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Volume 20 | Número 3 | set-dez/2021
Edição eletrônica
DOI: 10.5335/srph.v20i3.13147
ISSN: 2763-8804
Organização
Jênifer de Brum Palmeiras
Tiara Cristina Pimentel dos Santos
Digitalização do patrimônio cultural:
uma conversa com Carolina Machado Guedes 1
Entrevista concedida a:
Cleberson Henrique de Moura 2
Alex da Silva Martire 3
Amanda Daltro de Viveiros Pina 4
Tomás Partiti Cafagne 5
Matheus Morais Cruz 6
1
Esta entrevista foi realizada no dia 25 de junho de 2020 de forma remota. Originalmente, foi realizada em formato
de vídeo e publicada na plataforma YouTube (conforme disponível em https://youtu.be/nn6O4KV4gjk). O texto
aqui apresentado resulta de um trabalho de transcrição e textualização a partir das falas originais, de modo a
transformar a presente entrevista, sob a forma de texto, em um outro produto documental.
2
Licenciando em Pedagogia pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP) e servidor
técnico do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP). E-mail:
[email protected].
3
Pós-doutorando em Arqueologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutor e Mestre em
Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP). E-mail:
[email protected].
4
Doutoranda em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP).
Mestra em Antropologia com ênfase em Arqueologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail:
[email protected].
5
Mestre em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP).
Graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). E-mail:
[email protected].
6
Mestrando em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP).
Graduado em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
(FFLCH-USP). E-mail:
[email protected].
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Referência
MOURA, Cleberson Henrique de, MARTIREI, Alex da Silva, VIVEIROS PINA, Amanda Daltro
de, CAFAGNE, Tomás Partiti, CRUZ, Matheus Morais. Digitalização do patrimônio cultural: Uma
conversa com Carolina Machado Guedes. Revista Semina, Passo Fundo, vol. 20, n. 3, p. 195-205,
set-dez/2021. Semestral.
Recebido em: 15/11/2021 | Aprovado em: 30/11/2021 | Publicado em: 28/12/2021
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C
omo parte de um trabalho de difusão de conhecimento no campo da História e
Arqueologia, sob a perspectiva das Humanas Digitais, o grupo de pesquisa ARISE
(Arqueologia Interativa e Simulações Eletrônicas), criado em 2017 no âmbito do
Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), apresenta a
entrevista concedida pela arqueóloga e especialista em arqueologia digital Carolina Machado
Guedes, docente da Universidade Metropolitana de Santos (UNIMES) e professora
convidada da Universidade de Santo Amaro (UNISA). Nesta conversa, compartilha suas
experiências com o desenvolvimento de pesquisas nas áreas de arqueologia pré-colombiana,
arte rupestre paleolítica e arqueologia mediterrânica, além das áreas mais voltadas para o
mundo digital como fotogrametria, modelagem 3D e reconstrução virtual aplicada ao
patrimônio arqueológico.
Entrevista
[Entrevistadores]: Professora Carolina, você poderia nos contar um pouco sobre a sua
carreira acadêmica e como surgiu o seu interesse em estudar arqueologia digital?
