eles, o “novo cinema”, mereciam
se apropriar.
É claro que criticamos tudo aquilo. Ainda que Cavalcanti tenha sido o principal
instigador deste interesse nascente pelo cinema, para nós ele não passava de um
agente do imperialismo. Sonhávamos em entrar na Vera Cruz , mas criticávamos
tudo o que se fazia lá. Queríamos participar para mudar todo o sistema das
coisas.Não sabíamos muito bem como e não havíamos definido claramente a
alternativa. Imaginávamos alguma coisa próxima do neorrealismo, mas não
compreendíamos que esta estrutura de cinema era incompatível com a estrutura
da Vera Cruz513.
A batalha sobre o INC iria aflorar este clima de hostilidades, reduzindo as
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
possibilidades de que aquele projeto alcançasse as suas intenções embrionárias.
Nelson Pereira dos Santos completa o seu depoimento dizendo que:
Quando Cavalcanti deixou a Vera Cruz e se associou a Getúlio Vargas para criar
a Comissão Nacional de Cinema, que foi a base do primeiro INC (Instituto
Nacional de Cinema), nós nos opusemos ferozmente, sem nem pensar que
algumas das medidas preconizadas por Cavalcanti eram as mesmas pelas quais
teríamos lutado. Éramos hostis por princípio, porque não havia nada a esperar de
bom de um “colaborador”514.
O fato de se declarar “hostil por princípio” diz muito sobre a relação do
Cinema Novo com Cavalcanti. Esta hostilidade como ponto de partida fechou as
possibilidades de uma aproximação que poderia gerar uma parceria catalizadora
do cinema brasileiro.
Os maiores expoentes do cinema brasileiro no cenário internacional
morreram no intervalo de um ano, Glauber em 1981 e Cavalcanti em 1982.
Ambos amargurados, doentes, munidos de uma incompreensão latente por parte
da crítica brasileira, cada um a seu modo, em seu tempo e com a sua dose de
mágoa, os dois em terra estrangeira, apaixonados pelo Brasil e em um exílio que
seria definitivo.
513
Ibidem.
VALENTINETTI Claudio O período brasileiro In VALENTINETTI, Claudio e PELLIZZARI,
Lorenzo. Alberto Cavalcanti, p. 45.
514
227
Foi sob este clima que se completou a experiência brasileira de Cavalcanti,
que culminou com a sua passagem pela Maristela e posteriormente pela KinoFilmes, outra etapa conturbada, marcada por desavenças pessoais e dificuldades
de realização.
4.4.
Maristela – Kino-Filmes
A iniciativa de se aproximar da Cinematográfica Maristela, produtora
paulistana fundada por Mario Audrá Júnior, partira de Cavalcanti. Marinho, como
Audrá era conhecido, considerava Cavalcanti “uma das maiores sumidades
cinematográficas da época, e que havia praticamente recriado ou pelo menos
reorganizado a cinematografia britânica do pós-guerra”515.
Depois de viver por um tempo em Florença, Marinho buscou no modelo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
neorrealista a inspiração para a realização de uma produção intensa e com baixos
orçamentos. Ele constrói então no bairro de Jaçanã, na capital paulista, os estúdios
da sua companhia, que tinham uma área total de 18 mil metros quadrados516.
Além da aposta em Cavalcanti, a Maristela na época contratou outro nome
de peso no imaginário brasileiro, o ator Procópio Ferreira, que estrelaria na
companhia a comédia O comprador de fazendas (1951), de Alberto Pieralisi,
baseada em um conto de Monteiro Lobato.
A ideia de Maristela era unir Cavalcanti e Procópio em uma mesma
produção, para isso foi feito um alto investimento técnico na companhia, mesmo
com as finanças ainda vulneráveis com a instalação de toda a estrutura da
produtora. Restava procurar uma boa história. A escolha de Simão o Caolho
contrariou Marinho, que buscava um argumento de maior potencial comercial, e
para isso eram necessários “três fatores essenciais: uma história de ambiente rural
tipicamente brasileiro; música caracteristicamente nossa (um dos pontos frágeis
do filme de Cavalcanti) e... Procópio” 517.
515
CATANI, Afrânio Mendes. A sombra da outra. São Paulo: Editora Panorama, 2002. P.129.
http://www.maristelafilmes.com.br/.
517
CATANI, Afrânio Mendes. A sombra da outra, p. 129.
516
228
Mas não foi o que se cumpriu, segundo Alfredo Palácios, um dos
executivos da Maristela e o nome por trás da escolha do argumento de Simão o
Caolho, o contrato de Procópio Ferreira previa dois longas-metragens, mas o ator
exigiu mais dinheiro para filmar o segundo, como a companhia se recusou,
Procópio abandonou o projeto, argumentando que a sua agenda pessoal era
incompatível com o cronograma das filmagens. A Maristela recorreu então à
Atlântida, na tentativa de conseguir que Oscarito fosse cedido pela produtora
carioca, o que não aconteceu. Mesquitinha então assumiu o protagonismo da
comédia518. Audrá diria sobre o filme que:
O pai da ideia de Simão o Caolho foi Alfredo Palácios(...) O script de Oswaldo
Moles já estava pronto quando eu cheguei(...) Bom eu achei que deveria ser
interessante fazer o filme para não deixar Cavalcanti parado(...) Mas achei que
seria um filme até certo ponto preciosista, quase intelectual...519
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
As filmagens de Simão o Caolho se iniciaram em março de 1952,
Cavalcanti diria em suas memórias que “sem um vintém de mel coado, firmaria o
contrato que julgava pouco conveniente do ponto de vista estético e profissional –
o mais baixo da minha carreira520.
De fato, segundo a crítica da época, o salário pago a Cavalcanti pelo filme
correspondia a menos de um quinto do que se pagava a um diretor; “a uma glória
internacional como o sr. Alberto Cavalcanti, se tem a coragem de oferecer pelo
cenário e direção de uma fita apenas 25 pacotes! (e o pior ele aceita!)”, diria o
crítico Salvyano Cavalcanti na revista Manchete de 13 de setembro de 1952521.
Baseado na obra de Galeão Coutinho, Simão o Caolho é uma comédia de
costumes urbana, despretensioso e bem realizado, o filme conquistou prêmios,
elogios da crítica, inclusive de Glauber Rocha, em seu Revisão Crítica do Cinema
Brasileiro, e de Henri Langlois, o grande fundador da Cinemateca Francesa, que
considerou Simão o melhor filme realizado por Cavalcanti522.
518
ibidem.
Ibidem, p. 137.
520
BORBA FILHO, Hermilo Uma Vida In PELLIZZARI, Lorenzo VALENTINETTI, Claudio,
Alberto Cavalcanti p. 157.
521
CATANI, Afrânio Mendes. A sombra da outra. São Paulo: Editora Panorama, 2002.
522
VALENTINETTI Caludio O período brasileiro In PELLIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI,
Claudio Alberto Cavalcanti, p. 47.
519
229
Apesar do entusiasmo da crítica, Cavalcanti se mostrou cauteloso sobre o
filme, fazendo um discurso pragmático, calcado no retorno financeiro da comédia:
“Simão é um filme estritamente comercial, despretensioso, mas que teve a grande
felicidade de agradar o público. No Rio de Janeiro, 22 cinemas já o exibiram
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
durante semanas. O filme já está pago com as exibições na Capital Federal”523.
524
Figura 69: O núcleo familiar de Simão o Caolho.
A parceria estabelecida entre os atores Mesquitinha, como Simão, e
Raquel Martins, como Dona Marcolina, funcionou com eficácia. Com diálogos
ligeiros, situações cômicas e boa mise en scene, Simão conseguiu fugir do modelo
de comédias histriônicas, consagrado pelas chanchadas cariocas, e estabelecer
pela primeira vez no cinema brasileiro, um roteiro de comédia de costumes, que
em alguns momentos lembra o cinema italiano pós-neorrealismo, em especial o
Roma (1972) e Amarcord (1973) , de Federico Fellini.
Apesar de Audrá não ter gostado da música do filme, talvez ele quisesse
um musical, um dos pontos fortes da representação realista de um núcleo familiar
pequeno-burguês paulistano vem dos aspectos da musicalidade de Simão o
Caolho, realçando o espírito jocoso do povo brasileiro, que viria a ser
continuadamente representado por este viés pela intelectualidade.
Simão o Caolho foi exibido ao público pela primeira vez em 28 de
novembro de 1952, durante a I Mostra Retrospectiva do Cinema Brasileiro,
523
524
CATANI, Afranio Mendes. A sombra da outra, p.141.
Fonte: http://www.historiadocinemabrasileiro.com.br/simao-o-caolho/.
230
realizada pela Filmoteca do Museu de Arte Moderna de São Paulo e pelo Centro
de Estudos Cinematográficos, “num Cine Paramount lotado, cheio de amigos e
inimigos de Cavalcanti ávidos por deglutir a única película feita por ele no Brasil
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
até então” 525.
526
Figura 70: Um dos cartazes de divulgação do filme, com o nome de Cavalcanti em destaque
“dirige pela primeira vez no Brasil”.
Simão, o caolho cavou um abismo entre a crítica carioca e paulistana, a
acolhida na terra natal da Maristela se mostrou muito mais entusiasmada com o
filme, enquanto no Rio de Janeiro, nomes como Moniz Viana foram implacáveis
no julgamento do longa-metragem, o que despertou a reação de Cavalcanti: “...a
crítica intelectualizada foi de uma crueldade desnecessária, para com esta comédia
popular que não visava outra coisa, senão o divertimento do público, sem contudo
usar de piada grosseira nem de imitação subconsciente das gags americanas”527.
Apesar dos ataques que irritaram Cavalcanti, ironicamente veio da crítica
carioca um testemunho que talvez sintetize o que em Simão O Caolho, tanto
agradou nomes que lutavam por um cinema genuinamente brasileiro. Disse o
jornalista Alberto Dines na revista A Cena Muda:
Talvez a primeira (obra) do cinema brasileiro. Ela tem coesão interna, tem uma
relativa estruturação literária, tem personagens já delineados, obedecendo a uma
525
CATANI, Afranio Mendes. A sombra da outra, p. 142.
Fonte: http://www.historiasdecinema.com/2011/05/mesquitinha-no-cinema/.
527
GALVÃO, Maria Rita. Burguesia e cinema: o caso Vera Cruz. Rio de Janeiro:Civilização
Brasileira, 1977, p. 771.
526
231
orientação já psicológica, em oposição aos monstrengos e abortos nacionais que
nos têm sido dados a ver, desprovidos da mínima organização interior528.
Visão esta, compartilhada por Almeida Salles, que viu em Simão o caolho,
algo que lembra os cineastas René Clair e Preston Sturges, uma autenticidade só
alcançada através do olhar de quem se aproxima intimamente da realidade, longe
dos arroubos regionalistas e mais próximo de um minimalismo que torna mais
verossímel a representação do real. Salles diz que:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Nesse sentido a película é localíssima e esse seu acento peculiar deve ter sido uma
das causas da estranha incompreensão revelada pela crítica carioca. Quem viveu
em São Paulo (...) quem observou os interiores das casas da pequena burguesia
paulistana, quem registrou a fisionomia das ruas dos bairros humildes(...) é
conquistado pela fita, pela massa de observações, de ditos, de situações, tão
carregados de cor local, de pitoresco humano e de atmosfera típica...Temos
insistido no regionalismo temático, temos abordado o Brasil, quer o urbano, quer
o rural, nas suas características mais flagrantes e gerais. Mas há também este
“intimismo”implícito no décor das casas, na fisionomia das ruas, nos hábitos de
bairro, na fala e nos brinquedos dos moleques de rua, nas intrigas das comadres e
na desordem dos quintais529.
É difícil situar Simão o caolho quando se traça uma rota contínua da
trajetória fílmica de Cavalcanti, identificando hereditariedades e traços parentais
da vanguarda ou do documentarismo. Este é na minha opinião seu filme mais
“brasileiro”, com sua inteligência brejeira, sua delicada despretensão, seu humor
raro e verdadeiro.
A pulsão intelectual de Cavalcanti não parece ter se orgulhado muito dele,
em sua sofisticada ambição artística, mas o sucesso comercial de Simão o Caolho,
mesmo que não tenha salvado as finanças da Maristela, foi uma espécie de tapa
de luvas nos detratores do tempo da Vera Cruz, que tentaram apagar o sucesso do
diretor, pelos métodos mais vis.
Não há na comédia da Maristela os traços de experimentação da vanguarda
e nem da fase documental de Cavalcanti, nem a sofisticação clássica e a punjancia
narrativa impregnada de violência da ficção na Ealing , mas há um realismo
inerente, que como bem traduz Almeida Salles, só possível quando o realizador se
528
CATANI, Afrânio Mendes. A sombra da outra: um estudo sobre a Cinematográfica Maristela
e o cinema Industrial paulista dos anos 50. São Paulo:Panorama, 2002., p. 143.
