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ARS
Antonio Carlos Vargas Sant’Anna*
ano 18
n. 38
Artigo Inédito
Antonio Carlos Vargas Sant’Anna
ID
0000-0001-8458-3909
ID
Flávia Person
0000-0002-2562-7446
Flávia Person*
Humanidade e crítica de Harun Farocki: uma
análise dos temas recorrentes na montagem do
documentário Imagens da prisão
Humanity and criticism by Harun Farocki: an analysis
of recurring themes in the montage of the documentary
Prison Images
Humanidad y critica de Harun Farocki: un análisis de
los temas recurrentes en el montaje de la película
documental Imágenes de prisión
palavras-chave:
Harun Farocki; imagens;
prisão; humanidade
keywords:
Harun Farocki; Images;
Prison; Humanity
*Universidade Estadual de
Santa Catarina (UDESC),
Brasil
DOI: 10.11606/issn.2178-0447.
ars.2020.160132
Este artigo apresenta o resultado de uma investigação sobre o
documentário do cineasta Harun Farocki, Imagens da prisão, e identifica
seis conjuntos de imagens recorrentes que foram organizados em blocos
temáticos: “Corpo disciplinado”, “Corpo oprimido”, “Corpo vigiado”,
“A tecnologia como instrumento de dessubjetivação”, “Trabalho e
prisão” e “O desejo”. Essa estruturação permitiu uma compreensão
do seu pensamento poético e intelectual, evidenciando não apenas a
sensibilidade e caráter inovador da estrutura formal de seu trabalho,
mas, sobretudo, uma dimensão crítica e humana que adquire especial
relevância nos dias atuais. O artigo evidencia o raciocínio do artista
ao relacionar a produção das imagens na sociedade contemporânea
e o processo de desumanização, que se encontra tanto nos meios de
produção quanto no encarceramento.
This article presents the results of an investigation on the
documentary Prison Images, by filmmaker Harun Farocki, and defines
its recurring images, organized into the following thematic groups:
“Disciplinary Body,” “Oppressed Body,” “Guarded Body,” “Technology
as a Tool for Desubjectification,” “Work and Oppression,” and “Desire.”
Such structure allowed to reach an understanding of Farocki’s poetic
and intellectual thought by revealing the sensitivity and innovative
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character of the formal structure of his work. In addition, it unraveled
a critical and human dimension which becomes especially relevant
nowadays. This article focuses the logic behind the relation stablished
by Farocki between the production of images in contemporary society
and the process of dehumanization, found both in the means of
production and in imprisonment.
Antonio Sant’Anna
Este artículo presenta una investigación acerca de la película
documental de Harun Farocki, Imágenes de prisión, y identifica seis
grupos de imágenes, organizados en temas: “Cuerpo disciplinado”,
“Cuerpo oprimido”, “Cuerpo vigilado”, “La tecnología cómo herramienta
de dessubjetificación”, “Trabajo y cárcel” y “El deseo”. Esa estructura
hizo posible una comprensión de su pensamiento poético y intelectual,
poniendo de relieve no sólo su sensibilidad y el carácter innovador de
la estructura formal de su trabajo, sino también su dimensión crítica y
humana, que gana posición destacada hoy en día. El artículo resalta el
raciocino de Farocki en la creación de relaciones entre la producción
de imágenes en la sociedad contemporánea y la deshumanización de los
medios de producción y de la encarcelación.
palabras clave:
Flávia Person
Humanidade e crítica de Harun
Farocki
Harun Farocki; imágenes;
prisión; humanidad
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ano 18
n. 38
1. FAROCKI, Harun. Fogo
inextinguível, 1969,
Alemanha, cor, som, 25 min.
2. FAROCKI, Harun. Imagens
do mundo e inscrições da
guerra, Alemanha, cor, som,
75min.
3. FAROCKI, Harun. Imagens
da prisão, 2000, Alemanha,
cor, som, 60 min.
Introdução
Harun Farocki é um dos mais respeitados e profícuos
artistas da Alemanha; realizou mais de cem obras artísticas, entre
documentários, programas para TV, vídeos e instalações, além de
ter uma extensa produção escrita que envolve desde a análise de
trabalhos cinematográficos, inclusive de sua própria autoria, até suas
percepções de mundo e uma reflexão teórica sobre as relações de poder
que as imagens operam. A ousadia e o teor político de seu trabalho
estão presentes já nas primeiras obras, como fica evidente em Fogo
inextinguível (1969), documentário que trata da Guerra do Vietnã e da
fabricação de bombas Napalm. Na tentativa de aproximar o espectador
do horror, diante da câmera, ele lê o relato de um vietnamita vítima de
uma bomba Napalm e, em seguida, apaga um cigarro em seu antebraço,
enquanto diz: “Um cigarro queima a 400 graus, a Napalm queima a
3000 graus”1. Dando continuidade à narração do filme, ele interroga
como que se deveria mostrar uma bomba Napalm em ação, ao que
logo responde: se ele mostrasse imagens reais, nós, os espectadores,
reagiríamos fechando os olhos, e que bloquear a visão das imagens
significava, também, cerrar os olhos para a memória, para os fatos.
O filme carece de alguns cuidados técnicos, os quais o próprio
artista admite, anos depois, mas já apresenta sua inquietação e o modo
peculiar de reflexão sobre aquilo que se tornaria matéria-prima e objeto
de investigação por toda a sua vida, as imagens. Com o passar dos anos,
Harun Farocki começa a gravar menos e a se debruçar sobre as imagens
existentes e que figuram em arquivos diversos; boa parte de seus filmes
são documentários feitos a partir de imagens de arquivo e impressionam
pela maneira singular e potente como o cineasta monta as imagens.
Segundo ele, “não precisamos buscar imagens novas e ainda não vistas,
mas trabalhar nas que já existem de maneira que pareçam novas”2. Os
temas recorrentes em sua pesquisa são a guerra, a tecnologia, o consumo
e o trabalho. Este artigo se concentra nas obras e nos textos que Harun
Farocki produziu acerca do tema da prisão, em especial o documentário
Imagens da prisão3, um filme-ensaio construído a partir de vários pontos
de vista e maneiras de retratar as instituições carcerárias.
4. FAROCKI, Harun.
Desconfiar de las Imágenes.
Buenos Aires, Argentina: Caja
Negra Editora, 2013, p. 260.
Em um de seus textos, o artista defendia a importância de se
investigar as imagens das prisões dos Estados Unidos, país democrático
com o mais alto índice de população carcerária4 e no qual, embora os
crimes diminuíssem a cada dia, o número de presos só aumentava. Em
outro artigo, intitulado “Kontrollblicke”5, Farocki escreve sobre suas
experiências durante a pesquisa para o documentário Imagens da prisão e
compartilha sua visão sobre a instituição carcerária. No texto, ele relata,
dentre outras coisas, que se encontrou com um detetive particular que
se dedicava a defender as famílias de presos mortos dentro de algumas
prisões da Califórnia; também conta como conheceu um arquiteto que
lhe mostrou o desenho de uma nova prisão para pessoas que haviam
cometido crimes sexuais, no Oregon, e comenta o fato significativo de
que apenas um terço do que fora projetado acabou sendo construído,
uma vez que o setor concebido para abrigar um programa terapêutico
não fora aprovado. Também relata sua ida à prisão de Campden, próxima
à Filadélfia, onde os prisioneiros o olhavam por detrás das grades com
desprezo, como se fossem feras, e onde um guarda comenta que, nos
tetos de salas comuns, havia dispositivos para disparar gás lacrimogêneo
que nunca haviam sido usados porque, após um tempo, as substâncias
químicas haviam se deteriorado. Na ocasião, Farocki também assistiu
a imagens de arquivo que registraram o assassinato de um detento na
prisão de segurança máxima de Corcorán pelas mãos de um agente
de segurança que disparou nele à distância e que, depois do ocorrido,
soube que seus parceiros de profissão, muitas vezes, colocavam nos
pátios, de propósito, prisioneiros de gangues rivais e faziam apostas
sobre o resultado das brigas.
Em outro artigo, intitulado “Bilderschatz”6, algo como
“vocabulário visual” em português, o artista escreve sobre o conceito
de “dicionário visual”7 que desenvolveu para a realização do filme A
saída dos operários da fábrica (1995), uma coleção de cenas produzidas
ao longo de cem anos de cinema com a temática que leva o título do
filme. Harun Farocki montou seu próprio vocabulário imagético para
os operários que saem de uma fábrica e quis fazer o mesmo com as
prisões, com a imagem do momento de libertação de um prisioneiro
que tanto o instigava.8 Na época da publicação desse texto, o artista
ainda estava na fase de pesquisa e descreve as visitas às prisões como
uma experiência horrível. Passados quase 20 anos de seu lançamento,
em 2000, o documentário continua sendo uma impressionante reflexão
sobre as prisões e as imagens geradas sobre esse contexto e a partir
dele, mas adquire, sobretudo, uma dimensão quase premonitória se
considerarmos o atual e crescente número de dispositivos de controle
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Humanidade e crítica de Harun
Farocki
5. Publicado pela primeira
vez na Jungle World nº 37,
em 8 de setembro de 1999.