[Carolina Guedes]: Bom, a minha carreira é bastante diversificada. Eu acho que ela foi e
ainda é construída em cima dessa experiência variada com diferentes áreas da Arqueologia,
um aprendizado importante e multitemático, digamos. Hoje, eu tenho um foco bastante
voltado para o estudo do que eu chamo de comportamento simbólico dos grupos précoloniais. Mais particularmente, a arte rupestre e a arte mobiliar (arte móvel). Mas eu
comecei trabalhando, no mestrado, com arqueologia do Mediterrâneo Antigo. Depois, eu
mudei minha área e meu objetivo de pesquisa, no doutorado, e comecei oficialmente a
trabalhar com comportamentos simbólicos desses grupos pré-coloniais trabalhando em
contextos de arte rupestre. A minha primeira experiência de campo de arte rupestre foi em
Alagoas, em que eu participei de um trabalho com a empresa Zanettini Arqueologia. Com
esses sítios, em Alagoas, eu trabalhei na minha tese de doutorado também. Trabalhei também
no estado do Mato Grosso sob orientação do Denis Vialou e da Agueda Vilhena Vialou. Nessa
região do Mato Grosso, estamos ainda com uma equipe trabalhando lá, em um longo projeto
de pesquisa que elaboramos com um eixo principal voltado para a arte. É uma pesquisa
bastante interessante, que daremos continuidade. Já estamos trabalhando nesta pesquisa há
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3 anos, e daremos continuidade com um novo projeto de pesquisa com outros colaboradores
e colegas. Durante meu doutorado eu comecei a fazer diversos cursos à distância na
Universidade de Burgos, na Espanha. Foi então quando eu tive meu primeiro contato com
esse universo digital, contato com a arqueologia digital. A partir disso, eu comecei a me
interessar mais por esse uso dessa ferramenta na pesquisa arqueológica. Daí fiz meu pósdoutorado no MAE-USP com a supervisão da Profa. Dra. Verônica Wesolowski. Eu trabalhei
com os zoólitos, envolvendo algumas questões relacionadas à análise dos zoólitos, sendo
uma delas a aplicação da fotogrametria como ferramenta nessa coleção do MAE-USP
primeiramente, e, depois, incluindo a coleção do Museu Nacional do Rio de Janeiro (MNUFRJ) e do Museu Arqueológico de Sambaqui de Joinville (MASJ). A partir disso, eu comecei
a abrir esse importante leque que o trabalho com a arqueologia digital possibilita. Eu tenho
uma área com foco específico de pesquisa, mas também posso abrir meu trabalho para
compartilhar e colaborar com outros colegas em outras regiões e outras áreas que não são a
minha especialidade principal, mas que têm a oportunidade de aplicar métodos em áreas
diferentes e distintas. Eu comecei colaborando no contexto da Grécia, em Mália, na Ilha de
Creta, com o Prof. Dr. Álvaro Hashizume Allegrette da PUC de São Paulo e na ilha de Delos,
também na Grécia, com o Prof. Dr. Gilberto da Silva Francisco da UNIFESP. Além disso, na
Universidade Metropolitana de Santos (UNIMES) abrimos o laboratório de arqueologia
digital (LADIG) onde inserimos os alunos de graduação em Arqueologia nesses trabalhos do
universo digital para que eles possam aprender a dominar essa ferramenta e inseri-la nas
pesquisas arqueológicas. Acredito que é um percurso bastante variado, mas que ao longo do
caminho eu fui construindo focos específicos, podendo ser sintetizado na arqueologia digital
de uma maneira geral e esse foco no comportamento simbólico e a arte rupestre no contexto
pré-colonial brasileiro.
[Entrevistadores]: A sua tese aborda a arte rupestre e o seu atual projeto envolve big data
em Arqueologia. Qual seria a relação entre esses assuntos? Como que esse projeto está se
desenvolvendo?
[Carolina Guedes]: Na verdade, estamos escrevendo esse projeto no momento. A ideia
desse projeto envolvendo inteligência artificial surgiu a partir de uma chamada da Próreitoria de Pesquisa da USP para financiar pesquisas no universo de ciências que se
utilizassem das chamadas tecnologias inteligentes. É importante dizer que, na verdade, essa
chamada é um financiamento para elaboração de um projeto. Portanto, estamos finalizando
a elaboração/escrita desse projeto. Depois disso, buscaremos outras formas de
financiamento. Com essa chamada, nós criamos uma proposta que pudesse unir o uso de big
data e visão computacional, com ênfase para esta última, que, na realidade, é uma das
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tecnologias potencialmente mais revolucionárias das ciências computacionais. A
pesquisadora Fei-Fei Li, coordenadora do Laboratório de Visão e Aprendizado de Máquinas
(Stanford Vision and Learning Lab - SVL) 7, diz que esta é uma área com um potencial
extremamente revolucionário e, por isso, extremamente complexo e difícil. Enfim, a ideia é
unir a área da inteligência artificial com as pesquisas arqueológicas. Daí surgiu a ideia desse
projeto que se chama "Big data em Arqueologia: uma abordagem com sistemas neurais
profundos em arte rupestre". O que é este projeto? Um sítio rupestre é uma construção
simbólica, uma construção complexa e organizada. Organizada de uma forma que, para nós,
é extremamente abstrata, mas para quem construiu teve um sentido e um significado. Para
nós, observadores atuais e contemporâneos, não parece organizado, parece uma confusão
de pinturas e desenho. Essa organização dentro do sítio é feita através da correlação entre
as diversas unidades gráficas (pinturas, desenhos e as gravuras) presentes em um sítio,
organizadas em uma parede, um suporte rochoso. Então, é a partir dessa relação da
organização dessas unidades que se dá a construção do sentido desse espaço ornado, que se
dá a construção dessa mensagem, dessa narrativa que foi pintada e gravada por aqueles
grupos antigos. Então, essa organização complexa pode ser compreendida em termos de
gramática visuais estruturadas. Essa "gramática" se dá através dessa correlação das distintas
unidades gráficas, diferentes pinturas e desenhos. Um sentido é criado a partir dessa
construção, dessa organização. É através da análise dessas diversas unidades/pinturas
presentes em um ou diversos sítios rupestres espalhados por uma região específica ou por
polos específicos é que podemos compreender, por exemplo, questões sobre padrão de
ocupação desses espaços. Podemos compreender esses padrões através de uma leitura
sistemática dos painéis rupestres buscando elementos como, por exemplo, repetição de
estilos, repetição de figuras, repetição de uma organização específica do espaço ornado.
