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Digitalização do Patrimônio Cultural

2021, Semina - Revista dos Pós-Graduandos em História da UPF

Como parte de um trabalho de difusão de conhecimento no campo da História e Arqueologia, sob a perspectiva das Humanas Digitais, o grupo de pesquisa ARISE (Arqueologia Interativa e Simulações Eletrônicas), criado em 2017 no âmbito do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), apresenta a entrevista concedida pela arqueóloga e especialista em arqueologia digital Carolina Machado Guedes, docente da Universidade Metropolitana de Santos (UNIMES) e professora convidada da Universidade de Santo Amaro (UNISA). Nesta conversa, compartilha suas experiências com o desenvolvimento de pesquisas nas áreas de arqueologia pré-colombiana, arte rupestre paleolítica e arqueologia mediterrânica, além das áreas mais voltadas para o mundo digital como fotogrametria, modelagem 3D e reconstrução virtual aplicada ao patrimônio arqueológico.

Artigos Livres Volume 20 | Número 3 | set-dez/2021 Edição eletrônica DOI: 10.5335/srph.v20i3.13147 ISSN: 2763-8804 Organização Jênifer de Brum Palmeiras Tiara Cristina Pimentel dos Santos Digitalização do patrimônio cultural: uma conversa com Carolina Machado Guedes 1 Entrevista concedida a: Cleberson Henrique de Moura 2 Alex da Silva Martire 3 Amanda Daltro de Viveiros Pina 4 Tomás Partiti Cafagne 5 Matheus Morais Cruz 6 1 Esta entrevista foi realizada no dia 25 de junho de 2020 de forma remota. Originalmente, foi realizada em formato de vídeo e publicada na plataforma YouTube (conforme disponível em https://youtu.be/nn6O4KV4gjk). O texto aqui apresentado resulta de um trabalho de transcrição e textualização a partir das falas originais, de modo a transformar a presente entrevista, sob a forma de texto, em um outro produto documental. 2 Licenciando em Pedagogia pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP) e servidor técnico do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP). E-mail: [email protected]. 3 Pós-doutorando em Arqueologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutor e Mestre em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP). E-mail: [email protected]. 4 Doutoranda em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP). Mestra em Antropologia com ênfase em Arqueologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: [email protected]. 5 Mestre em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP). Graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). E-mail: [email protected]. 6 Mestrando em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP). Graduado em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). E-mail: [email protected]. Revista Semina | 10.5335/srph.v20i3.13147 Referência MOURA, Cleberson Henrique de, MARTIREI, Alex da Silva, VIVEIROS PINA, Amanda Daltro de, CAFAGNE, Tomás Partiti, CRUZ, Matheus Morais. Digitalização do patrimônio cultural: Uma conversa com Carolina Machado Guedes. Revista Semina, Passo Fundo, vol. 20, n. 3, p. 195-205, set-dez/2021. Semestral. Recebido em: 15/11/2021 | Aprovado em: 30/11/2021 | Publicado em: 28/12/2021 Revista Semina, Passo Fundo, v. 20, n. 3, set-dez/2021 196 Revista Semina | 10.5335/srph.v20i3.13147 C omo parte de um trabalho de difusão de conhecimento no campo da História e Arqueologia, sob a perspectiva das Humanas Digitais, o grupo de pesquisa ARISE (Arqueologia Interativa e Simulações Eletrônicas), criado em 2017 no âmbito do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), apresenta a entrevista concedida pela arqueóloga e especialista em arqueologia digital Carolina Machado Guedes, docente da Universidade Metropolitana de Santos (UNIMES) e professora convidada da Universidade de Santo Amaro (UNISA). Nesta conversa, compartilha suas experiências com o