Roteiros bíblicos de Fedra
Autor(es):
Ramos, José Augusto M.
Publicado por:
Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de
Coimbra; Imprensa da Universidade de Coimbra
URL
persistente:
URI:http://hdl.handle.net/10316.2/30109
DOI:
DOI:http://dx.doi.org/10.14195/978-989-721-010-5_6; DOI:978-989-721010-5 (PDF)
Accessed :
24-Apr-2020 01:43:30
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Hipólito e Fedra
nos caminhos de um mito
Carlos A. Martins de Jesus, Claudio Castro Filho,
José Ribeiro Ferreira (coords.)
IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
COIMBRA UNIVERSITY PRESS
Roteiros bíblicos de Fedra
ROTEIROS BÍBLICOS DE FEDRA
José Augusto M. Ramos
Universidade de Lisboa
Para compor uma geografia teatral com a imagem de Fedra, as tradições
culturais da Grécia foram entretecendo caminhos e cruzando figuras. Foram,
desta maneira, colocando em jogo os mais variados circuitos do relacionamento
emocional e familiar. Na densidade desse espaço, ocorrem universalmente
alguns relacionamentos que são construtivos e benfazejos, mas aparecem
também alguns elementos bem nefastos. Estes últimos fazem com que as
aventuras do amor exponham momentos menos felizes, podendo mesmo
atingir laivos incontornáveis de tragédia. A variedade e intensidade dos temas
humanos que marcam a tragédia de Fedra ocorrem igualmente na Bíblia. O
seu tratamento, contudo, decorre ali em perspetivas diferentes.
A consideração destes percursos, de evidente ressonância existencial, pode
ser útil como espelho humano de uma cultura que é diferente da dos Gregos,
mas pode ser coincidente com a destes em muitos dos seus dados. Por isso nos
parece útil focar algumas paisagens situadas em diversos roteiros e temas da
Bíblia, nos quais se podem entrever linhas de convergência com os de Fedra.
Sob formas de maior ou menor analogia, também os traços vivenviais de Fedra
por ali se difundem, de forma mais ou menos carregada.
Com o interesse da utilidade direta, a biografia grega de Fedra vai
definindo e acumulando na personagem os traços psicossociais que, na sua
cultura, soavam mais pertinentes. Pressupomos o seu teor concreto por detrás
das imagens de comparação que recolhemos na literatura bíblica. Julgamos,
por isso, desnecessário recolher aqui qualquer resumo sobre os passos gregos
da história de Fedra. Procuraremos respigar alguns temas que sugerem
correspondências com os traços da narrativa, sem nos delimitarmos aos tópicos
mais destacados na tragédia euripidiana.
O pólo familiar na aventura social do amor
Que as vicissitudes e decisões sobre o destino amoroso de uma mulher
possam ter particular ressonância no seio da sua família, como unidade orgânica,
é também uma condição humana normal, segundo a mentalidade do homem do
mundo pré-clássico e bíblico. Esse lado familiar orgânico pode motivar, mesmo
sem que o pai esteja morto ou ausente, que o destino amoroso de uma mulher se
veja sujeito a interferências dramáticas por parte dos seus irmãos.
A este propósito, o episódio bíblico mais marcante e exemplar pode ser o
de Dina, filha de Jacob (Gn 34, 1-31). Esta foi primeiro raptada e violentada
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por um cananeu, mas, logo de seguida, passou a ser amada e foi solicitada em
casamento. O violador que assim se transformou em amante apaixonado era
Siquém, filho de Hamor, chefe político de um grupo de cananeus na região
central da Palestina. A negociação foi conduzida perante o pai, Jacob, mas
estavam igualmente presentes os seus outros filhos, a modo de assembleia
familiar.
Jacob parecia estar a negociar de boa fé, percebendo e aceitando que
com aquele casamento se pudesse estar a dar início a uma nova fase política
de convivência entre os dois grupos. A narrativa historiográfica como que
validava aquele entendimento, vendo nele uma via de futuro. Os irmãos de
Dina, contudo, mantiveram, desde o princípio, uma atitude vingativa de modo
camuflado. Não aceitavam ultrapassar a desonra que tinham experimentado,
por causa da violação da irmã por parte de um daqueles estrangeiros. Os
homens de Siquém tinham concordado, de boa fé, em se sujeitar a fazer a
circuncisão, de modo a poderem entrar em aliança com os hebreus.