529
SALLES, Almeida apud CATANI, Mendes Afranio, A sombra da outra: um estudo sobre a
Cinematográfica Maristela e o cinema Industrial paulista dos ano. p. 145.
232
propõe a se doar na transposição desta realidade para a tela, em suas sutilezas,
suas tipicidades, suas imperfeições poéticas. Acredito que seja neste território que
reside a beleza despretensiosa de Simão o Caolho.
Simão o Caolho foi bastante premiado, recebendo em 1952 os prêmios
Saci (Concedido pelo jornal O Estado de São Paulo) de melhor direção,
argumento, para Galeão Coutinho, e ator coadjuvante , para Claudio Barsoti. O
filme recebeu também o prêmio Governador do Estado de melhor direção,
argumento e adaptação cinematográfica. Também foi oferecido a Cavalcanti uma
premiação especial pela “contribuição na recuperação técnica e artística do
cinema brasileiro”530 .
Vinda de uma organização orçamentária deficitária, a Maristela não
resistiu e vendeu os seus estúdios à Kino-Filmes, um investimento que se mostrou
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
desastroso para Cavalcanti, que cedeu seu nome a um grupo de “empreendedores”
que fizeram da Kino uma negociata financeira, usando como aval o nome do
cineasta. A empreitada só realizaria duas produções, ambas com a assinatura de
Cavalcanti: O canto do Mar (1953-1954) e Mulher de Verdade (1954).
O convite para Cavalcanti para se associar à Kino-Filmes partiu da
jornalista Elsa Soares Ribeiro, sob promessas de solidez e sucesso:
A verdade é que se levantou dinheiro ...cerca de 12 milhões no Banco do Brasil,
além de outras somas provindas de investidores particulares, levados pela
confiança do nome de Cavalcanti, que posto na direção técnica e por isso
participante da administração da Kino-Filmes, longe estava de imaginar em que
quadrilha se metia531.
O capital da empresa foi multiplicado, como noticiou o jornal Folha da
Manhã de 24/07/1952, quando publicou uma convocação feita pelo diretor-geral
da Kino-Filmes, Alberto Cavalcanti, Jurandir Passos Noronha (DiretorComercial), Harry Hand (produtor inglês atraído pelo empreendimento) (DiretorIndustrial) Elsa Soares Ribeiro (Diretora-Tesoureira), convocando os acionistas
da empresa para deliberar em assembleia extraordinária sobre a elevação do
530
CATANI, Afrânio Mendes. A sombra da outra - A Cinematográfica Maristela e o cinema
Industrial paulista nos anos 50. São Paulo, Panorama, p. 149.
531
DUARTE J.B. apud CATANI, Afrânio Mendes. A sombra da outra - A Cinematográfica
Maristela e o cinema Industrial paulista nos anos 50, p. 158.
233
capital social da empresa de Cr$ 10 milhões para Cr$ 50 milhoes. Assim a KinoFilmes LTDA passou a se constituir Kino-Filme S.A532.
A empresa vendeu uma quantidade absurda de ações, os jornais eram
convocados para noticiar todas as “grandiosas” realizações da nova produtora
dirigida por Cavalcanti: “O cineasta não pegou em dinheiro, mas assinou papéis,
promissórias, contratos e duplicatas que não entendia”533.
O resultado de toda esta ciranda financeira foi a público dois anos após a
realização dos dois únicos longas-metragens da Kino, em 21/06/1956, quando o
jornal Diários de Notícia do Rio de Janeiro anunciou na seção forense que, o
Banco do Brasil estava movendo uma ação executiva para cobrar o empréstimo
feito a Kino-Filmes no valor de Cr$ 10.698.779,60, que apresentou como fiadores
a jornalista Elza Soares Ribeiro e os cineastas Alberto Cavalcanti e Jurandir
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Noronha534.
Alheio a tudo o que se passava na contabilidade da Kino durante a venda
das ações e os empréstimos junto aos credores, Cavalcanti estava em Recife para
procurar as locações de O canto do mar, primeira produção da companhia.
4.5.
O Canto do Mar - Filme síntese
Há muito tempo que não chove, a terra seca,
virgem de água, racha-se até o horizonte535
Desde os tempos da Vera Cruz, Cavalcanti tinha pretensões de realizar O
Canto do Mar, a história é uma adaptação de seu filme En Rade, realizado na
vanguarda francesa em 1927, para a realidade do nordeste no começo da década
de 1950, marcado pelo êxodo, pela seca, pela fome e pelo famigerado
subdesenvolvimento.
532
CATANI, Afrânio Mendes. A sombra da outra - A Cinematográfica Maristela e o cinema
Industrial paulista nos anos 50. p. 159.
533
Ibidem, p. 163.
534
Ibidem, p. 175.
535
Trecho da narração em off de O Canto do Mar.
234
Figura 71: A representação do sertão em O Canto do Mar.
O diretor entregou o argumento a José Mauro Vasconcelos, que assinou o
roteiro, os diálogos ficaram a cargo de Hermilo Borba Filho, que durante as
filmagens cumpriria também o papel de biógrafo de Cavalcanti pelo que os relatos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
de Borba Filho sugerem.
O projeto marcou o reencontro de Cavalcanti com as suas origens, com o
Pernambuco dos engenhos, do sertão, do folclore e da miséria. Em sua análise do
filme, Glauber acusou Cavalcanti de não ter permitido que o nordeste real
emergisse na tela, justificando como erro primordial do cineasta, o fato de não ter
entregue o roteiro a um escritor sertanejo, chamando o filme de claldicante,
Glauber sentenciou: “Cavalcanti, que em seu livro tanto falou da habilidade para
as escolhas dos roteiristas, preteriu um nome vivo como José Lins do Rêgo, ...
pela colaboração raquítica de José Mauro Vasconcelos, paulista, com um suposto
conhecimento do nordeste”536.
A crítica de Glauber é consonante com a maioria das resenhas produzidas
sobre o filme pela nova geração da crítica brasileira, mas O Canto do Mar,
conquistou também reflexões elogiosas, por sua beleza e seu pioneirismo em
abordar temas que eram até então inéditos em nossas telas, ele foi, por exemplo, o
primeiro filme a mostrar em seu enredo um ritual de candomblé, foi também
pioneiro ao criar um discurso poético-social sobre o problema da miséria
nordestina.
536
ROCHA, Glauber Cavalcanti e a Vera Cruz In PELLIZZARI, Lorenzo eVALENTINETTI,
Claudio. Alberto Cavalcanti, p. 310.
235
E, com todas as suas fragilidades e contradições, se mostrou precursor de
uma cinematografia que iria revolucionar definitivamente o cinema brasileiro.
Antes do CPC – Centro Popular de Cultura, de Aruanda (1959), filme seminal de
Linduarte Noronha, e da saga urbana de Nelson Pereira dos Santos, em Rio 40
Graus (1955) e Rio Zona Norte (1957), O Canto do Mar já refletia sobre a miséria
e o encarceramento existencial e social que ela impõe.
Como todos os filmes que Cavalcanti realizou no Brasil, O canto do mar
enfrentou sérios problemas de produção, com a Kino-Filmes imersa em uma grave
crise ética e financeira, a verba mal chegava a Recife para as filmagens.
Cavalcanti diria em uma carta a um amigo em 1953, que “só tem chegado os
coices maiores, porquanto as dificuldades que tenho enfrentado, acrescidas de
uma apatia inexplicável dos meus colaboradores de São Paulo, me seriam
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
insuportáveis, com aborrecimentos contínuos”537.
Apesar dos contratempos, O Canto do Mar chegou às telas. O filme
começa com uma sucessão de imagens do sertão, da caatinga rachada pela seca,
do sol inclemente, da diáspora do povo sertanejo. Em uma montagem de
significados, vemos urubus em contraposição à migração das famílias, que
transformadas em uma revoada de gaivotas ganham a rendenção do mar.
O mar como saída e aprisionamento, o mar como fronteira final para a
fuga e como rota da possibilidade remota de partir para o sul, e é sobre isso que se
trata O canto do mar, sobre o desejo de partir, de conhecer um outro mundo
menos árido, desejo que Cavalcanti conheceu bem, não pelo viés da miséria
social, mas existencial. O seu exílio não foi movido pela fome e pela falta de
oportunidade, mas sim pela limitação da liberdade e dos horizontes intelectuais.
537
GALVÃO, Maria Rita. Burguesia e cinema: o caso Vera Cruz. p.78.
236
538
Figura 72: A diáspora da seca em O Canto do Mar.
Neste prólogo do filme temos uma narração em off, com um texto poético
que atrela o filme a uma matriz literária, mas que, ao mesmo tempo, dá a ele um
forte teor documental. É um retorno de Cavalcanti ao documentarismo britânico.
Aos 7’40’’ do filme conheceremos a aldeia onde se passa a história, esta
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
aldeia nos remete à locação de Barravento(1962), primeiro longa-metragem de
Glauber Rocha que só seria realizado quase uma década depois das filmagens de
O Canto do Mar.
Em um roteiro clássico, depois do prólogo documental, embalado pelo
lirismo que a trilha de Guerra Peixe proporciona, conheceremos o núcleo central
de personagens. Seremos então apresentados á família de Maria, uma matriarca
que se tornou o único alicerce daquele pequeno núcleo, depois que o patriarca
partiu (só mais tarde saberemos que ele enlouqueceu). A representação da
ausência paterna se mostra com um prato vazio na cabeceira da mesa na pequena
e miserável cabana onde vivem Maria (Mírian Nunes), a filha Eponina (Cacilda
Lanuza), o filho Raimundo (Rui Saraiva) e a criança Silvino.
538
Fonte: http://www.revistamoviola.com/2012/10/03/o-canto-do-mar/.
237
539
Figura 73: O núcleo familiar de O Canto do Mar.
O jovem Raimundo é o personagem central do núcleo, ele é o catalizador
da trama na medida em que empreende o seu plano de fuga junto à Aurora, outra
jovem da comunidade que não suporta viver mais naquele cenário de ausências,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
de afeto , de liberdade, de oportunidade.
Eponina, irmã de Raimundo reage pelo viés da revolta em relação à
possibilidade de assumir o destino da mãe, que tem de lavar roupas no rio para
manter a família. Eponina escolhe então um caminho menos lírico que o de
Raimundo, que vê no mar a sua rota de escape, ela elege um bordel em Recife
como a salvação para a sua miséria.
Maria, para diminuir o seu fardo, ou vingar o seu destino, deseja internar o
marido em um hospício. Não sabemos porque ele enlouqueceu, mas sugere-se que
tenha sido a partir de uma tormenta que enfrentou com o seu barco Maria do Mar.
Estabelece-se assim a teia dramática que envolve aquela família.
O ponto de virada trágico se dá aos 34’13’’ do filme, quando Silvino
falece, o pequeno não consegue enfrentar uma febre que se prolonga. E como
centenas de milhares de crianças nordestinas no Brasil daquele tempo, ele parte
sem maiores cuidados e sem maiores assombros, tendo apenas a dor e uma certa
resignação de quem sabe que a miséria rouba infâncias.
A morte de Silvino lembra a morte da criança em O Rio (1951) de Jean
Renoir, não pela representação ou contexto na narrativa, mas pela forma como
539
Fonte: http://www.cinebaseinternational.com/ensavoirplus80/chant-mer.htm.
238
estas mortes são tratadas por seus diretores, ao mesmo tempo naturais quando
inseridas em seus contextos culturais, mas profundamente avassaladoras como
ponto de dilaceramento de um núcleo familiar. Esta foi uma das sequências
(37’13’’) que Cavalcanti escolheu para ilustrar o verbete “morte”, do seu filmetestamento Um homem e o cinema (1977).
O ritual do sepultamento de Silvino é um dos momentos mais belos e
poéticos de O Canto do Mar, um filme que têm muitos rituais em seu roteiro, o
que motivou Glauber a acusar Cavalcanti de fazer “macumba para turista” , como
diria Oswald Andrade. Há no longa-metragem um encantamento pelo exótico, e o
cineasta baiano imputou a Cavalcanti a culpa por tentar retratar de forma
superficial os ritos e folclores nordestinos sem aprofundar em seu simbolismo, e
sobretudo, por fazer isso de forma gratuita no roteiro, apenas como uma vitrine
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
para aquele caldeirão cultural.