desenvolvimento de pesquisas nas áreas de arqueologia pré-colombiana, arte rupestre paleolítica e arqueologia mediterrânica, além das áreas mais voltadas para o mundo digital como fotogrametria, modelagem 3D e reconstrução virtual aplicada ao patrimônio arqueológico. Entrevista [Entrevistadores]: Professora Carolina, você poderia nos contar um pouco sobre a sua carreira acadêmica e como surgiu o seu interesse em estudar arqueologia digital? [Carolina Guedes]: Bom, a minha carreira é bastante diversificada. Eu acho que ela foi e ainda é construída em cima dessa experiência variada com diferentes áreas da Arqueologia, um aprendizado importante e multitemático, digamos. Hoje, eu tenho um foco bastante voltado para o estudo do que eu chamo de comportamento simbólico dos grupos précoloniais. Mais particularmente, a arte rupestre e a arte mobiliar (arte móvel). Mas eu comecei trabalhando, no mestrado, com arqueologia do Mediterrâneo Antigo. Depois, eu mudei minha área e meu objetivo de pesquisa, no doutorado, e comecei oficialmente a trabalhar com comportamentos simbólicos desses grupos pré-coloniais trabalhando em contextos de arte rupestre. A minha primeira experiência de campo de arte rupestre foi em Alagoas, em que eu participei de um trabalho com a empresa Zanettini Arqueologia. Com esses sítios, em Alagoas, eu trabalhei na minha tese de doutorado também. Trabalhei também no estado do Mato Grosso sob orientação do Denis Vialou e da Agueda Vilhena Vialou. Nessa região do Mato Grosso, estamos ainda com uma equipe trabalhando lá, em um longo projeto de pesquisa que elaboramos com um eixo principal voltado para a arte. É uma pesquisa bastante interessante, que daremos continuidade. Já estamos trabalhando nesta pesquisa há Revista Semina, Passo Fundo, v. 20, n. 3, set-dez/2021 197 Revista Semina | 10.5335/srph.v20i3.13147 3 anos, e daremos continuidade com um novo projeto de pesquisa com outros colaboradores e colegas. Durante meu doutorado eu comecei a fazer diversos cursos à distância na Universidade de Burgos, na Espanha. Foi então quando eu tive meu primeiro contato com esse universo digital, contato com a arqueologia digital. A partir disso, eu comecei a me interessar mais por esse uso dessa ferramenta na pesquisa arqueológica. Daí fiz meu pósdoutorado no MAE-USP com a supervisão da Profa. Dra. Verônica Wesolowski. Eu trabalhei com os zoólitos, envolvendo algumas questões relacionadas à análise dos zoólitos, sendo uma delas a aplicação da fotogrametria como ferramenta nessa coleção do MAE-USP primeiramente, e, depois, incluindo a coleção do Museu Nacional do Rio de Janeiro (MNUFRJ) e do Museu Arqueológico de Sambaqui de Joinville (MASJ). A partir disso, eu comecei a abrir esse importante leque que o trabalho com a arqueologia digital possibilita. Eu tenho uma área com foco específico de pesquisa, mas também posso abrir meu trabalho para compartilhar e colaborar com outros colegas em outras regiões e outras áreas que não são a minha especialidade principal, mas que têm a oportunidade de aplicar métodos em áreas diferentes e distintas. Eu comecei colaborando no contexto da Grécia, em Mália, na Ilha de Creta, com o Prof. Dr. Álvaro Hashizume Allegrette da PUC de São Paulo e na ilha de Delos, também na Grécia, com o Prof. Dr. Gilberto da Silva Francisco da UNIFESP. Além disso, na Universidade Metropolitana de Santos (UNIMES) abrimos o laboratório de arqueologia digital (LADIG) onde inserimos os alunos de graduação em Arqueologia nesses trabalhos do universo digital para que eles possam aprender a dominar essa ferramenta e inseri-la nas pesquisas arqueológicas. Acredito que é um percurso bastante variado, mas que ao longo do caminho eu fui construindo focos específicos, podendo ser sintetizado na arqueologia digital de uma maneira geral e esse foco no comportamento