Para elaboração deste artigo,
foi consultada a versão
em espanhol, cujo título é
“Miradas que Controlan”, in
FAROCKI, Harun. Desconfiar
de las Imágenes. Buenos
Aires, Argentina: Caja Negra
Editora, 2013 A partir deste
ponto, será usado o título da
tradução nas referências ao
texto.
6. FAROCKI, Harun.
Bilderschatz. 3rd
International Flusser
Lecture. Köln, Alemanha:
Flusser Archiv, dez. 1999.
7. “Na procura de uma
ordem para o meu material
colecionado eu pensava
nos dicionários, que
documentassem o uso das
palavras ou expressões em
uma ordem cronológica,
aí eu percebi que não
havia nada para o filme
que correspondesse a um
dicionário”. Ibidem, p. 5.
8. “Depois de passar um
semestre nos Estados Unidos,
quis fazer filmes por lá…
Propus examinar a forma
como são retratadas as
prisões em filmes e vídeos,
um estudo como A saída dos
operários da fábrica. Ibidem,
p. 5.
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9. Sinopse do filme Imagens
da prisão. In MOURÃO, Maria
Dora G.; BORGES, Cristian;
MOURÃO, Patrícia. (org).
Harun Farocki: Por uma
politização do olhar. São
Paulo: Cinemateca Brasileira,
2010.
10. DURAND, Gilbert. De la
mitocrítica al mitoanálisis:
figuras míticas y aspectos
de la obra. Barcelona: Ed.
Anthropos, 1993.
11. LÉVI-STRAUSS, Claude.
O Pensamento Selvagem. 8ª.
ed. São Paulo: Ed. Papirus,
2008.
12. A mitocrítica proposta por
Gilbert Durand é composta
por quatro etapas. Uma, que
relaciona a história de vida
do autor a mitos, precede
a análise da obra. Depois
dessa etapa, vem a análise
da obra propriamente dita,
que é realizada em três
etapas: a primeira analisa
as redundâncias na relação
diacronia/sincronia; a segunda
relaciona esse novo sentido
às estruturas sociais de lugar
e época em que a obra foi
produzida (análise marxista)
e a última busca a dimensão
mitológica sobre a qual a obra
se apoia (mitos diretores).
individual e social que a revolução digital tem gerado. No fim, o
filme Imagens da prisão é mais do que o resultado de uma pesquisa
visual sobre as imagens que remetem ao tema prisional, é um estudo
antropológico sobre o estabelecimento penal e uma reflexão sobre
a sociedade carcerária em que vivemos, “onde a morte e a vida são
estudadas através do olho da câmera”9.
Redundâncias temáticas presentes em Imagens da
prisão
Considerando o processo de decupagem em vídeos e filmes,
realizamos uma etapa de análise estruturalista, identificando as
“redundâncias” na compreensão do discurso artístico-visual de
Farocki. Nessa investigação, adotamos a abordagem estruturalista em
consonância com Gilbert Durand,10 que também a utiliza com sucesso
como uma das três etapas de sua metodologia de análise da obra
artístico-literária denominada mitocrítica. Para formular esse método,
Durand serve-se das relações entre diacronia e sincronia estudadas por
Lévi-Strauss em O Pensamento selvagem11 e referendadas por diversos
antropólogos na análise de relatos míticos. De forma sintética, a etapa
da mitocrítica, que é a primeira, consiste em identificar as redundâncias
(sincronicidades) que aparecem no discurso sequencial (diacrônico) da
obra. As imagens que apresentam semelhanças explícitas ou implícitas,
seja por questões formais ou simbólicas, em diferentes momentos do
discurso literário-artístico, são, então, separadas e reorganizadas em
colunas, de forma que suas semelhanças possam ser melhor visualizadas,
e cada coluna, associada a um assunto ou tema. Finalmente, esses
temas são analisados em suas relações, buscando-se o sentido que é
revelado por uma nova diacronia.
Ainda que, em nosso estudo sobre a obra Imagens da prisão,
não tenhamos nos proposto a realizar uma aplicação da mitocrítica,12
uma vez que não é nosso objetivo estabelecer relações com os mitos,
entendemos que a metodologia durandiana fundamenta a aplicação
dessa análise estruturalista porque o filme, assim como o texto
literário, é uma narrativa artística e, portanto, passível de aplicação
dessa abordagem. Assim sendo, ao examinar minuciosamente Imagens
da prisão, identificamos as imagens que se repetem, com diferentes
variações, ao longo do filme e as agrupamos em “blocos de imagens
redundantes” que, posteriormente, relacionamos a temas, identificando
aquilo que passaremos a chamar de “blocos de pensamentos temáticos”
do documentarista. O desenvolvimento desses seis temas – “Corpo
disciplinado”, “Corpo oprimido”, “Corpo vigiado”, “A tecnologia como
instrumento de dessubjetivação”, “Trabalho e prisão” e “O desejo” –
possibilitou uma melhor compreensão do pensamento intelectual e
artístico de Harun Farocki.
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Humanidade e crítica de Harun
Farocki
A maior parte dos títulos dos blocos temáticos foi inspirada na
obra Vigiar e punir, do francês Michel Foucault, referência teórica maior
deste trabalho. A escolha não é aleatória, Harun Farocki compartilhava
de algumas ideias do autor e parece construir, em Imagens da prisão,
um ensaio visual baseado na teoria do filósofo. A relação entre as
obras do cineasta alemão e de Foucault são percebidas por diversos
pesquisadores que se debruçaram sobre sua produção visual, como
Christa Blümlinger. Segundo a autora, os trabalhos de Harun Farocki
geram reflexões semelhantes às de Foucault:
[…] a arte de Farocki partilha com a reflexão de Foucault não apenas o
exame da sociedade disciplinar, da maneira como essa administra a vida e
transborda sobre ela, mas também a noção arqueológica como instrumento
de análise das formações e transformações ao discurso dos quais observase a materialidade – e a mediatização. […] Como na escrita de Foucault,
na obra de Farocki as forças estão em movimento, fusão, transformação e
alteração perpétuas.13
Corpo disciplinado
O primeiro bloco de pensamento temático, “O corpo
disciplinado”, reúne as variações imagéticas que giram em torno de
corpos que são organizados e reorganizados no espaço e é composto
basicamente por imagens em preto e branco, que correspondem aos
arquivos de Abseits des Weges [À margem do caminho] (1926) – que
consiste em um filme, ou uma série deles, produzido na Alemanha, na
década de 1920, e que registra cenas de um asilo para pessoas com
deficiência de todas as idades, de uma fábrica em funcionamento e
de um presídio – e de The drug evil in Egypt (1931) – produzido pelo
Ministério da Justiça do Egito para prevenir a população quanto ao
uso de drogas; o filme traz imagens reunidas em 1931, nos Estados
Unidos, que nos apresentam dependentes químicos sendo organizados
e reorganizados em filas – e Um condenado à morte escapou (1956),
13. BLÜMLINGER, Christa,
apud BELLOUR, Raymond. A
foto-diagrama. Harun Farocki:
por uma politização do
olhar. São Paulo: Cinemateca
Brasileira, 2010, p. 147.
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14. FAROCKI, Harun. Imagens
da prisão, 2000, Alemanha,
cor, som, 60 min. A não ser
que estejam referenciadas
diferentemente em notas de
rodapé, as frases entre aspas
encontradas na sequência
foram extraídas do filme.
15. FOUCAULT, Michel. Vigiar
e Punir: nascimento da prisão.
Petrópolis: Editora Vozes,
1987, p. 119.
16. Ibidem, p. 109.
17. FAROCKI, Harun. Imagens
da prisão, 2000, Alemanha,
cor, som, 60 min.
filme ficcional de Robert Bresson baseado na história real do ativista
André Devigny, da Resistência Francesa, durante a ocupação nazista,
quando, após ser preso, passa seus dias preparando sua fuga.
Neste último, Harun Farocki salienta os semelhantes
movimentos corporais das pessoas consideradas à margem da sociedade
e que estão abrigadas em instituições como asilos, fábricas e prisões.