Estes, porém, aproveitaram-se do estado de fraqueza provocado pela
circuncisão e mataram à espada todos os homens de Siquém. O lado positivo
do desenvolvimento do amor, depois da violação, não evitou a guerra entre as
duas sociedades. Foi uma tragédia derivada de intervenções contraditórias no
decurso da história.
É de sublinhar, entretanto, o facto de o pai, Jacob, ter assumido em
toda esta ocorrência um papel muito menos decisivo do que aquele que é
desempenhado pelos irmãos de Dina. O decisivo carrega a marca do trágico.
E são os irmãos que dão esse passo.
Se eventualmente a circunstância em que o irmão de Fedra a deu em
casamento a Teseu estiver em ligação com algum dos múltiplos negócios
motivados pela diplomacia real, então ele estaria a comportar-se como o novo
rei de Creta, tratando dos seus negócios políticos com Teseu de Atenas. Muitos
casamentos de iniciativa real e de interesse político obedeciam, na Antiguidade,
a este padrão. A história do Antigo Oriente conhece estes processos. Na Bíblia,
são menos frequentes estes negócios diplomáticos e não são práticas muito bem
vistas. A figura da fenícia Jezabel, com quem o rei Acab casou, é um exemplo
(1Rs 16,30-34). Esta linguagem diplomática dos casamentos políticos aparece
quase caricaturada a propósito da prática de Salomão, também para ele com
consequências pouco brilhantes (1Rs 11,1-13).
No genérico destas histórias institucionais não costuma sobrar espaço para
espelhar o lado humano das mulheres diretamente envolvidas no negócio, se
bem que, por vezes, se detetem atitudes de proteção que deixam perceber essas
situações de mal-estar pessoal como plausíveis de acontecer1. Quem sabe se
1
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Talvez por algum sentimento de superioridade, os egípcios mostravam relutância em
Roteiros bíblicos de Fedra
esta circunstância não poderia justificar também uma parte da insegurança que
a relação entre Fedra e Teseu parece ter chegado a conhecer. A conveniência
política não coincide sempre com o sentido da experiência pessoal e esta pode
representar, por vezes, logros gritantes.
Idilicamente, uma das cantigas do Cântico dos Cânticos apresenta como
preocupação afetuosa de uns irmãos a de saber qual o papel que lhes caberia
assumir relativamente ao futuro amoroso de uma sua irmã ainda pequena:
Temos uma irmã pequena,
a qual ainda não tem seios.
Que faremos pela nossa irmã,
quando vierem falar nela?
Se ela é uma muralha,
nela faremos ameias de prata;
se é uma porta,
reforçá-la-emos com traves de cedro.
A vivência familiar do tema helénico de Fedra poderá não ter este teor
irénico. Mas a situação é igualmente cúmplice do ponto de vista familiar: e não
será esta a única vez que se podem descobrir sentidos diferentes entre temas
gregos e bíblicos, mesmo quando parecem ser materialmente coincidentes.
Cumplicidades e conflitos domésticos do amor
Podem verificar-se casos em que um homem se dispõe a aceitar que a sua
mulher possa camuflar a sua condição de casada, aceitando a eventualidade
de vir a ser mulher de outro, normalmente mais poderoso, sem se ver nisso
dramas de maior. A implicação entre amor e exclusividade sexual podia assim
consentir exceções tranquilas. Verifica-se que este tópico conhecia algum eco
social. Por isso, dava azo a histórias que conheceram evidente atrativo literário.
É por esse interesse que uma história deste género aparece mais do que uma
vez na Bíblia. Ela acontece com Abraão (Gn 12, 10-20) e, depois, com Isaac
(Gn 26,8-11). Ora, esta cedência não parece implicar nenhum menosprezo
pela própria mulher. A situação é, pelo contrário, considerada como um mal
menor e pode ser consentida e reconhecida como benfazeja para o interesse
de ambos os cônjuges. Até os de fora, os “inimigos”, acabam por assumir,
relativamente a estes casos e sem hesitar, uma posição justa (Gn 26,10), que
até os interessados parecem sublinhar com agrado.
permitir que as suas princesas fossem dadas em casamento político para o estrangeiro. Aquilo
que é referido a propósito de Salomão (1Rs 9,16; 11,1) deve ser um caso atípico na política
faraónica.