simbólico e a arte rupestre no contexto pré-colonial brasileiro. [Entrevistadores]: A sua tese aborda a arte rupestre e o seu atual projeto envolve big data em Arqueologia. Qual seria a relação entre esses assuntos? Como que esse projeto está se desenvolvendo? [Carolina Guedes]: Na verdade, estamos escrevendo esse projeto no momento. A ideia desse projeto envolvendo inteligência artificial surgiu a partir de uma chamada da Próreitoria de Pesquisa da USP para financiar pesquisas no universo de ciências que se utilizassem das chamadas tecnologias inteligentes. É importante dizer que, na verdade, essa chamada é um financiamento para elaboração de um projeto. Portanto, estamos finalizando a elaboração/escrita desse projeto. Depois disso, buscaremos outras formas de financiamento. Com essa chamada, nós criamos uma proposta que pudesse unir o uso de big data e visão computacional, com ênfase para esta última, que, na realidade, é uma das Revista Semina, Passo Fundo, v. 20, n. 3, set-dez/2021 198 Revista Semina | 10.5335/srph.v20i3.13147 tecnologias potencialmente mais revolucionárias das ciências computacionais. A pesquisadora Fei-Fei Li, coordenadora do Laboratório de Visão e Aprendizado de Máquinas (Stanford Vision and Learning Lab - SVL) 7, diz que esta é uma área com um potencial extremamente revolucionário e, por isso, extremamente complexo e difícil. Enfim, a ideia é unir a área da inteligência artificial com as pesquisas arqueológicas. Daí surgiu a ideia desse projeto que se chama "Big data em Arqueologia: uma abordagem com sistemas neurais profundos em arte rupestre". O que é este projeto? Um sítio rupestre é uma construção simbólica, uma construção complexa e organizada. Organizada de uma forma que, para nós, é extremamente abstrata, mas para quem construiu teve um sentido e um significado. Para nós, observadores atuais e contemporâneos, não parece organizado, parece uma confusão de pinturas e desenho. Essa organização dentro do sítio é feita através da correlação entre as diversas unidades gráficas (pinturas, desenhos e as gravuras) presentes em um sítio, organizadas em uma parede, um suporte rochoso. Então, é a partir dessa relação da organização dessas unidades que se dá a construção do sentido desse espaço ornado, que se dá a construção dessa mensagem, dessa narrativa que foi pintada e gravada por aqueles grupos antigos. Então, essa organização complexa pode ser compreendida em termos de gramática visuais estruturadas. Essa "gramática" se dá através dessa correlação das distintas unidades gráficas, diferentes pinturas e desenhos. Um sentido é criado a partir dessa construção, dessa organização. É através da análise dessas diversas unidades/pinturas presentes em um ou diversos sítios rupestres espalhados por uma região específica ou por polos específicos é que podemos compreender, por exemplo, questões sobre padrão de ocupação desses espaços. Podemos compreender esses padrões através de uma leitura sistemática dos painéis rupestres buscando elementos como, por exemplo, repetição de estilos, repetição de figuras, repetição de uma organização específica do espaço ornado. Assim, nesse contexto rupestre, nossa proposta é usar as ferramentas inteligentes, como aprendizado de máquina e a visão computacional - que sabemos que será o grande desafio desta pesquisa - para sistematizar de maneira inteligente esse tipo bastante específico de dado; tendo como elemento principal, por exemplo, a identificação das tipologias específicas registradas. Por exemplo, pinturas geométricas, círculos, pontos, traços. Investigar a tipologia. Através da identificação desses elementos que foram pintados e gravados, esse sistema inteligente nos ajudará a entender a organização deste espaço e sugerir, por exemplo, padrões de ocupação. Na elaboração deste projeto nós contamos com