Nesse sentido, prisioneiros e crianças compõem o mesmo movimento
de ordem, representado por filas. O cineasta, em sua narração, compara
a marcha de prisioneiros a um desfile militar, uma marcha de triunfo:
“A câmera por onde passam os prisioneiros assumiu o lugar de Deus,
do rei e do chefe do exército”14. Essas imagens foram produzidas com
determinada função, embora nem os homens, nem “a câmera”, pareçam
confortáveis com a situação. A narração de Farocki prossegue: “Os
reclusos, exercitando-se, estão tão pouco treinados como a câmera”. Os
homens parecem “sem jeito”, um olha diretamente para a câmera, que
faz movimentos como “se quisesse acertar o quadro”. Chama a atenção
de Harun Farocki o movimento, o indivíduo e a sua interação com a
câmera. A narração os compara a um exército, fazendo e desfazendo
filas: “Contra que inimigo irão lutar?”.
Nesse primeiro bloco do filme, há uma relação inevitável com
aquilo que Michel Foucault desenvolveu a respeito das disciplinas
em Vigiar e punir. O autor observa que estas, enquanto tecnologia de
poder, “definem como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros,
não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem
como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se
determina”15. A lógica carcerária se expande enquanto método para
campos extramuros, pois, segundo o filósofo, a diferença entre a
instituição prisional e as demais é apenas a intensidade com a qual
os “processos que encontramos nos outros dispositivos de disciplina”16
operam. Ele afirma que a disciplina é uma modalidade de exercício
e que, portanto, pode ser replicada em outras instituições, por isso a
semelhança de postura e movimento dos corpos representados nas
imagens; assim, a organização disciplinar está presente nos asilos, nas
fábricas e nas prisões, os corpos estão submetidos a um mesmo modelo
social.
Em Imagens da prisão, cenas que destacam indivíduos dentro
dessas instituições são apresentadas enquanto a voz que instaura a
narrativa anuncia: “A imagem do indivíduo ou do grupo”17. Desse modo,
Harun Farocki atenta para o indivíduo destacado no ambiente, para a
interação com a câmera e a ação do indivíduo. Uma mulher anda pelo
pátio de um manicômio, até que se dá conta das pessoas que portam
a câmera e para por um instante. A narração prossegue: “Nos rostos
se busca algo para o qual não há uma definição, isto é o que a câmera
atrai. A droga ou a loucura”18. Isso é também o que atrai o cineasta para
essas imagens.
Corpo oprimido
O segundo bloco de pensamento também é sobre o controle
dos corpos, porém sob o ponto de vista da relação entre guardas, que
representam o poder do Estado, e os prisioneiros. Chamamos este bloco
temático de “O corpo oprimido”, o qual reúne imagens de violência
física contra prisioneiros, e inicia com imagens coloridas feitas dentro
de uma penitenciária. As imagens parecem ter sido gravadas em fita
VHS e flagram a violência contra um prisioneiro, que é detido por mais
de cinco guardas. São imagens violentas que parecem ter sido geradas
com o intuito de registrar a ação dos agentes penitenciários, sem que
espectador possa saber se como modelo a ser seguido por outros agentes
ou para constituir prova contra o prisioneiro ou qualquer outro motivo.
Harun Farocki não aclara esta questão. Imagens semelhantes aparecem
em outros momentos do filme. Vemos imagens de prisioneiros que
se recusam a ser observados. A narração de Farocki diz: “De novo os
prisioneiros resistem a ser observados. De novo vêm os guardas com
um bastão. Outra vez com gás. Uns desistem e estendem as mãos para
serem algemados por uma abertura com essa função. Noutros casos, os
guardas entram à força, cela adentro”.
Em outro momento do filme, Harun Farocki retoma a questão
da opressão e da violência praticada pelo Estado através da figura dos
guardas, em imagens que em si não possuem a mesma agressividade,
porém ganham uma dimensão devastadora dentro do filme, pois se
trata de um vídeo de treinamento de carcereiros. O treinamento deveria
ser sério, mas há um clima descontraído. Um dos guardas atua como se
fosse um prisioneiro. O personagem tem um tom caricato, ele provoca
os guardas que estão na sala, alguns deles riem. Após insistentes
gracinhas do “prisioneiro”, um dos guardas em treinamento “atira” e
o “prisioneiro” cai no chão. O guarda responsável pela instrução do
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18. FAROCKI, Harun. Imagens
da prisão, 2000, Alemanha,
cor, som, 60 min.
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19. FAROCKI, Harun. Imagens
da prisão, 2000, Alemanha,
cor, som, 60 min.
20. Ibidem.
treinamento pergunta: “O que vocês fazem agora? Um guarda o atingiu.
Foi justo este tiro?”. Ele olha para o guarda em treinamento que “atirou”
no detento e diz: “Não vai trabalhar aqui muito tempo, entende?”.
Ouve-se o som de risos ao fundo.
Estas imagens do vídeo de treinamento aparecem logo após
uma longa sequência sobre a morte dentro das prisões, trata-se da
execução do detento William Martinez em Corcorán, na Califórnia. A
narração nos diz: “Imagens de câmera de vigilância. Chamam a atenção
só em caso de exceção. Só em caso de exceção, as fitas não são apagadas
e reutilizadas. Um caso de exceção: a morte”19. Estes arquivos só foram
mantidos pelas instituições porque houve uma morte, do contrário, as
fitas teriam sido apagadas e reutilizadas. As imagens “sobreviveram”, se
tornaram arquivos dentro das instituições, e perpetuaram sua existência
através das mãos do cineasta.
São mais de três minutos de imagens de câmera de vigilância
- portanto imagens mudas em preto e branco, truncadas, sem a fluidez
das narrativas dramáticas – que testemunham a morte. As imagens nos
mostram uma briga entre dois detentos, um deles William, eles trocam
socos e chutes; outros prisioneiros se afastam e deitam no chão, pois,
conscientes das consequências que aquela cena pode ter, anunciam
aos guardas, em forma de movimentos, que não estão envolvidos; uma
fumaça de pólvora aparece na imagem; um corpo cai estendido no
chão. A narração do arquivo original diz: “William Martinez é atingido.
William Martinez, 30 anos, condenado por assalto à mão armada, fica
no chão mais 9 minutos”20. As imagens pertencem ao documentário
Maximum Security University, produzido por uma organização de
Direitos Humanos que investigou a morte de cinco detentos, ao longo
de dez anos, em uma prisão na Califórnia.
Para o espectador que acabou de assistir a sequência que
registra o assassinato do prisioneiro William Martinez, não existe
graça no vídeo de treinamento. Os risos soam como uma afronta, a
desumanidade expressa no escárnio. A falta de seriedade representa o
despreparo, que resulta na execução do outro, e nisso não há a menor
graça. As imagens do treinamento dos guardas, que se assistidas fora do
contexto do filme podem não ser consideradas tão ofensivas, em Imagens
da prisão tomam outra dimensão e nos atravessam violentamente.
Corpo vigiado
O cineasta aborda tanto a violência do sistema prisional
praticada de maneira mais brutal, pela força física, quanto aquela que
se dá de modo mais sutil, a partir da violação da privacidade, “graças
às técnicas de vigilância, a “física” do poder, o domínio sobre o corpo
se efetua sem recurso, pelo menos em princípio, ao excesso, à força,
à violência”21. Segundo Foucault, “o exercício da disciplina supõe um
dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar; um aparelho onde as técnicas
que permitem ver induzam a efeitos de poder, e onde, em troca, os
meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre quem se
aplicam”22. O sistema disciplinar opera processos de desumanização
nos quais as imagens atuam, sejam elas gravadas com a funcionalidade
do registro da ação “técnica” ou da representação do imaginário do
ambiente do presídio. Esta última é o caso em Um condenado à morte
escapou (1956), de Robert Bresson, ou em Uma canção de amor (1950),
único filme de Jean Genet, que conta a história de dois prisioneiros,
divididos por uma parede e que criam um sistema de comunicação
entre si que permite a ambos dar vazão aos seus desejos físicos e
emocionais. Farocki está interessado nas imagens que comprovam,
conforme enunciado pela voz narrativa de Imagens da prisão, que “os
prisioneiros têm consciência de que estão sendo observados”, o que
nos leva ao terceiro bloco de pensamento temático, “O corpo vigiado”.