Glauber tem razão parcialmente, o filme se perde neste exotismo deixando
as pontas da trama soltas, mas há em O Canto do mar um sentido profundo sobre
estes rituais, eles aparecem quando a razão já não mais dá as respostas. Para curar
a loucura do pai, aplacar a doença da criança, ou livrar o tédio dos jovens
habitantes daquela comunidade, se recorre ao sagrado e ao profano, ao terreiro de
Xangô, ao carnaval, à procissão e ao bumba-meu-boi.
540
Figura 74: Os rituais sagrados e pagãos em O Canto do Mar.
540
Fonte:
https://www.cineclick.com.br/noticias/contemporanea-a-vera-cruz-estudio-maristelaganha-mostra-em-tres-capitais.
239
Aos 60 minutos de filme, temos o Cavalcanti de Dead of Night na tela, o
sonho de Raimundo nos remete à beleza plástica e ao clima de horror surrealista
que o cineasta imprimiu em seu maior sucesso na Ealing. Vimos então toda a
carga dramática de O Canto do Mar desfilar na tela, o pai louco, o amor pela
jovem Aurora, a mãe beata, a miséria e o mar em uma montagem sofisticada e em
ótimo rítmo.
O desfecho é o de uma tragédia clássica, “Maria-Medeia” induz o marido
ao suicídio, Rui se prosta incapaz diante do destino, Eponina se converte em
prostituta, e paralelo a isso, assistimos aos retirantes partindo para o sul, com
destino a um Brasil que ergueria a sua capital e as suas metrópoles com esta mão
de obra.
O Canto do Mar é uma obra síntese na trajetória de Cavalcanti na medida
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
em que, conscientemente ou não, reúne traços de sua filmografia organicamente.
Além da referência obvia a En Rade, temos a confluência entre o social e o
poético de Rien que les heures, o documentário social da fase inglesa, o
componente surreal e trágico dos anos Ealing e finalmente temos o melodrama e o
universo da matriz brasileira e pernambucana que forjou o cineasta.
É uma pena que o filme tenha sido tão massacrado pela crítica, que
Cavalcanti já estivesse farto do Brasil e não ficou para tentar argumentar sobre as
suas propostas, partindo em outro exílio, desta vez ao encontro de Brecht. Como
disseram bem os italianos Valentinetti e Pellizzari, “Cavalcanti era um homem
que se encontrava sempre no lugar certo na hora errada ou no lugar errado na hora
certa”. 541
Embora tenha sido atacado pela intelligentsia brasileira, alguns críticos
entenderam a força e a importância pioneira de O canto do Mar, e, mais uma vez,
Almeida Salles foi porta-voz desta compreensão:
...era uma obra de confissão total,refletindo todas as influências recebidas por
Cavalcanti, na cenografia, na vanguarda-francesa, no documentário inglês, a sua
natureza sensível, a sua condição de exilado de volta ao país, todos estes fatores
explodem aqui, dando a esta obra um cunho personalíssimo, transformando-a em
541
PELLIZARI Lorenzo O sonoro , a Paramount e o cinema inglês In VALENTINETTI Claudio
M e PELLIZZARI Lorenzo Alberto Cavalcanti p. 34
240
um documento precioso de caracterização de uma sensibilidade autêntica, que
não se esconde, mas quer fazer do cinema um instrumento para a sua expansão542.
O Canto do Mar foi exibido pela primeira vez no Cine São Luiz em Recife,
para uma plateia de cerca de duas mil pessoas, em 04 de outubro de 1953, mas o
filme não agradou aos pernambucanos, que não gostaram da representação que
Cavalcanti fez de sua terra na tela543. Ele teve uma discreta exibição no Festival
de Cannes de 1953, Cavalcanti diria em tom sarcástico a Sérgio Caldieri em
entrevista, que o seu longa-metragem havia sido vítima de uma espécie de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
conspiração para que não se propagasse a miséria brasileira internacionalmente:
A verdade foi contada por George Sadoul. Sadoul, um amigo meu, me contou que
a delegação brasileira tinha feito uma pressão enorme para que meu filme não
recebesse prêmios. Nessa pressão diziam que o filme desagradaria ao governo
brasileiro, mostrar a miséria do nosso país. Passaram o filme às dez horas da
manhã, como se fosse uma atração a mais do Festival. O chefe da delegação
brasileira era Vinicius de Moraes. Ele achava que em dado momento eu era
esquerdista demais ahahaha! Eu não gosto de caviar! De vodca eu gosto!
Ahahahaha!544
Em 1954 Cavalcanti começa uma série de viagens ao leste europeu, O
Canto do Mar ganha o premio de melhor filme no Festival de Cinema de Karlovy
Vary daquele ano Em 11 de outubro de 1954 o cineasta anuncia aos jornais que irá
deixar o Brasil para filmar na Europa, contratado pela Wien Film ele parte para a
Áustria.
A comédia Mulher de Verdade (1954), dirigida por Cavalcanti, e sobre a
qual o cineasta não escreveu nenhuma referência relevante em toda a
documentação a que tive acesso, seria lançada sete meses depois da partida de
Cavalcanti, coincidindo com o final irreversível da Kino-Filmes, que devolveria
os estúdios aos antigos proprietários da Maristela545.
Mulher de Verdade (1954) marca a volta de Cavalcanti à comédia de
costumes, em tom de absurdo, o filme fala de uma enfermeira, interpretada pela
542
SALLES, Francisco de Almeida apud CATANI, Afranio A sombra da outra - A
Cinematográfica Maristela e o cinema Industrial paulista nos anos 5.0 p. 166.
543
CATANI, Afrânio Mendes. A sombra da outra - A Cinematográfica Maristela e o cinema
Industrial paulista nos anos 50. p. 164.
544
CALDIERI, Sergio Antonio José. O judeu traz de volta o velho cineasta – Jornal Tribuna da
Imprensa 17/06/1980 p. 9.
545
CATANI, Afrânio Mendes. A sombra da outra - A Cinematográfica Maristela e o cinema
Industrial paulista nos anos 50. p. 175.
241
também cantora Inezita Barroso, que leva uma vida dupla. Motivada por uma
profunda e altruísta incapacidade de dizer não, o roteiro fala desta mulher, que não
por acaso se chama Amélia, aquela da marchinha de Mário Lago. Mulher de
Verdade parece ter sido realizado sob o espírito de mero cumprimento de
contrato, sem nenhuma proposta estética ou conceitual que justifique a sua
realização sob o ponto de vista da aproximação realista ou do experimental.
Quando Mulher de Verdade estava sendo montado, Cavalcanti já se
encontrava na Áustria
para tratar de um projeto que marcaria a primeira
adaptação para o cinema de uma obra de Bertolt Brecht, que fosse aprovada pelo
próprio: Herr Puntila und sein knecht Matti (O senhor Puntila e seu criado
Matti).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
4.6.
Uma rosa e o poeta. A volta ao mundo civilizado e as aspirações
derradeiras de um eterno estrangeiro
Nunca pude esquecer a minha chegada à casa do poeta, na Chausseestrassse. As
janelas do salão do primeiro andar estavam todas abertas. Helene Weilgel, a
grande atriz alemã, a última esposa do poeta estava presente. Como eu olhava em
direção à vista do cemitério contíguo, Brecht tomou o meu braço e me levou a
uma janela onde podia mostrar o túmulo de Hegel. Hoje o túmulo do poeta se
encontra justamente ao lado daquele do filósofo
Alberto Cavalcanti546
Tão importante para esta pesquisa quanto avaliar o filme, O senhor
Puntilla e seu criado Matti (1955), ao qual infelizmente só tive acesso a trechos,
acredito que seja desvendar a relação que se instalou entre Alberto Cavalcanti e
Bertolt Brecht.
O Senhor Puntila e seu criado Matti foi recebido de forma fria pela crítica,
mesmo sendo a primeira adaptação cinematográfica aprovada por Brecht,
conquistando assim sua relevância histórica. Este foi também o primeiro longametragem em cores dirigido por Cavalcanti.
546
Trecho do artigo As relações de Cavalcanti com Bertolt Brecht (1969) publicado na íntegra no
livro de Claudio Valentinetti e Lorenzo Pellizzari (página 179). Em minha pesquisa no acervo de
Sergio Caldieri tive acesso integralmente ao manuscrito Original.
242
A partir das imagens que assisti e das resenhas a que tive acesso, pude
deduzir que com este trabalho, o cineasta rompeu com a proposta realista,
extraindo do texto de Brecht essencialmente o seu tom cômico. Ao adotar o
farsesco, sob inspiração de referências como os irmãos Marx547, Cavalcanti
buscou revelar pelo viés anedótico as relações conturbadas entre um criado e a
burguesia à qual servia e se relacionava.
Com alguns números musicais, o mote da trama lembra a memorável
situação cômica criada por Chaplin em Luzes da Cidade, assim como o ricaço da
fita de Chaplin, no filme de Cavalcanti, o Senhor Puntilla tem mudanças de humor
dependendo do seu estado etílico, e desta tênue e profunda fissura de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
personalidade nasce a comicidade da relação entre o patrão e seu mordomo.
548
Figura 75: Cartaz do filme de Cavalcanti criado aparentemente para um lançamento em vídeo na
Europa.
Nas entrelinhas da trama principal, O Senhor Puntila e seu criado Matti
oferece uma crítica social e um desejo de se aprofundar através do humor nos
tecidos da relação entre o patrão e o trabalhador.
547
Chico, Harpo, Groucho e Zeppo Marx, artistas norte-americanos que fizeram sucesso na
televisão, teatro e cinema e se tornaram ícones da comédia durante a primeira metade do século
XX.
548
Fonte: https://filmow.com/senhor-puntila-e-seu-criado-matti-t103084/. (o nome de Brecht está
escrito errado no cartaz, “Bertold” no lugar de Bertolt).
243
Em minha pesquisa no acervo de Sérgio Caldieri, descobri o manuscrito
original do texto que Cavalcanti dedicou ao seu encontro com Brecht e à
realização de O Senhor Puntila e seu Criado Matti.
Redigido em um “papel almaço” que ainda está em bom estado de
conservação, mas que pela sua fragilidade está condenado a desaparecer, o texto
de Cavalcanti discorre sobre as suas impressões a respeito desta parceria. Este
artigo, que seria publicado sem maior destaque por Valentinetti e Pellizzari em
1985, ressalta em epígrafe a informação de que se trata de um “Extrato das
memórias de Alberto Cavalcanti” (esta epígrafe consta apenas do manuscrito).
O manuscrito soma treze páginas manualmente numeradas e, ao final,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
assinadas com a data de maio de 1969.
549
Figura 76: Foto da primeira página do manuscrito “As relações de Cavalcanti com Bertolt Brecht”.
549
Fonte acervo Sergio Caldieri.
244
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Figura 77: Última página do texto, datado e assinado por Cavalcanti.
No texto, Cavalcanti parece estar ciente das fragilidades do filme, e
quatorze anos depois do lançamento de O Senhor Puntila e seu criado Matti,
tendo o tempo como aliado, o cineasta fez uma avaliação dos equívocos e êxitos
do desafio de adaptar uma obra de Brecht, tendo o dramaturgo como parceiro de
criação.
Cavalcanti inicia as suas considerações falando do papel social da obra de
Brecht, da sua importância histórica e da fragilidade dos argumentos das críticas
que o alemão recebeu sobre a “originalidade” de sua obra, o cineasta ressalta a
força da poesia e da dramaturgia de Brecht, lembrando o legado que esta obra
colossal deixaria, tendo, segundo Cavalcanti, apenas Shakespeare como rival, com
exceção de Mãe Coragem, que segundo o cineasta, a nada se compara.
Cavalcanti explica que o convite para realizar Senhor Puntila partiu do
cineasta Joris Ivens:
Em 1954, a evidência da incompreensão dos meios cinematográficos e teatrais no
Brasil a meu respeito chegou ao auge: depois de uma rápida e séria viagem à
União Soviética, o meu colega e velho amigo, o diretor holandês Joris Ivens
propôs que eu o substituísse na direção de uma adaptação de Puntila para a tela.
Eu estava a par dos rumores que circulavam nos estúdios cinematográficos
internacionais sobre as dificuldades que certos diretores de filmes como Pabst e
Fritz Lang tinham encontrado nas suas relações com o escritor. A minha situação
245
no Brasil depois e por causa da minha viagem à URSS, havia perdido o modesto
emprego na televisão paulistana, era tão precária que não permitia recusar tal
oferecimento550 .
Cavalcanti se juntou em Viena ao roteirista francês Vladimir Pozner, para
realizar o primeiro tratamento do roteiro de Senhor Puntila. Pozner , que já era
amigo de Brecht se encarregou de ir à Alemanha levar o texto para a aprovação do
escritor. Como previsto, o roteiro foi recusado. Em resposta, Brecht enviou uma
proposta sua de roteiro, que foi prontamente recusada por Cavalcanti, por se tratar
de uma versão filmada da peça “Não encontrei outra solução senão recusá-la
explicando que a filmagem da peça era trabalho para um cameraman e não para
um diretor”551.
