Coleção Pós-Graduação da UNIR
RECONFIGURAÇÕES DA LITERATURA
CONTEMPORÂNEA: ABORDAGENS CRÍTICAS
Andréa Moraes da Costa
Gracielle Marques
Paulo Eduardo Benites de Moraes
(Organizadores)
FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA
Reitora
Vice-Reitor
Marcele Regina Nogueira Pereira
José Juliano Cedaro
EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA
Presidente
CONSELHO EDITORIAL
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Lou-Ann Kleppa
Marília Lima Pimentel Cotinguiba
Ariana Boaventura Pereira
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RECONFIGURAÇÕES DA LITERATURA
CONTEMPORÂNEA: ABORDAGENS CRÍTICAS
Andréa Moraes da Costa
Gracielle Marques
Paulo Eduardo Benites de Moraes
(Organizadores)
Coleção Pós-Graduação da UNIR
Porto Velho - RO
© 2021 by Andréa Moraes da Costa, Gracielle Marques,
Paulo Eduardo Benites de Moraes, (Organizadores)
Esta obra é publicada sob a Licença Creative Commons Atribuição-Não
Comercial 4.0 Internacional.
Capa:
Rosivan Diagramação & Artes Gráficas
Revisão:
Marília Lima Pimentel Cotinguiba
Projeto gráfico:
Edufro - Editora da Universidade Federal de Rondônia
Diagramação:
Rosivan Diagramação & Artes Gráficas
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR)
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da UNIR
F981 Fundação Universidade Federal de Rondônia.
Reconfigurações da literatura contemporânea: abordagens críticas / organização
Andréa Moraes da Costa, Gracielle Marques, Paulo Eduardo Benites de Moraes. Porto
Velho, RO: Coleção Pós Graduação da UNIR EDUFRO, 2021.
195 p.; il.
ISBN: 978-65-87539-59-1 (digital)
DOI: 10.47209/978-65-87539-59-1
1. Literatura Brasileira. 2. Literatura Contemporânea. 3. Produção Literária. I. Costa,
Andréa Moraes da. II. Marques, Gracielle. III. Moraes, Paulo Eduardo Benites de. IV. Titulo. V.
Fundação Universidade Federal de Rondônia.
CDU 82-3
Bibliotecário Luã Silva Mendonça
CRB 11/905
Sumário
7
APRESENTAÇÃO
11
ENTRE O HORROR E A POLÍTICA: NOTAS SOBRE O RASTRO
Jaime Ginzburg
22
A POTÊNCIA DA FAMÍLIA NO CURTA-METRAGEM OS SAPATOS
DE ARISTEU E NO ROMANCE LAS MALAS
Cláudia Maria Ceneviva Nigro
Luiz Henrique Moreira Soares
40
O MOVIMENTO SOBREVIVENTE DAS IMAGENS: UMA APROXIMAÇÃO ENTRE GUIGNARD E NATÁLIA AGRA
Paulo Eduardo Benites de Moraes
52
PRODUÇÕES PERFORMÁTICAS EM LIBRAS: O USO DO CORPO E DA MÁQUINA EM PRODUÇÕES LITERÁRIAS EM LÍNGUA
BRASILEIRA DE SINAIS
Nayara Piovesan Ribeiro Bartolomei
Vinícius Carvalho Pereira
65
QUARENTA DIAS, DE MARIA VALÉRIA REZENDE: UMA ESCRITA
DE RESTOS
Juliana Santini
83
ESPAÇO, CORPO E RESISTÊNCIA: UMA LEITURA DECOLONIAL
DO POEMA MORMAÇO, DE ELIZEU BRAGA
Ednalva Oliveira Silva
Janete da Silva Lagos
Juliana Bevilacqua Maioli
100
AS TRAMAS DO BORDADO: LITERATURA, HISTÓRIA E SUBJETIVIDADES À MARGEM EM YUXIN ALMA
Gracielle Marques
Juliana Budin Ferreira
120
UM MERGULHO NAS ÁGUAS DE ÓRFÃOS DO ELDORADO E TERRA SONÂMBULA
Andréa Moraes da Costa
Greicilaine Agostinho Martins
Jacimara Nascimento Von Dollmger
136
(RE)TRADUZINDO O CHACO PARAGUAIO NO INÍCIO DO SÉCULO XX
Hélio Rodrigues da Rocha
Rogério de Mendonça Correia
149
HELLEN CALDWELL: TRADUTORA DE QUATRO ROMANCES DE
J. M. MACHADO DE ASSIS PARA O INGLÊS
Válmi Hatje-Faggion
172
PRIMO LEVI E AS APORIAS DA HISTÓRIA: MEMÓRIA, TESTEMUNHO E EXPERIÊNCIA
Fernando Simplício dos Santos
Elizabeth Cavalcante de Lima
191
SOBRE OS AUTORES (AS)
APRESENTAÇÃO
Neste livro dedicado ao estudo da literatura em suas diversas abordagens críticas reunimos uma mostra abreviada, mas contundente, de trabalhos
sobre a produção ficcional contemporânea, frutos das discussões promovidas
pelos Grupos de Pesquisas Estudos da Tradução da Amazônia (GETRA-UNIR) e Poéticas Moderna e Contemporânea (GPPMC-UNIR). O GETRA,
liderado pela professora Andréa Moraes da Costa, tem como foco a investigação de atividades tradutórias no âmbito literário, considerando contextos
culturais de realização, de recepção e de circulação, enquanto que o GPPMC,
criado pelo professor Paulo Eduardo Benites de Moraes, objetiva fomentar
os estudos das teorias poéticas da modernidade e da contemporaneidade em
diálogo com outras artes.
Para tal empreitada, contamos com as contribuições de membros vinculados a esses dois grupos, professores docentes do Programa de Pós-graduação
em Estudos Literários (MEL/UNIR) e renomados professores de outras sete
instituições de ensino superior brasileiras, do norte, sudeste e centro-oeste que
lançam seus olhares sobre diversos autores, temas e problemas, ampliando o
diálogo em torno da produção literária na contemporaneidade.
A proposta geral desta coletânea pretendeu pensar as apostas da literatura contemporânea a partir de suas reconfigurações do tempo histórico e suas
articulações com as possibilidades de imaginação do futuro, tendo em vista a
abertura para o diálogo com diversos campos do saber, linguagens e seus suportes. Ao se constituir um território de leitura dos múltiplos cruzamentos e
questionamentos que a ficção e a crítica movem em torno de questões filtradas
pela literatura do tempo presente, acreditamos ser possível imaginar possibilidades de um mundo por vir.
Com esse espírito, o texto de Jaime Ginzburg, “Entre o horror e a política: notas sobre O Rastro”, abre esta coletânea com uma leitura do filme O
rastro (2017), dirigido por J.C. Feyer, o qual articula os aspectos que remetem
a convenções do gênero cinema de horror que assombram a saúde pública no
7
Rio de Janeiro e a construção de um discurso que interpela um esquema nefasto envolvendo políticos corruptos.
Na sequência, o texto de Cláudia Maria Ceneviva Nigro e Luiz Henrique Moreira Soares, “A potência da família no curta-metragem Os sapatos de
Aristeu e no romance Las malas”, explora o tema da regulação dos corpos e dos
comportamentos na constituição masculinista e cisheteronormativa em torno
da família, tomada como um dispositivo histórico (e tradicional), configurando-se como um espaço de diversas violências na análise comparada entre as
duas produções mencionadas por seus autores.
O texto escrito por Paulo Eduardo Benites de Moraes, “O movimento
sobrevivente das imagens: uma aproximação entre Guignard e Natália Agra”,
propõe uma leitura comparativa entre poesia e pintura sob a perspectiva das
teorias da imagem. O texto explora temas afins da composição dos quadros e
dos poemas, como a névoa, o ar, a fumaça, o vento e analisa como essas figuras
constroem a imagem da morte e da memória como aparições fantasmáticas
tanto nos poemas selecionados quanto nas duas telas estudadas.
O capítulo escrito por Nayara Piovesan Ribeiro Bartolomei em coautoria com Vinícius Carvalho Pereira intitulado “Produções performáticas em
libras: o uso do corpo e da máquina em produções literárias em língua brasileira de sinais” traz o tema da performance literária articulada pelo corpo, pela
linguagem e pelos meios digitais no contexto da língua brasileira de sinais.
O texto explora as performances literárias sinalizadas em meio digital como
formas únicas que se constituem pela intrínseca relação entre os elementos
constitutivos da literatura em libras.
Por seu turno, Juliana Santini, em “Quarenta dias, de Maria Valéria Rezende: uma escrita de restos”, aborda a relação entre imigrante, cidade e escrita
ao discorrer sobre a reconstrução da identidade atravessada pelas perambulações urbanas de uma professora nordestina, que busca organizar essa experiência pela escrita, incorporando seus rascunhos e panfletos encontrados na rua.
No texto “Espaço, corpo e resistência: uma leitura decolonial do poema
Mormaço, de Elizeu Braga”, Ednalva Oliveira Silva, Janete da Silva Lagos e
Juliana Bevilacqua Maioli apresentam uma leitura decolonial do poema “Mor8
maço”, do poeta rondoniense Elizeu Braga. As autoras exploram a composição
das imagens poéticas que, ao fundirem em sua sintaxe aspectos do corpo e do
espaço social, logra ressemantizar as relações cotidianas vivenciadas por sujeitos invisibilizados na sociedade amazônica do século XXI.
Também Gracielle Marques e Juliana Freitas Budin Ferreira, em “As
tramas do bordado: literatura, história e subjetividades à margem em Yuxin,
Alma”, analisam seu objeto de estudo pelo viés da crítica decolonial. As autoras estudam os modos como o romance de Ana Miranda inscreve o protagonismo feminino indígena e enfrenta algumas visões cristalizadas no discurso
histórico e literário relacionadas ao ciclo econômico da borracha entre o final
do Século XIX e o início do Século XX.
A investigação proposta em “Um mergulho nas águas de Órfãos do
Eldorado e Terra Sonâmbula”, por Andréa Moraes da Costa, Greicilaine Agostinho Martins e Jacimara Nascimento Von Dollmger, tem em seu núcleo as
referidas narrativas, de autoria de Milton Hatoum e Mia Couto respectivamente. Em suas discussões, as autoras, tendo em foco a simbologia das águas,
promovem um debate em que apontam como a presença das águas – considerando o rio e o mar – refletem na vida dos personagens centrais destas obras.
Em “(Re)Traduzindo o Chaco paraguaio no início do século XX”, Hélio Rocha e Rogério de Mendonça Correia propõem uma breve apresentação
da vida do missionário anglicano Wilfred Barbrooke Grubb, que (re)escreveu
e descreveu/desescreveu sua experiência de evangelização junto aos indígenas
na região do Chaco paraguaio. Para isso, os autores apresentam uma análise
dos apagamentos culturais e religiosos propostos por esse missionário quando
da construção etnográfica de um outro povo e outra cultura não europeia, com
implicações disso em textos que, segundo esses autores, acabaram por se tornar
tanto uma ‘desescrita’; da realidade, quanto uma (re)escrita.
Válmi Hatje-Faggion, em “Hellen Caldwell: tradutora de quatro romances de J. M. Machado de Assis para o inglês”, considerando que na área
dos Estudos da Tradução poucas ainda são as mulheres que oferecem traduções aos leitores, propõe uma investigação acerca do projeto tradutório e o
papel da norte-americana Helen Florence Caldwell no que diz respeito às suas
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traduções dos textos suplementares, assim como na crítica, procurando, desse
modo, evidenciar implicações do trabalho dessa tradutora para o novo leitor e
as contribuições para a difusão do escritor brasileiro.
O capítulo que encerra a coletânea, refletindo sobre o tópico história,
memória e narrativa de testemunho, de Fernando Simplício dos Santos e Elizabeth Cavalcante de Lima, “Primo Levi e as aporias da história: memória,
testemunho e experiência”, centra sua atenção nos paradoxos que a narrativa É
isto um homem?, de Primo Levi, conseguiu traduzir ao apresentar o que ocorreu
nos campos de concentração.
Gostaríamos, por fim, de agradecer o incentivo do Programa de
Pós-graduação Mestrado Acadêmico em Estudos Literários, que por
meio dos recursos do PROAP/CAPES, destinados à divulgação das pesquisas em curso realizadas no seu âmbito, possibilitou esta publicação.
Os organizadores
Andréa Moraes da Costa
Gracielle Marques
Paulo Eduardo Benites de Moraes
10
ENTRE O HORROR E A POLÍTICA: NOTAS SOBRE O RASTRO
Jaime Ginzburg
O filme O Rastro, dirigido por J.C. Feyer, foi lançado em 2017. Seu protagonista é João (Rafael Cardoso), um médico da secretaria de saúde do Rio de
Janeiro, que recebe uma tarefa de remover pacientes de um hospital, chamado
São Tomé, porque o local deve ser desativado. A tensão do filme se constitui
em razão de que, enquanto a tarefa é executada, embora seja feito um controle
das remoções, uma paciente, uma menina de dez anos, não é transferida. A
criança desaparece, e João decide investigar o que ocorreu com ela.
O Rastro foi construído como um filme de horror. Ele elabora uma
convergência entre um tema de importância política – a saúde pública – e
uma forma capaz de suscitar choques no espectador. Atuando como metonímia do sistema de saúde do Rio de Janeiro, o cenário do hospital é
muito bem concebido no filme. Desde as primeiras tomadas nesse espaço,
pode ser observada a ruína em que se transformou a instituição. As contribuições dos roteiristas André Pereira e Beatriz Manella, do diretor de arte
Daniel Flaksman e do diretor de fotografia Gustavo Hadba permitiram a
J.C. Feyer realizar um trabalho criativo ambicioso, que dialoga com filmes
de horror consagrados, e ao mesmo tempo sustenta uma conexão com o
Brasil contemporâneo. Os espectadores atentos à crítica social impregnada na narrativa poderão associar o sistema de saúde ao horror, e com isso,
potencialmente romper com a apatia que é tão comum com relação ao
sofrimento daqueles que dependem de hospitais públicos.
O Rastro cumpre bem o papel de uma produção para entretenimento
que está interessada em trazer para o público motivações para reflexões sobre
o país. Para atingir esse objetivo, Feyer decidiu explorar um hibridismo de
gêneros, ao incluir cenas compostas com uma estilização de um documentário,
expostas em textura específica, como se matérias jornalísticas estivessem sendo
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transmitidas. Nesses trechos, é descrita a situação da saúde pública no Rio de
Janeiro, incluindo referências ao hospital e indo além dele. Para o público no
cinema, os trechos podem despertar uma forte impressão de verossimilhança,
tendo em vista situações graves como, por exemplo, a do Hospital Bonsucesso,
exposta em 2017 por Lucas Vettorazzo. Na atualidade, a imprensa continua
apontando para situações graves na saúde pública no Rio de Janeiro.
Nesse sentido, os espectadores, tanto em 2017 como em 2021, poderiam situar o enredo do filme em um contexto específico reconhecido. Se essa
estilização fosse mais constante, ou predominante no filme, ele poderia ser
dominado pela função referencial da linguagem, e a enunciação da narrativa
seria realista, portanto, seu efeito predominante seria o que Roland Barthes
chama de um “efeito de real” (1984, 96). No entanto, os trechos que são expostos como matérias jornalísticas são breves e limitados. Sua inserção está
subordinada à narrativa de horror; a função poética da linguagem prevalece, e
não a referencial. Essa subordinação não diminui a relevância desses trechos,
pelo contrário; o diretor consegue, com a montagem, propor imagens do Brasil
que, em articulação com elementos sobrenaturais, podem provocar choques no
público. Em casa, pessoas que assistem a um telejornal podem eventualmente
ser apáticas com relação a notícias sobre problemas da saúde pública. O Rastro
está construído de modo que, em lugar de apatia, esses problemas possam obter uma atenção empática para a tela de cinema.
Para apreciar o filme, é necessário admitir uma premissa em sua concepção: reconhecer o Brasil como uma terra do horror; um país no interior do
qual a extrema vulnerabilidade define as condições de vida de grande parte da
população, a corrupção impregnada em instituições prevalece com relação às
demandas para que cumpram as suas funções sociais, os governantes agem em
causa própria, e utilizam a violência para silenciar eventuais forças de resistência. Essa caracterização é expressa com clareza nas cenas em que a população
protesta contra o fechamento do hospital, em defesa da saúde pública, e a polícia entra em cena para reprimir o movimento social. Perto do final do filme, alguns elementos reforçam a percepção de um Rio de Janeiro controlado a bala,
por uma liderança corrupta, o governador Arthur (Domingos Montagner), em
12
um esquema que não admite interferência externa, como demonstram o assassinato de Heitor ( Jonas Bloch) e a perseguição de Leila (Leandra Leal) por
parte de Ricardo (Felipe Camargo). A culminância do alcance desse esquema,
que serve diretamente ao governador Arthur consiste no tráfico de órgãos.
No início do filme, é referido que Arthur estava doente, o que é negado
por ele em um contato com a imprensa; somente no final da narrativa, o espectador pode inferir que ele, buscando reeleição, precisava de um transplante de
coração. Nesse horizonte, a morte de João, para além de eliminar um risco de
divulgação do que se passava no hospital, é planejada de modo que o coração
do jovem médico seja retirado, e transplantado ilegalmente para o governador.
A cena final do filme confere visibilidade para conexões até então implícitas:
Arthur encontra um menino (Gabriel Malheiros), e pergunta a ele “Cadê teu
pai?”. Sem vacilar, a criança, com uma fisionomia que lembra o ator Rafael
Cardoso, aponta para o próprio Arthur, como se estivesse inteiramente ciente
de que o coração de João estava à sua frente. Essa cena articula dois elementos
abordados por Freud no ensaio “O inquietante”. O primeiro é a constituição
de um duplo, na medida em que Arthur contém uma parte do corpo de João
dentro de si, em razão do transplante. O segundo consiste em uma espécie de
retorno de um morto, através do gesto do menino, que propõe que João está
vivo, dentro de Arthur. Essa cena final é sinistra, e adquire força com o retorno,
na figura da criança, do que foi reprimido pela violência.
A primeira metade do filme é concentrada em um desaparecimento.
Uma menina de dez anos, Julia (Natália Guedes), internada no hospital, não é
removida juntamente com os demais pacientes. João procura seus dados e não
os encontra. Perturbado, empreende uma busca da criança, ao mesmo tempo
em que sua esposa grávida conta com a atenção dele em casa. Uma das referências que podem estar associadas ao título do filme é a imagem da mochila da
menina, que João encontra no lixo do hospital. Sua investigação é desenvolvida
a partir desse achado, que o leva a interrogar funcionários do prédio. Ele descobre uma parede com uma enorme quantidade de pulseiras de identificação
de pacientes, sujas e amontoadas, atrás de um armário (as pulseiras acabam levando a nomes de pacientes mortos, para os quais o hospital solicitava exames
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de modo fraudulento, o que será comentado mais adiante). Posteriormente,
João faz uma busca no prédio, e acaba encontrando alas que não conhecia, e
portas que não estavam visíveis antes. Andando por essas alas ele vê imagens
de Julia, como um fantasma, gemendo e gritando. A procura acaba levando-o
ao necrotério do hospital, em que encontra o cadáver da menina. A articulação
imagética entre o fantasma e o corpo encontrado segue o princípio de que, de
acordo com Kracauer, a percepção onírica de um personagem, por parte de
outro, pode ter sua força alicerçada no fato de que, em um episódio anterior do
filme, o primeiro tenha sido percebido como real (1997, 89). É isso que ocorre
com Julia, percebida como fantasma depois de ter sido vista como uma paciente viva, interagindo com João no hospital deteriorado.
Nesse percurso de investigação sobre o desaparecimento, João encontra
rastros de outro fato a ser revelado, o esquema fraudulento de registros de exames. O título não se restringe a um elemento único (como a mochila encontrada), mas recebe o estatuto de uma categoria de percepção: João articula elementos que pareciam não estar relacionados à primeira vista, desdobrando hipóteses
sobre relações causais e temporais entre os fatos. Como resíduo, resto deixado
pelo tempo, um rastro pode ser interpretado como uma parte de um todo que
não é percebido. Com um rastro, é possível esboçar hipóteses de narrativas que
não foram contadas. As reflexões de João o conduzem a um desespero crescente;
vemos o personagem, por essa razão, consumir um remédio de tarja preta e utilizar com insistência um aparelho celular, na ansiedade de preencher o que, para
sua percepção, é lacunar. O desenvolvimento eficaz da investigação corresponde,
simultaneamente, em escala temporal, à aproximação da morte.
É importante observar, nesse sentido, a relevância do levantamento
e da análise racional de evidências para as decisões de João: consultas a
dados no computador, questionamentos dirigidos a suspeitos, observações
minuciosas dos ambientes, que são atividades esperadas em uma narrativa
policial convencional. A especificidade, no caso, é que a racionalidade está, nos
termos de Peter Gay, “emaranhada continuamente com o não racional” e “com
as fontes irracionais de ação” (1989, 114). Mesmo que utilize procedimentos
convencionais para buscar a menina desaparecida, João empreende essa
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investigação sob impacto emocional, despertando uma preocupação em Leila.
A intensidade das reações emocionais de João se articula com a exploração de
percepções de experiências sobrenaturais.
O cinema recente tem apresentado narrativas que propõem ver o Brasil
como uma terra de horror. No filme de animação Uma história de amor e fúria,
um indígena tem uma visão profética do futuro de sua terra, na qual figuras humanas sem olhos circulam, como cadáveres que se movem, em um espaço abjeto
e instável. O diabo mora aqui, de Rodrigo Gasparini e Dante Vescio, traz para a
atualidade o confronto entre um proprietário e seu escravo, narrando o retorno
de ambos do mundo dos mortos. O nó do diabo, lançado em 2018, atravessa séculos de história, em uma sequência de estórias, partindo do presente e chegando
ao passado colonial, expondo diversas formas de violência contra negros. Com
relação a essas importantes produções, a singularidade de O Rastro é a escolha
pela política contemporânea como campo de manifestação do inquietante.
Para dar conta dessa opção difícil, a exposição visual de sofrimento de
corpos constitui um recurso fundamental. Quando Ricardo, dentro do hospital, persegue Leila, que tem uma gravidez em andamento, o diretor expõe
o corpo da moça, seu choro, sua tensão e sua dificuldade de se manter em pé.
Leandra Leal mostra, com competência, a fadiga e o desespero da personagem,
acuada diante do homem com um revólver, em um ambiente apodrecido e
incômodo. O sofrimento corporal aparece também através do sangue de João,
que aflora mais de uma vez. Na cena do chuveiro, a combinação entre a água e
o sangue do rapaz é construída de modo hiperbólico, como se não fosse possível delimitar a quantidade de sangue que sai do corpo do médico.
O espaço do hospital, em O Rastro, está atravessado por problemas. Já
de início, o propósito do governo é fechá-lo; as tomadas em seu interior mostram paredes decompostas, alas sombrias e muito sujas, com uma estrutura
labiríntica que se desdobra em vários andares, aparelhos que não funcionam e
amplos espaços abandonados. Seu diretor, Heitor, sustenta um esquema de pedidos falsos de exames, que consistia em pedir exames para pacientes mortos,
para receber verbas do governo. Mesmo com o estado corroído do prédio, um
grupo de médicos, descritos como funcionários públicos, ali permanece depois
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da remoção de pacientes, em uma exibição rude de desperdício de recursos; em
uma cena, esses médicos fazem uma festinha no local, à revelia dos problemas
que acontecem à sua volta. De acordo com essa configuração, o hospital não
cumpre um papel social, mas abriga pessoas que utilizam o espaço segundo
seus próprios interesses. Em uma parede, um vitral com a imagem de uma madona sugere uma sacralidade da vida, que é contradita pelos acontecimentos.
Os créditos finais acentuam, com fotografias, o quanto o prédio está arruinado.
Alguns recursos técnicos, como a escolha das lentes, de filtros, e a disposição dos focos de iluminação, contribuem para que o hospital seja visto
como um espaço de cores frias. Com o verde, e sobretudo o azul escuro, as
imagens mostram um espaço hostil. Em duas cenas – a busca da menina por
João em alas desconhecidas, e a perseguição de Leila por Ricardo – a câmara se
move como se estivesse ela própria confinada junto com o personagem em um
ambiente sem saídas visíveis. A constituição de um ambiente claustrofóbico,
lembrando O Iluminado de Stanley Kubrick, é eficaz.
As imagens fantasmagóricas da menina perdida, diretamente associadas
ao processo dissociativo atravessado por João, contrastam com a nitidez de imagens de ultrassom, quando o espectador observa o feto no interior do corpo de
Leila. As primeiras são fugidias, como se fossem alucinatórias, e o ultrassom é
preciso. O filme, em alguns momentos, sugere que o feto é uma espécie de duplo simétrico da criança desaparecida, em uma complementaridade entre vida e
morte. As conexões entre a criança desaparecida e a mulher grávida se expandem.
No momento em que Leila verifica uma pasta com documentos de Julia, decide
seguir o percurso de João. Mimeticamente, ela se torna investigadora também,
movida por uma necessidade de compreender o que ocorreu. Dois momentos
da narrativa se articulam pela exposição de impactos referentes a mortes: a visão
do cadáver de Julia suscita em João um desespero extremo; a notícia, enunciada
por Heitor, de que João teria morrido, causa nesta uma dor extrema e destrutiva.
O filme propõe uma aproximação visual entre Leila e a médica Olívia
(Cláudia Abreu). Em um enquadramento equilibrado, o diretor mostra os rostos das duas mulheres frente a frente, em uma cena próxima do final. A médica,
participante ativa do esquema de crimes no hospital, cuida de uma criança, sob
16
o olhar do fantasma de Julia. Nessa conversa, Leila, grávida, portadora de vida,
contrasta com a figura de Olívia, cujas ações anteriores a caracterizam como
uma espécie de mediação da morte. O personagem Heitor, por sua vez, em um
momento anterior à sua morte, é visto diante de um espelho. A duplicidade
da imagem, em razão da sujeira no espelho, situa o personagem como se ele
estivesse expondo uma face ainda não conhecida. Essa estranheza do espelho
expressa que Leila percebe, pela primeira vez, como foi enganada por aparências do comportamento de Heitor.
O ponto de vista a partir do qual João percebe criticamente o que se
passa, ao longo de sua investigação na busca de Julia, não está imune. Nos
primeiros quinze minutos de filme, João está integrado ao sistema que favorece Arthur e Ricardo, seguindo rigorosamente suas ordens, e evita se opor a
Heitor. O universo tóxico, que arruinou o hospital e matou Julia, faz parte da
constituição do protagonista. Como responsável direto pela remoção de pacientes, ele escolhe fazer o que prejudica a população, mesmo diante de uma
manifestação popular de protesto. Cumprir a obrigação de seu emprego, de
modo submisso, é o que define as atitudes de João até o desaparecimento de
Julia. O protagonista é parte do sistema contra o qual ele, depois de encontrar
a mochila no lixo, tenta resistir. Essa ambiguidade constitutiva do personagem,
estar dentro e fora do sistema corrupto, não permite nenhuma síntese, não há
solução conciliatória. A morte de João resulta do interesse do governador, e
não de forças sobrenaturais. É importante atentar para esse ponto: O Rastro
não expõe um fantasma como uma figura demoníaca, e nisso se distingue de
outros exemplos do gênero. Por mais que o hospital pareça ser uma casa mal-assombrada, o risco de morte não vem de assombrações, mas do governo. O
fantasma de Julia aparece algumas vezes como uma figura assustadora, que leva
João a se machucar, e destrói Ricardo, que morre em uma queda, provocada
pelo impacto de um grito. De modo diferente, com relação a Leila, o fantasma
atua como uma figura protetora, que garante sua sobrevivência.
Não é um demônio, mas um ser humano, o governador, que traz extremo sofrimento à vida de João. O líder político atua como uma força aniquiladora que age apenas em função de seus próprios interesses. Freud escreveu que
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[...] o próximo não é apenas um possível ajudante e um possível objeto sexual, mas também uma tentação para se satisfazer nele a agressão, explorar
a sua força de trabalho sem recompensá-lo, usá-lo sexualmente sem o seu
consentimento, apropriar-se de seus bens, humilhá-lo, causar-lhe dor, torturá-lo e matá-lo (2010, 123-124).
Julia, João e Leila são personagens que se inserem nesse horizonte, são
alvos de destruição. Apenas a terceira consegue chegar viva à parte final da
narrativa. A crueldade de Arthur e Ricardo (assim como a frieza de Heitor
e Olívia) delimita as regras que governam os acontecimentos no hospital. A
disposição destrutiva não está apenas em suas ações contra personagens específicos, mas também na irresponsabilidade em relação à saúde pública, no
calculado desprezo pelas necessidades da população, e no uso da polícia para
conter o movimento de protesto. A lógica que leva a que João seja assassinado, e seu coração seja brutalmente retirado para o transplante, converge com
a caracterização corrupta, egoísta e implacável do governador. A intervenção
sobrenatural que salva Leila da morte, ou seja, a aparição do fantasma de Julia,
que confronta Ricardo, permitiria a interpretação de que, para sobreviver à violência incisiva do poder, é necessária uma força ad hoc, um apoio extraordinário
e inesperado. De acordo com os termos do enredo, sem Julia, Leila teria sido
assassinada por Ricardo em meio aos escombros do hospital.
Concebido visualmente como ruína, o hospital tem alas abandonadas em que aparecem, de modo inexplicado, muitas aves, e nele são escutados ruídos que parecem vir das paredes. A degradação do local se expressa
também por um blackout, que deixa João desnorteado. O enquadramento
da câmara permite que o espectador, na sala escura do cinema, sinta o
impacto do blackout como João; como afirma Barthes, o escuro da sala
constitui uma forma de “devaneio crepuscular”, análogo ao que pode ser
experimentado como uma pré-hipnose (1980 ,122), durante o breve tempo
em que o público, em estado de contemplação, partilha com João a sua
dificuldade de ver. Em outras cenas do filme, as luzes são reduzidas. Algumas das cenas na escuridão são aquelas em que a forma da narrativa é mais
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onírica. As visões de passagens desconhecidas e de objetos dispostos como
lixo poderiam ser observadas como fragmentos de sonhos, nos quais as
aparições fantasmáticas, sonoras e visuais, fariam parte de alucinações, ou
de momentos de indistinção entre o exterior e o interior do sujeito.
Em alguns momentos, em especial na cena claustrofóbica em que João
encontra o cadáver de Julia, o hospital parece constituir uma materialização de
um inconsciente, como um espaço fora das determinações do mundo que está
em volta, em que mesmo um ambiente familiar (porque João já conhecia o hospital) é visto como essencialmente desconhecido. O enorme sofrimento de João
ao encontrar o cadáver poderia estar associado a uma culpa reprimida, por não
ter cumprido a promessa que fez a Julia, no início do filme, de que cuidaria dela.
Sob essa perspectiva, os rastros visuais que levam a encontrar o cadáver nas alas
escuras do hospital são estilhaços de um sujeito descentrado, para quem a própria
percepção é enigmática, e tudo que é por ele percebido suscita dúvida.
Essas cenas são construídas em acordo com a forma do “modelo onírico”
de cinema, tal como o definiu Ismail Xavier. Nesse modelo,
Em vez de caminhar em direção a uma ilusão de continuidade, a montagem
cria uma cadeia associativa de imagens que frustra as expectativas de quem
espera uma narração trivial com referências de espaço e tempo claras. (...) O
discurso cinematográfico não deve imitar o verossímil (denominador real)
tal como na decupagem clássica. Ele deve imitar a articulação dos sonhos, a
lógica de uma experiência que é “preenchimento do desejo” por excelência.
(2008, 113-114)
Em uma cena específica, em que o cenário não está escuro, a narrativa
segue os princípios desse modelo onírico de cinema; é a cena em que João vai ao
banheiro após o jantar em sua casa, com a presença de Heitor. O diretor utiliza o
espelho de modo a marcar uma cisão interna do personagem; a câmera observa,
de cima, o ator Rafael Cardoso e sua imagem simétrica refletida no espelho. A
cisão se materializa na imagem da água que, à sua frente, em vez de se mover
para baixo, irrompe em gotas que se movem para cima e se aproximam do personagem. A configuração cênica sugere que o pensamento de João, naquele mo19
mento muito perturbado, se exterioriza na água, e também nos efeitos sonoros
que relembram Julia em sofrimento. Por alguns segundos, o banheiro se apresenta como um espaço de animismo, conforme Freud explicou em seu ensaio “O
inquietante”. João, em um limiar entre a consciência e a alucinação, sofre com
a irrupção de uma percepção sinistra sobre si mesmo, que não se soluciona. O
animismo é interrompido pela entrada de Leila, que pergunta se João está bem.
Para além dessa cena, a água é exposta de maneira onírica em diversos momentos do filme. O diretor elaborou cenas em que a água não segue seu curso
físico esperado. Uma gota, em vez de cair, desafia a gravidade e se move para seu
ponto de origem. As aves agitadas, cuja origem é desconhecida, contribuem para
uma configuração de uma natureza perturbada. É como se no hospital estivesse
estabelecida uma manifestação maligna, capaz de explodir a ordenação do mundo.
Esse mal não se constitui em perspectiva religiosa, como se viesse de um
demônio, mas como expressão da crueldade política, que leva à transformação
de um hospital em ruína. Com um governador capaz de abandonar a população em negligência, causando direta e indiretamente mortes de pessoas que
dependem da saúde pública, e de matar uma pessoa para conseguir seu coração,
é adequada a leitura política da narrativa. O Rio de Janeiro, como metonímia
do Brasil, é uma terra de horror porque é governado pela crueldade. E não apenas por isso, mas também pela infâmia de personagens como Heitor, Olívia e
Ricardo, que ocupam posições às quais são atribuídas responsabilidades sociais.
Referências
BARTHES, Roland. O efeito de real. In: BARTHES, Roland; et alii. Literatura e realidade: que é o realismo? Lisboa: Dom Quixote, 1984.
BARTHES, Roland. Saindo do cinema. In: METZ, Christian et alii. Psicanálise e cinema. São Paulo: Global, 1980.
FREUD, Sigmund. O inquietante. In: FREUD, Sigmund. História de uma
neurose infantil (“O homem dos lobos”), Além do princípio de prazer e outros textos (1917-1920). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
20
FREUD, Sigmund. O mal-estar na cultura. Porto Alegre: L&PM, 2010.
GAY, Peter. Freud para historiadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
KRACAUER, Siegfried. Theory of film. New Jersey: Princeton University
Press, 1997.
VETTORAZZO, Lucas. Rio em crise vive caos na saúde pública com reflexos até em hospitais federais. Folha de São Paulo. 29/8/2017. Website:
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/08/1913840-rio-em-crise-vive-caos-na-saude-publica-com-reflexos-ate-em-hospitais-federais.shtml
Acesso em 13/12/2018.
XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico. A opacidade e a transparência. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
Referências fílmicas
O diabo mora aqui (2016), de Rodrigo Gasparini e Dante Vescio
O Iluminado (1980), de Stanley Kubrick
O nó do diabo (2018), de Ramon Porto Mota, Ian Abé, Gabriel Martins e
Jhésus Tribuzi
O Rastro (2017), de J.C. Feyer
Uma história de amor e fúria (2013), de Luiz Bolognesi
21
A POTÊNCIA DA FAMÍLIA NO CURTA-METRAGEM OS
SAPATOS DE ARISTEU E NO ROMANCE LAS MALAS
Cláudia Maria Ceneviva Nigro
Luiz Henrique Moreira Soares
No espaço de um quarto vazio, a luto e a vergonha enredam-se em um
desejo de salvação. A travesti está deitada na cama, morta. A mãe, de costas,
inicia o ritual silencioso de (des)figuração do corpo. As mesmas mãos supostamente carinhosas da infância agora injetam a dose de destruição – de vingança.
Nu sobre a cama, o corpo é limpo, toda a maquiagem retirada e o esmalte das
unhas removido, encenando um ritual de purificação e limpeza: higienização daquele corpo, usurpação da identidade. Com uma tesoura, a mãe corta os cabelos;
o pano úmido retira a maquiagem, extirpa toda a possibilidade de vida – mesmo
no corpo já morto. Corta-se o cabelo para remendar o cordão umbilical. Corta-se
para desfazer todo grau de feminilidade, de identidade: a mesma identidade que
a expulsou da família e a renegou à exclusão, ao não afeto.
A cena que destacamos faz parte do curta-metragem Os sapatos de Aristeu, lançado em 2008, com direção e roteiro de René Guerra. Nessa obra, consagrada em mais de vinte premiações e presença marcante em mais de vinte
festivais (incluindo a Pré-Seleção do Oscar), estão estruturados conflitos de
reafirmação da transidentidade, do preconceito, da aceitação e do perdão.
O curta-metragem narra o processo de preparação do corpo de uma
travesti morta (Gretta Star) para o velório, realizado na casa da mãe (Berta
Zemel), e o embate introduzido pela volta da filha para a casa. O corpo
da travesti, iluminado, produzido e reafirmado a partir de uma identidade
buscada e construída, é o elemento primordial para a irrupção do drama
encenado no curta-metragem.
Ao receber o corpo para o velório, a família decide enterrá-la como homem, além de proibir a presença das amigas da morta. De volta à casa da mãe,
22
num retorno simbolicamente silencioso, posto a impossibilidade da palavra e
da defesa, a morta é destituída da produção dada pelas amigas travestis. Nesse
processo, a ritualização do “preparar o corpo pós-morte” confunde-se com o
próprio ato de desfiguração da transidentidade, uma vez que atravessa os sentidos do “tornar-se uma travesti” (Benedetti, 2005, p. 55), presente nas mãos,
no rosto, nos cabelos e nas roupas.
Fig. 1: Cenas do curta-metragem Os sapatos de Aristeu
Na tentativa de extinguir toda a feminilidade do corpo morto, mãe e
irmã o vestem com roupas masculinas, deixando os seios preponderantes. Ao
(des)construir o corpo ali estendido na cama, a mãe, em gesto simbólico de
“guardar o filho para si”, a mãe corta uma mecha do próprio cabelo e a preserva
junto ao da filha morta em uma pequena caixa. A cena de (des)arrumação da
morta é seguida pelas amigas travestis que descem a rua em direção ao velório.
23
Enquanto a mãe reza, em um quarto cuja ambientação figura imagens
de santos, as travestis agrupam-se no portão da casa. A fotografia em preto e
branco é o mecanismo estético usado para evidenciar a necessidade narrativa
do filme, cujos temas e subtemas, sem cores, “mudos” e antigos, subjazem ali,
encenando sentidos sobre a morte – o reencontro, o silêncio, o trauma, a decadência conservadora, a desonra, a resistência – e auxilia na construção de
uma complexa sensibilidade no embate entre as famílias (a tradicional e a das
travestilidades), entre dois espaços significantes.
Nessa obra, enterrar “o filho” é reavivá-lo. Reativa sentidos de família
baseados nos preceitos da cisgeneridade e heterossexualidade compulsórias.
Por muitos anos a sociedade valeu-se da metanarrativa, sustentada antropologicamente por Claude Lévi-Strauss, da família como vista na distinção entre
sociedades: aquelas conhecidas na atualidade e as ditas primitivas. A distinção
binária, sustentada em estruturas sociais solidificadas, é desenvolvida na obra
As estruturas elementares do parentesco (1949). O escritor trata de consanguinidade, incesto, entre outros temas, como formas não comprobatórias da hereditariedade desejada. Descola (2009), ao estudar o escritor, afirma:
[...] Além disso, fundava a generalidade e a recorrência das regras que
ordenam os sistemas de troca matrimonial sobre as estruturas do espírito, única base lógica capaz, segundo Lévi-Strauss, de garantir o postulado da unidade do homem na diversidade de suas produções culturais.
[...] A instituição revela claramente os mecanismos classificatórios do
parentesco - cada um se define pelo pertencimento à sua metade - e,
mais do que isso, o papel crucial do princípio de reciprocidade, do qual
a organização dualista aparece como a realização mais direta, mas que
pode igualmente se encarnar em múltiplas outras formas de vida social. [...] Portanto, em última instância, é na natureza do homem, em
esquemas formais e universais profundamente inscritos no seu espírito,
mas sempre conscientemente apreendidos, que reside o fundamento das
instituições matrimoniais e, de maneira mais ampla, da própria cultura,
cuja emergência é marcada pela proibição do incesto. Uma tal profissão
de fé é idealista apenas em aparência, pois desde As estruturas elemen-
24
tares do parentesco, e ao longo de toda a sua obra, Lévi-Strauss se diz
convencido de que as leis do pensamento não diferem das que ocorrem
no mundo físico e na realidade social que não é senão, ela mesma, um
de seus aspectos.
Ao dar nome à personagem travesti no título como Aristeu, o diretor
opta por questionar, por meio da desimportância do nome, em detrimento do
símbolo do sapato, a família tradicional trazida por Levi Strauss. Nós, espectadores, assustamos e sentimos a violência da não aceitação da filha, massacrante
às feminilidades travestis. Os sapatos, o marcador do papel conquistado de
mulher, é o sujeito do título, assujeitado aparentemente no texto, mas vindicador da transidentidade representada pela outra família, cumprindo o papel
de acolhimento e insistindo em posicionar-se mesmo onde não é bem-vinda.
As transidentidades encontram-se ali como corpos exigentes da humanidade.
Embora a teoria de Lévi-Strauss esteja coerente com a estrutura social
da cultura hegemônica branca europeia do século XX, e da família tradicional
de “Aristeu”, na sociologia a concepção de família e parentesco varia um pouco. Na maioria das vezes, entretanto, não desloca o aspecto (re)produtivo nela
presente. Forjada e mantida por normas de gênero, sexualidade, classe social
e raça (dentre outros marcadores sociais da diferença), a “família” pode ser
vista também como um dispositivo histórico (e tradicional) de regulação dos
corpos e dos comportamentos (na compulsionaridade de relações e de práticas
baseadas na cisgeneridade e na heterossexualidade), configurando-se como um
espaço estruturado a partir de diversas violências. Para Berenice Bento (2015,
n.p), a tradição pesa ainda na constituição desses formatos:
Há silêncios e apodrecimentos que sopram desta instituição milenar, a sacro-santa família, que precisam ser revelados. A grande promessa da família
é ser o lugar fundante de nossa condição humana, o lugar dos primeiros
vínculos, de aprendizagem, da proteção e cuidado. Promessas, geralmente,
não cumpridas e frustradas.
25
Bento (2015) relaciona a ideia de “família” a um conjunto consagrado
de noções baseadas na mitologia hebraico-cristã: a submissão das mulheres aos
maridos, a instituição de uma “honra masculina” a ser zelada e mantida, bem
como a regulação (heteros)sexual dos corpos, para que a família se mantenha
“sadia” e “próspera” perante a sociedade. Entendemos a escolha de Bento por
analisar a família hebraico-cristã em um país majoritariamente cristão. No entanto, sabemos também que essa estrutura familiar não abrange as culturas indígenas, quilombolas, migrantes, travestis, entre outras, cujas fundamentações
não se apoiam em hierarquias, mas muitas vezes em comunidades cooperativas, agregadoras e inclusivas.
Para outros pontos de vistas sobre a noção de família, Pizzi (2012, p. 2)
traz a apreciação da socióloga italiana Chiara Saraceno:
[...] a família é um dos lugares privilegiados de construção social da realidade, ela constitui o material de que se constroem os arquétipos sociais, os
mitos. A família é também um dos atores sociais que contribuem para definir as formas e sentidos da própria mudança social. De acordo com a autora,
devemos considerar a ‘família como o espaço histórico e simbólico no qual e
a partir do qual se desenvolve a divisão do trabalho, dos espaços, das competências, dos valores, dos destinos pessoais de homens e mulheres, ainda que
isso assuma formas diversas nas várias sociedades’ (Saraceno, 1997, p. 14).
A autora explicita a contingência em torno do conceito de “família”,
agora abordando outras configurações. Evidencia-se, nesses entremeios conceituais, o “termo” família talvez fundamentado em uma conjunção estrutural (pós-)colonial cristã, cujas bases consideram outras formas, outros ideais e
outros modelos familiares. Como já apontamos, entre algumas comunidades
indígenas, por exemplo, a concepção de família está ligada a um conjunto também amplo de relações, como o senso de comunidade, a transmissão de saberes (saberes não capitalizados pelo poder hegemônico, considerados, no grupo,
como uma riqueza cultural de formação), as vinculações com o divino, com a
natureza e com a sociedade, além dos sentidos em torno do trabalho, conservado como mecanismo de produção identitária nesses contextos. Em outras
26
palavras, a família parece resguardar uma potência de conservação dos saberes
para a sobrevivência do grupo; um espaço de desenvolvimento de habilidades
(artísticas, sobretudo), como escreve José Narciso Jamioy Muchavisoy (1997,
p. 71, tradução nossa), sobre o povo Kamëntsá, presente no sul da Colômbia:
[...] transmitir os saberes indígenas às novas gerações é dever dos pais, dos
avós e da comunidade em geral. Esse conhecimento, percebido pelas crianças e jovens por meio de seus familiares e dos sábios anciãos, garante a
identidade dessas novas gerações e, consequentemente, a comunidade ou o
povo os legitima como membros da família indígena.1
Como destacado, a família adquire, nesses contextos, outro caráter.
Apesar de manter vocábulos como “pais” e “avós”, a fim de se comunicar com
o colonizador, o indígena atribui aos mais velhos e à comunidade em geral o
papel da educação das jovens. Todos os adultos são pais, mães, avôs e avós. O
aspecto (re)produtivo e hierárquico da colonialidade é deslocado na medida
em que o conceito de família se baseia em relações de conexão e de transmissão
de saberes, oriundos das próprias comunidades, sem ligação com a manutenção
econômica dos grupos privilegiados. A manutenção da espécie e o cuidado das
crianças não é uma obrigação; é uma alegria dividida entre todos os membros.
Airton Krenak (2020), considerando a coletividade da percepção indígena acerca do território, aponta alguns processos desses habitantes, cujas
Histórias dissidentes (para os colonizadores) apresentam outra consciência sobre o mundo. A maternidade cabe à terra, nutrindo e não sendo espaço para o
capitalismo que a ameaça.
Dentro desse entendimento, Krenak inscreve a família no conceito de autoestória, demontrando o percurso desses agrupamentos humanos “destruídos”
pela colonialidade. A experiência da família coletiva dá-se por meio de narrativas
potentes, oralmente expostas pelos mais velhos. Ironicamente, apesar da tentativa
1
Cf. “[...] transmitir el saber indígena a las nuevas generaciones es un deber de los padres de
familia, los abuelos y la comunidad en general. Dicho saber, percibido por los niños y los
jóvenes a través de sus familiares y ancianos sabedores, garantiza la identidad a estas nuevas
generaciones y, en consecuencia, la comunidad o pueblo los legitima como miembros de la
familia indígena.” ( Jamioy Muchavisoy, 1997, p. 71).
27
diária de um “processo civilizatório” cristão, a família reage e, a cada dia, reexiste
nas histórias narradas: a família incorpora diversas comunidades indígenas ou não,
regida pela consciência planetária da importância da terra.
Entretanto, embora a ideia de família seja alargada, a noção judaico-cristã, ligada ao neoliberalismo capitalista, sustentada na concepção de
casamento, ainda é preponderante. O casamento, nesse sentido, aparece estritamente ligado a uma “profissão de fé” e regido por leis e mandamentos
cristãos. A construção desse ideal projeta feixes de exclusão e de rechaço
sobre corpos e práticas alheias ao enredo do casamento (tratando-se, ao fim,
de um enredo de sexualidade, de gênero, de comportamentos específicos),
cujas entranhas resguardam um processo histórico de manutenção do poderio masculino: “Na narrativa bíblica, temos uma sucessão de membros de
famílias que se matam, filhas que procriam com o pai para a manutenção da
linhagem. Enfim, pouco amor e muita dor.” (Bento, 2015, n.p).
No curta-metragem de René Guerra, a família consanguínea da travesti
morta personifica os valores coloniais de negação dos corpos dissidentes do modelo instituído como apto à reprodução – econômica, social e vital da espécie.
Em uma das cenas, a irmã, virando-se para o caixão na sala, onde já abriga o corpo morto, declara: “Monstro da vergonha que inundou nossa família! Vergonha,
traidor do nome do meu pai!”. E ainda prossegue: “Vergonha nos deixar aqui
sozinhas. Ir embora e virar isso...”. A cólera e a revolta da irmã são inundadas
de silêncio após a resposta da mãe que, sentada ao lado do corpo, diz: “Clarice,
ele me contou. Eu pedi pra ele ser ele longe de mim. Eu pedi... e ele obedeceu”.