O documentarista insere imagens de câmeras de vigilância
coloridas, que correspondem a um tempo mais recente. A câmera que
“assumiu o lugar de Deus” permanece nas instituições, no caso, as
prisões, até os dias atuais, elas só ganharam mais força, tornaram-se
onipresentes. O cineasta compara o olhar do guarda do filme de Genet
ao “olhar” da câmera de vigilância de uma prisão. O filme ficcional é
de 1950, as imagens das câmeras foram produzidas no ano 2000. A
vigilância e a violação da privacidade dos prisioneiros permanecem, o
que muda é o instrumento de observação, que vai do olho à câmera(olho). “A sujeição nasce de uma relação fictícia”23, não é preciso
recorrer à força para que um prisioneiro tenha bom comportamento;
“quem está submetido a um campo de visibilidade, e sabe disso, retoma
por sua conta as limitações do poder; fá-las funcionar espontaneamente
sobre si mesmo”24.
Em “Miradas que controlan”25, Harun Farocki discorre
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21. FOUCAULT, Michel. Vigiar
e Punir: nascimento da prisão.
Petrópolis: Editora Vozes,
1987, p. 148.
22. Ibidem, p. 143.
23. FOUCAULT, Michel. Vigiar
e Punir: nascimento da prisão.
Petrópolis: Editora Vozes,
1987, p. 167.
24. Ibidem, p. 168.
25. FAROCKI, Harun.
Desconfiar de las Imágenes.
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26. FOUCAULT, Michel. Vigiar
e Punir: nascimento da prisão.
Petrópolis: Editora Vozes,
1987, p. 167.
27. Ibidem, p. 178.
sobre o modelo panóptico de controle de Jeremy Bentham e sobre
quão importante é que, dentro desse sistema, o prisioneiro se sinta
exposto ao olhar humano. Embora o detento esteja afastado dos olhos
da sociedade, esta encontra-se representada na figura do guarda
penitenciário; é cada vez menos possível esconder segredos deles,
a vigilância é onipresente e ininterrupta, as câmeras operam como
extensão dos olhos, num esquema panóptico intensificador do poder.
Segundo Foucault, “o efeito mais importante do panóptico é induzir
no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que
assegura o funcionamento automático do poder... o ideal é que ele se
saiba vigiado”26. Esse mecanismo de poder atravessa todas as esferas
da sociedade disciplinar em que vivemos: o princípio panóptico não é
apenas a solução técnica para uma questão prisional, mais do que isso,
“através dele se constrói um tipo de sociedade”27.
Em outro momento de Imagens da prisão, Farocki insere
uma sequência de imagens que retoma a relação entre prisioneiros e
guardas, ao mesmo tempo que ouvimos da narração: “Na maioria das
prisões civis do mundo, os guardas estão familiarizados com os sonhos
dos prisioneiros como se dormissem perto deles”; surgem, então,
imagens que têm como ponto central o olhar, ora do ponto de vista do
prisioneiro, ora do guarda. É evidente e ilustrativa a comparação que o
artista realiza entre as imagens dos guardas que espiam por um buraco
na porta da cela no filme de Bresson, na década de 1950, e aquelas que
compõem seu filme e que retratam o ponto de vista dos prisioneiros
atrás das grades. Conforme declara a voz narrativa de Farocki: “Nas
prisões convencionais, para os prisioneiros, é quase impossível guardar
um segredo dos guardas”.
Contrapondo-se às imagens do filme de Jean Genet, são
mostradas cenas de guardas enfrentando prisioneiros que impedem a
visão do interior da cela. Eles agem com violência, há uma disputa entre
prisioneiros e guardas. Os guardas empurram os colchões que obstruem
a visão e espirram gás de pimenta no interior das celas. Enfim, nem
todos os prisioneiros gostam de ser observados. Na narração, Farocki
diz: “Os prisioneiros da cela 131 resistem a ser observados. Os guardas
não podem permitir”.
Logo em seguida, ele reforça a onipresença das câmeras de
vigilância: “As câmeras de vídeo multiplicam a perspectiva de controle.
Seu olho frio deve ilustrar a prisão, desmistificá-la”. Harun Farocki
90
compara imagens do treinamento de carcereiros àquelas de uma briga
entre dois prisioneiros no pátio da prisão e ouvimos o áudio do vídeo de
treinamento, no qual o instrutor diz: “Ali está no chão, atingido da torre
de controle. Como será na vida real? Leva isto a sério! O que vai fazer
agora? Um guarda o acertou, o que vai acontecer? O que você viu?”. Na
imagem de câmera de vigilância, vemos dois detentos no chão do pátio,
parece que um guarda atirou. A voz da narrativa retorna: “Cada vez que
se utilizou uma arma, foi justificada pela comissão do inquérito”. Diante
das imagens de treinamento que acabamos de ver, em que guardas riem
das instruções, como levar a sério essas justificativas?
Antonio Sant’Anna
Flávia Person
Humanidade e crítica de Harun
Farocki
A tecnologia como instrumento de dessubjetivação
No texto “Miradas que controlan”, Harun Farocki escreve
algumas seções sobre a relação entre o avanço da tecnologia e
o sistema carcerário. Na seção “Tecnologia de vigilância”, ele
analisa como o sistema privado de prisões nos Estados Unidos e o
desenvolvimento e a implementação de novos recursos tecnológicos
por parte dessas empresas afetam a vida dos prisioneiros, que, a cada
dia, têm menos contato humano. Em suas palavras: “Máquinas que
expressam o desejo de objetividade, de repressão desapaixonada”28. Já
em “A eliminação dos muros”, outra seção do mesmo texto, o cineasta
discorre sobre a principal consequência da tecnologia do controle
eletrônico, a desterritorialização. Para ele, os espaços têm perdido suas
especificidades – um aeroporto, por exemplo, contém um centro de
compras, que, por sua vez, contém um instituto de ensino etc. Diante
disso, ele pergunta: “O que ocorrerá com a prisão, na medida em
que ela funciona como espelho da sociedade, operando como reflexo
e como projeção?”29. Harun Farocki também reflete sobre como a
tecnologia eletrônica permite que um prisioneiro viva fora da prisão,
através do controle por tornozeleiras eletrônicas e outros dispositivos,
enquanto pessoas comuns tornam-se cada vez mais “prisioneiras” em
seus condomínios fechados. Ele ainda analisa, no capítulo “O fim dos
temas e gêneros”, do mesmo texto, como a tecnologia desdramatiza a
vida cotidiana e, portanto, a representação cinematográfica: “Com o
aumento do controle eletrônico, também a vida cotidiana será difícil de
representar, de dramatizar, como o é o trabalho cotidiano”30.
Para Farocki, a impessoalidade contida no exercício de poder
28. FAROCKI, Harun.
Trabalhadores saindo da
fábrica. In: LABAKI, Amir
(org.). A verdade de cada um.
São Paulo: Cosac Naify, 2015,
p. 206.
29. FAROCKI, Harun.
Desconfiar de las Imágenes.
Buenos Aires, Argentina: Caja
Negra Editora, 2013.
30. Ibidem, p. 211.
91
ARS
ano 18
n. 38
e violência nos tempos atuais passa pelo avanço das tecnologias e pelo
modo como as imagens estão imbricadas nesse processo. O cineasta
relaciona a tecnologia à desumanização que se encontra nos meios de
produção e no encarceramento. Em determinado momento do filme,
enquanto Farocki narra que “a prisão deve aparecer como uma empresa
industrial porque é um lugar de progresso técnico”, vemos imagens de
uma mão apontando para uma espécie de planta baixa apresentada
numa tela de computador. Em seguida, aparecem imagens de um filme
antigo, em preto e branco, em que prisioneiros aguardam em fila, cada
um virado de frente para uma cela. A um sinal, eles entram nas celas e
um guarda gira uma espécie de manivela gigante, que fecha todas elas
sincronicamente, enquanto a narração diz: “Tecnologia das prisões”. O
artista nos apresenta, de maneira inequívoca, como a tecnologia das
prisões foi aprimorada ao longo dos anos.
Diante de imagens gráficas, o cineasta compara o monitoramento
de prisioneiros ao de consumidores em um supermercado. Primeiro,
vêm imagens que sinalizam as prateleiras de que exibem os produtos
e os consumidores que transitam entre elas, depois, uma espécie de
planta baixa em azul, uma prisão, e círculos amarelos que correspondem
a prisioneiros que se movem no pátio. Ouvimos da narração: “Estes
pontos representam prisioneiros, têm um emissor eletrônico no
tornozelo. Pode-se selecionar um prisioneiro e sabe-se a identidade dele.
A identidade”. Assim como você pode selecionar um consumidor de um
supermercado e saber sobre as compras dele, existe a possibilidade de
identificar cada um dos prisioneiros que estão no ambiente monitorado.
31. AGAMBEN, Giorgio.
O que é o dispositivo. In
AGAMBEN, Giorgio. O que é
o contemporâneo e outros
ensaios. Chapecó, Argos,
2009, p. 40.