A solução foi proposta pela produtora do filme Ruth Wieden, que sugeriu
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
a Cavalcanti que fosse pessoalmente conversar com Brecht;
Foi assim que seguimos ela e eu para Berlim Oriental. Este encontro com Brecht,
era de bom augúrio para a minha volta à Europa – É verdade que eu não era mais
o jovem brasileiro que muita gente acolhera sempre com grande indulgência. Em
todo caso, o fato de conhecer pessoalmente um tal homem, já criava uma espécie
de prolongamento do meu modo de vida anterior, fora do Brasil, tanto na França
quanto na Inglaterra552.
O fato é que o trabalho com Brecht, apesar de bem sucedido quanto à boa
relação que se estabeleceu entre Cavalcanti e o escritor, não cumpriu a difícil
missão de recolocar o cineasta no mapa dos grandes realizadores na Europa. O
filme foi ignorado pela crítica internacional e sofreu fortes ataques do grupo
jovem de atores da Berliner Ensemble, companhia que exibia as peças de Brecht
em Berlim. Cavalcanti atribui este “antagonismo” a um ciúmes pela relação que se
estabeleceu entre ele e o dramaturgo, e pela decisão ousada de substituir a
partitura original da peça, composta e dirigida nas montagens teatrais do grupo
por Paul Dessau, por uma nova criação que ficara a cargo de Hanns Eisler, sob a
aprovação de Brecht.
Sobre os problemas do filme, Cavalcanti atribui ao elenco principal a sua
maior fragilidade: “Cada filme, durante a sua rodagem traz dificuldades sempre
diferentes: Puntila, com seu grande número de interpretes, não podia escapar à
regra...Os três protagonistas Puntila, sua filha Eva e seu criado Matti, desde o
550
1969 (manuscrito):4.
Ibidem, manuscrito, 1969, 5.
552
Ibidem, manuscrito, 1969, 6.
551
246
inicio se mostraram os mais fracos do conjunto”.553 Com o filme pronto,
Cavalcanti se viu no desafio de mostrá-lo ao criador da obra original:
Mas o filme chegou ao fim, com duas versões, uma destinada aos países do
Poente (sic) e outra do Levante (sic). Segui imediatamente para Berlim para
mostrar uma cópia a Brecht... A projeção teve lugar na pequena sala dos
escritórios da Defa, em Berlim, e passou-se com a maior cordialidade...É preciso
porém acrescentar que com muito espírito, Brecht fez uma crítica que me fez
sorrir: “Por que, disse ele, você escolheu mulheres tão feias para o coro do
filme?554
Cavalcanti conclui o seu texto com uma melancólica constatação da
finitude de sua geração, e dos inevitáveis choques que surgiriam com a que o
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
substituiria:
Quando se pertence a uma geração que caminha rapidamente para o seu
completo desaparecimento, essas relações com um homem quase da mesma
idade que eu se tornaram ainda mais apreciáveis. Parece entretanto inevitável a
constatação de que a nova geração é mais difícil de aproximação que a nossa. E,
seguramente, Brecht teve experiências semelhantes às minhas. Não é possível
esquecer as dificuldades encontradas no início da minha carreira com a maioria
dos valores reconhecidos naquela época. Eles eram em grande maioria de idade
avançada e desconfiavam abertamente dos possíveis sucessores jovens. Assim,
de maneira bastante injusta, a minha geração sofreu, da desconfiança da
precedente, e agora sofre, do que podemos chamar, da suficiência da seguinte555.
Em um belo e raro senso de humildade, Cavalcanti atribui o êxito da sua
colaboração com Brecht a sua tentativa de anular intervenções radicais, em
reverência à obra do mestre alemão: “compreendi as razões do meu êxito na
minha colaboração com Bertolt Brecht: foram elas, ter procurado na realização de
Senhor Puntila e seu criado Matti, abdicar a qualquer veleidade de impor a minha
personalidade e de ter tentado exprimir honestamente as ideias do autor”556.
A revista Cahiers du Cinema e outras publicações referenciais ignoraram
O Senhor Puntila e seu criado Matti, Cavalcanti foi acusado pelo crítico Louis
Marcorelles de “intelectualismo reluzente, em oposição ao despojamento
brechtiniano”557.
A partir da década de 1960 as experiências poéticas transgressoras que
viriam com os cinemas novos substituiriam o Surrealismo pelo território da
553
Ibidem, manuscrito, 1969, 8 e 9.
Ibidem, manuscrito, 1969, 10.
555
Ibidem, manuscrito, 1969, 12.
556
Ibidem, p.13.
557
PELLIZZARI, Lorenzo O período internacional e o declínio In VALENTINETTI, Claudio M.
e PELLIZZARI Lorenzo Alberto Cavalcanti. Editions du Festival International du film de
Locarno, 1985, p. 51.
554
247
representação alegórica da realidade, sobretudo nas cinematografias do “terceiro
mundo”.
Mesmo em sua seguinte experiência internacional, Cavalcanti não
encontraria sucesso. A Rosa dos Ventos (Die Windrose) 1956, co-produção
internacional capitaneada pela Alemanha Oriental em parceria com a Maristela,
dividida em cinco episódios temáticos, seria a última tentativa de Cavalcanti
reconquistar prestígio internacional. Mas, mais uma vez, o filme naufragou nas
críticas e na frieza com que foi recebido, mesmo tendo sido exibido no Festival de
Locarno de 1957.
Como de costume, uma dezena de contratempos e revezes marcaram a sua
realização; “Herr Puntila and sein Knetch Matti (1955) e Die Windrose (1956)
praticamente não foram exibidos no ocidente (nunca serão exibidos na Itália, por
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
exemplo) e terão a reputação de filmes malditos”558.
A princípio Rosa dos Ventos teria a supervisão de Joris Ivens, e seria
dirigido coletivamente por Alberto Cavalcanti, Giuseppe de Santis, Serge
Gerassimov, Jean Paul le Chanois e Wo Kuo-Yin, mas pouco restou da proposta
inicial. Por fim, Joris Ivens assumiu uma “direção artística” discreta, a supervisão
ficou a cargo de Cavalcanti, a direção do episódio brasileiro (Ana) foi transferida
para Alex Viany, que teve Jorge Amado como argumentista e Cavalcanti e
Trigueirinho Neto como roteiristas.
Mesmo com um elenco com nomes como Ives Montand e Helene Wiegel,
e a força de uma história universal e pertinente aos ideais do novo pensamento
que se formava com os movimentos feministas (a temática do filme era o trabalho
feminino), Rosa dos ventos foi ignorado pela crítica ocidental.
Esse projeto de intenções internacionalistas, mas onde prevalecem as soluções
nacionais (os caminhos nacionais do socialismo?) ou individuais, testemunha,
mais do que uma vontade de propaganda, uma utopia característica dos anos 50 e
60, cujo mestre era Cesare Zavattini: trabalhar em conjunto, confrontar as
afinidades e diferenças, fornecer uma imagem em corte da sociedade e do
mundo559.
É interessante como aqui se fecha um ciclo, tendo Zavattini na fronteira de
suas extremidades. O conceito de ter um ponto de partida central (o trabalho
558
559
Ibidem, 1985, p. 50.
Ibidem, 1985, p. 51.
248
feminino), para falar do todo: a realidade da mulher no mundo, vai ao encontro da
teoria que Cavalcanti defendeu com a sua carta. São as metonímias
cinematográficas que seriam vitais para a estruturação da narrativa do cinema de
poesia e dos cinemas na década de 1960, que pensariam o mundo tendo o olhar da
análise semiótica como uma lupa para se refletir sobre a realidade.
Problemas estruturais marcaram a realização de Rosa dos Ventos, a
proposta de uma realização conjunta não se cumpriria, os episódios seriam
realizados de forma independente e sem uma conexão que permitisse uma
narrativa mais orgânica no ponto de vista da finalização e da meta conceitual do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
projeto.
560
Figura 78: Cavalcanti e Helene Weigel no set de Rosa dos Ventos.
O episódio brasileiro foi realizado no interior da Bahia, em Feira de
Santana, Montesanto, Cocorobó e Canudos, território consagrado por Glauber e
pelo Cinema Novo, anos depois.
Ana fala da história de uma retirante e sua família, que têm de enfrentar as
diversidades comuns aos sertanejos brasileiros, a diáspora, a fome e os conflitos
560
Fonte:https://www.facebook.com/JacanaOntemHoje/photos/a.342815755922420.1073741928.2
65807086956621/446398518897476/?type=3&theater.
249
com os donos de terra. Tema que estaria presente, quase dez anos depois, nos
filmes da primeira fase do Cinema Novo, como Vidas Secas (Nelson Pereira dos
Santos 1963), Os Fuzis (Ruy Guerra 1963) e Deus e o Diabo na Terra do Sol
(Glauber Rocha 1964).
561
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Figura 79: Os conflitos sertanejos em Rosa dos Ventos.
O episódio Ana, de Rosa dos Ventos, foi um dos escolhidos por Cavalcanti
para montar o seu inventário cinematográfico em Um homem e o cinema, projeto
viabilizado pela Embrafilme em 1977.
4.7.
Um homem e o Cinema e o Judeu – Filmes testamento
Produzido por Jom Tob Azulay junto à Embrafilme, e montado por
Geraldo Veloso, Um homem e o cinema (1977) segue os preceitos de Filme e
realidade (1939 – 1942), só que, desta vez, Cavalcanti iria refletir sobre a
linguagem cinematográfica a partir da sua obra, e não copilando filmes realizados
por terceiros, como foi o caso da produção inglesa.
Neste documentário-ensaio, dividido em duas partes, e subdividido em
temas, Cavalcanti reflete sobre a linguagem do cinema, destacando aspectos
técnicos, conceituais e temáticos.
O filme começa pelo tema cenografia, revisitando a trajetória de
Cavalcanti a partir da fase francesa, em sua parceria com Marcel L’Herbier, e
outros cineastas da vanguarda.
561
Fonte: https://ecommerce.umass.edu/defa/film/6179.
250
Em seguida, o cineasta estrutura o documentário por temas abstratos e
concretos, e assim se segue a sua concepção de como retratou “o amor”, em
filmes como En Rade (1927), Simão O Caolho (1952), Noces Venitiennes (1958),
Caiçara (1950 – na função de produtor) e Dead of Night (1945).
Os temas seguintes da primeira parte são: “O Assassinato”, “A dança”, “O
absurdo da guerra”. Cavalcanti elegeu filmes de diferentes fases, estas escolhas
me pareceram por vezes surpreendentes, como a opção de Dead of Night para
ilustrar o amor, e não “O assassinato”.
Na Parte 2, temos os temas “Imagens de Trabalhadores” (que
curiosamente não tem Coal Face, nem Night Mail entre os filmes selecionados),
“Ensaios de comédia cinematográfica” (cuja lista não consta Simão o Caolho),
“Ensaios de drama cinematográfico” (onde se insere o episódio de Viany em Rosa
dos Ventos) e “Pesquisas sobre o ritmo” (em quefinalmente podemos assistir às
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
imagens de Coal Face e Night Mail, e em que surpreendentemente está inserido
Terra é sempre terra (1951), de Tom Payne, em que Cavalcanti assina a produção
na Vera Cruz).
Um homem e o cinema não alcançou a projeção internacional que este
inventário merecia, afinal, ele percorre a história do cinema, destacando
profundamente duas das cinematografias mais representativas no ocidente: a
inglesa e a francesa.
Com o relançamento do livro Filme e Realidade (1976) e de Um homem e
o Cinema (1977), tudo indica que no final da década de 1970, Cavalcanti estava
imerso no processo de resgatar a sua história, como se pudesse prever a sua morte,
que aconteceria em 1982, o diretor se dedicou a reconstruir os fragmentos do seu
cinema-vida, em patrimônios memoriais como Um homem e o cinema, e em suas
memórias, que infelizmente, ele não viu publicadas.
Em 1978, Cavalcanti iria começar a sua última e talvez, mais frustrante,
aventura cinematográfica, a tentativa de levar “O Dr. Judeu” para as telas.
O filme O Dr Judeu falaria de Antônio José da Silva, dramaturgo
português queimado pelas fogueiras da Inquisição no século XVIII. O
personagem tinha uma verve parecida com a de Cavalcanti, que nunca poupou
ninguém de sua franqueza demolidora. O Judeu também perdeu a vida pela forma
251
combativa com que retratava a burguesia, a nobreza e o clero portugueses do seu
tempo. Cavalcanti diria que:
A inquisição condenou Antonio José não pelo conteúdo religioso ou político de
sua obra, mas pela ferocidade com que criticava a sociedade portuguesa de sua
época...Ele foi acusado pela Inquisição de praticar judaísmo, mas na verdade, não
era nem judeu, nem católico. Era ateu562.