A figura da irmã personifica o ressentimento, pois, mais do que a lembrança de algo doloroso ou ofensivo para a família (a transição de Diana/
Aristeu), esse sentimento advoga por atribuir à “outra” o encargo sobre o sofrimento gerado. A volta de Diana2 é o ressentir nomeado. Não se trata de
esquecer o “mal” causado pelo “outro”, mas apontar a “outra” como o “mal”.
Em contraponto ao ressentimento, a multidão de travestis adquire um caráter
2
28
O nome “Diana” não é pronunciado por nenhuma das personagens do curta-metragem, nem
na ficha técnica da obra. O nome da personagem aparece somente na dissertação de mestrado
do diretor, Luiz René Batista Guerra Mota, intitulada Teatralidade travesti: da margem para
o centro da cena cinematográfica (2017).
alternativo de família, cuja consciência não reafirma o processo de abjeção daquele corpo travesti morto. Diana é a pessoa a ser enterrada, mesmo abusada
pela família no preparo do corpo para o enterro.
Fig. 2: Cenas do curta-metragem Os sapatos de Aristeu
Ao voltar à sala, a câmera focaliza a expressão emotiva da irmã, depois
de ouvir as palavras da mãe. A cena exibe a sala escura, o corpo da morta e a
mãe de mãos cruzadas, em seguida expõe Clarice indo em direção às travestis
e abrindo o portão, silenciosa, para que elas participem do velório da amiga.
A cena seguinte desenha Clarice, Raul (Renato Turnes) – um amigo
próximo – e a travesti dos sapatos em mãos: os três ao lado do corpo. Nesse
momento, a amiga encaixa nos pés da morta os sapatos, deformando o espectro forçosamente masculino empreendido pela família. O corpo, então, é
focalizado sem maquiagem; corpo morto e manipulado. Ao colocar o sapato,
29
a outra família da travesti restitui o sentido buscado em vida, partilhado por
uma comunidade – aspecto reforçado pela cena posterior, realçando as travestis
adentrando a sala.
Fig. 3: Cenas do curta-metragem Os sapatos de Aristeu
O final do curta-metragem evidencia a mãe atravessando a sala, em direção ao quarto no qual o corpo foi (des)construído: ela pega a pequena caixa
na qual guardara as mechas de cabelo da filha, junto às suas. Caminha para a
janela, segura o feixe de cabelo agarrado ao peito. Estende os braços para fora,
olhando diretamente para o cabelo em mãos: “Vá embora, vá, vai”, deixando os
fios caírem e voarem com o vento, enquanto o curta-metragem termina com a
expressão de desalento da mãe.
A tensão encenada no curta-metragem é representada pelo confronto
Eu x cultura, estruturado nas formas como os sujeitos elaboram identidades,
30
seguindo ou desviando de certos “modelos”, em si, construídos e mantidos
socialmente. A família simboliza a égide da cultura, o ambiente de discursos
e aprendizagens, a produção e o desenvolvimento de um “outro” a partir de
determinados preceitos de sexualidade e gênero; as mesmas noções cisheteronormativas e patriarcais que a mantém enquanto símbolo e imaginário social.
Saindo da visão sustentada no enredo do casamento (um homem, uma
mulher, procriação), a família contemporânea precisa acolher muit@s subalternizadas por não participarem desse enredo: aquel@s consideradas fei@s,
gord@s, idos@s, deficientes, de raças e etnias não consideradas importantes
naquele ambiente e de tod@s participantes da sigla LGBTQIA+. Esse processo de subalternização está ligado, de alguma forma, aos modos capitalistas de
concepção dos corpos. A ideia de “corpo ideal”, reverberada na indústria da beleza (corpo magro, jovem e saudável), se configura também como um elemento
discursivo e simbólico legitimando um espectro de funcionalidade corporal: os
corpos produtivos aos olhos do Estado são quase sempre os corpos brancos,
jovens, magros e saudáveis.
A (dis)funcionalidade dos outros corpos alheios aos discursos de produção capital é reafirmada a partir do momento em que o enredo do casamento
atravessa esses corpos: as mulheres e os homens gord@s, @s deficientes, as
lésbicas, os gays e as pessoas trans são barradas dos processos institucionais do
casamento, justamente porque essas existências assumem caracteres ressignificantes socialmente.
O enredo do casamento ainda é um imaginário fecundo nas sociedades,
sendo (re)produzido em diversas narrativas. Para a professora Mary-Catherine Harrison (2014), a potência dessas histórias é percebida na capacidade
de produzir imaginários que reverberam na cultura popular. A literatura (e
outras produções culturais) é vista, nesse ângulo, como um desses meios de
manutenção do enredo do casamento, estabelecendo ligações intrínsecas aos
modos pelos quais os indivíduos concebem as relações sociais. A autora se
pergunta: Como as narrativas moldam a forma como os indivíduos percebem
e constroem o mundo e as próprias vidas? Como a trama da vida de personagens fictícios envolve e influencia os leitores a compreender o possível e o
31
impossível sobre suas próprias existências? (Harrison, 2014, p. 112, tradução
nossa3). Harrison (2014) explica sobre as estruturas dos romances dos séculos
XVIII e XIX, com imagens poderosas em torno do casamento, baseando-se
principalmente em relações heterossexuais e hierarquicamente masculinistas.
As narrativas convencionais sobre o casamento moldam as expectativas
culturais sobre o papel do casamento e da família na vida moderna. Isso
não quer dizer que haja uma única narrativa principal sobre o casamento;
nem é para sugerir que o romance britânico teve um impacto uniforme nas
tradições literárias e culturais globalmente ou dentro das culturas anglo-americanas. No entanto, os primeiros romances desempenharam um papel
excepcionalmente importante no enquadramento de ideias sobre o amor e
a família nas sociedades modernas (Harrison, 2014, p. 113, tradução nossa4).
Harrison (2014) sustenta a tese de que as “vidas possíveis”, em uma esfera
social consolidada, muitas vezes estão calcadas em modelos-projetos de existência
canônicos, (re)conhecidos e compartilhados pelo grupo/comunidade. Os indivíduos, segundo a autora, (re)combinam os elementos do social e do cultural para
construírem a sua própria narrativa. Esses “projetos de existência canônicos”, por
outro lado, estruturam conjuntamente com as recombinações de cada indivíduo a
retransmissão de valores, possibilidades e preocupações de uma dada cultura (Harrison, 2014, p. 113). Nesse sentido, a partir de uma encruzilhada entre indivíduo
e cultura, as narrativas e suas estruturas temáticas estabelecem formas de conexão
e influências com a construção de si, da sociedade e das relações e práticas sociais.
Obviamente, o casamento é uma esfera social existente antes do romance moderno (século XVIII). Com o romance realista moderno, no entanto, o
3
4
32
Cf. “How do the form and content of fictional narratives shape the stories individuals perceive and construct about their own lives? How does the emplotment of events in the lives of
fictional characters influence readers’ understanding of the possible and permissible plotlines
in their own lives?” (Harrison, 2014, p. 112).
Cf. “Conventional narratives about marriage shape cultural expectations about the role of
marriage and family in modern life. This is not to say that there is a single master narrative
about marriage; nor is it to suggest that the British novel has had a uniform impact on literary
and cultural traditions globally or within Anglo-American cultures. Nonetheless, early novels
have played a uniquely important role in framing ideas about love and family across modern
societies.” (Harrison, 2014, p. 113).
casamento ganha uma proeminência cultural, sendo “naturalizado” enquanto instituição e normatizado como um conjunto de papéis heterossexuais – e
também cisgêneros – que serviriam como estágio virtualmente significante,
especialmente na vida das mulheres (Harrisson, 2014, p. 117).
A professora Amy Hungerford, em uma aula do curso online da Universidade de Yale sobre Literatura Norte-Americana, gravada em 2008, afirma que
os romances atuais (e, também, as demais produções contemporâneas) não mais
se sustentam na estrutura do enredo do casamento vitoriana. A fórmula desse
enredo possui um casal heterossexual e apresenta-se desenvolvida nos romances
a partir de alguns questionamentos como: “[...] São os casais da mesma classe social?
São eles de espaços geográficos contínuos? As personalidades combinam? Os pais concordam com a união?”. A professora ainda declara sobre o fato de as coisas terem
a possibilidade de não darem certo para o casal. A estrutura do enredo, portanto,
possui algumas variáveis, mas é governada pela concepção do casamento.
Talvez seja de nosso interesse fazer a ligação existente e muito conhecida entre o enredo do casamento e o capitalismo, ou seja, entender o casamento como negócio, usado com a finalidade de criar famílias como acordos
econômicos. Essa concepção cristã, associada ao poder da terra fundamentado
principalmente na Idade Média, altera as razões iniciais dos contratos de casamento: associação sensata entre grupos diversos, culturas distintas fazendo
acordos para uma melhor convivência.
O casamento como negócio retratado nos romances e fora deles cria
uma sociedade cuja funcionalidade dependerá de uma política de cancelamento de certos sujeitos, pois só a alguns cabe o lucro gerado. Assim também
sucede com a concepção de família, forjada e atrelada ao enredo do casamento.
A família consumidora.
Krenak (2020, p. 20-21) afirma que:
[...] Nós, a humanidade, vamos viver em ambientes artificiais produzidos
pelas mesmas corporações que devoram florestas, montanhas e rios. [...] o
do monstro corporativo, ele tem nome, endereço e conta bancária. E que
conta! São os donos da grana do planeta, e ganham mais a cada minuto,
33
espalhando shoppings pelo mundo. Espalham quase que o mesmo modelo
de progresso que somos incentivados a entender como bem-estar no mundo todo. [...] Enquanto isso, a humanidade vai sendo descolada de uma
maneira tão absoluta desse organismo que é a terra. Os únicos núcleos que
consideram que precisam ficar agarrados nesta terra são aqueles que ficaram
meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas margens do rio, nas beiras do
oceano, na África, na Ásia ou na América Latina. São caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes – a sub-humanidade.
Alia-se à “sub-humanidade” @s participantes mencionad@s na página quatro. São descrit@s em muitos dos romances clássicos reduzindo-se à
construção de personagens dentro do padrão heteronormativo e hegemônico.
Quantos protagonistas gays havia neles? Quantas travestis? Quantos escravizados? Quantos indígenas? Quais eram os papéis performados por essas personagens? Reforçavam as concepções sobre elas? Se os cancelados aparecem,
surgem como curiosidade, tal como as mulheres barbadas, os anões, os gigantes, os homens com hipertricose, presos em circos medievais. E, com certeza,
não são descritos como humanos, mas como estereótipos consagrados.
Com a sociedade sustentada no enredo do casamento e da família consumidora, a América Latina destaca-se como uma região cujos índices de violência são altíssimos em relação aos grupos cancelados. A literatura produzida
aqui espelha essas violências.
Las malas (2019), romance autobiográfico argentino publicado por Camila Sosa Villada, elabora um discurso memorialístico sobre as vivências da
narradora, flagrando as violências e as impossibilidades construídas aos corpos
trans a partir do enredo do casamento. Intercalando as vivências infantis com a
experiência da prostituição no Parque Sarmiento, em Córdoba, o texto de Sosa
Villada adquire um caráter manifesto político e coletivo, ao deslocar a imagem
da família nuclear e afetuosa, muitas vezes propagada para e pelos latinos.
No entanto, esse amor, segundo Sosa Villada, não existe para a comunidade
travesti: “A infância e as travestis são incompatíveis” (2019, p. 16, tradução nossa5.
A autora revela e reorganiza uma história de violência e de vergonha, apontando os
5
34
Cf. “La infancia y las travestis son incompatibles.” (Sosa Villada, 2019, p. 16).
meandros da constituição masculinista e cisheteronormativa em torno da família.
O patriarca, como a própria imagem do medo, impõe insegurança e destruição à
filha travesti: “Não havia policiais, clientes ou crueldades que me fizessem temer
como temia ao meu pai.” (Sosa Villada, 2019, p. 39-40, tradução nossa6). O pai, ao
mesmo tempo em que simboliza o acusador, também representa o punidor:
[...] o pai que enche de gordura tudo o que toca e repete uma e outra vez qual
será o seu destino: – Você sabe o que um homem precisa fazer para ser um
homem de bem? Ele tem que orar todas as noites, formar uma família, ter
um emprego. Vai ser difícil você arrumar emprego com a saia curta, o rosto
pintado e os cabelos compridos. Tire essa saia. Tire a tinta do rosto. Vai tirar
a chicotadas. Sabe do quê pode trabalhar assim? De chupar paus, meu amigo.
Você sabe como sua mãe e eu vamos te encontrar um dia? Deitado na vala,
com AIDS, com sífilis, com gonorréia, quem sabe as sujeiras com que sua mãe
e eu vamos te encontrar um dia... Pense bem, use a cabeça: você, sendo assim,
ninguém vai te amar. (Sosa Villada, 2019, p. 42, tradução nossa7).
Lançando a filha ao “fracasso”, a partir de uma fala carregada de imperativos, o pai assegura a honra da família. A honra do “homem de bem”. Como faz
Kafka, ao escrever para/contra o pai, em Carta ao Pai (1952), Sosa Villada também
se vinga. A narração estrutura-se como confronto às leis do pai, como artifício de
contestação e de rearticulação desse medo por outras vias: “Meu pai e minha mãe
sempre souberam o que eu fazia naquela prisão: escrever e vestir-me de mulher.
Isso os expulsou do meu mundo e me salvou do seu ódio: meu romance comigo
mesmo, minha mulher proibida.” (Sosa Villada, 2019, p. 6, tradução nossa8).
6
7
8
Cf. “No hubo policías ni clientes ni crueldades que me hicieran temer del modo en que temía
a mi papá.” (Sosa Villada, 2019, p. 40).
Cf.“[...] el padre que llena de grasa todo lo que toca y te repite una y otra vez cuál será tu destino:
−¿Sabe usté lo que tiene que hacer un hombre para ser un hombre de bien? Tiene que rezar todas
las noches, formar una familia, tener un trabajo. Difícil va a ser que consiga usté trabajo con la
pollerita corta, la cara pintada y el pelito largo. Sáquese esa pollerita. Sáquese la pintura de la cara.
A azotes se la tendría que sacar. ¿Sabe de qué puede trabajar usté así? De chupar pijas, mi amigo.
¿Sabe cómo lo vamos a encontrar su madre y yo un día? Tirado en una zanja, con sida, con sífilis,
con gonorrea, vaya a saber las inmundicias con las que iremos a encontrarlo su madre y yo un día.
Piénselo bien, use la cabeza: a usté, siendo así, nadie lo va a querer.” (Sosa Villada, 2019, p. 42).
Cf. “Mi papá y mi mamá siempre supieron lo que hacía en ese encierro: escribir y vestirme de
mujer. Eso los expulsó de mi mundo y a mí me salvó de su odio: mi romance conmigo misma,
mi mujer prohibida.” (Sosa Villada, 2019, p. 6).
35
Como figura onipresente, o pai impulsiona a Lei, reveste a Lei. Na narrativa do curta-metragem Os sapatos de Aristeu, com o intuito de “não fazer
sofrer mais ainda”, a irmã e a mãe reiteram o discurso de negação da identidade
de gênero da filha e, consequentemente, o seu silenciamento. A lei e o julgamento do pai, nessas obras, prefiguram um sistema de opressão, mas também
uma ficção, uma história produzida, além de ecoar sobre o corpo travesti de
Diana e Camila. As personagens trazem consigo a “marca do delito”, o delito
da transgeneridade, o delito construído pela cisgeneridade enquanto regime de
sentidos: a “cisgeneridade compulsória” (Bagagli, 2016), cujas estratégias enxergam e nomeiam os corpos trans, instituindo sentidos sobre saúde e doença,
desejo e comportamento.
Nas duas obras, entretanto, podemos entrever as formas com as quais
o enredo do casamento atravessa os corpos de grupos subalternizados, mas
também como pode ser deslocado, ressignificando sentidos em torno do conceito de “família”. Em Os sapatos de Aristeu, a procissão de travestis reivindica
o “adeus” à amiga como um modo emblemático de resistência, pois revela
maneiras pelas quais o corpo da travesti é ignorado, violentado, destituído
e instituído de identidade, impossibilitado de dizer sobre o próprio destino.
Ao voltar para a casa, ainda que morta, a personagem encena a crise das
identidades acabadas e supostamente ligadas por um fio originário, mas também a incomunicabilidade entre mãe e filha; a crise de um ideal conservador
firmado na presença paterna.
Em Las malas, as figuras do pai e da família são destituídas no momento da escrita e da rememoração. O texto de Sosa Villada não é somente uma
resposta (indireta) ao pai, que a condenou à morte e traçou para ela um destino
(reiterado no discurso) pela ideologia do enredo do casamento. Ao mesmo
tempo, é uma carta de amor e perdão às travestis que atravessaram a vida da
narradora, ensinando-a, também, a ser travesti. O livro, misto de memória e
rito de iniciação, conjuga outras configurações de família ao elaborar o embate
entre consanguinidade e afetividade: qual é a família que escolhemos e qual é
a família que nos escolhe? Nesse sentido, a “escolha” não supõe uma essencialidade, mas uma ação mais ou menos consciente em uma conjuntura adversa.
36
No caso da narradora de Las malas, a família de travestis está unida por
laços de afetividade, por compartilharem, de modo parecido, as precariedades
e as violências em seus corpos. A construção de uma relação afetiva com a
comunidade travesti de Córdoba, habitantes de “um casarão rosa, do rosa mais
travesti do mundo” (Sosa Villada, 2019, p. 17, tradução nossa9), afiliadas de
Tía Encarna (uma espécie de matriarca centenária das travestis), enfatiza a
dinâmica de reconfiguração da “família”: como estratégias de resistência, redes
de apoio entre personagens, potencializam as afinidades não consanguíneas,
quando o espaço da casa dos pais, construído culturalmente como “afetuoso”,
responde com expulsão e condenação. Uma passagem representativa da desconstrução em torno do enredo do casamento é a ocasião em que Tía Encarna,
caminhando no Parque Sarmiento, encontra no meio da tumba de galhos espinhosos um bebê abandonado e o adota:
A criança está enrolada em uma jaqueta de adulto, uma jaqueta inflável verde. Parece um papagaio careca. Quando ela tenta tirá-lo da cova de galhos,
os espinhos cravam nas mãos e os furos começam a sangrar, manchando
as mangas de sua blusa. Parece uma parteira enfiando a mão na égua para
extrair o potro. Ela não sente dor, não percebe os cortes feitos por aqueles
espinhos. Continua a separar galhos e finalmente resgata o menino que uiva
durante a noite. Está todo cagado, o cheiro é insuportável (Sosa Villada,
2019, p. 14, tradução nossa10).
O encontro de Tía Encarna e o bebê abandonado (nomeado O Brilhos
dos Olhos), narrado de maneira sensível e simbólica (o resgate do menino do
seio carregado de espinhos equipara-se a um parto), articula um imaginário
sobre a irmandade travesti e as novas configurações de família: “Mas foi como
se tivéssemos realmente selado aquele pacto de silêncio com sangue, porque
9
10
C.f. “la casona rosa, del rosa más travesti del mundo” (Sosa Villada, 2019, p. 17).
Cf. “El niño está envuelto en una campera de adulto, una campera inflable verde. Parece una
lora con la cabeza calva. Cuando intenta sacarlo de su tumba de ramas se clava espinas en las
manos y las pinchaduras comienzan a sangrar, tiñen las mangas de su blusa. Parece una partera metiendo las manos dentro de la yegua para extraer al potrillo. No siente dolor, no repara
en los cortes que le hacen esas espinas. Continúa apartando ramas y finalmente rescata al niño
que aúlla en la noche. Está cagado entero, el olor es insoportable.” (Sosa Villada, 2019, p. 14).
37
éramos filhas da mesma mãe, a mesma besta que nos deu à luz, todas bebemos
do mesmo leite: o da nossa mãe, que pariu vadias, prostitutas e porcas.” (Sosa
Villada, 2019, p. 58, tradução nossa11).
Permeado de uma ideologia cisheteronormativa, provedora e mantenedora da uma lógica reprodutiva de vida e de capital, o enredo no casamento é
desfigurado na medida em que Diana e Camila, a partir do questionamento
impulsionado por seus corpos, na tela e nas páginas, reorganizam discursos de
exclusão, oferendo alternativas possíveis a vidas possíveis.
Referências
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Periodicus, Salvador, v. 1, n. 5, p. 87-100, 2016. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/article/view/17178/0. Acesso em:
12 ago. 2021.
BENEDETTI, Marcos. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de
Janeiro: Garamond, 2005. (Coleção Sexualidade, Gênero e Sociedade)
BENTO, B. Família: entre o Santo Graal e o exílio. Revista Cult, 2015. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/familia-entre-o-santo-graal-e-o-exilio/. Acesso em: 02 ago. 2021.
DESCOLA, P. Claude Lévi-Strauss, uma apresentação. Estudos
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HUNGERFORD, A. The American Novel Since 1945. Spring, 2008.
Disponível em: https://oyc.yale.edu/english/engl-291/lecture-14. Acesso em 12 ago. 2021.
11
38
Cf. “Pero era como si en verdad hubiéramos sellado con sangre ese pacto de silencio, porque
éramos hijas de una misma madre, una misma bestia nos había parido, todas habíamos bebido de la misma leche: la de nuestra madre, que paría zorras y prostitutas, que paría cerdas.”
(SOSA VILLADA, 2019, p. 58).
JAMIOY MUCHAVISOY, J. N. Los saberes indígenas son patrimonio
de la humanidade. Nómadas, Colômbia, n. 7, p. 64-72, 1997. Disponível
em: https://www.redalyc.org/pdf/1051/105118909006.pdf. Acesso em:
12 ago. 2021.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 2 ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2020.
PIZZI, M. L. G. Conceituação de família e seus diferentes arranjos. Revista Eletrônica Ensino de Sociologia em Debate, v. 1, n. 1, p. 01-09,
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PRETA PORTÊ FILMES. Os Sapatos de Aristeu (The Shoes of
Aristeu) – by René Guerra, [2008] 2014, (17m), https://www.youtube.
com/watch?v=YI2jhgnYaFY&t=890s
SARACENO, Chiara. Sociologia da família. Lisboa: Editorial Estampa, 1997.
SOSA VILLADA, Camila. Las malas. Buenos Aires: Tusquets, 2019.
(Colección rara avis).
39
O MOVIMENTO SOBREVIVENTE DAS IMAGENS: UMA
APROXIMAÇÃO ENTRE GUIGNARD E NATÁLIA AGRA1
Paulo Eduardo Benites de Moraes
O presente texto propõe uma aproximação entre as telas de Guignard
e seu mundo de névoas, como definiu Naves (2011), e o livro Noite de São João
(2020), da poeta Natália Agra. Não há uma relação direta entre o livro e os
quadros, embora os títulos os aproximem bastante. Tampouco se trata de um
exercício ecfrástico, uma vez que o livro não retoma as telas como objetos em
mira. Para realizar tal aproximação, nos valemos de temas afins que estão na
base da composição dos quadros e dos poemas, a saber: a névoa, o ar, a fumaça,
o vento, e por extensão, a morte, a memória e os fantasmas. São imagens que
se revelam pela transparência e que nos permitem ver-através, ver o que já não
está presente ou o que retorna inesperadamente.
O ar, a fumaça, a névoa, o vento são figurações do indefinido, do vago, e
são eles próprios elementos de difícil definição, talvez por isso pouco estudados
criticamente como temas importantes para a literatura. No entanto essas “figuras do ar”, como as definiu Betina Bischof (2015), são instâncias importantes
para pensarmos a relação das imagens com o tempo.
Um dos tópicos que merece atenção no conjunto dessas figuras é a relação
que tais imagens mantêm com os movimentos sobreviventes. Quando se procura
saber se um corpo que jaz está morto ou sobreviveu, se ainda possui um resto de
energia vital, é importante atentar para os movimentos: “mais para os movimentos do que para os aspectos em si”, afirma Didi-Huberman (2013, p. 167). O
livro de Natália Agra captou esse movimento na apresentação da imagem do fogo-fátuo: “o último recado do corpo morto”, nas palavras do também poeta Tarso
de Melo em texto para a orelha do livro. Para captar o movimento, portanto,
1
40
Este texto é resultado do projeto de pesquisa “Arte, Literatura e Imagem: perspectivas contemporâneas” vinculado ao Grupo de Pesquisa em Poéticas Moderna e Contemporânea
(UNIR/CNPq) e desenvolvido no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (MEL/UNIR).
implicado necessariamente à “problemática da sobrevivência” (Didi-Huberman,
2013), é preciso observar os pequenos detalhes, os traços que permitem reconhecer o estado sintomal das imagens. Nesse sentido, as imagens transparentes,
como o ar, o vento, a fumaça, podem anunciar o mover-se do tempo.
O exercício de reflexão proposto parte da tentativa de pensar as “figuras
do ar” a partir de uma montagem de temporalidades distintas que se impregnam tanto nos quadros de Guignard quanto nos poemas de Natália Agra. Este
exercício de pensamento entende que no cotejo entre as obras tais imagens
desestabilizam os sentidos, deslocando e problematizando tais obras em suas
relações com o tempo. A questão fundamental para as análises aqui propostas
tem como objetivo maior tentar apreender a presença da imagem transparente
em cada um dos artistas a fim de aproximá-los pelo desarranjo das poéticas, isto
é, em vez de nos basearmos nos ideais críticos de comparações intertextuais, ou
mesmo relações ecfrásticas a fim de elucidar as superações e oposições entre
um e outro, buscamos mostrar os enlaces de tempos, os vínculos insuspeitados,
que apontem para uma poética das imagens em seu caráter sintomático, feita
de aparições e desaparições, de sobrevivências fantasmáticas.
O crítico Raul Antelo afirmara que pensar a constituição da imagem
como um procedimento de montagem seria entender que toda imagem é um
retorno, no entanto, já não é mais um retorno idêntico. Ao abrir essa discussão,
Antelo aproxima a imagem da poesia:
Aquilo que retorna na imagem é a possibilidade do passado. Como procedimento de suspensão ou corte, a imagem aproxima-se, então, da poesia, e não
da prosa, na medida em que até mesmo o poema poderia ser reduzido ao
simples efeito de enjambement. Retorno e corte alimentam, portanto, uma
certa indecibilidade ou indiferença, uma impossibilidade de discernimento
entre julgamento verdadeiro e falso, que potencializa, entretanto, o artifício
da falsidade como a única via possível de acesso à estrutura ficcional da
verdade. (Antelo, 2004, p. 9).
Ao focar as telas de Guignard é possível pensar em várias montagens
de sentidos. A que propomos em nossa leitura se volta justamente para os
41
pequenos movimentos, os ínfimos detalhes, os restos, as formas e suas desintegrações, suas inquietantes ressonâncias. Observamos um movimento que parte
do dia, em “Tarde de São João” (Figura 1), direcionando-se à noite, em “Noite
de São João” (Figura 2).
Figura 1 - Alberto da Veiga Guignard. Tarde Figura 2 - Alberto da Veiga Guignard Noite
de São João, 1959, Óleo sobre tela. 30 x 40 cm. de São João, 1961, Óleo sobre tela. 50 x 46 cm2.
No primeiro quadro a festa de São João é apresentada em plena luz do
dia, como o próprio título anuncia. Chama a atenção o contraste entre a escala de
representação da tela: no centro, uma igreja ocupa um lugar de destaque, seguida
por outras menores que formam uma constelação de prédios misturados com os
balões dispersos no ar; na parte mais baixa de tela, em primeiro plano, um grupo
de pessoas reunidas ao redor de uma fogueira é apresentado diminuído em relação à paisagem. Esse efeito de redução da presença humana, representada em
escalas menores no quadro, parece propor uma sobreposição da paisagem sobre
a condição humana. Não à toa, Paulo Sergio Duarte, em curadoria para o Museu de Arte Moderna de São Paulo – “Guignard: a memória plástica do Brasil
moderno” – destaca uma série intitulada “As Paisagens”. É dentro desse grande
gênero que encontramos as obras dedicadas à festa de São João.
2
42
As duas telas citadas foram retiradas da seguinte fonte: Naves, Rodrigo. A forma difícil: ensaios sobre a arte brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
Duarte lembra o fato de que na arte Ocidental as paisagens figuram
como um gênero estético somente a partir do Romantismo, mas que na arte
Oriental, sobretudo a chinesa, o gênero sempre ocupou um lugar de destaque,
sendo denominado de “paisagem pura”. É por meio dessa herança oriental que
o crítico observa traços de correspondência com as paisagens de Guignard,
cujas “características se verificam, por exemplo, numa ideia de profundidade
diferente da perspectiva linear que supõe um ponto de fuga, enquanto a perspectiva oriental é qualificada tanto de aérea como de cavaleira”. (Duarte, 2015,
p. 17). Em “Tarde de São João” é possível observar essa perspectiva aérea, o
que seria, na leitura a partir de Duarte, “uma dupla perspectiva”, como se o
observador estivesse no alto, gozando de uma visão global da paisagem, motivo
pelo qual vemos as pessoas muito pequenas. Poderíamos arriscar que a visão é
projetada de dentro dos balões que sobrevoam a cidade.
O artista Carlos Zilio, que foi um estudioso da obra de Guignard, nos
lembra que há um segundo efeito nos quadros possivelmente advindo da matriz
oriental. Esse outro efeito diz respeito à concepção de espaço nas obras de Guignard, construídos pela tensão entre o cheio e o vazio. A pintura oriental é pensada a partir de uma relação entre a montanha e a água, que constituem os dois
polos entre os quais circula o vazio representado pela nuvem. Esta, por sua vez
é um estado intermediário entre os polos aparentemente antinômicos, já
que nasce da condensação da água e toma a forma da montanha, e funciona
criando um processo de devenir recíproco entre montanha e água. Na ótica
chinesa, sem o vazio entre elas a montanha e a água se achariam numa relação
de oposição rígida e, por isso, estática. É interessante notar que Guignard,
em seus depoimentos sobre a pintura, nunca fez qualquer referência à arte
oriental. O mais plausível é que esse interesse tenha surgido do seu convívio
com a arte moderna que, do impressionismo a Matisse, sofreu a influência
da arte oriental através das gravuras japonesas. (Zilio, 1983, p. 19-20 apud
Duarte, 2015, p. 17).
O estado intermediário de que fala Zilio é importante para os desdobramentos de nossa reflexão. É possível observar um movimento no quadro
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“Tarde de São João” que acompanha a fumaça. O detalhe ínfimo, pela escala reduzida com que é construído, revela um grupo de pessoas ao redor da fogueira
prestes a soltar um balão, o que sugere uma ação indeterminada, não concluída,
o momento intermediário entre o ato de soltar o balão e o voo. Esse mesmo
movimento pode ser observado na fumaça que sai da fogueira e se espalha por
todo o quadro, misturando-se às nuvens e às montanhas, enevoando a tela.
Se ao centro temos uma cena que projeta o balão, caracterizada pela presença de luz e cor, e que ganha projeção ao subir em linha reta demarcando o
centro do quadro, reforçado pela presença da Igreja Matriz, também iluminada,
pelas bordas a fumaça esvazia toda a tela e promove um processo de desintegração das formas. A fumaça enlaça o quadro por fora e desliza circularmente,
atravessando de uma borda à outra, provocando um estado de suspensão na paisagem, motivo pelo qual temos a sensação de que as pequenas igrejas constelares
flutuam no ar junto aos balões. Nesse instante temos uma paisagem móvel, anti-mimética e não realista. As figuras do ar sopram para dentro da tela o movimento do tempo e das formas, sem eliminar as tensões do estado intermediário.
Embora percebamos os traços bem demarcados das pinceladas nas curvas das
montanhas, a forma de uma perspectiva linear se desfaz pouco a pouco.
Esse estado intermediário no qual encontramos o processo de desintegração das formas pode ser pensado à luz da noção de Pathosformel, de Aby
Warburg. Tal noção warburguiana imprime, de saída, uma concepção da imagem pautada por um regime duplo, ou, como bem definiu Didi-Huberman
(2015, p. 173, grifos no original), “a energia dialética de uma montagem de
coisas que, em geral, o pensamento considera contraditórias: o páthos com a
fórmula, a potência com o gráfico, em suma, a força com a forma, a temporalidade de um sujeito com a espacialidade de um objeto etc.” O quadro de Guignard
toma a névoa, o ar, a fumaça como traços significantes. O movimento da fumaça que parte para uma tomada contínua da paisagem pode ser lido como um
traçado, um rastro deixado na tela pelo qual ou por onde a imagem move-se.
Essa relação circular da fumaça ao redor das pessoas, e das pessoas
em volta da fogueira, é a imagem de abertura de Noite de São João, de Natália Agra (2020, p. 19):
44
todos ao redor desta fogueira
buscam o calor do esquecimento
O poema pode ser pensado, inicialmente, pelo acidente da forma. Trata-se
de um poema em dois versos, mas que consiste em um único período sintático
que enuncia um único desejo: o esquecimento. Se lemos o poema como um dístico, é possível observar a regularidade rítmica e métrica dos dois versos. Acentuados nas mesmas sílabas métricas (1, 5 e 9), os versos funcionam como um eco
que se estende de um para outro, sustentando um movimento cíclico, o que pode
ser reforçado pela presença marcante da vogal “o” – ao / dor / o / calor / do – que
recebe o peso sonoro do poema. Mas também é possível ler o poema pelo corte,
isto é, pelo enjambement, o que confere maior intensidade ao movimento dos
versos pela presença do efeito de retorno. Anteriormente citamos Raul Antelo
e o efeito de retorno e corte que alimentam a imagem por meio de uma configuração de indecibilidade, uma impossibilidade de discernimento. Pois bem, no
poema de Natália Agra o efeito do retorno se dá tanto no plano da forma quanto
no plano da projeção da imagem.
Se no quadro de Guignard há alguma coisa de tristeza, que se dissipa no
ar e se materializa com a fumaça, no poema de Natália Agra o calor do esquecimento pode ser pensado como uma imagem de duração de tempo, um tempo
não mais linear, e sim uma temporalidade cíclica que projeta a eterna expressão
de ser do homem. Rodrigo Naves, ao estudar a figura do ar nos quadros de
Guignard, fala do sentimento de tristeza que se abate sobre a paisagem:
Sempre muito tristes as noites de São João de Guignard. O que se festeja,
afinal, em meio a espaços tão vastos, que nos retiram o fôlego e a escala? Houvesse aí um elogio à natureza, a seus poderes e amplidões, talvez
nos redimíssemos do apequenamento por meio da visão de mundos mais
generosos, repletos de possibilidades. Mas não. Essa natureza tem cismas,
pudores. Envergonham-na os extravasamentos, as manifestações cabais. O
que lhe agrada é essa sedimentação lenta e continuada, a manter tudo em
suspensão – um mundo de névoas, sem solo ou pontos de apoio firmes.
(Naves, 2011, p. 175).
45
Em ambos os quadros, a tristeza a qual Naves faz referência pode ser
sentida pelo esvaziamento progressivo das formas. O espaço vai se apropriando, pouco a pouco, dos seres, retirando da tela a solidez da presença tornando
a paisagem quase desabitada. No espaço vazio que se constrói, o que preenche
os quadros é fumaça, o ar, o vento, imagens que se formam por continuidades
e que revelam um estado de limiaridade. Se, por um lado, tais imagens ocultam
as marcas da fixidez, as formas e os seres, por outro se deixam atravessar pela
transparência, revelando sinais que estão escondidos e que aparecem inesperadamente, como a figura da morte, que surge pela imagem da cruz. Em “Tarde
de São João”, no canto inferior direito, a imagem da cruz apresenta-se no morro, em uma posição acima das pessoas. Há um contraste entre o que está acima
e abaixo, e à medida em que a imagem sobe junto à fumaça o quadro se enche
de solidão. A força que percebemos das pessoas em volta da fogueira, e mesmo
a festa de São João, estão no plano da vida, ou como uma forma de resistência
à nossa mortalidade. A cruz, ao alto, denuncia, inversamente, o alcance devastador do tempo vinculada ao plano da morte.
O segundo quadro (figura 2), por sua vez, construído sob a atmosfera da
noite, também traz à tona a presença da morte. No plano formal e material da
tela, as marcas das pinceladas que circunscreviam as montanhas em “Tarde de
São João” são substituídas pela mancha acinzentada da fumaça que se mescla
com as nuvens e desestabiliza por completo a paisagem. Não se reconhece mais
o espaço em suas particularidades, o que se vê é uma paisagem homogênea
sobre um fundo preto.
Os balões e as igrejas se somam flutuantes por todo o quadro, ainda
mais soltos no ar do que durante a tarde. Nota-se que o movimento circular da
fumaça que seguia pelas bordas, na primeira tela, surge como o preenchimento
principal de “Noite de São João”, forçando a paisagem ao abismo, como fica
visível no centro da tela com o espaço vazio que se impõe entre as duas bordas.
Naves chama a atenção para o fato de que a tela se apresenta como paisagem
sem uma hierarquização das formas, de modo que as figuras menores acabam
por construir uma atmosfera de estranheza nos quadros:
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são porém essas pequenas figuras – balões, igrejas, trens, palmeiras, etc. –
que reforçam a sensação de estranheza, ainda que também tornem as cenas
de Guignard familiares. O convívio entre aquilo que recusa qualquer identidade e o que é extremamente típico – brumas metafísicas e festas caipiras
– desconcerta, ao menos num primeiro momento. Singelas e discretas, as
figurinhas pontuam delicadamente aquelas massas fugidias, dando-lhes ritmos. Como não desejam a condição de elementos estruturadores, convivem
amenamente com a indiferença das áreas turvas. Mas a proximidade de
coisas assim díspares surpreende. (Naves, 2011, p. 185).
A imagem da morte é uma dessas figuras que surge por um ritmo
lento e se deixa ver no movimento temporal entre o dia e a noite. Há, como
se observa na paisagem turva, um mundo prestes a escorrer, um vagaroso
movimento de aparecimento e desaparecimento no qual a imagem da cruz
ressurge. A primeira, no alto na tela em formato de constelação, como um
lampejo no céu escuro, acentuada pelo brilho e a luz características das estrelas; a segunda está quase apagada, no alto da montanha que se esconde
por detrás da névoa da noite. É uma cruz fantasmática em cima de uma
montanha que quase não existe.
É importante observar o significado desses aparecimentos durante a
noite, uma vez que dessa situação – uma paisagem escondida na noite –
podemos pensar em uma experiência ambígua entre a privação do visível e
uma abertura para o que ultrapassa o que se esconde, o estado sintomático da
imagem. Georges Didi-Huberman, ao refletir sobre essa dupla condição do
olhar à noite, escreveu o seguinte:
É quando fazemos a experiência da noite sem limite que a noite se torna o
lugar por excelência, em pleno meio do qual somos absolutamente, em qualquer ponto do espaço onde nos encontremos. É quando fazemos a experiência da noite, na qual todos os objetos se retiram e perdem sua estabilidade
visível, que a noite revela para nós a importância dos objetos e a essencial
fragilidade deles, ou seja, sua vocação a se perderem para nós exatamente
quando nos são mais próximos. (Didi-Huberman, 2010, p. 99).
47
Em “Noite de São João”, de Guignard, a paisagem aparece como um
lugar por excelência, isto é, há um apelo à visualidade que nos coloca diante
do apelo último do que resta de vida. As igrejas, os balões, as montanhas derretendo situam o sujeito em uma espacialidade em que as coisas denunciam
os que ali estiveram um dia festejando. Entre as duas imagens da morte, a que
aparece sob a luz do dia e as duas que aparecem na escuridão noite, o que há
em comum é o estado flutuante nas telas, são aparições inesperadas que dão
outro tom ao clima de festa. Podemos afirmar que são duas aparições que se
dão pelo movimento sintomático das imagens: como lampejo e como fumaça.
Na obra de Natália Agra a imagem morte atravessa o livro do início ao fim,
é o tema central do livro como um todo. Uma das marcas da presença da morte no
livro de Natália Agra está na expressão “in memoriam”. São poemas dedicados às
pessoas que não estão mais presentes, tais como o avô, a avó, o pai, a mãe, a irmã, a
tia. Há em todos esses poemas dedicados a pessoas mortas uma dupla significação.
De um lado uma atitude de resistência da memória, uma tentativa de reviver os
mortos pela lembrança, pelas reminiscências, título da segunda parte do livro. Essa
força de memória é tecida pelas diferentes temporalidades que se somam e se cruzam ao longo da obra, tais como o tempo da infância no qual se desvela a criança
que busca um estado de refúgio e proteção: “quando criança/só você me salvava
dos pesadelos”; ou então como sugere os versos finais do poema “Evocação” em
que a criança se vê desabrigada diante do tempo e da morte:
[...]
sempre que retorno
encontro as janelas cobertas
o jardim vazio, as festas submersas
no esquecimento
de novo a criança soluça
o silêncio absoluto da navalha
(Agra, 2020, p. 29)
É notável nesses poemas o efeito de retorno do tempo. Nota-se, na estrofe
final de “Evocação”, o sujeito adulto que constata, com os olhos da criança que um
48
dia fora, a permanência de um estado de vazio diante da morte. O penúltimo verso
“de novo a criança soluça” aponta para a repetição da sensação de luto, dor, lamento
diante da morte, sensação representada pelo silêncio que corta como navalha.
Se o tempo da infância ainda retém “os últimos anos felizes da família”,
verso do mesmo poema, o tempo do agora, do adulto, olha para o passado
como “uma casa abandonada de onde nunca conseguimos sair”, título de outro
poema do livro. Há, nesse momento, um estado de tristeza no qual o sujeito de
hoje se vê e a partir do qual se move pela memória como tentativa de reviver o
passado e religá-lo ao presente, como forma, talvez, de reconstruir um futuro.
Porém, um futuro incerto, que não se dá senão pela transparência, pela incerteza de não saber se a memória permanecerá:
[...]
espeto o milho na brasa
deixo que ardam nos olhos
os últimos anos felizes da família
mesmo que nunca sobrevivam à fumaça
(Agra, 2020, p. 29)
Nos poemas de Natália Agra a fumaça, o vento e o ar ocupam o espaço
da memória e motivam o estado de incerteza das lembranças que insistem
em se dissipar no tempo, tal como anuncia o verso final da estrofe acima. As
figuras do ar que surgem na obra da poeta brasileira estabelecem uma relação
muito sensível com um efeito de presentificação, isto é, um sopro de memória
que deixa ver, no presente, aquilo que já não existe.
Uma segunda maneira de ler a imagem da morte na obra de Natália
Agra se dá pelo efeito do espelhamento, forma vazia por excelência que deixa
ver-através a nossa própria mortalidade diante da morte do outro. Nesse ponto,
o poema “Fogo-fátuo” é seminal. Citamos um trecho:
[...] parece certo dizer, por repetidas vezes, que há em toda morte um pouco
de nossa própria morte. um duplo terrível. um espelho fantasmal. e real. a
gente contempla, na figura do outro (estática), o início do nosso fim. (Agra,
2020, p. 35).
49
A imagem do “espelho fantasmal” sugere uma condição de tempo no
qual encontramos a sobrevivência das imagens. O poema, e o livro como um
todo, é construído sob uma atmosfera fantasmática, marcada por vultos e aparições, pela tensão entre o eterno e o contingente, por um jogo de espelhos que
aponta para um acúmulo de artifícios poéticos capazes de diluir o sujeito lírico
que se perde pelo enigma das formas inconstantes.
O “espelho fantasmal” sugere a aparição de um ser imaterial, em oposição à forma bem-acabada que sugere a aparência, o visível. Diante do “espelho fantasmal” o sujeito passa a existir fora de si, fora do próprio corpo e se
mostra como alma, como espírito, imagem etérea, fantasma. Assim, o tempo
da memória e o tempo da morte, que perseguem toda a obra de Natália Agra,
supõem a imagem fantasmática como a existência de algo fora do próprio lugar, tal como nas telas de Guignard nas quais as imagens irrompem quando se
projetam fora do lugar, na inexatidão dos espaços.
Nos poemas de Noite de São João a imagem surge quando do término
do corpo de que era forma, tal como a figura do avô, que era “a fumaça da casa”
(Agra, 2020, p. 35), ou mesmo no modo como a própria casa é apresentada:
“destruam logo esta casa/está cheia de fantasmas”. Ser imagem significa estar
fora de si mesmo, estar para além do próprio corpo, e nesse ponto tanto os poemas quanto os quadros de Guignard tornam as figuras do ar como elementos
de preenchimento do espaço vazio. Há um efeito metonímico, da parte pelo
todo, em que a ausência do corpo e da materialidade dos seres cedem lugar
para o inapreensível.
As paisagens da festa de São João, em Guignard, se enchem de fumaça,
enquanto os poemas de Natália Agra são preenchidos pelo sopro do inconsciente dando a ver o retorno dos mortos. Ao ler as obras desses dois artistas é
possível dizer que as figuras do ar desvelam o efeito especular através do qual
vemos nossa própria morte.
50
Referências
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ANTELO, Raul. Potências da imagem. Chapecó: Argos, 2004.
BISCHOF, Betina. Opressão, opacidade e transparência: imagens do ar na
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https://www.revistas.usp.br/ls/article/view/107378
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Trad. Paulo
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DUARTE, Paulo Sérgio. Guignard: a memória plástica do Brasil moderno.
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NAVES, Rodrigo. A forma difícil: ensaios sobre a arte brasileira. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.
ZILIO, Carlos. A modernidade em Guignard. Rio de Janeiro: PUC-Rio, s/d.
51
PRODUÇÕES PERFORMÁTICAS EM LIBRAS: O USO DO
CORPO E DA MÁQUINA EM PRODUÇÕES LITERÁRIAS
EM LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS
Nayara Piovesan Ribeiro Bartolomei
Vinícius Carvalho Pereira
É sabido que, nos Estudos Literários, o campo específico que busca
analisar e investigar a estrutura e a composição das produções literárias
sinalizadas das mais diversas línguas de sinais ao redor do mundo tem crescido
substancialmente nos últimos anos. Atribuímos esse fato ao crescente número
de produções artísticas e literárias dessas línguas, as quais são hoje produzidas,
compartilhadas e consumidas através de ferramentas online, como as plataformas YouTube e Instagram. Ao passo que as tecnologias de captação, edição e
registro de imagens foram evoluindo, as produções artísticas digitais também
foram sendo impactadas e vêm ganhando ao longo dos anos novas configurações no que tange ao seu compartilhamento e sobretudo à sua produção. De
maneira igual, as produções literárias digitais em Libras têm se destacado e
alcançado cada vez mais adeptos dentro e fora das comunidades surdas. Com
a utilização das tecnologias digitais, em conjunto com a sinalização em Libras
e o recurso a elementos dramáticos, vemos emergirem produções híbridas que
dialogam com as mais diversas áreas artísticas, como cinema, a dança e o teatro,
criando assim produções de cunho altamente performático e visual.
Nesse contexto, o trabalho que será apresentado a seguir é parte dos resultados obtidos na tese de doutorado desenvolvida pela primeira autora deste
capítulo sob orientação do segundo autor. Optamos, assim, que este capítulo
leve o mesmo título da tese em questão. Aqui nos interessa, portanto, apresentar de forma breve as conclusões levantadas após a pesquisa empreendida
no que tange a uma proposta de análise de produções artísticas em Língua
Brasileira de Sinais registradas em vídeos e postadas nas plataformas digitais
52
mencionadas anteriormente. Nosso principal objetivo é analisar e evidenciar
como três aspectos distintos, a saber, o linguístico, o dramático e o tecnológico,
se unem para formar as performances literárias sinalizadas em meio digital.
Salientamos que, através das análises empreendidas no estudo, foi possível identificar alguns elementos constitutivos dessas produções a partir da
evidenciação do emprego dos aspectos linguísticos, dramáticos e tecnológicos
mobilizados pelas artistas. Verificamos, então, como a língua, o corpo e a tecnologia, respectivamente, agem em consonância para a formação de criações
altamente performáticas, visuais e imagéticas. Como resultados da pesquisa,
foi possível identificar os elementos formacionais de cada um desses aspectos
e evidenciar o seu uso literário em Libras.
Objetivando que novas formas de análise e conceituação teórica das
produções em Libras sejam inseridas no campo dos estudos literários sinalizados, é que apresentamos a seguir as discussões e os resultados deste trabalho. Esperamos assim abrir novas e exclusivas perspectivas para análise dessas
produções, que não estejam amparadas somente nos referenciais dos estudos
literários já existentes, os quais se baseiam majoritariamente nas línguas orais.
Visamos que, desta maneira, a Libras se reafirme como língua independente
das línguas orais, inclusive em suas manifestações estéticas.