uma equipe diversificada incluindo professores do MAE-USP com diversos backgrounds, professores da Física, que construirão essa ferramenta mediante um diálogo constante conosco, e professores do Museu de História Natural de Paris, na França, que fazem parte da minha vida 7 C.f. http://svl.stanford.edu/. Revista Semina, Passo Fundo, v. 20, n. 3, set-dez/2021 199 Revista Semina | 10.5335/srph.v20i3.13147 acadêmica - eu me formei com eles (Denis Vialou, Agueda Vilhena Vialou e Patrick Paillet), então estarão sempre presentes em toda minha trajetória. Essa é a equipe que construímos para trabalhar nesse projeto. [Entrevistadores]: Você comentou sobre os trabalhos realizados na Grécia. Um deles foi o levantamento fotogramétrico do santuário Heraion de Delos e reconstrução de modelos 3D. Como foi essa experiência e quais foram as metodologias utilizadas? [Carolina Guedes]: Na realidade, foram experiências muito interessantes porque esses sítios nesses espaços, particularmente Delos, tem uma realidade muito específica. É um sítio que está localizado no meio de uma ilha a algumas horas de barco de Atenas. A logística não é simples. Então, a gente precisa dinamizar o uso dessas ferramentas. Nesse caso, é necessário utilizar ferramentas acessíveis e práticas. O que é mais prático do que uma câmera fotográfica? Trabalhamos lá com fotogrametria, tanto para o levantamento dos espaços arquitetônicos (grandes) como objetos cerâmicos (pequenos), por exemplo. Então, temos duas abordagens: uma dentro do sítio, dentro dos templos relacionados ao Heraion e a outra dentro da reserva técnica relacionada ao material que foi escavado nessa área do Heraion (sobretudo, o material cerâmico). Então, esse trabalho com essas estruturas arquitetônicas que, nesse caso do santuário de Heraion, considero como estruturas de médio porte - nós fazemos um levantamento fotogramétrico sistemático do lado externo e interno do templo tomando dois cuidados principais: i) garantir a sobreposição das imagens, que é a regra básica da fotogrametria; e ii) não fazer uma quantidade exagerada de fotos porque isso gera uma quantidade de dados muito pesada exigindo computadores muito robustos. A saber, esse tipo de trabalho eu consigo fazer o processamento gráfico em um computador comum, computador pessoal, que levo comigo. Com o levantamento fotogramétrico das peças da reserva técnica é a mesma coisa. Nós selecionamos as peças e dentro da própria reserva técnica fazemos o levantamento fotogramétrico a partir de dois ou três ângulos diferentes para conseguir capturar todos os detalhes do objeto. As coisas acabam se complicando quando trabalhamos com espaços maiores. Por exemplo, temos o espaço do templo e o espaço do santuário. Quando eu fiz o levantamento do espaço do santuário, foi gerada realmente uma quantidade de fotografias pesada de modo que eu não consigo trabalhar em um computador qualquer. Além disso, seria necessário trabalharmos com drone. Não trabalhamos ainda com drone. Para isso, precisamos negociar a devida liberação para o governo e para o Museu de Delos. Mas esta é uma ideia que está na lista. Talvez, começaremos a trabalhar nisso nas próximas campanhas. Mas, para isso, precisaremos de um parceiro que trabalhe com drone ou precisaremos nos especializar (fazer um curso), Revista Semina, Passo Fundo, v. 20, n. 3, set-dez/2021 200 Revista Semina | 10.5335/srph.v20i3.13147 além de comprar um computador realmente poderoso para conseguirmos processar esses dados. [Entrevistadores]: Continuando com o trabalho em Delos, você cita os termos “restauro virtual” e “reconstrução virtual”. Poderia nos explicar o que são esses termos, o que eles significam e como eles são aplicados? [Carolina Guedes]: Bom, o restauro virtual está referido a esses trabalhos virtuais que são realizados a partir de um modelo