Portugal se interessou em co-produzir o filme, foram feitas tratativas sobre
o assunto, como prova este documento datado de 10 de abril de 1979, que
encontrei no acervo de Sérgio Caldieri, uma carta em que o cineasta é apresentado
a uma instituição portuguesa (Museu Nacional do Traje), em busca de uma
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
parceria luso-brasileira:
563
Figura 80: Solicitação de parceria luso-brasileira junto ao museu do traje.
Fonte: Museu do Traje.
Sérgio Caldieri conviveu intensamente com Cavalcanti em seus últimos
anos no Brasil. Nas conversas que mantivemos durante a pesquisa, em especial
em uma conversa em seu apartamento em Niterói, ele narrou como o cineasta
brasileiro reagiu ao fato que motivou a sua partida, a impossibilidade de filmar o
562
CAVALCANTI, Alberto em entrevista à Agacine durante o Festival de Cinema de Gramado,
no lançamento de Um Homem em o cinema (sem data, mas suponho que tenha sido em 1977).
563
Fonte: Acervo Sergio Caldieri.
252
longa-metragem O Doutor Judeu, depois que o projeto teve recursos negados pela
Embrafilme – Empresa Brasileira de Filmes, em 1980, então sob a direção do exchanceler Celso Amorim.
A transação do projeto Dr Judeu pela Embrafilme é um tanto obscura, ao
longo desta pesquisa surgiram uma série de versões sobre o fato que motivou a
partida definitiva de Cavalcanti, entre eles, que o parecer negativo da Embrafilme
teria sido elaborado por um vingativo Alex Viany, versão esta que traz consigo
uma série de situações dúbias. Embora Cavalcanti em suas memórias tenha se
referido a Viany com profunda mágoa e até mesmo ira quando narra a difamação
que sofreu após o episódio Vera Cruz:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Alguns elementos, chefiados pelos Srs. Carlos Ortiz e Alex Viany, fizeram
reuniões em várias cidades com o fim de me insultar e de tentar impedir a criação
do Instituto Nacional de Cinema, chegando ao ponto de negar, não só nestas
reuniões, como em sua imprensa partidária, as credenciais tanto minhas quanto
dos meus técnicos, e mesmo o fato de eu ser brasileiro564.
Quase três décadas depois, em entrevista realizada pelo jornalista Sérgio
Caldieri, temos um Viany indignado com o fato da Embrafilme ter preterido o
projeto de Cavalcanti, como se pode ver em detalhe na imagem abaixo:
Figura 81: Detalhe entrevista Alex Viany565.
564
Trecho do capítulo Vera Cruz, das memórias de Cavalcanti no acervo Sérgio Caldieiri. Páginas
sem numeração.
565
Detalhe da entrevista realizada por Sergio Caldieri com Alberto Cavalcanti no jornal Tribuna da
Imprensa em 11 de fevereiro de 1981.
253
Há também a versão de que parte da verba captada do filme haveria
“desaparecido”, a suspeita, segundo entrevista com Cavalcanti, realizada por
Caldieri pairava na época sobre um membro da equipe. Na entrevista, Caldieri
perguntou ao cineasta sobre o que teria levado o diretor de produção do filme a ter
“desaparecido” com o adiantamento de 4 milhões e meio da moeda corrente na
época, cedidos pela Embrafilme para a realização do projeto, pergunta ainda se
não seria este fato parte de um complô para que o projeto não fosse adiante, eis a
resposta de Cavalcanti:
O Rogério Sganzerla também teve esta mesma opinião, mas não acredito. O que
não posso é ficar três anos esperando para fazer um filme, Na Europa, nenhum
produtor se recusou a me receber, aqui no Brasil, passei semanas para conseguir
falar com o diretor da Embrafilme, o Celson Amorim. Eu não estou acostumado a
isso, e nem quero, porque o respeito que tenho fora do Brasil não me permite
aceitar esta indiferença566.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Como sabemos, O Dr. Judeu nunca seria realizado por Cavalcanti, seu
roteiro seria publicado em 1997 por Claudio Valentinetti em Um canto um judeu e
algumas cartas e o cineasta Jom Tob Azulay finalmente levaria esta história para
as telas em 1995.
A partida definitiva de Cavalcanti do Brasil, em 1980, seria amplamente
alardeada pelos jornais, o viés predominante era o do “estrangeiro” não valorizado
em sua terra natal. Em entrevista a Sérgio Caldieri, na véspera de sua partida, em
17 de junho de 1980, Cavalcanti diria que:
O povo brasileiro está sofrendo, passando fome. Só se eu deixar o cinema
começar a fazer trabalho social e procurar a ajudar a instruir o povo.Instruir o
povo é difícil e quase impossível sem uma revolução, sem uma grande mudança e
modificar a estrutura governamental para o bem de um povo. Atualmente a
grande burguesia brasileira não existe mais. O que existe é um grupo de
emigrantes fugidos da Europa, que tem capital e condições de viverem em
arranha-céus nas grandes cidades brasileiras, uma vida que o próprio povo
brasileiro não consegue acompanhar567.
Este Cavalcanti que acima se revela, encontra Glauber em sua defesa de
uma revolução popular. Curiosamente, os dois cineastas, tão apaixonados pelo
Brasil, e tão imbuídos de cinema, morreriam em exílio, quase ao mesmo tempo.
566
Jornal Tribuna da Imprensa 17/06/1980 p.2
CAVALCANTI, Alberto em entrevista a Sergio Caldieri no Jornal Tribuna da Imprensa de 17
de junho de 1980, p. 9. Rio de Janeiro(RJ).
567
254
Ciclicamente o cinema se revela um organismo vivo, fronteiriço em suas
bordas temporais e espaciais, onde se encontram em suas extremidades Cavalcanti
e Glauber, ambos movidos pelo desejo de ver na tela o social e o poético guiados
pelas veredas da invenção, da experiência cinematográfica plena. Cavalcanti
morreria na França em 23 de agosto de 1982, esquecido. Valentinetti e Pellizzari
descreveram poeticamente esta partida:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Os jornais nos contam que ele morava num bairro tranquilo de Paris, uma
pequena casa de dois andares, parecida com muitas outras, coberta de plantas
trepadeiras e bem-arrumada. Andando com dificuldade, ele só fazia pequenos
passeios pelo bairro, parando frequentemente no bar-restaurante Tastevin ou no
café Nice para beber ou comer... A Europa está de férias, como todos os seus
amigos... E as redações estão desfalcadas em 23 de agosto de 1982, quando se
apaga Alberto Cavalcanti568.
568
PELLIZZARI Lorenzo O período internacional e o declínio In PELLIZZARI, Lorenzo e
VALENTINETTI, Claudio, Alberto Cavalcanti. p. 55.
5.
Conclusão
Vestígios de um epitáfio
Cavalcanti desejou ser cremado no cemitério Père Lechaise, e que suas
cinzas fossem enviadas para o Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro, para
que fosse enterrado ao lado dos pais.
Atestado de óbito original de Cavalcanti, que diz que ele faleceu às 8 horas
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
de 45 minutos do dia 23 de Agosto de 1982.
569
Figura 82: Atestado de óbito de Cavalcanti
569
Fonte Acervo de Sergio Caldieri.
256
Documento original de transferência das cinzas de Cavalcanti para o
cemitério de São João Batista, no Rio de Janeiro, datado de 14 de setembro de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
1982:
Figura 83: Documento de transferência das cinzas para o Rio de Janeiro
Os jornais anunciariam a partida daquele cineasta do mundo, explicitando
a sua existência errante.
Nenhum epitáfio a que tive acesso mencionou a profunda brasileirade de
Cavalcanti, uma raiz preservada cuidadosamente na quinquilharia dos
apartamentos em Paris ou Londres (como descreveu poeticamente Vinicius de
Moraes) e no compromisso com a realidade, na visão do cinema como um
instrumento transformador, embuído de um papel revelador de uma realidade que,
257
mesmo para um filho de donos de engenho ou da alta burguesia carioca, parece
congenitamente injusta, miseravelmente bela e tragicamente cinematográfica.
E assim se completa um ciclo, as cinzas de Cavalcanti foram remetidas ao
Brasil por seu amigo Jean-Jacques Méhu, que enviaria junto destas cinzas toda
esta documentação de Sergio Caldieri a que tive acesso.
O fio da meada da memória de uma vida me foi oferecido em diferentes
etapas desta pesquisa, na primeira vez fui fisgada por um Cavalcanti traduzido em
livros teóricos, quase todos com tratamento histórico, localizando sua atuação em
uma linha de tempo que costurava no mesmo tecido a história do cinema no
século XX. Depois Cavalcanti me apareceu em seu precioso acervo, encontrado
por acaso em um cenário de crime, coisa de cinema, um pouco de filme noir .
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Cavalcanti levanta neste trecho de entrevista citado a seguir duas questões
centrais para esta tese, a diluição da fronteira entre ficção e documentário e a
hereditariedade entre a escola de documentário britânica e o neorrealismo italiano:
Bem, nunca admiti essa divisão dos filmes entre documentários e filmes de
ficção. Sempre trabalhei nos filmes, como filmes, sem cogitar de classificá-los. É
difícil precisar onde termina o documento e começa a ficção. O cinema novo
aparecido na Itália depois da guerra, não foi senão uma versão do realismo inglês
que batizaram de documentário570.
Esta entrevista, embora não esteja datada, carrega pistas que sugerem a
fase em que foi concedida. Ela foi realizada após a projeção de Um homem e o
cinema (1977) no Festival de Cinema de Gramado, e antes da conclusão do
processo de (não) realização de O Dr. Judeu, portanto, sabemos que ela aconteceu
pouco antes da partida definitiva de Cavalcanti do Brasil (1980), e
consequentemente, poucos anos antes de sua morte (1982). O que nos leva a
concluir, que o cineasta, nos anos finais de sua vida, tinha consciência das
interseções estéticas entre o Neorrealismo e o cinema que realizou, sobretudo, na
Inglaterra e também, que coerentemente, manteve a sua opinião sobre questões
linguísticas envolvendo o documental e a ficção no cinema, preservando o
pensamento que defendia junto a Grierson na década de 1930. Mantendo ao longo
570
CAVALCANTI, Alberto. Super 8 Todos querem ser diretores (Entrevista concedida à Agacine
durante o Festival de Cinema de Gramado (sem data).
258
da vida a fidelidade entre a realização e o seu arsenal teórico, característica rara
nas trajetórias artísticas longevas.
Dono de uma vida marcada por uma geografia errante, Cavalcanti parece
ter sido extremamente fiel ao seu pensamento, à sua formação como artista e ao
discurso que proferiu ao longo da vida.
No prefácio de uma das últimas
entrevistas concedidas pelo cineasta Rogério Sganzerla, o jornalista Álvaro
Machado explicita esta característicado cinema e do pensamento cavalcantiano:
“Rogério encontrava-se na outra margem, onde vai dar o escolho mais sólido da
realidade brasileira, o lixo que ele selecionou genialmente para tornar explosão e
celebração de vida em filmes significativamente confeccionados a partir de...
restos de negativos cinematográficos. Poucas trajetórias no cinema brasileiro são
marcadas por tamanha sincronicidade e fidelidade a um princípio criativo: talvez
as de Mário Peixoto e Alberto Cavalcanti (este tornado amigo e mestre de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Sganzerla em sua última passagem pelo Brasil) ”571.
A coerência intelectual e moral é um traço subjetivo de personalidade,
impalpável, mas identificável, no caso dos artistas, pelas pistas que este deixa em
sua obra. Tive a subjetividade como matéria prima essencial nesta pesquisa, a
busca pelos traços de hereditariedade de um movimento artístico sobre outro não
se dá pelos métodos científicos, porque o “DNA” desta confluência não se
consolida em provas concretas, ele reside muito mais em um espírito, em um
desejo, e nas tangências de trajetórias individuais e coletivas.
É claro que existem as predisposições conscientes das reverências, das
citações, das influências claras e nominadas. Mas o que investiguei aqui foram as
similaridades do não dito, das entrelinhas, das nuances que se fazem sob a ação
dos deslocamentos espaço-temporais, das aproximações que caminham entre a
névoa do não planejado, das interfaces sensíveis. Este parece ser o caso da relação
entre Cavalcanti e o Neorrealismo Italiano, e consequentemente, em um
desdobramento, da relação parental entre o Cinema Novo e o pensamento
cavalcantiano.