Assim, nesse contexto rupestre, nossa proposta é usar as ferramentas inteligentes, como
aprendizado de máquina e a visão computacional - que sabemos que será o grande desafio
desta pesquisa - para sistematizar de maneira inteligente esse tipo bastante específico de
dado; tendo como elemento principal, por exemplo, a identificação das tipologias específicas
registradas. Por exemplo, pinturas geométricas, círculos, pontos, traços. Investigar a
tipologia. Através da identificação desses elementos que foram pintados e gravados, esse
sistema inteligente nos ajudará a entender a organização deste espaço e sugerir, por
exemplo, padrões de ocupação. Na elaboração deste projeto nós contamos com uma equipe
diversificada incluindo professores do MAE-USP com diversos backgrounds, professores da
Física, que construirão essa ferramenta mediante um diálogo constante conosco, e
professores do Museu de História Natural de Paris, na França, que fazem parte da minha vida
7
C.f. http://svl.stanford.edu/.
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acadêmica - eu me formei com eles (Denis Vialou, Agueda Vilhena Vialou e Patrick Paillet),
então estarão sempre presentes em toda minha trajetória. Essa é a equipe que construímos
para trabalhar nesse projeto.
[Entrevistadores]: Você comentou sobre os trabalhos realizados na Grécia. Um deles foi o
levantamento fotogramétrico do santuário Heraion de Delos e reconstrução de modelos 3D.
Como foi essa experiência e quais foram as metodologias utilizadas?
[Carolina Guedes]: Na realidade, foram experiências muito interessantes porque esses sítios
nesses espaços, particularmente Delos, tem uma realidade muito específica. É um sítio que
está localizado no meio de uma ilha a algumas horas de barco de Atenas. A logística não é
simples. Então, a gente precisa dinamizar o uso dessas ferramentas. Nesse caso, é necessário
utilizar ferramentas acessíveis e práticas. O que é mais prático do que uma câmera
fotográfica? Trabalhamos lá com fotogrametria, tanto para o levantamento dos espaços
arquitetônicos (grandes) como objetos cerâmicos (pequenos), por exemplo. Então, temos
duas abordagens: uma dentro do sítio, dentro dos templos relacionados ao Heraion e a outra
dentro da reserva técnica relacionada ao material que foi escavado nessa área do Heraion
(sobretudo, o material cerâmico). Então, esse trabalho com essas estruturas arquitetônicas que, nesse caso do santuário de Heraion, considero como estruturas de médio porte - nós
fazemos um levantamento fotogramétrico sistemático do lado externo e interno do templo
tomando dois cuidados principais: i) garantir a sobreposição das imagens, que é a regra
básica da fotogrametria; e ii) não fazer uma quantidade exagerada de fotos porque isso gera
uma quantidade de dados muito pesada exigindo computadores muito robustos. A saber,
esse tipo de trabalho eu consigo fazer o processamento gráfico em um computador comum,
computador pessoal, que levo comigo. Com o levantamento fotogramétrico das peças da
reserva técnica é a mesma coisa. Nós selecionamos as peças e dentro da própria reserva
técnica fazemos o levantamento fotogramétrico a partir de dois ou três ângulos diferentes
para conseguir capturar todos os detalhes do objeto. As coisas acabam se complicando
quando trabalhamos com espaços maiores. Por exemplo, temos o espaço do templo e o
espaço do santuário. Quando eu fiz o levantamento do espaço do santuário, foi gerada
realmente uma quantidade de fotografias pesada de modo que eu não consigo trabalhar em
um computador qualquer. Além disso, seria necessário trabalharmos com drone. Não
trabalhamos ainda com drone. Para isso, precisamos negociar a devida liberação para o
governo e para o Museu de Delos. Mas esta é uma ideia que está na lista. Talvez,
começaremos a trabalhar nisso nas próximas campanhas. Mas, para isso, precisaremos de
um parceiro que trabalhe com drone ou precisaremos nos especializar (fazer um curso),
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além de comprar um computador realmente poderoso para conseguirmos processar esses
dados.