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José Augusto M. Ramos
O facto, porém, não é tratado como uma vivência com tonalidades de drama
nem como uma ação moralmente reprovável. As perplexidades características
da consciência trágica ficaram afastadas. A transcendência do ato como que
ficou abafada. O facto de Sara ser meia irmã de Abraão não impede que o seu
casamento com ela seja visto com toda a naturalidade (Gn 20, 12). Os fatores
que definem o conceito de incesto podem ser, por conseguinte, variáveis.
Sendo aparentemente menos chocante, o caso de Rúben que teve
relações com uma concubina do seu pai, Jacob, é objeto de uma degradação
com a recusa do direito de primogenitura que lhe competia, por ter aviltado
a honra do leito paterno (Gn 35,22 e 49,3-4). Uma concubina era, de facto,
uma das “esposas”. Os direitos paternos serão igualmente uma realidade
que um filho não deve infringir, à semelhança daquilo que acontece com
o reconhecimento dos direitos políticos de um rei, quando se considera
inadequado apoderar-se de uma sua concubina (2Sm 3, 6-11). No caso
citado, a acusação aparentemente infundada de ter cometido este “crime”
leva Abner, antes aliado, a passar do campo político de Saul para o espaço
dos apoiantes do seu adversário David.
Certo dia, Lot encontrou-se numa situação de perplexidade familiar
particularmente difícil, ao considerar preferível que os sodomitas violassem
as suas filhas, quando eram ainda virgens, como maneira de impedir que eles
sodomizassem os hóspedes que pouco antes tinha acolhido em sua casa. O
critério ético que ele tomava em consideração era que a lei da hospitalidade
deveria prevalecer sobre o conforto da vivência sexual das próprias filhas (Gn
19, 4-8). Para nós é algo estranho que Lot estivesse assim disposto a sacrificar
esse valor e bem-estar pessoal, para se mostrar devidamente hospitaleiro.
Do conjunto de referências e normas sobre o tema do incesto, na Bíblia
(Gn 49, 3-4), parece avultar a impressão de que a dimensão ponderada é a de
reconhecer que a pessoa eventualmente afetada pelo ato incestuoso é detentora
de direitos que devem prevalecer. Estamos perante uma hierarquia de valores,
em que os direitos de um dos membros da família são prioritários. O incesto
é mais um caso de conflito na hierarquia familiar dos direitos do que uma
questão de indecência moral propriamente dita. Indecência sexual com quebra
de respeito pela identidade do pai parece ser o que é considerado reprovável e
digno de castigo e maldição da parte de Noé para com um dos seus filhos, que
viu casualmente a nudez do pai e não foi discreto (Gn 9, 20-27). O incesto é
um pecado familiar.
É provável que um dos casos mais prováveis de incesto seja o das filhas de
Lot que embriagaram o seu pai e tiveram relações sexuais com ele, de modo a que
cada uma delas conseguisse sucessivamente engravidar e garantir descendência
(Gn 19, 30-38). A história é narrada como uma simples explicação da origem
de dois grupos étnicos. O nome de Moab soa, em etimologia popular, como
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Roteiros bíblicos de Fedra
significando aquele que é “do pai” e Ben-Ami significaria “filho da minha
parentela” (Gn 19,36-38). O nome que se lhes atribui pode representar uma
marca com algo de anormal.
Os casos de incesto fazem naturalmente parte das listas de desregramentos
morais apresentados como sinal da degradação atingida pelos hebreus (Ez
22,10-11).
A literatura assinala realmente a existência de conflitos passionais entre
pais e filhos e regista esse facto como um foco de perplexidades. A própria
coincidência amorosa entre um pai e um filho, em virtude do qual a vida amorosa
de um e de outro se sobrepõe e contrapõe, é vista como algo indevido e pouco
humano. É como o facto de pai e filho frequentarem a mesma concubina (Dt
18,17). A inibição não tem propriamente a ver com conotações de poligamia.
Esta nem sequer parece constituir uma preocupação especial naquela época.
São incompatibilidades diretas e quase semânticas na coincidência entre o
espaço amoroso do pai e o do filho. Nota-se que o núcleo da incompatibilidade
se situava no espaço imaginário da intimidade interparental. Descobrir a
nudez parental parece exibir incompatibilidades indiscutíveis (Dt 18 e 20). A
incompatibilidade semântica conota uma realidade sem sentido. É como que
um absurdo antropológico.