571
MACHADO, Álvaro. Rogério Sganzerla fala da guerra da TV contra o cinema (2004) (grifos
do autor) fonte: web.: http://www.revistatropico.com.br/tropico/html/textos/715,1.shl
259
Cavalcanti fala em diversas ocasiões que o neorrealismo representou uma
continuidade da proposta desenvolvida por ele no documentarismo inglês, mas
pude concluir a partir desta pesquisa, que em 1926, com Rien que les heures, o
cineasta já começaria a traçar esta rota, que seria depois ampliada em ramificações
que tocariam estas cinematografias que se consolidariam nos cânones como pedra
fundamental do cinema moderno do pós-guerra.
O desejo de refletir a realidade se traduz perene em duas veredas que se
entrecruzam: a ética e a estética. Este entrelaçamento não deixa lacunas para que
as distinguamos a sua potencialidade e zona de influência. Como bem definiu
Mariarosaria Fabris:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Ao nosso cinema – como, aliás, ao cinema latino-americano em geral –, o neorealismo, mais do que oferecer modelos estéticos, vinha fornecer uma atitude
moral, ao mostrar como debruçar-se sobre a realidade local, principalmente sobre
o mundo popular, com um novo olhar572.
É justamente neste território, tão idiossincrático, do olhar sobre a
realidade, que reside o ímpeto catalizador de Cavalcanti, que o fez trafegar pelo
mundo, atravessando culturas, rupturas estéticas e mudanças históricas, sem
perder a sua coerência artística. A forma pode ser mutante e transitória, mas a
essência, do compromisso do cinema com o seu tempo, esta ele viu se desdobrar,
se multiplicar, atravessando a imagem em movimento no século XX, subvertendo
o espaço e o tempo, e se mantendo, ao mesmo tempo, permanente e fluida, como
a luz que se projeta sobre a tela na matéria cinema.
Neste movimento de atravessar a geografia e a história do seu tempo, com
“h maiúsculo” como ele gostava de dizer, Cavalcanti doou a sua existência ao
cinema, em um sacerdócio torto e imperfeito, imersão plena em uma arte total.
572
http://revistaalceu.com.puc-rio.br/media/Alceu_n15_Fabris.pdf p.6.
6.
Filmografia Alberto Cavalcanti573
Filmes como cenógrafo e diretor de arte:
1 - Résurrection * - Direção: Marcel L’Herbier
Cenografia – Alberto Cavalcanti – França (1922)
2 – L’Inondation * - Direção: Louis Delluc
Cenografia: Alberto Cavalcanti – França (1923)
3 – L’Inhumaine (Histoire féérique) * - Direção: Marcel L’Herbier
Cenografia: Alberto Cavalcanti, Fernand Leger, Claude Autant-Lara e Robert
Mallet Stevens – França (1923)
4 – La Galerie des monstres * - Direção: Jaque-Catelain
Assistência de Direção de Arte de Marcel L’Herbier: Alberto Cavalcanti – França
(1924)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
5 – Feu Mathias Pascal* - Direção: Marcel L’Herbier
Cenografia: Alberto Cavalcanti – França (1924 – 1925)
6 – The Little People* - Direção: George Pearson
Cenografia: Alberto Cavalcanti – Filme inglês rodado na França (1925)
7 - Le Petit Chaperon Rouge* – Direção: Alberto Cavalcanti
Cenografia: Alberto Cavalcanti – França (1929)
8 – The Gost of St. Michael’s* - Direção: Marcel Varnel
Consultor de Cenografia: Alberto Cavalcanti – Inglaterra (1941)
9 – Turned out nice again* - Direção: Marcel Varnel
Consultor de Cenografia: Alberto Cavalcanti – Inglaterra (1941)
Filmes como Assistente de Direção:
1 - Feu Mathias Pascal* - Direção: Marcel L’Herbier
– França (1924 – 1925)
Filmes como montador:
1 – Voyage ao Congo* - Direção: Marc Allégre
– França (1925-1926)
573
Como foi dito na tese, existem divergências recorrentes entre as fontes no que diz respeito aos
créditos dos filmes da trajetória de Cavalcanti. Sendo assim, na construção desta filmografia levei
em consideração mais de uma fonte, são elas : BFI – British Film Institute, catálogos de mostras,
revistas e publicações diversas, além dos créditos dos próprios filmes, e, finalmente, fontes
secundárias como o IMDB, na tentativa de me aproximar de um resultado o mais fidedigno
possível.
261
2 – Le Train sanx yeaux* - Direção Alberto Cavalcanti
– França (1926)
3 – Rien que les heures* - Direção Alberto Cavalcanti
– França (1926)
4 - Yvette * - Direção Alberto Cavalcanti
– França (1927)
5 – La P’tite Lilie* - Direção: Alberto Cavalcanti
França (1927)
6 – Le Captain Fracasse* – Direção: Alberto Cavalcanti França (1928)
7 - La Jalouisie du barbouillé * - Direção: Alberto Cavalcanti
França (1928)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
8 - Le Petit Chaperon Rouge* – Direção: Alberto Cavalcanti
– França (1929)
9 – Vous verrez la semaine prochaine * - Direção: Alberto Cavalcanti
França (1929)
10 – Au pays du scalp * - Direção: Marquis de Wavrin
França (1931)
11 - Pett and Pott (A Fairy story of the suburbs) * - Direção: Alberto Cavalcanti
Inglaterra (1934)
Filmes como Produtor na G.P.O. :
1 – S.O.S Radio Services* – GPO Film Unit (Versão Muda de North Sea, 1938) –
Inglaterra 1934
2 – Calendar of the year * - Direção: Evelyn Spice
Inglaterra (1934)
3 – Book Bargain * - Direção Norman McLaren
Inglaterra (1935)
4 – Big Money * - Direção Pat Jackson
Inglaterra (1935)
5 – BBC : The Voice of Britain* – Direção: Stuart Legg
Produção: Alberto Cavalcanti, John Grierson e Stuart legg – Inglaterra (1935)
6 – Rainbown Dance * - Direção: Len Lye
Produção: Alberto Cavalcanti e Basil Wright – Inglaterra (1936)
262
7 – Roadways * - Direção Ralph Elton
Inglaterra (1936)
8 – The Saving of Bill Blewitt* - Direção: Harry Watt
Inglaterra (1937)
9 – Mony a Pickle* - Direção: Norman McLaren
Inglaterra (1938)
10 – N or N.W. * - Direção: Len Lye
Inglaterra (1938)
11 – Happy in the morning* - Direção: Pat Jackson
Inglaterra: (1938)
12 – Forty Million People* - Direção: John Monck
Inglaterra(1938)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
13 – North Sea (Mar do Norte) - Direção: Harry Watt
Inglaterra (1938)
14 – Men in danger* - Direção: Pat Jackson
Inglaterra (1938)
15 – The City* - Direção: Ralph Elton
Inglaterra (1938)
16 – Love on the wing* - Direção: Norman McLaren
Inglaterra (1938)
17 – Speaking from America* - Direção: Humphrey Jennings
Inglaterra (1939)
18 – Spare Time* - Direção: Humphrey Jennings
Inglaterra (1939)
19 - The Tocher* - Direção: Lotte Reiniger
Inglaterra (1939)
20 – The H.P.O * - Direção: Lotte Reiniger
Inglaterra (1939)
21 – Oh Whiskers!* - Direção: Pickersgill
Inglaterra (1939)
22 – Squadron 992* – Direção: Harry Watt
Inglaterra (1939 – 1940)
23 – The First Days* - Direção: Humphrey Jennings
263
Inglaterra (1939 – 1940)
Filmes como produtor na Ealing:
24 – Men of the Lightships* - Direção: David McDonald
Inglaterra (1940)
25 – Kitten on the Quay* - Direção: Robert St. John Cooper
Inglaterra (1940)
26 – Young Veteran* - Diretor: Michael Frank
Inglaterra (1941)
27 – Mastery of sea* - Direção: Alberto Cavalcanti
Inglaterra (1941)
28 – The Big Blockade* - Direção: Charles Frend
Produção: Alberto Cavalcanti e Michael Balcon – Inglaterra (1941)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
29 – The Foreman went to France (Querer é poder) - Direção: Charles Frend
Produção: Alberto Cavalcanti e Michael Balcon – Inglaterra (1942)
30 – Greek Testament* - Direção: Charles Hasse
Produção: Michael Balcon e Alberto Cavalcanti - Inglaterra (1942)
31 – Find fix and strike* - Direção: Compton Bennet
Inglaterra (1943)
32 – The Halfway house* - Direção: Basil Dearden
Produção: Alberto Cavalcanti e Michael Balcon – Inglaterra (1943)
33 – The Captive Heart* – Direção: Basil Dearden
Inglaterra (1945-1946)
Filmes como Produtor na Vera Cruz:
34 – Caiçara – Direção: Adolfo Celli
Brasil (1950)
35 – Painel – Direção: Lima Barreto
Brasil (1950-1951)
36 – Santuário – Direção: Lima Barreto
Brasil (1951)
37 – Terra é sempre terra – Direção: Tom Payne
Brasil(1951)
264
38 – Angela – Direção: Abílio Pereira de Almeida e Tom Payne
Brasil (1951)
39 – Volta Redonda – Direção: John Waterhouse
Brasil (1952)
Filmes como produtor em outras produtoras brasileiras:
40 - – Simão o Caolho – Direção: Alberto Cavalcanti
Brasil (1952) Maristela Filmes e Alfredo Palácios
41 – Mulher de Verdade – Direção; Alberto Cavalcanti
Produção: Alberto Cavalcanti – Kino Filmes - Brasil (1954)
Filmes como Roteirista:
1 – Rien que les heures* - Direção Alberto Cavalcanti
– França (1926)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
2 – En Rade* - Direção: Alberto Cavalcanti
- França (1927)
3 – Yvette * - Direção Alberto Cavalcanti
– França (1927)
4 - La P’tite Lilie* - Direção: Alberto Cavalcanti
– França (1927)
5 - Le Captain Fracasse* – Direção: Alberto Cavalcanti Roteiro: Henri Wulcshleger e Alberto Cavalcanti - França (1928)
6 - La Jalouisie du barbouillé * - Direção: Alberto Cavalcanti
Roteiro: Lucien Aguettaind e Alberto Cavalcanti - França (1928)
7 – Paris La Belle (Souvenirs de Paris) – Direção: Marcel Duhamel e Pierre
Prevert – Paris (1928)
8 – Tire au Flac * - Direção: Jean Renoir
Roteiro: Jean Renoir, Claude Heymann, Andre Cerf e Alberto Cavalcanti - França
(1928)
9 – Le Petit Chaperon Rouge* – Direção: Alberto Cavalcanti
Roteiro: Jean Renoir e Alberto Cavalcanti – França (1929)
10 - Vous verrez la semaine prochaine * - Direção: Alberto Cavalcanti
França (1929)
11 - A mi-chemain du ciel* - Direção: Alberto Cavalcanti
França (1930)
265
12 – Le vacance du diable* - Direção: Alberto Cavalcanti
França (1930)
13 - Le truc du brésilien (O tio da América) – Direção: Alberto Cavalcanti
França (1932)
14 - Plasir Défendus* - Direção: Alberto Cavalcanti
França (1933)
15 – Coralie et cie* - Direção: Alberto Cavalcanti
França (1933)
16 – Tour de chant * - Direção: Alberto Cavalcanti
França (1933)
17 – Votre sourire * - Direção: Monty Banks e Pierre Caron
França (1934)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
18 - Pett and Pott (A Fairy story of the suburbs) * - Direção: Alberto Cavalcanti
Inglaterra (1934)
19 - CoalFace* - Direção: Alberto Cavalcanti
Inglaterra (1936)
20 – Line to Tcherva Hut* - Direção: Alberto Cavalcanti
Inglaterra (1936)
21 - Who writes to Switzerland?* - Direção: Alberto Cavalcanti
Inglaterra (1937)
22 – Message from Geneva* - Direção: Alberto Cavalcanti
Inglaterra – Suíça (1936)
23 - Four Barriers* - Direção: Alberto Cavalcanti
Inglaterra (1936)
24 - Happy in the morning* - Direção: Pat Jackson
Inglaterra: (1938)
25 - North Sea (Mar do Norte) - Direção: Harry Watt
Inglaterra (1938)
26 – Watertight* - Direção: Alberto Cavalcanti
Inglaterra (1943)
40 - Simão o Caolho – Direção: Alberto Cavalcanti
Brasil (1952)
266
41 – O Canto do Mar – Direção: Alberto Cavalcanti
Roteiro: Alberto Cavalcanti, Hermilo Borba Filho e José Mauro Vasconcelos –
Brasil (1953 e 1954)
42 - Herr Puntilla und sein knetch Matti (Senhor Puntilla e seu criado Matti) –
Direção: Alberto Cavalcanti - Brasil (1955)
Roteiro: Alberto Cavalcanti, Vladimir Pozner e Ruth Wieden a partir da peça
original de Bertolt Brecht.