[Entrevistadores]: Continuando com o trabalho em Delos, você cita os termos “restauro
virtual” e “reconstrução virtual”. Poderia nos explicar o que são esses termos, o que eles
significam e como eles são aplicados?
[Carolina Guedes]: Bom, o restauro virtual está referido a esses trabalhos virtuais que são
realizados a partir de um modelo fotogramétrico. Por exemplo, um restauro de um vaso de
cerâmico fragmentado. Nós pensamos no restauro de uma peça verdadeira, um restauro
propriamente dito, e transformamos virtualmente essas etapas de restauro. A reconstrução
virtual - pelo menos da maneira como eu trabalho - sugere a existência de uma abertura de
possibilidades de leituras, de leituras de reconstrução que não necessariamente parte do
modelo fotogramétrico. Claro que um modelo 3D pode ser usado para essa reconstrução
virtual, mas não necessariamente precisamos partir desse modelo. Não estamos restaurando
um pedaço da parede de um vaso ou um pedaço de muro de um templo, estamos
reconstruindo o templo inteiro ou o espaço do santuário inteiro. Para fazer isso, usamos
diversos dados, como dados arquitetônicos, plantas baixas, desenhos, fotografias, pinturas e
o modelo 3D. Por exemplo, uma leitura sobre uma cronologia da construção do templo de
Heraion, como fazemos? A partir dos estudos já realizados sobre a arquitetura desse templo,
particularmente, mas também pegando toda a longa tradição das pesquisas sobre arquitetura
de templos gregos, propomos diversas construções e reconstruções de edifícios, dessas
leituras sobre esse mesmo objeto. Como estamos trabalhando com modelos virtuais, temos
essa liberdade de construir e desconstruir, temos essa liberdade de errar e acertar, de pensar
elementos que, talvez, estariam visíveis mas podemos fazer qualquer coisa porque não
estamos trabalhando com modelo real, estamos trabalhando com modelo virtual, então
temos essa liberdade de errar e destruir sem ter um prejuízo na leitura. Mais importante:
sem ter nenhum dano nas estruturas e nos objetos arqueológicos. Então, a diferença
principal é essa: o restauro faz parte de um modelo 3D de um objeto arqueológico e restaura
uma parte que está faltando, seja uma alça ou o que seja, já a reconstrução é como se não
existisse mais, por exemplo, um objeto cerâmico, existindo somente foto e a partir desta foto
o reconstruímos inteiramente em 3D.
[Entrevistadores]: Do seu ponto de vista, considerando sua experiência, quais são os
principais desafios em termos de gerenciamento e manutenção dos dados, tanto de
escavações quanto da digitalização do patrimônio cultural aqui no Brasil?
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[Carolina Guedes]: Bom, acho que o principal desafio é a capacidade da máquina
[computador] para suportar/processar dados extremamente pesados. Pensando em uma
virtualização de um sítio, para simular escavações virtuais, por exemplo, a quantidade de
dados é imensa porque implica em arquivos extremamente pesados. Para isso, precisamos
de uma máquina suficientemente boa. Para mim, essa seria a grande questão. Investimento,
porque custa dinheiro. Investimento que permita não somente processar e manipular
facilmente os dados que são produzidos. Um exemplo, que comentei, é o espaço do
Santuário. Eu investi em uma máquina muito boa para conseguir fazer esses trabalhos.