Aparecem, por vezes, esboçadas razões específicas para se proibir a partilha
amorosa entre parentes próximos, tal como quando se proíbe ter relações
sexuais com uma mulher e com a irmã desta, porque isso provocaria rivalidades
(Lv 18, 18). Esta referência psicologizante parece uma curiosidade fácil e
um truísmo desnecessário. As perplexidades verdadeiramente motivadoras
situavam-se intuitiva e esteticamente a um nível mais profundo. Estes circuitos
eram enoveladores e não construtivos.
Para além deste aspeto ominoso da partilha da mesma vida amorosa
entre con-familiares, a ousadia de um pretendente ao trono se apoderar das
concubinas do pai, parece ser visto sobretudo no seu significado político,
como modo estratégico de assumir o poder com todos os seus instrumentos
e semânticas e com todas as suas demonstrações. A conflituosidade de teor
amoroso e a confrontação de âmbito familiar não ficam, de qualquer modo,
excluídas desta complexidade de significados e de jogos em que a vida afetiva,
a vida familiar e a vida política se entrechocam.
O caso provocado por Amnon, filho de David, que procurou, por meio
de estratagemas, satisfazer a paixão que sentia por uma sua meia irmã, de
nome Tamar, não é reprovado pelo facto de esta ser sua meia irmã. Uma das
hipóteses de solução ali aventadas foi até a de pedirem ao rei, provavelmente
na qualidade de pai da jovem e não como autoridade política legitimadora, que
a desse em casamento ao seu meio irmão, Amnon. Aquilo que era considerado
indevido e ignominioso em Israel era o facto de ela ser por ele violentada,
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José Augusto M. Ramos
sendo familiar e ainda virgem (2Sm 13, 1-22). O nível social de ambos marca
decisivamente o significado destes acontecimentos.
Nos códigos legais de Israel, encontramos sínteses importantes de leis
a proibir o relacionamento sexual de um israelita com diversas categorias
de mulheres envolvidas por laços de parentesco, tais como a mãe, qualquer
mulher do próprio pai, uma irmã, uma neta, uma filha da mulher do pai, uma
irmã do pai ou da mãe, uma tia, uma nora, uma cunhada (Lv 18, 6-16), ou a
sogra (Dt 27, 23).
Como castigo do incesto anuncia-se a esterilidade (Lv 20, 21), que
pode ser apenas enunciada como definição de falta de mérito, mais do que
da vontade de a provocar eventualmente. Particularmente duro parece ser o
castigo de condenar à morte pelo fogo um homem que assume maritalmente
uma mulher junto com uma filha da mesma (Lv 20, 14), devendo os três serem
condenados à fogueira.
Muito mais tarde e noutro contexto social, a relação sexual de um cristão
de Corinto com a mulher do seu pai é castigada por Paulo com a expulsão da
comunidade cristã (1Cor 5, 2.5).
Um instituto familiar de solidariedade para viabilizar o amor
Tal como acabamos de ver, o parentesco de linha vertical (filhos e netos e
respetivas afinidades, como sejam as noras e as sogras) bem como o parentesco
de linha colateral (como irmãos, tios e sobrinhos) eram uma importante razão
inibidora de casamento ou relacionamento sexual.
No entanto, um novo enquadramento social e jurídico, incidindo neste
mesmo espaço de parentescos inibitórios, acaba por florescer uma verdadeira
instituição bíblica para garantir viabilidade a casos de amor em risco. É a
instituição do levirato2.
Trata-se de um instituto legal, em que a grande proximidade familiar
entre as pessoas, longe de constituir um óbice ao amor, aparece precisamente
como o seu principal fator de viabilização. O papel solidário do novo marido é
tão importante que a ideia do resgate passou a ser uma designação alternativa
para a mesma fórmula de casamento numa endogamia estrita. É a instituição
social do goel3, alguém que, em razão do seu próximo parentesco, tem sobre si
a obrigação de “resgatar” uma viúva de um seu parente, sobretudo se ela ficou
viúva e sem filhos (Dt 25, 5).
O nome deste instituto jurídico deriva de “levir”, que significa 'irmão do marido' (Dt 25,5-10).
O nome é o particípio ativo do verbo ga’al, que significa “resgatar”. A viúva era entendida
como ficando em condição de servidão. Desta semântica acabou por se originar o conceito
de redentor, conceito que, nesta sua origem, não sublinhava nenhum matiz amartológico. A
evolução futura da sua semântica haveria, entretanto, de se transformar, como é sabido.