Filmes como Supervisor de Som:
1 – Song of Ceylon* – Direção Basil Wright – Inglaterra (1934)
2 – Night Mail * – Direção: Harry Watt e Basil Wright
Inglaterra (1936)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
3 - CoalFace* - Direção: Alberto Cavalcanti
Inglaterra (1936)
Filmes como autor de trilha Sonora:
1 -En Rade* - Direção: Alberto Cavalcanti
Música: Yves de la Casiniere e Alberto Cavalcanti
Filmes como Supervisor do projeto:
1 – Die Windrose ( A Rosa dos Ventos) – Direção: Joris Ivens, Alex Viany,
Serguei Guerassimov, Yannick Belon, Gillo Pontecorvo, Wo Kuo-Win República Democrática Alemã (1956)
Filmes como diretor:
1 – Le Train sanx yeux * - França (1926)
2 – Rien que les heures* - França (1926)
3 – En Rade * - França (1927)
4 - Yvette * - França (1927)
5 - La P’tite Lilie* - França (1927)
6 – Le Captain Fracasse* – França (1928)
7 – La Jalouisie du barbouillé * - França (1928)
8 - Le Petit Chaperon Rouge* – Direção: Alberto Cavalcanti – França (1929)
267
10 - Vous verrez la semaine prochaine * - França (1929)
11 – Toute sa vie * - França (1930)
12 – A mi-chemain du ciel* – França (1930)
13 - Le vacance du diable* - França (1930)
14 – Dans une île perdue * - França (1931)
15 – Le lisant le journal * - França (1932)
16 – Le jour du Frotteur* - França (1932)
17 – Revue Montmartroise * - França (1932)
18 – Nous ne ferons jamais de cinema* - França (1932)
19 – Le truc du brésilien (O tio da América) – França (1932)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
20 – Le Mari Garçon * - França (1933)
21 – Plasir Défendus* - França (1933)
22 – Coralie et cie* - França (1933)
23 – Tour de chant * - França (1933)
24 – Pett and Pott (A Fairy story of the suburbs) * - Inglaterra (1934)
25 – New Rates (Glorious Six of June) * - Inglaterra (1934)
26 – CoalFace* - Inglaterra (1936)
27 - Line to Tcherva Hut* - Inglaterra (1936)
28 – We live in two worlds* - Inglaterra (1937)
29 – Who writes to Switzerland?* - Inglaterra (1937)
30 - Message from Geneva* - Inglaterra – Suíça (1936)
31 – Four Barriers* - Inglaterra (1936)
32 – Alice in Switzerland / Alice au pays romand *
Suíça e Inglaterra (1938 – 1942)
33 – Men of the Alps* - Inglaterra e Suíça (1939)
34 – Midsummer day’s work *– Inglaterra (1939)
268
35 – Film and reality (Filme e Realidade) – Inglaterra (1939 – 1942)
36 – Yellow Caesar* - Inglaterra (1941)
37 - Mastery of sea* - Inglaterra (1941)
38 – Trois chan pour la France* - Produção do Q.G do General de Gaulle
França(1942)
39 - Went the day well (48 Horas) – Inglaterra (1942)
40 – Watertight* – Inglaterra (1943)
41 – Champagne Charlie* - Inglaterra (1944)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
42 – Dead of Night (Na solidão da noite) Inglaterra (1945)
Direção conjunta com: Robert Hamer, Basil Dearden, Charles Chicton, com
supervisão geral de Alberto Cavalcanti. Os episódios dirigidos por Cavalcanti são:
The Christmas story e The Ventriloquist’Dummy.
43 – The life and adventures of Nicholas Nickleby (As aventuras de Nicolas
Nickleby) – Inglaterra (1946)
44 – They made me a fugitive (Nas garras da fatalidade) – Inglaterra (1946-1947)
45 – The first gentleman (O príncipe regent) – Inglaterra (1947)
46 – For the m that trespass (O Transgressor) – Inglaterra (1948)
47 – Simão o Caolho – Brasil (1952)
48 – O Canto do Mar – Brasil (1953 e 1954)
49 – Mulher de Verdade – Brasil (1954)
50 – Herr Puntilla und sein knetch Matti (Senhor Puntilla e seu criado Matti) –
República Democrática Alemã (1955)
51 – La Prima Notte* - Itália (1958)
52 – The Monster of hightate ponds* - Inglaterra (1960)
53 – Um Homem e o cinema – Brasil (1976)
54 – O Dr. Judeu (projeto inacabado) – Brasil (1977-1979)
Produções dirigidas para a televisão:
1 – Les Empailles* – França (1969)
269
2 – La visiste de la vielle dame* – França (1970)
3 – Le voyageur du silence* - França (1975-1976)
Legenda:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
* Não existe título em português
7.
Referências bibliográficas
AITKEN, Ian. Alberto Cavalcanti: realism, surrealism and national cinemas
Trowbridge, Wiltshire: Flicks Books, 2000.
___________. Distraction and redemption:
phenomenology, London: Screen , 1998.
Kracauer,
surrealism
and
___________. Film and Reform - John Grierson and the Documentary Film
Movement. London: Routledge and Kegan Paul,1990.
Alberto Cavalcanti – Um Brasileiro Cineasta do Mundo – Catálogo da Mostra
realizada na Cinemateca do MAM– uma realização do SESC e da Secretaria do
Audiovisual do Ministério da Cultura. 2005.
ALLEN, Jessica; LIVINGSTONE, Sonia; REINER, Robert. True lies: Changing
images of crime in British postwar cinema. European Journal of Communication,
v. 13, n. 1, p. 53-75, 1998.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
ANTHONY, Scott. Night Mail London: BFI, 2007.
ARAÚJO, Vicente de Paula. A bela época do cinema brasileiro. São Paulo:
Perspectiva, 1976.
ARMES, Roy. A Critical History of the British Cinema New York: Oxford
University Press, 1978.
AUMONT, Jacques A estética do filme. Campinas (SP): Papiru Editora, 1995.
___________. O olho interminável. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
AUTY, Martyn; RODDICK, Nick. British Cinema Now. London: BFI, 1985.
AZEREDO, Ely. Infinito cinema. Rio de Janeiro:Unilivros, 1988.
___________. Revista Filme e Cultura, n. 1 (1966)
BARNES, John. The Beginnings of the Cinema in England:(by) John Barnes.
London: David and Charles, 1976.
BARNOUW, Erik, Documentary: A History of the Non-Fiction Film, London,
Oxford University Press, 1983.
BARR, Charles. Ealing Studios, Woodstock, NY: Overlook Press, 1980.
BARTZ, Carla Dórea. Coal Face, um filme de Alberto Cavalcanti. Tese de
Doutorado. Universidade de São Paulo (2003).
BAZIN, André. What is Cinema? Volume II. Berkeley. 1971.
271
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: obras escolhidas. São
Paulo: Brasiliense, 2011.
BERNADET, Jean-Claude. A migração das imagens. In: TEIXEIRA, Francisco
Elinaldo (org.). Documentário no Brasil - Tradição e Transformação. São Paulo:
Summus Editorial, 2004.
___________. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Companhia das Letras,
2003.
BERRIEL, Carlos Eduardo Ornelas (Org.). Carlos Ortiz e o cinema brasileiro na
década de 50. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1981.
BOTELHO, João e VIEGASE, Manuela (org e autoria): O cinema realista
britânico – Journey to a legend and back. Lisboa: Cinemateca Nacional, 1978.
BOTTOMORE, Stephen. Introduction: Early British Cinema. Film History, p. 391, 2004.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
CALDIERI, Sérgio. Alberto Cavalcanti o cineasta do mundo. Rio de Janeiro (RJ):
Editora Teatral, 2005.
___________. Antonio José o judeu traz de volta o velho cineasta , Tribuna da
Imprensa de 17/06/1980.
CALIL, Carlos Augusto. A Vera Cruz e o mito do cinema industrial. In: Projeto
Memória Vera Cruz. São Paulo, Secretaria de Estado da Cultura / Museu da
Imagem e do Som, 1987.
___________. Vinícius de Moraes: O cinema de meus olhos. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.
CAMERON, Ken, Sound and the Documentary Film. London: Sir Isaac Pitman
and Sons, 1947.
CATANI, Afrânio Mendes. A sombra da outra - A Cinematográfica Maristela e o
cinema industrial paulista nos anos 50. São Paulo: Panorama, 2002.
CAVALCANTI, Alberto. Filme e Realidade. Rio de Janeiro: Embrafilme. 1977.
___________. Super 8 Todos querem ser diretores (Entrevista concedida à
Agacine durante o Festival de Cinema de Gramado (sem data).
CHAPMAN, James. Past and present: national identity and the British historical
film. New York: I.B., 2005.
___________. The British at war: cinema, state, and propaganda, 1939-1945.
New York, N.Y.: I.B. Tauris Publishers, 1998.
272
___________. The true business of the British movie? A Matter of Life and Death
and British film culture. Screen, v. 46, n. 1, p. 33-49, 2005.
CHARNEY, Leo e SCHWARTZ Vanessa R. (orgs) O cinema e a invenção da
vida moderna. São Paulo: Cosac Naif, 1995.
CHIBNALL, Steve. and MURPHY Robert, eds., British Crime Cinema. London:
Routledge, 1999.
___________. and PETLEY Julian, eds., British Horror Cinema. London:
Routledge, 2001.
___________. Quota Quickies: The Birth of the British 'B' Film. London: BFI,
2007.
Cinema Britânico (Catálogo de Mostra) – Cinemateca Brasileira 1963 Ed Massao
Ohno São Paulo – SP.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
Cinemais, revista de cinema e outras questões audiovisuais. Dois números sobre
documentário: no.8, nov. -Dez.1997 e no. 36, jan. -Fev. 2004.
Cinemin nr. 48 Rio de Janeiro (RJ): Editora Brasil América, (Out – Nov) 1988.
COELHO Amanda de Freitas Le décor de cinéma ou la musique pétrifiée :
Alberto Cavalcanti à l'ombre d'Eisenstein, Universidade Paris-Sorbonne, Paris
2014, vol. III, 135 páginas.
COOK, Pam. "Memory in British Cinema: Brief Encounters." In: Screening the
past: memory and nostalgia in cinema New York: Routledge, 2005.
CORPAS, Danielle. Variações sobre um filme sinfonia na crítica de Siegfried Kracauer
http://www.herramienta.com.ar/coloquios-y-seminarios/variacoes-sobre-um-filmesinfonia-na-critica-de-siegfried-kracauer.
COULTASS, Clive. Images for battle: British film and the Second World War,
1939-1945. Newark: University of Delaware Press, 1989.
COUTINHO Mario Alves André Bazin – O realismo impossível. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2016.
CUNNINGHAM, John: The Avant-garde, the GPO Film Unit, and British
Documentary in the 1930’s. London: Eger Journal of English Studies VIII, 2008.
p. 153–167.
DANISCHEWSKY, M. (org) Michael Balcon’s 25 years in film. London: World
Film Publications, 1947.
DA-RIN, Silvio. Espelho Partido - Tradição e Transformação do Documentário.
Rio de Janeiro, Azougue Editorial, 2004.
273
DELEUZE, Gilles. A imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985.
___________. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.
___________. Conversações (1972-1990). Rio de Janeiro: Ed. 34, 2010.
DUDLEY, J. Andrew As principais teorias do cinema uma introdução. Rio de Janeiro
(RJ): Editora Jorge Zahar, 1989.
DUGUID, Mark, FREEMAN Lee, JOHNSTON Keith M. e WILLIANMS
Melaine (editores) Ealing Revisited London: BFI, 2012.
DUPIN, Christophe. The postwar transformation of the British Film Institute and
its impact on the development of a national film culture in Britain. Screen, v. 47,
n. 4, p. 443-451, Winter 2006.
EYLES, Allen. Gaumont British cinemas, London: BFI 1996.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
FABRIS, Mariarosaria. A questão realista no cinema brasileiro: aportes
neorrealistas. Alceu, v. 8, n. 15, 2007.
___________. O neo-realismo cinematográfico italiano. São Paulo: Edusp
Fapesp, 1996.
Filmiliga, 12 de agosto de 1928, p. 10-11 (Amsterdã) Junho de 1930 p. 5-6,
reeditada pela Arno Press, Nova York em 1969.
GALVÃO, Maria Rita. Burguesia e cinema: o caso Vera Cruz. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1981.
GAUTHIER, Guy. O documentário – um outro cinema. São Paulo: Papirus
Editora, 2008.