fotogramétrico. Por exemplo, um restauro de um vaso de cerâmico fragmentado. Nós pensamos no restauro de uma peça verdadeira, um restauro propriamente dito, e transformamos virtualmente essas etapas de restauro. A reconstrução virtual - pelo menos da maneira como eu trabalho - sugere a existência de uma abertura de possibilidades de leituras, de leituras de reconstrução que não necessariamente parte do modelo fotogramétrico. Claro que um modelo 3D pode ser usado para essa reconstrução virtual, mas não necessariamente precisamos partir desse modelo. Não estamos restaurando um pedaço da parede de um vaso ou um pedaço de muro de um templo, estamos reconstruindo o templo inteiro ou o espaço do santuário inteiro. Para fazer isso, usamos diversos dados, como dados arquitetônicos, plantas baixas, desenhos, fotografias, pinturas e o modelo 3D. Por exemplo, uma leitura sobre uma cronologia da construção do templo de Heraion, como fazemos? A partir dos estudos já realizados sobre a arquitetura desse templo, particularmente, mas também pegando toda a longa tradição das pesquisas sobre arquitetura de templos gregos, propomos diversas construções e reconstruções de edifícios, dessas leituras sobre esse mesmo objeto. Como estamos trabalhando com modelos virtuais, temos essa liberdade de construir e desconstruir, temos essa liberdade de errar e acertar, de pensar elementos que, talvez, estariam visíveis mas podemos fazer qualquer coisa porque não estamos trabalhando com modelo real, estamos trabalhando com modelo virtual, então temos essa liberdade de errar e destruir sem ter um prejuízo na leitura. Mais importante: sem ter nenhum dano nas estruturas e nos objetos arqueológicos. Então, a diferença principal é essa: o restauro faz parte de um modelo 3D de um objeto arqueológico e restaura uma parte que está faltando, seja uma alça ou o que seja, já a reconstrução é como se não existisse mais, por exemplo, um objeto cerâmico, existindo somente foto e a partir desta foto o reconstruímos inteiramente em 3D. [Entrevistadores]: Do seu ponto de vista, considerando sua experiência, quais são os principais desafios em termos de gerenciamento e manutenção dos dados, tanto de escavações quanto da digitalização do patrimônio cultural aqui no Brasil? Revista Semina, Passo Fundo, v. 20, n. 3, set-dez/2021 201 Revista Semina | 10.5335/srph.v20i3.13147 [Carolina Guedes]: Bom, acho que o principal desafio é a capacidade da máquina [computador] para suportar/processar dados extremamente pesados. Pensando em uma virtualização de um sítio, para simular escavações virtuais, por exemplo, a quantidade de dados é imensa porque implica em arquivos extremamente pesados. Para isso, precisamos de uma máquina suficientemente boa. Para mim, essa seria a grande questão. Investimento, porque custa dinheiro. Investimento que permita não somente processar e manipular facilmente os dados que são produzidos. Um exemplo, que comentei, é o espaço do Santuário. Eu investi em uma máquina muito boa para conseguir fazer esses trabalhos. Porém, mesmo essa máquina que eu achei que era extremamente boa não conseguiu processar esse espaço inteiro do santuário, que implicou em quase 800 fotos. Ainda que isso não seja uma quantidade absurda em termos de possibilidades que podemos ter em espaços ainda maiores de sítios, por exemplo, como temos na relação entre o espaço do santuário de Heraion e a ilha de Delos inteira. Um processamento da ilha de Delos inteira demandaria um computador muito robusto e HD's para conseguir armazenar todos esses dados. Porém, por outro lado, como geramos acervos que são 100% virtuais, não precisamos nos preocupar com a guarda - que é um elemento importante da pesquisa arqueológica, uma vez que produzimos dados materiais e precisamos guardá-los em algum espaço. No caso da arqueologia virtual, na