Antes, porém, de apresentarmos a nossa proposta de análise, cabe-nos
abordar de forma breve e objetiva alguns conceitos que permeiam os estudos de
literatura sinalizada, bem como as noções de performances adotadas por nós e
como estas podem ser aplicadas à análise das produções sinalizadas em Libras.
Nas últimas duas décadas, a Língua Brasileira de Sinais – Libras – ganhou, além de visibilidade e reconhecimento, destaque no que concerne aos
estudos sobre os mais variados aspectos a seu respeito. Ao passo que as pesquisas sobre suas estruturas linguísticas tomaram grandes proporções e passaram
a fazer parte da vida acadêmica, ocupando assim espaços antes não conquistados, também pudemos acompanhar a evolução e o crescimento da demanda de
estudos acerca das expressões literárias em Libras.
Um dos fatores determinante para a expansão da produção e consumo
das expressões artísticas e literárias em Libras é o crescimento e aperfeiçoa53
mento da tecnologia digital e, por consequência, o uso ampliado das redes sociais. Apesar de muitos estudos dedicados a identificar e explicar os fenômenos
literários da Libras apontarem que o surgimento da produção literária nessa
língua não é um fenômeno recente e decorrente da evolução na tecnologia,
visto que os usuários da língua sempre a usaram para criar formas expressionais, esses mesmos estudos destacam que o registro e consumo das produções
literárias sinalizadas cresceram de forma significativa e após o advento de ferramentas digitais de filmagem, posto que estas permitem à comunidade surda
registrar e divulgar sua produção literária.
Conforme os principais estudos da área (Sutton-Spence; Quadros,
2006; Klamt, 2014; Ribeiro, 2016), não é possível datar o início da prática
literária em Libras, devido à natureza de transmissão a partir do contato face
a face, necessitando desse modo da presença física entre os sinalizantes e frequentemente prescindindo de registros materiais permanente. Porém, é possível identificar, na segunda metade do século XX, um importante ponto de
virada na história das produções literárias em Libras, dado que, com o advento das tecnologias de captação, edição e circulação de imagens em vídeo,
aumentaram significativamente as oportunidades para produção, divulgação e
consumo dessa prática literária. Como consequência indireta desse desenvolvimento tecnológico, as produções artísticas em Libras têm se tornado cada vez
mais democráticas, visto que as plataformas de criação, como as tecnologias de
captação de imagens em movimento, e as plataformas de circulação e recepção
dessas produções, como as redes sociais na internet, se popularizaram substancialmente no decorrer dos últimos anos.
Dessa forma, hoje, no Brasil, parte importante das produções literárias
em Libras é produzida em meios digitais a partir do uso de tecnologias de
captação, como câmeras de vídeo, e posteriormente é consumida online, através
de plataformas de compartilhamento de vídeos, como o YouTube, e/ou redes
sociais que permitem a produção e publicação de vídeos, como o Facebook e o
Instagram, possibilitando assim que um público cada vez maior se interesse e
consuma esse tipo de produção, não a limitando apenas à comunidade surda e
aos usuários da Libras.
54
Em consonância com a necessidade de buscar, cada vez mais, uma teoria
literária que evidencie as particularidades das produções literárias em Libras,
buscando assim diminuir ou ainda barrar o processo comparativo e redutor das
performances (Zumthor, 2007) frente às produções de línguas orais, vemos
emergir também a necessidade de entendermos melhor como a produção e a
recepção dessas produções têm se configurado hoje em ciberespaços e, então,
buscar compreender como o fenômeno dessa nova configuração das produções
sinalizadas tem impactado e transformado o modo como consumimos e sobretudo produzimos artefatos literários em Libras.
Entendemos, então, que o uso da tecnologia, das ferramentas digitais,
das redes sociais, não tem possibilitado somente a expansão e o crescimento
dessa prática literária, mas também tem impulsionado a produção literária sinalizada a alcançar novas possibilidades de criação a partir da união dos traços
linguísticos, dramáticos e tecnológicos. Nesse contexto, é necessário reconhecer que as produções literárias sinalizadas em formato digital possuem especificações que as diferenciam das demais formas literárias sinalizadas, uma vez
que se configuram a partir da união desses três aspectos que impactam diretamente no resultado final dessas performances. Destacamos, então, que a união
entre a língua, o corpo e a tecnologia tem feito emergir performances de cunho
altamente visual, que utilizam a potência máxima desses três aspectos para a
composição de uma produção literária sinalizada que se destaca pelo alcance
visual, imagético e sensorial.
Dessa maneira, vemos crescer a necessidade de que pesquisas na área
dos Estudos Literários que se proponham a analisar artefatos sinalizados das
línguas de sinais se dediquem a definir corpora, métodos analíticos e referenciais teóricos que contemplem as especificidades das línguas de modalidade
visual. Isto para que não reproduzam um paradigma ouvintista que inferiorize a literatura surda, uma vez que, ao buscarmos semelhanças e comparações
entre as produções das línguas orais e de sinais, causamos uma redução da
singularidade e exclusividade que as produções sinalizadas nos oferecem. Assim, torna-se necessário “quebrar também círculos viciosos dos pontos de vista
etnocêntricos, e no caso da poesia, grafocêntricos.” (Zumthor, 2007, p. 12).
55
De tal modo, cabe-nos esclarecer, ainda, como entendemos os conceitos de Literatura Surda e Literatura Sinalizada, ambos muito importantes no
campo dos estudos de produções literárias sinalizadas.
Entendemos, a partir de estudos sobre literatura sinalizada (Karnopp,
2006; Mourão, 2011; Klamt, 2014), que o conceito amplamente conhecido
como Literatura Surda se baseia no conteúdo e no impacto dessas produções
enquanto representações identitárias dos sujeitos surdos, independente da língua e da mídia em que são produzidas ou veiculadas. Define-se, nessa perspectiva, literatura surda como uma representação de cultura e identidade das
comunidades surdas, em uma perspectiva afeita aos estudos culturais.
Em contrapartida, o conceito de Literatura Sinalizada, tal qual pontua
Morgado (2011), se baseia na língua em que são desenvolvidas essas produções
literárias, sendo então classificada como Literatura Sinalizada toda e qualquer
produção literária feita em língua de sinais, realizada ou não por surdos, independentemente de seu conteúdo. Assim, também se faz necessário pontuarmos
nosso entendimento, neste trabalho, de que produções artísticas sinalizadas em
Libras podem ser entendidas como performances que associam o uso expressivo
da língua com a utilização performática do corpo do sinalizador, com vistas à
construção de produções altamente visuais.
Ao pensarmos na expansão e transformação das produções literárias sinalizadas em Libras e ao relacioná-las com as novas configurações do literário
no atual século, percebemos que a ocupação nos espaços digitais de manifestações literárias tem motivado produções que jogam cada vez mais com os limites entre o verbal e o não verbal, impulsionando uma produção “experimental,
híbrida e inespecífica” (Ramos; Abrahão, 2018, p. 60).
Vemos, dessa forma, emergir uma produção que contém em sua estruturação estética elementos linguísticos, semióticos e cinéticos que pressupõem
“polissemia ao invés de monotonia” (Beiguelman, 2003, p. 31) e que ampliam
o papel do corpo, da performance e também da tecnologia, não só na recepção
do fazer literário sinalizado, como também, principalmente, em sua criação.
Dessa maneira, discutimos nesta pesquisa como as produções digitais
sinalizadas têm se formado a partir de um caráter totalmente performático
56
que rompe com as estruturas convencionais da língua, e assim proporciona aos
artistas e aos espectadores uma nova experiência estética que subverte os processos de criação e consequentemente a própria ideia do fazer literário.
Para Glusberg (2013), a palavra “performance” tem, inevitavelmente,
duas conotações. Ela implica ao mesmo tempo presença física e espetáculo, no
sentido de ser algo para ser visto. Dessa maneira, ao considerarmos as produções literárias sinalizadas, podemos constatar diretamente a presença física do
sinalizador, ainda que essa sinalização não esteja acontecendo ao vivo. Afinal,
há que sempre se considerar que, para se constituir enquanto produção, a obra
sinalizada performática conta inevitavelmente com a presença do corpo desse
sinalizador, registrada ou não em vídeo, para apreciação simultânea ou posterior de uma audiência. Além disso, as produções em Libras se configuram
naturalmente como criações visuais, ou seja, só existem se forem vistas – e, para
serem vistas, são necessariamente espetáculo, enquanto performance.
Dado que o corpo se torna evidência nas produções literárias sinalizadas
das mais diversas línguas de sinais ao redor do mundo, uma vez que as línguas
de sinais se constituem a partir da combinação de elementos corpóreos – como
formato da mão e movimentação de braços –, é necessário que passemos a
considerar as possibilidades infinitas de construção e criação das mais diversas
produções através do uso criativo do corpo do sinalizador e seus movimentos,
com expressões corporais, ritmo, intensidade, entre vários outros fatores envolvidos no ato de performar.
De acordo com Ramos e Abrahão (2018), nas produções literárias sinalizadas em Libras, há uma conjugação do corpo, da língua, dos movimentos
e do próprio ato de comunicar-se, e toda essa hibridização dar-se-á através de
estratégias de performance. Ou seja, “criam-se modos de performar o literário
em jogos que hibridizam traços dramáticos, narrativos e líricos, bem como
outros provenientes das linguagens artísticas da dança, das Artes Plásticas e do
cinema.” (Ramos; Abrahão, 2018, P. 62).
De igual maneira, Krentz (2006) apresenta três possibilidades distintas
de inscrição dessas produções sinalizadas registradas em vídeo, uma vez que
57
considera como “escrita”1 literária o vídeo, o corpo e a própria sinalização. Ao
apontar as três possibilidades e discutir como a união delas impacta diretamente nessas produções, Krentz (2006) evidencia o caráter potencializador e ilimitado da junção da língua de sinais à tecnologia e à performance para as produções sinalizadas. Dessa forma, e em consonância com Reis (2012), indicamos
que, nas produções sinalizadas registradas em vídeo, a tríade máquina, corpo
e língua torna-se indissociável e responsável pela criação literária sinalizada
registrada em vídeo. E então, apresentamos aspectos da performance artística
em Libras, que, em analogia a Reis (2012), chamamos de aspectos linguísticos (língua), aspectos dramáticos (corpo) e aspectos tecnológicos (máquina),
buscando compreender como estes se hibridizam e constroem uma produção
performática altamente visual.
A partir da definição desses três aspectos composicionais, elaboramos
neste estudo uma metodologia de análise que buscasse evidenciar detalhadamente os traços constitutivos de produções literárias sinalizadas. Nosso corpus,
a partir do qual as categorias analíticas foram derivadas, compunha-se das seguintes performances sinalizadas divulgadas em redes sociais digitais: “International Women’s Day”2, interpretada por Ângela Eiko Okumura e postada no
ano de 2019; “A mãe pássaro”3 e “A dor do silêncio”4, ambas de Renata Freitas e
postadas no ano de 2019; e “O gato e a mosca”5, de Renata Rezende e postada
no ano de 2019.
A metodologia para análise do corpus e elicitação dos elementos composicionais dos aspectos linguísticos, dramáticos e tecnológicos se construiu
conforme os seguintes passos: (1) visualização (leitura) de cada produção; (2)
download das produções para o computador e fora da rede online; (3) levantamento das escolhas lexicais e linguísticas utilizadas em cada performance; (4)
1
2
3
4
5
58
Como apontado por Nelson (2006), filósofos como Barthes, Derrida, Irigaray, Cixous, Kristeva, já discutiram e propuseram uma definição mais ampla de escrita do que apenas a impressão
em um papel, ou qualquer superfície plana. Porém, neste trabalho não nos propomos a aprofundar a discussão da “escrita” sinalizada em vídeo por sinalizantes da língua de sinais.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=z4dsnj8OqIA&t=1s
Disponível em: https://www.instagram.com/p/BxXOerFilMs/
Disponível em: https://www.instagram.com/p/B2449TtF_EO/
Disponível em: https://www.instagram.com/tv/B7_emD9p-7K/
transcrição e levantamento dos elementos formacionais das produções através
da utilização do software ELAN6; (5) identificação e descrição de elementos
referentes ao uso das possibilidades apresentadas pela performance do corpo
nas produções; (6) caracterização dos aspectos caros à tecnologia empregados
nas performances; (7) análise dos elementos encontrados, evidenciando como
todas as performances utilizam a tríade entre língua, corpo e tecnologia na
produção literária em Libras.
Após realizados esses passos, pudemos encontrar e evidenciar os elementos composicionais das performances selecionadas para análise na nossa pesquisa. Dentre os elementos referentes aos aspectos linguísticos, destacamos: (a) elementos responsáveis pela formação do léxico das performances: classificadores,
sinalização de raíz mimética e sinais convencionais; (b) elementos responsáveis
pela construção do ritmo visual: pausas e velocidade na sinalização; e (c) elementos responsáveis pela simetria visual: espelhamento das mãos e repetição.
Referente aos aspectos dramáticos, evidenciamos: (d) elementos
responsáveis pela construção de personagens e espaço das performances:
espaço das performances e posicionamento do sinalizador; (e) elementos
responsáveis pela construção cinestésica: exploração das expressões não
manuais e direção do olhar.
E, por último, para análise dos aspectos tecnológicos envolvidos nas
performances, evidenciamos: (f ) plano; (g) tratamento de imagem; (h) velocidade das imagens; (i) tratamento de som; (j) elementos gráficos; (k)
inserção de efeitos.
É importante destacarmos que verificar a utilização desses recursos
nas performances digitais sinalizadas é de suma importância, pois nos
revela de que modo as produções foram construídas visualmente a partir da
junção das ações desenvolvidas e do aparato audiovisual inserido em partes
estratégicas das produções.
6
O ELAN - EUDICO Linguistic Annotator – é um software para análises linguísticas que tem
sido amplamente usado para o auxílio na transcrição, bem como na organização de análise
de vídeos. Tal ferramenta tem ajudado pesquisadores da área da Libras a melhor visualizar,
organizar e analisar as produções gravadas nessa mídia. Ver: tla.mpi.nl/tools/tla-tools/elan/.
Acesso em: 08 de maio de 2020.
59
Sintetizamos abaixo, no quadro 1, os elementos composicionais destacados por nós em cada aspecto das performances, a fim de que a visualização
desses elementos se torne mais clara e objetiva.
Quadro 1 - Elementos composicionais das performances
Aspectos
Elementos composicionais
Classificadores
Sinalização de raiz mimética
Sinais convencionais
Aspectos linguísticos
Pausas
Velocidade na sinalização
Espelhamento das mãos
Repetição
Espaço das performances
Aspectos dramáticos
Posicionamento do sinalizador
Exploração das expressões não-manuais
Direção do olhar
Plano
Tratamento de imagem
Aspectos tecnológicos
Velocidade
Tratamento de som
Elementos gráficos
Inserção de efeitos visuais ou especiais
Fonte: elaborado pelos autores
Com base na utilização dessa metodologia e a partir de sua aplicação
na análise de quatro performances sinalizadas, pudemos perceber e evidenciar de que modo as produções selecionadas se utilizam dos três aspectos
apresentados neste trabalho para construírem as performances sinalizadas
em Libras. Foi possível constatar que, em relação ao aspecto linguístico,
os elementos em maior destaque, sobretudo nas três primeiras produções
analisadas, são estrategicamente utilizados para a construção de produções
performáticas que sejam acessíveis a todos os tipos de espectadores, uma
vez que abrem mão da utilização massiva de sinais convencionais da Libras
60
e dão espaço ao uso de classificadores e, principalmente, de sinalização de
raiz mimética. Os artistas criam, assim, performances que se utilizam de
gestualizações e movimentações amplamente visuais, imagéticas e comumente conhecidas pelo público surdo e ouvinte.
Verificamos também que, apesar de algumas produções se intitularem como poemas, elas tendem a se configurar mais na perspectiva do
gênero Visual Vernacular, que, segundo Ramos e Abrahão (2018), envolve
produções que propositalmente fazem o uso de menores quantidades de
sinais convencionais da língua de sinais e hibridizam-se com outras formas
de arte, utilizando, portanto, gestos, mímicas e classificadores na sua constituição. Também observamos que, para ampliar a questão da construção
visual e imagética das performances, outro elemento bastante empregado
conforme a análise é o espelhamento de mãos no ato da sinalização. Esse
recurso constrói nas performances a ideia de unicidade e simetria das movimentações realizadas pelas performers.
Em relação aos elementos do aspecto dramático, foi possível notar que
a utilização do posicionamento do sinalizador e a manipulação das expressões não-manuais – facial e corporal – foram os recursos mais empregados
nas performances. O posicionamento assumido pelas performers foi empregado principalmente para a construção visual e espacial de personagens e/ou
narradores. Como esses elementos estiveram presentes nas quatro produções
analisadas nesta pesquisa, percebemos um alto teor narrativo, envolvendo em
seus enredos a figura de personagens que interagiam entre si para a construção
da história. É interessante notar que a utilização deste elemento é fundamental
para que aos espectadores seja garantida a percepção de todos os constituintes
da produção, evitando, assim, qualquer dúvida em relação ao enunciador de
discursos reportados na performance.
Outro elemento do aspecto dramático altamente explorado em todas
as performances foi a intensificação e manipulação das expressões faciais
e corporais. Podemos notar que este elemento é altamente empregado por
ser carregado de significados e contribuir para a construção performática
dentro de cada uma das produções. Notamos que, sem a exploração deste
61
elemento, torna-se quase inviável a construção de sentidos nas performances, e por isso ele é tão amplamente utilizado e explorado em cada uma
delas, permitindo que os espectadores sejam invadidos por uma experiência
sensorial mais abrangente e significante.
Por último, dentro do aspecto tecnológico, pudemos verificar através
das análises que a manipulação do plano de filmagem foi o elemento mais
empregado. Notamos que esse recurso é amplamente utilizado em todas as
performances justamente porque permite construir imagens e representações
de cunho altamente visual que impactam consideravelmente a construção de
sentidos dentro das produções. A utilização deste recurso soma-se de forma
muito positiva aos outros elementos elencados neste trabalho e transforma as
performances sinalizadas em produções carregadas de significados e com alto
valor estético visual.
Outros elementos do aspecto tecnológico que também tiveram sua utilização marcada nas produções analisadas foram os que remeteram ao tratamento de imagem e som. Pudemos perceber que a escolha pelo trabalho de
pós-produção com esses elementos resulta na amplificação sensorial das performances. Em relação ao tratamento de imagens, a alteração na coloração da
apresentação do vídeo, sobretudo na utilização das cores preto e branco, reforça mudanças temporais nos enredos das produções e também os sentimentos
vivenciados pelos personagens das mesmas. De igual maneira, o tratamento
sonoro aplicado às produções permite aos espectadores não surdos a completa
experiência da representação de sentidos que cada performance deseja construir. Por fim, destacamos que a manipulação desses aspectos tecnológicos ajuda a construir não só performances carregadas de valores visuais, mas também
produções acessíveis e que buscam alcançar o maior e mais variado público.
Concluímos, então, após as análises aqui brevemente reportadas, que
as performances sinalizadas em Libras se valem dos três aspectos abordados
neste trabalho – linguístico, dramático e tecnológico – e se constituem a partir
do acoplamento dos elementos presentes em cada um deles, formando assim
produções únicas e exclusivas ao meio digital e tecnológico, que se configuram
e se caracterizam por utilizarem de forma exponencial a língua, o corpo e a
62
tecnologia em sua constituição. Como resultado disso, podemos ter acesso a
produções altamente performáticas e visuais que constroem seus sentidos a fim
de impactar de forma positiva todos os níveis de percepção dos espectadores.
Referências
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GLUSBERG, J. A arte da performance. Tradução Renato Cohen, São Paulo:
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Naify, 2007.
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QUARENTA DIAS, DE MARIA VALÉRIA REZENDE: UMA
ESCRITA DE RESTOS
Juliana Santini
Vê-se um trapeiro cambaleante, a fronte inquieta,
Rente às paredes a esgueirar-se como um poeta,
E, alheio aos guardas e alcaguetes mais abjetos,
Abrir seu coração em gloriosos projetos.
Charles Baudelaire – As flores do mal
Em Quarenta dias, romance publicado por Maria Valéria Rezende em
2014, Alice narra enquanto escreve: a relação que a narradora estabelece com um
caderno, a quem chama de Barbie em referência à ilustração da capa, define os
termos da narração na articulação entre fala e escrita. Se, por um lado, a dicção
de Alice e as marcas de oralidade de seu relato garantem a Barbie o papel de
uma interlocutora com quem Alice dialoga sem que se tenha, evidentemente,
qualquer resposta, por outro, a caracterização desse narratário como um caderno
faz com que a natureza dessa fala seja definida a partir de uma materialidade que
a suporta, no caso, as páginas nas quais é registrada a experiência da personagem.
Essa materialidade é importante na medida em que se constitui como um espaço
que, preenchido, recebe em si diferentes tempos, funcionando, ainda, como ponto em que se dá a delimitação do próprio ato de narrar, seja do ponto de vista do
modo como se constitui o tempo da narração, seja na demarcação dos traços que
projetam o ato de contar como uma experiência subjetiva.
A reflexão aqui proposta tem como objetivo problematizar o processo de narração construído em torno da figura de Alice e de sua escrita no
caderno. À fala da narradora relaciona-se sua experiência como personagem
que permaneceu durante quarenta dias nas ruas de Porto Alegre, cidade para
onde se mudou depois de deixar a Paraíba sob a pressão da filha, que preten65
dia engravidar e contava com os cuidados de sua mãe. Depois de montar um
apartamento para Alice na capital gaúcha, Norinha decide passar um período
na Europa com o marido, abandonando a mãe em um espaço alheio a sua
identidade. Alice se lança às ruas depois de um telefonema de uma amiga da
Paraíba, buscando o paradeiro de Cícero Araújo, que migrara para o Sul com o
sonho de uma vida melhor. Sem voltar para o apartamento, a narradora guarda
em sua mochila folhetos de propaganda, papeis com anotações, comandas de
padarias e toda sorte de panfletos que recolhe das ruas.
De novo no espaço doméstico, Alice reúne esse material e, a partir dele,
empreende uma reconstrução de sua experiência por meio da escrita em seu
caderno, incorporando a ela seus rascunhos e guardados. Diante desse movimento que envolve a experiência da personagem com o espaço urbano sob
a perspectiva daqueles que moram nas ruas, a hipótese aqui levantada é de
que a narradora de Quarenta dias pode ser tomada sob a imagem do narrador
trapeiro, nos termos propostos por Walter Benjamin (1994), de modo que a
representação da cidade e do pobre que a habita submete-se, na narrativa, ao
olhar de Alice para si e para o outro. Nesse caso, incorporando-se às ruas, a
professora nordestina passa a se identificar com o imigrante que vivencia a
cidade a partir de bairros periféricos em que sua identidade é apagada. Da
perambulação de Alice pelas ruas erige-se, assim, um relato da cidade e dos
lugares pelos diferentes agentes que a constituem.
Três elementos dêiticos circunscrevem a narração a um espaço específico. Logo na primeira linha do romance, um pronome demonstrativo coloca em
cena o objeto que localizará e abrigará a escrita: “Sei, agora, por que cismei de
trazer na bagagem este caderno velho vazio, trezentas folhas amareladas, com
essa Barbie na capa de moldura cor-de-rosa, sabe-se lá de quem era nem como
se extraviou na minha casa” (Rezende, 2014, p.7 – grifo meu). Em seguida, um
novo pronome expande essa localização e insere o caderno em uma referência
espacial mais ampla que, agora, pontua também o lugar de onde Alice narra ou,
no limite, o local onde ele é preenchido:
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Entrei neste apartamento – ainda não consigo dizer “em casa”, tento, mas
não há jeito – agora há pouco, exausta, carregando um furdunço no peito,
sem saber onde despejar essa balbúrdia de imagens, impressões, sentimentos acumulados por quarenta dias, dei com o olho na Barbie e soube logo
em quem vou descarregar tudo isso. (Rezende, 2014, p.13 – grifo meu)
Por fim, um advérbio de lugar abre o foco e se tem uma visão mais
ampla, em que o apartamento é situado a partir de um dado geográfico específico: “A quem devia ser debitado o desencontro que foi se instalando na nossa
relação de mãe e filha até findar naquele estouro horrível por causa da minha
recusa a ser avó profissional aqui no Sul?” (Rezende, 2014, p.31 – grifo meu).
Postas em sequência, essas referências criam um movimento de perspectiva que parte do menor para o maior sem, no entanto, perder sua ancoragem no espaço da escrita. Em sua visão mais panorâmica, essa câmera que
focaliza os espaços e os submete à simultaneidade determinada pela fala – Alice narra/escreve no caderno, dentro do apartamento, localizado no Sul do país
– impõe, ainda, a apreensão de um outro espaço, um “lá” que se opõe ao “aqui”
do presente da narração.
Enquanto o caderno circunscreve a escrita feita à mão com uma caneta esferográfica azul velha em suas páginas amareladas, a demarcação de um
“aqui” que situa o lugar de fala de Alice no “Sul” projeta também um lá que,
nesse caso, é o Nordeste do Brasil. Desde logo, portanto, a construção dos
espaços em sua articulação com a posição da narradora circula duas referências no mapa e as coloca em relação por meio da mediação da voz narrativa
que, diga-se, posta-se como uma subjetividade deslocada do lugar em que se
reconhece. Se, no domínio da experiência privada, Alice não consegue chamar
de casa o apartamento montado pela filha na capital do Rio Grande do Sul,
o que significa dizer que ele não representa um lar que abriga e acolhe ou cria
“ilusões de estabilidade” (Bachelard, 1993, p.36), no domínio mais amplo das
determinações geográficas e culturais, a personagem é uma nordestina em Porto Alegre que, tendo se submetido a uma “migração forçada” (Rezende, 2014,
p.99), vivencia em si mesma, como experiência subjetiva, o hiato entre aqui e lá.
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A construção da voz narrativa no romance pode ser discutida à luz da
relação que estabelece com essas três referências espaciais, uma vez que se trata
justamente do modo como a narradora, como sujeito que fala sobre si, implica
o outro em sua fala ao mesmo tempo em que se reconhece como o outro do
discurso de alguém. É a partir dessa perspectiva que se pode pensar um redimensionamento da tripartição – caderno, apartamento, Sul – em uma estrutura bipartida, em que se tem, de um lado, a experiência de Alice como matéria
que impulsiona sua narração e, de outro, a dimensão material da escrita.
No primeiro caso, a fala centrada, inicialmente, na tentativa de compreender a si mesma e de elaborar essa vivência por meio da palavra, permite
que se tome o apartamento, situado no Sul, como um primeiro polo, ao qual
a narração se liga por meio da condição de estraneidade (Canclini, 2016b) da
personagem. No segundo, o caderno aparece como espaço da escrita no qual
estão engendrados diferentes elementos articulados à relação de Alice com
a cidade e com a própria narração, como a escolha das epígrafes para cada
anotação e a inclusão, entre as páginas, daquilo que recolheu na rua e guardou
consigo – folhetos de propaganda, rascunhos, comandas das padarias ou de
restaurantes por onde passou.
É fato que essa bipartição pode soar artificial na medida em que propõe
a observação do ato de narrar e de suas implicações a partir de dois polos
que, no limite, são indissociáveis. Não se trata, porém, de uma hierarquização
entre os espaços, as vivências da personagem e a situação de fala, mas de um
movimento analítico que tem por objetivo apreender de que modo diferentes
tempos, espacialidades e experiências estão alinhavados na estruturação da voz
e da focalização narrativas que, no caso de Quarenta dias, soma-se à autoconsciência da escrita – o que também se projeta semanticamente na narrativa. Sob
esse aspecto, a fala de Alice como paraibana em Porto Alegre, no interior de
um apartamento no qual a própria escrita se constitui com um ato de rebeldia,
é tomada, aqui, como parte de um processo em que a representação do imigrante nordestino se complexifica por meio de um embaralhamento que, no
romance, esfumaça os limites entre o eu e o outro.
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O que Alice chama de “balbúrdia de imagens” dá início a uma escrita de
“garranchos” (Rezende, 2014, p.13), circunscrita sob o pronome dêitico que faz
referência ao apartamento e ao caderno onde se inscreve a narração. Tendo essa
narração se iniciado justamente no momento em que a protagonista retorna
das ruas, sua fala acaba por se colar ao tempo dos fatos narrados na medida em
que a distância temporal passa a ser de, no máximo, quarenta dias em relação
ao relato e, no movimento de rememoração em que os eventos são trazidos
aleatoriamente, sem sequência cronológica, esse hiato se comprime ainda mais.
Ocorre que não apenas a memória do vivido sustenta a fala que preenche as
páginas de Barbie, e o que Alice traz em sua mochila figura como elemento
importante no processo de narração e na estruturação do romance. Logo no
início de seu impulso de escrever, ela deixa antever essa incorporação:
Preciso escrever pra não sufocar, agora, assim mesmo, escrevendo à mão,
sentada à mesa da cozinha, cercada de pedaços de papel amassado, até sujo,
que ajuntei pelas ruas pra fazer anotações atrás, como esses que já copiei
frente e verso aqui, a coletânea bilíngue de poemas de Borges, catada num
sebo e ensebada mesmo, algumas páginas arrancadas de livros velhos, mais
três fotografias de desconhecidos, o telefone celular do morto, sempre mundo, que ninguém reclamará, e, projetadas pela minha memória ainda recente
e recendendo a humanidade, ou inumanidade?, as caras de todos eles por
toda parte: nas paredes, no chão, no teto, no fogão, na porta da geladeira, no
guarda-louça. (Rezende, 2014, p.17)
Cada objeto mencionado por Alice terá sua história reconstituída pelo
movimento da narração, de modo que, se neste momento nada se sabe sobre as
razões que levaram o celular de um morto (e quem é o morto, afinal?) a figurar
entre seus pertences, ao longo da escrita que recupera os fatos vividos esses
elos serão formados e enovelados ao enredo. A função desses objetos não se
restringe, porém, a referências esparsas que atuarão como recursos coesivos na
medida em que, a cada retomada, o leitor será remetido ao trecho acima, em
que se tem a cena do dia do retorno ao apartamento e tudo sobre a mesa ou,
metaforicamente, espalhado em imagens entre os móveis.
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Trata-se, portanto, de uma narração composta por resíduos, já que esses
“detritos” (Rezende, 2014, p.20) passam a atuar na organização mnemônica do
relato e na composição material da narrativa: entre as páginas de texto, quase
sempre separando um capítulo e outro, o que está sobre a mesa de Alice é incorporado à escrita e passa para o interior do caderno. A esse domínio gráfico
do romance, em que se têm sucessivas imagens que reproduzem o material
incorporado à narração, deve se somar o conjunto das trinta e quatro epígrafes
que abrem cada um dos trinta e dois capítulos ou fragmentos de escrita. Juntas,
imagens e epígrafes criam com o texto uma relação em que não se verifica uma
hierarquização de formas, mas um jogo de entrecruzamentos por meio do qual
o significado da narração depende das imagens e dos recortes que a abrem ao
mesmo tempo em que empresta sentido a eles.
É por meio de um movimento de complementariedade que algumas das
epígrafes se articulam aos papéis copiados ao caderno com as anotações feitas na
rua – ao que a narradora faz referência no trecho acima –, de modo que se tem
a sugestão de que a epígrafe corresponde justamente ao que estava rabiscado
no verso do folheto. E se é de ironia a relação posta entre o que é narrado
e o conteúdo de parte desses folhetos, sobretudo aqueles que reproduzem
propagandas de grandes projetos imobiliários ou de lojas de decoração, o relato
de Alice também costura a epígrafe ao fato narrado por meio de referências
à situação em que aquele trecho foi anotado antes de compor as páginas da
Barbie. Esse fato faz com que o próprio caderno deva ser tomado como um
espaço criado não pela junção aleatória de referências distintas, mas por uma
organização específica, cuja dimensão semântica articula-se à forma da narração e à construção de uma reflexão sobre a matéria relatada.
A estruturação da narrativa por meio de uma personagem que recolhe
resíduos da cidade e a, partir deles, constrói o processo de narração de suas experiências articula-se, ainda, à representação do imigrante nordestino no romance,
uma vez que se trata de uma atitude narrativa ligada à reconstrução de fragmentos do real, nesse caso, relacionados à vivência do pobre na metrópole contemporânea. Tanto pelo que se está chamando de uma “atitude narrativa” que aproxima
o relato ao tempo presente, quanto pela dimensão estética da recuperação de
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resíduos, pode-se afirmar que se está diante da figura do narrador trapeiro ou catador de sucata, que Jeanne Marie Gagnebin (2009) discute a partir dos ensaios
“O narrador” e “Experiência e pobreza”, de Walter Benjamin (1994).
Os dois textos benjaminianos estabelecem um diálogo entre si na medida em que colocam em perspectiva a questão da tradição e da memória na base
da narração, que, com o advento do romance e com a experiência da guerra,
entram em declínio, o que também se relaciona ao domínio do trauma e à
impossibilidade de narrar. Sob esse aspecto, o pensamento de Benjamin formularia uma exigência pautada no desaparecimento da narrativa tradicional e
na consequente necessidade de uma outra forma de narração, “uma narração
nas ruínas da narrativa, uma transmissão entre os cacos de uma tradição em
migalhas”. Assim,
O narrador também seria a figura do trapeiro, do Lumpensammler ou do chiffonnier, do catador de sucata e de lixo, esta personagem das grandes cidades
modernas que recolhe os cacos, os restos, os detritos, movido pela pobreza,
certamente, mas também pelo desejo de não deixar nada se perder”. (Gagnebin, 2009, p.53-55)
Trata-se, no limite, de uma forma articulada à reflexão de Benjamin
acerca da História no ensaio “Sobre o conceito de História”, em que a apreensão do presente se dá por meio da percepção do tempo passado como um
tecido que não é homogêneo: “Ele [o historiador] capta a configuração em que
sua própria época entrou em contato com uma época anterior, perfeitamente
determinada. Com isso, ele funda um conceito do presente como um ‘agora’ no
qual se infiltraram estilhaços do messiânico” (Benjamin, 1994, p.232). É assim
que a noção de rememoração atua na atividade do historiador que, “em vez de
repetir aquilo de que se lembra, abre-se aos brancos, aos buracos, ao esquecido
e ao recalcado, para dizer, com hesitações, solavancos, incompletude, aquilo
que não ainda não teve direito nem à lembrança, nem às palavras” (Gagnebin, 2009, p.55). Assim como a narrativa tradicional teria entrado em extinção
como consequência da impossibilidade de audição ou de transmissão da memória, a superação do relato dos grandes feitos históricos coloca o historiador
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ao lado do narrador nessa apreensão do presente pelos restos do passado que
ecoam ou retornam na constituição de novos tempos – e sob essa perspectiva,
o passado deveria servir de alerta ao presente.
Tomada sob a metáfora do narrador catador de sucata, Alice não apenas encarna a figura do sujeito que perambula pela cidade e dela apreende os
resíduos, como o personagem de Baudelaire em As flores do mal1, mas também
coloca em cena os becos, as vielas e a vida que permanece à margem dos anúncios de decoração, articulando-se ao modelo também na representação do morador de rua e do imigrante nordestino anônimo em Porto Alegre, “[...] aquilo
que foi tão bem apagado que mesmo a memória de sua existência não subsiste
– aqueles que desapareceram tão por completo que ninguém lembra de seus
nomes”2 (Gagnebin, 2009, p.54). Diante disso, soma-se às duas funções das
imagens e das epígrafes já apontadas na estruturação da narrativa uma terceira
dimensão, relacionada ao conteúdo narrado e que coloca em primeiro plano a
perspectiva dos restos da metrópole não apenas na recolha de folhetos e de citações copiadas em sebos, mas também na apreensão da vivência daqueles que,
na cidade contemporânea, são os personagens a quem se ligam esses restos.
As epígrafes que compõem o romance podem ser agrupadas em três
grandes conjuntos, que levam em conta seu significado como fragmentos autônomos e, ainda, o modo como cada uma delas está, de maneira direta, articulada ao capítulo que abre. Em alguns casos, essa articulação abarca a epígrafe, a
imagem que a antecede – como, por exemplo, quando se tem no trecho o que
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O termo “trapeiro” advém do francês chiffonnier, em referência ao poema “Le vin des chiffonniers” (“O vinho dos trapeiros”), de Charles Baudelaire. Aqui, a relação com o poeta francês
não é gratuita: a perspectiva do narrador trapeiro está articulada à figura do pobre e sua circulação pela cidade, seja do ponto de vista da experiência urbana, seja no que diz respeito ao
lugar ocupado pelo homem que vive dos restos da metrópole ou, no limite, faz parte deles.
A esse respeito, não deixa de ser emblemático o fato de que em sua busca inicial por Cícero
Araújo, a primeira descoberta de Alice diz respeito justamente ao fato de que os imigrantes
passam por um processo de apagamento da identidade marcado pela substituição do nome
próprio por um apelido que, dizendo pouco, faz referência ao local de onde vieram ou ao
ofício que exercem, inserindo-os em uma massa sem individualidade: “Eu mesmo, se procurar
por Ronaldo Nascimento, ninguém sabem quem é, mas se perguntar pelo Ceará da Rede, aí
qualquer um sabe. [...] Não seria Paraíba mesmo, o apelido?, perguntei. Iiiich!, tem mais de
mil deles pelos alojamentos de operário de construção, pra onde vai quase toda a minha mercadoria! Saudade da terra, sabe como é...” (Rezende, 2014, p.131-132)
supostamente seria a anotação feita por Alice no verso do papel incorporado
ao caderno – e o relato da narradora que, muitas vezes, por meio do diálogo
com a interlocutora Barbie, faz comentários sobre a situação narrada, reconstituindo, pelo material coletado, a situação vivida.
Uma vez que se está tratando de um recurso que faz parte do processo
de narração e da estruturação de um narrador autodiegético, essa tripartição,
de ordem temática, não deixa de se ligar, ainda, à composição daqueles que
podem ser considerados os temas fundamentais do romance. Sem que haja
uma hierarquização que os coloque em ordem de maior ou menor importância
no tecido narrativo, o que se tem, na observação das epígrafes, é: a) um grupo
de fragmentos relacionados ao ato de escrever, constituindo reflexões metalinguísticas que problematizam a escrita como ato ao qual se liga um exercício
subjetivo de superação de um trauma ou como forma de sobrevivência; b) excertos de ordem existencial, em que figuram a reconstrução de si (desvinculada
da escrita), a relação entre memória e esquecimento, o sofrimento humano
(relacionado ao afastamento à experiência da pobreza e da imigração), o silêncio e a palavra e, ainda, a passagem do tempo; c) trechos cujo cerne é a relação
entre sujeito e espaço, em que aparecem a figura da casa, a vivência nas ruas, a
cidade e seus habitantes marginais.
De modo semelhante, as dezesseis imagens que compõem o romance – ou os papeis esparsos inseridos entre as páginas do caderno – também
podem ser agrupados em dois eixos temáticos, ambos relacionados à cidade e
aos significados que circulam nesse espaço. Mesmo que a categorização exclua
a possibilidade de observação da dimensão irônica criada entre a imagem e o
texto, o que se discutirá mais adiante, os temas que enfeixam esse material sintetizam a) anúncios diversos, com significativa recorrência de filipetas de empreendimentos imobiliários de alto padrão e de lojas de decoração; b) práticas
cotidianas, que envolvem diretamente ou não os fatos vividos por Alice, como
folhetos de simpatia ou anúncio religioso, foto e descrição de animais perdidos,
as comandas de padarias por onde a protagonista passou.
No que se pode considerar a primeira reflexão sobre o imigrante pobre na narrativa, uma epígrafe de autoria de Lêdo Ivo coloca em evidência
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a própria viagem: “Os pobres viajam. Na estação rodoviária eles alteiam os
pescoços como gansos para olhar os letreiros dos ônibus. E seus olhares são
de quem teme perder alguma coisa” (Ivo apud Rezende, 2014, p.183). Aqui, a
substantivação do adjetivo transforma “os pobres” em sujeito de um verbo sem
complemento, tirando-lhe a direção ou a determinação de seu destino e, no
plural, forma uma massa sem identificação, potencializada na imagem de um
gansaral que olha para o mesmo ponto. Note-se que a viagem tem como ponto de partida uma rodoviária, o que deixa claro o modo de locomoção desses
sujeitos, que dependem de ônibus e, portanto, não empreendem suas jornadas
em veículos próprios ou por via aérea.
Ao tratar daquilo que chama de “escândalo do turismo”, Marc Augé
(2010, p.69) observa nos catálogos de empresas de turismo a figurativização
da “ubiquidade” e da “instantaneidade”, experiência restrita às camadas mais
altas da sociedade. Considerando o ponto de vista do antropólogo em relação
ao deslocamento contemporâneo, é possível tratar da existência de diferentes
relações do indivíduo com o espaço e com o tempo a partir do acesso que
possui – ou não – às formas de mobilidade. Diante do trecho em questão, ao
sujeito da oração que abre a epígrafe não é dada a ilusão de instantaneidade das
propagandas de pacotes de viagens, com passagens por diferentes lugares em
pouco espaço de tempo, seja porque não há possibilidade de esse tipo de deslocamento se concretizar, seja porque a sensação de poder que advém da ilusão
de estar em todos – e em qualquer lugar – pouco se encaixa na vivência de
quem divide a rodoviária com outros sujeitos apartados da mesma experiência.
A esse respeito ainda, note-se, por fim, que o domínio do olhar que rege toda
a cena faz antever algo que está para além dos letreiros dos ônibus: o temor
pela perda de algo pode, nesse caso, estar relacionado ao veículo para o qual se
adquiriu a passagem, mas não deixa de sugerir uma perda mais ampla – dos
poucos pertences que se leva na bagagem?; do lugar que está deixando?
Uma nova camada de significado é somada a essa epígrafe quando se
leva em consideração que ela abre o trecho em que a narradora relata sua primeira ida à rodoviária, espaço que passa a ter sua função principal, de ponto de
chegada e de partida de passageiros, deslocada para abrigo durante a noite e
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via de acesso a banhos, quando a narradora ainda tem dinheiro para pagar por
eles. Os pobres de Lêdo Ivo estariam, assim, transpostos para a figura de Alice,
que diante do vidro reluzente da sala VIP reconhece que sua condição não lhe
daria acesso àquele espaço: “Virei depressa as costas àquela figura desgrenhada,
‘not vip’ invisível como a maioria de quem transitava por ali, arrastando sacola
de plástico e calçados cambaios ou correndo, apressados para não perder o
ônibus.” (Rezende, 2014, p.184).
Antecedendo o episódio e, portanto, a epígrafe, um folheto de propaganda de um feirão de automóveis cria o contraste necessário para que se tenha, em um resíduo do dia, uma perspectiva mais ampla da pobreza e da falta
de acesso à mobilidade ou, no limite aos diferentes espaços. Aqui, a tríade
imagem, epígrafe e narração é marcada pela ironia imposta pelo anúncio, especialmente porque o diálogo de Alice com Barbie já havia informado que essa
epígrafe estaria anotada no verso do folheto. Característico de anúncios de
vendas de carros, o folheto contém frases direcionadas diretamente a um possível consumidor: “Seu seminovo de várias marcas a preços incríveis e garantia
de um ano. Você determina o prazo de pagamento”.
O contraponto entre a face frontal do papel e seu verso, com a anotação
da epígrafe, cria um sentido irônico sustentado pelo fato de que os dois pronomes postos no texto do anúncio “seu” e “você” fazem crer, ilusoriamente, que
aquele discurso é direcionado a qualquer pessoa que o leia, já que, para obter
um carro seminovo, “você-qualquer pessoa” supostamente pode determinar o
tempo que levaria para pagar o veículo.
Potencializa essa dimensão irônica o fato de que o papel foi recolhido
por Alice quando se encontrava em situação de rua, o que significa que seu
conteúdo foi apreendido a partir desse ponto de vista. O “você” posto no texto
da propaganda dirige-se, portanto, a um sujeito que está muito distante das
possibilidades oferecidas pelo mundo mágico do consumo, que se espalha pelas
ruas e coloca diante dos olhos do pobre aquilo que ele não pode ter e, nesse
caso, a mobilidade que ele não tem.
A imagem refletida na entrada reluzente da sala VIP na rodoviária
funciona, assim como o folheto, na construção de um jogo de identificação
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centrado, na verdade, no não reconhecimento e na impossibilidade de ser
ou ter aquilo que a sociedade faz circular como seus valores ou como seus
ideais de felicidade. O vidro que separa interior e exterior projeta a face de
um sujeito que não tem acesso àquele espaço e, mais do que isso, cria pela
transparência a ilusão de estar dentro, o que acaba por deixar mais evidente
o que é estar do lado de fora.
Também é de contraste a relação que se cria entre o folheto de propaganda de uma loja de artigos para casa e a epígrafe que o segue, novamente
na sugestão de que se trata de uma anotação, em que o verso do papel revela o
contrário do conteúdo exposto em sua face principal. Trata-se da construção
de uma imagem de conforto e de acolhimento: no canto superior direito da
filipeta, a ilustração de uma banheira com as pernas de uma mulher do lado
de fora, com a sugestão de que se trata de um momento de relaxamento, já
que bolhas de sabão se projetam desse banho, espalhando pelo papel o traço semântico da leveza. O slogan da propaganda, com um verbo conjugado
no imperativo, em fonte que reproduz uma letra manuscrita, desliza do canto
esquerdo superior para o centro da imagem, com seu ponto final posto no pé
direito da personagem que está no interior da banheira e da qual não se tem o
rosto: “Dê um banho de loja na sua casa”.
A ilustração, que remete ao aconchego do banho de espuma, é uma metáfora: os significados postos na imagem projetam-se, na verdade, para a casa,
de modo que se transferem para o interior do ambiente doméstico os atributos
de conforto, leveza e maciez. “Beautiful people”, o nome da loja responsável
pela propaganda, não apenas caracteriza e classifica a figura sem rosto, como
também cria um grupo pela comunhão com os valores agregados aos objetos
propagandeados. Soma-se a isso o fato de que se trata de uma frase em inglês,
o que também particulariza essa comunidade, já que o acesso a sua compreensão depende de um conhecimento – mínimo, que seja – do idioma. Sob a
identificação da loja, um segundo slogan, grafado em fonte menor, “cama, mesa,
banho e sonhos”, coloca em evidência o que está sendo anunciado: artigos de
enxoval aos quais se alia um substantivo que, embora não pertença a esse campo semântico, passa a designar como ideal a ser desejado o que está posto no
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anúncio. Na lógica que rege o anúncio, pessoas bonitas são aquelas que desejam
conforto e podem pagar por ele.
O folheto incorporado ao caderno por Alice está amassado e, em
seu verso – ou em seu avesso? – tem-se a epígrafe que abre o capítulo,
uma frase do escritor e fotógrafo Arlindo Gonçalves apud Rezende (2014,
p.191): “Uma praça encardida pode muito bem virar imagens de museus
pra alguns apreciarem em exposições e terem sensações de alívio por tudo
aquilo se passar com outros”. Se o contraste entre o conteúdo da epígrafe e
a natureza do anúncio fica evidente, com a contraposição entre a metáfora
do banho e a “praça encardida”, uma outra questão é posta pela escolha do
trecho, agora diretamente articulada à experiência dos diferentes sujeitos
na cidade e ao modo como se constroem as relações entre eles, com o apagamento da pobreza ou sua transformação em objeto.
Diferentemente do que acontece no trecho de Lêdo Ivo aqui destacado, em que “os pobres” são o sujeito da primeira oração e cujo olhar rege o
movimento criado no interior do espaço da rodoviária, no excerto de Arlindo
Gonçalves isso não acontece e não há qualquer menção aos indivíduos em situação de rua que supostamente vivem na praça ou que eventualmente estejam
circulando por ela. Por outro lado, o branco criado pelo silêncio é anulado pela
adjetivação, em praça “encardida”, e, ainda, pela oposição criada entre “alguns”
e “outros”, fazendo com que a carga semântica do adjetivo seja deslocada da referência espacial para aqueles que, na cena recortada, ocupam o lugar de quem
é olhado. Sob essa perspectiva, o espaço deixa de ser sujo por si só e passa a ser
referido por uma característica daqueles que ocupam, de modo que encardida
não é a praça, mas aqueles que nela vivem.
Há que se notar que a praça, um espaço público, entra em oposição com
o conteúdo do folheto de propaganda que antecede o trecho, em que o conforto
é um produto vendido para o espaço doméstico, com a leveza e a limpeza das
bolhas de sabão se projetando para o cuidado do lar. No interior dessa mesma
oposição está outra relação, agora no que se refere a “alguns” e “outros”, como
delimitação da alteridade não apenas no excerto da epígrafe, mas também na
filipeta publicitária e na articulação entre os dois resíduos no tecido narrativo.