32. Ibidem, p.40.
33. FAROCKI, Harun. Imagens
da prisão, 2000, Alemanha,
cor, som, 60 min.
34. AGAMBEN, op. cit., p. 102.
35. FAROCKI, Harun.
Desconfiar de las Imágenes.
Buenos Aires, Argentina: Caja
Negra Editora, 2013, p. 205.
O filósofo Giorgio Agamben, a partir da “ampla classe dos
dispositivos foucaultianos”31, define “dispositivo como qualquer
coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar,
determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as
condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes”32. As câmeras,
que possibilitam a vigilância de consumidores e prisioneiros, também
são parte do dispositivo que permite ceifar as vidas dos detentos Randall
e William Martinez33. O instrumento é um só, composto por um fuzil
e uma câmera que registra sua morte – “este é o dispositivo completo:
vigiar e destruir”34, em imagens truncadas, sem som, sem cor, sem
drama. “As brigas no pátio parecem saídas de um videogame barato. É
difícil imaginar uma representação menos dramática da morte”35. DidiHuberman afirma que, na obra de Harun Farocki, assim como em sua
92
própria trajetória enquanto estudioso da imagem, permanece a seguinte
questão: “por que, em que e como a produção das imagens participa
com tanta frequência da destruição dos seres humanos?”36. A chave
para a resposta talvez esteja no quanto as imagens, enquanto parte da
operação de produção acelerada pela tecnologia, ajudam a compor a
normalização da violência à qual estamos submetidos na sociedade
contemporânea.
Ordinariamente, deixamos nossos rastros nas inúmeras e
múltiplas imagens fabricadas pelas câmeras de vigilância, que não
somente pertencem aos espaços militares e do Estado, mas estão
entranhadas em uma “[...]série de dispositivos que retomam a prisão
‘compacta’ [...] cujas formas primitivas e mais grosseiras trazem ainda
muito visíveis as marcas do sistema penitenciário”37. Em relação às
ações que compreendem o uso das imagens, cabe a reflexão de que as
instituições, como governo, exército e televisão, têm o controle e o poder
de registrar, mostrar ou mascarar seus modos de funcionamento. Somos
indivíduos que devem ser descritos, mensurados, vigiados, classificados,
normalizados etc., para que se organize a multidão e uma economia na
qual se extrai dos corpos a máxima “docilidade-utilidade” seja operada.
Segundo Agamben, quanto maior a produção de dispositivos, como as
imagens provenientes dos mecanismos de controle, mais rápida será
a proliferação dos processos de subjetivação, pois o dispositivo deve
sempre produzir o seu sujeito, sem nenhum fundamento no ser, mas
como pura atividade de governo.38 O que esse processo de subjetivação
revela, no entanto, é que esses corpos, que aparentemente podem ser
considerados como livres, em realidade, “assumem a sua ‘liberdade’
de sujeito no próprio processo de assujeitamento”39, ou seja, na atual
fase do capitalismo, as imagens operam como dispositivos que “agem
por meio de processos de dessubjetivação”40, tornando-nos “sujeitos
espectrais”.
Trabalho e prisão
Uma sequência de imagens montada a partir do arquivo do filme
Arbeit und strafvollzug im Zuchthaus Brandenburg-görden [Trabalho
e sistema penal em Brandenburg, em tradução livre] faz transição
para o quinto bloco de pensamento temático, “Trabalho e Prisão”.
As imagens são provenientes de um filme de propaganda nazista que
Antonio Sant’Anna
Flávia Person
Humanidade e crítica de Harun
Farocki
36. DIDI-HUBERMAN,
Georges. Remontagens do
tempo sofrido – O olho da
história II. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2018, p. 98
37. FOUCAULT, Michel. Vigiar
e Punir: nascimento da prisão.
Petrópolis: Editora Vozes,
1987, p. 247.
38. AGAMBEN, Giorgio.
O que é o dispositivo.
AGAMBEN, Giorgio. O que é
o contemporâneo e outros
ensaios. Chapecó, Argos,
2009, p. 38.
39. Ibidem, p. 46.
40. Ibidem, p. 47.
93
ARS
ano 18
n. 38
enaltece a utilidade dos prisioneiros como trabalhadores em serviços
não remunerados em benefício da sociedade. A narração desse filme
comenta: “A utilidade do trabalho dos prisioneiros consiste agora,
sobretudo, num serviço não remunerado em benefício da sociedade”.
Harun Farocki diz: “Nas entrelinhas depreende-se: não é preciso matar
essas pessoas, elas fazem um trabalho útil”.
Farocki procura evidenciar, com essas imagens, que o trabalho
recebe máxima atenção nas prisões, inclusive nas representações
cinematográficas, e afirma: “Os filmes de prisão são um projeto
antropológico”. A partir daí, o cineasta monta uma sequência de como
o prisioneiro, que trabalha para sua própria fuga, é representado no
filme Um condenado à morte escapou. No filme, Harun Farocki diz:
Faz dos objetos do cativeiro, as ferramentas da libertação […] este filme
adota claramente o ponto de vista de um prisioneiro, nitidamente, não o
ponto de vista dos guardas [...] O prisioneiro está entregue a si mesmo.
Tem que reinventar técnicas. Tem que converter a colher em alavanca,
maçaneta, martelo ou chave de fendas. Faz lembrar a história das
ferramentas: também isto é um projeto antropológico.
Em seguida, inicia-se uma sequência de imagens de homens
em uma obra, cenas que fazem parte de um vídeo institucional sobre
o presídio de Marion. Farocki, que acabara de montar uma sequência
que remete ao trabalho, mas do ponto de vista do prisioneiro que
tenta a fuga, em oposição, apresenta uma sequência do ponto de vista
daqueles que têm o dever de construir um edifício no qual não haja
possibilidades de fuga. No início dessa sequência, ouvimos uma trilha
sonora triunfal, e a narração observa: “Soa a música eufórica do futuro,
como se construíssem um dique ou uma barragem. Mas trata-se da
fabricação de lajes de cimento para construir a prisão de Marion no
Estado de Ilinois”.
Vemos imagens do filme Um condenado à morte escapou.
O cineasta mostra o prisioneiro, em primeiro plano, desfazendo
cuidadosamente o estrado da cama, feito de aço. No plano seguinte,
vigas de aço são esticadas por cima de uma laje de concreto, naquelas
que são imagens da construção do presídio de Marion novamente.
O mesmo aço que permite a fuga é o que impede, simbolicamente,
prisioneiros de fugir. A narração nos diz: “Um filme sobre a construção
de prisões, do ponto de vista do engenheiro, pensada para desanimar
toda a esperança de fuga”. Quais as chances de fuga que esse prisioneiro
teria se estivesse no presídio de Marion? O filme ficcional se passa
no início da década de 1940, a construção do presídio ocorreu vinte
anos depois. A tecnologia desenvolvida contra a fuga de prisioneiros
inviabilizaria a narrativa do prisioneiro que escapou, ou melhor, a
94
Antonio Sant’Anna
Flávia Person
Humanidade e crítica de Harun
Farocki
tornaria muito mais criativa e trabalhosa.
O tema trabalho e prisão reaparece posteriormente no filme
em uma sequência de imagens que remete à ordem militar. Em um de
seus textos, Harun Farocki escreve: “Vale a pena comparar as imagens
da prisão, a abertura das celas, a formação dos presos, dos guardas
passando a lista, da marcha em colunas e os movimentos circulares
no pátio etc., com imagens feitas nos laboratórios de investigação do
trabalho”. Em Imagens da prisão, ele apresenta uma sequência de
imagens de homens uniformizados em fileiras marchando, e afirma:
“Uma ordem militar chama ao trabalho, mas o tom mudou. O crime
deve ser suprimido como a falta de habitação e desemprego. Antes,
passavam aqui carcereiros e guardas. Hoje tem que ser mais que isso,
tem que educar”. Destaque para uma sequência na qual guardas abrem
e fecham celas, mãos abrem e fecham cadeados e trancas em primeiro
plano, os movimentos e barulhos que disso resultam se repetem, numa
espécie de melodia. A voz off original do arquivo diz: “Levam o seu
trabalho a sério. Mas o serviço cotidiano ao longo dos anos, às vezes
converte-se em rotina”. E Harun Farocki completa: “O ruído dos
passos, fechaduras e portas expressa o mecanismo da execução penal”.
A sequência termina com as imagens com que começou, porém no
sentido inverso. A carcereira, que antes havia fechado a cela, agora a
abre, a prisioneira está pronta para ir ao trabalho. Por meio das imagens
e dos sons, Harun Farocki relaciona o mecanismo da execução penal
com o mecanismo do mundo do trabalho. Ele nos informa: “Neste filme
da RDA, a prisioneira pode sair da prisão para ir ao trabalho”.