arqueologia digital, nosso espaço é virtual. Isso dá uma liberdade muito importante se pensarmos, por exemplo, em estruturas físicas, em como organizar o laboratório, como montá-lo, qual vai ser o espaço, onde vamos guardar, como vamos conservar. Nós conservamos tudo dentro de uma máquina [computador]. Precisamos, basicamente, de um escritório que tenha um computador. Um bom computador, claro. Um ótimo computador. Mas se por um lado há esse desafio [da demanda computacional], por outro temos essa facilidade [com o espaço físico]. E, talvez, os desafios sejam os mesmos que precisamos superar nas pesquisas arqueológicas em geral, tais como deslocamento, equipe, investimento para organizar campanhas etc. Precisamos ter tudo isso, mas não é muito diferente, na verdade, de uma escavação arqueológica tradicional. Se fizermos o levantamento de um determinado elemento arquitetônico ou mesmo de um sítio préhistórico/pré-colonial, talvez o principal desafio seja: teremos como processar e manipular esses dados para fazermos nossas análises? Então, para mim, esse é o principal problema; foi o principal problema que tive, no caso. [Entrevistadores]: Para você, qual é a importância das humanidades digitais e arqueologia digital para a difusão do conhecimento arqueológico junto ao público em geral? [Carolina Guedes]: Para mim, é imprescindível. São ferramentas e métodos de pesquisa que dinamizaram de uma maneira extremamente importante e democratizaram esse Revista Semina, Passo Fundo, v. 20, n. 3, set-dez/2021 202 Revista Semina | 10.5335/srph.v20i3.13147 conhecimento, a produção desse conhecimento 8. O conhecimento não fica mais somente dentro das Universidades, por exemplo. Eles são divulgados dentro de plataformas abertas acessíveis em qualquer lugar do Brasil e do mundo. Temos uma sorte - eu acho isso bastante importante - por já termos um desenvolvimento tecnológico em termos de computadores, plataformas e softwares de processamento de imagens que já estão prontos para trabalharmos. Ou seja, não precisamos fazer um imenso treinamento em processamento de dados. Só precisamos entender como se manipula essas ferramentas, esses softwares e ter um problema de pesquisa na cabeça. A partir do momento que esses objetos estão prontos, podemos divulgá-los em qualquer lugar. Por exemplo, voltando aos trabalhos de Delos, são objetos [físicos] que ficam guardados em uma reserva técnica em um museu, em uma ilha, a 6 horas de distância, de barco, partindo de Atenas (10 horas de avião a partir do Brasil). Ou seja, esse objeto está longe da gente. No entanto, com essas ferramentas, esses objetos estão nas nossas mãos, podemos divulgar para instituições de ensino como as escolas em qualquer tipo de mídia. É uma democratização de extrema importância. Entendo que nunca houve algo dessa maneira, dessa magnitude. Então, temos de usar e abusar mesmo disso porque é fundamental. Em nosso trabalho, a divulgação/difusão do conhecimento científico é o início, o meio e fim do que fazemos. [Entrevistadores]: Você pode nos contar um pouco sobre seus projetos futuros relacionados ao digital na Arqueologia? [Carolina Guedes]: Dentro desse contexto de pesquisa da arte rupestre, o uso da arqueologia digital já faz parte do eixo de pesquisa. No grande tema da arte, dentro da Chapada dos Guimarães, o uso da arqueologia digital como registro e como ferramenta de análise é um dos grandes eixos da nossa pesquisa. A meu ver, isso é imprescindível para qualquer pesquisa arqueológica. É uma ferramenta disponível que deve ser usada assim como a fotografia arqueológica, que faz parte da tradição dos registros de campo. Eu acho que a fotogrametria já se instaurou como uma nova tradição da metodologia de campo. Além disso, eu continuo colaborando com os meus colegas (Gilberto da Silva Francisco e Álvaro