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Sob essa perspectiva, ao domínio do eu corresponde aquele que olha a partir de
uma distância segura que garante a sensação de estar protegido da pobreza que
assola – e define – o outro, posto em uma cena, como uma imagem exposta em
um museu, em que se transforma em um objeto observado.
Como se uma fronteira subjetiva e transparente separasse o interior e o
exterior dessa cena, a praça “encardida” é o outro e se define a partir do olhar
do eu que, de fora, enxerga a sua sujeira e não a situação de abandono em que
vivem os que ali se encontram e que estão, nesse caso, ausentes inclusive da
frase, aparecendo apenas como “os outros”. Claro está que esse eu que olha de
longe e se refestela por sua própria condição são as mesmas “pessoas bonitas”
que compõem o público-alvo da loja de enxovais que recebe este nome, “beautiful people”, justamente para que seu consumidor se identifique a um grupo
específico, aquele que permanece longe do mundo encardido da praça pública.
As relações de alteridade que envolvem a representação do pobre se complexificam com o episódio narrado por Alice na sequência. Trata-se do momento
em que, tendo tomado banho na rodoviária, ela lava suas roupas e as estende na
alça da bolsa para que sequem, caminhando pela cidade no dia seguinte vestida
com peças desconjuntadas e carregando a muda de roupa molhada exposta. Nesse ponto, Alice senta-se em uma praça sob o sol da manhã para que as roupas
sequem sem danificar os livros que comprara em um sebo e que enchiam sua
mochila, juntamente com meias e calcinhas adquiridas em uma das lojas populares da rodoviária. Trata-se do primeiro momento em que a protagonista se
depara com o fato de que era – ou se transformava em – uma moradora de rua:
Voltei para a pracinha do bispo, sentei-me por lá, estendi a roupa molhada,
as franjas da ponta da toalha por cima do fundilho da calcinha, pra disfarçar,
o par de meias ao lado, e meti a cara num livro, fingindo não perceber quem
passava e ria do meu quarador. Eu já devia parecer uma inegável moradora
de rua. E não era, Barbie? Ainda não tinha me dado conta, mas já era, sim,
tanto que lá pro meio da manhã ouvi um rangido próximo, senti um movimento, alguém sentando bem junto de mim, um quase gemido: Ai, que
canseira essa vida, né? Tu é nova por aqui, veio de onde? (Rezende, 2014,
p.195 – grifo meu)
78
A longa citação justifica-se na medida em que o excerto permite a observação do processo de embaralhamento entre o eu e o outro na perspectiva
da protagonista. No presente dos fatos narrados, que corresponde ao mês de
outubro de 2012, como evidencia uma das comandas de alimentos inserida no
caderno, Alice sente-se assemelhando-se a uma moradora de rua, o que está
posto na utilização do verbo “parecer”. O trecho a que se deu destaque, porém,
desloca a perspectiva para o presente da narração, de modo que se tem, na fala
da narradora direcionada à interlocutora Barbie, a afirmação posterior de que,
naquele momento, ela era de fato uma moradora de rua – o que resultará páginas adiante, na passagem da utilização do pronome “eu” para o pronome “nós”.
Na cena em questão, em que iniciará uma conversa com Lola, que se
aproxima dela com seu carrinho repleto de sucatas e a quem dirá que veio da
Paraíba, Alice é uma imigrante nordestina vivendo nas ruas, mesmo que o fato
de ainda ter dinheiro para se alimentar e tomar banho a diferencie da situação
de muitos daqueles que a cercavam. Olhando para si e para o outro, a protagonista ainda tenta se livrar desse reconhecimento e, diante disso, a recusa implica
mudar de direção: “Tive um vislumbre de certa semelhança entre Lola e eu que
me apressei a descartar, virando logo para outra direção” (Rezende, 2014, p.197).
Ocorre que os olhares que circulam nesse episódio não se restringem
ao de Alice e ao de Lola, que coloca diante da protagonista uma projeção dela
mesma – aqui, diga-se, o eu precisa aceitar-se como outro. No início do trecho,
tendo estendido suas roupas, Alice fixa seus olhos no livro para desviá-los do
riso de quem passava por ela e via o varal improvisado e, sob um foco mais
amplo, a figura de uma mulher que, no espaço público, realiza uma atividade
específica do âmbito doméstico, fora de uma casa que tenha recebido um “banho de loja” – ela mesma, em farrapos, sem esse conforto.
Na relação entre quem olha e quem é visto, Alice é, juntamente com
Lola, o outro observado por quem vê a praça de fora, “encardida”, objeto que
poderia figurar em um museu como representação da cidade contemporânea,
transformada em imagem da qual o eu se distancia e que, portanto, pouco diz
sobre a sua real condição. Note-se que a relação de duplicação criada entre as
duas personagens não deixa de colocar em evidência o traço que caracteriza a
79
figura de Alice como a trapeira ou catadora de sucatas na metrópole: enquanto
Lola empurra um “[...] carrinho enferrujado afanado da porta de um supermercado qualquer ou recuperado de ferro-velho, empanturrado de sobejos do
consumismo dos outros [...]” (Rezende, 2014, p.196), a mochila de Alice também se enche de materiais recolhidos na rua, futuros elos de sua experiência
transformada em narrativa, no interior de uma “[...] condição histórica na qual
nenhum relato organiza a diversidade em um mundo cuja interdependência
leva muitos a sentirem falta dessa estruturação” (Canclini, 2016a, p.26).
Uma terceira epígrafe pode ser tomada na observação do modo como a
dinâmica do olhar, na narrativa, não apenas representa o imigrante pobre sob a
perspectiva da problematização da alteridade e da dissolução das fronteiras que
delimitam o eu e o outro na construção do processo de narração, mas também
coloca em evidência o apagamento dessa figura no interior da cidade. É sob o
signo do anonimato que o imigrante se coloca quando visto a partir da epígrafe
emprestada de Chico Lopes (apud Rezende, 2014, p.199): “Tinha-se a impressão, na quietude de que todos compartilhavam, de que muita gente desconhecida
vinha e se mudava sem deixar, por um momento só, de ser desconhecida”.
Enquanto o silêncio rege a vida da “muita gente” que figura no trecho, a repetição do adjetivo “desconhecida” reitera essa condição: trata-se,
aqui, de quem não tem nome, que permanece em silêncio e, assim, segue
sendo referido sob a indeterminação, como muitos, todos, os pobres. A
inserção desses sujeitos na lógica da migração realiza-se, nesse caso, pela
utilização dos verbos “vir” e “mudar-se”, que criam a dinâmica da chegada
e da partida sem, no entanto, abrir mão de uma perspectiva temporal que
marca o período de permanência. Os imigrantes chegam, permanecem em
silêncio – ou sem voz, se assim se preferir – e deixam a cidade do mesmo
modo, sem serem ouvidos, como Paraíbas, Cearás ou Baianos.
É assim que se abre o capítulo em que Alice desembarca na Vila Quede,
retomando a busca por Cícero Araújo, região em que um campo de futebol
funcionava como ponto de encontro de muitos imigrantes. Nas redondezas da
área de lazer, ela se encontra com diferentes personagens, todos nordestinos,
com histórias semelhantes, reunidos sob a mesma alcunha de “muita gente”:
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[...] mora aqui há muito tempo? Há mais de quinze anos, menina ainda,
vim ficar mocinha a primeira vez aqui, com a minha família do jeito que
quase todo mundo vem, Pai veio primeiro, com uma construtora, se ajeitou,
arrumou outro trabalho, pensou que era bom pra nós, que lá a gente vivia
com dificuldade, sabe como é? Veio tudinho, Mãe e meus sete irmãos,
vendemos as cabrinhas e o sítio, só deu pras passagens. (Rezende, 2014,
p.203 – grifos meus)
“Todo mundo”, “muita gente”, “tudinho” ou “tantos outros” são termos que
definem o anonimato e a falta de individualidade desses sujeitos, todos iguais. Nesse ponto, convém estabelecer uma divisão entre aqueles que são vistos e aqueles
que são olhados na narrativa, já que desconhecidos, os imigrantes com quem Alice
cruza na busca por Cícero Araújo permanecem, sob os olhos da metrópole e como
vaticina a epígrafe em questão, despercebidos. Ao tratar dos domínios da visão e
do olhar, Sérgio Cardoso (1988) estabelece uma diferença qualitativa em à que à
visão, superficial, reserva-se a percepção horizontal de quem vê o objeto focalizado,
enquanto ao olhar cabe a perscrutação do sujeito em relação ao objeto, com a percepção e o questionamento de suas descontinuidades.
No interior dessa lógica, pode-se afirmar que Alice é apenas vista pelos
passantes – o que se estende aos outros personagens, imigrantes da Vila Maria
Degolada, da Vila Quede, do Quilombo Família Silva ou moradores de rua.
Por outro lado, é sob a ordem do olhar que sua experiência na cidade se estabelece, especialmente quando se leva em conta que, no processo gradual em que
passa a se reconhecer como o outro, a narradora observa a metrópole de dentro,
o que lhe garante a percepção de seus vãos e de suas fissuras: “Nele [no olhar]
vidente e visível misturam-se e confundem-se em cada modulação do mundo,
em cada nó da sua tecelagem, mostram-se imbricados em cada ponto de sua
indecisa extensão” (Cardoso, 1988, p.349). Sob esse aspecto, no espaço da escrita, “neste caderno”, como eu narrante e no interior de um apartamento que
poderia ser um daqueles anunciados nos folhetos de publicidade espalhados
pela rua, Alice elabora o domínio do olhar por meio da fala, unindo os resíduos
do tempo em que ela mesma partilhou à experiência de ser um resto da cidade,
apenas visto por quem passa.
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Referências
AUGÈ, Marc. Por uma antropologia da mobilidade. Trad. Bruno César Cavalcanti; Rachel Rocha de A. Barros. Maceió: EDUFAL; São Paulo: Editora
UNESP, 2010.
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e
história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7.ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
CANCLINI, Néstor García. A sociedade sem relato: Antropologia e Estética
da Iminência. Trad. Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: Companhia das
Letras, 2016a.
CANCLINI, Néstor García. Um mundo inteiro como lugar estranho. In:
CANCLINI, Néstor García O mundo inteiro como lugar estranho. Trad.
Larissa Fostinone Locoselli. São Paulo: EdUSP, 2016b. p.55-72.
CARDOSO, Sérgio. O olhar viajante (do etnólogo). In: NOVAES, Adauto.
(Org.). O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p.347-360.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Memória, história, testemunho. In: GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar esquecer escrever. 2.ed. São Paulo:
Ed.34, 2009. p.49-57.
REZENDE, M. V. Quarenta dias. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014.
82
ESPAÇO, CORPO E RESISTÊNCIA: UMA LEITURA DECOLONIAL DO POEMA MORMAÇO, DE ELIZEU BRAGA
Ednalva Oliveira Silva
Janete da Silva Lagos
Juliana Bevilacqua Maioli
O despertar crítico para se repensar a Amazônia a partir de sua diversidade étnica e cultural e, também, dos conflitos que a atravessam, já se anunciou
há alguns anos no meio acadêmico. No ensaio Re-imaginar a Amazônia: descolonizar a escrita sobre a região (2015), os professores Miguel Nenevé e Sônia
Sampaio, chamaram a atenção para a necessidade de “desmantelar a visão única sobre a Amazônia” (Nenevé; Sampaio, 2015, p. 20), a qual é frequentemente
lida e representada sob a perspectiva homogeneizadora de um olhar exterior,
que tende a aprisioná-la ao lugar estático de sua paisagem exótica, exuberante
e selvagem, sem considerar, contudo, o imenso caudal de saberes, tecnologias
e tradições nela coexistentes. Os autores asseveram que “devemos reimaginar
aquela excepcional Amazônia concebida e fantasiada como local dos povos
primitivos, que ainda não mudaram com todos os processos de colonização e
de contatos” (Nenevé; Sampaio, 2015, p. 20). Em consonância com as postulações da escritora africana Chimamanda Adiche, Nenevé e Sampaio alertam
para o perigo da história única, e, dessa forma, defendem a necessidade de se
compreender a Amazônia desde dentro:
Reimaginar de dentro significa redizer, desdizer, significa ressignificar e repensar
as definições e os conceitos sobre o local. Se no passado milhares de povos indígenas eram dizimados pela colonização, ainda hoje muitas vozes são apagadas,
desvirtuadas, aniquiladas ou negligenciadas porque o que se ouve são rumores
externos que se impõem sobre os internos. (Nenevé; Sampaio, 2015, p. 21)
A proposta de se “reimaginar a Amazônia desde dentro” postula um duplo questionamento. De um lado, indaga-se o modo como o conhecimento é
83
produzido (“vozes são apagadas”); e, de outro, o lugar de onde as narrativas são
enunciadas (“rumores externos”). Frente a essas objeções, verifica-se que o estudo de Nenevé e Sampaio evidencia o anacronismo epistemológico muitas vezes
observado em construções discursivas que fixam imagens distorcidas ou estereotipadas de povos e culturas, cujos modos de existência se revelam incompatíveis
com os padrões da modernidade, a qual é regida pelos ideais do desenvolvimento
tecnológico e econômico. Fora desses modelos, as alteridades, identificadas como
primitivas, atrasadas ou pré-modernas, convertem-se em “apenas mais uma peça
do construto imperialista de dominação” (Silva; Coutinho; Maciel, 2018, p. 04).
A constatação dos referidos “rumores externos” que se sobrepõem às vozes locais, silenciando-as, permite-nos associar as reflexões de Nenevé e Sampaio ao rol das discussões relativas à geopolítica do conhecimento, conduzidas
desde os anos 90 pelo grupo modernidade/colonialidade. Integrado por nomes
como Aníbal Quijano, Enrique Dussel, Catherine Walsh, Ramón Grosfoguel
Walter Mignolo, entre outros, os trabalhos desses intelectuais latino-americanos promoveram a revisão crítica das bases epistêmicas legitimadas pela racionalidade ocidental, inaugurando o marco teórico dos estudos decoloniais.
Orientados pelo afã de construirem um pensamento crítico alternativo, fundado na articulação de saberes advindos de experiências e histórias marcadas pela
colonialidade, tais pensadores indagam os paradigmas logocêntricos subjacentes à geopolítica do conhecimento, bem como o processo de “subalternização
epistemológica, ontológica e humana” (Walsh, 2005, p. 17 – tradução nossa)
dela derivado, a fim de buscar estratégias destinadas à descolonização do poder
e do saber. A propósito, Catherine Walsh declara:
o conhecimento científico como única forma válida de produzir verdades
sobre a vida humana e a natureza – como conhecimento que se pretende
“universal”, oculta, invisibiliza e silencia outras epistemes. Também oculta,
invisibiliza e silencia os sujeitos que produzem esse “outro” conhecimento.
(Walsh, 2005, p. 18 – tradução nossa)
Nesse sentido, é possível compreender o monopólio eurocêntrico do
campo epistemológico como um dos eixos basilares da manutenção do poder
84
hegemônico (e global) engendrado pelo projeto da modernidade, o qual, segundo argumenta Catherine Walsh (2005, p. 18 – tradução nossa) “não pode
ser entendido sem que se tenha em conta seus vínculos com os legados coloniais e as diferenças étnico-raciais que o poder moderno/colonial produziu” no
mundo e, em especial, no continente da América Latina. Em outros termos,
para a autora, falar da modernidade/ colonialidade:
Implica introduzir perspectivas invisibilizadas e subalternizadas que emergem de histórias, memórias e experiências coloniais; histórias, memórias
que não estão simplesmente estancadas em um passado colonial, mas que
se (re)constroem por distintas maneiras dentro da colonialidade do presente, no interior de um modelo hegemônico (e global) do poder “instaurado
desde a Conquista, que articula raça e trabalho, espaço e populações, de
acordo com as necessidades do capital e em benefício dos brancos europeus”
(Walsh, 2005, p. 19 – tradução nossa)
Walsh assinala a complexa relação existente entre o modo de (re)
existência das alteridades subalternizadas e o sistema de organização global
definido por Aníbal Quijano (1992; 2005; 2014) como a colonialidade do
poder. Descrita como a face oculta da modernidade (Mignolo, 2015, p. 25 –
tradução nossa), tal categoria:
Se funda na imposição de uma classificação racial/étnica da população do
mundo como pedra angular do dito padrão de poder e opera em cada um
dos planos, âmbitos e dimensões materiais e subjetivas, da existência social
cotidiana e da escala social. Origina-se e mundializa-se a partir da América.
(Quijano, 2014, p. 285 – tradução nossa)
Elemento constituinte e específico do padrão mundial do poder
capitalista, a colonialidade exerce seu domínio na esfera global há mais de
quinhentos anos e, desde então, vem interferindo e moldando as estruturas sociais a partir da hierarquização étnico-racial. Seu campo de atuação
excede os limites do plano econômico e político, estando, pois, igualmente
internalizada sob sua hegemonia, as formas de controle de divisão do tra85
balho, subjetividades, corpos, sexualidades, epistemes e imaginários dos
povos dominados. Dentro desse contexto, Quijano (1992; 2005; 2014) reflete sobre a emergência da colonialidade do saber, concepção empregada
para designar os mecanismos de repressão dos modos alternativos de produção de conhecimento sustentados por perspectivas distintas do saber.
Pela ação sistemática da colonialidade do saber, legitimou-se como única
e naturalmente superior, o sistema de significações de base eurocêntrica,
em detrimento do legado intelectual e tecnológico dos povos indígenas e
negros, reduzidos a seres primitivos e inferiores, mediante o respaldo da
categoria racial (Walsh, 2005, p. 19).
Todo esse processo de violência e opressão, movido pela história
do poder, é naturalizado e neutralizado por uma epistemologia ocidental a-histórica, de pretensão científica e objetiva (Quijano, 1992, p.12).
Reiterando essa constatação, Mignolo declara: “a colonialidade equivale a uma ‘matriz ou padrão colonial de poder’ [...] a qual [institui-se
como] um complexo de relações que se esconde detrás da retórica da
modernidade (o relato da salvação, progresso e felicidade) que justifica a
violência da colonialidade” (2017, p. 13). Vale destacar, ainda, que, para
Mignolo (2013, s.p.), “a modernidade não é um período histórico, mas
a autonarração dos atores e instituições que, a partir do Renascimento,
conceberam-se a si mesmos como o centro do mundo”. Em diálogo
com a noção de colonialidade do poder, Mignolo descreve o conceito de
diferença colonial para destacar o caráter ideologicamente localizado da
racionalidade ocidental:
A diferença colonial é fácil de entender e fundamental para entender o básico do projeto modernidade/colonialidade. Na “/” [barra] que une e separa
modernidade e colonialidade, cria-se e estabelece-se a diferença colonial.
Não a diferença cultural, mas a transformação da diferença cultural em valores e hierarquias: raciais e patriarcais, por um lado, e geopolíticas, pelo
outro. Noções como “Novo Mundo”, “Terceiro Mundo”, “Países Emergentes” não são distinções ontológicas, ou seja, provêm de regiões do mundo
e de pessoas. São classificações epistêmicas, e quem classifica controla o
86
conhecimento. A diferença colonial é uma estratégia fundamental, antes
e agora, para rebaixar populações e regiões do mundo. Como transforma
diferenças em valores, dessa maneira, pela diferença colonial, a América Latina não é apenas diferente da Europa; [...], é uma zona inferior do mundo
com suas populações e suas faunas, seus crocodilos e seus pântanos. [...] A
classificação e a hierarquização é um assunto epistêmico na construção da
colonialidade do poder (Mignolo, 2013, s.p.)
Para Mignolo, a diferença colonial é o fator preponderante para se refletir criticamente sobre a estruturação discursiva do mundo moderno/colonial,
desde o qual se articula a geopolítica do conhecimento que marginaliza e inferioriza povos, desautorizando a coexistência da diversidade de saberes. Do interstício em que se estabelece a diferença colonial, emerge, pois, o pensamento
fronteiriço concebido como a condição imprescindível para o desenvolvimento
de projetos decoloniais empenhados em construir um paradigma-outro, por
meio do qual se almeja operar o processo de descolonização da existência, do
conhecimento e do poder.
Pensando desde a diferença colonial, neste trabalho, objetivamos re-imaginar a Amazônia a partir das reflexões acerca de sua produção literária.
No afã de auscultar as vozes negligenciadas por “rumores externos”, nos aproximamos do imaginário amazônico por meio da leitura do poema Mormaço,
texto introdutório do livro homônimo, do poeta beradeiro, performer e ativista
cultural, Elizeu Braga.
Nascido no ano de 1985, natural da comunidade ribeirinha de Itacoã,
situada no município de Porto Velho/Rondônia, Braga figura como um dos
principais expoentes da literatura amazônica da atualidade, tendo alcançado o
seu reconhecimento nacional com a publicação das seguintes obras: Cantigas
(2014) e Mormaço (2016). Sua projeção na cidade de Porto Velho se inicia a
partir de 2013, com a criação do Espaço Cultural Arigóca, no bairro Arigolândia. Esse espaço, localizado às margens do Rio Madeira, consagrou-se também
como cenário de encontro de outras águas, uma vez que nele foram realizadas
inúmeras atividades culturais, tais como saraus, recitais de poesias, oficinas de
leituras, entre outras, que promoveram intercâmbios artísticos fundamentais
87
para a valorização da cultura, da literatura e das memórias amazônicas na capital rondoniense. No artigo intitulado No banzeiro das águas: literatura, teatro e
outras travessias às margens do Rio Madeira (2020), os autores José Maria Lopes
Junior e Juliana Bevilacqua Maioli examinam os sentidos da representatividade da casa Arigóca articulando-a à coerência de um projeto literário que:
desde seu contexto e seu modo de produção, apresenta-se como um contra
discurso, uma opção decolonial aos processos de massificação operados pela
indústria cultural ou por políticas afirmativas, interessados em satisfazer às
demandas de uma sociedade de consumo, ao mesmo tempo em que visam a
manutenção do modus operandi de um sistema social desigual naturalizado
pelo centro. (Lopes Junior; Maioli, 2020, p. 271)
Na contramão dos imperativos do mercado editorial subordinados às
lógicas da sociedade de consumo, e, ainda, destoando de políticas afirmativas,
por vezes, inclinadas a legitimar imagens estereotipadas ou homogeneizantes da cultura amazônica, Elizeu Braga optou pelos caminhos “da produção
independente e artesanal de livros, dando abertura para o agenciamento de
um processo coletivo e sustentável de confecção de suas obras” (Lopes Junior;
Maioli, 2020, p. 268). Fabricadas com materiais recicláveis e de baixo custo, tanto Cantigas quanto Mormaço apresentam-se como produções literárias
marginais aos padrões estéticos validados pela crítica acadêmica hegemônica.
Trata-se de textos que, por sua configuração material, modo de representação,
produção e circulação, problematizam a própria ideia de literatura entendida
sob a perspectiva do cânone eurocêntrico.
Fugindo dos modelos aristotélicos da poética clássica, ou, ainda, dos paradigmas da literatura engajada, igualmente vinculada à esfera da episteme ocidental, os poemas de Elizeu Braga instauram-se como espacialidades construídas a
partir da confluência do sentido ético e estético emanado da experiência colonial,
da memória e do afeto. Não se reconhece somente enquanto simulacro do real
ou enquanto entidade estruturalmente autônoma, cujo sentido (pretensamente)
universal é transcendente ao tempo e ao espaço. A dicção do texto de Braga
88
configura a expressão de vozes enunciadas desde um lugar de fala situado socialmente. Ler Elizeu Braga, é sobretudo abrir-se à escuta da alteridade. Por essa
razão, sua práxis literária constitui um ato político e de resistência.
Neste estudo, visamos demonstrar como a sua escrita instaura-se
como expressão fronteiriça de articulação de saberes historicamente silenciados e subalternizados pela geopolítica do conhecimento. Assim sendo,
partimos da hipótese de que as composições de Elizeu Braga apresentam
uma linguagem que materializa, no plano estético, as fissuras e fragilidades do arcabouço discursivo da própria racionalidade ocidental, pautada
pelo ideal da modernidade. Desse modo, averiguaremos em que sentido
o poema Mormaço recria uma imagética que se inscreve como contradiscurso à economia de um sistema desigual, cuja violência é naturalizada
e neutralizada pela ideologia do projeto modernizador do Estado-nação.
Diante dessa constatação, pretendemos analisar como o tom dessacralizador de sua poética problematiza as narrativas hegemônicas que, em nome
do desenvolvimento social e do progresso econômico, tratam de tornar a
Amazônia o celeiro do mundo, a ser explorado por agentes empresariais e
estatais sedentos de lucro e indiferentes aos prejuízos humanos, socioculturais e ambientais decorrentes da apropriação desses espaços.
Partindo de um enfoque decolonial, buscar-se-á, portanto, sondar como
se opera a construção de imagens que, ao fundirem em sua sintaxe aspectos
do corpo e do espaço social, logram ressemantizar o cotidiano vivenciado por
sujeitos invisibilizados na região amazônica do século XXI. Examinar como
a polissemia do signo mormaço integra os mecanismos de representação de
uma espacialidade contra hegemônica, na qual o sujeito é capaz de instituir-se
como ser, reconquistando os valores do seu corpo e a posse do espaço que, historicamente, lhe fora negado, é o propósito desse estudo. A seguir, reproduzimos o poema na íntegra e, para facilitar o direcionamento da leitura, incluímos
o número das linhas de cada verso:
89
90
1.
2.
3.
4.
5.
6.
mormaço na flor na pele
no suor dos olhos o corre
daquela senhora que anda
pra cima e pra baixo
com aquela menina escanchada no ombro
com a cara aberta num sorriso
7.
8.
9.
10.
11.
12.
13.
14.
15.
16.
17.
18.
19.
20.
21.
22.
23.
24.
25.
26.
27.
28.
29.
30.
31.
32.
33.
34.
35.
mormaço na fila dobrando a esquina da caixa econômica
o olhar que se perde numa lembrança de não sei o que
aqui pro rumo do norte é bem forte o troço
dizem que somos terceiro mundo mal educados
mal falados esquentados criadores de caso e sem memória
dizem que a cidade é de todos
só pra gente acreditar que ela é de ninguém
mormaço no pneu da bike encostando no asfalto quente
mormaço naquele tempo fora do ar do escritório
pra pegar a marmita e um suco de graviola
mormaço no rosto do pedreiro velho
que conhece a cidade como as marcas da mão
mormaço no suor escorrendo evaporando
um horizonte quente subindo do chão
quem escuta a voz da cidade
quem ainda acredita nas lendas dos deuses colonizadores
quem se senta pra escutar os contadores do desenvolvimento
demolidores que confundem lucro com sustento
eles que nem vivem aqui que nem moram aqui
ficam de longe porque não aguentam o nosso mormaço
tomando vinho as nossas custas olha já
escuta aqui tá me ouvindo
esse corpo aguenta é cachaça
minha coragem não fica de ressaca
esse calor me leva pra água
meus olhos enxergam o rio
os ouvidos escutam os pássaros
sou bem daqui onde minha memória costura
como essa gente acolhedora e cheia de esperança
36.
que quando precisa sabe enfrentar o sol
O poema Mormaço apresenta-se organizado em um bloco único de
versos livres, sem divisões por estrofes. Estruturalmente, o texto se constrói a
partir da costura de imagens que se alternam entre quadros descritivos (linhas
de 1 a 8; 14 a 20), em que prevalecem cenas da vida urbana, e enunciados
retórico-argumentativos (linhas 9 a 13; 21 a 36), nos quais sobressai a voz do
eu-poético enunciada na primeira pessoa do discurso. Trata-se de um “eu” que
se expressa em nome de uma coletividade (“dizem que somos”). É importante
frisar essa representatividade exercida por um sujeito que fala em nome da
comunidade local, num gesto reivindicatório de reconhecimento da alteridade
dos povos amazônicos.
Ainda em relação ao aspecto formal, ressaltamos o uso de uma linguagem marcada pelo desvio sistemático da norma culta da língua portuguesa
como estratégia de demarcação do lugar social ocupado pelo eu-poético: a
ausência de pontuação e de letras maiúsculas, bem como o uso de expressões
do registro coloquial (“o corre”, “olha já”) indicam que o sujeito fala desde as
margens, fora do centro hegemônico do poder. Contudo, a abdicação à norma
padrão do idioma não deve ser entendida como falta de conhecimento por
parte do criador. Ao contrário, como será explicitado adiante, o manejo estético
da sintaxe é um dos recursos empregados na produção do efeito dessacralizador do poema, revelando que o eu-poético possui um domínio consciente da
norma culta, e é por meio dessa transgressão, que busca deslocar as estruturas
do pensamento colonizado.
Além disso, é válido destacar a marcação discursiva do vocábulo “mormaço”, cuja repetição imprime ritmo e musicalidade ao poema. Entretanto, o
signo mormaço funciona como principal eixo semântico em torno do qual se
aglutinam as diversas camadas de significação do texto. Em torno dessa palavra, encadeiam-se uma rede de significantes que deslocam “rumores externos”
(Nenevé; Sampaio, 2015) deliberadamente impostos sobre a população amazônica, aprisionando-a à estereótipos que, por vezes, colocam-se à serviço da
retórica do projeto modernizador, com a finalidade de naturalizar formas de
opressão e violência que justificam a exploração dos recursos naturais, materiais e humanos da região.
91
O conjunto de versos das linhas 10 a 13 é emblemático nesse sentido.
Introduzido por um índice de indeterminação do sujeito (“dizem”), nele está
reunido um inventário de ideias preconceituosas referentes aos habitantes do
Norte do país. Pautadas por um juízo de valor depreciativo e de caráter generalizante, a passagem incorpora na materialidade do texto poético uma reflexão
de ordem teórica concernente à colonialidade do poder e do saber que ainda
atua no controle do imaginário amazônico, subalternizando e inferiorizando
todo seu legado cultural e étnico, como forma de autorizar a apropriação indevida daquela que – ideologicamente – é considerada um território sem dono.
É justamente contra esse apagamento epistêmico e ontológico da alteridade
amazônica que Mormaço se levanta.
Para tanto, o poema se inicia com uma imagem que refuta o logocentrismo mediante a exploração do sentido atribuído a um dos traços distintivos
da Amazônia brasileira, isto é, o seu clima tropical (quente e úmido): “mormaço na flor pele”. Nela, verificamos a presença de um jogo de palavras que postula ao menos três níveis de leituras: numa primeira instância, é plausível afirmar
que o verso tece uma alusão implícita à expressão idiomática “emoção à flor da
pele”, anunciando, portanto, que se trata de um poema sinestésico que tanto
visa jogar com a sensação física do calor, quanto metaforiza a opção deliberada
pelo afeto, sugerindo uma poética fundada pela exacerbação do sentimento
sobre a razão (ocidental). Essa constatação conduz ao segundo nível de leitura
possível: a tentativa de se estabelecer um elo de empatia entre o leitor e a figuração do Outro, a partir do qual o primeiro é convidado a se imaginar vivendo
na “pele” daquele. No entanto, considerando a representatividade coletiva assumida pelo eu-poético, é igualmente válida a hipótese de que o vínculo entre
o texto literário e público se dê por meio dos laços de identificação. Em ambos
os casos, demanda-se a escuta sensível e aberta ao diálogo. Decorrente deste
percurso interpretativo, vincula-se ainda a terceira possibilidade de leitura, mediante a qual o verso introdutório pode ser lido como expressão simbólica da
diferença colonial (Mignolo, 2013) a ser transfigurada e deslocada pelo poema.
Esta análise pode ser respaldada pelo sentido inferido dos versos das
linhas subsequentes, de 2 a 8. Neles, observamos a conformação de um qua92
dro que capta uma cena cotidiana recorrente nos centros urbanos. À primeira
vista, percebe-se que o sintagma “o corre”, de uso coloquial, associado ao verso
“pra cima e pra baixo” e aos vocábulos “suor” e “mormaço”, remetem à ideia da
luta diária pela sobrevivência a ser encarada pelos sujeitos menos favorecidos
na escala social. Na ocasião, a figura de uma senhora carregando uma menina
também valida a hipótese de que se trata da representação de um espaço dominado pelos padrões do patriarcado, em que as mulheres se encontram numa
dupla posição de vulnerabilidade: a econômica e a de gênero.
A divisão (assimétrica) de classes que permeia a paisagem urbana periférica é retratada pela perspectiva distanciada da visão que se tem
“daquela senhora”. A escolha do pronome demonstrativo assinala o distanciamento que separa aqueles que “dizem” (linha 12), dos sujeitos que
esperam “na fila [...] da caixa econômica” (linha 7). O vocábulo “fila” é plurissignificativo nesse contexto: indica o número elevado de pessoas à espera
de assistência, o que, por sua vez, sugere implicitamente que elas também
estão sujeitas a um sistema de organização que as coloca numa condição
de dependência. A presença emblemática da instituição bancária, agência
detentora do poder econômico, reforça essa proposição. A lentidão da fila,
por sua vez, evidencia o descaso e a falta de humanidade com que a massa
trabalhadora é tratada pelas autoridades locais.
É interessante observar também como se dá, no quadro descrito pelos
versos de 1 a 8, o processo de representação de apagamento do Outro, cuja
individualidade do ser aparece diluída no teor simbólico da fila. A conversão
do ser humano em objeto (mão-de-obra barata) parece ser plasmada pela
enumeração metonímica das partes do corpo: pele, olhos, ombro, cara. Estes
aspectos, ao final da cena, confundem-se com o corpo amorfo de uma multidão
enfileirada que dobra a esquina. Por um lado, esse recurso literário busca
simular a cegueira daqueles que olham de “fora”, os quais são incapazes de
enxergar na sua integridade física aqueles que estão “dentro”. No entanto, os
termos “sorriso”, “olhar” e “lembrança” presentes nas alíneas 6 e 8, irrompem
como signos operadores da reconstituição do sujeito invisibilizado, conforme
examinaremos a seguir.
93
Na sequência dos versos 14 a 20, interessa-nos analisar o valor assumido
pela palavra mormaço na constituição metafórica do espaço social fundado
pela experiência da colonialidade. Funcionando como marco orientativo do
olhar do leitor, “mormaço” articula imagens que condensam em sua sintaxe
uma multiplicidade de sentidos refletidos na atmosfera sufocante imposta pelo
sistema opressor e desigual. O sintagma “pneu da bike”, formado pelo vocábulo
em inglês, traduz o domínio imperialista do capital internacional, interessado
na extração da borracha produzida na região. Entretanto, a bicicleta também é
o principal meio de locomoção de trabalhadores braçais, tal como é retratado
pelo pedreiro. Peça chave para o processo de urbanização, a essa figura invisível
é designado o dever de enfrentar o calor amazônico em condições precárias de
trabalho, para obter, em troca, o seu sustento (marmita). O suco de graviola,
elemento regional que acompanha o almoço, é também o substrato que mantém viva a identidade desses sujeitos. Logo, é possível inferir que, essa cena, ao
mesmo tempo em que reproduz o quadro de exploração do Outro, recria uma
espacialidade alternativa e insurgente que desvela os modos sutis de resistência
dos povos amazônicos diante dos imperativos da colonialidade do presente.
Os indivíduos anônimos flagrados pelo texto, o “pedreiro” e a “senhora”,
num primeiro momento, são visualizados pela focalização distanciada de quem
os vê de fora. Através desse enfoque, temos acesso a um olhar oblíquo que não
os contempla em toda a sua integridade humana. Contudo, numa segunda
leitura, podemos reinterpreta-los como sujeitos portadores dos signos que asseguram o sentido da existência dessa população: tanto o pedreiro, conhecedor
da cidade “como as marcas da mão”, quanto a senhora que carrega sua filha
nos ombros, revelam-se como atores sociais responsáveis pela transmissão de
histórias, memórias e saberes ancestrais às futuras gerações. Consciente do silenciamento imposto a sua gente, o poeta brada: “quem escuta a voz da cidade”.
Reclama um ouvinte, não um leitor passivo. Renega a escuta disciplinada da
cidade letrada (Rama, 1998). Por isso, questiona: “quem ainda acredita nas
lendas dos deuses colonizadores/ quem se senta pra escutar os contadores do
desenvolvimento/ demolidores que confundem lucro com sustento”.
94
A indagação ilumina a dimensão dessacralizadora do poema, porque
o que se é colocado à prova é o mito da modernidade, não as narrativas orais
do imaginário amazônico. Valendo-se do intertexto paródico estabelecido a
partir do tensionamento de duas epistemes - a dos povos locais e a dos colonizadores – o texto inverte o sentido do discurso modernizador, tratando
de desvendar as estratégias de encobrimento do Outro (Dussel, 1993) e as
falácias (de salvação, liberdade e progresso) preconizadas pelas promessas do
desenvolvimento econômico.
O seu caráter desmitificador ainda pode ser observado no plano da
construção sintática dos seguintes versos: “eles que nem vivem aqui que nem
moram aqui /ficam longe porque não aguentam o nosso mormaço/ tomando
vinho as nossas custas olha já”. Neles, a lógica eurocêntrica que define a condição de submissão do “terceiro mundo” (periférico) em relação a um “centro”
é problematizada. O sujeito gramatical – eles [dominadores] – apresenta-se
separado do seu predicado (“ficam de longe porque não aguentam o nosso
mormaço”), pois é interrompido por uma oração subordinada adjetiva (“que
nem moram aqui que nem vivem aqui”) que, desloca e subverte o sentido dos
vínculos de dependência a partir do manejo linguístico: quem de fato depende
de quem? Alinhando-se ao campo dessas ressignificações, a palavra vinho, signo do luxo e da luxúria, parece denunciar a degradação ética e moral daqueles
que “confundem lucro com sustento”, enriquecendo-se às “custas” do sangue/
suor alheio. A própria coloração do vinho ratifica essa análise.
O mecanismo de inversão paródica, associado ao modo de construção
sintática, funciona como recurso que desestabiliza as fronteiras das categorias
“civilizado versus primitivo”. Ao questionar a índole civilizada do sujeito dominador, o eu-poético contesta, por extensão, a natureza ontológica dos binômios “centro versus periferia”, “moderno versus tradicional”; “autonomia versus
dependência”; “racional versus irracional” entre outros, em torno dos quais se
articulam os critérios das classificações epistemológicas formuladas desde a
perspectiva da diferença colonial. Após revisar criticamente e refutar as narrativas que negligenciam, apagam e desvirtuam as alteridades amazônicas, o
eu-poético interpela: “escuta aqui tá me ouvindo”.
95
Os versos finais do poema (linhas 29 a 36) expressam a resistência do
sujeito subalternizado frente aos relatos que o sequestram de sua identidade,
dos seus saberes e do próprio espaço que habita. É importante observar que
o eu-poético chama a atenção para a fortaleza do seu “corpo”. Para examinar
a densidade simbólica desse enunciado, convém retomar as considerações de
Aníbal Quijano (2005) a propósito da abordagem dualista sobre o “corpo” e o
“alma”, pensada a partir de Descartes. Segundo Quijano:
O que [antes] era uma co-presença permanente de ambos os elementos
em cada etapa do ser humano, em Descartes se converte numa radical separação entre “razão/sujeito” e “corpo”. A razão não é somente uma secularização da idéia de “alma” no sentido teológico, mas uma mutação numa
nova id-entidade, a “razão/sujeito”, a única entidade capaz de conhecimento
“racional”, em relação à qual o “corpo” é e não pode ser outra coisa além de
“objeto” de conhecimento. (Quijano, 2005, p. 117-118)
No processo de secularização burguesa do pensamento cristão, operou-se
a separação de “sujeito versus corpo”, de modo que o primeiro termo dessa dicotomia, foi identificado como a entidade detentora da faculdade racional, enquanto que o segundo, foi reconhecido na qualidade de objeto de conhecimento, “fora
do entorno do “sujeito/razão” (Quijano, 2005, p. 118), passível, portanto, de ser
dominado/explorado. De acordo com Quijano, no século XVIII, esse “dualismo
radical foi amalgamado com as ideias mitificadas de “progresso” e de um estado de natureza na trajetória humana, [...] que deu vazão à peculiar perspectiva
histórica dualista/evolucionista” (Quijano, 2005, p. 118), por meio do qual se
fundou o mito da salvação professado pelos ideais da modernidade.
O que se percebe pelo poema de Braga é justamente o processo de superação dessa cisão que, desde uma perspectiva eurocêntrica, separa o sujeito
(alma/razão) do corpo (objeto). Logo, a menção ao “corpo” no verso da linha
29, pode ser lida como resposta que subverte essa dualidade. É importante reparar que, pela primeira vez, esse signo é empregado para se referir ao sujeito,
remetendo a toda sua integridade humana, física e intersubjetiva. Antes, o que
apareciam eram apenas os fragmentos do corpo invisibilizado pelos “rumores
96
externos”. Em Mormaço, sujeito e corpo se fusionam na voz de um “eu” coletivo,
que, costura com os fios da memória, as fissuras deixadas pela herança colonial.
O poema erige-se, portanto, como uma espacialidade contra hegemônica, que se abre para a expressão de epistemes apagadas e inferiorizadas pelas diatribes da colonialidade do poder e do saber. O mormaço, ressignificado
desde olhar do eu-poético, já não postula o calor que justifica a propagação de
estereótipos deturpados sobre região amazônica. Ao contrário, conecta-se a
um outro paradigma de existência fundado pela comunhão entre o homem e
a natureza, da qual se estabelece uma relação harmônica e de respeito mútuo
(“meus olhos enxergam o rio/ os ouvidos escutam os pássaros”). A potência
significativa do “rio” e dos “pássaros” só pode ser alcançada se adotamos a mesma perspectiva do olhar anônimo captado em meio à multidão (verso da linha
8), o qual se “perde numa lembrança de não sei o que”: lembranças vagas, de
um tempo passado, que lançam no presente as sementes do desejo de mudança,
traduzidas por um pensamento utópico de libertação. A menina no colo (linha
5) que tem a “cara aberta num sorriso” (linha 6) simboliza esperança e resistência dessa gente acolhedora, “que quando precisa sabe enfrentar o sol”.
Neste trabalho, realizamos a leitura do poema Mormaço, do poeta Elizeu
Braga. Orientando-nos por um referencial teórico baseado nos conceitos de colonialidade do poder (Quijano, 1992; 2005; 2014) e diferença colonial (Mignolo,
2013), examinamos os mecanismos de construção de imagens poéticas que, ao
fundirem em sua sintaxe aspectos do corpo e do espaço social, logram ressemantizar as relações cotidianas vivenciadas por sujeitos invisibilizados na sociedade
moderna do século XXI. Ao plasmar poeticamente o imaginário cultural do sujeito amazônico, o poema desloca por meio de um olhar de dentro, os limiares
dos binômios “centro” x “periferia”, promovendo a revisão crítica dos estereótipos
frequentemente atribuídos à região como justificativa à opressão e à sujeição de
corpos que, convertidos em mão-de-obra barata, são espoliados de sua própria
condição de sujeitos. Focalizamos, ainda, como a polissemia do signo mormaço
aponta, para a conformação de uma espacialidade contra hegemônica, na qual o
sujeito é capaz de instituir-se como ser, reconquistando os valores do seu corpo e
a posse do espaço que, historicamente, lhe fora negado.
97
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99
AS TRAMAS DO BORDADO: LITERATURA, HISTÓRIA E
SUBJETIVIDADES À MARGEM EM YUXIN ALMA
Gracielle Marques
Juliana Budin Ferreira
Porque para brancxs, q’aras e mestiçxs, trata-se de redescobrir os fios perdidos dessas origens diversas e contraditórias para fazer gestos epistemológicos de reversão do
processo colonial e suas marcas de subjetivação1. (Rivera
Cusicanqui, 2018, p. 79, tradução nossa).
A citação da socióloga boliviana Silvia Rivera Cusicanqui que abre este
trabalho nos convida a seguirmos na direção de caminhos formados pelo diverso e pelo contraditório da realidade latino-americana, cindida pelo colonialismo. Perseguir os fios de nossas origens, nem sempre conciliáveis, permite-nos
reconhecer as fissuras colônias e reativar a potencialidade das epistemologias
ancestrais, desviando-nos dos perigos das polarizações e essencialismos. Esses,
entre outros esforços, constituem o ideário da aposta descolonial de Rivera
Cusicanqui, como o potencial semântico e filosófico das línguas indígenas, a
ampliação da ideia de comunidades de convivência para contextos urbanos e a
sobreposição de um pensamento guiado pela imagem de tecido em detrimento
das coordenadas ditadas pelo saber do território.
Essa perspectiva reveladora dos saberes encobertos pela violência colonial está presente no romance Yuxin, Alma (2009), da escritora cearense Ana
Miranda. Nele, a ficcionista relê o contexto histórico do choque cultural vivido
pelos autodenominados Huni Kuin (“gente verdadeira”) a partir da metáfora
do bordado, que funciona como uma zona de interação, tradução, embates e,
sobretudo, de re-existências. O livro é tecido sobre um bastidor no qual as
1
Cf. o texto fonte “Porque de lo que se trata para blancxs, q’aras y mestizxs, es de reencontrar
los hilos perdidos de esos orígenes diversos y contradictorios para hacer gestos epistemológicos de reversión del proceso colonial y de sus marcas de subjetivación”.
100
personagens, as narrativas míticas e as ações históricas, relacionadas ao período
da economia da borracha do final do século XIX e início do século XX, já se
encontravam presentes. Protagonizada por Yarina, criação ficcional de uma
mulher tecelã Huni Kuin, a narrativa está ambientada na região fronteiriça
entre Brasil e Peru, mais especificamente no Alto Juruá.
A ficcionalização dessa subjetividade feminina foi estimulada pela
leitura da obra Rã-txa hu-ni-ku-: Gramática, textos e vocabulários caxinauás
(1914)2, realizado pelo historiador e linguista cearense Capistrano de Abreu,
para quem Ana Miranda dedica Yuxin, Alma. O tratamento dado à personagem segue um dos vieses presente na narrativa histórica de escritoras latino-americanas de “[...] imaginar os sentimentos, imperecíveis da condição humana,
que permite vivificar o passado, torná-lo literário no presente”3, conforme salienta Gloria da Cunha (2004, p. 23, tradução nossa).
Para isso, nesse romance, Ana Miranda parte de um vigoroso trabalho
com a matéria histórica, engastando em suas fendas a ficção. O uso de fontes
históricas explicitadas nas notas ao final do livro, indica a vasta pesquisa histórica e etnográfica realizada pela autora sobre as culturas Tikuna, Suruí, Yanomami, Ashaninka, Katulina e, sobretudo, Kaxinawa (Huni Kuin), determinantes para a recriação da vida das existências negadas pelos discursos dominantes.
Os paratextos, fragmentos verbais e não verbais que acompanham o romance
propriamente dito, também se configuram como uma estratégia da autora para
indicar a intenção de seu projeto estético de fomentar “um diálogo potencial”
(Bakhtin, 1998, p. 127) entre o leitor e o universo da cultura indígena, do qual
ela se nutre para construir uma personagem descentralizada.
Como é conhecida, a representação desse período histórico originou
um ciclo de romances brasileiros e hispano-americanos em torno de “[...] um
discurso de lógicas perversas, de desvios, num universo que aproxima a cultura
2
3
É importante enfatizarmos que o trabalho de Capistrano de Abreu é um dos primeiros estudos linguísticos mais completos de uma língua indígena. A recepção dessa obra pelos Huni
kuin levou algumas décadas, mas nos últimos anos foi objeto de estudo do Prof. Dr. Joaquim
Paulo de Lima Kaxinawá, que realizou um estudo linguístico Confrontando registros e memórias sobre a língua e a cultura huni kuin: de Capistrano de Abreu aos dias atuais (2011), no intuito
de atualizar a ortografia de algumas histórias e torná-las acessíveis a seu povo por meio do
ensino escolar da língua hãtxa kuin.
Cf. o texto fonte “[…] imaginar los sentimientos, lo imperecedero de la condición de la condición humana, que permite vivificar el pasado, convertirlo literariamente en presente.”
101
amazônica de outros momentos das relações do grande capital na exploração
dos recursos na América Latina” (Pizarro, 2012, p. 164).
Ao estudar as chamadas “Ficções do ciclo da borracha”, um conjunto
de obras heterogêneas que abordam o período de exploração do produto gomífero, Lucilene Gomes Lima (2009, p. 198) afirma que: “As obras do ciclo,
em geral, apresentam o índio como elemento hostil e cruel. Poucas vezes, é
acentuado que o seu comportamento violento resulta de uma reação a uma
violência, a invasão”. O romance O amante das amazonas (1992), do manauense Rogel Samuel, é uma das exceções. Nele é possível ouvir a voz sufocada da
personagem Maria Caxinauá através do narrador e a denúncia do massacre da
cultura indígena, assumida pelo autor, conforme analisa Lima (2009, p. 198).