Farocki também comparou os ambientes de fábricas e prisões
a partir das imagens utilizadas em seus filmes A saída dos operários da
fábrica41 e Imagens da prisão. Ele mobiliza as mesmas imagens nos dois
filmes, com o intuito de reforçar as relações existentes entre fábricas e
prisões e o modo como elas vêm sendo representadas na cinematografia.
A cena começa com um plano médio de uma mulher (prisioneira)
subindo na caçamba de um caminhão. Ela encontra lugar para se
sentar em meio às pessoas que a ocupam em sua quase totalidade.
Uma agente de segurança chama a prisioneira pelo seu nome, Renata,
41. FAROCKI, Harun. A saída
dos operários da fábrica,
1995, Alemanha, cor, som,
36 min.
95
ARS
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n. 38
42. FAROCKI, Harun. A saída
dos operários da fábrica,
1995, Alemanha, cor, som,
36 min.
43. FAROCKI, Harun. Imagens
da prisão, 2000, Alemanha,
cor, som, 60 min.
e lhe dá uma peça de roupa. Um corte na cena introduz a imagem de
uma mulher mais velha que aparenta esperar. Em seguida, um plano
geral no qual podemos ver a senhora de costas, no canto direito da tela,
e um caminhão que sai por um portão (que poderia ser tanto de uma
fábrica quanto de uma prisão). Conforme o caminhão se aproxima da
câmera, a prisioneira se levanta em direção à senhora, a chama de mãe
e lhe agradece a camisola. O caminhão sai do quadro, a senhora já está
em frente à câmera e deseja boa sorte à filha no trabalho. Em A saída
dos operários da fábrica, a narração declara: “Em cem anos de cinema,
viram-se provavelmente mais portões de entradas de prisões que de
fábricas [...] A fábrica é como uma casa de correção”42; em Imagens
da prisão, ela anuncia: “A fábrica converte-se numa dependência da
prisão”.
A relação entre fábricas e prisões, para Harun Farocki, também
se dá no movimento corporal. Os gestos dos homens na prisão lembram
os itens sendo produzidos em série nas grandes fábricas capitalistas:
“No movimento por passeios e escadas, pode-se ver não só o quartel,
mas também a antiga ordem da fábrica, a sequência dos produtos na
linha de produção”43. O homem que vira um produto. Um processo de
objetificação, dessubjetivação.
O desejo
Por fim, o sexto bloco de pensamento temático de Farocki
reúne imagens que podemos relacionar com o desejo, que, embora
reprimido e controlado, sempre encontra uma saída de expressão,
cintila a humanidade ainda existente nos corpos aprisionados. Em
uma determinada sequência, por exemplo, assistimos a cenas reais
e ficcionais de prisioneiros em seus momentos de liberdade, como a
passagem na qual um detento é libertado, saindo pelo portão da prisão
de Brandemburgo e caminhando na direção oposta à prisão. Pelo
mesmo portão sai uma mulher, mas, nesse caso, o arquivo é o filme
da RDA, Frauenschicksale. A narração diz: “Outra vez, a prisão de
Brandemburgo. O pesado portão da prisão está usado, parece que ouve
tiroteio”. Enquanto assistimos a essas imagens, que contêm movimentos
semelhantes àqueles narrados, Harun Farocki nos fala: “Devia consultar
todos os arquivos do mundo, milhares de cenas nas quais se colocou
prisioneiros em liberdade. Se estivéssemos presentes em todas as cenas
em que um prisioneiro é posto em liberdade, podíamos compor uma
imagem da libertação”.
Além da liberdade sonhada, outra expressão que o cineasta
relaciona ao ambiente prisional é o amor. O controle praticado pela
vigilância ininterrupta, possibilitada pelas câmeras de segurança,
extrapola todos os limites de privacidade e domina até as relações de
amor e conexão positiva com o externo. A punição do prisioneiro é a
negação de sua humanidade. A partir de um determinado momento do
filme, inicia-se uma sequência sobre como se dão as visitas nas prisões,
a narração nos alerta: “Visita na prisão está sob vigilância. O tempo de
clemência acabou”.
Harun Farocki compara as condições de visita aos prisioneiros
em uma época mais atual e a maneira como era dramatizada pelas
ficções mudas da década de 1920. A narração nos diz: “Quantas vezes o
cinema mostrou isso”. Na imagem ficcional, vemos um prisioneiro que
suborna o guarda. Ele, então, abre a cela e deixa que o detento beije
sua namorada. Em diversos momentos, o documentarista nos chama
a atenção para a mudança das narrativas proporcionadas pelas novas
tecnologias, que cada vez mais isolam o ser humano do contato e agem
no sentido de sua dessubjetivação. Há um processo de desdramatização
da vida e, portanto, também das narrativas cinematográficas.
Neste bloco sobre as visitas na prisão, Farocki declara: “Sob
vigilância, as palavras têm de ser escolhidas com cuidado. Amor e ânsia
têm que encontrar uma expressão própria”. Mas que expressão ou
expressões são essas que o amor e o desejo encontram num ambiente
monitorado como o da prisão? O guarda que opera a câmera vigia a sala
de visitas e a congela em um casal. Ouvimos da narração: “Milhares
de filmes representaram isto: sob vigilância, o amor tem que encontrar
uma expressão particular”. Nas imagens, vemos o prisioneiro aproximar
uma cadeira com o intuito de obstruir parcialmente a visão de quem
vigia e, assim, impedir que vissem a mulher com as mãos entre suas
pernas.
Em cenas do filme de Jean Genet, o desejo encontra sua
expressão no compartilhamento de um cigarro entre os dois prisioneiros
que habitam celas vizinhas. Um deles traga o cigarro e, em seguida,
assopra por um canudinho que conecta as duas celas. Os gestos
sugerem uma conotação erótica. Na ficção, as câmeras de vigilância
não se fazem presentes.
96
Antonio Sant’Anna
Flávia Person
Humanidade e crítica de Harun
Farocki
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ano 18
n. 38
44. DIDI-HUBERMAN,
Georges. Sobrevivência dos
Vagalumes. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2011.
Em Imagens de prisão, novamente vemos imagens de uma sala
de visitas. Farocki narra: “Diz-se que o amor é uma improbabilidade.
Mas uma improbabilidade com a qual se conta”. O casal aproxima as
cadeiras e troca carícias, o operador da câmera de vigilância dá um
close na ação. O artista compara a improbabilidade do amor à da morte,
a partir de imagens de câmera de vigilância de um pátio onde dois
prisioneiros estão em luta corporal.
O amor e a morte são vigiados. A improbabilidade de suas
ocorrências permite a permanência de seus registros nos arquivos da
prisão, são casos de exceção. Farocki retorna às imagens do casal em
dia de visita. Ele nos diz: “Milhares de câmeras vigiam as visitas na
prisão: um dia, qualquer expressão imaginável estará registrada nas
fitas. Aqui homem e mulher só se podem tocar nas mãos. Este casal
infringiu as regras, o prisioneiro será expulso da sala”. As imagens da
vida real transmitem muito menos paixão e drama que as imagens
da ficção. Na montagem, Farocki sucede as imagens da interrupção
abrupta da expressão amorosa com uma cena do filme Pickpocket, de
Bresson, na qual um homem visita uma prisioneira em sua cela. Através
da grade, ele beija a testa da prisioneira de maneira apaixonada e, em
seguida, diz: “Ó Jeanne, que desvios tive que correr para chegar aqui!”.
Essas imagens permitem que Farocki retorne à questão do
corpo dentro do ambiente da prisão. Vemos recortes de revistas com
imagens de mulheres nuas, seminuas ou em poses eróticas. Parece
ser a parede de uma cela de um detento. O artista compara os corpos
seminus daquelas mulheres, que representam o corpo do desejo, a
corpos de homens, também seminus, mas que estão no pátio de uma
prisão. Ambas as imagens são objetos de voyeurismo, envolvem o prazer
de quem observa à distância, seja pelo desejo erótico ou pela violência.
Corpos de desejo, corpos controlados.