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Roteiros bíblicos de Fedra
Para além de outros benefícios sociais procurados, este instituto funciona
em benefício da mulher que fica viúva e sem filhos. Está em causa a sua proteção
social. Mas uma intenção explícita é também a de suscitar descendência para o
irmão falecido. Entre o benefício da mulher e o benefício do homem defunto,
os interesses dividem-se; ou somam-se. O facto é que esta prática é de sentido
único. Cria apenas a obrigação de solidariedade dos “cunhados” para com a sua
parente que enviuvou.
Aliás, definir este interesse poderá ter provocado atitudes opostas. Não se
conhece em profundidade o nível de aplicação histórica desta lei, mas também
não se conhece uma grande história de recusa da mesma. O caso de recusa
literariamente mais famoso é o de Onan que aceitou casar com a viúva do seu
irmão, Er. Casou com ela, mas, depois, recusou-se a engravidar a mulher, com
a justificação de que os filhos que iriam nascer não seriam dele mas do seu
falecido irmão (Gn 38, 9-10)4.
Contrariando, por conseguinte, as inibições de parentesco relativamente
ao casamento e outros relacionamentos sexuais, este casamento de levirato
aproveita precisamente algumas razões de parentesco para promover
casamentos, transformando-o numa obrigação de solidariedade.
Um caso literário muito famoso de casamento baseado nesta regra
de solidariedade familiar é aquele que preenche e justifica todo o romance
histórico de Rute. Pela história contada, este casamento apresentava bases de
plausibilidade muito precárias. O marido da viúva Rute não deixara parentes
diretos e próximos (Rt 1, 7-13). Mesmo assim, a estrangeira Rute volta
com a sogra, também viúva, para a pátria originária desta e o mérito da sua
solidariedade (Rt 1, 16-22) virá a ser compensado com o aparecimento de um
parente, disposto a cumprir o seu papel de redentor.
As deliciosas peripécias romanescas que levaram à conquista do seu
novo marido e redentor (Rt 3,1-4-6) são a expressão de que esta história era
envolvida de aceitação e suscitava alguma ternura e encanto. O elo final da
história que faz de Rute uma das avós de David significa certamente uma
grande aceitação por parte daqueles que ouviam e se reconheciam naquela
história (Rt 4,22).
É também muito curioso o caso do casamento levirático de Judá e Tamar
(Gn 38, 1-30). Casada primeiramente com Er, este morreu (Gn 38, 6-7).
Casada, depois, com o cunhado, Onan, este evitava engravidá-la e morreu,
segundo o texto, em consequência disso (Gn 38, 8-10).
Entretanto, o seu sogro, Judá, mandou a nora, Tamar, para casa do seu
pai, enquanto esperava que o filho mais novo de Judá crescesse (Gn 38, 11),
para poder cumprir, por sua vez, a obrigação de levirato.
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É desta personagem que recebe nome a prática designada como onanismo.
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José Augusto M. Ramos
Descontente com o passar do tempo e temendo ainda que a morte dos
dois irmãos pudesse levar o mais novo a hesitar em assumir a função levirática,
Tamar, camuflando-se de prostituta de estrada, conseguiu engravidar do seu
sogro, que entretanto também enviuvara. Assim conseguiu finalmente marido
e descendência a dobrar, porque, desta vez, lhe nasceram dois gémeos (Gn
38,12-30).
Todo o conjunto desta história respira encanto e finalmente sucesso e
felicidade; o texto parece exprimir sentimentos de grande complacência com
esta maneira de se escrever direito por linhas tortas. É uma história de muitas
desgraças sem saída, mas nada trágica. E com esta instituição poderíamos estar
exatamente no pólo oposto dos caminhos de Fedra. Em vez de tragédia, paira
sobre os acontecimentos uma dose de paciência persistente. A solidariedade
do levirato envolve esta história como uma imagem da providência, que é a
lógica da história com as medidas do desejo.
Impossibilidade de amar
O amor é um espaço onde surgem naturalmente múltiplas aporias. O facto
de ele se estruturar, como uma relação privilegiada e exigente, sobre a plataforma
de consciência eu-tu introduz na sua performance todas as vicissitudes que
a realidade dessa relação concita. Basta olhar para o discurso milenar que as
vivências do amor suscitaram, desde as antigas líricas até às modernas canções,
para tomar o pulso à gama de modulações que ele assume. Aceitações e recusas
pontuam com intensidade o mapa e o calendário históricos do amor.