Permeado por diferentes estéticas e ideologias, algumas abordagens recorrentes nos chamam a atenção nessas narrativas, entre elas estão: 1) a narração prioritária dos acontecimentos realizada por um personagem ocidental;
2) a representação dos indígenas na situação de ataque; 3) o apagamento da
perspectiva e dos saberes femininos indígenas; 4) a apresentação maniqueísta
ou estereotipada de outros sujeitos como o regatão, o missionário e o patrão,
por exemplo. Com base nesses aspectos presentes em parte das narrativas do
ciclo, percebemos que Yuxin, Alma aposta na releitura de vozes indígenas que
não foram considerados pela elite ilustrada.
Assim, à recriação ficcional da história na contemporaneidade cumpre
imaginar outros tempos e escutar outras vozes, o que depende necessariamente da avaliação do passado e da história. Conforme afirma Magdalena
Perkowska (2008, p. 102):
Numa realidade insatisfatória, num presente cheio de urgências que deseja
abalar os déjà vu de desigualdade, injustiça e opressão, não se pode falar do
tédio ou da paralisia da história porque a sua releitura é um ponto de partida
imprescindível para a avaliação do presente e formulação de novos projetos.
O qual é a revisão dessa história, seu discurso e suas estratégias.4
4
Cf. No texto fonte: “En una realidad insatisfactoria, en un presente cargado de urgencias que
desea sacudir los déjà vu de desigualdad, injusticia y opresión, no se puede hablar del hastío
o de la parálisis de la historia porque su relectura es un imprescindible punto de partida para
la evaluación del presente y la formulación de nuevos proyectos. Lo que es la revisión de esa
historia, de su discurso y de sus estrategias”.
102
Essa postura é a que tem marcado boa parte das ficções que fazem uso
da matéria histórica, nos últimos anos, especialmente a de escritoras, as quais
buscam não apenas relatar as injustiças cometidas contra as mulheres, porém
ambicionam, de modos variados, expandir o imaginário sobre suas atuações
visando sua inserção em novos horizontes. Diante disso, nas páginas a seguir,
tomamos o romance Yuxin, Alma para analisarmos a maneira como a autora
inscreve ficcionalmente sua protagonista – ao optar por ouvi-la – marginalizada pelos discursos dominantes, patriarcais e raciais da história, detendo-nos
sobre alguns pontos nos quais o aproveitamento dessa matéria histórica se
contrapõe ao discurso ficcional que representa o mesmo período na tradição
literária letrada brasileira.
Yuxin, alma: tecido e território
Na narrativa, a ação principal, no plano da enunciação, é o bordado de
um têxtil realizado pela protagonista Yarina. A memória é o outro tecido, feito
de multicolores fios da história, da imaginação, de diferentes discursos, das vozes da natureza, dos símbolos e mitos, estruturados através de capítulos curtos,
os quais formam os desenhos fragmentados de recordações, embalados por
canções ancestrais. A escolha pela narração em primeira pessoa da personagem
ficcional Yarina responde ao anseio de dar protagonismo a uma subjetividade
feminina que enfrente uma tradição historiográfica e literária de exclusão.
Ambientado no rio Curanja (Peru), em 1919, o livro narra o mundo e o
cotidiano anteriores à diáspora, seguindo a cadência dos ritmos da natureza e
do ciclo das plantações. Yarina, curiosa e ávida por explorar os limites de sua aldeia, percebe a aproximação de brasileiros e estrangeiros na região e as gradativas
consequências dessa presença em sua vida. O casamento com Xumani, a disputa
entre as famílias, causada pela morte de seu tio Kue, o sumiço do esposo, de sua
irmã, de seu filho, a perseguição de peruanos e brasileiros e a fome, principais
pontos do enredo, ocorrem em um quadro de agressões históricas que provocaram a diáspora dos Huni Kuin. Diante da destruição da comunidade e dos
assassinatos, Yarina foge para a mata, espaço desconhecido pelas mulheres, na
103
desesperada luta pela sobrevivência. Sozinha, sem alimento e ilhada pela cheia
dos rios, ela é encontrada por um regatão, Andere, que a leva a colocação de Redenção, onde é entregue ao padre missionário francês Pierre Chagrin.
Cada vez mais distante de encontrar Xumani e seu pequeno filho Huxu,
a protagonista é iniciada no aprendizado da lógica dominante imposta pelos
nawá (homem branco). Sua desterritorialização e suas condições de existência são ficcionalizadas pela presença dos yuxins, entidade da cosmovisão Huni
Kuin que desata os conflitos da inescapável ambivalência de uma situação
fronteiriça identitária e existencial. Seus familiares, contudo, resgatam a protagonista da assimilação cultural e a levam ao rio Curanja, em terras peruanas.
Nessa localidade, a rememoração tem seu início e as perguntas e conjecturas
sobre o paradeiro de Xumani, sua irmã Pupila e seu filho, que acompanham
essa narradora inquisidora do passado permanecem sem resposta.
Ao longo das cinco partes que dividem o romance, intituladas na língua
Hãtxa kuin e com a tradução ao português5 – Uaninu (longe), Bene Wai (esposar), Detenamei (guerrear), Yuxin (alma) e Hatiski (fim) – as quais se subdividem
em pequenas histórias, a narrativa mistura episódios de momentos anteriores e
posteriores à invasão dos seringueiros, que culminaram na diáspora Huni Kuin.
Na história e na memória narradas pelos próprios caxinauás em produções contemporâneas como Já me transformei em imagem (2008), de José de
Lima Kaxinawá (Zezinho Yube), por exemplo, encontramos uma via lateral
explorada na ressignificação do passado operada em Yuxin, Alma. Nesse curta-metragem os Huni Kuin rememoram sua história dividindo-a em “cinco
tempos”: 1) Tempo da casa grande ou malocas, marcado pela vida comunitária
antes do contato com o nawá; 2) Tempo das correrias, lembrado pela invasão
e guerra dos seringueiros e caucheiros com a finalidade de obtenção de mão
de obra escrava para a extração do látex, a qual potencializou a inimizade entre
diferentes etnias e massacrou as populações indígenas; 3) Tempo do cativeiro,
conhecido pela exploração do trabalho indígena nos seringais, época em que
5
Ana Miranda (2009, p.338) explica em notas que as expressões em Kaxinawa, presentes no
romance, seguem a grafia normalizada por Eliane Camargo, estudiosa da língua Hãtxa kuin.
Para os nomes dos títulos ela adota as traduções registradas por Capistrano de Abreu.
104
passam a viver nas colocações e são marcados a ferro; 4) Tempo dos direitos,
caracterizado pela luta junto ao Estado Nacional para conseguir direitos específicos para os povos indígenas, como a demarcação de terras; 5) Tempo presente, pautado pelas reivindicações pelo fortalecimento da cultura, a volta dos
rituais, a educação diferenciada, a demarcação das terras e pela vida.
O romance evoca as ações transcorridas nos três primeiros tempos,
trançando-os com a vivência subjetiva de Yarina e as tradições de sua comunidade. Entre elas está o “Kene, bordado”, nome do primeiro capítulo do romance, o qual metaforiza a construção da trama têxtil que remete à prática corporal
Huni Kuin transmitida pela via materna:
minha vó me levou mata dentro para eu saudar Yube e aprender o bordado
kene, minha avó ensinou cantigas, aregrate mariasonte, mariasonte bonitito...
ela sabia essas cantigas, a avó da avó sabia, a avó da avó da avó, minha mãe
sabe...bonitito binitito yare... titiri titiri titiri titiri we...hutu, hutu, hutu,
hutu...vi uma luz, minha avó pingou bawe nos meus olhos para eu enxergar
mais claro... tecendo e cantando em dia de lua nova, assim aprendi kene,
chamando a força do bawe (Miranda, 2009, p.17).
Segundo explica a antropóloga Els Lagrou (2007, p.59), a arte Kene kuin,
que significa “desenho verdadeiro”, na língua hãtxa kuin, é uma expressão gráfica
realizada em diferentes materiais, como nos desenhos corporais, nas peças de
tecelagem, cerâmica, palha e adornos de miçangas. Na cosmovisão Huni Kuin o
conhecimento dos padrões gráficos e estilizados do kene foi ensinado a uma mulher por Yube, a jiboia ancestral, conforme lemos no excerto. Sua pele manchada
contém todos os padrões transmitidos às mulheres: “[...] Todas estas imagens, as
desenhadas ou as tecidas para serem contempladas e outras para serem invocadas
em cantos, influenciam ativamente e agem sobre as formas assumidas pela vida
no mundo kaxinawa [Huni kuin]” (Lagrou, 2007, p.59).
Enquanto alguns homens, como os tuxauas, ordenam, governam, negociam e adivinham, e outros se encarregam das atividades fora da aldeia, as mulheres lavram a terra e tecem, criando linguagens e símbolos com sua arte. No
romance, Yarina é a responsável por tramar o difícil tecido cultural dinâmico nos
105
espaços criados pela cultura invasora, usando os termos de Rivera Cusicanqui
(2010, p.72). Todas as disjunções sociais, os invasores, os seres vivos e mortos, os
animais, as plantas, os espíritos e os sonhos, atingidos pela fissura colonial, passam a formar o que Rivera Cusicanqui denomina como o “tecido intermediário”,
contraditório e manchado – como a pele da Yube, a jiboia – emoldurado no espaço das polaridades que não se excluem: “[...] uma trama que não é nem uma coisa
nem outra, mas muito pelo contrário, são as duas ao mesmo tempo”6 (Rivera
Cusicanqui, 2018, p. 83, tradução nossa). Assim, o bordado faz a mediação entre
o mundo de seres visíveis e dos invisíveis, buscando, paradoxalmente, fixar uma
percepção e uma voz para um mundo que “se encontra num estado permanente
de perigosa fluidez de forma” (Lagrou, 2007, p. 139).
O tempo alusivo ao da casa grande, por exemplo, é identificado pela
abundância de roçados e caças: “[...] não pensava em nada, coisa alguma receava, nossa gente era desassombrada, Xumani vivia aqui, Huxu vivia aqui, feliz,
felizes, oh nós todos, todos felizes, shu! shu! shu!” (Miranda, 2009, p. 90). Contudo, após o contato com os brancos, a memória fica marcada pela violência
que desponta manchando o bordado:
[...] minhas lágrimas molham o bordado, mancham de azul, choro lágrimas,
choro lágrimas, lágrimas de lágrimas, rios de rios, morreu muita gente nossa, meu pai tuxaua contou, eles jogavam as crianças para o alto e esperavam
cair na ponta da faca, e se fizeram isso com Huxu? Meu leite no peito,
escorre escorre... (Miranda, 2009, p. 130).
Entre um extremo e outro, a convivência de Yarina com os brasileiros no
povoado de Redenção, para onde é levada, desperta sua percepção para novos
saberes adquiridos:
A mata embrenhada... o caminho para a casa do padre...quem ia lavar a sua
roupa? Tong...tong...uma dor nasceu no meu peito, uma dor como se um
pau caísse em cima de mim e arrebentasse a minha cabeça, sentia acochar
o meu peito, a comida de farinha era boa, eu gostava de comida com óleo,
nem tinha precisão de ir ao roçado... (Miranda, 2009, p. 327).
6
Cf. o texto fonte: “ […] una trama que no es ni lo uno ni lo otro, sino todo lo contrario, es
ambos a la vez”.
106
O último capítulo, intitulado Hatiski (fim), é composto apenas por um
mapa abrangendo os vales do rio Juruá e Purus, no Acre, realizado pelo cartógrafo francês Jules-André-Arthur Hansen (1849-1931). A inserção desse
texto cartográfico parece-nos ser o contraponto da lógica do tecido, de acordo
com o pensamento de Silvia Cusicanqui (2018, p.118). Ele se refere ao procedimento muito usual do olhar imperialista e patriarcal, lançado pelo desejo de
limitação territorial e dominação em oposição à lógica do tecido e da comunidade, presente no pensamento não ocidental.
A visão externa de viajantes, naturalistas e científicos europeus de diferentes nacionalidades que desembarcaram entre o século XVIII e XIX, em
geral, contribuiu para fixar representações unilaterais que ignoraram os habitantes e as articulações das paisagens e das regiões para além dos recortes
e identificações territoriais nacionais, como as identificadas pelas populações
locais da América Latina. Nesse sentido, observa Márcio de Souza:
Com a onda de cientistas viajantes começa a se produzir o insistente mito
de que a Amazônia é um vazio demográfico, uma natureza hostil para os
homens civilizados, habitada por nativos extremamente primitivos, sem
vida política ou cultural. E da Amazônia como terra sem história (Souza,
1994, p.76 apud Pizarro 2012, p. 112).
Esse é o caso do cartógrafo Jules Hansen, ao utilizar o termo “deserto”
sobre a região, conforme uso recorrente em sua época. Essa designação encobria a existência de um “outro lado”, que não incorporava os valores tidos como
civilizados. Essa cartografia positivista faz ecoar a ideologia discriminatória do
tempo da ação narrativa e das recentes investidas contra os territórios indígenas, em favor da construção de uma narrativa desenvolvimentista à custa da
destruição e contaminação das florestas e rios. Esse olhar crítico ao passado,
fomentado pela justaposição da representação de tecidos e territórios, também
acusa as práticas atuais de “apropriação/violência”, de cunho nacionalista, contra o espaço comunitário indígena.
Conforme assinala Boaventura de Souza Santos (2007), para essa lógica dominante o que deixa de pertencer é inexistente. Ao problematizar as
107
distinções radicais das linhas cartográficas “abissais” que demarcaram o Velho
e o Novo Mundo e que persistem no pensamento moderno ocidental, Souza
Santos (2007, p. 1-2) afirma que “A característica fundamental do pensamento
abissal é a impossibilidade da co-presença dos dois lados da linha”.
Nesse viés, a literatura potencializa a deslegitimação desse pensamento
ao dialogar com o texto de Hansen, possibilitando que o olhar do leitor inclua naquelas linhas a narração dos acontecimentos pessoais que contestam as
narrativas de exaltação da conquista dessa região. Assim, a história do esquecimento e do silenciamento são convertidos em matéria ficcional, em tecido, que
diferentemente dos mapas permitem a inclusão e a negociação com outros fios,
em um tecer dinâmico da cultura, recusando visões essencialistas.
Nesse bordar/cantar, os fragmentos de vozes da memória oral coletiva
indígena registrada em seus cantos e os textos de informantes interpelam os
registros históricos produzidos pelos ocidentais. O movimento crítico e criativo da construção da personagem Yarina ganha em complexidade humana,
especialmente por expressar o conflito entre diferentes formas de conceber
e valorizar a natureza, produzir o conhecimento e transmitir a memória. O
trabalho nas bordas ou margens do fazer literário permite incluir o Outro;
alterar, intensificar e estender as percepções do leitor para outras formas de
existências, em um horizonte transgressor de hegemonias.
Inscrição da mulher indígena nas páginas da história
O diálogo visível com a tradição histórica e literária nacional em Yuxin, Alma deixa entrever na construção do projeto estético-ideológico de Ana
Miranda a realização de um duplo e tenso movimento, calcado em propostas
do passado e do presente. Isso é percebido por Anne Macedo (2011, p.246),
a qual denomina seu projeto estético de “poética da reciclagem”, pois “guarda
alguma proximidade com os métodos historicistas de construção canônica tipicamente moderna”. Em outras palavras, as preocupações em torno à identidade nacional e cultural, presentes em certas expressões literárias nacionais,
são reelaboradas por Ana Miranda em sua vasta obra literária, a qual herda da
108
tradição romântica a pretensão de mapear a história do Brasil e sua literatura,
revisitando períodos conflituosos e dissidentes.
Em grande parte de seus romances, porém, Ana Miranda trata a matéria histórica com procedimentos críticos e criativos pós-modernos. A revisão histórica operada pela autora em sua obra ficcional se dá por meio de
uma chave crítica, inscrevendo o protagonismo feminino, em uma escrita
centrada sobre o eu, e instaurando a problematização do silenciamento das
parcelas marginalizadas no discurso historiográfico tradicional. Sua escrita
é potencializada pelos efeitos que procedimentos estéticos como o pastiche,
intertextualidade e polifonia, entre outros, operam na leitura. Essa forma de
alinhar a relação entre história e ficção se orienta na direção da modalidade
do romance histórico contemporâneo de mediação, identificada pelo estudioso Gilmei Francisco Fleck (2017).
Nessa modalidade contemporânea, Fleck (2017, p.109) ressalta a coexistência de certos traços marcantes nas produções romanescas históricas de
cunho mais tradicional e de várias das características do novo romance histórico e da metaficção historiográfica. Entre elas, encontramos em Yuxin, Alma a
organização linear da diegese, a utilização de uma linguagem acessível ao público leitor em geral, a criticidade diante do passado, propiciando experiências
capazes de formar um senso crítico, estratégias escriturais bakhtinianas.
Com uma abordagem crítica ao discurso da modernidade, o romance
procura evidenciar discursos presentes em outros textos não canônicos que
se sobrepõe à exaltação, tanto do lado brasileiro, quanto do lado peruano do
discurso de “abrir caminho na selva para levar a civilização aos indígenas” (Pizarro, 2012, p.134). Nesse percurso narrativo hegemônico, foram agregados
símbolos pátrios, em base a conceitos como “civilização”, “progresso”, “peruanidade”. Seus personagens históricos, devido à conquista de novos espaços para
a nação, foram chamados de “aqueles valorosos bandeirantes amazônicos, uma
vez que repetiam a ação de dominação colonial interna realizada pelos bandeirantes paulistas no século XVI”, como salienta Ana Pizarro (2012, p.135).
Dessa forma, a narrativa traz à cena a região amazônica e denuncia o
conflito territorial promovido pelo extrativismo baseado em um sistema pré109
-capitalista ou colonial. A visão unilateral desse processo desconsiderou por
muito tempo a diáspora Huni kuin, a qual foi acentuada com a época áurea
da extração do produto gomífero (1879-1912) e perdura na atualidade nas
disputas relacionadas à questão agrária (Camargo; Villar, 2013, p.19). As frentes extrativistas forçaram os Huni kuin, que habitavam o Alto do Juruá, nos
afluentes do Envira, Muru, Humaitá e principalmente o Iboiçu, a migrarem
para outras regiões, como o Envira, Jordão e para o alto Rio Curanja (Peru),
como única forma de sobrevivência.
Essa dimensão histórica, assumida no romance pela ótica das margens, é
realizada por meio do diálogo com “textos com informantes indígenas”. Como
é o caso da obra Rã-txa hu-ni-ku-ĩ: Gramática, textos e vocabulários caxinauás”,
de João Capistrano de Abreu, conforme já mencionamos.
De acordo com Martin Lienhard (1995, p. 177-178), de forma geral,
muitos desses textos apresentam manipulações ideológicas das intenções do
informante. Outras vezes pode conter um discurso “indígena”, suscitado pelas
perguntas do transcritor (antropólogo, eclesiástico, linguista), ou ainda focalizar a transcrição das tradições orais “internas”, isto é, contadas “de” e “para”
a comunidade. Na maioria dos casos os informantes não possuem qualquer
controle sobre a recepção da mensagem, ainda assim Lienhard considera que
esses textos se relacionam com uma textualidade ameríndia.
Rã-txa hu-ni-ku-ĩ foi produzida a partir dos informantes Borô e Tuxinim, os quais viajaram do Acre para o Ceará e Rio de Janeiro e foram considerados pelo historiador como coautores de sua obra. É dessa textualidade que
identificamos como parte central do drama de Yarina a reelaboração de uma
história transcrita por Capistrano de Abreu nomeada “Permuta de um cachorro”, contada por Tuxinim.
A troca de uma mulher por um cachorro, presente dos brancos, é a base
sobre a qual o romance insere a subjetividade da personagem indígena, duplamente esquecida e objetificada nos discursos dominantes. A violência eminente
no destino de Yarina e sua família é gestada por um presente dos brancos a
Xumani, o cachorro Tsima. Prometida para casar-se com seu tio Kue, Xumani
negocia Yarina por seu cachorro Tsima. No entanto, o cachorro não aceita a mu110
dança e retorna sempre ao antigo dono. Isso se torna o motivo da disputa entre
os dois homens, resultando no assassinato de Kue por Xumani, que na sequência
foge. Esse momento de discórdia interna se agrava com as invasões de caucheiros peruanos e dos homens do personagem histórico Felizardo Avelino de Cerqueira, o “amansador de índios bravios” como ficou conhecido na região à época.
Assim, a narrativa inscreve os indígenas como sujeitos históricos e contemporâneos das práticas colonizadoras que pretendeu apagá-los e os restringiu por meio de diferentes estratégias discursivas à barbárie. Yarina testemunha o momento da chegada dos nawa, o que lhe provoca pavor, mas ao mesmo
tempo desperta sua curiosidade por conhecer o mundo do Outro que desembarca nos territórios Huni kuin através da “casa acanoada”, conforme a protagonista denomina os barcos a vapor que transportavam pessoas e mercadorias.
Essa violência é contornada no bordado de Yarina, entre outras estratégias, pela ficcionalização de Felizardo Cerqueira. No subcapítulo “tanái, marcar”, o romance opera de maneira mais delineada a ficcionalização de Felizardo
e sua liderança nas “correrias”, verdadeiras caçadas aos indígenas para garantir
a mão de obra na empresa seringalista. Nesse contexto, Felizardo Cerqueira
usou de certas astúcias para “amansar” ou “catequisar” os “índios bravos”, conforme os termos usados na época. Entre suas principais práticas estava a de
aproveitar-se das rivalidades entre as diferentes etnias para que um grupo o
ajudasse no combate de outro (Iglesias, 2010, p. 268).
Felizardo, contudo, ficou conhecido entre os indígenas da região pela
prática de marcá-los a ferro com as suas iniciais. O discurso literário nos impele a um olhar mais crítico sobre a violência sofrida pelos Huni kuin: “Felizardo marca a pele de nossos varões com ferro quente, marca o nome dele,
para dizer quem é sujeitado, será?” (Miranda, 2009, p. 67). A ação despiedada
comandada por Felizardo em benefício de patrões seringalistas seria historicamente recompensada graças a sua incorporação à Comissão Mista Brasil-Peru,
demarcadora de limites em 1923-24, financiada pelo Governo Federal, que
reconheceu os méritos dos seus serviços (Iglesias, 2010, p. 283).
Além das “correrias”, o romance registra a extração de mulheres pelos
regatões, famosas figuras no sistema de exploração gomífera, em muitos casos
111
imigrantes árabes. A narradora relata a cobiça do regatão Bonifácio por sua
irmã, que logo depois desaparece: “[...] o regatão Bonifácio queria levar minha
irmã, queria comprar minha irmã, mas avô Apon não deixou, pai não deixou,
o regatão queria roubar e sujeitar minha irmã, queria minha irmã [...] será se o
regatão roubou minha irmã? [...]” (Miranda, 2009, p. 74).
A irmã Pupila, entre outras indígenas, é levada à força de sua comunidade para trabalhar para os patrões brasileiros, conforme Yarina narra:
[...] o regatão tirava da mata as nossas mulheres com a boca amarrada, com um
pau amarrado na boca, para mode elas não morderem, as mulheres iam trabalhar para os patrões cariús, iam se sujeitar, passava, o dia descascando macaxeira,
cozinhando, limpando, varrendo, lavando [...] (Miranda, 2009, p. 76).
O leitor atento pode contextualizar nesse excerto a eufêmica expressão
nacional da “avó pega no laço”, que traduz o momento, repetido em muitas
outras circunstâncias históricas, no qual a mulher é vencida, dominada e disciplinada (Segato, 2021, p. 17). Esse é o momento da perda do espaço comunal,
que abriga a atuação das mulheres em conexão com os valores e a política de
sua comunidade, para o espaço privado. Nesse âmbito, ela é exposta a vulnerabilidade, a fragilidade e a letalidade conhecida e incrementada até o presente
(Segato, 2021, p. 19). É, portanto, essa engrenagem de esvaziamento das potencialidades políticas das mulheres que a personagem enfrenta.
Nessa direção, a ação missionária desencadeada pela extração da borracha, presente nas produções sobre o ciclo (Lima, 2009, p. 161), também é
representada em Yuxin pela personagem do padre francês Chardin. Na trama,
após ser encontrada por Andere, o regatão, Yarina é entregue na colocação de
Redenção aos cuidados dos padres missionários.
O domínio do padre ou da missão católica revela a existência de
outro tipo de violência. Da mesma maneira que Felizardo marca e territorializa os corpos, no sentido de delimitar seu poder sobre eles, o missionário francês o faz no plano espiritual. Padre Chardin se dedica a converter
outras mulheres capturadas. Nas primeiras conversas, o padre “[que] sabia
um pouco da minha fala, perguntou meu nome, perguntou minha aldeia,
112
perguntou meu tuxaua, eu disse Hantxa huni kuin”. Em uma inversão de
perspectiva histórica, a personagem descreve sua descoberta do Outro (os
cairiús, os brasileiros) e nos aponta de forma reveladora as táticas de subjugação baseadas na abrupta perda de vínculos, da sociabilidade de bens
simbólicos comunais e da percepção de suas origens:
As saias das cariús são sozinhas, sem luz, dormem pretas, as cariús não têm
colares, as cariús não têm braceletes, as cariús não têm narigueiras, as cariús
não têm caneleiras, as cariús só comem farinha, as cariús são pobres, senti
dó das brasileiras, aquelas, diferentes das brasileiras da casa acanoada, de
luvas, leque [...] naquela Redenção elas eram tão pobres [...] as cariús não
queriam conversar, nem dar presentes, ficavam olhando para mim, eu ficava
olhando para elas, umas eram gente da mata, muitas, quase todas, só as
irmãs não eram gente das matas (Miranda, 2009, p. 304).
As brasileiras são a “gente da mata” desposadas dos objetos e símbolos
da cultura de origem, como se pode constatar nessa passagem. Isso justifica
o olhar crítico de Yarina, que reforça a ironia entre o topônimo Redenção e
a abjeção da condição humana vivida nesse aldeamento. O discurso literário
indica que viver o ideal de redenção cristã representa a pobreza física e espiritual, o desenraizamento e a solidão para os indígenas. De fato, a ação missionária ocupa uma função necessária ao capital, pois transforma essas mulheres
desprendidas de seus vínculos comunitários em mercadoria para o trabalho
doméstico e recluso nas casas de famílias abastadas.
O padre prossegue na conquista da alma de Yarina e a batiza com o
nome de Madia, diminutivo de Madalena. No entanto, Yarina não pode ser a
Madalena cristã desejada pelo padre, já que o sentimento de culpa original não
existe na sua cultura. Durante sua estadia em Redenção, Yarina passa a habitar
uma perigosa fronteira afetada pela desterritorialização de sua comunidade.
Dessa forma, passa a ver e conviver com os yuxins de forma ameaçadora.
Essas entidades, segundo a antropóloga Else Lagrou (2002, p.49), são
“seres indefinidos e mutáveis desprovidos de um corpo sólido, mas dotados da
capacidade de produzir imagens e aparições que amedrontam e confundem os
113
humanos”. Como esses seres também são responsáveis por provocar a perda de
orientação e a capacidade de retornar ao mundo conhecido, conforme Lagrou
(2002, p. 50), isso explica simbolicamente a perda do centro norteador, obrigando quem as vê a viver na porosa zona entre o mundo conhecido e o mundo
desconhecido. Esse ponto de tensão é atingido no distanciamento da família,
quando os yuxin da avó morta, que tudo sabe e tudo vê, atormentam Yarina.
Logo após, porém, o pai consegue encontrá-la e levá-la para morar em um
novo lugar: “do lado de lá, onde não tinha mais seringas, para lá de lá de lá de
lá do Curanja” (Miranda, 2009, p. 321).
Outra ressignificação importante que encontramos em Yuxin, Alma é
a forma como a relação entre os indígenas e com os nawa (branco) é representada. Ao contrário da visão reduzida, estereotipada e maniqueísta de romances sobre o ciclo da borracha, por exemplo, ela é posta de forma dinâmica.
Ao princípio, quando a protagonista ainda vive com sua família, seus parentes
desenvolvem estratégias para estabelecer uma relação com os invasores. Avô
Apon realiza trocas de peles de animais, borracha e outras mercadorias, conforme lemos: “vai longe trocar novelos de linha, tecidos, peles, salsaparrilha,
borracha, por terçados, facas, machados, chumbo, pólvora, espoleta, ele gosta
do dinheiro dos cariús, gosta da comida dos cariús e duas espingardas, vive
mercando mais os regatões” (Miranda, 2009, p. 185-186).
À medida que os ataques se tornam intensos, o romance também aponta
para a resistência dos Huni kuin, a qual esbarra na desigualdade armamentista
dos conflitos: “antes nestas matas mandavam os tuxuaus, agora maior é a força
dos rifles, mandam o rifle e a carabina mais que o tuxuaua” (Miranda, 2009, p.72).
Nesse sentido, as mãos da protagonista não podem desfazer os pontos mal feitos
do tecido, porém revelam por meio da experiência feminina a história que marcou
a pele de indígenas: “minhas mão têm duas almas, uma brava e outra mansa, tudo
tem do brabo e do manso, a pessoa mais braba é Felizardo” (Miranda, 2009, p. 67).
A dicotomia manso/bravo utilizada pelos “amansadores” para classificar e submeter às populações indígenas é desmontada e reconstruída através
das fissuras do discurso hegemônico masculino. Assim, a personagem de Ana
Miranda, não relativiza, nem torna especular a dicotomia excludente manso/
114
bravo. Isto, porque, no universo simbólico tecido, o pertencimento a uma das
metades depende do ponto de vista que se adota e é de caráter complementar
e mutável: “rio existe manso e brabo, um mesmo rio fica manso na seca, depois
fica brabo na alagação, que nem Xumani, ele ficava brabo, ficava manso, fica
bravo, depois fica manso” (Miranda, 2009, p. 69).
Outro ponto importante da representação ficcional de Ana Miranda,
contrária a uma visão essencialista do mundo indígena, está colocado na construção de gênero (sexual), ou seja, na ruptura de papéis fixos desempenhados
por homens e mulheres e em regras sociais tomadas como estáticas. Yarina decide com quem se casar, luta pela sua sobrevivência e, sobretudo, deseja conhecer outros mundos. Sua curiosidade de ir longe, de voar como passarinho, de
tocar a flecha, de indagar sobre a natureza e a ordem da comunidade desmonta
um estereótipo comunitário engessado e, assim, mostrá-lo em sua vivacidade,
flexibilidade e diferenças.
Nos fios do diálogo intertextual com o sistema literário indígena está a
elaboração da linguagem de Yarina. Língua audaz e poética que, para além da
identificação com a sintaxe dos textos que a alimentam, perturba a hegemonia
da língua portuguesa. A complexidade das línguas indígenas é enfrentada no
belo diálogo que Ana Miranda alcança orquestrar, ao escutar as vozes e timbres
desse sistema literário, não o reduzindo a aspectos apenas temáticos.
Dessa forma, o romance propõe um modo diferenciado de leitura que
desborda a especificidade da materialidade e linearidade literária. A construção de uma linguagem que prima por recursos sonoros e uma sintaxe
particular – incorporação de aspectos da língua Hãtxa kuin –, além do entrecruzamento com outras linguagens (desenho, cartografia, música) e o diálogo
com os discursos histórico, antropológico, religioso e mítico apontam para
certos procedimentos artísticos, conjugados com as textualidades do sistema
indígena (dança, música, oralidade, ritual, arte gráfica). Mas, principalmente,
incorporar uma visão de mundo não binária com a intenção de denunciar o
massacre sofrido pelos indígenas.
Em Yuxin, a dicção da narradora baliza uma escrita performativa. Por
esse prisma, o discurso literário se oferece, segundo Graziela Ravetti (2002, p.
115
51), “como canal de novos processos cognitivos, preso à constatação do princípio da instabilidade do conhecimento e à necessidade de sair da rigidez de
raciocínios tradicionais”. Portanto, além da perspectiva dos saberes letrados,
a escrita performática repercute os conhecimentos de um corpo individual e
comunitário que viveu a experiência traumática da dominação e exploração
econômica colonialista, mas que sobrevive dando testemunho de práticas de
linguagens insubmissas à lógica patriarcal e ocidental.
Essa dimensão se expande com o trabalho musical em CD, criado sobre os textos de Ana Miranda, que acompanha o romance, em parceria com a
compositora e cantora Marlui Miranda, sua irmã. Reconhecida como uma das
mais importantes intérpretes e pesquisadoras da música indígena no Brasil. O
álbum Yuxin, Alma é fruto dessa trajetória de parceria e aprendizado com diferentes comunidades indígenas da Amazônia e o diálogo que estabelece com
a linguagem do romance, nas catorze faixas, fazem pulsar não apenas a sonoridade e o timbre das práticas musicais ancestrais, mas todos os sentidos que
a percepção do cosmos ativa e na qual se insere Yarina e sua linguagem kene.
Assim, o resultado dessas apostas de reinvenção do passado apresentadas traduz uma postura intelectual comprometida com o deslocamento de
certas perspectivas hegemônicas. Nesse prisma, convém lembrarmo-nos que
um dos exercícios do poder e dominação mais eficaz, no contexto histórico
da América-Latina, foi a capacidade de impor o monolinguismo e registrar
por meio da escrita as ações e atos dos sujeitos colonizadores. Um poderoso
mecanismo que alcançou suplantar grande parte das culturas orais indígenas.
O romance em questão, através da riqueza das formas e meios propostos pela narrativa e pelo poder de representar a voz do Outro, outorgado pela
escrita literária, nos coloca na perspectiva do outro. Conforme analisa Fleck
(2017, p. 57), no contexto latino-americano a escrita assume o gesto descolonial, pois o escritor comprometido com sua realidade se serve das mesmas
ferramentas da subjugação para produzir o efeito contrário. A escrita ficcional
de Ana Miranda se mostra consciente da vigência dessa prática de dominação e atua como um agente descolonizador. A escrita utiliza como antídoto o
próprio veneno, usado tradicionalmente para silenciar e apagar outros saberes
116
e práticas do corpo e nos aproxima de outras epistemologias. Se por um lado,
esse exercício é, evidentemente, muito mais significativo, quando usado pelas
parcelas subjugadas que não foram representadas, por outro, promove a descolonização da representação do Outro ao questioná-la (Fleck, 2017, p. 127).
A rememoração do passado individual, em uma trama que acentua os tons de singularidade e subjetividade da protagonista, ao mesmo
tempo em que narra e (re)atualiza a multiplicidade da herança cultural e
coletiva, faz do canto-bordado a expressão de uma experiência de resistência, desejo e imaginação.
A floresta da narrativa de Miranda é um grande tecido, é feminina,
ultrapassa fronteiras cartográficas impostas pela ideologia patriarcal e nacionalista. Essa construção é intensificada na tentativa de ir para além da forma
rígida e pétrea das palavras e nos convidar a sentir e ouvir a história do Outro,
através da musicalização de partes do romance. Esse é, sem dúvida, um importante elemento que conecta as diferentes dimensões do texto.
Dessa maneira, a temática central da chamada “ficções do ciclo da borracha” é relida a partir da prática feminina indígena, “um ponto aqui, um ponto
acolá”. O bordar é a metáfora da escrita em sua relação com o artesanal, duas
marcas importantes da identidade Kaxinawa, a cosmogonia dos desenhos bordados e a transmissão oral da memória coletiva, comprometida pelas estratégias colonialista que esfacelam as relações compartilhadas o que põe em perigo
o fluir da memória pela voz humana.
O processo estético de revalorização do mito na conjunção entre história e ficção apresenta uma abordagem diversificada no romance histórico
na obra de Ana Miranda, que enriquece, sem sombra de dúvidas, a escritura
de autoria feminina. Por meio do fio do bordado kene, do mito da mulher
tecelã, que tem o poder de transformar sua história de encobrimento em
posicionamento transgressor, convida o leitor a fiar e desfiar em uma atitude ativa a inter-relação da mulher com os discursos de formação de uma
região, que devido aos processos históricos cíclicos de exploração econômica
e missionária ainda tem sua diversidade natural e cultural ameaçadas, antes
mesmo de um maior conhecimento.
117
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119
UM MERGULHO NAS ÁGUAS DE ÓRFÃOS DO ELDORADO E TERRA SONÂMBULA1
Andréa Moraes da Costa
Greicilaine Agostinho Martins
Jacimara Nascimento Von Dollmger
INTRODUÇÃO
O mar será tua cura, continuou o velho. A terra está
carregada das leis, mandos e desmandos. O mar não tem
governador. Mas cuidado, filho, a pessoa não mora no mar.
Mesmo teu pai que sempre andou no mar: a casa onde o
espírito dele vem descansar fica em terra.
– Vais encontrar alguém que te vai convidar para morar
no mar. Cuidado, meu filho, só mora no mar quem é mar
(Couto, 2010, p. 31)
Os estudos literários, amparados pelos Estudos Comparados, têm cada
vez mais ocupado espaços de destaque no âmbito das pesquisas acadêmicas.
Em grande parte, isso se deve à globalização e às possibilidades advindas desse
movimento, pois, a partir do encurtamento dos espaços, patrocinado pela globalização, a aproximação de distintas culturas tem se tornado um fato. A literatura, por sua vez, acompanhando a trajetória da humanidade, nesse processo
de globalização, registra tal fato sob diversos aspectos, percorrendo diversas
temáticas que fornecem subsídios para a elaboração de suas narrativas. Por isso,
o contato com a literatura, dentre outras possibilidades, auxilia-nos a compreender o mundo em um plano histórico em que paisagens e eventos refletem na
formação do sujeito. Pode-se pensar, então, na possibilidade de alargamento
1
Pesquisa resultante dos estudos desenvolvidos a partir do projeto de pesquisa Milton Hatoum
e Mia Couto: diálogos entre duas narrativas literárias vinculado ao Programa de Mestrado Acadêmico em Letras, na Área de Estudos Literários – PPGMEL – da Fundação Universidade
Federal de Rondônia – UNIR.
120
dessa compreensão quando duas ou mais culturas são postas lado a lado, por
meio do cotejamento literário.
Nesse viés, esta discussão embasa-se em pressupostos que compreendem que quando o sujeito tem a possibilidade de conhecimento de cultura(s)
distinta(s), ele aciona a abertura de caminhos para ampliar o entendimento
sobre sua própria cultura. Daí a relevância de trazer, para círculos de discussões
acadêmicas científicas, pontos para debates que contemplem estudos comparatistas, cercando a ideia de compreensão cultural e não a do estabelecimento
de vantagens ou desvantagens entre culturas ou de estímulo a inferências de
poder entre nações, por exemplo.
Pensar em estudos comparados no sentido pretendido pela pesquisa implica em buscar auxílio em outras áreas do conhecimento, como por exemplo
a Sociologia, a Linguística, os Estudos Culturais, dentre outras, pois o campo
da Literatura Comparada constitui-se como um campo interdisciplinar. Como
destaca Benjamin Abdala Junior (2014, p. 14), “a literatura é situada, nessa
perspectiva dos estudos comparados, como um campo do conhecimento híbrido, afim das áreas de Humanidades, em que se descortinam o que nos falta e os
sonhos prospectivos da vida social”. Portanto, a importância de propormos um
debate com a configuração aqui proposta, que permite a discussão de temáticas oriundas das narrativas literárias, ultrapassando o universo formal, ganha
relevo ao tempo em que atenta para questões sociais.
Nesse sentido, vale notar que no cerne desta proposta se encontra a
investigação de temáticas de narrativas de duas culturas distintas – a amazonense e a moçambicana –, na tentativa de compreender como tais temáticas
afetam a vida dos sujeitos. Igualmente, vale observar que a escolha dos dois
objetos desta pesquisa envolvendo essas duas culturas é estimulada também
pela convicção de que é preciso partir de uma dinâmica que, primeiramente,
contemple o conhecimento do contexto local para depois emergir para uma
contextualização em uma esfera global.
É preciso mencionar ainda que as reflexões fruto de estudos, como o
intencionado aqui, que se apoiam na arte para entender a vida, ganham mais
sabor, ganham agradáveis matizes, pois a arte traz consigo a imaginação, o
121
sonho, semelhante ao que ocorre em Órfãos do Eldorado (2008) e Terra sonâmbula (1992), universos recheados de sonhos, fantasias e esperanças.
À vista disso, esta discussão conta com as referidas obras como objetos
de estudo, sendo a primeira de autoria do amazonense Milton Hatoum, e a
segunda assinada pelo escritor moçambicano Mia Couto. A investigação proposta, que tem em seu núcleo essas duas narrativas, tem caráter crítico-reflexivo e seu aporte teórico será alicerçado em discussões acerca do comparatismo
literário, sustentadas pela Literatura Comparada, contando ainda com métodos científicos, procurando encontrar resposta para a questão condutora deste
estudo: como a presença das águas – considerando o rio e o mar – afeta a vida
dos personagens centrais dessas obras?
Em Órfãos do Eldorado as águas do rio Amazonas simbolizam o apogeu da riqueza dos Cordovil seguida por sua falência financeira, o mítico e o
mistério, afetando diretamente a vida de Arminto, Dinaura, Florita e demais
personagens. Nas águas que permeiam essa narrativa de Hatoum foi possível
vislumbrar a riqueza obtida através dos cargueiros, o declínio por meio de um
naufrágio, o mítico correlacionado às lendas e a loucura da procura em ocasião
do sumiço da personagem Dinaura.
Em Terra sonâmbula, no que lhe concerne, as águas do mar refletem a
fuga de uma dura realidade de sequidão provocada pela guerra nas vidas dos
personagens e em especial de Kindzu e Farida, que buscam um sentido para as
suas existências. Esses personagens, assim como as ondas do mar, ora mansas,
ora revoltas, anseiam por dias melhores e se apegam em suas crenças, e o mar
nessa obra representa o ponto de partida.
As águas percorrendo a literatura de Milton Hatoum e Mia Couto
As águas, muito presentes na literatura como símbolo de constante
transformação e purificação, alimentam o imaginário dos leitores e exercem
grande impacto na jornada dos personagens ficcionais. Aqui é produtivo lembrar as palavras do filósofo Heráclito de Eféso (540-470 a.C.), quando enfatiza que “tudo flui e nada permanece” (Heráclito, 1973). Essa assertiva pode
122
nos ajudar a elucidar a questão das águas percorrendo a literatura; afluentes
constantes, como retrato da história cultural da humanidade, marcada por processos contínuos de transformação.
O rio, com suas doces e calmas águas, por vezes, agitadas pelas encantarias, mitos e a força do sobrenatural em Órfãos do Eldorado e as águas do mar,
às vezes mansas, às vezes enigmáticas, em Terra sonâmbula estabelecem uma
relação entre os personagens dessas narrativas, construindo em cada uma delas
o seu próprio ritmo.
As águas, um símbolo cultural com diversas camadas significativas, fazem-se presente nessas obras, refletindo mistérios, ousadias, medos, alegrias,
farturas, angústias, mortes, procuras, rituais, simbolizando os processos culturais contínuos ao longo do desenvolvimento de ambos os enredos.
Na Amazônia, as águas afluentes rememoram aspectos culturais marcados pela relevância dos mitos, lendas e contos que apresentam as águas dos rios
amazônicos as quais asseguram a subsistência dos povos locais. Não é em vão
que uma das lendas que se destaca em Órfãos do Eldorado seja a da Cidade Encantada submersa nas águas. O mito do Eldorado consiste em uma das variações possíveis da Cidade Encantada, que recebe especial atenção em Órfãos do
Eldorado, evocando uma espécie de fuga da realidade por parte não só daqueles
que habitam as terras da Amazônia, mas também daqueles que se aventuram,
em busca de ideais de vida incluindo riqueza e bem-estar pessoal ou coletivo.
No caso de Terra sonâmbula, as águas constituem os espaços onde se exercem os rituais, danças e crenças africanas, além das muitas aspirações e desejos de
uma vida melhor para os indivíduos presentes naquele contexto cultural.
Mesmo navegando por águas distintas, tendo em vista essas duas obras –
Hatoum em seu percurso literário pelas águas doces dos rios amazônicos e Mia
Couto adentrando as águas salgadas dos mares moçambicanos em sua jornada
literária –, esses autores envolvem e evidenciam o significado da expressão cultural de suas localidades e suas respectivas situações históricas, tendo a simbologia
das águas como um de seus principais motes em suas narrativas.
Sobre essa questão, em uma de suas entrevistas, Hatoum ressalta a
importância das águas no âmbito da literário. O autor considera que “a água é
123
uma fonte primordial e mítica da literatura, não só do Ocidente, mas da África,
dos povos indígenas com a origem do mundo e a morte, na literatura grega, a
morte e o naufrágio, e mesmo a escravização de pessoas” (Hatoum, 2021).
Não só a presença da água na literatura é percebida e descrita por Hatoum, pois ele traz ao debate também a sua ausência ao destacar a aridez do
sertão, tantas vezes retratada na literatura brasileira, mencionando a obra de
Graciliano Ramos como exemplo recorrente nesse sentido (Hatoum, 2021).
É justamente essa aridez que fez com que homens da caatinga se deslocassem
para a Amazônia, intitulada por Hatoum (2021) como “pátria d’água” para
viver o Eldorado durante o período do Ciclo da Borracha.
Adiante, Hatoum (2021) frisa a importância da água em sua vida, especialmente quando se mudou para Brasília, onde o lago Paranoá era seu lugar de
reencontro como uma espécie de rio de sua memória, circunstância pessoal que
reflete seu personagem Arminto que retrata de forma ficcional o próprio autor,
pois ao contemplar as águas do rio Amazonas, o personagem tece a memória
de sua história em Órfãos do Eldorado fazendo fluir a palavra.
Mia Couto, por seu turno, em seu primeiro livro intitulado Terra sonâmbula, publicado em 1992, resgata a tradição cultural moçambicana, nas
palavras de Elena Brugioni (2019, p. 173-175 grifos da autora), edificando o
“projeto nacional” com sua escrita balizada por uma proposta em que se destaca
a “ambiguidade funcional e simbólica da língua portuguesa no contexto social,
cultural e político” de Moçambique.
Formado em Biologia, com especialidade em ecologia, Mia Couto foi
responsável pela preservação da reserva natural da Ilha de Inhaca. Em sua literatura, muitas são as passagens em que o autor chama a natureza para clamar
pela preservação do meio ambiente, colocando a água ao centro desta questão.
Com isso, é possível perceber que o autor compreende e valoriza a ideia de
que “nascemos nesse embalo da água, estamos dentro de um ventre, que está
rodeado de água” (Viel, 2020, p. 106).
Diante disso, a seguir, voltamo-nos para as águas na literatura, explorando esta temática a partir da obra Órfãos do Eldorado e, na sequência, de
Terra sonâmbula, destacando passagens significativas em que a água apresenta
124
forte simbologia nesses universos narrativos, quer seja pela influência que ela
exerce sobre seus enredos, quer seja pela representatividade que ela exerce na
vida de seus personagens.
Órfãos do Eldorado: nas águas do rio Amazonas
Órfãos do Eldorado faz parte de uma coletânea de mitos encomendada
pela editora escocesa Canongate, com o propósito de compor a coleção Myths,
com a participação de dezesseis escritores de nacionalidades distintas. No Brasil, essa obra foi publicada pela editora Companhia das Letras e contém cento
e sete páginas. A história gira em torno do conflito entre Amando e seu filho,
Arminto, que nutre amor obstinado por Dinaura, uma menina órfã. Após conhecê-la, a mesma desgraça que gradativamente recobre a região Amazônica
– o declínio da borracha – toma conta da vida de Arminto.
Convém registrar que essa referência histórica, o Ciclo da Borracha
na Amazônia, é significativa para o desenvolvimento do enredo de Órfãos do
Eldorado, sendo necessária sua compreensão, para que, por conseguinte, seja
possível relacionar tal referência aos acontecimentos presentes nessa narrativa.
No que diz respeito à esta questão, destacamos que:
[...] a própria empresa de Amando trabalhava com o látex, logo, a prosperidade da família Cordovil, assim como a de Manaus, estava diretamente
ligada às oscilações econômicas geradas pelo mercado da borracha. Nesse
sentido, o apogeu do primeiro Ciclo da Borracha, ocorrido no início do século XX, promoveu grandes mudanças em cidades portuárias como Manaus
e Belém, que se desenvolveram e ganharam modernas instalações. Além
disso, grandes inventos estavam em destaque, tais como cinema, rádio, luz
elétrica, telefone, bem como automóveis e grandes obras arquitetônicas que
foram levadas a estas cidades durante este período (Costa, 2016, p. 78).