Allegrette), em Delos e em Mália, e venho conversando com um colega para oficializarmos um projeto que visa realizar a reconstrução de um templo em Tlaxcala, no México. São somente conversas ainda, mas espero conseguirmos transformar isso em um projeto oficial. Além disso, eu estou elaborando um projeto na Baixada Santista, na UNIMES, através do LADIG de proteção e conservação do patrimônio arquitetônico e cultural da cidade de Santos e da Baixada Santista. A proposta é sistematizar as informações sobre patrimônio de maneira que a gente consiga incentivar a pesquisa científica e também aumentar o interesse, 8 Sugestão de leitura: Guedes (2018). Revista Semina, Passo Fundo, v. 20, n. 3, set-dez/2021 203 Revista Semina | 10.5335/srph.v20i3.13147 a sensibilidade em relação ao patrimônio, bem como integrar essas pesquisas a uma especialização que iniciarei sobre recriação de cidades históricas em 3D. A proposta é criar um grupo de estudos para realizar um levantamento sobre a cronologia do nascimento até os dias atuais da cidade de Santos e, posteriormente, em outras cidades da Baixada Santista para fazer essa reconstrução histórica da cidade de Santos. Inserir essas questões de reconstrução virtual com pesquisas arqueológicas realizadas nesse espaço da Baixada Santista e, mais particularmente, na cidade de Santos. Esses são os projetos, por enquanto, em vista. Além do projeto de inteligência para o qual, a partir do ano que vem, solicitaremos incentivos de algumas agências. [Entrevistadores]: Eu quero agradecer muito à professora por aceitar nosso convite para essa entrevista. Eu tenho certeza que esse debate é de extrema importância porque recorrentemente essa discussão sobre a digitalização do patrimônio cultural vem à tona. Infelizmente, na maioria dos casos é quando acontece alguma desgraça, como foi o caso do Museu Nacional no Rio de Janeiro, o caso da Catedral de Notre-Dame e mais recentemente com o Museu de História Natural da Universidade Federal de Minas Gerais, mas tenho certeza que pesquisas como a sua, além de ter certo pioneirismo aqui no Brasil, são extremamente importantes enquanto fator motivador para haverem cada vez mais processos de digitalização que, obviamente, em nenhum momento substituem o acervo físico. Podemos pensar muito mais na forma de uma relação de complementação entre um e outro e pensar também, como você disse, nessa questão da democratização e de um oferecimento de uma maior acessibilidade ao patrimônio. Muito obrigado mesmo. [Carolina Guedes]: Foi um prazer. Só queria comentar uma coisa: o levantamento que eu fiz com os zoólitos do Museu Nacional foi um trabalho realizado há aproximadamente um mês antes do incêndio. Então, como você falou, é claro que não substitui. É claro que as tragédias não nos permite recuperar muita coisa, mas é uma alternativa que ajuda a gente a trabalhar em outros espaços, então eu considero bastante importante essa aplicação. *** Referências GUEDES, Carolina M. As mídias sociais na divulgação do patrimônio arqueológico: o exemplo da área rupestre da Cidade de Pedra - Rondonópolis / MT e um estudo de caso do sítio Mano Aroe. Museologia e Patrimônio, v. 11, n. 2, p. 96-114, 2018. Disponível em: http://revistamuseologiaepatrimonio.mast.br/index.php/ppgpmus/article/viewArticle/7 01. Acesso em: 12 nov. 2021. Revista Semina, Passo Fundo, v. 20, n. 3, set-dez/2021 204 Revista Semina | 10.5335/srph.v20i3.13147 Fonte oral GUEDES, Carolina M. [jun. 2020]. Entrevistadores: Cleberson Henrique de Moura, Alex da Silva Martire, Amanda Viveiros Pina, Tomás Partiti Cafagne, Matheus Morais Cruz. Santos, São Paulo: Brasil. 25 de jun. de 2020. Contribuições para entrevista Nada a declarar. Fontes de financiamento Nada a declarar. Conflitos de interesse Nada a declarar. Revista Semina, Passo Fundo, v. 20, n. 3, set-dez/2021 205