O ponto mais emblemático das aventuras de amor vividas por Fedra
tem a ver com a impossibilidade de conquistar o enteado Hipólito: este
acontecimento revoltou-a profundamente e acabou por definir um destino
trágico para várias personagens da família. Na Bíblia, encontramos um
episódio em boa parte equivalente a esta recusa de amar. José, já vendido
para o Egito pelos seus próprios irmãos (outra cumplicidade de âmbito e
ressonância familiar) é solicitado para uma aventura amorosa pela mulher do
seu patrão, que o acolhera e lhe oferecera sobrevivência no Egito. José recusa
a solicitação e provoca, por isso, a revolta e o ódio da sedutora. Dessa recusa
e da consequente calúnia resulta um castigo para José (Gn 39,6-23). O seu
castigo leva-o à prisão faraónica. Tal castigo é dramático, mas não é trágico.
Pelo contrário, é construtivo e revela-se salvífico. A prisão foi a promessa e
o caminho para a sua liberdade e suprema glória (Gn 41,1-57). O capítulo
seguinte é, todo ele, de redenção, ascensão e apoteose de José como vice-rei do
Egito. Aliás, a história de José está rotulada como uma história de sabedoria.
Para além do moralmente modelar, leva a marca de um texto feliz. Nesta
visão antropológica, os combates não são tragédia, são ações demiúrgicas de
fundação da história como uma verdadeira ontologia do humano. O encontro
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Roteiros bíblicos de Fedra
com os irmãos, que ocorrerá em virtude da nova condição política de José, será
o reatar da história para o povo hebreu, uma história que a fome de Canaã
parecia vir a interromper dramaticamente.
Este tema tão especificamente valorizado na Bíblia é muito conhecido na
literatura do Egito. Aqui, alguns matizes do drama são até mais coincidentes
com o tema de Fedra. De facto, no conto dos Dois Irmãos5, a proposta amorosa
tem caráter incestuoso, porque a mulher tenta seduzir um irmão do seu
próprio marido e vê igualmente recusados os seus avanços. Também ali o
tema aparece cultivado como um tema de sabedoria. Isto traduz uma maneira
cultural específica de tratar e interiorizar estas aventuras. O tratamento aqui
dado à questão é convergente com o que detetamos na Bíblia.
A incapacidade demonstrada por Hipólito de corresponder à solicitação
de amor que lhe fora feita por Fedra poderia ser analisada a partir da falta de
interesse pessoal concreto, por um lado, da falta de enquadramento familiar
adequado, por outro, ou ainda por razões culturais, comportamentais e
religiosas implicadas no horizonte das suas opções pessoais. Na Bíblia, esta
temática da recusa de amar não é muito visível. Preferências de amor são
explicitadas até de forma exageradamente simplificada, distinguindo como
amar e odiar matizes normais de gostar mais de uma das suas mulheres do
que da outra (1Sm 1,5)6. As incapacidades fundadas no parentesco já vimos
que são amplamente consideradas. Outras razões para justificar atitudes de
encratismo religioso ou cultural não parecem intervir.
Nas literaturas da Mesopotâmia, no entanto, é tradicional e conhecido
um tema de recusa de amor e casamento a uma proposta feita pela deusa
Inanna e pela sua correspondente semítica Ishtar. Gilgamesh, na respetiva
epopeia, é o caso clássico de expressão literária para essa recusa. As razões
expressas apontam para o feitio difícil ou para as exigências da deusa que se
propõe a si mesma em casamento. É evidente que as reticências relatadas
sobre o feitio dessa deusa devem representar intuições de fundo elaboradas
na cultura mesopotâmica, relativamente a um caso tão sério de amor como
este7.
É possível aperceber-se alguma espécie de recusa do amor inoculada nos
discursos de crítica ao comportamento das mulheres, facilmente detetáveis nas
versões moralistas da sabedoria hebraica tradicional (Pr 5,1-14; Sir 25,13-26;
26,1-12). Mas este discurso frequentemente rigoroso não parece conter
nenhuma razão que contradiga o casamento.
Vd. M. Lichtheim 1984 II: 203-214 e J. Nunes Carreira 2005: 162-167.