Essa ocorrência desencadeará vários acontecimentos que marcarão dramaticamente a vida do narrador personagem em Órfãos do Eldorado, pois o
referido apogeu, em virtude do primeiro Ciclo da Borracha, enfrenta severo
declínio refletido na vida da família Cordovil no curso de sua estória. Como
125
parte do jogo narrativo hatouniano, podemos conferir nessa obra conflitos decorrentes, por exemplo, desse declínio, além das frequentes referências aos mitos amazônicos e à própria natureza dessa região.
No que tange à essa última, apontamos para a presença do rio que se faz
presente em momentos marcantes da narrativa em pauta. A água proveniente do
rio, em Órfãos do Eldorado, é fonte de vida, de prosperidade, de riqueza e cenário
de muitas lendas. É à beira do rio que Arminto inicia as alusões a suas memórias.
A exemplo disso, referenciamos o excerto a seguir em que o protagonista rememora os tempos em que Florita lhe contava sobre as lendas amazônicas:
A voz da mulher atraiu tanta gente, que fugi da casa de meu professor e fui
para a beira do Amazonas. Uma índia, uma das tapuias da cidade, falava e
apontava para o rio. Não lembro o desenho da pintura no rosto dela; a cor
dos traços sim: vermelha, sumo do urucum. Na tarde úmida, um arco-íris
parecia uma serpente abraçando o céu e a água (Hatoum, 2008, p. 11).
As lendas suscitam histórias fantásticas e, nessa escrita de Hatoum, uma
delas é referente a Dinaura, o grande amor de Arminto, envolta na lenda da
Cidade Encantada, uma cidade submersa em um daqueles rios amazônicos
que traz consigo o ideal de uma vida perfeita, conforme podemos verificar
neste excerto em que o narrador faz alusão à essa lenda:
Muitos nativos e ribeirinhos da Amazônia acreditavam – e ainda acreditam
– que no fundo de um rio ou lago existe uma cidade rica, esplêndida, exemplo de harmonia e justiça social, onde as pessoas vivem como seres encantados. Elas são seduzidas e levadas para o fundo do rio por seres das águas
ou da floresta [...], e só voltam ao nosso mundo com a intermediação de um
pajé, cujo corpo ou espírito tem o poder de viajar para a Cidade Encantada
[...] (Hatoum, 2008, p.105-106).
Essa busca pela riqueza e a idealização de um local perfeito fomentou
o imaginário humano tendo ao centro a imagem do Eldorado, conforme descreve Leandro Tocantins:
126
A procura de metais preciosos criou-se histórias fantásticas, como aquela
do Eldorado, reino onde o príncipe banhava-se em pó de ouro. Localizar
esse país lendário passou a ser uma obsessão, como sempre o foi em outros
lugares em que a idéia-força, representada pelo mito, motivou a descoberta
geográfica e jamais a do mundo de coisas ilusórias criadas pelas idealizações
coletivas (Tocantins, 2000, p. 41).
Tal empreendimento em busca de fortuna motivou diversos aventureiros a perseguir o Eldorado “em vão nas florestas e nas águas do Amazonas e do
Orinoco”, como registra Eduardo Galeano (2016, p. 33). Nessa configuração
as águas surgem como um meio de atingir o sonho, “a quimera do ‘monte que
manava prata’”, empregando as palavras de Galeano (2016, p. 33), mas que não
se concretizam, causando a frustração de muitos membros de expedições que
se lançavam a procura dos “metais preciosos”, mencionados por Tocantins.
Em Órfãos do Eldorado, as águas estão relacionadas a aspectos oníricos
de um futuro, de esperança, crenças e expectativas dos personagens. A título
de ilustração, observamos que Arminto deixa-se envolver por esses aspectos e,
ao revisitar suas memórias, menciona traumas vividos – como o conflito com o
pai –, mas também sua esperança de reencontrar Dinaura, informar desaparecida após sua primeira noite de amor com a jovem.
A relação entre pai e filho após a morte da mãe ocasionou a ruína dos
sentimentos do pai em relação a Arminto. Ao passo que o sumiço de Dinaura
ocasionou o dilaceramento de seu coração por não conseguir concretizar o
desejo de tê-la consigo, solidificando o amor que nutria pela órfã. A moça
fora “atraída por um encanto”, cogitavam que ela estaria na condição de “cativa
de um desses bichos terríveis que atraem mulheres para o fundo das águas. E
descreviam o lugar onde ela morava: uma cidade que brilhava de tanto ouro e
luz, com ruas e praças bonitas” (Hatoum, 2008, p. 64).
As águas, portanto, têm o poder de trazer à tona as memórias de Arminto, exercendo impacto significativo em sua vida, sendo que o mesmo rio
que dispara sua memória (Hatoum, 2008, p. 14), levando-o a recontar o seu
127
passado e sua trajetória, surge também como protagonista de seus infortúnios.
Para além do infortúnio do desaparecimento de Dinaura, vemos que tanto a
riqueza quanto o declínio dos Cordovil ocorreram tendo como palco o rio
Amazonas. Arminto, por exemplo, herdou do pai uma fortuna construída por
cargueiros de embarcação, que após um naufrágio levou a vida do herdeiro a
um declínio, de modo que o que ocorreu com a embarcação sucedeu com o
personagem, ou seja, Arminto teve sua vida afundada.
O seguinte excerto registra o episódio envolvendo a perda da embarcação, início dos infortúnios dos Cordovil:
Mas a pior notícia chegou num telegrama do gerente da empresa: Naufrágio
Eldorado no Pará. Venha para Manaus com urgência. Os rumores no porto
eram desencontrados. Diziam que o comandante do Eldorado estava bêbado; que ele tinha desviado a rota para ver uma amante em São Francisco da
Jararaca; que a chuva e o excesso de carga tinham provocado o acidente. O
comandante de um navio da Ligure Brasiliana me deu uma informação mais
exata: colisão com banco de areia, na ponta da ilha do Caim, entre Curralinho
e o Farol do Camaleão, lá pró lado de Breves, no Baixo Amazonas. Perda total
da carga e da embarcação. Soube que, na taberna dos Viajantes, a família de
Genesino Adel comemorou o naufrágio (Hatoum, 2008, p. 53-54).
O declínio, provocado por esse episódio, afeta diferentes áreas da vida
de Arminto. Há um declínio em sua vida financeira e o mesmo ocorre, nas
páginas seguintes, em sua vida sentimental. Ao que consta, o abalo emocional
com o sumiço de Dinaura causou maiores estragos, fato que o impulsionou a
tomar medidas em busca de sua amada, colocando práticos no rio em busca de
seu paradeiro, situação que não ocorreu quando soube da perda de sua fortuna,
pois manteve-se inerte.
Vejamos a passagem em que isso se confirma no discurso de Florita, no
qual ela contesta a insistente procura por Dinaura:
Florita não falava sério, mas me convenceu de que Dinaura não estava em
Vila Bela. Então chamei Joaquim Roso e Ulisses Tupi. E contra a minha
vontade, Denísio Cão. Esses práticos conheciam remansos e furos escondi128
dos e, de tanto conviver com índios e ribeirinhos, entendiam a língua geral.
Quando Florita viu os três barcos no meio do Amazonas, disse: Tudo isso
por uma mulher que te largou? (Hatoum, 2008, p. 62).
Os barqueiros contratados por Arminto percorreram a extensão do rio,
porém, nada trouxeram sobre o paradeiro de Dinaura, apenas lendas e histórias de meninas abusadas. O que causou indignação por parte de Arminto que
não se aquietou com evasivas e prosseguiu com o firme intento de buscar por
seu paradeiro, pois “jurou que Dinaura estava viva, mas não no nosso mundo”,
alimentava a ideia de que sua amada “morava na cidade encantada, com regalias de rainha, mas era uma mulher infeliz” (Hatoum, 2008, p. 64). As águas
a teriam levado às profundezas da infelicidade, separando-os cada vez mais à
medida que o tempo transcorria.
Dessa vez, o tempo já havia passado, conforme a proposição de Heráclito
(540-470 a.C.), “Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando
nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se
modificou” (Heráclito, 1973). Arminto não era mais o mesmo de outrora, jovem e
herdeiro, mas sim um homem velho e obcecado pela ilusão de um amor escondido
nas águas. Tal como as águas prosseguiam sua jornada, a vida de Arminto também
corria, em correntezas contrárias. Os tempos de fartura haviam ficado para trás.
Quanto à estória de Dinaura, esta segue permeada por incógnitas e segredos visto que Arminto percorreu o coração do arquipélago das Anavilhanas
na ânsia de conseguir localizá-la, mas não obteve sucesso em sua empreitada –
resultado semelhante ao dos aventureiros ao se lançarem em busca das riquezas
no Eldorado. Dessa forma, encerra-se uma possibilidade de vida a dois desencadeada pela tomada de Dinaura pelas águas, conforme cogitado pela narrativa.
Percebemos, nesse sentido, que a temática da água perpassa momentos
relevantes na obra, trazendo a ideia constante de movimento, a transição da
narrativa na trajetória dos acontecimentos e personagens se entrelaçando com
os mitos, sobretudo relacionada ao amor de Arminto e Dinaura, quer seja nos
momentos carnais, quer seja em situações de desbravamento da Amazônia em
busca do paradeiro de Dinaura.
129
Como vimos, a prosperidade e a decadência dos Cordovil também envolvem as águas do rio Amazonas, por meio da embarcação Eldorado, uma vez
que o cargueiro, flutuando nessas águas, moveu sonhos e ambições do pai de Arminto, que desejava, por exemplo, “transportar borracha e castanha para Havre,
Liverpool e Nova York” (Hatoum, 2008, p. 15). Com a morte do pai, cabia a Arminto ter o pulso firme em conduzir as negociações e evitar a falência, mas não
foi o que ocorreu, uma vez que ele não tinha a mesma garra do avô e do pai, o que
refletiu em fracasso, final semelhante ao ocorrido com sua relação com Dinaura.
Até aqui, ao percorrermos a narrativa Órfãos do Eldorado, procuramos
destacar algumas de suas passagens que demonstram a presença das águas do rio
Amazonas na composição de sua narrativa e de seus personagens. Dentro dessa
configuração, em prosseguimento ao nosso debate, na próxima seção, passamos à
análise da obra Terra sonâmbula, em que a água reflete também grande simbologia no enredo, oportunizando a continuidade de nossas reflexões.
O abraço das águas em Terra sonâmbula
Terra sonâmbula, de Mia Couto, tem como pano de fundo Moçambique
em um período pós-independência, marcada, então, pelas mazelas da guerra
civil. A obra, com duzentas e seis páginas, assim como Órfãos do Eldorado,
também foi publicada pela editora Companhia das Letras. Mia Couto, em
comentário sobre essa narrativa, declara que ao escrevê-la se sentia “[...] como
um náufrago que chega a uma ilha e respira”, devido a estarem “numa guerra
e havia um desespero enorme” por conta disso, lembrando que essa guerra, a
qual ele não podia explicar, teve duração de dezesseis anos (Viel, 2020, p. 106).
Valendo-se desse panorama, Mia Couto nos apresenta seus protagonistas, os viajantes Tuahir e Muidinga, que em meio a sonho e realidade, passam
a se empenhar em uma fuga do ambiente marcado pelos horrores dessa guerra
civil em Moçambique a qual só teve término em 1992, ano em que o autor
finalizou a escrita de Terra sonâmbula.
130
Em sua jornada, Tuahir e Muidinga encontram, por exemplo, corpos,
carros queimados, uma estrada morta em decorrência do período de conflito
vivenciado em seu país, o qual, dentre seus desdobramentos, provocou a contaminação da terra, a luta pela sobrevivência, a sequidão e a poeira das estradas.
Tendo isso em vista, as águas aparecem na narrativa simbolizando a esperança,
a vida, a despedida, ritos de passagem da vida para a morte e vice-versa, conforme o prisma de leitura e ressignificação do enredo e do contexto marcado
por muitas feridas abertas pela guerra e todas as suas consequências como a
miséria, a fome e a dor.
Luiz Costa Lima (2003, p. 85) explica que “quanto mais nos sentimos
integrados em uma cultura [...] tanto mais perdemos a possibilidade de saber
o que significa essa inserção. A ambiência social nos atravessa como se fosse
nossa própria natureza”. Nesse caminho, Mia couto ilustra, de certo modo,
essa ambivalência ao leitor ao longo de Terra Sonâmbula, enfatizando a presença da água como um alento para tantos sofrimentos enfrentados em diferentes setores da vida pelos personagens, bem como a própria esperança por
um futuro em que os dias pudessem se configurar de forma mais positiva para
a população moçambicana.
Interessa-nos essa referência à simbologia das águas, suscitada por Mia
Couto, e que é recorrente nas cerimônias fúnebres presentes, por exemplo, na
partida do pai do personagem Kindzu, que é “sepultado nas ondas” (Couto,
2010, p. 19). O escritor mostra-nos, com isso, que há toda uma ritualística,
envolvendo a morte e os antepassados, percebemos, assim, que prestar as devidas cerimônias nessas ocasiões é fundamental na cultura daquela população
para que o morto possa descansar em paz. De modo especial, a água compõe o
cenário dessa prática, como destacado no enredo em tela.
A ausência desse líquido é referenciada também na obra associada à
morte. Após a morte do pai de Kindzu, um fato estranho ocorreu, o mar todo
secou, brotando em seu lugar uma planície coberta de palmeiras, de onde nasceram muitos frutos (Couto, 2010, p. 19). Então, escutou-se uma voz que
fez um apelo, pedindo que os homens ponderassem, pois aqueles frutos eram
131
sagrados; a voz solicitava que poupassem as árvores, caso contrário o destino
da humanidade provaria a desordem e a desgraça (Couto, 2010, p. 19). Era
um contundente pedido de socorro, tendo em foco os frutos brotados de onde
antes dimanavam as águas.
Segundo Luiz Costa Lima “o homem é um animal simbólico” (Lima,
2003, p. 85) e, por isso, não se desprende de sua ambiência cultural. Logo, para
os personagens Tuahir e Muidinga, a água também é simbólica e significativa,
pois ela rege suas vidas.
Outra passagem que reflete a importância das águas, no decorrer da
obra, calha quando esses personagens se depararam com um homem que queria fazer um rio. Segundo o fazedor de rios, “o rio limparia a terra, cariciando
suas feridas” (Couto, 2010, p. 84), feridas que os protagonistas conheciam bem,
todas elas provocadas pela ganância do homem em obter lucros com a guerra e
a lida com suas consequências. Em busca de novos horizontes, eles percorriam
por outras localidades até se depararem com um pântano e Tuahir ser tomado
por uma forte febre.
Pressentindo sua morte, Tuahir pede para que o menino o coloque deitado em um barco, a fim de que ele morra “sem ver nenhuma terra, só água em
todo lado” (Couto, 2010, p. 188). Com tal intuito, Tuahir deitou-se na canoa
junto ao mar e foi, em seguida, embalado nas ondas, começando “então a viagem
de Tuahir para o mar cheio de infinitas fantasias” (Couto, 2010, p. 189). Como é
possível depreender, a relação do personagem com as águas toca as profundezas
de seus sentimentos, a ponto de seu último desejo ser sua permanência, após a
morte, em meio às águas, para que, desse modo, pudesse partir em paz.
Nesse viés, apontamos para mais uma passagem relevante na obra, que
também reflete a importância das águas. Trata-se de sua ligação aos rituais praticados pelo povo para que as provisões chegassem, pois, segundo a narrativa, a
única forma para obtê-las era por intermédio das cerimônias realizada em prol
de que embarcações naufragassem, como relatado nas linhas que se seguem:
Continuavam as cerimônias para provocar mais naufrágios. Se convocavam
feitiços para que os barcos, carregados de donativos, tropeçassem a pique
132
nas rochas da maré baixa. Quem dera um oxalá àqueles pobres! Me olhavam
com desconfios mas não me davam demais atenções. Lembrei de meu pai,
sua palavra sempre azeda: agora, somos um povo de mendigos, nem temos
onde cair vivos (Couto, 2010, p. 102-103).
Em tempos de fome, essa era a saída que a população encontrava em
sua tentativa de sobrevivência, uma solução, provisória, favorecida pelos saques
a navios que naufragavam. Era, portanto, nas águas que se encontrava a esperança de uma vida melhor. Nas águas residiam as possíveis soluções, de que o
destino desse povo não fosse afundado em solo seco.
Tanto Kindzu, ao sair pelo mundo em busca de se tornar um naparama,
quanto Farida, ao se abrigarem em um navio encalhado, ansiavam por mudanças de vidas. A água, dessa forma, manifesta-se simbolizando o caminho para a
concretização de seus desejos. A água, como fio condutor de muitas passagens
na narrativa, apresenta-se de forma metafórica, conforme podemos observar
na fala de Kindzu, quando menciona que sua “alma era um rio parado, nenhum
vento enluava a vela” dos seus sonhos (Couto, 2010, p. 21). A alma de Kindzu
ansiava por novos caminhos e o ponto de partida seria as águas.
As águas também constituem o passaporte para o retorno à terra natal. O
personagem indiano Surendra para aplacar a saudade de sua mulher constrói uma
jangada com o intuito que ela regressasse. Tendo concluído seu intento, Surendra
deitou a embarcação no mar, ecoando “— Vai, Assma! Volta na sua Terra!” (Couto,
2010, p. 112). A saudade, o desejo de retorno à terra, o fez construir a jangada para
realizar o desejo do coração de sua mulher, entretanto, tal feito não se concretizou
resultando no afogamento e resgate de Assma por pescadores locais.
Como podemos observar, o estudo dos aspectos simbólicos das águas
nessas narrativas ressalta a percepção de Carvalhal (2003, p. 20), ao mencionar
que “a investigação das redes intertextuais e o exame dos modos de absorção e
de transformação permitem que se avaliem os processos de apropriação criativa [...]” fato que favorece “[...] não só o conhecimento das peculiaridades dos
textos, mas também a compreensão dos procedimentos de produção literária”.
133
Conforme vimos, não é em vão que as águas sejam símbolos presentes
em ambas as obras aqui debatidas, uma vez que elas possuem significados culturais amplos e subjetivos, que perpassam desde as vivências dos autores e suas
escolhas estéticas e criativas na composição dessas narrativas.
Essas proposições, baseadas na perspectiva da Literatura Comparada,
dialogam com a percepção de Eduardo Coutinho (2006, p. 56), ao mencionar, por exemplo, a obra de Susan Bassnett (1993, p. 1) denominada “Comparative Literature: a Critical Introduction”, na qual a autora “[...] afirma que a
resposta mais simples para a pergunta sobre o que é a Literatura Comparada
seria a de que ela ‘envolve o estudo de textos entre culturas, com seu caráter
interdisciplinar e que está voltada para os padrões das relações entre as literaturas no tempo e no espaço’.”
Em face do exposto, notamos que a contextualização dessas obras,
objetos de nossa discussão, possibilita a análise comparatista a partir daquilo
que suas culturas, que são distintas, possuem em comum, isto é, as águas,
como símbolo dos processos constantes que fazem parte da trajetória e da
vivência de seus personagens cujas vidas são afetadas por essas afluências
permeadas de ritos, crenças, significados míticos e esperança, entre as demais
simbologias mencionadas.
Referências
BASSNETT, Susan. Comparative Literature: A Critical Introduction. Oxford: Blackwell, 1993.
BENJAMIN, Abdala Junior. Estudos Comparados: Teoria, Crítica e Metodologia. São Paulo: Ateliê Editorial, 2014.
BRUGIONI, Elena. Literaturas africanas comparadas: paradigmas críticos e
representações em contraponto. São Paulo: Editora da Unicamp, 2019.
CARVALHAL, Tânia Franco. O próprio e o alheio. Ensaios de Literatura
Comparada. Editora Unisinos, 2003.
134
COSTA, Andréa Moraes da. John Gledson reescreve Milton Hatoum: a teoria e a experiência da tradução cultural. 2016. 187 f. Tese (Doutorado em Teoria da Literatura). UNESP. São José do Rio Preto. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/138054/costa costa_am_dr_sjrp.
pdf ?sequence=3&isAllowed=y. Acesso em 25 de julho de 2021.
COUTINHO, Eduardo. Literatura Comparada: reflexões sobre uma disciplina acadêmica. Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. 8, 2006.
COUTO, Mia. Terra sonâmbula. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
COUTO, Mia. Se Obama fosse africano? E outras intervenções. Lisboa, Caminho, 2009.
GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Trad. Sérgio Faraco. Porto Alegre: Editora L&PM, 2016.
HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
HATOUM, Milton. O porto é um lugar uterino, onde abriga nossas origens. Disponível em: https://oestrangeiro.org. Acesso: 15 de julho de 2021.
HERÁCLITO. Fragmentos. Trad. José Cavalcante de Souza. In: Os Pré-socráticos. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.79-142. Vol. I. (Os Pensadores).
LIMA, Luiz Costa. Mímesis e modernidade: formas das sombras. 2ª ed. São
Paulo: Paz e Terra, 2003.
TOCANTINS, Leandro. O rio comanda a vida: uma interpretação da Amazônia. Manaus: Editora Valer/Edições Governo do Estado, 2000.
VIEL, Ricardo. Sobre a ficção: conversas com romancistas. 1ª ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2020.
135
(RE)TRADUZINDO O CHACO PARAGUAIO NO INÍCIO
DO SÉCULO XX
Hélio Rodrigues da Rocha
Rogério de Mendonça Correia
“Reimaginar de dentro significa redizer, significa ressignificar e repensar as definições e conceitos sobre o local.”
(Nenevé, 2015, p. 21)
Do início à metade do século passado três obras foram escritas pelo
missionário anglicano Wilfred Barbrooke Grubb (1865-1930) no intuito de
(re)escrever e descrever/desescrever1 sua experiência de evangelização junto aos
indígenas na região do Chaco paraguaio. Os livros são Among the Indians of the
Paraguayan Chaco: a story of missionary work in South America (1904), An Unknown People in an Unknown Land: an account of the life and customs of the Lengua
Indians of the Paraguayan Chaco, with adventures and experiences during twenty
years’ pioneering and exploration amongst them (1911) e A Church In The Wilds: the
remarkable story of the establishment of the South American Mission (1914).
Grubb, missionário de origem escocesa ligado à igreja anglicana, foi
enviado à região do Chaco paraguaio pela South American Missionary Society
(SAMS) - Sociedade Missionária Sul-Americana em 1889. Nasceu em 1865
e morreu em 1930. Casou-se com Mary Bridges Grubb, filha de missionário
da mesma missão. Encerrou suas atividades no Chaco no ano de 1921. Foi
laureado pela missão com o título de “Livingstone of South America”2, em alusão ao famoso missionário Congregacional, David Livingstone (1813-1873),
também de origem escocesa, e que dedicou a sua vida à evangelização cristã da
África e se tornou uma referência entre os missionários daquele período.
1
2
O termo desescrever é aplicado aqui conforme utilizado por Henry Meschonnic em seu artigo “Traduire: Écrire ou Désécrire”, traduzido para o português por Claudia Borges de Faveri
e Marie-Hélène Catherine Torres.
Disponível em: http://www.bu.edu/missiology/w-barbrooke-grubb/, acesso em: 22 de jul. de 2021.
136
A obra escrita de Grubb é auto-etnográfica, por conter relatos vividos
e experiências presenciadas por ele mesmo entre os indígenas da região do
Chaco paraguaio. Como tal, é uma obra permeada de uma mentalidade basicamente judaico-cristã ocidental, do ponto de vista cultural, e basicamente
cristã institucional enquanto cosmovisão em relação ao outro. Nesse sentido,
propõe-se aqui elaborar uma breve apresentação da vida de Grubb fazendo
inserções sobre uma análise dos apagamentos culturais e religiosos propostos
por ele quando da construção etnográfica de um outro povo e outra cultura não
europeia, com implicações em textos que acabaram por se tornar uma “desescrita” da realidade, tanto quanto uma (re)escrita.
Por que estudar a obra de Grubb?
Em primeiro lugar, precisamos apresentar algumas razões para a seleção
de estudos da vida e obra de Grubb entre os indígenas do Gran Chaco. Talvez o
mais importante seja o resgate de obras ameríndias e suas reconstituições com
(re)leituras e (re)traduções feitas a partir de relatos de viajantes, apresentando
essas obras com uma visão analítica aos povos que são contados e (re)contados,
por vezes caricaturados e imaginados, apresentados ao mundo europeu pelas
lentes de uma escrita que contempla uma realidade que subjaz no imaginário
desse “explorador”, “dominador”, “conquistador”, “evangelizador” e tantos outros “-dor(es)” que pisaram as Américas, em particular as regiões indígenas.
Depois, nosso interesse está em construir uma (re)leitura/(re)tradução crítica dessa (re)leitura/(re)tradução feita pelo europeu, sem dar a nós,
nativos, a possibilidade de entender e explicar nosso próprio mundo com
nossas próprias categorias, de palavras, de léxicos, de ideias, de sistemas de
pensamentos, de crenças, etc.
Nesse sentido, posto que nos foi legada a língua do colonizador, é sempre
um desafio a mais pensar em termos de categorias outras, próprias daqui, sendo
que nosso ponto de partida linguístico/cultural é minado, ou para usar uma linguagem desenvolvida pelos sindicatos de trabalhadores sabotados pelas estruturas governamentais nos últimos anos, “comida por dentro”, por nos ser ensinado
137
desde a infância com as categorias que hoje tentamos rechaçar para encontrar
outro caminho de construção de pensamento e compreensão daquilo que é local.
Como última parte desse desafio, nos utilizamos das categorias de “decolonialidade” pensadas por autores que colaboraram na obra de Walsh (2013),
“Pedagogías decoloniales: prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir”, que buscam uma maneira de se inscrever no mundo que ultrapassa os
conceitos que temos de descolonialidade, onde o prefixo des- nos indica um
caminho de desfazer, desconstruir o que fora construído por força da colonialidade bem presente nas Américas. É mais do que rejeitar; é buscar uma maneira
nossa de resistir, (re)existir e (re)viver. Novas categorias, que sejam próprias,
autônomas, não dependentes das categorias coloniais que sempre estiveram
presentes no nosso mode de pensar, estudar, escrever, expressar, etc.
Por isso, pela dificuldade que uma leitura/(re)leitura/tradução/(re)tradução dessa natureza nos trazem, é que usamos tantas aspas e tantos parênteses
para entender maneiras outras, caminhos outros para tratar das categorias que
nos foram legadas como cânones e que precisam, a nosso ver, serem (re)feitos/
(dis)feitos. Como nos lembra Paz, sendo citado por Arrojo:
Todo texto é único e é, ao mesmo tempo, a tradução de outro texto. Nenhum texto é completamente original porque a própria língua, em sua essência, já é uma tradução: em primeiro lugar, do mundo não-verbal e, em
segundo, porque todo signo e toda frase é a tradução de outro signo e de
outra frase. Entretanto, esse argumento pode ser modificado sem perder
sua validade: todos os textos são originais porque toda tradução é diferente.
Toda tradução é, até certo ponto, uma criação e, como tal, constitui um texto
único. (Paz apud Arrojo, 2007, p. 11)
Uma vez que estamos lidando com um texto que é expressão da “tradução” linguística e cultural de um povo feita por um europeu, originalmente
falante de língua inglesa, que precisou fazer uma tradução linguístico-cultural
das tradições orais para expressar isso para os seus compatriotas e correligionários, constitui-se um trabalho de (re)tradução o ato de traduzir agora do inglês
para o português, o que fora traduzido das expressões orais indígenas da região
138
do Chaco paraguaio para o inglês escrito, que carrega suas próprias nuances
de língua como sistema, que também são diferentes de suas nuances de língua
oral, como acontece com todo sistema linguistico, onde a escrita não consegue
acompanhar os movimentos da oralidade.
Se considerarmos as teorias de comunicação, especialmente os diagramas
desenvolvidos a partir das ideias de Roman Jakobson, percebemos que tratar de
comunicação oral não é tarefa tão simples, posto que não pensamos em língua,
mas em ideias, envolvidas em processo mental complexo, convertidas em língua
em uma espécie de processo tradutório interno, organizados em fala, o que implica uma outra “tradução”, adaptados à escrita, o que é ainda outra “tradução”
para uma outra maneira de expressara linguagem. Por isso traduzir é sempre um
processo de (re)traduzir. Mais ainda quando alguém procura absorver o processo
de oralidade de um povo, junto com suas experiências, em outra língua, traduz
e publica, legando-nos a tarefa de (re)traduzir para outra língua aquilo que já
é, em si, um processo múltiplo de traduções. Isso para não mencionar que cada
tradução é uma leitura possível, que parte do indivíduo que faz a tradução, das
muitas leituras possíveis da mesma realidade linguística, cultural, religiosa, etc.
O Chaco paraguaio como área de atuação de Grubb
O “Gran Chaco”, como é chamada a região de planície alagadiça que se
estende por territórios da Argentina, Paraguai e Bolívia, totalizando uma extensão de cerca de 725 quilômetros, distribuídos em maior parte na Argentina,
um terço no Paraguai e o restante na Bolívia3. Há ainda uma pequena parte
do Chaco em território brasileiro, na parte norte, que faz fronteira com a região do Pantanal. É ainda dividido em Chaco Boreal, ao norte do Pylcomayo,
Chaco Central, entre os rios Pilcomayo e Bermejo, e Chaco Austral, ao sul de
Bermejo. Há uma pequena divergência quanto à tradução do nome do lugar,
apresentado como um nome de origem Quechua, ora traduzido como “Hunting Land” (terra de caça)4, ora traduzido como “the hiding-place” (esconderijo), conforme apresentado pelo próprio Grubb no capítulo introdutório de
3
4
Disponível em: https://www.britannica.com/place/Gran-Chaco. Acesso em: 22 de jul. de 2021.
Ibid.
139
“Among the Indians of the Paraguayan Chaco”. Ao se referir ao Chaco como
um lugar escondido, Grubb chega a afirmar que “provavelmente não pudesse
ser encontrado nome melhor para um país que permaneceu tanto tempo praticamente desconhecido do resto do mundo”5 (Grubb, 1904, seção B, tradução
nossa). Essa declaração expressa, entre outras coisas, uma certa cosmovisão sobre concepção de mundo, de modernidade, de colonização e, ao problematizá-la, trazemos o debate sobre docolonialidade proposta no começo desse texto.
O trabalho de Grubb no Chaco foi marcado por duas etapas importantes, uma primeira de implantação de estrutura de trabalho para a Missão,
construindo bases e sedes de apoio para a chegada de outros membros da Missão, estendendo geograficamente os locais onde a Missão atuava, e o trabalho
evangelístico propriamente dito, que incluía uma inserção cultural entre o governo paraguaio e os indígenas com quem trabalhava diretamente.
Para além da necessidade de gerar uma estrutura de trabalho, havia uma
situação descrita por Grubb e ratificada pelo bispo Stirling, coordenador dos
trabalhos da Missão no período em que Grubb atuou e que fez o prefácio da
obra, apontando Grubb como um pacificador das guerras e tensões presentes entre os indígenas e os governos paraguaio e argentino. Com o governo
paraguaio por dissensões motivadas por posse de terra e gado, especialmente
iniciadas em guerra civil interna anterior ao estabelecimento da missão e continuada pelas compreensões diferentes de território, propriedade e posse de
territórios e gado. Com o governo argentino por uma matança indígena brevemente apontada como motivada pela propriedade de terras. Nesse ambiente,
percebendo a importância da pacificação para a continuidade dos trabalhos da
Missão é que Grubb se propõe a atuar como um “pacificador” das tensões entre
os indígenas e os governos, numa tentativa de “civilização” dos indígenas por
meio da cristianização deles e de suas práticas.
Essa ação obteve notório “sucesso” entre as partes envolvidas, com reconhecimento especial por parte do governo paraguaio, como podemos perceber
no trecho traduzido do prefácio da obra:
5
Cf. o texto fonte, “… and probably no better one could have been found for a country which
has remained so long practically unknown to the world at large”.
140
Quando a Missão Chaco foi primeiramente proposta, eu tinha receios sobre
seu futuro sucesso. Tanta dor e desapontamento foram causados pela deliberada, e tão somente bem sucedidas tentativas do Governo argentino em
exterminar as raças indígenas em outras partes, que eu temia que os trabalhos
projetados da Missão no Paraguai pudessem ser impedidas; ou, se permitidas,
pudessem ser apagadas rapidamente pela violência e pelos sanguinários da
parte dos administradores da terra. Entretanto, este não foi o caso até agora.
Ao contrário, a obra do Sr. Grubb, pelo seu notado sucesso, recebeu a devida
atenção do governo paraguaio, e lhe concedeu o título de Comisario General
del Chaco y Pacificador de los Indios ( Juiz de Paz, ou magistrado, do Chaco, e
conciliador das tribos indígenas). E para mim é uma grande alegria contemplá-los sob a direção benevolente e inteligente de uma missão cristã, ao invés
de serem importunados e maltratados por expedições militares ou por aventureiros inescrupulosos6. (Grubb, 1904, ix-x, tradução nossa).
Estrategicamente falando, Grubb percebeu a necessidade de trabalhar
a “pacificação” das relações supracitadas por uma razão bem específica, não
escondida pelo bispo Stirling. Se não houvesse um processo de pacificação,
não haveria missão a ser cumprida porque não haveria indígenas a serem
evangelizados. Embora a mentalidade subjacente fosse centrada na tarefa de
evangelização, também não podemos ignorar ou relativizar o fato de que essa
ação trouxe um novo horizonte de prolongamento das vidas indígenas. De
certa forma, suas ações ajudaram os indígenas a entender o princípio colonizador e capitalista da “propriedade privada”, conquanto muitos não entendam
que, se houvesse, de fato, qualquer propriedade a ser resguardada, era sempre
6
Cf. o texto fonte, “When the chaco Missions was first proposed I had misgivings as to its
future success. So much pain and disappointment had been caused by the deliberate, and only
too successful, attempts of the Argentine Government to exterminate the Indian races in
other partes, that I feared the projected labors of the Mission in Paraguay might be blocked;
or, if allowed to begin, might ere long be effaced by violence and bloodshed on the part of the
rulers of the land. It has not, however, been the case so for. On the contrary, the work of Mr.
Grubb, by its marked success, has won the favor of the Paraguayan Government, and let to
his being appointed as the acknowledged Comisario General del Chaco y Pacificador de los Indios
( Justice of the Peace, or magistrate, for the Chaco, and conciliator of the Indian tribes). And
to myself it is a great joy to contemplate them under the benevolent and intelligent guidance
of a Christian mission, instead of their being harassed and trampled upon by military expeditions or by reckless adventurers.”
141
e invariavelmente a dos nativos aviltados em seus direitos e suas culturas de
transitar em áreas que lhes eram historicamente comuns, por terem um senso
de pertencimento de todo o território e que, o território onde construíam suas
moradias temporárias não era diferente do território onde caçavam, não era
diferente do território onde pescavam, não era diferente do território onde enterravam seus mortos, onde treinavam seus filhos e jovens guerreiros da tribo,
onde plantavam e colhiam, etc. Como é comum à grande parte dos indígenas,
a noção de propriedade não pode ser restrita e restritiva a um lote de 200m2,
porque sua noção de propriedade, espaço, natureza e pertencimento não atendem a uma demanda das cidades.
Também não podemos ignorar ou diminuir os esforços de poupar a vida
dos indígenas, intermediando os conflitos, ainda que com a intenção de “civilizá-los” sob a égide de uma cultura e uma lógica de vida outra, não condizente
com as demandas dos indígenas, mas proporcionando uma oportunidade de
amenizar o grande conflito existente por anos na região.
Outro aspecto interessante da visão de Grubb sobre o Chaco é encontrado também no capítulo introdutório onde descreve sua percepção da terra
que passa a conhecer para desenvolver um trabalho evangelístico.
As duas divisões do Paraguai são, de fato, tão afastadas como se um continente, e não um rio, as separasse. Na margem leste do rio Paraguai estende-se uma terra bem cultivada, habitada por uma população trabalhadora,
que reside em cidades ocupadas ou vilas prósperas, e que possuem conveniências tão modernas quanto estrada de ferro, bonde, telefones e luz
elétrica. Na margem oeste do rio está um nível morto de charco e planície,
dividido aqui e ali por rios, inúteis para navegação, e quase desconhecidos
à geografia, e ressaltado no horizonte por palmeirais7. (Grubb, 1904, seção
B, tradução nossa)
7
Cf. o texto fonte, “The two divisions of Paraguay are, in fact, as much apart as if a continent,
and not a river, separated them. On the eastern bank of the Rio Paraguay stretches a well-cultivated land, inhabited by an industrious population, who dwell in busy towns or thriving
villages, and who possess such modern conveniences as a railway, tram-cars, telephones and
electric light. On the western bank of the river is a dead level of swamp and plain, intersected here and there by rivers, useless for navigation, and almost unknown to geography, and
bounded on the horizon by belts of palm trees.”
142
Não podemos deixar de notar que há uma certa surpresa pelo fato de a
terra não ser tão distante dos conceitos de “conveniência” e “civilização” quanto
Grubb achasse, ainda que na descrição do nome do lugar ele deixe claro que
o lugar não poderia ser mais “escondido” do “resto do mundo”, que para ele,
naturalmente, era o mundo eurocêntrico. Estas referências devem sempre nos
fazer questionar as fontes e perguntar: distantes de quem? Distantes de quê?
Qual o referencial adotado?
Sem dúvidas, para os moradores do Chaco, que nunca sentiram necessidade da intervenção dos povos europeus, eles não eram os distantes, isolados,
escondidos. Nem sentiam falta ou necessidade de nada que fora trazido pelo
europeu àquela altura. Assim, não podemos também deixar de perceber a visão
colonizadora de quem entendo o mundo do “outro” e o “outro” em si como
inferiores porque não são iguais a si mesmo.
É com essa percepção que Grubb se predispõe a se tornar uma referência
de atuação missionária entre os indígenas do Chaco paraguaio, os Lengua, a quem
demora a referir-se pelo seu próprio nome de identificação cultural. Esse traço é
interessante, ao mesmo tempo que importante, porque precisamos distinguir entre
o europeu italiano, o francês, o inglês, o americano do norte e o americano do sul,
entre o asiático japonês, o chinês, o somali, mas não precisamos distinguir entre
as milhares de etnias indígenas de famílias diferentes, são apenas indígenas, generalizados assim mesmo, como se fossem uma só massa distribuída em diferentes
lugares, mas pertencentes a um mesmo “tipo”, uma mesma “espécie”.
Ainda que com todos esses problemas de interpretação da realidade
encontrada e somente percebidos por um olhar temporalmente distante, como
procuramos fazer hoje, o trabalho de Grubb ressoou no mundo europeu de
então como digno de nota. O periódico “Nature”, em sua edição de 1911, se
refere a Grubb da seguinte maneira:
W. Barbrooke Grubb, muito jovem à época, foi enviado com a incumbência
de uma tarefa aparentemente sem chances de êxito. Duante vinte anos esse
pioneiro e devoto genuíno viveu entre os selvagens, primeiramente sozinho,
depois na companhia de seus auxiliares. O presente livro trata principalmente dos eventos e experiências dos primeiros cinco solitários anos que
143
viveu na aldeia dos Lengua, um pouco à oeste da vila paraguaia de Concepcion. Agora há uma missão florescente, chamada Waikthlatingmangyalwa,
o lugar onde o prof. J. G. Kerr e posteriormente J. Budgett recolherram
e estudaram o Lepdosiren, peixe pulmonado que vive enfiado na lama. É
seguro para o homem branco atravessar quase 200 milhas à oeste do rio
Paraguay, através das estradas de chão abertas pelos missionários; onde milhares de cabeças de gado agora são criadas pelos indígenas, posto que há
alguns anos atrás as pessoas que adquiriram terras, mal ousavam inspecioná-las por medo desses mesmos indígenas. Nessas terras, Grubb é um nome
reconhecido, e o governo paraguaio, consciente do que devia a esse homem,
o nomeou Comissário-Geral do Chaco, juntamente com o título de “Pacificador de los Indios”8. (Nature, 1911, 451, tradução nossa).
Percebemos que Grubb foi tratado pelo governo paraguaio como o “Pacificador de Índios,” pelo trabalho realizado entre os indígenas. Quando lemos
a obra, percebemos que o número de indígenas convertidos ao cristianismo não
foi grande e que boa parte do seu trabalho consistia em “desmascarar” a religiosidade encontrada entre os nativos, tida por ele como feitiçaria e, obviamente,
paganismo, que precisavam ser combatidos à luz da sua cosmovisão cristã.
Por esse trecho da publicação da Nature também percebemos que boa
parte do trabalho missionário na região se deu na construção de acessos para
alcançar as tribos, em uma região alagadiça, plana, com características de inundação em algumas partes de sua extensão, devido ao aspecto plano da terra, nas
estações mais chuvosas do ano. As estradas que chamaríamos de “pau-a-pique”
foram abertas para se chegar às regiões onde os indígenas eram mais acessíveis.
8
Cf. o texto fonte, “W. Barbrooke Grubb, then quite a young man, was sent out and entrusted
with the seemingly hopeless task, For twenty years this pioneer and marvel of devotion has lived
amongst the savages, at first quite alone, later on joined by helpmates. The present book deals
mainly with the events ad experiences of the early five lonely years amongst the Lengua tribe,
a little to the west of the Paraguayan town of Concepcion. Now there is a flourishing mission,
called Waikthlatingmangyalwa, the place where Prof. J. G. Kerr and the late J. Budget got their
material for the mudfish Lepidosiren. It is safe for the white man to traverse some 200 miles
west of the river Paraguay, over roads cut by the missionaries; thousands of cattle are now tended
by Indians, where but a few years ago men, who had acquired lands, scarcely dared to inspect
them for fear of these same Indians. In these parts Grubb’s is a name to conjure with, and the
Paraguayan Government fully acknowledge what they owe to this man by having made him
Comissary-General of the Chaco, with the additional title of ‘Pacificador de los Indios.’”
144
O labor tradutório da obra de Grubb
Conforme pudemos constatar até aqui, a obra de Grubb é muito importante para a memória e análise do trabalho realizado entre os indígenas da região
do Chaco no começo do século passado. O trabalho de um missionário que exerceu seu “chamado” e sua “missão” com tanta proeminência, reconhecido pelos “de
fora” e pelos “de dentro” como um homem importante para a pacificação da região, mediando os conflitos de terra e de gado entre os governos, é uma obra que
precisa ser revisitada e conhecida por todos nós, especialmente os que trabalham
com tradução de relatos de viajantes e obras constituídas entre os indígenas.
De certa forma, nossa escolha por uma percepção amazônica do mundo,
luta comum a todos os povos das amazônias, da pan-amazônia e das áfricas,
acostumados a serem lidos, (re)lidos, (re)interpretados, (re)traduzidos para um
mundo outro que não o seu e até para o seu próprio, com a língua do outro, a
maneira de pensar do outro, faz-nos sentir a necessidade de (re)traduzir, (re)ler,
(re)interpretar essas obras à luz do olhar de quem compartilha visões e culturas
não eurocêntricas, na lógica de produzir outra maneira de entender o dito e o
não dito pelo estrangeiro em relação ao nativo.
Assim, o esforço é por entender o vocabulário peculiar da obra com
suas nuances cristãs e com seus apagamentos da religiosidade encontrada pelo
missionário entre os indígenas.
Podemos destacar, por exemplo, já no título da obra Among the Indians
of the Paraguayan Chaco: a story of missionary work in South America, a necessidade de traduzir a expressão “missionary work” como “obra missionária”, ao
invés do intuitivo “trabalho missionário”. A expressão “The Right Rev.”, título
honorífico tratado basicamente em ambientes religiosos para se referir a um
bispo anglicano ou católico, utilizada no texto de apresentação do prefácio.
A expressão “witch-doctors”, aplicada nos subtítulos do capítulo V para se
referir aos xamãs da tribo. A expressão “Woman’s work” para se referir à “obra
missionária feminina”, citada nos subtítulos do capítulo VII. Os juízos de valor
cultural e estético feitos em situações como a descrição do que Grubb chama
de “Detalhes pessoais”, no capítulo VII, quando diz:
145
Os indígenas do Chaco, no geral, não podem ser descritos como bem afeiçoados; um observador casual pode achá-los um tanto quanto repulsivos.
Eles não têm nem a visão da águia, nem a expressividade resoluta dos Peles
Vermelhas, com os quais Fenimore Cooper9 nos deixou tão familiarizados.10
(Grubb, 1904, p. 54, tradução nossa)
Nestes pequenos exemplos de tradução de trechos de apenas uma das obras,
conseguimos perceber a necessidade de ter um conhecimento mínimo sobre os aspectos religiosos da cosmovisão, cultural e hábitos dos missionários cristãos para
poder entregar como resultado da tradução um texto que seja mais parecido com o
que Meschonnic chama de escrever, e não fazer apenas um trabalho de transliterar
o material linguístico que está apresentado em uma língua, comumente chamado
na teoria da tradução de L1 (Língua 1) ou ST (Source Text - texto fonte) para uma
L2 (Língua 2) ou TT (Target Text - texto de chegada).
Autores como Arrojo (2007), Meschonnic (2010), Munday (2004) e muitos outros, entendem que está relativamente pacificado que uma tradução linguística, apenas, não consegue dar conta de todo o arcabouço de necessidades que uma
tradução com tantos elementos históricos, geopolíticos, culturais, étnicos, estéticos,
nesse caso em particular também religiosos, e tantos outros fatores, não contempla
a plenitude do que a obra transmite. Muito menos é capaz, uma tradução meramente linguística, de dar conta da crítica que se faz sempre necessária a uma construção imagética que “desescreve” o que um povo inteiro é, vive, crê.
Por isso, quando fazemos o trabalho de tradução da obra de Grubb, não
podemos passar desapercebidos pelas expressões de (re)classificação religiosa
feita sobre as categorias religiosas pré-existentes na tribo e julgadas à luz da
cosmovisão cristã ocidental. Não podemos deixar de perceber os valores de julgamentos estéticos exercitados sobre os habitantes nativos, entendidos como
“exóticos”, não belos, fora dos padrões carregados por Grubb e pelos europeus
que escreveram e “descreveram” os indígenas do Chaco.
9
10
Autor da obra-prima O último dos Moicanos publicada pela primeira vez em 1826 nos Estados
Unidos. (Nota dos autores).
Cf. o texto fonte, “The facial appearance of the Chaco Indians cannot, on the whole, be described as attractive; a casual observer might almost call them repulsive. They have neither the
eagle eye, nor the resolute expression of the Red Indian, with which Fenimore Cooper has
mande us so familiar.”
146
Se a questão nos bate como referencial, então os nativos daqui também
podem olhar para os estrangeiros e julgá-los fora do padrão daqui. Diferentes,
não classificáveis, não rotuláveis. Isso nos ensina que não há melhor/pior, bonito/
feio, mais ou menos inteligente, mais ou menos religioso. Nos ensina apenas que
os paradigmas são diferentes e que precisariam ter sido respeitados. Não o foram!
Por não terem sido respeitados, nossa compreensão, ao mesmo tempo que
proposição de resistência contínua, na linguagem, na escrita e (re)escrita dos relatos de viajantes sobre nós, todos os moradores destas regiões, é de que devemos
nos esforçar por um labor tradutório que consiga ser, tanto quanto possível, posto
que o desafio é enorme, tradutores identitários, identificados com uma identidade própria, não europeia, capaz de pensar com categorias outras de teoria da
tradução que consiga dizer o quê e como um amazônida leria essa realidade.
Conforme epígrafe que usamos do escrito do professor Miguel Nenevé, é preciso
reimaginar de dentro. É preciso que moradores de todas as regiões amazônicas,
pan-amazônicas, africanas, chaqueñas e tantas outras que foram ditas, (re)ditas,
traduzidas, (re)traduzidas, imaginadas, (re)imaginadas, etc., sejam expressas em
termos locais. Precisamos de outras traduções. Traduções diferentes, com contribuições outras, para desfazer o imaginário da vida, da existência, da re-existência,
da cultura, da religiosidade e de categorias outras quase infindas da riqueza dos
povos das Américas, especialmente as Américas esquecidas, ou reduzidas à importância da preservação da floresta amazônica.
É flagrante que Grubb diga de maneira clara e direta que os contos de
aventura de Fenimore Cooper sejam o molde para a preparação e visão que os
missionários do começo do século tinham para (re)imaginar os indígenas das
Américas. Há muito trabalho a ser (re)feito/(des)feito.