Porém, mesmo essa máquina que eu achei que era extremamente boa não conseguiu
processar esse espaço inteiro do santuário, que implicou em quase 800 fotos. Ainda que isso
não seja uma quantidade absurda em termos de possibilidades que podemos ter em espaços
ainda maiores de sítios, por exemplo, como temos na relação entre o espaço do santuário de
Heraion e a ilha de Delos inteira. Um processamento da ilha de Delos inteira demandaria um
computador muito robusto e HD's para conseguir armazenar todos esses dados. Porém, por
outro lado, como geramos acervos que são 100% virtuais, não precisamos nos preocupar
com a guarda - que é um elemento importante da pesquisa arqueológica, uma vez que
produzimos dados materiais e precisamos guardá-los em algum espaço. No caso da
arqueologia virtual, na arqueologia digital, nosso espaço é virtual. Isso dá uma liberdade
muito importante se pensarmos, por exemplo, em estruturas físicas, em como organizar o
laboratório, como montá-lo, qual vai ser o espaço, onde vamos guardar, como vamos
conservar. Nós conservamos tudo dentro de uma máquina [computador]. Precisamos,
basicamente, de um escritório que tenha um computador. Um bom computador, claro. Um
ótimo computador. Mas se por um lado há esse desafio [da demanda computacional], por
outro temos essa facilidade [com o espaço físico]. E, talvez, os desafios sejam os mesmos
que precisamos superar nas pesquisas arqueológicas em geral, tais como deslocamento,
equipe, investimento para organizar campanhas etc. Precisamos ter tudo isso, mas não é
muito diferente, na verdade, de uma escavação arqueológica tradicional. Se fizermos o
levantamento de um determinado elemento arquitetônico ou mesmo de um sítio préhistórico/pré-colonial, talvez o principal desafio seja: teremos como processar e manipular
esses dados para fazermos nossas análises? Então, para mim, esse é o principal problema; foi
o principal problema que tive, no caso.
[Entrevistadores]: Para você, qual é a importância das humanidades digitais e arqueologia
digital para a difusão do conhecimento arqueológico junto ao público em geral?
[Carolina Guedes]: Para mim, é imprescindível. São ferramentas e métodos de pesquisa que
dinamizaram de uma maneira extremamente importante e democratizaram esse
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conhecimento, a produção desse conhecimento 8. O conhecimento não fica mais somente
dentro das Universidades, por exemplo. Eles são divulgados dentro de plataformas abertas
acessíveis em qualquer lugar do Brasil e do mundo. Temos uma sorte - eu acho isso bastante
importante - por já termos um desenvolvimento tecnológico em termos de computadores,
plataformas e softwares de processamento de imagens que já estão prontos para
trabalharmos. Ou seja, não precisamos fazer um imenso treinamento em processamento de
dados. Só precisamos entender como se manipula essas ferramentas, esses softwares e ter
um problema de pesquisa na cabeça. A partir do momento que esses objetos estão prontos,
podemos divulgá-los em qualquer lugar. Por exemplo, voltando aos trabalhos de Delos, são
objetos [físicos] que ficam guardados em uma reserva técnica em um museu, em uma ilha, a
6 horas de distância, de barco, partindo de Atenas (10 horas de avião a partir do Brasil). Ou
seja, esse objeto está longe da gente. No entanto, com essas ferramentas, esses objetos estão
nas nossas mãos, podemos divulgar para instituições de ensino como as escolas em qualquer
tipo de mídia. É uma democratização de extrema importância. Entendo que nunca houve
algo dessa maneira, dessa magnitude. Então, temos de usar e abusar mesmo disso porque é
fundamental. Em nosso trabalho, a divulgação/difusão do conhecimento científico é o início,
o meio e fim do que fazemos.
[Entrevistadores]: Você pode nos contar um pouco sobre seus projetos futuros relacionados
ao digital na Arqueologia?