As traduções dirão legitimamente que Elcana amava mais Ana do que Penina. O texto
hebraico diz simplesmente que “amava” Ana. Não amar a outra desta maneira cai dentro de
semântica do verbo “odiar”, por muito que isso não coincida com as nossas fórmulas.
7
R. Tournay, A. Shafter 1994: 144-150.
5
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José Augusto M. Ramos
Um caso bíblico de impossibilidade de amor por impedimento derivado
de cumplicidades religiosas familiares é o caso da filha do juiz Jefté, que, ao
sair festivamente para saudar o pai que regressava vitorioso da guerra, toma
por ele mesmo conhecimento que o seu próprio pai fizera um voto de oferecer
em sacrifício a primeira pessoa que lhe saísse ao caminho (Jz 11,29-40). Ao
saber deste voto do pai, a tragédia que de imediato ocorreu à filha de Jefté
foi a da sua virgindade confrontada com este destino trágico. Pediu, por isso,
ao pai que a deixasse ir fazer o luto com as suas amigas, pelas montanhas,
chorando o destino triste da sua virgindade inconclusa. Mais do que uma
recusa genérica do amor, temos aqui uma afirmação pessoal inquestionável do
mesmo. A impossibilidade não provém de uma opção da própria; é imposição
da solidariedade familiar e da mentalidade religiosa ocasional. Esta tragédia
abate-se tanto sobre a filha como sobre o pai, pois fica bem sublinhado que
este não tem mais filhos nem filhas; é a única.
Subjetivamente esta tragédia é rotulada como desespero e desgraça.
Objetivamente, ela é fruto de um excesso de linguagem no voto pronunciado
para com Javé. Jefté prometera sacrificar o primeiro que lhe viesse ao encontro,
sem pensar que poderia com isso provocar uma desgraça (Jz 11,35-36). É
um caso de autêntica tragédia, onde o vivencial sai claramente a perder na
concorrência com o simbólico.
Acontece, entretanto, que a viabilidade histórica de gestos como este se
projeta para o fundo de uma época em que poderia haver ainda em Israel
sacrifícios humanos em honra de Javé. A historiografia de Israel não comprova
esta prática de sacrifícios humanos em época histórica. A ortopráxis de Israel
historicamente reconhecida parece não patrocinar estas práticas. Apesar disso,
esta tradição aí fica, resistindo incólume na literatura dos hebreus com este
e outros indícios (Gn 22,12; Ex 13,11-16; Lv 18,21; 2Rs 3,27; Is 30,33; Jr
7,31-34; 19,3-13; Ez 16,20-22; Mq 6,6-8).
Aporia e tragédia na textura do amor
Estas complicações do comportamento psicológico e emocional,
relativas a momentos concretos da relação amorosa, para além de se
poderem considerar peripécias de circunstância, inscrevem-se com alguma
naturalidade nas perspetivas bíblicas sobre a essência principal do amor. Elas
são descritas na parcela de definição do amor que cabe formular dentro do
percurso vivencial específico da mulher (Gn 3,16). Com efeito, o amor é a
mulher8. E esta vive, na sua experiência feminina, uma contradição entre a
8
Tratámos desta perspetiva de análise em “A sexualidade entre os hebreus: caminhos
essenciais do sentido”, in J. A. Ramos, M. C. Fialho, N. S. Rodrigues 2009: 229, 234.
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Roteiros bíblicos de Fedra
atração e a sujeição, sempre por razões de amor para com o seu marido. São
os ingredientes do amor, repartidos entre os dois pólos, idealista e realista,
da sua dinâmica existencial. Esta dinâmica de vida é para ela tão querida
como uma definição e tão inelutável como um castigo (Gn 3,16). Em Fedra
como no conto egípcio, é de novo a mulher a carregar com esta dramática
definição de contrastes.
Na verdade, a conceção bíblica sobre a mulher implica alguma polaridade.
Por um lado, ela atrai e faz sair o homem do seu reduto e recoloca-o noutro
espaço (Gn 2,24), tão unitário que como que deixa de ser um espaço e se
torna apenas numa modalidade de existir, “uma só carne”. Por outro lado, a
mulher pode representar uma força de arrastamento para redutos inóspitos
(Pr 7,1-27). A própria dinâmica de sedução integra os mesmos dois pólos: o
da cumplicidade transgressiva (Gn 3,12) e o da fusão mística com Deus (Jr
20,7)9. Uma teologia assente na relação amorosa dá à experiência religiosa dos
humanos um cariz feminino. A textualização bíblica desta perspetiva assenta
no pensamento dos profetas Oseias, Jeremias e Ezequiel (Os 2,5-25; Jr 2-4;
Ez 16). Os meios complementares da procura podem ser representados por
duas figuras femininas em antítese: a da Senhora Sabedoria e a da Senhora
Insensatez (Pr 9,1-6.13-18).