147
Referências
ARROJO, Rosemary. Oficina de Tradução: a teoria na prática. 5. ed. São Paulo, Ática, 2007
CRAGO, Morgan. W. Barbrooke Grubb: Missionary Explorer & Anglican
Layman. Boston University, 2021. Disponível em: http://www.bu.edu/missiology/w-barbrooke-grubb/. Acesso em: 22 de jul. de 2021.
GRAN Chaco. Britannica, 2021. Disponível em: https://www.britannica.com/
place/Gran-Chaco. Acesso em: 22 de jul. de 2021. MESCHONNIC, Henri.
Traduire: Écrire ou Désécrire. Trad. Claudia Borges de Faveri e Marie-Hélène
Catherine Torres. In: Scientia Traductionis, n. 7, 2010.
GRUBB, Wilfred Barbrooke. Among the Indians of the Paraguayan Chaco:
A Story of Missionary Work in South America. London: Charles Murray &
CO., South American Missionary Society, 1904.
HATIM, Basil; MUNDAY, Jeremy. Translation: an advanced resouce book.
London: Routledge, 2004.
MESCHONNIC, Henri. Traduire: Écrire ou Désécrire. Trad. Claudia Borges de Faveri e Marie-Hélène Catherine Torres. In: Scientia Traductionis, n.
7, 2010.
NENEVÉ, Miguel; SAMPAIO, Sônia M. Gomes. Re-imaginar a Amazônia,
descolonizar a escrita sobre a região. In: ALBUQUERQUE, Gerson Rodrigues de; NENEVÉ, Miguel; SAMPAIO, Sônia Maria Gomes. (orgs.). Literaturas e Amazônias: colonização e descolonização. Rio Branco: Nepan Editora, 2015.
WALSH, Catherine (Ed.). Pedagogías decoloniales: prácticas insurgentes de
resistir, (re)existir y (re)vivir. Tomo I. Quito, Ecuador: Ediciones Abya-Yala, 2013.
WILD Paraguay. Nature. Nº 2170, Vol. 86, 01 de jun. 1911. Disponível em: https://www.nature.com/articles/086451a0#citeas. Acesso em: 22 de jun. de 2021.
148
HELLEN CALDWELL: TRADUTORA DE QUATRO ROMANCES DE J. M. MACHADO DE ASSIS PARA O INGLÊS
Válmi Hatje-Faggion
No âmbito dos Estudos da Tradução poucas ainda são as mulheres que
oferecem traduções aos leitores. Entretanto, cada vez mais, verifica-se que elas
ocupam o espaço público da escrita via tradução, antes reservada, quase sempre, apenas ao gênero masculino, que era também, em muitas ocasiões, representado somente por escritores renomados. Como é o caso, por exemplo, de
Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), que foi tradutor de várias
obras do inglês e do francês para o português. Conforme consta em A Marmota, periódico que publicava textos machadianos, sobre a tradução do conto
francês “Bagatela”, de autor desconhecido:
O Sr. Machado de Assis, cujo nome e de cujas produções literárias já os
nossos leitores têm conhecimento, pelo que de sua pena se tem publicado;
mimoseou-nos com a seguinte tradução, que muito lhe agradecemos, cujo trabalho
não é, como o título diz, uma [bagatela] (A Marmota, 1859, p. 1, grifo nosso).
Machado de Assis foi escritor, crítico, tradutor e, por isso, desempenhou importante papel na formação da literatura brasileira. Pela tradução fez
circular obras de autores estrangeiros em português no Brasil; e em algumas de
suas obras faz referência ao processo tradutório, ao texto traduzido, exaltando a
leitura na língua em que a obra foi originalmente escrita (e não em tradução).
Em Esaú e Jacó (1904), Capítulo XLV, Machado de Assis insere, pela voz do
narrador, seus comentários sobre a prática de traduzir, esboçando um conceito
de tradução em uma ocorrência quando os dois personagens irmãos gêmeos
leem versos de Homero da Ilíada e da Odisseia:
Que ele, o conselheiro, depois de os citar [versos] em prosa nossa, repetiu-os
no próprio texto grego e os dois gêmeos sentiram-se ainda mais épicos, tão
149
certo é que traduções não valem originais. [...] – Em grego, meninos, em grego
e em verso, que é melhor que a nossa língua e a prosa do nosso tempo. (Machado
de Assis, Esaú e Jacó, p. 52, grifo nosso).
Na tradução das obras de Machado de Assis para o inglês, uma das mulheres tradutoras é a norte-americana Helen Florence Caldwell (1904-1987)1,
professora emérita de latim e grego do departamento de línguas clássicas na
Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Caldwell traduziu quatro romances de Machado de Assis para o inglês, que são analisados neste ensaio – Dom
Casmurro (1953), Esau and Jacob (1966), Counselor Ayres’ Memorial (1972) e
Helena (1984) –, a fim de se investigar o projeto tradutório e o papel dessa
tradutora com relação a sua inserção no texto traduzido nos textos suplementares (notas de rodapé, introdução da tradutora) e na crítica (jornais, revistas,
correspondências, comentários), e evidenciar implicações para o novo leitor e
as contribuições para a difusão do escritor brasileiro.
Dessas quatro traduções, Dom Casmurro (1953) foi publicado pela The
Noonday Press, pequena editora particular na época, e as outras três, Esau e
Jacob (1966), Counselor Ayres’ Memorial (1972) e Helena (1984), foram publicadas nos Estados Unidos e na Inglaterra pela editora University of California
Press2, consagrada no mercado editorial.
Caldwell publicou, também pela mesma editora, dois estudos sobre a
obra de Machado de Assis (The Brazilian Othelo of Machado de Assis (1960)
e Machado de Assis: The Brazilian master and his novels (1970). Além desses
romances, Caldwell traduziu contos de Machado de Assis publicados em conjunto com William Grossman com o título de The psychiatrist and other stories
(1963). Recebeu o prêmio Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul (1959) e a
Medalha Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras (1963).
1
2
Informações sobre vida e obra de Helen Florence Caldwell no Obituário elaborado por
MOHR; PUHVEL; TRAVIS (1987). Todas as traduções para o português de textos citados
em língua estrangeira são realizadas pela autora deste ensaio.
A editora University of California Press inclui obras de Machado de Assis no seu Programa
de Vozes Revisitadas/ University of California Press’s Voices Revived program, para continuar fomentando seus autores e reiterando o seu prestígio e proporcionando reconhecimento
no cenário literário mundial.
150
Para Jeremy Munday (2014, p. 64),
as “fontes primárias”, o uso e o valor dos arquivos de dados (considerando a
própria tradução, que constitui o produto final), manuscritos, entrevistas e
especialmente os textos dos tradutores, são aspectos relevantes na elaboração de uma história da tradução e dos tradutores.3
Susan Bassnett (1998, p. 109-110) destaca que “essas fontes ainda são
pouco exploradas e, muitas vezes, vistas como marginais, irrelevantes para os
Estudos da Tradução”.4 Entretanto, segundo Bassnett (1998, p. 109-110), essas
fontes podem ser muito úteis para “mapear estratégias escolhidas pelos tradutores para se elucidar critérios empregados por uma cultura em período específico de tempo com o objetivo de formular uma história política, cultural e
social de tradutores e traduções”.5 Assim como Bassnett, Munday (2014, p. 65)
salienta que “considerar detalhes diversos da vida do tradutor e do processo de
produção de sua tradução podem ser iluminadores no sentido de se constituir
uma (micro) história cultural e social de traduções e tradutores”.6
Theo Hermans (1996, p.27) ressalta que na narrativa traduzida há, além
do narrador do texto de partida, ainda uma outra voz (a do narrador do texto
traduzido), que, neste caso, envolve a da tradutora, e que pode estar mais ou
menos explícita no texto traduzido. Segundo Sherry Simon (1990, p. 111),
esta presença se refere a uma assinatura – uma diferente da do autor da obra
de partida; essa outra assinatura, a double signature (dupla assinatura) seria,
então, a da tradutora, que traz consigo implicações para o âmbito do processo
de produção, circulação e recepção de uma tradução.
3
4
5
6
Cf. o texto fonte “the ‘primary sources’ the use and value of archives (the translation itself
as the final product), manuscripts and, especially, translators papers, post-hoc accounts and
interviews in producing a history of translation and translators”.
Cf. o texto fonte “[…] this type of text has received relatively little attention until recently,
having been judged as marginalia, […].”
Cf. o texto fonte “but in terms of mapping out strategies used by translators in order to have
some idea of the criteria employed by given cultures at given moments in time, all texts that
shed light on the translation process are important.”
Cf. o texto fonte “To create a ‘microhistory’ reclaiming the details of everyday lives and working processes of something little-known or forgotten and contextualising them to construct a
social and cultural history of translations and translators.”
151
De acordo com Válmi Hatje-Faggion (2015, p. 72-73; 109-118; 2017, p.
61-62), são pouco frequentes as manifestações dos tradutores de obras literárias
nas traduções de obras de Machado de Assis para o inglês que abordam o seu
processo tradutório ou o de outros tradutores, seja em seus textos suplementares
(notas de rodapé, introdução de tradutor) que eventualmente adicionam à tradução publicada, seja nas fontes extratextuais relativas às obras publicadas.
Em relação à expressão e materialização da outra voz, a de Caldwell,
nos textos suplementares que se referem a esse texto traduzido (notas de rodapé, introdução da tradutora), há diversas ocorrências. Dos quatro romances
que traduziu, Caldwell elaborou uma “introdução da tradutora” para três deles:
Esaú e Jacó (1966, p. v-xv), Memorial de Aires (1972; p. v-ix) e Helena (1984; p.
v-ix); a exceção é Dom Casmurro (1953; p. 5-13), que tem introdução do norte-americano Waldo Frank (1889-1967), escritor, crítico e também estudioso
de questões latino-americanas.
Na introdução a sua tradução de Counselor Ayres’ Memorial (Translator´s
introduction, 1972, p. v-ix), Caldwell alia, em vários momentos, seu conhecimento de professora universitária de latim e grego para estabelecer conexões
com a obra de Machado de Assis. No caso da alusão literária (Catullus) que
Machado de Assis emprega de uma obra clássica quando trata de escravatura e
abolição, Caldwell (1982, p. vi) afirma: “e o modo de agregar grandes opostos,
lembra da lírica de Catullus.”7
Em Esau e Jacob, Caldwell (1966, p. v-xv) também aborda na sua introdução os autores e a Bíblia citados por Machado de Assis. As alusões às passagens
da Bíblia e aos trechos de obras de autores como Horace, Shakespeare, Dante,
Shelley também servem para indicar o repertório intelectual da tradutora e como
ela o emprega na análise da narrativa machadiana para explicitar a intertextualidade de obras e autores que influenciaram a escrita de Machado de Assis, na voz
dos seus personagens (como Ayres em Esaú e Jacó – Horace, Dante); Memorial
de Aires (Shakespeare, Dante, Shelley, que foi um dos mais importantes poetas
românticos ingleses, citado sete vezes em Memorial de Aires).
7
Cf. o texto fonte “and the placing of great opposites in small compass, remind one of lyrics by
Catullus.”
152
Em Counselor Ayres’ Memorial, Caldwell (1972, p. v) também aborda o
processo de elaboração das obras de Machado de Assis, incluindo a temática
(conexão entre as obras e a metodologia de preparação do enredo de obras
subsequentes) dos principais livros, a caracterização e a construção das personagens e associa a construção das personagens Fidélia e Carmo (que seria uma
referência à Carolina, a falecida mulher de Machado).
Frank (1953, p. 5-13), que escreve a Introdução para a tradução de Dom
Casmurro, trata da vida e da obra do autor brasileiro. Ele ressalta as características físicas do escritor: “era mulato, baixinho, míope, franzino e epilético” (p. 6);
“homem de cor doente” (p. 7); “um homem de cor carioca”8 (p. 9-10), mas, ao
final, Frank (1953, p. 6; p. 13) enfatiza que essas questões de raça e doença nada
têm a ver com a genialidade do escritor Machado de Assis. “Uma obra de arte
literária sem igual” (p. 9). Frank (1953, p. 5-6) destaca o interesse de Machado de
Assis por autores europeus como Swift, Sterne e Mark Twain. O crítico observa
ainda que “os leitores podem associar a arte do romance de Machado de Assis às
obras de Proust e Kafka”9, com os quais estão familiarizados. Para Frank (1953,
p. 7), “este homem doente e de cor se tornou presidente da Academia Brasileira
de Letras e foi reconhecido como o maior escritor brasileiro”10.
Frank (1953, p. 9-13) aborda a obra Dom Casmurro informando que ela foi
publicada em 1900; que se trata de uma “narrativa enganadora com linguagem leve
e límpida”11 (p. 9); e cita autores renomados do século XIX para contrapor a linguagem empregada por Balzac, Flaubert, Pérez Galdós, Zola; (p. 9). O crítico evoca
Laurence Sterne para destacar a similaridade no estilo e na estrutura da obra com
capítulos curtos, digressões, parênteses, idas e vindas, humor; entretanto confere
mérito próprio à obra, destacando que se trata de um caminho traiçoeiro, que em
cada detalhe, casual e leve, é perfeito para prender o leitor (p. 10).
8
9
10
11
Cf. o texto fonte “He was undersized, myopic, rachitic, epileptic”; (p. 6); “sickly man of color”
(p. 7); “a carioca colored man” (p. 9-10); “this little masterpiece [...] was composed by the
epileptic son of a poor mulatto” (p.13); a literary art of unsurpassed precision” (p. 9).
Cf. o texto fonte “could make of Machado de Assis the herald of a novelist art familiar to us
in the works of Proust and Kafka”.
Cf. o texto fonte “this sickly man of color had become president of the Academy of Brazil and
the acknowledged leader of Brazil’s men of letters”.
“is a deceptive book- and means to be; the language is limpid and light”.
153
Frank (1953, p. 11) até almeja que sua introdução para Dom Casmurro
não seja lida, ou, então, que ela seja lida somente após a leitura da obra. Assim,
ele ficaria à vontade para discutir a ambiguidade central em Dom Casmurro,
que é a inocência ou a culpa de Capitú, sem prejudicar o curso de leitura de
capítulo após capítulo. Frank (1953, p. 11) relata brevemente o enredo da obra
e dá detalhes sobre as obras; ele alerta o leitor sobre a ambiguidade da narrativa para a qual Machado de Assis não dá respostas e recomenda uma segunda
leitura da obra (p. 11). Para Frank (1953, p. 12), “Dom Casmurro não é uma
história de mistério sobre um triângulo amoroso; não é romance psicológico
sobre ciúmes; isto é tudo o que pode ser dito”.12
Com relação à tradução, Frank (1953) faz dois comentários sobre
Dom Casmurro traduzido por Caldwell: “muito bem traduzido aqui/ here
admirably translated” (p. 7); e “cuidadosamente traduzido para o inglês”/
“now so featly englished” (p. 13).
Já Caldwell, a tradutora, não menciona absolutamente nada sobre o percurso tradutório nos seus três textos introdutórios que acompanham e suplementam
as suas traduções dos três romances de Machado de Assis em formato de livro.
Entretanto, em outras fontes primárias Caldwell, evidencia a preocupação com o fazer tradutório. De acordo com Hélio Guimarães (2019),
Caldwell e o editor da The Noonday Press, Cecil Hemley, trocaram cartas durante a elaboração da tradução de Dom Casmurro nos anos de 1950.
Waldo Frank também foi contatado por Hemley por cartas para elaborar a
introdução para essa tradução e teve acesso à correspondência trocada entre
Caldwell e Hemley, em que ambos discutem aspectos do percurso tradutório,
incluindo a questão do título da obra e seus desdobramentos e dificuldades
na tradução para o inglês (Guimarães, 2019).
As bases da crítica sobre as quatro traduções de Caldwell são constituídas também a partir dos textos e comentários exibidos pelas duas editoras, ambas reconhecidas no mercado editorial, na capa, contracapa (das duas edições
brochura) e na página dos direitos autorais.
12
Cf. o texto fonte “Dom Casmurro is not a mystery story about a marital triangle; no psychological novel about jealousy. This much can be said.”
154
Em relação às capas das quatro traduções analisadas, duas são de capa
dura (Esau and Jacob e Dom Casmurro); as outras duas são em edição brochura;
a capa de Helena (1984) e de Counselor Ayres’ Memorial (1972) apresentam explicitamente a tradutora Caldwell como a tradutora e a autora da Introdução
que acompanha a tradução: “Translated with an introduction by Helen Caldwell”/ “Tradução com uma introdução por Helen Caldwell”.
Nenhuma das duas editoras que publicaram as quatro traduções mencionam o ano de publicação da obra em português, deixando, assim, de localizar o
novo leitor no tempo. Esau e Jacob (1966) e Dom Casmurro (1953) não trazem
referência ao ano de publicação da obra, no sistema literário de origem. Entretanto, assim como Frank na Introdução que acompanha a tradução (Dom Casmurro,
1953), Caldwell (Esau e Jacob, 1966, p. v) menciona o ano; ela ainda destaca que a
obra tem o Rio de Janeiro de 1869-1894 como cenário. Trata-se, pois, explicitamente, de obras estrangeiras deslocadas no tempo e no espaço geográfico, oriundas
do Hemisfério Sul; com “carruagens com cavalos, cumprimento de chapéus, e outros costumes deste lugar e tempo distantes”.13 (Caldwell, Esau e Jacob, 1966, p. v).
Na página dos direitos autorais, Caldwell não é apresentada como a
tradutora em todos os romances: em Helena (1984), a tradutora é mencionada,
mas não em Counselor Ayres’ Memorial (1972), constituindo, pois, uma diferença de prática editorial na mesma editora; como esperado, Machado de Assis é
citado, em todas as traduções, como o autor do romance traduzido: “Helena,
a novel by Machado de Assis (1839-1908)”. A referência recorrente do autor na tradução (capa, contracapa, folha de rosto, página dos direitos autorais)
também é indício de que se trata de texto traduzido – obra literária oriunda
de outro sistema literário/ estrangeiro. A página dos direitos autorais informa
as editoras e sua abrangência internacional – Berkeley, Los Angeles, nos Estados Unidos, e London, Reino Unido –, o que evidencia o alcance da difusão
das traduções também na Europa, e sobretudo para leitores de língua inglesa
em geral. Das quatro traduções de Caldwell, os direitos autorais de três estão
reservados à editora University of California Press/ copyright “The Regents of
13
Cf. o texto fonte “with horse-drawn carriages, tippings of hats, and other manner from that
faraway time and place”.
155
the University of California”: em Esaú e Jacó (1966), Counselor Ayres’ Memorial
(1972) e Helena (1984); e reservados à tradutora, Caldwell, no caso de Dom
Casmurro (“Noonday, copyright 1953 [translation] by Helen Caldwell”).
Ainda na página dos direitos autorais a editora University of California
Press apresenta uma nota para informar sobre o texto de partida que serviu de
base para a tradução: Em Counselor Ayres’ Memorial (1972, p. iv): “Nota: A tradução é baseada em edição sem data da Garnier (Imprimerie P. Mouillot) com
correções de acordo com o manuscrito da Academia Brasileira de Letras.”14
Em Helena (1984), na página dos direitos autorais, há a seguinte nota,
com informações relevantes sobre a publicação da obra no Brasil, mencionando, além disto, a edição do texto que serviu de base para a tradução e que
outras duas edições de textos foram consultadas, como a de Massaud Moisés
(1960) com notas introdutórias e texto revisado:
Nota: Helena foi publicado em folhetim em O Globo (Rio), ago.-set., 1876;
formato livro, outubro do mesmo ano: Helena/ por/ Machado de Assis/ Rio
de Janeiro/ B. L. Garnier/ Livreiro-Editor do instituto Histórico Brasileiro/ 65 Rua do Ouvidor/ 1876.15
E sobre a edição da editora Civilização Brasileira (1975) utilizada:
O texto desta edição é a da Jackson de 1944, com leituras alternadas sugeridas por outras edições, principalmente: Machado de Assis.
/Helena / Iaiá Garcia / Organização, introdução, revisão de texto e notas/ de
/ Massaud Moisés/ Editora Cultrix, São Paulo, 1960; e Machado de Assis/
Helena/ Em convênio com o Instituto Nacional do Livro/ Ministério da
Educação e Cultura, sob o patrocínio do Programa de Ação cultural do Departamento de Assuntos Culturais/ Civilização Brasileira/ 1975 [Edições
Críticas de/ Obras de Machado de Assis/ Volume 2].16
14
15
16
Cf. o texto fonte “Note: The translation is based on an undated Garnier edition (Imprimerie
P. Mouillot) with corrections in accordance with the manuscript belonging to the Academia
Brasileira de Letras.”
Cf. o texto fonte “Note: Helena was published in installments in O Globo (Rio), Aug.-Sep., 1876;
in book form, October of the same year: Helena/ por/ Machado de Assis/ Rio de Janeiro/ B. L.
Garnier/ Livreiro- Editor do instituto Histórico Brasileiro/ 65 Rua do Ouvidor/ 1876.”
Cf. o texto fonte “The text of the present edition is the Jackson edition of 1944, with alternated readings suggested by other editions, in particular: Machado de Assis /Helena / Iaiá Gar-
156
Em outro trecho dessa Nota há informação sobre a estratégia de tradução adotada para traduzir os nomes próprios presentes no romance: “A grafia
dos nomes próprios adotada por Machado de Assis é mantida: Helena, Valle,
Estacio, etc.”17 Assim, é evidenciado para o novo leitor de que se trata de texto
traduzido, pois destaca que a grafia dos nomes próprios dos personagens de
Machado de Assis são apenas transcritos e não traduzidos (para o inglês). Parece interessante observar que apenas este aspecto da tradução, dentre tantos
outros relevantes, mereceu comentário.
Há traduções que foram publicadas em coleções e com apoio financeiro da editora e de outras instituições. Esau and Jacob (1966) foi traduzido e
publicado com o apoio da Rockefeller Foundation/ “Published with the assistance of a grant from the Rockefeller Foundation”. Helena (1984) informa na
contracapa que a obra se insere na coleção/no selo Literature/Latin American
Studies da editora universitária norte-americana, California University Press.
Esse fomento garante a realização da tradução e ainda contribui na possível
circulação das obras de Machado de Assis no mundo anglófono.
Os créditos da ilustração da capa são mencionados: “Cover design by
Charles Furham” (contracapa da tradução de Helena, Caldwell, 1984); “Designed by Ann W. Hawkins” (Esau e Jacob, folha de rosto, Caldwell, 1966); “Designed by Dave Pauly” (Counselor Ayres’ memorial, folha de rosto, Caldwell, 1972).
Nas contracapas há várias ocorrências de textos suplementares publicados em jornais e revistas, em que comentadores tecem suas apreciações, muitas
vezes de forma genérica.
Com relação às bases da crítica na contracapa das quatro traduções,
observa-se que a contracapa da tradução de Helena (1984) e a de Counselor
Ayres’ memorial (1972) apresentam comentários de escritores, professores e críticos literários estrangeiros. Em Helena há três comentários. Para Tom Carson
17
cia / Organização, introdução, revisão de texto e notas/ de / Massaud Moisés/ Editora Cultrix,
São Paulo, 1960; e Machado de Assis/ Helena/ Em convênio com o Instituto Nacional do
Livro/ Ministério da Educação e Cultura, sob o patrocínio do Programa de Ação cultural
do Departamento de Assuntos Culturais/ Civilização Brasileira/ 1975 [Edições Críticas de/
Obras de Machado de Assis/ Volume 2]. ”.
Cf. o texto fonte “Machado de Assis’s spelling of proper names has been retained: Helena,
Valle, Estacio, et cetera”.
157
(1984), escritor, crítico e redator do Village Voice Literary Supplement (VLS)
de Nova York, Estados Unidos, “Machado de Assis é um ‘Modernista [...] ele
se mantém como modernista entre os modernistas’”, e “Helena é um de seus
romances mais populares, bem escrito, com um casal de apaixonados e morte
romântica que se passa no Rio de Janeiro em 1879”.18
Caldwell (1984, p. v)19 também comenta a composição de Helena, o enredo
da estória de suspense, de detetive, de caráter romântico, o que pode atrair os novos
leitores. Esse aspecto da obra também é destacado por David Lehman (1984)20,
poeta, professor, escritor e crítico literário da então conhecida revista semanal norte-americana Newsweek, que destaca que “[Helena] é um melodrama romântico”/
“que tem toda a paixão de um melodrama romântico, mas sem aquele sentimentalismo efusivo”. Um comentário genérico muito provavelmente baseado apenas na
tradução (e não em uma comparação com o texto em português).
Em sua introdução a Esau and Jacob, Caldwell (1966, p. v) também se
refere “ao método sutil de narrar e ao tom estranhamente modernista dessa
obra destacando que ela ainda fascina e impressiona.”21
Paul B. Dixon (1984), professor de português e espanhol da Purdue
University, nos Estados Unidos, é mencionado na contracapa com seu comentário publicado na revista Hispania (n. 68). Dixon (1984)22 defende a tradução
de Memorial de Aires no sentido de ela ser útil não apenas para promover a
ampliação do número de leitores de excelente obra com mérito próprio, mas
também para dar andamento ao projeto de tradução das obras do escritor brasileiro a serem publicadas pela University of California Press para o inglês. Dixon publicou resenhas, comentários e livros sobre a obra de Machado de Assis.
18
19
20
21
22
Cf. o texto fonte “Machado de Assis is a ‘modernist [...]’ he remains unique among modernists […].”; “In Rio de Janeiro in 1879, [...] Helena... was among his most popular – tightly
crafted, […] doomed lovers, and romantic death.”
Cf. o texto fonte “Helena has another attraction for its readers: it is romantic.”
Cf. o texto fonte “It has all the passion of a romantic melodrama without any of the effusive
sentimentality.”
Cf. o texto fonte “[...] And the method of narration is so subtle, so strangely modern that it
still fascinates and baffles”.
Cf. o texto fonte “because the book is excellent in its own right and deserves to be appreciated
by a broader audience.”; “the publication of Helena is significant not just because it almost
completes the project of translating all of the Brazilian master’s novels”.
158
Desses três comentadores, nenhum aborda a tradução de Helena, e apenas Dixon é acadêmico e estudioso da obra de Machado de Assis.
No caso de Counselor Ayres’ memorial, há quatro comentários na contracapa23, mas apenas um deles aborda a tradução: “traduzido recentemente”
(Chicago Tribune); e todos os críticos elogiam a obra e o autor: “um dos grandes romancistas do século XIX” (Chicago Tribune); obra de excelente escritor
(Kirkus Reviews); “uma experiência a ser experimentada” (Cleveland Plain Dealer); “última grandiosa obra da arte de Machado de Assis” (Nation).
De modo geral, como evidenciado acima, os comentários dos críticos
nas contracapas das traduções trazem elogios à obra e ao escritor brasileiro.
Na Introdução a sua tradução de Helena, Caldwell (1984, p. ix), ressalta a
importância da tradução para que os leitores de língua inglesa possam entrar em
contato com a obra e apreciá-la: “que os novos leitores de Helena [leitores de língua inglesa] possam ter o mesmo prazer nessa história que os brasileiros [...].”24
Nessa Introdução, Caldwell (Helena, 1984, p.v-ix) destaca que “Helena
não faz parte do conjunto dos cinco principais romances de Machado de Assis.
Entretanto, segundo a tradutora, “Helena foi e é um dos romances mais populares entre os leitores brasileiros de todas as classes sociais; desde a sua publicação,
em 1876, mais de 20 edições surgiram em português.” 25 (p. v). Como já mencionado, este aspecto da obra também é destacado também por Carson (1984).
Ainda nessa Introdução, Caldwell (Helena, 1984, p. ix) informa seu leitor sobre a posição inferior, mas não menos importante, que a obra Helena ocupa e sua importância no conjunto da obra do escritor brasileiro. Caldwell cita
trecho de seu livro sobre a obra de Machado de Assis (1970, p. 60), revelando
que estudou e conhece bem todos os romances de Machado de Assis:
23
24
25
Cf. o texto fonte “freshly translated.” (Chicago Tribune); “one of the great novelists of the 19th
century.” (Chicago Tribune); “ the work of a masterful writer.” (Kirkus Reviews); “it is an experience I urge you to undertake.” (Cleveland Plain Dealer); “It is a last fitting monument to
the art of Machado de Assis.” (Nation).
Cf. o texto fonte “May Helena’s new readers take the same pleasure in the story as they [Brazilians] [...]”.
Cf. o texto fonte “Helena [...] it is [...] and always has been, one of his most popular among
Brazilian readers of all classes. Since its publications, in 1876, more than twenty editions
have appeared in the original Portuguese.” Este dado indica o prestígio do autor no sistema
literário de origem.
159
Este romance não exibe a maestria da narrativa que se encontra em Dom
Casmurro ou Counselor Ayres’s Memorial, mas ainda é Machado de Assis,
com uma atmosfera carregada emocionalmente, com personagens vibrantes, episódios dramáticos, ironia, humor, o começo do “simbolismo que se
tornaria parte integral de seus últimos romances, com sua força sutil, poética e persuasiva’ ”.26
Em Esau and Jacob, Caldwell (1966, p. v) informa o número total de
romances escritos por Machado de Assis e dá detalhes sobre a composição
artística e a posição do romance, o que também indica prestígio do autor no
sistema literário brasileiro:
Com este seu oitavo e penúltimo romance, o poder da narrativa de Machado de Assis atinge seu ápice. Este é seu mais bem integrado de todos
os seus romances – uma obra sábia, delicada, amável, levemente engraçada,
mas intelectualmente concebida.
A tradutora prossegue elogiando, enaltecendo a obra: “esta obra de deleite,
de outra época, outra língua, outro hemisfério.”27 Caldwell (Esau and Jacob, p. xv)
menciona outras obras do autor e as compara entre si nivelando-as no conjunto
da obra de Machado de Assis e elogia Esau and Jacob: “Como os outros quatro
romances de Assis [...] ele é seguramente uma obra de arte única dentre as criações
de Machado de Assis e dentre outras obras de genialidade universal.”28
Em sua introdução a Counselor Ayres’ Memorial, Caldwell (1972) apresenta o enredo desse romance e aborda personagens da literatura inglesa citados por Machado de Assis (Memorial de Aires, Janeiro 14, p. 14-16). O escritor
26
27
28
Cf. o texto fonte “This novel does not exhibit the mastery of the medium one finds in a Dom
Casmurro or a Counselor Ayres’ Memorial, but it is still Machado de Assis, with an emotionally
charged atmosphere, vibrant personages, dramatic strokes, irony, wit, and a beginning of the
‘symbolism that was to become an integral part of his later novels, with its subtle, poetic,
pervasive strength.’”
Cf. o texto fonte “For, with this, his eighth and penultimate novel, Machado de Assis’narrative power reached his apex. This is the most tightly integrated of all his novels – a work that
is wise, delicate, loving, gently funny, but intellectually conceived; “this work of mirth from
another age, another language, another hemisphere.”
Cf. o texto fonte “Like the other four of Assis’ last five novels, [...] it stands securely, a unique
work of art among Machado de Assis’creations and among other works of universal genius.”
160
menciona a cidade italiana de Verona e as famílias de Romeu e Julieta de
Shakespeare (p. 16), e os escritores Shelley (p. 16; 21) e Thackeray (p. 16). Caldwell também aborda o contexto brasileiro da época da escravidão.
Caldwell (Esau and Jacob, 1966, p. v-xv) cita autores que considera relevantes na análise e composição da obra e na interpretação dos personagens;
discute dados sobre a obra, a relação do título com a epígrafe e o enredo (p. vii); e
observa que Machado de Assis alterou o título da obra de Último para Esau e Jacó
já na prova final da editora (p. vii); Caldwell (p. viii) detalha capítulos da obra e
cita longos trechos de capítulos em que o narrador (Ayres alude à obra de Dante)
explica seu método de compor a narrativa (p. viii, p. ix); ela aborda, também os
títulos dos capítulos e o conteúdo de alguns capítulos (p. x), contribuindo, pois,
substancialmente para uma melhor compreensão e interpretação da obra.
A tradutora também trata de questões históricas, sociais e políticas que
atrela ao conteúdo abordado por Machado de Assis, como personagens e temas importantes na formação do Brasil dos séculos XVI a XIX: Manuel da
Nóbrega, Colégio Jesuita, igreja jesuita, superstição, religião, constituição racial (Indian, Negro, and Portuguese folklore, p. xi), e Gastão Cruls. (Caldwell,
1966, Esau and Jacob, p. x).
Conforme mencionado anteriormente, Caldwell não inclui informações sobre o percurso tradutório nas introduções de suas três traduções. A
presença discursiva da tradutora é pouco perceptível ao se fazer uma leitura
apenas da tradução, pois há apenas umas poucas notas de rodapé em que a
tradutora esclarece algumas palavras do contexto sociocultural brasileiro; entretanto, quando se coteja a tradução de modo comparativo com o texto em
português, várias estratégias tradutórias evidenciam a presença da tradutora.
Com relação às notas de rodapé, Caldwell apenas as adicionou nas
suas duas últimas traduções: Esaú e Jacob (1966; zero notas); Counselor Ayres’
Memorial (1972; zero notas); Helena (1984; quatro notas); e Dom Casmurro (1953; cinco notas). O conteúdo das notas adicionadas aborda palavras
atreladas a questões socioculturais brasileiras: em Helena (1984), há nota de
rodapé para uma obra literária; para as palavras “mucamas” (p. 19); “chácara”
(p. 20); e “A Cadeia Velha” (p. 50).
161
Na primeira nota de rodapé, que aborda a obra Saint-Clair das Ilhas em:
[...] encontrou D. Úrsula [...] a ler um tomo do Saint-Clair das Ilhas, enternecida pela centésima vez com as tristezas dos desterrados da ilha da Barra;
(Machado de Assis, Helena, Cap. III, p. 11).
[where he found Dona Ursula [...] reading a tome of St. Clair of the Isles*
and for the hundredth time melted to pity by the sorrows of the outlaws on
the Isle of Barra:] (Helena, Caldwell, cap. III,1984, p.19)
[*St. Clair of the Isles, or The Outlaws of Barra, a Scottish tradition, by
Elizabeth Helme (London: T. N. Longman and O. Rees, 1805). Dona Ursula probably read it in translation.]
A tradutora se manifesta para dar detalhes sobre a obra (nome da escritora, título da obra, editora, local e ano de publicação) e ressaltar que a personagem Úrsula provavelmente tenha lido essa obra traduzida para o português.
Caldwell ressalta, pois, a importância da tradução no Brasil da época, a de dar
acesso às obras europeias a um público que não lia em inglês. Machado de Assis cita em várias obras esse romance, em quatro volumes, que foi traduzido do
inglês para o português, em 1825, e publicado pela Tipografia de Silva Porto,
no Rio de Janeiro. Na literatura brasileira traduzida, era obra muito (re)lida ou
apenas ouvida (pelos analfabetos que, graças à tradição das leituras em voz alta,
também puderam entrar em contato com essa obra).
Em outra nota de rodapé, Caldwell elucida a palavra “mucama”:
[...] dirigindo-se à mucama que ali estava [...] nhanhan Helena? (Machado
de Assis, Helena, cap. III, p. 11).
[“addressing the mucama* who stood by the table. [...] Nhanhan Helena?”]
(Helena, Caldwell, cap. III, 1984, p. 19).
*mucama, a Brazilian term for a favorite young female slave employed about
the house].
A presença da tradutora ocorre para explicitar ao leitor de língua inglesa o significado de mucama, termo brasileiro para se referir à moça escrava
que trabalhava na casa (em referência à casa-grande x senzala). Nesse mesmo
162
trecho, a tradutora, no entanto, mantém-se em silêncio (e, por isso mesmo,
paradoxalmente presente) com relação à palavra “nhanhan” (sinhá-moça) em
referência à personagem Helena, que não recebe explicação.
Em sua obra, Machado de Assis empregou a palavra “chácara”, pequena
propriedade em área rural, próxima da cidade. Em Helena, ela aparece, inicialmente, no capítulo II. Ressalte-se que Caldwell não adiciona nota de rodapé
nessa primeira ocasião, mas, sim, mais adiante, no capítulo III.
A palavra recebe a seguinte tradução:
Ao penetrar na chácara, deu com os olhos nas janelas (Machado de Assis,
Helena, cap. II, p. 10).
[On entering the grounds, he turned his eyes toward the windows] (Helena, Caldwell, cap. II, 1984, p. 18).
Em outra ocorrência de chácara, a voz da tradutora é percebida na seguinte nota de rodapé:
os fundos da chácara. (Machado de Assis, Helena, cap. III, p. 11).
[the grounds of the chácara*] (Helena, Caldwell, cap. III, 1984, p. 19-20).
[*chácara, a country estate on the edge of the city].
Entretanto, pouco mais de uma década antes, em Memorial de Aires
(1972), Caldwell opta por apenas transcrever a palavra “chácara”, sem nem
mesmo colocá-la em itálico; não adiciona nota de rodapé ou outra explicitação
para seu leitor, como em:
de dentro de uma chácara. (Machado de Assis, Memorial de Aires, cap. 18
de setembro, p. 63).
[inside a chácara] (Caldwell, Memorial de Aires, cap. 18 de setembro, p. 107).
A seguinte nota de rodapé da tradutora não apenas revela como as coisas eram na época de Machado de Assis, mas também atualiza os dados para
o novo leitor. Caldwell acrescenta informação do contexto brasileiro como expresso em: “was at this time/ naquela época”; e esclarece a diferença do uso de
163
um assento na Câmara dos Deputados (“The Old Jail” /“A Cadeia Velha”) e
uma cadeia/prisão (“in a cell in the Aljube”/ “quarto no aljube”). Nesse caso, a
tradutora apresenta a nota de rodapé já na primeira vez em que Machado de
Assis emprega a palavra “aljube” no capítulo VII (que também aparece depois
no capítulo 25, p. 124):
– Uma cadeira na Câmara! Não é a mesma coisa que um quarto no Aljube.
[...] determinei metê-lo na Cadeia... Velha. (Machado de Assis, Helena,
cap. VII, p. 34).
[ [...] A seat in the Chamber of Deputies! It’s not the same as a cell in the
Aljube... [...] I determined to put you in jail... in the Old Jail.*] (Helena,
Caldwell, cap. VII,1984, p. 51).
[*The Old Jail (“A Cadeia Velha”) was at this time the seat of the Federal
Chamber of Deputies.]
Em Dom Casmurro (1953, cap. 1, p. 1), Caldwell adiciona informação em nota
de rodapé sobre topônimos, localização geográfica do subúrbio do Rio de Janeiro.
[...] da cidade para o Engenho Novo. (Machado de Assis, Dom Casmurro,
cap. 1, p. 1).
[from the city to Engenho Novo,*] (Dom Casmurro, Caldwell, cap. I,
1953, p.17).
[* “The New (sugar) Mill,” a suburb of Rio de Janeiro.]
Caldwell traduz o topônimo como “The New (sugar) Mill”, que traduzido de volta para o português se leria como “O Novo Engenho (de
Açúcar)”. Informação ampliada que o leitor de português não recebe no
texto de partida de Machado de Assis.
Em outra ocorrência, a tradutora também traz informação extra sobre o topônimo Fort Lage para localizar o leitor de língua inglesa (no porto
do Rio de Janeiro):
parecendo ir à fortaleza da Laje (Machado de Assis, Dom Casmurro, cap.
18, p. 19).
164
[seeming to go to Fort Lage*] (Dom Casmurro, Caldwell, cap. 18, 1953, p. 54).
[*In the harbor of Rio de Janeiro.]
Em Dom Casmurro (1953), Caldwell adiciona informação para explicitar a unidade monetária contos/ milreis, que, no entanto, não parece ser de
grande relevância para o leitor de língua inglesa, já que não agrega, por exemplo, a atualização do valor para a época da publicação da tradução.
num meio bilhete de loteria, dez contos de réis. (Machado de Assis, Dom
Casmurro, cap. 16, p. 15).
[with a half ticket in a lottery, ten whole contos.*] (Dom Casmurro, Caldwell, cap. 16, 1953, p. 46).
[*Conto= 1,000,000; in all 10,000 milreis].
A tradutora se inscreve na sua tradução para destacar questões de superstição dos brasileiros, na seguinte nota de rodapé, que trata da ocorrência
de chuva em dia de casamento, o que significa sorte, felicidade para o casal:
[...] casemo-nos. [...] por sinal que chovia. (Dom Casmurro, cap. 101, p. 128).
[...] Let us get married. [...] it happened to be raining.*] (Dom Casmurro,
Caldwell, cap. 101, 1953, p. 206)
[*In Brazil the superstition is that a rainy marriage means a happy one.]
Machado de Assis insere trecho de obra de Dante em italiano. A tradutora se inscreve na sua tradução para mencionar o tradutor para o inglês
dessa obra que Machado de Assis cita e que ela transcreve dessa tradução de
White para o inglês.
à porta do Céu, onde nos encontraremos renovados, como as plantas novas,
come piante novelle, Rinovellate di novelle fronde. O resto em Dante. (Machado de Assis, Dom Casmurro, cap. 129, p. 115).
[to the gate of heaven where we shall meet again, renewed like the new
green plants in spring, “Made new- as trees are brought to life again With
their new foliage – purified.” * The rest, in Dante.] (Dom Casmurro, Caldwell, cap. 129, 1953, p. 250).
165
[*Translation of Lawrence Grant White (N.Y.: Pantheon Books, 1948).]
Com relação às notas de rodapé adicionadas em apenas duas de suas
traduções (Helena e Counselor Ayres’ Memorial), Caldwell se mostra bastante
econômica, o que pode ser atribuído a sua vontade própria (não gostar, por
exemplo, de notas em obras literárias) ou a da editora, em virtude de práticas
editoriais vigentes. Já nas introduções que escreve para três de suas quatro
traduções, a tradutora aproveita para demonstrar o conhecimento prévio que
tem sobre a obra de Machado de Assis, resultado de seu estudo minucioso
publicado em seus dois livros.
Como foi evidenciado pelos textos suplementares abordados (introdução da tradutora e nota de rodapé), as escolhas tradutórias de Caldwell podem
ajudar o leitor de língua inglesa a melhor entender a obra de Machado de Assis, já que as estratégias visam o leitor do sistema literário de chegada. A tradução para o inglês está impregnada do universo brasileiro, do Outro, nos textos
suplementares, oferecendo inclusive mais informação (para melhor compreensão dos romances) do que Machado de Assis tinha proposto ao seu leitor.
Caldwell, professora, tradutora e crítica norte-americana, pelo caminho da tradução, abriu os horizontes e passou a estabelecer conexões literárias
para Joaquim Maria Machado de Assis (autor) e seu leitor; deu aos leitores de
língua inglesa a oportunidade de ler quatro romances de Machado de Assis,
escritos inicialmente em português; deu a Machado de Assis os leitores que ele
merece, em nível internacional; deu a conhecer os personagens, as estórias fascinantes, o estilo grandioso desse gênio de nível de literatura mundial (world
literature); deu fomento para a repercussão e a fama a Machado de Assis no
mundo anglófono com as traduções publicadas nos Estados Unidos e Inglaterra por editoras de prestígio e do meio acadêmico.
Desde 1953, com suas traduções, Caldwell permite o encontro de
Machado de Assis, escritor de literatura de porte mundial, com novos leitores em âmbito global.
Em relação aos dados apresentados que envolvem o processo de formulação e circulação da tradução (edição, editora, financiamento), pode-se destacar
166
que a presença discursiva da tradutora pode ser rastreada tanto no texto traduzido (notas de rodapé) quanto nos textos suplementares que ela adiciona (introdução da tradutora) e, ainda, nos comentários de críticos (contracapa e introdução).
Aparentemente, Caldwell tentou ao máximo, com pouca interferência,
elaborar uma tradução dos quatro romances com mérito próprio, levando ao
leitor de língua inglesa praticamente apenas o texto produzido por Machado
de Assis com seus enredos e personagens cativantes. Em poucas ocasiões, nas
notas de rodapé ela adicionou informações, deixando assim, para o seu leitor,
a incumbência de se aprofundar na obra desse autor brasileiro. Já nas introduções que elaborou, Caldwell dá muitas pistas e oferece dados preciosos sobre
a composição artística para a compreensão da obra do escritor brasileiro e a
localiza em contexto social, histórico, cultural e político do Brasil.
Assim, a elaboração de introdução para as suas traduções revela posições até certo ponto divergentes de Caldwell com relação ao processo tradutório e as suas inter-relações socioculturais: por um lado, a tradutora se
expressa com parcimônia em poucas ocasiões de forma explícita (notas de rodapé), talvez porque segue a tradição de uma cultura etnocêntrica dominante
(a norte-americana), que pouco publica literatura traduzida), tentando assim
ocultar o Outro, o estranho, o estrangeiro, fazendo parecer que a obra foi
publicada originalmente em inglês (e não em português por um brasileiro de
reconhecido mérito e prestígio); já por outro, a tradutora apresenta estudos
detalhados sobre a obra do escritor brasileiro nos seus textos introdutórios
em que se mostra (se faz visível e presente) e indica o conhecimento que tem
desse autor, que escreve em português.
Caldwell, com suas produções (tradução e os textos suplementares) estabelece a conexão entre os sistemas literários brasileiro e norte-americano e de
forma extensiva a outros sistemas literários (o britânico e o alemão) que comenta
em função da língua inglesa, o que amplia consideravelmente os horizontes do
autor brasileiro. Desta forma, a tradutora e os outros agentes institucionais (comentador/crítica, patrocinador, editora) teorizam sobre a prática da tradução ao
abordar o processo de tradução sob diferentes ângulos. De 1953 a 1984, em cada
década Caldwell publicava a tradução de uma obra de Machado de Assis.
167
Entretanto, Caldwell não comenta nada sobre o seu projeto de tradução
de romances de Machado de Assis para a University of California Press, sobre
o qual Dixon (1982) relata, por exemplo, em seu comentário apresentado na
contracapa de Counselor Ayres’ Memorial.
De modo geral, há que se reforçar, pois, a importância das fontes primárias e dos textos suplementares na análise de uma literatura traduzida e
publicada em novo sistema literário e sociocultural.
No caso de Caldwell, falta saber ainda, por exemplo, como e onde a
tradutora aprendeu o português; de onde surgiu o interesse pela literatura brasileira e por um de seus escritores em específico (a quem dedicou sua produção
acadêmica), dentre outras questões relevantes sobre as fontes primárias que
podem ter influenciado as traduções elaboradas e publicadas.
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171
PRIMO LEVI E AS APORIAS DA HISTÓRIA: MEMÓRIA,
TESTEMUNHO E EXPERIÊNCIA
Fernando Simplício dos Santos
Elizabeth Cavalcante de Lima
1 Introdução
Devido às atrocidades ocorridas no século XX, em especial, em virtude
da Primeira e da Segunda Guerras Mundiais, este período foi considerado
como uma “Era dos extremos1”. Em decorrência disso, muitos teóricos propuseram uma reavaliação geral de conceitos, observando o abalo desencadeado no universo sócio-político-cultural. Não sem motivo, no livro Dialética
do Esclarecimento (1947), Theodor Adorno e Max Horkheimer questionaram
a concepção iluminista-kantiana de emancipação humana, com o objetivo de
melhor compreender a quebra de paradigmas, pautada na revisão do pensamento crítico. Para ambos os filósofos, a reavaliação da Aufklärung2 (Esclarecimento) tornou-se ser indispensável, uma vez que a tradição histórico-filosófica passou a se defrontar com a desestabilização de alguns princípios
éticos ou morais, antes quase inabaláveis.
Não foi por acaso que, em seus textos, Adorno chegou a questionar
os papéis exercidos pelas funções tradicionais da literatura e da educação, em
um contexto posterior às mazelas ocorridas em Auschwitz3. Especificamente, esses e outros pensadores procuraram compreender melhor o motivo pelo
qual a Aufklärung enveredou-se por um caminho no mínimo contraditório.
1
2
3
Cf., Hobsbawn, Eric. Era dos extremos – o breve século XX. Trad. de Marcos Santarrita. São
Paulo: Companhia das Letras, 2003.
Referindo-se à concepção de Kant, presente no texto “Resposta à pergunta: que é Esclarecimento?” Trad. bras. modificada por Jeanne Marie Gagnebin. In. Buzzi, Arcângelo; Boff,
Leonardo (Coords.). Textos seletos. Petrópolis: Vozes, 1985, p.100-16.
Cf., por exemplo, Adorno, Theodor W. “Educação após Auschwitz”. In: Adorno, Theodor W.
Educação e Emancipação. 3ª Ed. São Paulo: Paz e Terra. Trad. de Wolfgang Leo Maar, 2003,
pp. 119-138.