[Carolina Guedes]: Dentro desse contexto de pesquisa da arte rupestre, o uso da
arqueologia digital já faz parte do eixo de pesquisa. No grande tema da arte, dentro da
Chapada dos Guimarães, o uso da arqueologia digital como registro e como ferramenta de
análise é um dos grandes eixos da nossa pesquisa. A meu ver, isso é imprescindível para
qualquer pesquisa arqueológica. É uma ferramenta disponível que deve ser usada assim
como a fotografia arqueológica, que faz parte da tradição dos registros de campo. Eu acho
que a fotogrametria já se instaurou como uma nova tradição da metodologia de campo. Além
disso, eu continuo colaborando com os meus colegas (Gilberto da Silva Francisco e Álvaro
Allegrette), em Delos e em Mália, e venho conversando com um colega para oficializarmos
um projeto que visa realizar a reconstrução de um templo em Tlaxcala, no México. São
somente conversas ainda, mas espero conseguirmos transformar isso em um projeto oficial.
Além disso, eu estou elaborando um projeto na Baixada Santista, na UNIMES, através do
LADIG de proteção e conservação do patrimônio arquitetônico e cultural da cidade de
Santos e da Baixada Santista. A proposta é sistematizar as informações sobre patrimônio de
maneira que a gente consiga incentivar a pesquisa científica e também aumentar o interesse,
8
Sugestão de leitura: Guedes (2018).
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a sensibilidade em relação ao patrimônio, bem como integrar essas pesquisas a uma
especialização que iniciarei sobre recriação de cidades históricas em 3D. A proposta é criar
um grupo de estudos para realizar um levantamento sobre a cronologia do nascimento até
os dias atuais da cidade de Santos e, posteriormente, em outras cidades da Baixada Santista
para fazer essa reconstrução histórica da cidade de Santos. Inserir essas questões de
reconstrução virtual com pesquisas arqueológicas realizadas nesse espaço da Baixada
Santista e, mais particularmente, na cidade de Santos. Esses são os projetos, por enquanto,
em vista. Além do projeto de inteligência para o qual, a partir do ano que vem, solicitaremos
incentivos de algumas agências.
[Entrevistadores]: Eu quero agradecer muito à professora por aceitar nosso convite para
essa entrevista. Eu tenho certeza que esse debate é de extrema importância porque
recorrentemente essa discussão sobre a digitalização do patrimônio cultural vem à tona.
Infelizmente, na maioria dos casos é quando acontece alguma desgraça, como foi o caso do
Museu Nacional no Rio de Janeiro, o caso da Catedral de Notre-Dame e mais recentemente
com o Museu de História Natural da Universidade Federal de Minas Gerais, mas tenho
certeza que pesquisas como a sua, além de ter certo pioneirismo aqui no Brasil, são
extremamente importantes enquanto fator motivador para haverem cada vez mais
processos de digitalização que, obviamente, em nenhum momento substituem o acervo
físico. Podemos pensar muito mais na forma de uma relação de complementação entre um
e outro e pensar também, como você disse, nessa questão da democratização e de um
oferecimento de uma maior acessibilidade ao patrimônio. Muito obrigado mesmo.
[Carolina Guedes]: Foi um prazer. Só queria comentar uma coisa: o levantamento que eu fiz
com os zoólitos do Museu Nacional foi um trabalho realizado há aproximadamente um mês
antes do incêndio. Então, como você falou, é claro que não substitui. É claro que as tragédias
não nos permite recuperar muita coisa, mas é uma alternativa que ajuda a gente a trabalhar
em outros espaços, então eu considero bastante importante essa aplicação.
***
Referências
GUEDES, Carolina M. As mídias sociais na divulgação do patrimônio arqueológico: o
exemplo da área rupestre da Cidade de Pedra - Rondonópolis / MT e um estudo de caso do
sítio Mano Aroe. Museologia e Patrimônio, v. 11, n. 2, p. 96-114, 2018. Disponível em:
http://revistamuseologiaepatrimonio.mast.br/index.php/ppgpmus/article/viewArticle/7
01. Acesso em: 12 nov. 2021.
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Fonte oral
GUEDES, Carolina M. [jun. 2020]. Entrevistadores: Cleberson Henrique de Moura, Alex da
Silva Martire, Amanda Viveiros Pina, Tomás Partiti Cafagne, Matheus Morais Cruz. Santos,
São Paulo: Brasil. 25 de jun. de 2020.
Contribuições para entrevista
Nada a declarar.
Fontes de financiamento
Nada a declarar.
Conflitos de interesse
Nada a declarar.
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