O conjunto dessas imagens, que constituem o último bloco
temático, mostra-nos corpos que não deixaram de expressar desejos e
sonhos e atuam como lampejos de vida em um ambiente que, a todo
momento, transmite controle, violência e morte. Assim como Harun
Farocki nos leva a enxergar a humanidade que existe nas imagens da
prisão apesar de tudo, Didi-Huberman afirma que, para o desespero, é
preciso lembrar que “a dança viva dos vagalumes se efetua justamente
no meio das trevas”44. No seu livro Sobrevivência dos vagalumes, o autor,
partindo dos exemplos da obra do cineasta Pier Paolo Pasolini, que
98
acredita “não existir mais seres humanos”, e do pensamento do filósofo
Giorgio Agamben, para quem “o homem contemporâneo é despossuído
de experiência”, busca entender certo discurso intelectual e artístico
sobre o mundo contemporâneo. Para Didi-Huberman, a experiência
é indestrutível, e os artistas e intelectuais que partilham desta visão
apocalíptica perderam a capacidade de ver aquilo que insiste em existir,
“as sobrevivências e as clandestinidades de simples lampejos na noite”45.
As imagens que o cineasta retira dos arquivos e traz ao nosso
conhecimento, afinal, não são fraturas materializadas do tempo que
ficaram soterradas nas instituições? Para Harun Farocki e DidiHuberman, as imagens, além de tudo, servem para organizar o
pessimismo e ajudam a repensar o próprio “princípio esperança”. Mesmo
que o presente esteja inundado de trevas, devemos fazer o exercício
de buscar as emissões fracas de luz que beiram o chão, os vagalumes,
porque é no “nosso modo de imaginar que jaz fundamentalmente uma
condição para nosso modo de fazer política. A imaginação é política, eis
o que precisa ser levado em consideração”46.
Antonio Sant’Anna
Flávia Person
Humanidade e crítica de Harun
Farocki
45. DIDI-HUBERMAN,
Georges. Sobrevivência dos
Vagalumes. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2011, p. 148.
46. Ibidem, p. 60.
Considerações finais
Harun Farocki era um artista-pesquisador, suas obras eram
menos obras de expressão artística do que resultados artísticos
metalinguísticos de suas pesquisas. Durante sua trajetória, o cineasta
transitou por diferentes suportes e espaços de circulação de obras,
mantendo o olhar atento às imagens, superfícies na qual o artista busca,
analisa, reenquadra e reinventa. As imagens não foram utilizadas como
meras representações na construção de narrativas, sempre foram sua
grande questão, ao mesmo tempo, sua matéria-prima.
Ao longo de sua extensa e profunda carreira artística, alguns
temas foram recorrentes em suas obras, como guerra, tecnologia,
consumo e trabalho. Nascido na Alemanha em 1944, período em que
“o mundo inteiro estava continuamente tomado por um sentimento
de violência política e militar sem precedentes”47, Farocki parece fazer
de sua trajetória como pesquisador e artista uma busca incessante
pela compreensão dos mecanismos e das engrenagens da sociedade
contemporânea, por meio da “montagem crítica das imagens”48, como
Didi-Huberman definiu: “uma montagem do pensamento elevado até o
ritmo da cólera para, calmamente, cindir melhor a violência do mundo”49.
47. DIDI-HUBERMAN,
Georges. Remontagens do
tempo sofrido – O olho da
história II. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2018, p. 95.
48. Ibidem, p. 97.
49. Ibidem, p. 97.
99
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n. 38
50. AGAMBEN, Giorgio.
O que é o dispositivo. In:
AGAMBEN, Giorgio. O que é
o contemporâneo e outros
ensaios. Chapecó, Argos,
2009, p. 64.
51. Ibidem, p. 65.
52. FAROCKI, Harun.
Videogramas de uma
revolução, 1992, Alemanha,
cor, som, 106 min.
53. FAROCKI, Harun. Trailers
escritos. In: Harun Farocki:
por uma politização do olhar.
São Paulo: Cinemateca
Brasileira, 2010, p. 77.
54. FAROCKI, Harun. A saída
dos operários da fábrica
(1995), Harun Farocki,
Alemanha, cor, som, 36 min.
55. FAROCKI, Harun. A
apresentação (1996),
Alemanha, cor, som, 40 min.
56. FAROCKI, Harun. A
entrevista (1997), Alemanha,
cor, som, 58 min.
57. FAROCKI, Harun. Natureza
morta (1997), Alemanha, cor,
som, 56 min.
58. FAROCKI, Harun. Os
criadores dos impérios das
compras (2001), Alemanha,
cor, som, 72 min.
E nos convida a fazer o mesmo, é como se Farocki nos perguntasse: você
já prestou atenção nas imagens (cada vez mais produzidas) do mundo?
Consegue enxergar as estruturas que possibilitam que elas existam e
o quanto elas fazem parte dessa grande máquina de manutenção da
opressão e das desigualdades? Poderíamos dizer que Harun Farocki é
“aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne
e não cessa de interpelá-lo”50, definição que o filósofo Giorgio Agamben
utilizou para o conceito de contemporâneo, aquele que, antes de tudo,
precisa ter coragem, porque deve ser capaz “não apenas de manter o
olhar fixo no escuro da época, mas também de perceber nesse escuro
uma luz que, dirigida a nós, distancia-se infinitamente de nós”51.
Ironicamente, após lançar Videogramas de uma revolução52,
filme que desconstruiu algumas convicções políticas de Farocki – “nunca
pensei que um filme sobre uma revolução fosse cair no meu colo, ainda
mais um filme sobre uma revolução que não iria estabelecer, mas abolir
o socialismo”53 -, o artista passa a viver mais tempo nos Estados Unidos,
onde deu aulas de cinema na Universidade da Califórnia, em Berkeley,
durante seis meses por ano. Não à toa, durante esse período, produziu
filmes cujos temas remetem às sociedades capitalistas, como A saída
dos operários da fábrica54, inspirado no primeiro filme já realizado, dos
irmãos Lumière, uma montagem com cenas produzidas ao longo de
100 anos de história do cinema, contendo variações do motivo que dá o
título do filme, e que extrai das imagens reflexões sobre a iconografia e a
economia da sociedade de trabalho, e também sobre o próprio cinema;
A apresentação55, sobre uma agência publicitária que tenta vender um
conceito de comercialização para um consórcio de loja de óculos e onde
cada detalhe é dramatizado para se conseguir um contrato lucrativo;
A entrevista56, filme no qual Farocki acompanha os participantes de
um treinamento para entrevistas de emprego e investiga a ansiedade
provocada pelo desemprego, a superficialidade das entrevistas e a lógica
manipulativa das corporações; Natureza Morta57, no qual o diretor
explora as semelhanças e diferenças entre as representações de bens
de consumo, como queijo e cerveja, em pinturas de naturezas mortas
dos séculos XVI e XVII e imagens documentais de ateliês de fotografia
dos anos 1990, com fins de publicidade; Os criadores dos impérios das
compras58, um estudo sobre como os shopping centers são planejados
e construídos com o intuito de maximizar as vendas, controlar o fluxo
e o olhar dos consumidores, a fim de induzi-los à compra; e Capital de
Risco59, documentário em que representantes de uma empresa média e
de uma companhia de capital de risco encontram-se para negociações,
um olhar microscópio sobre uma célula da economia de hoje, uma
etnografia do cotidiano econômico.
O filme Imagens da prisão, lançado em 2000, faz parte deste
conjunto de obras; para o artista, imagens relativas às prisões não
haviam sido muito teorizadas.60 Este artigo se reservou a analisar o que
Harun Farocki formulou sobre as prisões, a crítica do artista que recai
sobre o processo de desumanização deflagrado em vários aspectos do
sistema prisional e que se expande para além dos muros. As instituições
carcerárias revelam a estrutura disciplinar engendrada em todas as
esferas da sociedade contemporânea, um dos aspectos mais aparentes
é a vigilância ostensiva, tenha ela a finalidade de lucro a donos de
supermercado, inibição de possíveis violações da propriedade privada
100
Antonio Sant’Anna
Flávia Person
Humanidade e crítica de Harun
Farocki
59. FAROCKI, Harun. Capital
de risco, 2004, Alemanha, cor,
som,50 min.
60. FAROCKI, Harun.
Bilderschatz. 3rd
International Flusser
Lecture. Köln, Alemanha:
Flusser Archiv, 1999, p. 11.
ou contenção de enfrentamentos violentos.
As imagens se relacionam tanto com processos de produção
de bens e de capital quanto com processos de destruição dos seres
humanos, e a vigilância é apenas um dos dispositivos que compõem
esta malha disciplinar na qual a sociedade se constituiu. Em Imagens
da prisão, os corpos dos prisioneiros são vigiados, oprimidos e
disciplinados, seja por meio de ações mais violentas, como imobilização
corporal ou disparo de tiros, seja pela proibição de gestos de carinho
ou libidinosos. Sobre esses corpos é exercida “uma coerção sem folga,
de mantê-los ao nível da mecânica – os movimentos, gestos, atitude,
rapidez”61 – e, embora em diferentes graus, nunca isentos de violência,
outros corpos (trabalhadores, estudantes, hospitalizados) também
estão submetidos a inúmeros e semelhantes mecanismos de disciplina.