172
Por extensão, Adorno, Horkheimer, Benjamin, Marcuse, Habermas, entre outros membros da Escola de Frankfurt, reavaliaram, por exemplo, os conceitos
de representação e de literatura; de testemunho, de memória e de experiência,
sugerindo, no geral, uma revisão de certa acepção de tradição.
Assim posto, o debate que versa sobre a crítica contra o Esclarecimento revela a impossibilidade de o sujeito moderno alcançar qualquer tipo de
autonomia, em um contexto dominado pelas guerras e pelo esvaziamento das
certezas, cuja ordem de domínio procurava exterminar o que restava de humano no próprio homem e consolidar uma ampla dizimação da lógica natural
das coisas, em prol de um progresso e de uma modernidade paradoxais. Nessa
cadência, por exemplo, as obras intituladas É isto um homem? (1947) e A trégua
(1963), de Primo Levi (1947-1987), por intermédio de seu teor testemunhal
daquilo que ocorreu nos campos de concentração nazistas, problematizam uma
lógica caracterizada por uma ideia contraditória, segundo a qual, no âmbito
da guerra, esclarecer é, incoerentemente, impor o poder e apagar os rastros da
história, sobrescrevendo à força o percurso dos vencidos; criando narrativas
fundamentadas em premissas mentirosas; relativizando a razão, o sofrimento
e a morte. No âmbito da guerra, em defesa do velho ideal de civilização, na
verdade, consolidava-se a desumanização como símbolo do progresso.
Valendo-nos de uma seleção de imagens e formas discursivas, principalmente extraídas de É isto um homem?, de Primo Levi, a proposta do
presente trabalho é refletir sobre a possibilidade de se pensar a história como
aporia, por meio da teoria da narrativa, sobretudo, da narrativa de testemunho, a fim de verificar como as categorias memória, testemunho e experiência estão traduzidas no texto deste importante autor italiano. Com isso,
destaca-se um conflito irresolúvel, já trabalhado por alguns teóricos, inclusive da Escola de Frankfurt, pois, a partir da apresentação daquilo que ocorria
no campo de concentração, É isto um homem? narra o inenarrável; representa
o irrepresentável; experiencia o inexperienciável; relembra o “irrelembrável”,
não deixando de questionar as concepções que giram em torno dos sentidos
de “fantasia”, de “sonhos” ou, até mesmo, de “ficção”.
173
2 A história como aporia e as aporias da História
Algumas obras de Primo Levi – um dos poucos sobreviventes que nos
deixou um testemunho acerca das crueldades desencadeadas em Auschwitz –
tratam de maneira singular da condição do ser humano preso em um lugar cuja
única saída seria a morte; ou abordam até mesmo a representação da perda da
esperança do homem no próprio homem ou em alguma instância que ainda
poderia parecer transcendental. Além disso, as produções de Levi tratam do
questionamento em torno de toda a mística positiva, concernente às promessas
de civilização e emancipação, muito comuns em fins do século XVII e XVIII,
com o Iluminismo, ou durante o XIX e começo do XX, com o Positivismo. Em
todos esses períodos, ainda era possível acreditar na técnica ou na capacidade
de transformação do mundo, em particular por meio do domínio científico e
da manipulação dos bens naturais. Aqui, ainda se valorizava uma ideia de experiência, fundamentada na emancipação, na razão e na consciência.
Não obstante, na esteira dos três grandes mestres da suspeita, isto é,
de Nietzsche, Marx e Freud4, e com suas respectivas propostas de revisão da
ascensão das contradições da Modernidade, fomos obrigados a reavaliar os
conceitos de civilização, já que passamos a viver em um ambiente em que, por
mais que representasse o desenvolvimento, também apresentava os estigmas
de uma “barbárie racionalizada”. É por tal ponto de vista que Theodor Adorno,
Herbert Marcuse, Max Horkheimer chegaram a sublinhar a existência do One
Dimensional Man e do Eclipse da Razão5. A filosofia, a sociologia, a antropologia e, em outro patamar, a literatura não deixaram de destacar as divergências
ocorridas durante o período paradoxal que foi o século XX. A arte e a literatura
passaram a manifestar “uma nova visão do homem e da realidade ou, melhor,
a tentativa de redefinir a situação do homem e do indivíduo, tentativa que
se revela no próprio esforço de assimilar, na estrutura da obra-de-arte (e não
apenas na temática), a precariedade da posição do indivíduo no mundo moderno”
4
5
Cf., Michel Foucault Nietzsche, Freud, Marx – Theatrum Philosoficum. Tradução Jorge Lima
Barreto. São Paulo: Princípio, 1997.
Cf., Herbert Marcuse A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional. Tradução de Giasone Rebuá. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. Além deste, conferir: Max Horkheimer
Eclipse da razão. Trad. de Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Centauro, 2002.
174
(Rosenfeld, 1996, p. 97, grifo nosso). Após Auschwitz, possivelmente tal precariedade da posição do indivíduo, para muitos, tenha englobado até mesmo a
perda da crença em Deus.
Depois que certos pensadores indagarem a Aufklärung, verificaram que,
em torno de suas possíveis acepções, entre outras peculiaridades, estava a configuração de uma singular aporia. Bernardo G. Krause (2004, p. 27-8) ressalta
que uma possível definição desta figura de linguagem está relacionada à “dificuldade insuperável de um raciocínio, ou o conflito resultante da igualdade de
pensamentos entre si”. Assim, para Krause, esta constatação traz um aspecto
irresolúvel, ambíguo e dilemático, que seria mais bem elucidado por teorias a
respeito do ceticismo, em especial presentes na arte e na literatura do século
XX. Por outro lado, ao tratar do testemunho a respeito do campo de extermínio, torna-se muito difícil considerar a narrativa de Levi apenas de cunho pessimista, pois Auschwitz mostrou ao homem que era possível pensar a História
como aporia que evoca uma brutalidade racionalizada: um labirinto do qual o
indivíduo que sofreu as agruras da guerra nunca mais teria condições de fugir.
Sabemos que inúmeros teóricos, como no caso de Jean Norton Cru
(1997), pensavam que não seria correto analisar os materiais do testemunho, elaborados por meio do sofrimento, do trauma e dos estigmas da morte, a fim de destacar neles aspectos literários ou estéticos. Nas obras de Primo Levi, o testemunho está vinculado à tensão e aos fragmentos narrativos,
intrínsecos à dificuldade de resgatar as imagens pela memória traumatizada; inerentes ao depoimento daquele que luta para que as lembranças das
atrocidades do nazismo não sejam banalizadas e esquecidas. Trata-se de
uma tentativa de combater o apagamento de parte dos registros históricos
proporcionado pelo nazifascismo. Trata-se da elaboração de um registro
escrito daquilo que nunca poderia ser esquecido. Por sua vez, o narrador
de É isto um homem?, por exemplo, apresenta um confronto entre memória,
testemunho e experiência, tentado traduzir o intraduzível, explicar o inexplicável – eis, para nós, a base da mencionada aporia.
175
3 Da crítica ao Esclarecimento
Para Kant, a Aufklärung “é a saída do homem de sua minoridade, da
qual ele próprio é culpado”. Mas esta condição de inferioridade “é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo”.
Segundo o filosofo alemão, é importante frisar que “o homem é o próprio
culpado dessa minoridade se a causa dela não se encontrar na falta de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem de servir-se de si mesmo sem
a direção de outrem” (Kant, 1985, p. 100). Portanto, é a partir da autonomia
e da não submissão aos desejos de outrem que haveria possibilidade de o
homem ter consciência de si próprio, bem como das contradições ao seu
redor. Não à toa, as premissas de Kant estão baseadas na razão e na ciência,
conforme os princípios iluministas.
Todavia, a mencionada reavaliação crítica da Aufklärung tornou-se indispensável, porque as tradições historiográfica e filosófica se defrontaram
com a desestabilização de alguns princípios que antes eram quase inabaláveis.
Nesse sentido, para Adorno e Horkheimer, a técnica e a crença no progresso
ou, ainda, a confiança em um ideal comum de civilização, sobrepostas à noção de emancipação do homem e à dominação racionalizada, passaram a ser
completamente colidentes. Entre outras coisas, por meio de suas pesquisas,
estes filósofos queriam compreender melhor a maneira por que a Aufklärung
se enveredou por um caminho obscuro que a induziria à sua autodestruição;
examinar o motivo pelo qual “a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, estava [contraditoriamente] se afundando em
uma nova espécie de barbárie” (Adorno; Horkheimer, 1985, p. 11). Sob tal
perspectiva, pode-se dizer que o Esclarecimento esboçado por Kant começava a ser relacionado ao domínio e à aniquilação do mais fraco; interligava-se
à conquista, à exploração e à destruição do ambiente natural e do ser humano, pois, principalmente depois da Segunda Guerra, a razão fundada sobre
emancipação Iluminista passava por um processo agudo de degradação. Em
decorrência disso, a aporia
176
com a que defrontamos em nosso trabalho revela-se assim como o primeiro
objeto a investigar: a autodestruição do esclarecimento. Não alimentamos
dúvida nenhuma — e nisso reside nossa petitio principii — do que a liberdade na sociedade é inseparável do pensamento esclarecedor. Contudo, acreditamos ter reconhecido com a mesma clareza que o próprio conceito desse
pensamento, tanto quanto as formas históricas concretas, as instituições da
sociedade com as quais está entrelaçado, contém o germe para a regressão
que hoje tem lugar por toda parte. Se o esclarecimento não acolhe dentro
de si a reflexão sobre esse elemento regressivo, ele está selando seu próprio
destino (Adorno; Horkheimer, 1985, p. 13).
Nesse sentido, para tais filósofos, é indispensável que o pensamento filosófico crítico abarque a revisão – fundamentada em certo componente “regressivo” ou “autodestrutivo” – do progresso, da modernidade, da civilização, em
uma única palavra, da teoria do conhecimento ou da ciência. No entanto, é fundamental enfatizar que, para Adorno e Horkheimer, é preciso “identificar no
próprio desenvolvimento da razão os momentos de dominação que solapam seu
ideal de emancipação e assemelham a racionalidade à coerção mítica” (Gagnebin, 1999, p. 5). Entre outras propriedades, tal acepção crítica também revela a
impossibilidade de o homem atingir a sua emancipação por meio da Aufklärung
kantiana, em uma sociedade já totalmente tecnicista e dita racional, mas cuja
ordem de dominação procurou exterminar o humano no próprio homem.
Historicamente, o questionamento ao Esclarecimento kantiano suscitou o reexame de outras acepções sócio-político-culturais que foram paulatinamente resistematizadas, sobretudo, no decorrer do século XX. Em decorrência, no âmbito da crítica, da teoria e da história literárias, passou-se a repensar a
ideia de representação ou de arte literária, como, por exemplo, fizeram autores
que se debruçaram sobre o conceito conhecido por Testimonio, na América
Latina, e de Zeugnis, no contexto do Nazismo Alemão. Esta última conceituação versa sobre a tradição testemunhal que consiste em preservar a memória
dos sobreviventes da Shoah. Aqui, o impasse entre memória e experiência não
problematiza apenas a maneira como se relata o teor do testemunho, mas está
vinculado a um acontecimento singular, único. Não sem razão, para compor
177
seus livros, Primo Levi sabia que narrar os estigmas da guerra era, a um só
tempo, lutar contra o apagamento dos rastros, perpetuado, através dos tempos,
por inúmeros “discursos oficiais”. Nesse compasso, os textos de Levi complexificam o conceito de representação, pois, sendo o testemunho fragmentado,
este não está atrelado apenas a uma forma discursiva; a imagens passivas de
decodificação. Sem dúvida, isso não permite compreendê-lo simplesmente por
meio das tradicionais concepções de literário e de não literário, por exemplo.
No texto intitulado “‘Zeugnis’ e ‘Testimonio’: um caso de intraduzibilidade entre conceitos” (2001), Márcio Seligmann-Silva organiza no geral os pilares
da narrativa de testemunho, pontuando seus fatores estruturais, entre os quais,
sublimamos: 1) o evento; 2) a pessoa que testemunha; 3) o testemunho; 4) a
cena do testemunho. Em seu eixo-temático, ressalta-se que a narrativa de testemunho explicita um confronto entre a memória com a tentativa de se ofuscar
a verdade. O papel memorialístico aqui é trazer à tona a verdade, em meio aos
estigmas do trauma. Nesse caso, as obras de Primo Levi podem ser consideradas
como um tipo de “arquivo cultural” ou guardiã de uma parte da memória da Shoah. Esse processo narrativo, embora se valha às vezes de elementos que remetam
ao fictício, os problematiza com contundência. Por essa e outras razões, é possível
dizer que no cerne da escrita do testemunho, há uma aporia.
4 Do inferno de Dante a Auschwitz6
No início d’A divina comédia, Dante se vê em meio às feras que sondam
as portas do inferno. Virgílio, que o guiará pelas tormentas, avisa-lhe que, para
se salvar, ele terá de fazer uma longa viagem “pelos caminhos árduos das trevas”, uma vez que “o dia chegara ao fim, e a aproximação da noite convidava
já as criaturas [...]”. Assim, Dante proclama: “eu velando, pregava-me para a
guerra [...] do caminho e da piedade [...] que minha memória, com exatidão
retratará” (Alighieri, 2002, p. 13). Ele é impelido às profundezas da terra pela
6
Ressaltamos que o próprio responsável pela emissão narrativa do livro É isto um homem? cita,
entre outros trechos retirados da Divina comédia, a maldição de Caronte. Durante o trajeto
que leva ao inferno, este personagem diz: “Ai de vós, almas danadas”, (Alighieri apud Levi,
1988, p. 19). Nesse sentido, vide também outro capítulo de Isto é um homem?, intitulado “O
canto de Ulisses” (1988, p. 111-180).
178
balsa trôpega que o leva a um lugar onde a morte reina por excelência; a sua
principal função é penetrar os mistérios das almas daqueles espectros enfermos
pelos males do purgatório. E, justamente acima da porta do inferno, Virgílio
e Dante deparam-se com a inscrição que tanto os atormentara: “Abandonai
toda a esperança, ó vós que entrais” (Alighieri, 2002, p. 17). Aqui, tal como
em Auschwitz, aos condenados, não é “permitido esperar o descanso da morte
[...] seus nomes passam pelo mundo sem deixar marca; o perdão e a justiça
divina os desdenharam” (Alighieri, 2002, p 18). Aqui, tal como em Auschwitz,
a inscrição em cima da porta de entrada do inferno — “Arbeit macht frei”, “Só
o trabalho liberta” 7 — avisa ao homem que chegou ao ambiente onde impera
a escuridão e a eterna exploração. Ainda aqui, tal como em Auschwitz, há uma
força que arrastava todas as suas vítimas para os abismos da morte e, ao contrário do que ocorre com Dante, esta é uma viagem que, para quase todos, não
tem volta. Valendo-se de tais cenas, o narrador que testemunha as atrocidades
d’É isto um homem reforça que, em Auschwitz,
o trem viajava devagar, com longas e enervadas paradas [...]. Eu tinha no
coração o pensamento de retorno e, cruelmente, imaginava qual seria a alegria sobre-humana dessa nova passagem [...]. Olhei para o redor, e pensei
quantos, desse mísero pó humano, seriam eleitos pelo destino [...]. O trem
corria entre escuros pinheirais sem fim, sempre subindo [...]. Ninguém
tentava mais comunicar-se com o mundo externo; sentíamo-nos ‘do outro
lado’. Houve uma longa parada na campina aberta, logo a marcha recomeçou, lenta lentíssima, até que o comboio parou definitivamente, no meio da
noite, numa planície escura e silenciosa [...]. Assim, de repente, à traição,
desapareceram nossas mulheres, nossos pais, nossos filhos. Praticamente
ninguém teve como se despedir deles. Ainda os vimos um tempo, massa
escura no fim da plataforma; logo depois, não vimos mais nada [...]. Isto é o
inferno. (Levi, 1988, p. 12-20). 8
Como se sabe, a locomotiva há muito tempo é, por excelência, um dos
símbolos da técnica e consequentemente da civilização. Contudo, em É isto um
7
8
Cf. Primo Levi (1988), p. 20. Cf. também Primo Levi, A trégua (1997), p. 21.
Todos os trechos supracitados estão entre as páginas 12 até a 20 do romance.
179
homem?, ao transformá-la em imagem fúnebre daqueles “comboios que não
retornam” (Levi, 1988, p. 15), a máquina passa a ser vista como o mecanismo
que pouco a pouco arrasta o ser humano às trevas terrestres, em meio à plena
obscuridade. Da mesma maneira, a máquina faz com que os prisioneiros (em
alemão häftlinge) sintam-se ínfimos diante do poder. Sob os domínios da máquina, a minoridade humana é a única que prevalece, porque, mesmo para os
poucos sobreviventes, depois de Auschwitz, não haveria mais nenhuma esperança. De certa maneira, a nova passagem sublinhada pelo narrador demarca
os limites do antes e do depois; a trágica mudança do homem, que desde a
viagem para o campo de concentração, decompõe-se em “pó humano”, já que
também está fadado ao extermínio em nome da contraditória racionalização
técnica e inumana. Nesse sentido, mesmo antes de ter ocorrido a Shoah, Walter
Benjamin destacava que, por meio da guerra,
devido às destruições por ela empreendidas, a sociedade não estava suficientemente madura para fazer, da técnica, o seu órgão; que a técnica, por seu turno,
não estava suficientemente evoluída a fim de dominar as forças sociais elementares [...] A guerra imperialista é uma revolta da técnica que reclama, sob
a forma de ‘material humano’, aquilo que a sociedade lhe tirou como matéria
natural. Em vez de canalizar os rios, ela conduz a onda humana ao leito de
suas fossas; em vez de usar aviões para semear a terra, ela espalha suas bombas
incendiárias sobre as cidades e, mediante a guerra dos gases, encontrou um
novo meio de acabar com a aura (Benjamin, 1975. p. 34).
Em É isto um homem?, o papel do comboio da destruição também é o
de habituar os recém cativos ao lugar da “lógica nazista dominante”. Isso porque, a partir do testemunho do narrador, qualquer espécie de crença em um
ideal de civilização não seria mais admissível. Assim, constitui-se o paradoxo
já mencionado: em vez de o uso da técnica fornecer ao homem caminhos que
o levem a uma condição de liberdade plena, impele-o para os confins da “barbárie humana”. Nesse sentido, conforme Walter Benjamin pontua na citação
acima, a destruição da aura equivale à aniquilação dos monumentos culturais
ou da crença em algo que ainda nos pareça transcendental.
180
A chegada a Auschwitz traduz a própria entrada no inferno, cujas almas que nele habitam estariam condenadas eternamente à solidão, ao trabalho
forçado e, por fim, à morte. Em tais condições, até mesmo o pensamento é
proibido, pois a fome e a constante sensação de esgotamento, pouco a pouco,
consumem o homem até o seu momento derradeiro. Neste lugar, que demarca a cena do testemunho, a percepção temporal é totalmente instável, assim
o futuro não será mais passível de existência e a necessidade tende a deletar
qualquer vestígio de memória, do passado. Dessa forma, o fim torna-se cada vez
mais imediato, irremediável, fatídico.
Mas é importante observar que, se com a composição d’A divina comédia, influenciado pela estética clássica, Dante Alighieri também pretendia
elucidar os enigmas que levam à redenção e à elevação espiritual dos homens9,
valendo-se do sublime, da retórica em torno da clássica beleza artística, etc.,
com É isto um Homem?, Primo Levi nos deixou um testemunho-chave que,
de certa maneira, trata da impossibilidade de percorrer, pelo menos ingenuamente, estes mesmos caminhos, pois sua estética testemunhal apresenta Os
Afogados e os sobreviventes (1986), sobretudo, submersos nos labirintos de uma
humanidade perversa e dita esclarecida, e assim apontado, no sentido benjaminiano do termo, para a destruição da aura.
Em É isto um homem?, a aporia da História não permite a seus intérpretes
uma exata explicação. Por mais que suas bases tenham sido construídas sob o
prisma da razão, o que os homens de Auschwitz chegaram “a fazer do próprio
homem (Levi, 1988, p. 54-55) tende a permanecer incompreensível: “bem sei
que, contando isso, dificilmente seremos compreendidos” (Levi, 1988, p. 25).
Tem-se no cerne da narrativa um paradoxo: como interpretar algo não interpretável? Não é possível observar a humanidade no ápice da era do progresso, e
escutar passivelmente o testemunho de Primo Levi. Uma vez retirada qualquer
tipo de dignidade do ser humano, o crematório e a câmara de gás parecem ser os
únicos caminhos que conduzem à libertação do sofrimento. Enfim, “sabe-se que
eles estão aqui de passagem; que dentro de umas semanas, deles sobrará apenas
9
Para mais detalhes sobre o assunto, vide as considerações de Ernst Robert Curtius, Literatura
europeia e Idade Média (1996), p. 450-1.
181
um punhado de cinzas em outro campo próximo e no registro, um número de
matrícula riscado” (Levi, 1988, p.25). Por causa da lenta e mortal “aniquilação do
que ainda restava de humano nos próprios homens”, os häftlinge simplesmente
desaparecem sem deixar rastos na memória. Depois de passar pelo lager (campo
de extermínio), nem mesmo os sobreviventes teriam mais repouso.
Na abertura d’A trégua (1997), a seguinte epígrafe trata de uma liberdade ilusória, devido à insistência traumática das imagens do extermínio, feito a
partir da “técnica da dizimação”:
Sonhávamos nas noites ferozes
Sonhos densos e violentos
Sonhados de corpo e alma:
Voltar; comer; contar.
Então soava breve e submissa
A ordem do amanhecer:
“Wstavach”;
Agora reencontramos a casa,
Nosso ventre está saciado,
Acabamos de contar.
É tempo. Logo ouviremos ainda
O comando estrangeiro:“Wstavach”.
(11 de janeiro de 1946).
Para aquele que, de certa maneira, suportou as atrocidades do campo,
durante as vigílias, as reminiscências ainda voltam à sua mente como um pesadelo ininterrupto. No poema acima, o pronunciamento do comando estrangeiro — Wstavach— prenunciava a “condenação de cada dia”. Parafraseando as
reflexões de Giorgio Agamben (1998, p. 8), pode-se dizer que as obras de Primo Levi expressam um confronto irresolúvel para o pensamento, pois expõem
uma “realidade” que transcende ou supera determinado “elemento ilusório ou
não”; apresentam o inapresentável e, por isso, o receptor de seu testemunho
tende a angustiar-se diante daquilo que nunca se poderia ouvir. Portanto, “essa
é a maior aporia de Auschwitz”. Sem dúvida, a “verdade inteira” e a “vida nua”
182
são muito mais trágicas quando sobrepostas ao horror. Em contrapartida, é
importante observar que o testemunho apresentado em, É isto um homem?,
não analisa meramente a irracionalidade do homem ou o extermínio desenfreado por meio do poderio da técnica, mas traz principalmente uma reflexão
de como a racionalização nazista anti-semita chegou a um patamar que fez
com que o Esclarecimento entrasse em um processo paradoxal de completa
regressão. Nesse sentido, o testemunho de Levi vem para frisar que o que ocorreu nunca poderá ser repetido ou esquecido. É um confronto constante entre
testemunho, memória e experiência.
Por que Primo Levi começa o livro, É isto um homem?, citando A divina
comédia?, uma vez que, para usar a famosa expressão de Theodor Adorno, “Após
Auschwitz”, não seria mais possível pensar da mesma maneira as formas tradicionais de representação. Com tal comparação, é possível observar um choque
entre vários conceitos sobre a escrita da narrativa da história e sobre elaboração
artística. O mal e o sofrimento humanos, impostos social, econômico e politicamente, tendem a problematizar situações análogas que ainda ameaçam a
cultura e, consequentemente, a práxis de vida contemporânea10. Não devemos
simplesmente encobrir com a retórica acadêmica os rastros do horror causado
pela Shoah. Mas temos que tratar de sua “rememoração, no sentido benjaminiano da palavra, isto é, de uma memória ativa que transforma o presente”
(GAGNEBIN, 2006, p. 59). Nesse sentido, podemos dizer que o inferno de
Auschwitz, de certo modo, ainda insiste hoje em se ressignificar.
5 A desestabilização da experiência: a morte dos sonhos
Em seu livro Infância e história: destruição da experiência e origem da
história (2005), Giorgio Agamben ressalta que, para Montaigne, “o fim último
da experiência seria a sua aproximação com a morte, ou seja, como um conduzir o homem à maturidade por meio de uma antecipação da morte enquanto
limite extremo da experiência” (2005, p. 27). Neste trecho, fica bem claro que o
filósofo italiano nos fala de uma experiência positiva, porque a morte, enquan10
Para mais detalhes sobre o assunto, vide o texto “Após Auschwitz” (2006, p.59-81), de Jeanne
Marie Gagnebin.
183
to mediadora de outro patamar da própria existência, poderia traduzir algo
intraduzível. Com efeito, a morte demarca uma barreira inalcançável para todo
ser vivente. Portanto, somente por meio de um exercício que a antecipasse, o
homem poderia elevar sobremaneira o seu espírito.
De certo modo, o pensamento de Montaigne representa com contundência o poder de libertação humana, a partir de uma transformação que levaria os homens “à sua maioridade humana” ou à fuga da perpétua condição
de domínio, imposta por falta de ação e pela incapacidade de tomar decisões
próprias. Ainda assim, no mundo descrito por Levi, em É isto um homem?, tais
premissas não são permitidas.
Na obra em tela, a experiência em torno da morte não traz em detalhes as
atrocidades já expostas minuciosamente pela História nazista. Logo no prefácio,
o responsável pela emissão narrativa observa que o seu livro “não foi escrito para
fazer novas denúncias; poderá, antes, fornecer documentos para um sereno estudo de certos aspectos da alma humana” (Levi, 1988, p. 7). Isso porque, em várias
descrições ou relatos expostos na narrativa, há certo respeito por todas aquelas
vítimas do campo de extermínio. No entanto, o narrador não esquece que “este
é o produto de uma concepção de mundo levada às suas últimas consequências
com uma lógica rigorosa” (Levi, 1988, p.7). Acreditamos que a lógica nazista
é contraditoriamente caracterizada por uma espécie de “dominação racional”.
Assim, esclarecer é impor o poder, do mesmo modo que o objetivo é destruir
para construir: o mutatis mutandis — fundamento primordial de um ideal de civilização, mas só que, em Auschwitz, fora transformado em símbolo de barbárie.
Em É isto um homem?, a não-representação meticulosa da morte pode
ser interpretada como resquícios da resistência à barbárie, abrindo margem para
uma reflexão sui generis, exposta em todo desenrolar da narrativa. O capítulo
“A viagem” exemplifica muito bem a preparação do homem que está prestes
a morrer, sem saber exatamente o porquê de sua condenação. Nesse sentido,
aquele que narra a história sublinha que, no mundo afora do campo,
para com os condenados à morte, a tradição prescreve um austero cerimonial, a fim de tornar evidente que já não existe paixão nem raiva; apenas
medida de justiça, triste obrigação perante a sociedade, tanto que até o ver-
184
dugo pode ter piedade da vítima. Evita-se ao condenado, portanto, toda
preocupação externa; a solidão lhe é concedida e, se assim ele o desejar, todo
o conforto espiritual; procura-se enfim, que não perceba ao redor de si nem
ódio, nem arbitrariedade, mas necessidade e justiça e, junto com a pena, o
perdão (Levi, 1988, p. 13).
Em determinada prisão, até mesmo o condenado teria direito a um tipo
especial de tratamento, mesmo que lhe fosse concedido apenas momentos antes de morrer. Nestes últimos instantes, “já não existe paixão nem raiva”, o
que prevalece é uma justiça instituída pela sociedade. Por vezes, até mesmo o
carrasco poderia sentir compaixão. Em casos particulares, talvez os solitários
momentos finais possam ser minimizados com a absolvição que o condenado
concede a si mesmo, tal como um processo de auto-redenção. Portanto, a angustiante experiência que antecede a morte é-lhe configurada como única, mas
ainda respeitosa forma de punição.
Todavia, no campo de concentração, o homem é expropriado de qualquer tipo de experiência positiva, não só no sentido do mundus vivendis, de
algo vivido e experimentado, mas também no sentido do mundus imaginabilis
e também no do mundus sensibilis: a) as coisas que faziam o homem se sentir
como humano perdem o seu significado; b) os sonhos ficam suspensos, porque
há em sua mente apenas o sofrimento (Levi, 1985, p. 35); c) a sensibilidade
tende à unicidade opaca, fria e vazia, sublinhada pelas descrições do meio em
que todos os condenados passam a lutar pela sobrevivência; d) até mesmo a
morte é imposta de maneira súbita, cujo disfarce é o “véu do progresso”, apresentado também pela locomotiva que transporta as pessoas para o inferno de
Auschwitz. Assim, a experiência configurada pela morte não está mais vinculada à concepção de estabilidade espiritual ou do necessário e derradeiro repouso
corpóreo, mas, sobretudo, à de dor e de eterna angústia. Assim, nem mesmo no
derradeiro momento haveria redenção.
Nesse ambiente, em meio a tantas discrepâncias, é que o homem se
acostuma a viver, no mínimo, entre dois mundos opostos e contraditórios:
o do imaginário, aquele que lhe traz antigas recordações das experiências
185
positivas, porém não mais possíveis; e o mundo experimentável, aquele que
delineia o contato com a “crua” e perversa “realidade” do campo de concentração. O narrador observa que
sabemos de onde viemos; as lembranças do mundo de fora povoam nossos
sonhos e nossas vigílias; percebemos com assombro que não esquecemos
nada; cada lembrança evocada renasce à nossa frente dolorosamente nítida
[...] Ninguém deve sair daqui; poderia levar ao mundo, junto com a marca
gravada na carne, a má nova daquilo que em Auschwitz, o homem chegou
a fazer do próprio homem (Levi, 1988, p. 54-55).
Embora os sonhos estejam presentes na mente daquele que enfrentou
Auschwitz, suas lembranças de outrora lhe surgem como amarga impossibilidade de habituar-se em tais circunstâncias de sobrevivência, mesmo fora do
campo de extermínio. Trata-se de alguém que, apesar de continuar a viver,
torna-se um “não sobrevivente”. Parece que, paciente e pesarosamente, tal narrador testemunha o esvaziamento da “identidade da experiência, [da] vida articulada e em si mesma contínua, que só a [sua] postura... permite” (Adorno,
2003, p. 56). É justamente esta a desconfortante e aporética posição do narrador da obra de Primo Levi e aquele de grande parte da literatura do século
XX. Da mesma maneira, o mundus sensibilis é inalcançável, em face da morte e
da exploração humana; a desintegração da sensibilidade é condição primordial
para suportar as torturas e o trabalho forçado; o Esclarecimento sustentado a
partir de um ideal de emancipação, mais do que nunca, torna-se contraditório,
vazio, sem sentido. É por esse motivo que
numa condição em que o homem foi expropriado da experiência, a criação
de um tal ‘lugar comum’ só é possível mediante uma destruição da experiência, que, no exato momento em que infringe a sua autoridade, revela de
chofre que esta destruição é, na realidade, a nova morada do homem. O
estranhamento, que retira dos objetos mais comuns à sua experimentabilidade, torna-se assim o procedimento exemplar de um projeto poético que
visa fazer do Inexperienciável o novo ‘lugar comum’, a nova experiência da
humanidade (Agamben, 2005, p. 52).
186
No campo de extermínio, algo antes Inexperienciável torna-se a condição fundamental da sobrevivência, demarcando, assim, uma das aporias que
transcendem a obra É isto um homem?, porque, dentro desse labirinto da solidão e do aniquilamento, assim “é a natureza humana: as penas padecidas
simultaneamente não se somam em nossa sensibilidade; ocultam-se, as menores atrás das maiores, conforme uma lei de prioridade bem definida. Isso é
providencial, e nos permite viver no campo. (Levi, 1988, p. 73). A convivência
com a morte torna-se comum a todos; por ser impossível superá-la. O inferno
de Auschwitz transforma-se em “nova morada do homem”; o Inexperienciável,
nas obras de Levi, começa a ser fundamento de uma nova elaboração de escrita
que não pode ser confundida com outros moldes de narrativas.
A posição do sujeito da enunciação é posterior ao tempo da história e
assim tem-se o estatuto testemunhal da obra. Ainda que traumatizada, a função
da memória-narrativa exerce um papel fundamental: tende a expor um exercício
reflexivo sobre a própria crise da experiência e, por consequência, visa problematizá-la. A voz daquele que narra a história ressalta expressivamente que “o livro
foi escrito para satisfazer [a] necessidade... de libertação interior” (Levi, 1988, p.
8) — isto também quer dizer que somente a linguagem seria capaz de transpor
certas barreiras. Neste exato momento, demarcado pela enunciação, é certo que o
sujeito toma a palavra; ele tem o direito de manifestar-se e de readquirir consciência de si mesmo e das coisas ao seu redor, pois, em Auschwitz, a expressão não
lhe era permitida. Como constatou Benveniste, é a partir da linguagem que o
homem se torna realmente humano11. Mesmo assim, sabe-se que, como afirmam
Adorno e Horkheimer em variados trechos da Dialética do Esclarecimento, não é
possível amenizar os estigmas do campo de concentração, já que só o extermínio
do homem não era suficiente; era preciso exterminar ainda o que restava de sua
humanidade. Eis de novo uma aporia, baseada na representação do irrepresentável. Nesse sentido, ao constatar as contradições em torno dos ideais expostos
pela Aufklärung, o testemunho de Primo Levi se torna extremamente válido, pois
denuncia aquilo que jamais poderia ser olvidado.
11
Apud Agamben (2005), p. 60.
187
Talvez ainda seja necessário ressaltar o modo como o narrador da obra
de Primo Levi testemunha a morte da fantasia. A voz daquele que tenta arduamente resistir aos estigmas da guerra diz que
a multidão anônima, continuamente renovada e sempre igual, dos não-homens que marcham e se esforçam em silêncio; já que se apagou neles a
centelha divina, já estão tão vazios, que nem podem realmente sofrer. Hesita-se em chamá-los vivos; hesita-se em chamar ‘morte’ à sua morte, que eles
já nem temem, porque estão esgotados demais para poder compreendê-la.
Eles povoam minha memória com sua presença sem rosto, e se eu pudesse
concentrar numa imagem que me é familiar: um homem macilento, cabisbaixo, de ombros curvados, em cujo rosto, em cujo olhar, não se pode ler o
menor pensamento. (Levi, 1988, p. 91).
A testemunha adverte que o homem não perdeu apenas a identidade, mas
o poder de se situar como humano, porque, em meio ao calamitoso, também era
necessário abdicar de si mesmo, para esquecer o sofrimento. Trata-se do falecimento daqueles que ainda estão entre os vivos. Por outro lado, a representação
“da morte em vida” lembra-nos que o humano fora liquidado, esgotado, dizimado.
À guisa de conclusão
Em É isto um homem?, a integrante apresentação do sujeito esvaziado de
certa maneira também está correlacionada ao conceito de Theodor Adorno a
respeito da mímesis. Tal como observa Jeanne Marie Gagnebin: “a Aufklärung
tem horror à mímesis (às semelhanças afinidades, às metáforas) porque suspeita de uma identidade clara, bem definida, funcional, uma identidade que
aprendeu a se dobrar às imposições do trabalho” (1999, p. 7). A aniquilação do
sujeito e do humano no homem pode ser equivalente à morte da fantasia ou
dos sonhos, já que, em É isto um Homem?, uma das maiores advertências da voz
daquele que testemunha é que, durante e depois de Auschwitz, os sonhos não
poderiam mais existir; o que restaria seria a referida “morte em vida”. Assim,
testemunho, memória e experiência, na obra de Primo Levi, aparecem acoplados a uma revisão crítica da representação, uma vez que tratam do inenarrável,
do inexperienciável, do irrelembrável. Por contraditório que pareça, a certeza
que temos ainda hoje é que Auschwitz continua entre nós.
188
Referências
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W. Educação e Emancipação. 3ª Ed. São Paulo: Paz e Terra. Trad. de Wolfgang Leo Maar, 2003, pp. 119-138.
ADORNO, Theodor W. Posição do narrador no romance contemporâneo. In:
ADORNO, Theodor W. Notas de literatura I. Trad. bras. J. M. B. A. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003. p. 55-63.
AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem
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AGAMBEN. Quel che resta di Auschwitz: l’archivio e il testimone. Torino :
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Tradução Jorge Lima Barreto. São Paulo: Princípio, 1997.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Após Auschwitz. In: GAGNEBIN, Jeanne Marie. As luzes da arte: homenagem aos cinqüenta anos da publicação da Dialética do Esclarecimento. Organizadores: Rodrigo Duarte e Virgínia Figueiredo;
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189
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fragmentos filosóficos. Trad. de Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar
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IMMANUEL, Kant. Resposta à pergunta: que é Esclarecimento? Trad. bras.
modificada por Jeanne Marie Gagnebin. In: BUZZI, Arcângelo; BOFF, Leonardo (Coords.). Textos seletos. Petrópolis: Vozes, 1985, p.100-16.
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Maria, RS., pp. 121-130, jan.-jun. 2001.
190
SOBRE OS AUTORES (AS)
Andréa Moraes da Costa (UNIR)
Doutora em Letras – Teoria da Literatura – pela UNESP/São José do Rio Preto/
SP. Docente do Departamento de Línguas Estrangeiras e do Programa de Mestrado Acadêmico em Letras, na Área de Estudos Literários – PPGMEL – da
Fundação Universidade Federal de Rondônia/UNIR. Líder do Grupo de
Pesquisa de Estudos da Tradução da Amazônia – GETRA, credenciado pelo
CNPq. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7470-2943
Cláudia Maria Ceneviva Nigro (UNESP/IBILCE)
Livre docente em Crítica Literária. Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPG-Letras) da Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho” (UNESP/IBILCE), Campus de São José do Rio Preto. Líder
do Grupo de Pesquisa Gênero e Raça (CNPq/UNESP).
Ednalva Oliveira Silva (UNIR)
Mestranda pelo Programa de Pós-graduação Mestrado em Estudos Literários
da Universidade Federal de Rondônia. Possui especialização em Potenciais da
Imagem - Recursos Imagéticos nas Ciências Humanas pela Universidade Federal da Bahia. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Educação, Filosofia e
Tecnologias- GET/IFRO no Núcleo de estudos sobre Educação, Migração e
Direitos Humanos.
Elizabeth Cavalcante de Lima (IFRO)
É mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal de Rondônia
(MEL-UNIR) e docente de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira do
Instituto Federal de Educação, Ciências e Tecnologias de Rondônia (IFRO).
Além disso, é vice-líder do Grupo de Pesquisa (CNPQ), intitulado Criação e
(re)criação do romance nacional: conteúdo histórico e forma artística (CCRN).
191
Fernando Simplício dos Santos (UNIR)
É professor da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), vinculado ao
Departamento Acadêmico de Letras Vernáculas (DALV) e ao Mestrado
Acadêmico em Estudos Literários (MEL). É líder do Grupo de Pesquisa
(CNPQ), intitulado Criação e (re)criação do romance nacional: conteúdo
histórico e forma artística (CCRN). Entre as pesquisas desenvolvidas atualmente, elabora trabalhos a partir dos seguintes temas: a) teoria do romance;
b) literatura e violência; c) narrativa, imaginário e modernidade. https://orcid.
org/0000-0002-7853-5713
Gracielle Marques (UNIR)
É professora adjunta do Curso de Língua Espanhola do Departamento de
Línguas Estrangeiras e do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Estudos
Literários (PPGMEL/UNIR) da Universidade Federal de Rondônia (UNIR).
Doutorado em Letras Literatura e Vida Social pela Universidade Estadual
Paulista (FCL/UNESP). Membro dos Grupos de Pesquisa: Literatura Educação
e Cultura: caminhos da alteridade (LECCA -UNIR) e Grupo de Estudos da
Tradução da Amazônia – GETRA. https://orcid.org/0000-0001-6342-5231
Greicilaine Agostinho Martins (UNIR)
Graduada em Letras-Inglês/Literaturas pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR), aluna do Programa de Pós-graduação Mestrado em Estudos
Literários (PPGMEL) da UNIR e da Especialização em Educação e Diversidade do Instituto Federal de Santa Catarina (FSCS), integrante do Grupo
de Pesquisa de Estudos da Tradução da Amazônia – GETRA/CNPq. https://
orcid.org/0000-0002-4736-8051
Helio Rodrigues da Rocha (UNIR)
Doutor em Teoria e História Literária (UNICAMP) e pós-doutorado em
História Social (UFRJ). Professor e pesquisador na Universidade Federal de
Rondônia (UNIR). Membro do Grupo de Pesquisa “Devir-Amazônia: literatura, educação e interculturalidade”; do LABINTER-Laboratório de Inter192
culturalidade do PPGLI-UFAC – do Grupo de Estudos LECCA: Literatura
Educação e Cultura: caminhos da alteridade (UNIR) e da ASLE-Brasil – Associação de Literatura e Ecocrítica. https://orcid.org/0000-0001-7086-9594
Jacimara Nascimento Von Dollmger (UNIR)
Possui graduação em Direito pela Faculdade de Rondônia e graduação em
Letras-Português pela Universidade Federal de Rondônia/UNIR. É aluna do
Programa de Mestrado Acadêmico em Letras, na área de Estudos Literários –
PPGMEL – da UNIR. Integra o Grupo de Estudos da Tradução da Amazônia – GETRA/CNPq e atua na Secretaria do Estado da Educação do estado
de Rondônia/SEDUC-RO.
Jaime Ginzburg (FFLCH – USP)
Professor Titular de Literatura Brasileira da FFLCH – USP. Pesquisador 1B do
CNPq, com projeto “Literatura e cinema no Brasil contemporâneo – segunda
fase”. Publicou Crítica em tempos de violência (Edusp/Fapesp, 2012, Prêmio Jabuti em Teoria e Crítica Literária). Coordena o Grupo de Pesquisa Literatura e
Cinema no Brasil contemporâneo. https://orcid.org/0000-0003-2413-9085
Janete da Silva Lagos (UNIR)
Mestranda pelo Programa de Pós-graduação Mestrado em Estudos Literários
da Universidade Federal de Rondônia. Possui graduação em Pedagogia pela
Universidade Federal de Rondônia e Especialização em Pedagogia gestora
pela Faculdades de Ciências Sociais Aplicadas.
Juliana Bevilacqua Maioli (UNIR)
Professora da Universidade Federal de Rondônia, credenciada ao Programa
de Pós-graduação Mestrado em Estudos Literários (PPGMEL/UNIR). Possui Mestrado e Doutorado em Letras, pela Universidade Estadual Paulista e
pós-doutorado em pela Universidade de Salamanca (Espanha). Desenvolve
pesquisa na área da literatura contemporânea, focalizando estudos de obras
latino-americanas e amazônicas. https://orcid.org/0000-0002-7803-7394
193
Juliana Freitas Budin Ferreira (UNIR)
Graduada em Letras/ Português pela Universidade Federal de Rondônia
(UNIR), aluna do Programa de Pós-graduação Mestrado em Estudos Literários (PPGMEL) da UNIR. Especialização em Docência no Educação Superior pela faculdade ESPG e MBA em Gestão de Instituições Públicas pelo
Instituto Federal de Rondônia.
Juliana Santini (FCLAR – UNESP)
Livre-docente em Literatura Brasileira, professora associada do Departamento de Linguística, Literatura e Letras Clássicas e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da UNESP, Faculdade de Ciências e Letras de
Araraquara. https://orcid.org/0000-0001-5267-7230
Luiz Henrique Moreira Soares (UNESP/IBILCE)
Doutorando e mestre em Letras no Programa de Pós-Graduação em Letras
(PPG-Letras) da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(UNESP/IBILCE), Campus de São José do Rio Preto. Integrante do Grupo
de Pesquisa Gênero e Raça (CNPq/UNESP).
Nayara Piovesan Ribeiro Bartolomei (UFMT)
É Doutora e Mestra em Estudos de Linguagem pela Universidade Federal
de Mato Grosso, licenciada em Letras Português-Inglês e em Letras Libras
pela mesma instituição. É docente do Departamento de Letras/Instituto
de Linguagens na UFMT. Atua principalmente nas áreas de Libras e
Literatura Sinalizada.
Paulo Eduardo Benites de Moraes (UNIR)
Doutor em Estudos Literários (UFMS). Professor do Departamento de
Línguas Estrangeiras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Líder do Grupo de
Pesquisa em Poéticas Moderna e Contemporânea (UNIR/CNPq). https://
orcid.org/0000-0002-5809-0956
194
Rogério de Mendonça Correia (UFAC)
Licenciado em Letras Inglês (UFAC - 2003). Mestre em Letras, Linguagem e
Identidade (UFAC - 2011). Doutorando em Letras, Linguagem e Identidade
pela Universidade Federal do Acre (UFAC - 2019). Professor Assistente na
Universidade Federal do Acre onde atua como professor de Língua Inglesa e
suas Literaturas. https://orcid.org/0000-0002-5624-6099
Válmi Hatje-Faggion (UnB)
É Professora Titular da área de Estudos da Tradução da Universidade de Brasília (UnB) na graduação e na pós-graduação (POSTRAD). Obteve na Inglaterra em Estudos da Tradução seu doutorado na Warwick University e um
pós-doutorado na University of Leeds. É líder do Grupo de Pesquisa CNPq/
UnB-Estudos da Tradução (2006-). As publicações incluem Destino internacional: Machado de Assis para a língua inglesa – seis romances em múltiplas traduções (2015), Tradução e cultura (2011, org.), além de capítulos de livros, artigos
em revistas no Brasil e no exterior na área de Estudos da Tradução, cultura,
história, recepção e crítica literária.
Vinícius Carvalho Pereira (UFMT)
É Doutor e Mestre em Ciência da Literatura pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro, bacharel e licenciado em Letras Português-Inglês pela mesma
instituição. Realizou estágio pós-doutoral na University of Nottingham e é
docente do Departamento de Letras/Instituto de Linguagens na UFMT. Atua
principalmente nas áreas de Literatura Eletrônica e Vanguardas Poéticas.
195
A Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR) é uma instituição pública
de ensino superior criada em 1982. Ao longo de aproximados 40 anos, as ações de
ensino, pesquisa e extensão formaram profissionais qualificados para atuação em
todas as esferas da sociedade e do mercado de trabalho. A partir do ano 2000, com
o início da oferta de cursos de Pós-Graduação, essa ação foi sendo ampliada, sendo ofertados, atualmente, 24 mestrados e 04 doutorados, abrangendo diversas áreas
do conhecimento e priorizando pesquisas atinentes às questões ambientais, sociais,
educacionais, culturais, econômicas e geográficas da Amazônia e especialmente de
Rondônia. Como política de apoio e fortalecimento à Pós-Graduação e à pesquisa
na Universidade, a Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa (PROPESQ) instituiu a publicação de livros elaborados pelos programas de Pós-Graduação, como
atividade de divulgação e compartilhamento dos resultados das pesquisas produzidas por pesquisadores desta Instituição, tendo a Editora da Universidade Federa
de Rondônia (EDUFRO), como unidade sistematizadora de todas as produções.
Dessa forma, a coleção é resultado dos trabalhos elaborados pelos PPG da UNIR,
com temas e abordagens disciplinares e transdisciplinares que visa a divulgação dos
resultados das pesquisas elaboradas nessa Instituição e aproximação da UNIR das
Instituições Estaduais, Municipais e de toda a Sociedade.
Maria Madalena de Aguiar Cavalcante – Diretora de Pós-Graduação
Artur de Souza Moret – Pró-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa
O desafio da Fundação Universidade Federal de Rondônia no ensino de graduação e
de Pós-Graduação nunca foi tão grande, principalmente a partir dos recursos cada vez
menores. Nesta pandemia por covid-19, o desafio foi não parar e a Pós-Graduação da
UNIR não parou: defesas de dissertações e teses tornaram-se on-line e as produções
acadêmicas-científicas não cessaram. A Coleção Pós-Gradução é a demonstração de que
o esforço para o crescimento e a consolidação se mantém firme e constante. O futuro da
Pós-Graduação na UNIR é o resultado das ações articuladas entre todos os atores, com
maior abertura para a sociedade e para os setores públicos e com um grande objetivo que
nos motiva, o de contribuir na formação em excelência de professores e pesquisadores
nos países limítrofes. Os resultados nos colocam em papel de destaque na Amazônia e
é isso o que desejamos: ser uma Instituição pública e gratuita, com forte apoio da sociedade para a oferta de cursos e formações que promovam o Desenvolvimento Regional e
Sustentável do Estado de Rondônia.
Marcele Regina Nogueira Pereira - Reitora
196