GILLETT, Philip. The British working class in postwar film. Manchester:
University Press, 2003.
GLEDHILL, Christine. Play as experiment in 1920s British cinema. Film History:
An International Journal, v. 20, n. 1, p. 14-34, 2008.
GODARD, Jean-Luc in Segundo Caderno – jornal O Globo – Rio de Janeiro
26/08/2008.
GOMES, Paulo Emílio Salles. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Rio de
Janeiro: Paz e Terra / Embrafilme, 1980.
___________. Crítica de cinema no Suplemento Literário. Rio de Janeiro: Paz e
Terra / Embrafilme, 1982.
___________. Jean Vigo. Rio de Janeiro (RJ): Paz e Terra, 1984.
274
GONZAGA, Adhemar e GOMES, Paulo Emílio Salles. 70 anos de cinema
brasileiro. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1966.
GRIERSON, John. Grierson on documentary. HARDY Forsyth (ed) London:
Faber and Faber, 1979.
HARDY, Forsythe (ed). Grierson on Documentary. London: Faber & Faber,
1966.
HARPER, Sue; PORTER, Vincent. Moved to tears: weeping in the cinema in
postwar Britain. Screen, v. 37, n. 2, p. 152-173, 1996.
HILL, John. Government policy and the British film industry 1979-90. European
Journal of Communication, v. 8, n. 2, p. 203-224, 1993.
HODGKINSON, Anthony and Rodney Sheratsky Humphrey Jennings: More than
a Maker of Films. Hanover: University Press of New England, 1982.
HOUSTON, Penelope. Went the Day Well? London: BFI, 1992.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
JACKSON, Kevin. Humphrey Jennings. London: Picador, 2004.
JACOBS Lewis The Documentary Tradition. NY: W. W. Norton & Company,
1979
JONES, Stephen G. The British Labour Movement and Film, 1918-1939. London:
Routledge and Kegan Paul, 1987.
Jornal Tribuna da Imprensa 17/06/1980
KRACAUER, Siegfried. O ornamento das massas. São Paulo: Cosac Naif. 2009.
___________. Theory of film. London: Oxford University Press, 1965.
LABAKI, Amir. (org) A verdade de cada um. São Paulo: Cosac Naif, 2015.
___________. Introdução ao documentário brasileiro. São Paulo (SP): Editora
Francis, 2006.
LAY, Samantha. British Social Realism: From Documentary to Brit Grit.
London: Wallflower Press 2002.
LEACH, Jim. British Film. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.
LINS, Consuelo. O Documentário de Eduardo Coutinho - Televisão, Cinema e
Vídeo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
LOW, Rachael. Documentary and Educational Films of the 1930s. London:
George Allen & Unwin.
275
MACHADO Álvaro, Rogério Sganzerla fala da guerra da TV contra o cinema
2004. (grifos do autor). Disponível
em<:http://www.revistatropico.com.br/tropico/html/textos/715,1.shl> Acesso em:
27/12/2017.
MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas & pós-cinemas. Campinas (SP): Papirus
Editora, 2007.
MACPHERSON, Don; WILLEMEN, Paul. Traditions of independence: British
cinema in the thirties. London: BFI Publishing, 1980.
MATTOS, Carlos Alberto. Eduardo Coutinho - O homem que caiu na real.
Portugal, Festival de Cinema Luso Brasileiro de Santa Maria da Feira, 2004.
MIGLIORIN, Cezar (org). Ensaios no Real – O documentário brasileiro hoje, Rio
de Janeiro: Azougue Editorial, 2010.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
MILLER, Laurence. Evidence for a British" Film Noir" Cycle. Film Criticism, v.
16, n. 1/2, p. 42-51, 1991.
MIRANDA, Luiz F. Dicionário de cineastas brasileiros. São Paulo: Art
Editora/Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, 1990. p.65-7.
MOURÃO, Maria Dora. LABAKI, Amir (org.). O cinema do real. São Paulo:
Cosac Naify, 2005.
MURPHY, R. P. The British cinema book. British Film Institute, 2009.
MURPHY, Robert. British cinema and the Second World War. London; New
York: Continuum, 2000.
___________. Realism and tinsel: cinema and society in Britain, 1939-1949. New
York: Routledge, 1989.
NEELY, Sarah. Scotland, heritage and devolving British cinema. Screen, v. 46, n.
2, p. 241-246, 2005.
NEVES, David. Cinema Novo no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1966.
NORONHA, Linduarte. Da alegria de Aruanda ao absurdo da câmera russa.
Cinemais, Rio de Janeiro, n. 22, mar. abr. 2000.
O canto do mar. Piauí, 18 de outubro de 2012. Disponível
em:<http://piaui.folha.uol.com.br/o-canto-do-mar/>. Acesso em: 27/12/2017.
ORBANZ, Eva. Journey to a Legend and Back: The British Realistic Film. New
York: Zoetrope, 1981.
PELLIZZARI, Lorenzo; VALENTINETTI, Claudio M. Alberto Cavalcanti.
Editions du Festival international du film de Locarno, 1995.
276
PERRRY, George. Forever Ealing. London: Pavilion, 1981.
PETRIE, Duncan J. A brief history of British cinematography. American
Cinematographer. v. 80 n. 12, December 1999. p. 86-8.
PIERRE, Sylvie. O Cinema Novo e o Modernismo. Cinemais, Rio de Janeiro, n.6,
jul-ago 1997.
Primavera de 1934, p. 166-168, co-autor Start Legg. Tradução alemã: Ethik für
den film, em Klaue 1962, p. 95-97.
RAMOS, Fernão (Org.). História do cinema brasileiro. São Paulo: Art Ed., 1987.
P399-454.
___________. Cinema verdade no Brasil. In: TEIXEIRA, Francisco Elinaldo
(org.). Documentário no Brasil - Tradição e Transformação. São Paulo, Summus
Editorial, 2004.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
RAMOS, José Mário Ortiz. O cinema brasileiro contemporâneo (1970-1987). In:
RENOIR Jean Escritos sobre cinema – 1926 -1971 São Paulo: Nova Fronteira São Paulo
(SP) 1990.
RICHARDS, Jeffrey, The Age of the Dream Palace: Cinema and Society in
Britain 1930-1939. London: Routledge and Kegan Paul, 1984.
___________. Cinemagoing in Worktown: regional film audiences in 1930s
Britain. Historical Journal of Film, Radio and Television, v. 14, n. 2, p. 147-166,
1994.
ROCHA, Glauber. Revisão Crítica do Cinema Brasileiro. São Paulo: Cosac Naif ,
2003.
___________. Revolução no Cinema Novo. Rio de Janeiro: Ed. Alhambra, 1981.
ROTHA, Paul. Documentary Film. London: Faber and Faber, 1936.
___________. Documentary filme: The use of film as médium to interpret
creatively and in social terms th life of people as it exists in reality. London: Faber
and Faber, 1966.
SARGEANT, Amy (Ed.). British Historical Cinema: The History, Heritage, and
Costume Film. London: Routledge, 2002.
Segundo Caderno Jornal O Globo – 26/08/08 p.10.
SGANZERLA, Rogério. Por um cinema sem limite. Rio de Janeiro: Azougue, 2001
277
STAFFORD, Roy. ‘What’s Showing at the Gaumont?’: Rethinking the Study of
British Cinema in the 1950s. Journal of Popular British Cinema, v. 4, p. 95-111,
2001.
STAM, Robert. (ed.). Brasilian
UniversityPresses, 1982. p. 306-27.
Cinema.
East
Brunswick:
Associated
___________. Introdução à teoria do cinema. Campinas (SP): Papirus Editora,
2006.
___________. On the Margins: Brazilian Avant-Garde Cinema. Brazilian
Cinema, p. 306-327, 1982.
STAM, Robert; XAVIER, Ismail. Brasilian Avant-Garde: Metacinema in the
Tristestropiques. Milenium Film Journal, New York, spring, 1980. p. 82-9.
SUSSEX, Elizabeth. The Rise and Fall of British Documentary. Berkeley:
University of California Press, 1975.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
SWANN, Paul. The British Documentary Film Movement, 1926-1946.
Cambridge: Cambridge University Press, 1989.
___________. The Hollywood feature film in postwar Britain (London;
Wolfeboro, N.H.: Croom Helm, 1987.
TEIXEIRA, Francisco Elinaldo. (Org.) Documentário no Brasil - Tradição e
Transformação. São Paulo: Summus Editorial, 2004.
VALENTINETTI, Claudio M. Um canto, um judeu e algumas cartas. Rio de
Janeiro: Instituto Lina Bo e P.M. Bardi Cinemateca do MAM, 1997.
VELOSO, Geraldo. O cinema atavés de mim – a longa trajetória d Theobaldo
Odisseu de Almeida. Belo Horizonte: CEC Centro de Estudos Cinematográficos,
2015.
VIANY, Alex. Introdução ao cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto
Nacional do Livro, 1959.
VIANY, Alex. O processo do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999.
VIEIRA João Luiz. A reflexividade na tela. Cinemais, Rio de Janeiro, n. 30, jul.
Ago. 2001.
WINSTON, Brian. Claiming the Real: The Griersonian Documentary and its
Limitations. London, BFI Publishing, 1995.
___________. Lies, Damn Lies and Documentaries. London: BFI Publishing,
2000.
WRIGHT, Basil, The Long View. London: Secker and Warburg, 1974.
278
XAVIER, Ismail. (Org.). A experiência do cinema. Rio de Janeiro:
Graal/Embrafilme, 1983.
___________. Alegorias do subdesenvolvimento: Cinema Novo, Tropicália e
Cinema Marginal. São Paulo: Brasiliense, 1993.
___________. O cinema no século. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
___________. O discurso cinematográfico: opacidade e a transparência. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1977.
Websites
http:// www.bfi.or.uk
http://39.mostra.org/br/diretores/740-ALBERTO-CAVALCANTI.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
http://40.mostra.org/br/filme/3100-Filme-e-Realidade.
http://articles.latimes.com/1994-09-11/books/bk-37034_1_jean-renoir.
http://dreamsandvisions.squarespace.com/journal/2016/8/30/andre-bazin-oncatherine-hessling-and-renoirs-silent-films.html.
http://piaui.folha.uol.com.br/o-canto-do-mar/.
http://repec.org/mmfc03/Blancheton.pdf. - Blancheton Betrand, French Exchange
rate management in the mid 1920’s lessons drawn from news evidences Department of Economic History Bordeaux IV-Montesquieu University,
http://revistaalceu.com.puc-rio.br/media/Alceu_n15_Fabris.pdf p.6.
http://rollingstone.uol.com.br/noticia/martin-scorsese-elege-os-onze-filmes-maisassustadores-da-historia
http://www.britmovie.co.uk/history/bdm.html British documentary overviewew fit
from critical scrutiny in the light of recent research
http://www.channel4.com/fourdocs/guides/documentary_history.html
short history of the British documentary
A
very
http://www.dfgdocs.com/ British Documentary website
http://www.documentaryfilms.net/festivals.htm Directory of documentary film
festivals
http://www.imdb.com/title/tt0017925/
279
http://www.maristelafilmes.com.br/.
http://www.oxdox.com/ Oxford International Documentary Festival
http://www.recantodasletras.com.br/ensaios/2461955
http://www.revistatropico.com.br/tropico/html/textos/715,1.shl
http://www.screenonline.org.uk/film/id/446186/ Screen Online essay on British
documentary
http://www.viniciusdemoraes.com.br/es/cine/alberto-cavalcanti-e-o-inc-ii.
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/especial/bio/biosalles.htm.
https://carmattos.com/2017/03/28/35-anos-sem-cavalcanti/.
https://sheffdocfest.com/ Sheffield Documentary Festival
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
https://www.theguardian.com/film/2005/jul/13/features.features11
www.lafuriaumana.it/index.php/56-archive/lfu-23/327-amanda-de-freitas-coelh-poesiaem-imagens-sobre-o-cinema-de-alberto-cavalcanti
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
APÊNDICES
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1413489/CA
281
Apêndice 1: Reprodução de carta enviada pelo cineasta Costa Gavras, a Sérgio Caldieri, sobre o
livro Alberto Cavalcanti Cineasta do Mundo - Data: 12 de dezembro de 2011.
Original em francês - Tradução: Caro Sérgio Caldieri, eu te escrevo com considerável atraso, peço
que me desculpe. Eu li (com a ajuda de um dicionário) e gostei muito do seu livro sobre Alberto
Cavalcanti. Nós estudamos a sua obra no IDHEL, escola de cinema, e eu recuperei durante a
leitura de O cineasta do mundo, uma emoção do "estudante" de outrora. Muito obrigada por me
trazer este sentimento. Atenciosamente, Costa Gavras.