“A prisão transforma o processo punitivo em técnica penitenciária; o
arquipélago carcerário transporta essa técnica da instituição penal para
o corpo social inteiro”62.
A observação atenta do filme Imagens da prisão nos permite
identificar seis blocos de pensamento de imagens. A análise das
redundâncias – como o método orienta – não parte de uma observação
diacrônica de sequência das imagens (o que quer dizer que não
realizamos uma observação do filme apenas do início ao fim), mas busca
suas sincronicidades, isto é, as semelhanças das imagens (relações) fora
da linha sequencial/temporal, ou seja, que as imagens que compõem
estes blocos temáticos se apresentam no filme em diferentes momentos.
61. FOUCAULT, Michel. Vigiar
e Punir: nascimento da prisão.
Petrópolis: Editora Vozes,
1987, p. 118.
62. Ibidem, p. 247.
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ARS
ano 18
n. 38
63. EHMANN, Antje; ESPADA,
Heloisa. Harun Farocki:
quem é o responsável?. Rio
de Janeiro, 2019, Instituto
Moreira Salles, p. 2. Catálogo
de exposição.
64. Ibidem, p. 2.
65. LEAKEY, Richard. A
origem da espécie humana.
Rio de Janeiro: Ed. Rocco,
1997.
66. DIDI-HUBERMAN,
Georges. Remontagens do
tempo sofrido - O olho da
história II. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2018, p. 199.
67. DIDI-HUBERMAN,
Georges. Sobrevivência dos
Vagalumes. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2011, p. 78.
Agora, se colocamos estes blocos de pensamento imagético em uma
determinada ordem, podemos visualizar com clareza uma estrutura de
pensamento que operou na realização deste filme, uma vez que fica
evidenciada uma linha discursiva de raciocínio na qual, para o cineasta,
o poder (representado pelo Estado) contra aquele que se insurge ou
viola as regras sociais consegue oprimir seu corpo, discipliná-lo, vigiálo, dessubjetivá-lo e até mesmo reeducá-lo, mas não consegue nem
pode possuí-lo ou esvaziá-lo de seus desejos e sonhos.
Em um texto intitulado “Einfühlung”63 [Empatia], Farocki
escreve sobre a influência de Brecht na sua maneira de assistir às
coisas, nada vidrado, romanticamente. Para o autor:
“Empatia” é uma expressão mais bonita que “identificação”, tem um sabor
residual de transgressão. “Einfühlung” (empatia) é uma combinação de
“eindringen” (penetrar) e “mitfühlen” (compartilhar um sentimento).
Deve existir uma maneira de exercer a empatia que gere o efeito de um
estranhamento.64
Farocki talvez não tenha se dado conta de que encontrou a
maneira de exercer a empatia a partir de muitos estranhamentos,
diante dos quais ele coloca o espectador. Em Imagens da prisão, por
exemplo, ele provoca o observador a ter um sentimento de revolta
contra a violência física e moral que a prisão infringe aos detentos, ao
mesmo tempo que nos recorda que estes são seres humanos, porque
não perderam – e o Estado/Poder não pode deles tirar – aquilo que
é uma das características que, em essência, define o ser humano,
que é a capacidade de desejar. E acaba trazendo à tona o conceito
de empatia porque esta, justamente, é outra das características que
definem o humano, pois, assim como o desejo, é uma consequência
– ou potencialidade derivada – do desenvolvimento da capacidade
simbólica de nossa espécie no seu processo evolutivo65. O artista pode
se utilizar de um certo distanciamento que evita o “sentimentalismo
cego, mas jamais elimina a emoção que supõem, ao mesmo tempo, os
acontecimentos da história da qual ele trata e suas próprias escolhas de
‘tato’ ou de ‘sensibilidade’ fílmicos”66.
Num primeiro olhar, Farocki pode parecer um artista que
“opera um modo apocalíptico de ver os tempos”67 – assim como DidiHuberman definiu, em seu livro Sobrevivência dos Vagalumes, o cineasta
Pier Paolo Pasolini e o filósofo Giorgio Agamben -, pois ele mostra as
imagens montadas e remontadas com cada vez mais precisão e revela
o quanto elas fazem parte de uma estrutura que mantém e garante
a perpetuação da violência, mesmo que nos campos mais sutis. Em
suas obras, “a justiça grita por ela mesma, objetivamente, na crueza
ou crueldade de seus dispositivos, sejam eles camuflados por sorrisos
de aparência ou aparências de racionalidade”68. Porém, após um olhar
mais atento ao filme Imagens da prisão, chega-se à conclusão de que
Farocki era, de fato, um artista contemporâneo, ele tinha o dom de
“obscurecer o espetáculo do século presente a fim de perceber, nessa
mesma obscuridade, a “luz que procura nos alcançar e não consegue”69.
Diferente de Pasolini, Farocki não atribui uma vitória definitiva à
máquina totalitária, ele encontra “as aberturas, os possíveis, os lampejos,
os apesar de tudo”70 que iluminam o que nos resta de humanidade.
Harun Farocki “assume a liberdade do movimento, a faculdade de fazer
aparecer parcelas de humanidade, o desejo indestrutível, ele diz sim na
noite atravessada de lampejos e não se contenta em descrever o não da
luz que nos ofusca”71.
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Antonio Sant’Anna
Flávia Person
Humanidade e crítica de Harun
Farocki
68. DIDI-HUBERMAN,
Georges. Remontagens do
tempo sofrido - O olho da
história II. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2018, p. 136.
69. Ibidem, p. 154.
70. Ibidem, p. 42.
71. Ibidem, p. 154.
103
ARS
ano 18
BIBLIOGRAFIA
n. 38
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Brasileira, 2010.
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Horizonte: Editora UFMG, 2011.
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Rocco, 1997.
LEVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. SP: Ed. Nacional,
1976.
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FILMOGRAFIA
Antonio Sant’Anna
Flávia Person
Humanidade e crítica de Harun
Farocki
A apresentação (Der Auftritt, Harun Farocki, 1996)
A entrevista (Die Bewerbung, Harun Farocki, 1997)
A saída dos operários da fábrica (Arbeiter verlassen die Fabrik, Harun
Farocki, 1995)
Capital de risco (Nicht ohne Risiko, Harun Farocki, 2004)
Fogo inextinguível (Nicht löschbares Feuer, Harun Farocki, 1969)
Imagens do mundo e inscrição da guerra (Bilder der Welt und Inschrift
des Krieges, Harun Farocki, 1989)
Imagens da prisão (Gefängnisbilder, Harun Farocki, 2001)
Natureza morta (Stilleben, Harun Farocki, 1997)
Os criadores dos impérios das compras (Die Schöpfer der
Einkaufswelten, Harun Farocki, 2001)
Videogramas de uma revolução (Videogramme einer Revolution,
Harun Farocki e Andrei Ujica, 1992)
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ARS
ano 18
n. 38
Antonio Carlos Vargas Sant’Anna é Bacharel em Artes/Pintura pelo
Instituto de Artes – UFRGS (1986), cursou Doutorado em Artes pela
Universidad Complutense de Madrid (1992), Pós-doutorado em
Antropologia e Filosofia nas Universidad del País Vasco e Universitat
de Barcelona (1995-1996). Artista visual com exposições individuais
e coletivas no Brasil, Espanha, Portugal, Alemanha, Canadá e
EEUU com obras no acervo do Museu de Arte de Santa Catarina, na
Coleção da Fundação Bienal de Cerveira-Portugal e na Coleção Anne
Richards, Texas, Estados Unidos. Autor de artigos, capítulos de livros
e livros de 2005 a 2008, é Professor de graduação e pós-graduação
na Universidade do Estado de Santa Catarina-UDESC, onde foi Diretor
do Centro de Artes de 2005 a 2008, e Pró-reitor de pesquisa e pósgraduação de 2016 a 2020.
Artigo recebido em 22 de julho
de 2019 e aceito em 27 de
março de 2020.
Flávia Person é graduada em Imagem e Som pela Universidade
Federal de São Carlos, mestra e doutoranda em Artes Visuais pela
Universidade do Estado de Santa Catarina e possui certificação pelo
Programa de Capacitação em Projetos Culturais do Ministério da
Cultura/FGV. Atua na área cinematográfica há mais de dez anos,
elaborando projetos, escrevendo roteiros, produzindo e dirigindo
filmes, festivais, mostras de cinema e projetos para TV.