É claro que esta variedade de experiências ocorre também conforme as
contingências da escolha de um companheiro, com fatores de maior ou menor
sorte. As conotações absolutas encontram-se na própria definição de estrutura
da relação; os dramas podem ocorrer naturalmente por entre cada um dos
múltiplos conflitos individualizáveis.
Fedra deverá igualmente conter aquilo que é do âmbito das definições
estruturais, misturado com aquilo que pertence ao domínio das circunstâncias
e contingências da experiência individual. A linguagem da tragédia contém
a imagem do estrutural, bem como a expressão de toda a existencialidade
envolvente e cúmplice da estrutura.
Todas as aporias do humano se repercutem sobre as relações estruturais
com que este aparece configurado, como se toda a consistência e sentido da
vida dependessem precisamente dessa relação concreta.
Esta leitura constitui uma declaração sobre o valor absoluto da relação de
amor. Com ela, tendemos naturalmente a instaurar sobre o outro a estrutura
principal do sentido da vida, pendendo para imputar a esse tu o estado geral do
nosso mundo. Esta é mais uma utopia, desejável e aporética como todas elas.
Mas parece de apetência inquestionável e poderá mesmo ter algum sentido
estrutural.
9
O verbo hebraico utilizado para “seduzir”, pth, convoca todos os matizes da sedução. Cf. E.
Jenni, C. Westermann 1984 II: 495-497.
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José Augusto M. Ramos
Pode, entretanto, ficar-nos a interrogação, nesta busca da parceria
estrutural, para saber se se trata de uma consciência de contingente em busca
de uma referência de absoluto ou é já uma consciência de absoluto, procurando
validar ou simplesmente exprimir uma estrutura de partilha.
Entretanto, as aporias e contrastes implicados no amor e sexualidade não
chegam a formular razões ou comportamentos de encratismo ou recusa do
amor como a protagonizada por Hipólito, considerada por si mesma e fora
do contexto de conflitualidade familiar em que se processa. O homem bíblico
é sexualmente interessado e sadio; não conhece movimentos de rejeição da
sexualidade (apud J. A. Ramos, in J. A. Ramos, M. C. Fialho, N. S. Rodrigues
2009: 223). O próprio encratismo bíblico é sexual na sua dinâmica e nas suas
formulações metafóricas (apud J. A. Ramos 2004: 38-39). É feito por amor de
uma outra utopia e exprime-se igualmente em categorias passionais e eróticas.
Se, porém, o caso de Hipólito tiver alguma conotação mística de
adoração pela deusa Ártemis (apud F. C. Zorrer da Silva 2001: 142 sqq.),
em contraposição com o culto sexual a Afrodite, então podemos sugerir uma
analogia bíblica, a do encratismo pelo Reino (Mt 19, 10-12). Esta é a única
forma teorizada na Bíblia de renúncia ao amor sexual. É justificada por esta
opção funcionalmente alternativa, se bem que estruturalmente análoga ao
primeiro. Semelhanças mais elaboradas com o caso de Hipólito dirão respeito
a outras abordagens.
A tragédia é um momento da consciência humana em estado dialético
de aporia. Tais estados sem solução antevista existem certamente na Bíblia,
porque eles representam momentos de síntese privilegiada da consciência
humana.
Excetuando o caso de Job, o qual aborda de forma aporética o sentido do
próprio agir humano, domínio que poderá ser considerado mais profundo ou
não, o homem bíblico não desenvolveu a tendência para formular em estados
trágicos de consciência a confrontação com as aporias ocorrentes nos diversos
domínios da vida, da mesma maneira que o cansaço da vida não desenvolveu
nenhuma atitude de apologia para o suicídio. A característica mais marcante
do humanismo bíblico é que ele é combativamente demiúrgico. A vida é
criação e o sentido é parte integrante disso.
E sabe bem que isto possa reconhecer alguma razão ao grito
existencialmente demiúrgico de Sartre. Eventualmente para surpresa dele,
mas não é certamente por mal.
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